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Darma Da Floresta - Various Ajahns

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Darma da FlorestaEnsinamentos de mestres da tradição da floresta do Budismo Theravada

Dhamma Desanās de

Ajahn Chah, Ajahn Liem, Ajahn Sumedho, Ajahn Piak, Ajahn Anan, Ajahn Tan e

Ajahn Jayasaro

Primeira edição, Novembro de 2014

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Copyright © Amaravati Publications 2014

Amaravati Buddhist MonasteryGreat Gaddesden, Hertfordshire, HP1 3BZUnited Kingdom,www.amaravati.org

Amaravati Publications é parte do “The English Sangha Trust”, uma instituição de caridade registrada no Reino Unido com o número 231310.

Publicado pela primeira vez por Amaravati Publications 2014.ISBN 978-1-78432-029-4

Imagem de capa de autoria de Anandajoti Bhikkhu, licenciada sob Creative Commons Attribution-ShareAlike 3.0 Unported License (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/). Para mais informações visite http://www.photodharma.net/.

Este livro é feito disponível como uma oferta de Darma. A sua impressão tornou-se possível devido à fé, empenho e generosidade de indivíduos que desejam partilhar a sabedoria deste conteúdo com todos aqueles que estiverem interessados. Este ato de oferecer gratuitamente é emparte o que torna esta uma “publicação de Darma” um livro baseado em valores espirituais. É proibido vender este livro, sob qualquer formato, ou usá-lo para fins comerciais.

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O English Sangha Trust Ltd, atuando como Amaravati Publications, reclama o direito moral de ser identificado como o autor deste livro.

O English Sangha Trust Ltd requer que seja atribuída a autoria deste trabalho a Amaravati Publications sempre que este for reproduzido, distribuído, apresentado ou representado.

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ÍndicePrefácio 1

Nota do tradutor 2

Ajahn Chah 5

Conversa com um doutor 6

Budismo estilo Theravada 19

Para quem conhece o Darma não há brigas 31

Duas pontas da mesma cobra 50

Problemas do mundo 65

Mudando de Comportamento 82

Prática correta 97

Nascimento e Renascimento 106

Ajahn Liem 119

Gratidão à natureza 120

Ajahn Sumedho 133

Os cinco obstáculos 134

Ajahn Piak 147

Perguntas de praticantes brasileiros 148

Ajahn Anan 157

Sati, Samādhi, Pañña 158

Ajahn Tan 165

A mente controlada por ilusões 166

Ajahn Jayasaro 179

Conselho para estudantes e professores de Darma 180

Glossário 189

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Prefácio

Ajahn Mudito pediu-me que escrevesse um prefácio para esta coleção deensinamentos de bhikkus da floresta da Tailândia. Eu conheço Ajahn Mudito desdequando ele primeiro aspirou tomar o treinamento como bhikkhu no começo desteséculo – naquela ocasião, apenas por e-mails. Desde que comecei a estar maisenvolvido em trazer da tradição da floresta do Budismo para os países de línguaportuguesa, nós tivemos mais contato.

Este trabalho é uma forma de transmitir os ensinamentos dos monges dafloresta da Tailândia. Ajahn Mudito está muito bem qualificado a preparar essesensinamentos para as pessoas do mundo que usam o português como primeiralíngua. Ele vive a vida de um monge da floresta na Tailândia e tem dedicadotempo e atenção em aprender destes Ajahns e discípulos destes Ajahns. Muitosdestes ensinamentos não estão disponíveis em livros de nenhuma outra língua. Osensinamentos são de uma tradição oral, e Ajahn Mudito foi o primeiro atranscrevê-los. Eles foram então utilizados para gerar legendas para vídeos dosAjahns. Aquele método foi bom e agora o formato de palavra escrita é umacréscimo útil.

Estou muito contente que Ajahn Mudito tenha realizado este trabalho econfio que será uma benção para muitas pessoas.

Ajahn VajiroComunidade Religiosa Budismo Theravada da Floresta

Ericeira, Portugal

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Nota do tradutor

Em Abril de 2012 comecei um trabalho de tradução, inicialmente somentede textos de Ajahn Chah e seus discípulos e mais à frente também de outrosmestres tailandeses, discípulos diretos ou indiretos de Tahn Ajahn ManBhuridatto. O resultado pode ser encontrado no sitewww.dhammadafloresta.blogspot.com, onde é possível ouvir a gravação originalem áudio de todos os ensinamentos contidos neste livro, assim como ver fotos dosmestres que os proferiram.

Com o tempo o número de palestras traduzidas no site foi aumentando atéque, seguindo sugestão de uma pessoa do site www.ouvindoodhamma.com,, foiiniciado o trabalho de seleção de um pequeno grupo de textos para publicação emforma de livro. Foram selecionados oito textos de Ajahn Chah e um de cada um deseus discípulos cujos ensinamentos constavam no site. A proposta do projeto eratransformar o conteúdo do site, que havia sido traduzido com ênfase em ser o maisfiel possível às palavras dos mestres, num texto mais amigável ao formato escritoe a um público iniciante.

Neste livro, em vez do idioma páli, optamos por fazer uso máximo dagrafia portuguesa de palavras relacionadas ao ensinamento do Buda que já foramincluídas oficialmente na nossa língua. Nominalmente: Buda (Buddha), Darma(Dhamma), carma (kamma), nirvana (nibbāna), parinirvana (parinibbāna),bodisatva (bodhisatta) e páli (pāli). Todos os demais termos ou foram traduzidospara o português, ou foram utilizados em suas grafias originais, em páli. Apesardo esforço em traduzir o máximo possível de palavras em páli para o português,uma grande quantidade delas permaneceu em seu formato original. Em parte issose deveu à dificuldade em encontrar correlatos satisfatórios em português e emparte pelo contexto em que os ensinamentos foram dados, como vai ser explicadomais adiante.

Vale a pena mencionar que todos os ensinamentos de Ajahn Chahpublicados aqui são inéditos: jamais foram traduzidos ou publicados em qualquer

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outra língua ocidental (a maioria deles nem mesmo em tailandês) e o mesmo éverdade para a maior parte dos textos de seus discípulos incluídos no livro.

No que diz respeito à grafia de termos em tailandês, procurei manter opadrão mais aceito para evitar confusões desnecessárias. Não existe um só padrãopara romanização de palavras tailandesas que realmente funcione e por issodiferentes pessoas utilizam diferentes métodos. Por exemplo, alguns escrevem“ajaan”, outros “ajahn”, outros “atchan” e assim por diante. Não quero eu tambéminventar ainda mais um sistema de romanização, mas uma vez que os sistemasmais populares foram produzidos para um público anglófono, algumas distorçõesse apresentam para nós que utilizamos a língua portuguesa e por isso eu abandoneia grafia mais usual de algumas palavras: “Luang Por” (หลวงพพอ) foi escrito “LuangPó”, “Ajahn Dtun” (อาจารยยตต ตน) foi escrito como “Ajahn Tan” e “Ajahn Mun”(อาจารยยมต พน) como “Ajahn Man”.

Um aspecto muito importante do conteúdo deste livro que precisa sermencionado é “contexto” – quem disse, para quem foi dito, quando, por quê, etc.Em especial, quando falamos sobre mestres da tradição da floresta tailandesa,discípulos de Ajahn Man, entender o contexto se torna ainda mais importante, poisesses eram mestres que verdadeiramente ensinavam de coração. A prática delesnão ocorreu dentro de um mundo fechado de livros, de conceitos e teorias: elesusavam suas próprias vidas como combustível na busca do Darma e por vezeslevavam a prática às suas últimas consequências – muitos deles chegaram à beirada morte (incluindo Ajahn Chah).

