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Danças da Escuridão Abílio Mateus Jr.

Danças da Escuridão

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@Abílio Mateus Jr ISBN 978-85-914822-0-7

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Page 1: Danças da Escuridão

Danças da Escuridão

Abílio Mateus Jr.

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DANÇAS DA ESCURIDÃO

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Conheça também, do mesmo autor:

SUBLIMES RUÍNAS

1ª edição, 2012, e-book, Edição do AutorISBN 978-85-914822-1-4

Disponível em http://abiliomateus.net

IMAGEM DA CAPA: Parede de ossos encontrada no ossário municipal ou catacumbas de Paris, França © 2008 Abílio Mateus Jr.

TEXTURA DA CAPA: Shadowhouse Creations

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Abílio Mateus Jr.

DANÇAS DA ESCURIDÃO

2ª edição

Florianópolis

2012

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M425d! Mateus Jr., Abílio, 1978-! Danças da Escuridão / Abílio Mateus Jr. – Florianópolis: Edição do Autor, 2012.

ISBN 978-85-914822-0-7

1. Poesia brasileira. I. Título2. CDD 869.91

CDU 821.134.3(81)-1

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Índice para Catálogo Sistemático:

1. Poesia: Literatura Brasileira 869.91

Copyright © 2012 Abílio Mateus Jr. Todos os direitos reservados

Disponível em http://abiliomateus.net

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“A poesia não tem outro objetivo senão ela mesmo.”

Charles Baudelaire

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AO LEITOR

A decadência humana é a fonte borbulhante, o jorro inspirador

destes versos doentios, deste spleen que se refaz num momento

de extrema angústia dos que desejam criar. Cantemos a vida! A

morte oculta em cada sorriso deprimente; a piedade se

retorcendo em peito senil; a loucura estampada nas faces

indistinguíveis...

Caro leitor, não se deixe deter pela aparente torpeza destas

palavras. As rubras águas de mórbidos estertores misturam-se ao

líquido translúcido e revigorante, o bálsamo dos loucos. Como

uma dança de sombras, a decadência e a vitalidade de solenes

quimeras esvaem-se no espaço infindo destes versos embriagados

de vida e morte.

Nestas páginas aflitivas, as Danças da Escuridão permanecem

escondidas, perdidas na negrura de cada verso, cada traço

disfarçado de verso. Cabe ao leitor iluminar estes palcos errantes

com a luminosidade dos seus vagos sentimentos.

Abílio Mateus Jr.

abril 2002

Page 8: Danças da Escuridão

SUMÁRIO

PRÓLOGO: A AURORA 11

DIA DE CHUVA 12

FUGA 13

DIURNOS 14

MISERABILE VITA 15

INSPIRAÇÃO 16

DEUSES METÁLICOS 17

VENTOS E RAIOS 18

A MORTE DO POETA 19

A QUEDA 20

O FANTASMA 21

SUBTERRÂNEO 22

ALLEGRO 23

OS VIAJANTES 24

O CAMPESINO 25

O TÉDIO 26

ÉBRIO 27

A MORTE DO ASSASSINO 28

INCENSO 29

BRANDEMBURGO 30

O MEDO DO SOLITÁRIO 31

ÚLTIMAS PALAVRAS 32

A CHAVE 33

DUALISMO 34

O ESCRITOR CONDENADO 35

ANJO DECADENTE 36

DANÇAS 37

EM PAZ 38

A VELHA 39

Page 9: Danças da Escuridão

MÁRMORE 40

PÂNTANOS 41

GRITOS DA MISÉRIA 42

A CEGA 43

SUICIDAS 44

SALTIMBANCO 45

SOBRENATURAL 46

POÉTICA DAS ÁGUAS 47

A MORTALHA 48

UMA DANÇA 49

CÉU RUBRO 50

A CARNE 51

TRANSEUNTE 52

SER POETA 53

DE PROFUNDIS... 54

VÍCIO 55

TARDE 56

SOTURNO 57

ANGÚSTIA NOTURNA 58

NOCTÍVAGO 59

O POETA E O DOENTE 60

CARPE DIEM 62

HORA SAGRADA 63

ALUCINAÇÃO 64

EPÍLOGO: O CREPÚSCULO 65

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PRÓLOGO: A AURORA

Longe das súplicas e das verdades,Desafia o olhar a imagem fielDo dia a inundar-se de claridades,Vindas da sordidez do opaco céu.

Decadentes espectros, filhos de Hades,Discípulos da escuridão cruel,Escondem-se nas sombras das beldades,Em busca da paz, como a um troféu.

Na aurora dispersa em negros poemas,Visões burlescas do cotidianoMisturam-se ao caos de loucos emblemas.

Palavras, névoas do saber humano,Decadência... prendem-nas as algemasDa sóbria Tolice e do Tédio insano.

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DIA DE CHUVA

Num dia de chuva, a fúria me abraça...Não abro a janela pois tenho medoDa chuva molhar os sonhos de cedo,Vãos devaneios que a chuva ameaça.

Imersa em pós, a visão é uma taçaEmbebida pelos vapores do ar,Pela ávida chuva, sempre a me olharCom suaves olhos que o vidro embaça.

Por um instante, a chuva trespassaA janela dos anseios perdidos,Perde-se entre desejos esquecidosE esvai-se num volver cheio de graça.

Sobram fragmentos da plúmbea fumaça;Nebulosas opacas entre ventos...Restam devaneios e pensamentos,E a fúria, minha lânguida desgraça!

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FUGA

Dos olhos plangentes do sonhador errante,Transparentes visões emergem como raios,Inundando de luz o ambiente bacante,Soberbo e opulento como breves ensaios.

São sóbrios momentos que precedem a fuga,A sutil escapada de versos detidosEm antigas prisões, onde a vida se enruga,Em tumbas ocultas por campos florescidos.

Imagens lascivas escorrem pelos cantosDos olhos que lamentam por coisas banais.Os versos viram preces, devotos de santos,Pagãos corrompidos por atos imorais.

São disfarces profanos, insanos e sábios,Nobres trajes para a fuga do sonhador;As ternas palavras escapam por seus lábiosE encontram a liberdade em versos de amor.

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DIURNOS

Manhã sem vida... apenas folhas em branco,O leve balanço de flores suicidasDespencando uma a uma, num voo franco,Rumo ao solo, às sepulturas soerguidas.

Somente os lamentos de incerteza e tédio,Os pássaros confusos nos ares diurnosGritando qual loucos em busca dum remédioPara suavizar seus corpos taciturnos.

Apenas folhas em branco, mágoa poética...Na manhã que padece, serena e fria,Os versos enlouquecem, perdem a estética,

Dissolvem-se nos ventos, estranha magia,Erram além dos sóis numa dança frenética,E sucumbem, cansados, numa poesia.

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MISERABILE VITA

Condenados pela vida... loucura!Um único grito exalta a revoltaDos que jazem em funda sepultura,Sórdida prisão, donde não há volta.

Mortos? Vivos? Vejo apenas vigor,Movimentos sublimes e perfeitosDos seres que povoam todo o horrorDas mórbidas ruínas, eternos leitos.

Vida macabra que se insurge, fria,Entre bramidos ásperos e roucos,Em meio aos ruídos da atroz sangria,O jorro escarlate, o néctar dos loucos.

“Bebei um gole!” Gritam os miseráveis.Um cálice enche-se de piedade...“Bebei a vida, oh! deuses invulneráveis!Bebei, cantai, a loucura, a liberdade.”

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INSPIRAÇÃO

Um esgoto a céu aberto escorrePelas entranhas convulsivas,Corpóreas, cicatrizes vivas,Do corpo que não sente, morre.

Bóiam nestas águas funestas,Torpes, turvas, intempestivas,Mortalhas solenes, lascivas:Restos de hediondas festas.

Nos céus, olores putrefatos,Brumas envolventes e altivas,Somem como dores furtivasEntre gritos estupefatos.

Mas nestas fúnebres paisagensSurgem qual surpresas festivas,Vagas flores, do caos nativas...Flores! Poéticas imagens.

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DEUSES METÁLICOS

Espirais se elevam! Faz-se um mistérioNas sombras circunscritas por objetosDo luzente metal, do alvo minério;Sobras de rochas e de seus dejetos.

Contornos espiralados no espaço,Limitações da matéria forjada;Metal bruto, ligas fundidas, açoPrensado qual vida desconsolada.

Entre cinéreas armações, em casas,Crianças brincam com deuses estáticos:Máquinas viventes, anjos sem asas,Sem auréolas, sem liras... metálicos.

Síntese da modernidade esférica,Curvilínea, da estrutura espectral(Espetáculo de formas!), da histéricaVida presa em gaiolas de metal.

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VENTOS E RAIOS

Faíscas escapam de luzentes objetosRumo aos céus, às névoas sublimes e preclaras.Raios diminutos partem obliquamente...Azulados, resplandecem tal como insetosNos luares ubíquos das noitadas raras.

Infestam as mentes ingênuas, de repente,Numa vaga imensidão temporal, os raios,Os relâmpagos azuis que surgem sutisNos seres ocultos na ventania ardente,Pálida, fraca, estridente..." Ventos e raios.

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A MORTE DO POETA

Quando um poeta morre, todo o mundo choraUm pranto sem lágrimas, um choro que afloraNo peito, na alma carente de poesiaE soa, calmamente, como um triste adeus.

Quando um poeta morre, o mundo silencia.Calam-se os loucos, ajoelham-se os ateus,Teme o inferno o poeta que empalideceE deixa o torpe mundo, que logo se esquece

Dos poemas escritos nas noites aflitas,Dos versos sensatos, das palavras benditas;As obras intactas do artífice da língua.

Quando um poeta morre, a poesia míngua.O tempo se contrai, a vida... a vida se esvaiNuma estrofe, num verso, num lapso, num ai!

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A QUEDA

Um espasmo violentoE a queda se faz presente.A morte!" Grito temente,Medo da morte, do vento:O sopro negro... da morte.

Na queda, dores, um corteProfundo tal como um poço.O sangue" Fluindo grosso,No corpo exangue, sem sorte,É um chafariz... de sangue.

Um urro, e o corpo langueMergulha no lago quente.A morte" Se faz presenteE ri forte, como o sangue,Que jorra em rios... da morte.

A morte!

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O FANTASMA

A sombra flutuante sob fartos olharesParece um resquício de vida maltratada;Sem rumo, fica à deriva em altos mares,Esperando o fim da nauseante jornada.

Suas vestes translúcidas são como velasIçadas até os céus por rígidos mastros.Não há vento, mas a sombra nas aquarelasVeleja tal como imagens, sem deixar rastros.

Sob tons policromos, a figura noturnaDesaparece nos mares inconscientes;Naufraga nos sonhos, levemente soturna;Mergulha em pesadelos, loucos, deprimentes.

A sombra do fantasma jaz nos oceanos,Nas trevas absurdas dos vagos pensamentos.O desconhecido cai em abismos profanos,Que escondem medos, temores e outros tormentos.

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SUBTERRÂNEO

E não somente grita palavras sensatas...Geme! Murmura mentiras como animais,Covardes, ante predadores naturais,Rangendo os dentes, temendo malditas patas.

No subterrâneo escavado com a maxila,Relembra a vida, encena uma morte triunfal,Geme! Treme de angústia num fragor mortal,E perverso, em cada palavra o caos desfila...