E não é só essa característica que vem à tona quando ensinam; também ofato de terem verdadeiramente experienciado em si mesmos níveis elevados derealizações espirituais faz que seus ensinamentos tenham, além deespontaneidade, um tom de autoridade que alguns podem achar incômodo. Poressa razão, acho importante lembrar que os ensinamentos contidos aqui, em suamaioria, ocorreram num ambiente onde havia um real clima de amizade econfiança entre mestre e discípulos, onde o mestre se sentia à vontade para falarabertamente sobre o assunto e em utilizar uma linguagem mais sofisticada (poissabia que a audiência estava familiarizada com termos em páli). O resultado finalé um tanto paradoxal: ao mesmo tempo em que o ensinamento é extremamente

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simples e direto ao assunto, também apresenta uma sofisticação de linguagem quepode exigir do leitor um pouco de esforço em compreensão. Para ajudar, muitasnotas ao longo do texto – e também um glossário ao final do livro – foramincluídas.

Outro aspecto relevante, principalmente quando o ensinamento édestinado à comunidade monástica, é o nível de desenvolvimento espiritual daaudiência. Por exemplo: para uma plateia de iniciantes, Ajahn Chah diz que aspessoas sofrem e não conhecem a si mesmas por não possuirem samādhi. Emoutra ocasião, onde os presentes talvez fossem já bastante hábeis na prática desamādhi, ele critica duramente e diz que samādhi “é o cúmulo da burrice”. Issodeve ser entendido dentro do contexto: um grupo ainda não chegou àquele nível,outro já chegou e agora precisa ser encorajado a continuar seguindo adiante e nãoapenas contentar-se com o estágio alcançado. A incompreensão desse fator jálevou algumas pessoas (em especial alguns professores leigos nos EstadosUnidos) a defender que Ajahn Chah tanto não ensinava como sequer elogiava aprática de samādhi – nada poderia estar mais longe da verdade.

Por fim, devo mencionar que a compilação deste livro só foi possívelgraças à ajuda de Angelo De Vita, com um trabalho importantíssimo de revisão econsulta, e também Venerável Dhammiko, Gabriel Laera, Jaqueline Szili, JairSeixas e Carla Schiavetto, que ajudaram a revisar e dar sugestões para a melhoriado texto final, Venerável Gambhiro, responsável pela criação da versão impressa,e Julian Wall, pela versão eletrônica. Ainda assim, peço que quaisquer omissõesou erros sejam de minha inteira responsabilidade. Que o mérito dessa realizaçãoseja causa para que todos progridam no Dhamma, em direção à paz e libertação –nibbāna.

Anumodanā.

Mudito BhikkhuWat Khao Sam Lan

Nakhon Nayok, Tailândia

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Ajahn Chah – 5

Ajahn Chah

“Pensamos que felicidade não tem umlado ruim, mas não é assim. Felicidadeé a número um, ela mesma já ésofrimento. Quer seja felicidade ousofrimento, são como uma mesmacobra. Sofrimento é como a cabeça dacobra, felicidade é o rabo da cobra.Vemos que essa cobra é longa (…) epensamos: ‘Eh, a boca é perigosa, orabo não tem perigo, (…) não vouchegar perto da boca senão vou tomaruma picada! É melhor pegar pelo raboporque a boca está daquele lado.’ Masquando pegamos, o rabo ainda é rabo decobra, não é? A cobra se vira e vemmorder, é sofrimento do mesmo jeito,porque a cabeça da cobra está na cobra,o rabo da cobra está na mesma cobra.”

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Conversa com um doutor Conversa informal entre Ajahn Chah, um médico e sua esposa.

(Dr.) - Tanto quanto me lembro de ter lido uma vez, havia uma pessoa defamília pobre e esse garoto tinha inteligência, de forma que os pais e os irmãosachavam que ele seria capaz de estudar e conseguir se formar. Então os pais e osirmãos todos abriram mão de estudar para conseguir economizar dinheiro parapagar os estudos deste garoto. Todos passaram por muitas dificuldades. Essegaroto foi para a universidade, mas também estudou o Darma e sentiu inspiraçãoprofunda. Quando terminou seus estudos, aconteceu que… o pai, a mãe e todos osdemais tinham grande esperança de que, quando ele estivesse formado, elesustentaria a família. Seria capaz de trabalhar e ganhar dinheiro, ajudando osirmãos mais novos ou ajudando a dividir o fardo do pai e da mãe, ou seja, o pai e amãe iam poder descansar um pouco para poder ajudar os filhos menores, maisadiante.

Mas aconteceu que esse garoto, quando acabou seus estudos, ficou muitoinspirado pelo Darma, a ponto de pedir licença do pai e da mãe para não irtrabalhar, queria ordenar-se monge. O pai e a mãe choraram e tentaram impedir,mas o filho disse ter muita fé no ensinamento do Buda: “Não me impeçam!” Nofim os pais tiveram que dar permissão para o filho virar monge1, mas do meuponto de vista, tanto quanto eu li e ouvi dizer, sinto que eles provavelmente não ofizeram de muita boa vontade. Essa história ficou presa na minha cabeça.

(Ajahn Chah) - Por quê?

- Peço desculpas, Luang Pó, essa é apenas minha opinião, não sou expertem religião, mas penso que neste mundo tem que haver duas partes: uma parte é areligião, outra parte são os donos de casa normais, que necessitam exercerprofissão, ganhar seu sustento. Por exemplo: eu tenho família, tenho filho eesposa. Tendo eu responsabilidade pela minha família, tenho que cumprir meu

1 Uma pessoa só pode virar monge caso autorizado pelos pais.

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dever para com eles. Estou vinculado a eles e tenho que cumprir meus deverespara com a minha família, a sociedade, a nação. Agora, tanto quanto li aqui nestelugar, talvez tenha sido escrito por outra pessoa, não sei… diz que o objetivo é quetodas as pessoas virem monges. Eu penso na minha cabeça que neste momentosou dono de casa, sustento minha esposa e filho com meu ofício, dou felicidade aalgumas pessoas, dou ajuda a uma parte da população e faço um pouco de doaçõesao templo, ou seja, também ajudo a religião. Mas, se todos virarem monges,incluindo a mim mesmo, os monges vão ter que arar a terra, vão ter que procurarofício, não terão tempo para praticar a regra monástica. Os monges não terãooportunidade de aconselhar e guiar o povo, dar luz para que haja paz de espírito,para que haja um caminho a seguir neste mundo.

Por essa razão, na minha opinião, essa pessoa, se for virar monge estábem, mas somente quando terminados seus deveres, ou seja, ajudar o pai, a mãe eos irmãos. Ordenar-se agora, neste momento, se perguntar para mim, se for paraeu decidir dentro da minha ignorância, digo que é uma maldade, muita maldade.Porque é machucar os pais e é uma maldade para com os outros também, poistodos ajudaram essa pessoa, e aqui surge o problema: essa minha opinião estácerta ou errada?

- O doutor também tem razão. Vejamos assim, eu vou lhe fazer umapergunta: um quilo de ouro e um quilo de chumbo, se vierem dar ao doutor, o queo senhor escolhe?

- O ouro.

- Pois é, é assim mesmo. Quando uma opinião é firme dessa forma, aquiloganha um valor diferente, tal como ouro e chumbo, tem que escolher o ouro. Elestrouxeram ambos, porque o doutor escolheu o ouro e não o chumbo?

- Porque possui valor.

- Pois é, você enxerga que possui mais valor. Da mesma forma nessecaso, ele enxerga mais valor do que isso a ponto de se decidir dessa forma. É

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assim, é a mesma situação. Por isso não devemos pensar assim, não há nada deerrado em pensar, mas tem que refletir até ficar correto.

Está com medo, hein? O doutor está com medo de que não haja quemcuide dos pais, não haja quem construa o mundo? Se estiverem contratandopessoas para tocar música o doutor não precisa se preocupar pois eles só vãocontratar pessoas que souberem tocar música. Se não souber, como é o seu caso,eles não contratam. Não dá para pegar todas as pessoas e fazê-las monges, masproibir para que ninguém vire monge também não dá. Essas coisas são assimmesmo, não devemos pensar: “que todos virem monges!”, não dá. “Que ninguémvire monge!”, dá? Não dá, não é possível, não dá para forçar desse jeito. Aquitemos que enxergar o que há: quem tiver sabedoria, a que nível, que aja de acordo.