E um mundo desaba sob seus pés desditosos...Anjos infames descem dos céus, dos infernos,Das alturas caem monumentos eternosE nos ares subterrâneos, choros medrosos.

Um silêncio caótico ruge incessante,E a negrura sublime arde no peito vil,Negro por dentro, e triste, e solitário, e frio...Qual tumba mortuária num deserto errante.

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ALLEGRO

A fúria amena da música puraTranstorna os sentidos e a desventuraDe não ouvi-la enlouquece, qual preceMurmurada num bafo de loucura.

Vêm os sons latejantes do maestro,Rondando as pautas, procurando um estro,Musical, sonoro, um canto canoroExpirado na fuga dum sequestro.

Flores cobrem a paisagem nevada,Pálida e triste, e cânticos do nadaSe elevam, verdejando, bravejandoAlgo sublime na alma esbranquiçada.

A primavera soa em violinosFestivos, que florescem como sinosDobrando nas alturas, nas agrurasImpiedosas de vagos destinos.

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OS VIAJANTES

Quando os sonolentos desabam nas moradasE envergam seus corpos, bocejando ao acaso,Nas sórdidas mansardas, faces desoladasCondenam à forca o silêncio do descaso.

Indignos sem leito (mas com a tumba pronta!)Brincam de imortais lançando-se em torpes poços,Sem medo das trevas, da morte que os afrontaE lhes diz: “Faço de suas vidas, meus ossos!”

A caravana de semideuses, qual vagas,Oscila entre o tumulto de vozes malditasE a gritaria rouca de velhas pressagas,Murmurando o futuro, as sortes e as desditas.

Nos ninhos aconchegantes, quase sagrados,Os viajantes desembarcam com destrezaE logo adormecem sobre os parcos estrados,Deixando o poeta só... com sua tristeza.

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O CAMPESINO

Com a enxada nos punhos infantis,Cava o solo pobre, o terreno ingrato,Que arranca-lhe os sorrisos puerisE as brincadeiras troca pelo mato.

Capina o mato... retrato da morteCravado na aridez dos descampados,Dos desertos à procura da sorte,A busca incansável pelos aguados.

Brinca na terra, sonha com a enxadaE descobre a vida nas duras chagas,Nas batalhas contra a fome encarnadaEm pálidos olhos, humanas pragas.

Sob o sol do sertão, e a vil miséria,O menino, o campesino, sorri,Como se a vida fosse uma pilhériaE a morte, a justa indagação de si.

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O TÉDIO

Ser das sombras eternas, me olha concentrado.Pupilas dilatadas, mirando, sinistro,O tumulto que divaga, poetizadoCom mil palavras.! — Da Morte, és o ministro!

Transeunte dos infernos, da falsa negrura.Deus infame de vestes rotas, maltrapilho;Mal-aventurado que me olha à procuraDe más lembranças.! — Da Loucura, és o filho!

Fantasma dentre os fantasmas, espectro vil.Tens por escravos os jovens; por rei, o Terror.O Medo que murmura em peito ermo e senilReina seu mundo.! — Da solidão, és a dor!

Certezas e dúvidas confundem-se na alma.O Tédio, soberano, segue seu caminhoEntre corpos e espasmos, a maldita calma,A paz dos tolos.! — Dos poetas, és o vinho!

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ÉBRIO

Afundarei meu copo em poças rutilantes,E vítreas figuras surgirão qual bacantes,Dançando, cambaleando entre largos jorrosDo mais puro elixir, dos mais uivantes morros.

Um fresco licor descerá pela gargantaAnimando a alma, dizendo-lhe: “Te levanta!E corra qual louco devasso pelas ruas,Exalando o meu perfume nas falas tuas.”

“Seja digno do meu fatídico domínio.Apresente-me a outros, cause-lhes fascínio;Ostente com soberba o fulgente castelo,Que abriga meu reino e o teu humano flagelo.”

Livre de mordaças, mas preso ao nobre vício,Jogarei meus sonhos em fundo precipício,Sem remorsos, tristezas ou torpes mágoas...Apenas ébrio, mergulhado em rubras águas.

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A MORTE DO ASSASSINO

O punhal que fere seu corpo, reluzindoQual prata arrancada de carne necrosada,Reflete os mil semblantes da morte estampadaNo aço dilacerante, no sangue fluindo.

Gritos, murmúrios, confundem-se com sorrisos,Com o som do metal tilintando no chão.A foice negra, no clamor da escuridão,Suspende-se no espaço, dando os seus avisos.

Fúria convertida em ríspidas cicatrizes...Ó morte prematura, desgraça voraz,Assassina o tempo daquele que te fazTão viva de cores, tão cheia de matizes?

Pobre de alma! Jaz no concreto suburbano,Velado por animais de reles espécies,Que rezam, e rezam, e cantam suas preces,E seus louvores. Ó maldito ser humano!

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INCENSO

As doces labaredas de muitos ardoresTecem nos ares espessos e sufocantesMortalhas gentis para plácidos amoresE trajes nacarados para vis amantes.

Disformes figuras, esfumaçadas, pálidas,Agitam-se nas profundezas abissais,Fartas de aromas selvagens, fragrâncias cálidasLançadas por Vulcano, o deus dos ancestrais.

A cada expiração fumegante, as visõesOfuscadas pelas incandescentes danças,Das alvas imagens, das vastas ilusões,Enchem as retinas, os lábios, de esperanças.

Tão assim é o teu olhar, ó musa silente!Coberto com uma névoa de incensos purosDeixa trespassar apenas o amor fremente,Que tem por abrigo seus dois olhos escuros.