Eu também já passei por isso. Fui dizer que matar animais é demérito euma pessoa respondeu: “Luang Pó consegue comer pimenta pura todo dia?”

Respondi: “Não, pois não há quem traga pimenta para eu comer todo dia,tem alguém? Vá buscar, prepare pimenta para eu comer todo dia, pode ser?” Nãoconcordou. Quem vai ter tempo de preparar pimenta para monge comer todo dia,sem falta? Esse tipo de conversa é só da boca para fora, mas neste mundo é assimmesmo. Forçar todas as pessoas a serem boas ou ruins é impossível. Quem temsabedoria neste mundo, escolhe. “Vejam este mundo enfeitado como umacarruagem real, onde tolos afundam, mas nos sábios não há apego.”2 Essa é agarantia que o Buda nos dá.

Então, nossa intenção em virar monge não é ver nossos pais perecerem,nossos filhos perecerem, nossa família perecer ou algo do tipo. Pensamos: “Puxa,minha família está atolada demais na lama, na sujeira. Se nem eu conseguir sair,estaremos todos presos, assim será uma perda total…” Então nos esforçamos parasair, por nossa família, para que nossa família melhore. Mas algumas pessoaschegam a pensar que não há proveito, que é maldade, como o doutor. Se olharmospor esse ângulo, é assim. Por isso perguntei: um quilo de chumbo e um quilo deouro, se formos dividir, qual você escolhe?

2 Verso do Dhammapada (Lokavagga – 171)

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Isso é igual. Quando ele decidiu virar monge pelo resto da vida daquelejeito, ele viu que isso tinha muito mais valor, viu o mundo inteiro como se fossechumbo, sem valor, portanto não o deseja. Igual ao doutor que deseja um quilo deouro mas não quer um quilo de chumbo, por quê? Porque possui pouco valor, nãotem valor, portanto decidiu pelo ouro dessa forma. Se soubermos refletir, não é ocaso que nos ordenamos para destruir nossos filhos, destruir nossa esposa, nossafamília ou algo do tipo, não é assim. Não é assim.

Isso é muito difícil pessoas conseguirem fazer: alcançar o máximo desabedoria até chegar ao ponto que o doutor viu, onde tudo vira do avesso. É comoser capaz de fazer a palma da mão virar as costas da mão. Se a pessoa só consegueenxergar da forma que o doutor enxerga, ainda não será capaz. Ele age daquelaforma com boa intenção e está correto, age por enxergar de verdade os princípiosdo Darma.

Se não é assim, então nosso Buda… é só maldade! O Buda é só maldade.“Não importa quanto sofrimento minha família passe, mas vou ajudar essaspessoas, ensinar essas pessoas a vir para a luz. Elas já ficaram na escuridão tempodemais.” – pensando desse jeito ele decidiu ordenar-se. Como o filho do coronelPramôt3, que terminou os estudos no exterior e veio ordenar-se aqui comigo.Ordenou-se e decidiu não voltar à vida laica. Inicialmente o pai viu e pensou:“Oh! Quanto sofrimento!”, mas hoje em dia ele vai ao monastério com frequência,ouve o Darma com frequência. Hoje em dia não quer mais ficar aqui na cidade,quer fugir para Wat Pah Pong, não quer ficar aqui. Há uma mudança quandoenxergamos aquilo que antes não enxergávamos e vemos que não há benefícioalgum. Existe benefício porque possuímos sabedoria, se não temos sabedoria nãoenxergamos benefício naquilo.

Mas não pense errado: “Todo mundo virou monge, quem vai morar nestemundo?” Oh! Ainda mais gente, Sr. Doutor! Não é assim! Não pense que o mundovai desvanecer – vai ficar ainda mais firme! Não pense que o mundo vai ficar ralo– vai ficar ainda mais espesso. Quando o senhor virar monge o senhor vai explicar

3 Este rapaz continuou na vida monástica e eventualmente tornou-se um grande mestre. Aspessoas hoje o conhecem pelo nome Ajahn Piak.

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sobre a maldade para que as pessoas entendam, fiquem em paz e tenhamfelicidade – se não muita, então pouca. Ajudamos. Ajudamos a pegar a bondade eo que há de bom e ensinar razão: “Não se agridam, afinal todos temos que ganhara vida, buscar nosso sustento. Não agridamos uns aos outros!”, todos os pontos devista como esse. Se pensarmos: “Eh, se todo mundo virar monge vai ser umadesgraça”, ninguém vai poder virar monge.

Veja os dedos da sua mão: Não puxe os dedos para que eles tenham todoso mesmo tamanho! Esse dedo é assim, aquele é de outro jeito. Mesmo não sendotodos do mesmo tamanho, ainda são úteis? Têm a utilidade deles. Pegue essepequenino aqui, é útil? Se não for do mesmo tamanho que os demais, corta fora?Do jeito que é ainda serve para cutucar o nariz! É muito útil. Não podemos pensardesse jeito pois é uma união. O mundo não pode ser do jeito que o senhor diz, ouentão não é mundo. Desse jeito o mundo não é mundo. Não seria mundo. Mas éjustamente por ser mundo, que é assim.

Bem onde está certo ensinamos, mas as pessoas não enxergam. Falam quesim, mas não enxergam. Bem aqui está errado, ensinamos: “bem aqui está errado”,mas não enxergam. Mas, para alguns, é só verem que ali está errado e logoentendem, veem que ali está certo e logo entendem. Algumas pessoas conseguemver certo e errado. Não fique com medo que o mundo vá desvanecer. Não penseque não haverá quem construa o mundo no futuro.

- Eu entendo, Luang Pó. Eu tenho um amigo que é monge, estávamosconversando sobre esse assunto de fazer doações ao templo. Eu disse a ele quenão faço muitas doações, vez por outra apenas. Estávamos conversando sobre issoe escutei um fundamento correto. Conversávamos sobre as pessoas que fazemdoações. Tal qual tenho observado já faz algum tempo, algumas pessoas sãopobres a ponto de quase não ter o que comer, os filhos não têm o que comer, mastendo dinheiro, os pais o guardam para comprar durian4 para dar aos monges.

Eu perguntei se isso estava correto. Meu amigo disse que está errado,doações têm que ser feitas sem ser um fardo. Não deve ser: “Puxa, nossos filhos

4 Fruta típica da região sudeste da ásia, na época era considerada um artigo de luxo.

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ou nós mesmos queremos comer, temos para comer, mas não vamos comer!Vamos dar para os monges comerem! Assim vamos ganhar mérito.” Meu amigomonge disse que isso está errado. Doações devemos fazer na medida em que épossível e não sendo um fardo para os demais. É como nessa história que ficoupresa na minha cabeça, do rapaz que se formou e virou monge, eu penso que essahistória de fazer mérito deve fazer nascer felicidade no nosso coração e no dasdemais pessoas. Não é como: “OK, vou roubar a carteira dessa pessoa para ir fazermérito.” Essa pessoa ia usar o dinheiro para cuidar do filho que está para morrerno hospital e eu vou lá e roubo, aquilo traz sofrimento para outras pessoas. Damesma forma eu insisto, é por isso que não consigo aceitar que essa pessoa que seformou e virou monge ganhou mérito. Eu entendi o que o senhor me ensinouagora pouco, mas eu insisto nisso: se for fazer mérito, não é correto que acabe emmaldade. Quer dizer, um grupo de pessoas ter que sofrer. Caso alguém façamérito, tem que gerar felicidade no coração de todos os envolvidos.

Por essa razão, esse monge que se ordenou, como já disse, mesmo que elevá ensinar e propagar o Darma ou o que seja… Mas se for perguntar para mim, eudigo que esse monge ainda é moleque em primeiro lugar – ainda é moleque. Já háo senhor Luang Pó aqui, o senhor Ajahn ali, e quantos mais que já estãocumprindo a tarefa de propagar o Darma. Mas esse aí vai querer fazer como sefosse o Buda que abandonou o Rahula, a rainha, e foi se ordenar5? Aquilo é oBuda, o líder, o nosso mestre, o pioneiro, os outros ainda não eram capazes deenxergar, ainda possuíam muitas impurezas, ainda não eram capazes de enxergar ocaminho para que haja felicidade para a maioria das pessoas.

Eu não elogio a ordenação desse monge, no momento atual já há o LuangPó aqui, aquele Ajahn ali, aquele outro lá. Vários que proclamam o Darma deforma que possamos estar aqui hoje. Portanto essa pessoa não é importante talqual o Luang Pó, ou a ponto de se fazer como o Buda. Isso me faz censurá-lo. Eucensuro fazer mérito sem refletir sobre o momento apropriado. Se esperássemosdois, três, cinco anos e tivéssemos resolução firme, não desistiríamos. Teríamos

5 Siddattha Gotama, que eventualmente tornou-se o Buda, abandonou sua esposa e filhorecém-nascido para viver uma vida ascética e buscar o caminho para a iluminação.

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firmeza em praticar o Darma até que chegasse o momento apropriado. Quandonão gerasse sofrimento para os demais, não gerasse dificuldades para os demais,quando surgisse satisfação em todos com nossa fé, então sim, seria o momentoapropriado para ordenar-se. Eu censuro muito ele não ter escolhido o momentocorreto, é o que eu considero uma maldade. É por essa razão que eu vim aqui, comtodo respeito, discutir com o senhor. Eu digo que o momento não era apropriado.

- Me diga, onde você vai encontrar alguém que saiba prever o futurodesse jeito?

- Essa pessoa, se aguentasse firme mais sete anos e então se ordenasse –dessa maneira seria uma boa pessoa. Mas supondo que passados sete anosdesistisse, fosse ter esposa, beber cachaça – nesse caso é uma pessoa ruim, nãoserve.

- Onde você vai encontrar isso? Todo mundo quer ser assim. Se for “seteanos para se ordenar”, a morte vai esperar? Ele enxergou assim antes de ir. Morte:“sete anos e então morre”, há algum acordo? As pessoas nascem, mas na hora demorrer: “sete anos para virar monge!” Ninguém sabe. Tem algum acordo? Quandouma pessoa vê dessa forma, o que ela pode fazer? Ela não tem certeza sobre suaprópria vida. Eu digo que, de todas as pessoas, não há quem tenha um acordo dotipo: “setenta anos, oitenta anos e então morre”, não existe, não tem como saber.Ele olha e não enxerga sua própria morte, ele não confia em sua própria morte. Seele enxerga dessa forma ele vira monge com certeza. Por que não? Se aquelapessoa enxerga dessa forma! Não é que nem nós aqui. Nós aqui temos que obrigara ser “seis, sete anos” para que chegue a hora. Akaliko – morte tem dia e hora? Seaquela pessoa vê dessa forma, o que é que você quer que ela faça?

- Eu digo que essa pessoa é egoísta.

- Hum?

- Essa pessoa é egoísta.

- É o quê?

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- Egoísta. Por quê? Ela toma a felicidade, que é o deleite na religião,sozinha.

- Se é assim, tenho que dizer o seguinte: o doutor aprendeu medicina,portanto é egoísta.

- Correto, correto.

- Pois, é! Sabe por quê? Se ainda existe um ego, ainda há egoísmo. Maspessoas que agem desta forma e não são egoístas também existem. Como o Buda– não foi egoísta, ele destruiu seu próprio ego. Essa palavra “ego”, “ego”, é apenasuma convenção. Uma pessoa que consegue atingir aquele ponto não tem mais ego.Nós somos egoístas, então pensamos que os outros devem ser iguais a nós,pensamos que ele é egoísta, mas o ego dele já não existe. Há terra, fogo, água e ar,não há ego. Essa expressão “ser egoísta” pressupõe que terra, água, fogo e ar sãonossa pessoa, são um ser, uma pessoa desse jeito. Esse tipo de expressão e essetipo de entendimento estão incorretos e vão juntos infinitamente.

O ponto mais alto do ensinamento do Buda é a ausência de pessoa – háterra, água, fogo, ar, agrupados em uma pilha, só isso. Animal ou pessoa nãoexistem. Se aquela pessoa atingir esse ponto, como é possível ele ser egoísta? Poisjá não há ego. O que nos faz ser egoísta é ter um ego dessa forma. Se formos falarsobre não ter ego, ninguém entende. Conversar sobre coisas mundanas e coisastranscendentes não é igual. Por exemplo, se eu descrever para o doutor a seguintesituação: se dissermos “andar para frente” – conhecemos, “andar para trás” –conhecemos, “ficar parado” – conhecemos. Se vier mais uma frase que diga: “nemandar para frente, nem andar para trás, nem ficar parado”, como é que fica? Aexpressão “andar para frente”, conhecemos. “Andar para trás”, ouvimos eentendemos. “Ficar parado”, entendemos. Mas vem a segunda frase: “nem andarpara frente, nem andar para trás, nem ficar parado”, como é que fica? Essa pessoachegou a um certo ponto, já aquela chegou a um ponto mais adiante, é assim.

Eu insisto: conversa mundana e conversa sobre o Darma mais elevado –estendemos a mão, mas não alcançamos. Andar, caminhar – conhecemos. Andarpara trás – conhecemos. Ficar parado – conhecemos. Não andar para frente, não

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andar para trás, não ficar parado – não conhecemos, ouvimos e fica por issomesmo. Bem aí, aí é que as pessoas não entendem nada a ponto de haver tantosproblemas e confusão demais desse jeito. Mas essa frase é a forma de expressãodaqueles que estão além deste mundo, é a forma de expressão dos aryias.Crescemos a esse ponto, antes éramos crianças, não é? Éramos criançaspequeninas, e agora crescemos a esse ponto. Sente saudades de ser criança?Lamenta não ser criança? Por que foi possível crescer a esse ponto? Porque éassim: entra comida por aqui, não é assunto nosso, é assunto do mundo.

Falamos, mas não acertamos o alvo… Mas todo mundo tem, todo mundoneste mundo diz ter razão… É verdade, mas quando todo mundo vai inventandorazões, as razões acabam diferentes umas das outras. Gente burra tem razão, genteesperta tem razão. Gente esperta tem a razão deles, gente burra tem a razão deles.Significa que essa história de razão não tem fim. Quando o Buda diz: “Eu ajoalém dos motivos, acima das razões. Além de nascimento, acima da morte. Alémda felicidade, acima do sofrimento”, e aí, como é que fica? É uma históriacompletamente diferente, completamente diferente.

Por exemplo, o doutor foi criança, alguma vez brincou com balãoinflável? Via o balão e ficava feliz e alegre por causa do balão: “oba!, oba!”.Agora cresceu a esse ponto, não é? É diferente de quando era criança, não pensamais em brincar com esse tipo de coisa. Por que não quer brincar? Pois não háutilidade! Já cresceu, vê? Não há utilidade. Quando éramos crianças, naquelaépoca, víamos o balão como algo muito valioso. Brincava e se divertia, “oba!,oba!” – sozinho. Não sabia de nada. Mas quando o balão explodia “pôp!” –chorava… Por que é assim? Brincar com essas coisas é o que se chama “nossamente estar fixa”.

Então nossa idade se desenvolve, mudamos com o tempo e crescemos aesse ponto. O doutor ainda vai brincar com balão, como as crianças? Pois é assim.Como vamos resolver esse problema, quando é o caso que aquele rapaz pensadessa forma? O doutor tem que dizer: “Eu não quero brincar pois não háutilidade.” E as crianças? Isso contradiz a opinião das crianças. O doutor diz:“Não tem utilidade.”, mas as crianças discordam do doutor: “É útil sim!” E aí,

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Conversa com um doutor – 15

quem vence? Quem está certo, quem está errado? As crianças têm as razões delas,os adultos têm as razões deles, são mundos diferentes. Tem que ser assim.

Ótimo! As perguntas hoje estão muito boas, quero que faça muitasperguntas e assim se esclarece. São duas coisas completamente diferentes,completamente diferentes…

- Estou conseguindo enxergar.

- Pois é.