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BRANDEMBURGO

Brandos movimentos aéreos, suaves,Serenamente regem todo espaço,Repleto de sons, e notas, e claves,E gestos seguindo o mesmo compasso.

Brandos temporais de ventos, de flautas,De pianos, de agudos violinos.Cada som marcado em antigas pautas,Nos traços magistrais e genuínos.

Brandos desafios na arte musical,Na arte de ouvir a música divinaE contemplar, como um deus, o irreal,A obra secular que inda nos fascina:

Concertos, tocatas, fugas brilhantes...A eterna liberdade, a criação;O conluio de notas aspirantesNas partituras, na composição.

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O MEDO DO SOLITÁRIO

À hora tardia, quando os parvos sonâmbulosDespertam desesperados da sonolência,Alucinados, nas alturas, qual funâmbulos,Torpes pensamentos erram na consciência.

Ah! Tão indistinguíveis remorsos de outroraAfligem, denigrem, culpam o condenadoPelas mãos impiedosas da vil senhora...A Loucura, justa e cega, impõe seu reinado.

Recolhido no esquecimento quase eterno,Corroído pelos ares da solidão,Entrega-se ao medo, malefício hodiernoSustentado por bruscas palavras em vão.

Envolvido pelas paredes de concreto,Assiste, momento a momento, ao seu sepulcro,E mesmo que lhe digam o que é correto,Esquece, e faz do medo um solitário fulcro.

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ÚLTIMAS PALAVRAS

“Mehr Licht!”Goethe

As pálpebras, em distúrbios, desabamLevemente ébrias de melancolia,E soluços monstruosos divagamNas calmas catacumbas da afasia.

Suspiros envoltos por negras brumasTentam o suicídio num poemaDeclamado em meio a rubras espumasSaindo da boca, qual num edema.

O espectro já moribundo, gemendo,Retorcendo os membros desfalecidos,Lembra uma dessas plantas, que morrendoOculta-se nos campos florescidos.

A inútil esperança de viverOprime o poeta, e esta o conduzÀ última súplica, ao vão dizerDe palavras assim ditas: “Mais luz!”

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Page 33: Danças da Escuridão

A CHAVE

Muitas vezes olho as chavesQue trancam, firme, o meu túmulo.Cego, arrisco-me no cúmuloDos tênues sonhos, suaves.

Aferrolhado na cova,Insuportável abrigo,Tomo em minhas mãos o amigoDa carne pútrida, ou nova.

— Oh! verme, ser da miséria!Mostra-me a trilha da vida,A chave que abre a feridaDa minha alma, a vã pilhéria!

Sem respostas, cego e louco,Procuro na escuridãoVestígios da vida... Em vão,Sinto morrer, pouco a pouco.

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Page 34: Danças da Escuridão

DUALISMO

Quando soarem as derradeiras sonatasE os últimos cantos ecoarem no espaço,Qual voz silenciosa, ou cuidadoso passo,Escondendo segredos de mentes sensatas;

Quando avistarem ao longe os trêmulos portos,Que enlaçam com firmeza as almas fugidias,E cândidos, salvam das fortes ventaniasOs permanentes náufragos, vivos e mortos;

Quando os corpos moverem-se na rapidezDo mais singular facho de luz policroma;Quando tudo o que nos restar for como a somaDe infindas ondas em colapso, e a sordidez...

Gritaremos como loucos em meio aos livros,A névoa desconhecida que nos transformaEm sábios que nada sabem, na simples formaDo mais puro saber: Mortos, e sempre Vivos!

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Page 35: Danças da Escuridão

O ESCRITOR CONDENADO

Debruçado sobre folhas, alvas escravasAçoitam seu corpo, deixam sulcos sanguíneos,Qual feridas provocadas por duras clavasNos punhos marcados por fartos assassínios.

A tinta escorrendo na pele castigadaDesenha nas rugas imagens de bacantes,Sacerdotisas insanas qual madrugadaDe prazeres ardentes, e versos faltantes.

Fugindo das sombras, caindo em precipícios...Quão forte é a mão que arrebata seus sonhosE transforma seus devaneios em suplícios,Como aqueles que olham para a morte, risonhos?

Quantos versos mal escritos florescerãoNo ermo deserto dos seus velhos pensamentos?Sua vida flui qual um denso turbilhão,Sugando da alma apenas os férreos lamentos.

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ANJO DECADENTE

Acordarei sobriamente no crepúsculoE qual um morto atroz não mexerei um só músculoNa tentativa de livrar-me das correntes,Penosas e estridentes, presas aos meus ossos.

Imóvel, aspirando esses ígneos destroços,Cultivarei vagos sorrisos decadentes,Na esperança de lançar-me nas profundezas,Qual pássaro das trevas, sem medos, tristezas.

Lembranças mutiladas cairão solenesNos abismos que crescem em meu crânio, infrenes,Caindo qual dardos, venenosos, mortais.

Fugazmente sentirei a dor dos ancestrais,Serei a própria morte humana, o negro tormento,Sorrindo o tédio, a angústia, e o sofrimento.

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DANÇAS

Flores intempestivas dançam nos jardins...As pétalas disformes, dum negro incisivo,Deixam pender das bordas um fluido vivo,Germe alegórico trazido dos confins.

Dança macabra, infinita desenvoltura...Os corpos bailam mergulhados em soluçosDe angústia pálida e fria, como repuxosPerpétuos, ignotos, nas praças da tortura.

As almas voam em sinistros movimentos...Os restos de carne carcomida no espaçoCingem as nódoas que se desfazem em maço,Reunião de cicatrizes e árduos fragmentos.

As mentiras, os loucos, os entediadosDançam, flutuam sobre as desgraças penosas,Sorrindo, jovialmente, perante as rosas,Mórbidas, torpes, rosas dos desesperados.