- Eu tenho uma opinião, é uma opinião que inventei sozinho, tenho queadmitir. Minha esposa aqui, Pao, cerca de dez anos atrás… Nossa! Vivia sebenzendo6! Eu perguntava: “Está possuída por um espírito maligno? Foi fazer algoruim ou o quê?” Seja lá o que fosse, tinha que se benzer. Ela chamava para que eufosse junto mas eu dizia: “Não fiz nenhum mal, no que diz respeito à minhaprofissão, ajudo as demais pessoas. Isso é um tipo de bondade e, em geral, quandotrabalho, trabalho com intenção de fazer direito. Caso cometa um erro, é sem tertido intenção, é por não ter tido conhecimento suficiente ou por ter meequivocado, sem ter intenção de prejudicar ninguém. Eu digo que não façomaldade.”

Não estou possuído por um espírito maligno, não fiz maldade, então nãome benzo. Pelo contrário, penso que a religião, qualquer que seja, ensina a teramor uns pelos outros, a praticar o bem da forma que o mundo inteiro respeita e atentar ser uma pessoa pura. Se formos de acordo com a minha opinião, caso apessoa chegue a um certo nível, tendo encerrado seus deveres mundanos, suasresponsabilidades, caso queira ir procurar paz verdadeira – vira monge de vez, vaimorar num local pacífico. Mas só quando não tenha mais preocupações como:“Eh! Meu filho não vai ter recursos para estudar, como é que fica?” Eu vou ter queaprender a ser médium, a fazer água benta, a fazer poção mágica 7, isso não é

6 É comum as pessoas na Tailândia pedirem que os monges abençoem água para que elasborrifem sobre si para espantar más energias ou trazer boa sorte.

7 Muitos monges na Tailândia ficam ricos vendendo esse tipo de “serviço”, embora o Budatenha proibido aos monges possuir dinheiro e muito menos realizar esse tipo de atividade,que ele considerava serem “artes de animais”.

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16 - Darma da Floresta

correto. É por isso que tenho a opinião de que fazer mérito, e então obter méritoou não, depende do coração – se nosso coração for puro, se agirmos sem ter másintenções, sem maus pensamentos, mesmo que erremos, não acertemos o alvo,mas tenhamos sensibilidade e procuremos corrigir, essa é uma ação que penso serpura o suficiente. Por isso esse tipo de “exibição”, por exemplo, virar monge –chega a idade costumeira e “pap!”, ordena-se monge porque mandaram. Querdizer, ordenou-se por causa das tradições8, mas no coração talvez não haja pazsuficiente ou pureza suficiente, ou há preocupações e deveres por cumprir.

Tanto quanto me lembre, temos que receber autorização para ordenar-semonge e essa permissão deveria ser dada com sinceridade, não por ter implorado,ter forçado o pai e a mãe dizendo: “Não quero nem saber, vou virar monge, se meproibirem vou fazer algo ruim…” Isso é obrigar, e eu digo que é fazer maldade.Por isso digo que, se for fazer, se for ordenar-se para gerar bondade, depende docoração. Todas as formas de fazer mérito… como no meu caso: eu tenho preguiçade doar pindapāta, mas minha esposa doa todos os dias pela manhã. Eu tenhopreguiça de tirar os sapatos9, mas não penso nada de mal, não penso de maneiraofensiva, de maneira que tenho a opinião de que mesmo que alguém faça méritoaté morrer, na minha cabeça eu penso que mesmo que faça mérito até cair morto,se no coração houver apenas ganância, confusão, arrogância ou se fizer que osdemais sofram, eu digo é melhor parar de fazer mérito imediatamente. Váaprender a fazer o coração ficar bom, a fazer as outras pessoas felizes. Estouerrado?

- Sobre isso aí, escute primeiro, OK? Existem duas coisas: número um – adona de casa se benzendo não deve estar certo.

- Mas agora ela já parou.

- O que será que aconteceu?

8 Antigamente era comum na Tailândia que todos os rapazes se ordenassem monge aocompletar vinte anos, por um período curto de tempo.

9 Quando os monges saem de manhã pelas ruas recolhendo comida para sua refeição, aspessoas costumam tirar os sapatos em gesto de humildade na hora de doar os alimentos.

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Conversa com um doutor – 17

(esposa do Dr.) - Eu sinto que me faz feliz, quando doo pindapāta ficofeliz.

(Ajahn Chah) - Pode deixar, eu vou explicar, vou resolver essa questão.Por que age dessa maneira? Imagine uma galinha que temos em casa: ela cacarejae corre para perto de nós, damos um par de calças para ela – ela não aceita. Damosuma camisa – ela não aceita. O que vamos dar para ela?

(Doutor) - Milho.

- Damos milho. Isso é útil para a galinha, não é? Só isso e já é útil, elaquer aquilo. Camisa é bom só para pessoas, calça é para pessoas, ela ainda nãochegou ao nível humano, o que ela quer é milho. Ela vem nos procurar, mas nósdamos uma camisa e a galinha não aceita, é melhor dar milho, não é? Desse pontoem diante ela vai melhorando, melhorando, até virar gente. Quando for gente, sedermos milho para comer ela não come. No começo é assim, e o doutormencionou um segundo item, o que era?

Ah! O senhor disse: “Eu não quero fazer mérito ou, se fizer, pego minhamente e a transformo em mérito logo de vez.” Mas se o doutor for uma pessoaesforçada, sendo uma pessoa esforçada, ia aguentar não trabalhar? Ia aguentar nãovarrer a casa, ia aguentar não lavar os pratos ou fazer algo de útil? Se foresforçado, não estou falando de gente preguiçosa.

- Trabalharia o tempo todo.

- Pois é, tem que ser assim. Para as pessoas que têm fé, fazer doações ébom, mas o que o doutor disse sobre passar do limite também está correto. Temque saber moderar, tem que saber o suficiente, conhecer moderação. Fazer demaissem considerar razão, não dá. Mas a pessoa que tem fé profunda tem que doarpindapāta ou fazer pūja e assim por diante, aquela pessoa está cheia de fé. Não épara fazer como os tolos, mas para fazer como os sábios.

Então podemos comparar com o doutor aqui, que é uma pessoa esforçadaao máximo, não é preguiçoso naquilo que gosta. Vê a casa bagunçada, conseguenão varrer? Vê os pratos sujos, consegue não lavar? Vê o cachorro vindo fazer

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18 - Darma da Floresta

cocô bem ali, toca ele para fora ou o quê? O doutor tem que ser incapaz de pararde trabalhar, uma vez que é uma pessoa esforçada. Aqui é a mesma coisa, tem quepensar dessa forma. Por que age dessa maneira? Isso se manifesta vindo docoração de uma pessoa esforçada, tem que ser assim. Se for o caso que ela ofereçapindapāta à toa, sem noção de nada, eu concordo contigo, mas se ela faz tendomotivo como o doutor – por que limpa titica de galinha, por que limpa cocô deporco, por que limpa cocô do cachorro, por quê? Porque o doutor é detalhista damaneira correta, é uma pessoa esforçada, não pode ver algo desarrumado, tem quelimpar e arrumar. É ali que se manifesta, não é só passar a tarefa adiante. Essa é arazão.

Aquilo, deixa para ela. Que ela vá atrás de água benta, deixa para ela. Elaestá no nível de galinha, que fazer? O nível é de galinha, mas o doutor vai oferecercamisa – ela é galinha, não aceita. Que fazer? Tem milho, então joga para elacomer, é melhor assim, para que ela fique feliz. Tem que separar em níveis destaforma para poder chamar-se “pessoa de entendimento”. Então o doutor vácontemplar tudo isso.

Ótimo! Hoje foi muito bom, o doutor já veio duas vezes mas ainda nãohavia feito nenhuma pergunta. Ótimo, bote todas as perguntas para fora, paraacabar de vez desse jeito, bote para fora até acabar…

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Budismo estilo Theravada – 19

Budismo estilo TheravadaPalestra dada por Ajahn Chah a praticantes leigos na Inglaterra.

Hoje vim aqui porque meus discípulos, como por exemplo o Sr. Suchin,convidaram para que viesse me encontrar com as pessoas daqui. Pode-se dizer queé muita sorte termos nos encontrado aqui. Alguns talvez não saibam o que é issoque está sentado bem em frente deles. Somos monges theravada que vêm daTailândia, fizemos o esforço de vir até aqui hoje. Viemos nos encontrar aqui hojepara sabermos como é o Budismo Theravada. Na Tailândia há um local chamadoWat Nong Pah Pong onde há muitos ocidentais indo estudar a prática dameditação budista.

O Budismo Theravada que trouxemos aqui é um ensinamento que ésempre atual, nunca envelheceu, nunca foi danificado e sempre acompanhou ostempos e as pessoas também. Sempre ensinou todos nós a termos harmonia eintegração como se fôssemos um, com harmonia firme. Por exemplo, ensina atodos nós de uma mesma maneira: aquilo que é ruim, que perturba, não é pacífico,é confuso – somos ensinados a tentar abandonar todas essas coisas.

Depois disso nos ensina a ter sabedoria, a conhecer o que é errado e causaperturbação para os indivíduos e para a sociedade como um todo também. Essesensinamentos, reunidos, são os pilares do Buddha Sāsana e se chamam Sīla,Samādhi, Paññā.

Em seguida somos ensinados a pacificar nossa mente. Esta nossa menteaqui, mesmo tendo uma casa enorme para que viva bem, ainda não tem bem-estar,pois ainda está fervendo por causa da confusão, por causa do modo errado deenxergar as coisas. Estou falando sobre a mente de todos nós aqui.

Agora vamos tentar concentrar nossas mentes, unificar a mente com umobjeto, o que se chama samādhi. Portanto, prestem atenção no que vou dizer.Fazer nossa mente ter força é diferente de fazer nosso corpo ter força. Para que

Henrique
Nota
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nosso corpo tenha força temos que correr, nos movimentar, de manhã e à noite.Essa movimentação faz nosso corpo ficar forte. Já a mente, devemos fazer que elapare e permaneça quieta, fazer que se pacifique. Isso trará energia, a mente teráforça, isso se chama samādhi. Fazer a mente entrar em samādhi não aconteceinstantaneamente, porque desde que nascemos nunca treinamos nossa mente aficar quieta, nunca treinamos nossa mente a ficar em paz. Nunca fizemos, entãonão vai ser logo hoje que vamos conseguir pacificar nossa mente. Por isso temosque ter determinação em praticar, quer haja paz ou não. Algumas pessoas, quenunca praticaram, têm medo. Têm medo que fazer a mente se pacificar vá fazê-loster problemas mentais. Têm medo de ficar loucos e todo tipo de coisa. Por queisso? Porque nunca praticaram, então ficam com medo. Não há nada disso.

Sentem-se da forma que acharem melhor, mas sentem-se em paz. Tenhamuma postura pacífica e confortável. Todos fechem os olhos e foquem a atenção narespiração, experimentem. Experimentem focar a atenção na respiração, façamagora. Façam. Quem quiser sentar na cadeira – sente. Quem quiser sentar no chão– sente. Pratique agora mesmo, quando inspirar ou expirar esteja ciente. Não forcea respiração a ser mais rápida ou mais devagar. Não force a respiração a ser maisforte ou mais fraca. Deixe que ela seja natural e tenha apenas ciência da respiraçãoentrando e saindo à vontade. Vocês veem a respiração? Estão cientes dela? Comoela é? Como é “aquele que está ciente”? Vocês enxergam nas suas mentes? Ondeestá “aquele que está ciente”? Onde está a respiração? Como é a respiração?Foquem dessa forma, estejam cientes. Usem a ciência dessa sensação paraacompanhar a inspiração e a expiração, acompanhem a respiração entrando esaindo à vontade. O seu dever neste momento não é grande, basta estar ciente darespiração entrando e saindo. Não precisa pensar: “O que vai acontecer se eu focara atenção na respiração? Vou saber alguma coisa? Vou ver alguma coisa?” Não édever de vocês pensarem nisso. O dever de vocês é estarem cientes da respiraçãoentrando e saindo e é só isso.

Normalmente não fazem isso. Há muitos anos, muito tempo, que vêmnegligenciando a respiração, não estão cientes de que o ar entra e sai. Hoje quepossuem esta oportunidade, observem como ele entra, como ele sai, observem

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Budismo estilo Theravada – 21

bem. A respiração possui muito valor, é a comida mais importante dentre todas. Senão comermos esse tipo de comida por duas horas é um problema sério; já comidacomo o arroz, mesmo se não comermos por um ou dois dias, ainda conseguimossobreviver. A comida da respiração, se faltar por cinco ou dois minutos, nãoaguentamos. Portanto, a respiração tem valor. Hoje todos vocês observem emdetalhe a respiração. Observem a respiração, não deixem a mente escapar paracima, para baixo, para a esquerda ou para a direita, nem para frente ou para trás.Que a mente esteja ciente somente da respiração na ponta do nariz, só isso. Nãopense que ficará com problemas mentais, que ficará louco. Quanto melhorpraticar, mais são vai ficar. Vai ficar são, vai se curar de seus problemas mentais.Não pense que será de outra forma. Pratiquem.

- intervalo para prática de meditação -

(…) Nós não nos conhecíamos previamente, acabamos de nos conheceraqui hoje. Eu que estou ensinando, caso diga algo errado ou inapropriado, meperdoem, me desculpem. Todos nós, naquilo que ainda não conhecemos, somosignorantes. Daquilo que ainda não estudamos, somos ignorantes. Entendam isso.A mente da maioria das pessoas não se aquieta. Por exemplo, hoje viemos nossentar em paz desse jeito, as pessoas que se acham espertas devem perceber:“Puxa, não tem paz nenhuma, que barulho é esse vindo me perturbar? Barulho dascrianças, barulho dos barcos, vindo perturbar, todo tipo de barulho… não há paz.”A pessoa acha que está pesando de forma correta por causa da sua esperteza, masela não enxerga a burrice naquilo. É o barulho que vem nos incomodar ou nós éque vamos incomodar o barulho? Isso nunca pensam. Na verdade somos nós quevamos perturbar o barulho, não é o barulho que vem nos perturbar. É assim ou nãoé? Nós vamos perturbá-lo ou ele vem nos perturbar? Olhem. Pois é, somos burrosdesse jeito. As pessoas espertas são burras desse jeito. E ainda assim não admitem.Não sabemos dessas coisas, pois só olhamos o lado de fora, não olhamos o lado dedentro. Pensamos que somos espertos mas, na verdade, nós é que vamos perturbar.Mas pensamos que é ele que vem nos incomodar. Isso é causa para que nãotenhamos bem-estar, é causa para nossa mente não ter paz nem bem-estar, ficarconfusa, pois não conhecemos a nós mesmos.

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Como o mundo hoje em dia, todos os países, eles são do jeito que são,eles não têm nada de mais. Somos nós que pensamos: “Esse é bom, aquele não é”,gostamos desse, não gostamos daquele e só encontramos confusão. Na verdade omundo é do jeito que é. Não conhecemos sobre nós mesmos, pois somos burros.Vários dos meus discípulos vão estudar nas universidades do ocidente. Estoufalando sobre meus discípulos: estudam e ficam ainda mais burros, sofrem aindamais, brigam ainda mais, não se entendem. Disputam entre si, só brigam, nãotrabalham. Isso é porque não conhecem a si mesmos. Hoje eu vim falar sobre aciência do Buda, hoje vamos estudar ciência do Buda. Hoje em dia tem muitasciências, é de perder a conta as ciências que estudamos. Mas essas ciências não secomplementam. Todas as ciências têm que incluir a ciência do Buda. Se nãoincluir a ciência do Buda, não serve. Ainda não se harmonizam, ainda disputamentre si, ainda têm inveja, ainda guardam rancor, ainda geram confusão o tempotodo.

Hoje eu aproveitei essa ocasião para dizer isso, trouxe esse presente. Sevocê é assim, corrija a si mesmo! Na nossa mente há algo que não é bom? Aospoucos expulse para fora. Não acumule, aos poucos expulse para fora. Aquilo quenão for bom, que oprima a si mesmo, oprima aos demais, aquilo na mente que nãoé bom, apenas expulse para fora, não deixe acumular até ficar pesado. Comoponto inicial da ciência do Buda, somos ensinados sobre Sīla.