Inconstantes olhares, revoltos, insanosAdmiram, longínquos, o fétido bailadoDas flores medíocres, o ato consumado;Retrato da sordidez e do tédio, humanos.

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EM PAZ

Na negra lápide floresce algo fugazQue retorcido enlaça com força os ossos,Castiga com espinhos os alvos destroçosQue outrora era um corpo alegre vivendo em paz.

Como num báratro infindo, profundo assaz,A náusea desaba em queda eterna; nos fossosEntrincheira-se à espera dos vãos esforçosDas gentis senhoras que passeiam em paz.

Um sorvedouro de vidas freme voraz,Evocando os lamentos jogados nos poçosDas almas, das calmas, dos pesadelos nossosEscondidos na revolta, entre a guerra e a paz.

Uma insana multidão, da morte sequaz,Invade os fragmentos do arcabouço, dos ossos,Corroendo a carne, transformando os destroçosEm substâncias etéreas, em poeira, em paz.

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A VELHA

A turba revolta em vão alvoroço,Agitando as cabeças desonestasEm frenéticas tonturas funestas,Lembra um desses vermes roendo osso.

No meio do povo inquieto e louco,A visão duma velha errante assusta,Enegrece as vistas, os olhos justa,Fecha, cerra, cegando-os pouco a pouco.

Na fronte enrugada a causa do espantoReina soberana entre as sobrancelhas:Um torpe tumor cinge as rugas velhasE cresce na face, sem dor nem pranto.

Como um monumento erguido em vil praça,O tumor canceroso, purulento,Provoca a ânsia em cada sentimentoDe compaixão, pena de tal desgraça.

Mas a velhinha e seu espectro horrendo,Sorri serenamente sem temerA repugnância que há de crescerCada vez que o seu tumor for crescendo.

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MÁRMORE

Escrevo sobre rochas, e sobras de rochas;Nas tumbas em ruínas, nas próprias ruínasDos templos dedicados às coisas divinas,Às coisas sagradas, às fogueiras, às tochas.

Transpiro todo o suor, sinto todo o odorQue penetra nas narinas mudas, gritante,E nos lábios cegos reflete fulguranteToda a luz dos espasmos que levam à dor.

Traduzo cada sentimento de tristezaDe pena ou compaixão, tédio e desventura;Traço todos os gestos da brutal loucura,Todos os temores da pungente certeza.

Transcrevo para a pedra de singular formaOs gritos e expressões da face doentia,Da jovem beleza irradiando alegria;Desgraça escorrendo na boca que informa.

E mesmo que a angústia aqui enaltecidaCause aflição aos tolos, tal como às moscas,Tornarei a escrever sobre essas formas toscasPara me lembrar das asperezas da vida.

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PÂNTANOS

Desvairado a percorrer vastos lodaçais,E vales enegrecidos por vagas flores,Pululantes variações das negras coresQue jazem nas pétalas e nos minerais;

Enlouquecido a perscrutar cada jazidaDa mais repugnante sordidez que envenenaE aos poucos torna a alma uma brisa amena,Um vapor melancólico que encerra a vida;

Sonâmbulo a caminhar sobre a fluida lama,Recolhendo os vestígios de outrora vivência,Qual monge budista, com branda paciência,No lodo sufocante que o tédio inflama.

Assim vai minha alma, sombria e decadente...Pelos lodaçais das esperanças malditas,Pelos campos lodosos, de angústia e desditas,Sórdidos pantanais da criação fremente.

Conduzida pelas mãos da eterna loucura,Nos pântanos da melancolia naufraga,E vê minha vida fluir de forma vaga,E sente a minha morte, a solene ventura.

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Page 42: Danças da Escuridão

GRITOS DA MISÉRIA

Multidão despencando sobre meus umbraisE gritando o desespero em palavras taisQue ferem os ouvidos, soando qual ecoNas fundas cavernas, no ventre dum boneco.

Gritando toda piedade em meus ouvidos;A balbúrdia incontrolável, em zunidosDe dor, de saudade, de medo da miséria,Revela a profusão da existência cinérea.

Conjunção de prantos lamentosos, profundos,Que na frieza do meu semblante são mundosRepletos de sombras desses míseros seres.

Defronte da pobreza, faustosos prazeresCalam a multidão que grita em meus ouvidos.No silêncio, ouço somente roucos gemidos.

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Page 43: Danças da Escuridão

A CEGA

Por vezes seguindo ruas quietas,Nas horas do silêncio galopante,Me deparo com o olhar vigilante,Turvo, de cegas retinas abjetas.

Concentrados em lúcido semblante,Os olhos esbranquiçados, qual setas,Apontam para as entranhas repletasDe sorrisos de ironia bacante.

A cega absurda, em prantos se desata,E injuria a sua existência ingrata,Clamando pela morte, sua glória.

Seus olhos são somente vitrais foscos,Sorumbáticos diamantes toscos,Joias que a tolice chama de escória.

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Page 44: Danças da Escuridão

SUICIDAS

Um passo, um destino inevitável, a morte.Livres de todas as angústias corrosivas,Com asas de bronze desabam, rumo à sorte,O regozijo das vivências aflitivas.

Suicidas perante abismos atraentes,Magnéticos disfarces do atro passamento,Volatilizam seus sonhos, e sorridentes,Lançam-se nas profundas, ao sabor do vento.

Ímpios sonhadores com os pulsos cerrados,Com o desejo mórbido oculto entre os dedos,E soluços roucos nos seus palavreados...As palavras absurdas que escondem segredos.

Eternamente vivendo como assassinos,Homicidas de seus próprios restos nefandos;Culpados por existirem, como meninosAbandonados nas praças, em largos bandos.