Número um: não oprimir aos demais seres, pequenos ou grandes,humanos ou animais. Isso é ciência do Buda para não sofrermos.

O segundo aspecto é que não guerreemos pelas coisas, deixem estar. Nãofiquem disputando os objetos, deixem estar. Isso é ciência do Buda.

O terceiro, se formos leigos: é normal termos família, não traia suafamília. Se trair sua família será mais um assunto para gerar sofrimento.

O quarto é ser honesto: não minta, tenham sinceridade entre si, todosvocês. Esse é mais um ponto da ciência do Buda.

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Budismo estilo Theravada – 23

O número cinco é não beber coisas que embriagam. Já estamosembriagados o suficiente na nossa mente com todo tipo de coisas. Se além dissofor beber, ultrapassa o limite da embriaguez, não vai mais saber o que é o quê.

Se unir tudo isso, chamamos de ciência do Buda. Essa ciência do Budaengloba todas as ciências. Faz as demais ciências não perderem o rumo, faz comque elas não gerem sofrimento. A ciência do Buda as engloba dessa forma. Assim,todas as pessoas viveriam em harmonia, sem inimizade e rancor pelos demais. Seaprendermos todas essas ciências e acrescentarmos a ciência do Buda, podemosdizer que somos budistas: chama-se Buddha Sāsana. Onde estiver está bem, estáem paz. Esse é o significado do que vim ensinar hoje.

Vocês que estão sentados aqui, alguma vez sofreram? Sofreram nocoração? Por que esse sofrimento? Qual é o problema? A mente pensa errado eentão sofre. Se pensar correto vai sofrer? Isso é para vocês refletirem. A prática desamādhi que fizemos hoje é justamente para conhecer isso. É ensinar essa mente aconhecer o caminho correto, conhecer certo e errado. Mas hoje eu peguei leve,não havia tempo. Se fosse para sentar de verdade, da forma correta, teríamos quefazer de novo. Hoje eu não vim ensinar, só vim visitar. Vim visitar, dar um poucode opinião. Por isso peço desculpas, mas se fosse para praticar samādhi deverdade eu não ia permitir sentar em cadeiras, tinha que sentar no chão desse jeito.Se for para treinar de verdade tem que ser assim, desse jeito aí é confortáveldemais, dá sono. A prática de samādhi de verdade é feita sentado no chão. Napróxima ocasião nós fazemos de novo, por hoje peço desculpas.

Só tem casas grandes por aqui. Aonde quer que vá é tudo grande, mas nãohá muito bem-estar, não sei o que acontece. Vivem em casas enormes mas não têmbem-estar. Às vezes não conseguem dormir a noite inteira, por que será? Qual é arazão disso? Olhem, este local é ótimo, a natureza aqui é ótima, mas por que só anatureza aqui é boa e não a mente das pessoas? Por que razão? Por isso, temos quemelhorar nossa mente. Mesmo num prédio como este, de vários andares, aindanão haverá bem-estar caso nossa mente não esteja bem. Mesmo se melhorar anatureza ainda mais, a mente não estará bem, pois não a melhoramos. Hoje eu vimencorajar vocês a melhorarem suas mentes. Isso é algo muito importante.

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Por aqui as casas e os alimentos para o corpo, eu digo, já são suficientes.Só tem gente gorda! Mas comida para a mente, eu digo, ainda não é suficiente.Algumas pessoas vão sentar à beira do mar, sentam e ficam olhando… Elas nãoestão bem, a atitude delas é de quem não está bem. Não sei o que se passa. Euacho que talvez esteja faltando um tipo de comida. Às vezes vai perguntar:“Senhor, senhor…”, e nada. “Senhor!”, e eles enfim olham para cima. Eu sintoque estão famintos, muita falta de comida para a mente. Já viram isso? Olhem,olhem… Há uma causa? Será que há uma causa? Para ficar desse jeito tem umacausa, isso não vem do nada, há uma causa. Tem que remover essa causa. Se nãoremover a causa vai continuar incomodando, não vai haver bem-estar. Se deitarnum colchão macio, não vai ser macio, se morar numa casa grande, não vai sergrande. A mente se sente apertada, no final pensa em morrer. Que peso ela estácarregando dentro de si? Mesmo dormindo ainda carrega. Mesmo dormindo aindacarrega e não larga, às vezes chora a noite inteira. Não sabem o que carregam,vocês não sabem pois não praticam samādhi. Quando possível, investiguem atéencontrar. Está faltando comida para mente, comida para o corpo já há osuficiente.

Agora é um bom momento, vou pedir para que eles coloquem um filmepara vocês verem. Esse filme foi feito em Wat Nong Pah Pong, na Tailândia. ABBC de Londres foi filmar. Eu vim visitar aqui em Londres e trouxe junto. Elesfilmaram sobre como vivem os monges. Eles vivem na floresta – o que é que elesfazem lá? Eles comem, dormem e ficam à toa, ou o quê? Assim as pessoas podemconhecer a rotina dos monges. Eles fizeram esse filme para que possamos ver.

- intervalo para apresentação do filme -

(…) É um pouco difícil, é o que chamamos “sentar em meditação”. Não éo caso de que vamos sentar o tempo todo em meditação. Sentamos só o suficientepara que a mente tenha uma fundação, para que ela não tenha confusão. Depoistivemos oportunidade de sentar cerca de trinta ou vinte minutos, sentamos,treinamos, para a mente ter samādhi, ter frescor. Se temos habilidade em meditar,não é difícil, é só sentar por dois minutos e já estamos em paz. Mas nuncacuidamos da mente, há muito tempo que temos deixado ela vagar por todo lado, aí

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Budismo estilo Theravada – 25

ela vai de acordo com o hábito dela, pois nunca foi treinada. Algumas pessoasnunca treinaram a mente, nunca praticaram, pensam que é trabalhoso, muitodifícil. Como na sessão de hoje, algumas pessoas sofreram muito, trocavam deposição o tempo todo, isso é comum, é incômodo e desconfortável porque apenascomeçamos a treinar.

Algumas pessoas se desanimam pois veem que é difícil e trabalhoso fazer.Aquilo que é difícil é bom fazer. Aquilo que é fácil não vale a pena. Para quelimpar onde já está limpo? Já está limpo! Vá fazer limpeza onde está sujo, issosim é útil. Por exemplo esta casa aqui, antes de virmos praticar meditação aqui,antes de ela ter sido construída, não era possível ficar aqui. Foi necessário trazermadeira, ferro, cimento. Havia uma enorme bagunça bem aqui, não era possívelmorar aqui. Por quê? Porque a construção ainda não estava concluída. Agora quejá terminou, é confortável? Tem algo bagunçado? Isso é porque o cimento foiposto em seu lugar, o ferro foi posto em seu lugar, a madeira foi posta em seulugar. Não há bagunça alguma. Então é confortável desse jeito. Mas antes eradesconfortável este lugar aqui, é assim ou não é?

Isso se compara dessa forma. Nós apenas começamos a praticar. Não sóconstruindo uma casa, mesmo com o estudo, no começo tínhamos preguiça, nãoé? Não queríamos ir estudar, tínhamos preguiça, pois era difícil. A mãe e o paitinham que obrigar a ir, não é? Então conseguimos estudar e obtivemosconhecimento e sabemos o valor do estudo. Nós temos que pensar desse jeito,temos que treinar nossa mente desse jeito, aconselhar nossa mente assim para queela tenha força. Quando formos hábeis, não será mais necessário sentar usandoesse método. Poderemos sentar à mesa, na cadeira do trabalho e estarmos cientes,termos sati acompanhando os estados mentais, e a mente conseguirá se pacificar.Pratique até a mente ficar esperta, até a mente ficar hábil, até a mente ser dessejeito. De pé tem essa sensação, deitado tem essa sensação, indo ou vindo tem queser assim. Ela já alcançou a paz dela.