Sempre a admirar a perversão solitária,A cada dia torno-me um desses suicidas,Andando com cordas, punhais, fuga diáriaEm busca da verdade e paz, desconhecidas.

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Page 45: Danças da Escuridão

SALTIMBANCO

Velho indigente sorrindo sua desgraça...A morte é o falso amigo que te abraçaE te condena à solidão da velhice,Morbidez doentia, serena tolice.

Velho deprimente gritando seus absurdos...O povo que te rodeia é um clã de surdos,Manifestação indiferente de medo,Temor do tempo, que faz da vida um degredo.

Velho, que teus tormentos sejam repentinos,Breves momentos de angústia, vãos assassinosDa doença que corrói tua alva ossatura.

Velho, que o povo seja tua sepultura,Mansão sagrada que guardará os resquíciosDo saltimbanco, do ancião e dos seus vícios.

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Page 46: Danças da Escuridão

SOBRENATURAL

O susto apresentou-me seu vulto espasmódico,Voador, sobrevoador de campos mortos;Distingui as asas, as presas, os traços tortos...Seu voo me revelou um sentimento módico,

Raro entre as sensações de medo e decadência,Loucura e embriaguez, fluidez sensataDos parcos devaneios que na mente ingrata,Sobrevoam lágrimas da atroz existência.

Um demônio alado cingiu meu pescoço,Feriu minha alma, transpôs a realidadeDas sagradas convenções do homem: a verdade,A piedade, a fé jogada em fundo poço.

Um grito apunhalou meu peito sorridente,E sorriu... e sangrei abraçado com a morte,Imerso em águas rútilas, jorros do corte,Transpiração contínua da vivência fremente.

Renasceram todos os prazeres humanos:Eternos cálices embebidos com sangue,Morte viva reluzindo no corpo langue,Litanias da escuridão, cantos profanos...

A eternidade do absurdo, do negrume,Da constante fuga que às trevas conduz,Mostrou-me o caminho que percorro, sem luz,Sem cruzes, num nevoeiro de acre perfume.

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Page 47: Danças da Escuridão

POÉTICA DAS ÁGUAS

Estes versos de existência desconhecidaFremem como rios de turbulentas águas,Correntezas sinistras que levam as mágoas,As culpas, as angústias, a dor suicida.

Entre calhaus de intrigantes arquiteturas,Seguem fremindo os rebojos, vagas furtivasQue enlaçam medos, e nas horas aflitivas,Condenam os medos à paz das sepulturas.

Nas margens serenas, a calma resplandeceE os versos inebriantes a alma entorpece,Buscando novas águas, murmúrios latentes.

Os mares que encontram surgem como jardinsRepletos de flóreas negruras dos confins:Trevas poéticas de versos decadentes!

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Page 48: Danças da Escuridão

A MORTALHA

Nessas noites frias e sepulcraisAs sombras dos corpos rastejam, lentas,Em labirintos medonhos, sedentasPela luz de luzentes castiçais.

Pendem de sonolentas ossaturasRestos de epidermes apodrecidas,Vestígios de existências denegridas...Manchas negras em burlescas pinturas.

Ao longe, um vulto indizível flutuaNa espessura leve, aérea, noturna,E de forma vaga, em dança soturna,Baila... difuso nos lumes da lua.

Com a veste triunfal, disfarçado,– Mortalha soberba de muitos vultos –No silêncio, no vinho, nos tumultos,Caminha a desgraça... a morte do lado.

A esperança de encontrar sóbrias luzesGuia seus passos, os falsos sentidos,Na escuridão que aflige os desvalidos,Na noite eterna, entre lajes e cruzes.

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Page 49: Danças da Escuridão

UMA DANÇA

Sugar-lhe a rara chama que em ti arde...O mistério que escorre em tuas ancasEnfeitiça minhas retinas brancas,No clamor da noite, na paz da tarde.

Queimo meus olhos ao ver-te. Não grito!Um vago sorriso de pranto aflora,No peito vazio, silente, que imploraUma dança, um gesto do corpo aflito.

E danças... envolta por véus opacos,Enaltecida pelos traços fracos,Mas puros, em vivos quadros luzentes.

Vibro ao te sentir nos braços frementes,Dançando, esguia, qual serpe funesta.Sugar-lhe a rara chama que em ti resta...

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CÉU RUBRO

Raramente observo o amanhecer...Iludo-me com a presença forteDo lume transcendental, que ao verTais ilusões, sinto um terror de morte.

Galga o meu peito um punhal afiado,Uma fonte prateada de luzes;Aurora no corpo dilacerado,No horizonte onde se erguem minhas cruzes.

Visto um luto boreal, assassinoO dia radiante que em mim morre;Ébrio, vejo ruir o meu destino,Lento, qual sangue que no peito escorre.

Serenamente caminho nas ruas,Perplexo, pasmo, puro pensativo...Sonho com noites repletas de luas,Desespero-me no clarão altivo.

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A CARNE

“A cada apetite, um mundo.”Gaston Bachelard

Ainda sangra o maldito pedaço!Tenho fome, náusea, uma repugnânciaQue corrói as retinas. Tenho ânsia.

Por vezes reneguei o rubro maçoDas rígidas vísceras suplicantes,Que choram sangue, em jorros rutilantes.

Agora, faminto e sedento, um mundoDe desejos aflora em minha boca,Deixa um rastro de orgia louca,Vontade de comer o resto imundo.

Devoro a carniça com imenso asco,Com apetite de atroz canibal.Tenho fome, náusea, um temor fatalDe ser minha a própria carne que tasco.

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TRANSEUNTE

Fogo transeunte nas antigas lembranças...Reluzem memórias dos dias ancestraisQue as noites ocultam em sombras desiguais;As malditas noites e os tristes madrigais.

Soletram o vento, as furtivas esperançasDe ouvir sons vindos do passado fugitivo,Para libertarem das cordas e do crivoOs temores hodiernos, o medo vivo.

Sem pressa, incineram dúvidas de crianças,Com incensos perfumados e fumegantes,Com fogueiras rústicas das eras distantes,Deixando cinzas mortas, certezas brilhantes.

Na tempestade calórica destas danças,Sonhos e pesadelos, morte prematura,Confundem-se... vapores levam a quenturaAo caos gélido destes versos. A Loucura!

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Page 53: Danças da Escuridão

SER POETA

Náufrago desolado em mares causticantes,À deriva, aflito ao ver singrar pelas vagasUm povo de seres ignóbeis, rastejantesIndo sem rumo, seguindo direções vagas.

Pássaro atônito no solo que blasfema;Hirto, fragmentado em parvos elogios:“Que lindo! Que belo! Que natural emblema!”Surdo, diante desses gritos fugidios.

Morto, decapitado entre ossadas e moscas,Indistinguível, invisível a olhos tortos...Vejo-o bem, apesar dessas imagens toscas,Das distorções. Vejo-o! Com os olhos absortos.

Decifro-o, construo obras de ser e não ser,Mosaicos de existência, quadros da alma etérea.Um espelho sombrio reflete meu viver...Vejo-me, escondo-me, entre joias e miséria.

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DE PROFUNDIS...

Deteve os meus olhos uma cena cruel,Perfil deplorável da alma que devaneia.Breve lembrança do mar, do cinéreo véuCobrindo a paisagem, castigando a areia.

A mesma areia pálida, e suja, e tão fria,E que me comoveu; fez-me chorar navalhas.O respirar das ondas, a tênue alegriaDas ondas, o mar tecendo minhas mortalhas...

Frio! Palavras brotaram dessa friezaCom tamanha volúpia, com infinda pressa,E murcharam... florescimento e incerteza...Flores murchas, palavras que a alma confessa.

Distraído entre devoções e conjecturas,Orações soletradas em altos patamares,Naufraguei num oceano de águas puras,Mergulhei na paixão de radiantes mares.

E não mais voltei! Padeci nos muitos braçosDas deusas que habitam os meus fartos abismosE sustentam sonhos dos etéreos espaços,Onde jazem os versos de estranhos lirismos.

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Page 55: Danças da Escuridão

VÍCIO

Tomo um café! Hipnotizo as pálpebras levesCom único gole fumegante e severo;Descubro pálidos horizontes, tão breves,Que os olhos rotos encontram. Não espero!

Busco-os com voracidade felina, atroz,Desconhecendo o destino que me convida,Bruscamente, em cada gole do meu algoz,Por toda a existência da alma denegrida.

Servo dos sentidos, escravo embriagado,Alcanço o êxtase dos presságios ocultos.As divindades, no paraíso adornado,Brincam debilmente, entre prantos e insultos;

E observam-me, com um farto olhar cristalino,Vigiando o vício, minha sobrevivência.Tomo um café! Esqueço meu vago destino,Caio debruçado em profunda decadência.

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TARDE

Ah! é tarde. Todos os sonos santosEm choros vãos, despertam... Piedade!Rogo aos braços teus, meus gentis recantos,Solenes leitos da Tranquilidade.

Adormecem as cítaras noturnas...Lampejos abruptos, incandescentes,Entusiasmam as nuvens soturnas,Iludem os pesadelos recentes.

No amanhecer ingrato, a criaçãoDesespera-se; o pranto se detém;O sono perdura qual vil paixão,Venenoso amor das trevas, do além.

Sonolento, desmaio nos teus braços,Sofro de loucuras aconchegantesQue aliviam os desejos escassosE atormentam as lembranças distantes.

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SOTURNO

A alcova que me encerra, os sustenidosQue não compreendo, somente os ouço,As vozes que dilaceram ouvidos...A vida... meu árido calabouço.

O tempo a migrar em parcos ruídos,De um lado para outro do meu arcabouço;Solidão me esvaindo, qual fluidosVoláteis, fugazes, num atro fosso.

Tudo é miragem, ilusão, farsa;Num labirinto de mentiras, sumo,Busco o respeito, o Ideal, meu prumo.

Sou qual facho de luz em névoa esparsa,Com o propósito de me entreterNa obscuridade do meu raro ser.

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ANGÚSTIA NOTURNA

A solidão infesta-me com suas pragas,Deixa no meu peito profundíssimas chagasQue os segundos não curam, revelam as mágoas,Transbordam o pus em desconsoladas águas,Espessas correntezas de aguçadas dores;Lágrimas, surtos de vagidos e estertores.

Nauseantes manifestações de saudadeAcalmam o ácido que o meu corpo invade,Sulfúrico, corrosivo, letal veneno;Alcalinos pensamentos tornam ameno,E pacífico, o malévolo sentimento,Que fulmina meus órgãos, em órfão lamento.

Sóbrio, desperto às altas horas matinais,Declamo meus versos às sombras desiguais,Na ausência da minha musa, na ausência... ausência...Presença constante da aridez, influênciaContínua de deuses solitários e santos,Que não convertem minha alma, meus desencantos.

Ah! Sofro de malditas convulsões noturnas...Não durmo, não descanso. Ruínas soturnasAmontoam-se em meus olhos, vejo fantasmas,Sinto saírem do ventre fortes miasmas,Emanações doentias da solidão,Que deixa o meu peito em negra putrefação.

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NOCTÍVAGO

Se pudesse evitar o sono que me oprime,Libertar dos laços noturnos o silêncio,Sempre breve e calmo tornaria sublimeO atro tédio, que o despertar jamais vence-o.

Na noite infinda, contemplaria os segundosQual morto alegre a rondar túmulos abjetos,Povoados por vermes e restos imundos,Sem temor do tempo e seus círculos corretos.

Cavalgaria horas, montado em firmes selasDe couro, de palavras, de árduos sentimentos,Galgando planícies de sonolentas telasPintadas por meus olhos, loucos e sedentos.

Aos fátuos acordes do amanhecer tardio,Quando o sono desabasse sobre meus ombros,Por mais um momento seria arredio,E escreveria estes versos, estes escombros.

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O POETA E O DOENTE

I – VISÃO DOENTIA

Padece. Decomposto em trapos no seu leito,O olhar passivo a percorrer o torvo teto,Murmurando qual necrófago em resto abjeto;O leve balouçar do ventre e do ermo peito.

Contemplo-o. Defronte do paciente afeitoA moléstias desde criança (ou mesmo feto),Admiro cada arrebatamento secretoQue encontro na palidez do turvo sujeito.

As vísceras à mostra revelam encanto,Contraindo-se como as pálpebras num pranto,Esguias e fugazes feito vil serpente;

Os espasmos imprevisíveis, o fluenteRio, de tenebrosas águas rutilantes;A paz dessas enfermidades delirantes.

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II – PALAVRAS ENFERMAS

Conheces a vida, poeta desgraçado...Assim como conheço os báratros da morte.Mil paixões enforcam-me; sigo rumo à sorteQue me aguarda, nas profundas do Mal amado.

De amargo sangue o frouxo peito embriagado...Poeta maldito! Suspiras vendo o corteQue atravessa meu coração de norte a norte,Deixando escapar as angústias do passado.

Amaldiçoado sejas, poeta infame!Que tua deplorável alma jamais ameQualquer espécie de beleza ou de ternura.

Amarás somente a podridão e a loucura,A sordidez das carnes pútridas e mortas;Teus versos serão feitos de palavras tortas.

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CARPE DIEM

Soturnamente envolto por seus lutos,Vê-se calado o sonhador de instantes,Imóvel no tempo, hirto nas estantesDa biblioteca de áureos minutos.

Colecionador de horas, seus frutosSazonados apodrecem sempre antesDa longínqua colheita, assaz distantesDos seus sonhos, seus devaneios brutos.

Sentado às margens da eternidade,Sob as garras da cinérea preguiçaVê-se ante a morte, que em seus olhos viça.

“Oh Tempo! Vil mestre da crueldade!”Grita o sonhador. O pranto o detémEm lágrimas que dizem: Carpe diem!

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HORA SAGRADA

Hora propícia. Fervem lembranças antigas,Insanidades longínquas no ar esvaecem;Segundo a segundo ávidos demônios descemDas trevas, enlaçando-me com mãos amigas.

Desisto de falsas meditações noturnasNa sobriedade dessa hora imersa em prantos.Escorrem vultos dos meus olhos, pelos cantos,Pelos restos de vidas caladas, soturnas.

Hora mística. Para os tolos, hora santa;Oração pagã de um louco devastador.Prevalecem sombras na alma do sonhador,Palavras dispersas na voz que jamais canta...

Clama, implora... farta hora de divagações.É o tempo das memórias, épocas mortas,Saudade da liberdade, de abrir as portasE regressar para o mundo das percepções.

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ALUCINAÇÃO

Depois da fuga, peregrinação...Meus trapos têm a cor da escuridãoE olores das sombras petrificadasQue caminham, rastejam nas calçadas.

Depois da liberdade, entusiasmo...A aragem me envenena, caio pasmo;Na prisão, o mórbido ar me nutriaCom seus fungos, sua monotonia.

Agora, livre de toda torpeza,Da imundície, da podre natureza,Desmaio, quase morro, padeço.

Respiro a brisa mais pura, adoeço...Meus olhos sem grades perdem-se, ocultosNa multidão de ecos, de alegres vultos.

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EPÍLOGO: O CREPÚSCULO

A liberdade ainda fervilha na fronteImitando um vago sorriso angustiante,Que disfarça, que esconde, qual atro CaronteLevando os mortos pelo rio nauseante.

Trépido sentimento venturoso vibraToda alma entristecida, e pálida, e temente;Um leve acréscimo de loucura equilibraO corpo inseguro, o esqueleto fremente.

Todo um crepúsculo atroz das alturas desceDistorcendo os vestígios de calma e de paz,Condenando a liberdade à última prece,Último sepulcro, onde a esperança jaz.

Entre fortes correntes e cruzes esguias,Vagueiam qual fantasmas os homens libertos.Têm nas faces as angústias doentias,As marcas perenes do seus sonhos desertos.

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SOBRE O AUTOR

Abílio Mateus Jr., nascido em 1978,

graduou-se em Física pela Universidade

Federal de Mato Grosso e fez pós-

graduação, mestrado e doutorado, em

Astronomia no Instituto de Astronomia,

Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP. Atualmente é

professor adjunto no Departamento de Física da Universidade

Federal de Santa Catarina.

Seguindo uma vida dupla, ora como poeta e ora se dedicando às

pesquisas científicas, não raros são os momentos em que uma de

suas faces luta com a outra na tentativa de se impor como um

único semblante. Neste livro, a face enevoada do poeta impera

com soberania, dançando entre sombras, tropeçando em

fragmentos, loucos e decadentes, e sufocando, num só golpe, a

respiração concentrada de quem jamais alçou voos inequívocos.

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Fonte dos títulos: Century GothicFonte do corpo de texto: Baskerville 12pt

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E mesmo que a angústia aqui enaltecidaCause aflição aos tolos, tal como às moscas,

Tornarei a escrever sobre essas formas toscasPara me lembrar das asperezas da vida.

Abílio Mateus Jr.