Algumas pessoas pensam que vão ter que se esforçar desse jeito parasempre, que vai ser trabalhoso e difícil desse jeito para sempre, mas não é assim.Tendo terminado um trabalho, estamos tranquilos. Se ainda não terminamos, não

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estamos bem. Isso também é assim, não é diferente. Se fosse difícil sem parardesse jeito, eu também já tinha ido embora, também não ia querer. No começo erasofrido, difícil, trabalhoso, hoje não é difícil daquele jeito, já deu resultado.Quando é assim, é só querer e a mente já se pacifica. Onde sentar, fechar os olhose focar a mente, ela se pacifica. Ela já foi treinada, é fácil. Quando a mente estáconfusa, sentamos tranquilos assim, e ela se concentra: “pup!” Acabam osproblemas. É assim.

Além disso, tendo pacificado a mente, há a contemplação de várias coisasque surgem e desaparecem. No que surge e desaparece não há nada de mais. Aalegria surge e num instante desaparece, a tristeza surge e num instantedesaparece, não há nada! Mas nós corremos atrás e aí sofremos, viramos escravosdisso, só isso. Isso surge e desaparece, surge e desaparece. Quando conhecemos oDarma desse jeito, a mente se pacifica e junto vem a sabedoria. Não há problemas– ou tem, mas são poucos. Não é preciso resolvê-los, eles logo se resolvemsozinhos. Se nossa sabedoria ainda não surgiu, sofremos. Por que sofremos? Nósagimos certo ou errado? Estamos pensando certo ou errado neste momento? Entãosomos ensinados a não mirarmos no futuro, a largarmos o passado e praticarmosneste momento atual. A mente se pacifica. Ou vocês não concordam? Alguém temalguma pergunta?

- Como o Luang Pó pode não se incomodar em visitar o zoológico?Aqueles animais foram presos contra a vontade deles.

- Eu não os prendi, quem prendeu é que é o culpado. Eu não tenho nadacom isso. Uma vez fui até o Wat Prabat. Eles prendiam pássaros, vendiam esoltavam. No dia seguinte eles prendiam e vendiam de novo10. Um dia eu estavaindo visitar e vieram: “Luang Pó, compre um pássaro para soltar.” Estava numagaiola. Eu olhei:

“Quem prendeu esse pássaro?”

10 Algumas pessoas gostam de fazer mérito libertando um animal que está preso ou que estápara ser sacrificado, como consequência, espertalhões se aproveitam e prendem animaispara vendê-los em frente a um templo onde as pessoas costumam fazer esse tipo de coisa.

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Budismo estilo Theravada – 27

“Eu prendi.”

“Quem prendeu que solte! Vai trazer para eu soltar para quê? Vocêprendeu, você que solte! Eu não prendi, vou soltar para quê? Se eu soltar o seupássaro você vai ficar com raiva.”

Ele olhou para minha cara… “De onde saiu esse monge!?”

Use equanimidade quando não puder ajudar. O pássaro estava preso, se eusoltasse eles me prendiam. Seria uma grande ofensa. O carma daqueles animais éaquele, fazer o quê? Eu vejo e fico em upekkhā – deixo a mente equânime, nãoencorajo, não faço contato, apenas olho. Penso: “O mundo é assim, se nãoprendessem, alguém ia querer ver? Então eles prendem, o mundo é assim.” Seformos soltá-los à força, vai ser bom? Vai virar um grande tumulto, não é? Seolhamos assim, nós largamos, ficamos equânimes, em upekkhā, nãodesperdiçamos a mente. Não é largar demais. Eu também sinto pena, mas deixominha mente em equanimidade. Deixo parte do carma para a pessoa que prendeu ea outra parte para o pássaro que foi preso. Fico quieto. Nada de mais, o mundo éassim. Se sabemos desse jeito, não há nada de mais. Mais alguma coisa?

- A dor, o sofrimento e a felicidade, são iguais em que sentido ou sãosimilares de que forma?

- São como as extremidades de um pedaço de pau. Elas são diferentes?Uma extremidade e a outra, há diferença? Felicidade ou sofrimento – não pegue,não se apegue a eles. Felicidade e sofrimento são como uma cobra, vemos edeixamos ela ir embora. Se formos pegar, ela nos pica, não é? “Minha felicidade”pica, “meu sofrimento” pica, como uma cobra. Felicidade é como uma cobravenenosa, sofrimento é como uma cobra venenosa. Se vemos que ela é venenosa,deixamos ela ir. Felicidade e sofrimento são iguais a uma cobra, se formos pegar:“Puxa, que felicidade!”, quando ela desaparece surge sofrimento, eles têm omesmo valor. Tem que pensar de acordo com o Darma para entender. Mas aspessoas não gostam de sofrimento, só querem felicidade – não dá! Pegar afelicidade é o mesmo que pegar o sofrimento, pegar o sofrimento é o mesmo quepegar a felicidade. É assim. Mande mais perguntas! Tem mais alguma?

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28 - Darma da Floresta

- Pergunta sobre praticar no momento presente: Se ficarmos somente nomomento presente, não pensarmos no que aprendemos e fizemos no passado e nãofizermos planos para o futuro, como vamos progredir?

- Ainda não entendemos o Darma. O presente é resultado do passado, nãoé? O presente é causa para o futuro, não é? Quando contemplamos o presente, écomo contemplar o passado e o futuro. Não passa disso. O presente é resultado dopassado. O presente é causa para o futuro que vem em seguida. Se contemplarmoso presente, é como se contemplássemos o passado e o futuro, não precisa ficarrepetindo muito.

(Tradutor) - Ele está dizendo: a prática dos monges pode estar de acordocom as tradições do oriente, da Tailândia, mas ele acha que esse tipo de práticanão é completa porque os leigos fornecem todos os recursos, essa deve ser aopinião de várias pessoas no ocidente. Ele não disse abertamente, mas acho que éalgo do tipo “vocês são egoístas”. E se é assim, como essa prática pode estarcorreta?

- Se você não roubar e eles disserem que você roubou, é verdade? Pois é,não precisa complicar muito. Praticamos por bondade àqueles quem têmsofrimento, têm visão incorreta, ensinamos para que saibam o que é o quê, paraque haja harmonia entre as pessoas. Ensinamos as pessoas a conhecerem o Darmapara que haja harmonia, para que não se agridam. Mas se enxergarmos desse jeito,é como se fossemos egoístas, mas os monges não querem nada, comem só umarefeição por dia. Dão suporte aos monges para que eles ensinem as pessoas aconhecer Sīla, a não se agredirem. Se você quer pensar que é egoísmo fique àvontade. Mande mais uma, mande mais uma! Amanhã vou embora, quem quiserperguntar, pergunte!

- Pergunta sobre o Nobre Óctuplo Caminho, sammā-ājivā (modo de vidacorreto). Ele é advogado e às vezes tem que brigar e discutir durante o trabalho.Como deveria praticar na vida dele para que esteja de acordo com o modo de vidacorreto?

- É advogado? É honesto?

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Budismo estilo Theravada – 29

- Ele tenta.

- Não são só os advogados. Mesmo o rei, se não agir certo, está errado. Seagir errado não é certo, é errado. Não são só os advogados, mesmo o rei, se agirmal, não está certo, está errado. O Darma é assim. Resolva as questões para quefiquem corretas, não aja mal e isso é o suficiente. Fora disso, tem que procurar.Que método utilizar depende da nossa sabedoria. Nós temos que refletir sozinhos:onde trabalhamos, está certo ou errado? Temos que refletir sozinhos. Para seradvogado, aprender as leis, tem que gastar muito dinheiro. É melhor não agir mal,já investiu muito nisso, se agir mal, não vai ser bom. Se perguntar para os monges,eles têm que responder assim. O Darma é assim, e você então leve e vá praticar deacordo com a sua sabedoria.

- E na hora de exercer sua função, o que poderia servir como ponto dereferência? Como ele deveria olhar?

- Olhe para sua própria mente, olhe se a mente está sendo honesta ou não.Detesta aquela pessoa, mas gosta dessa outra? Ajuda aquela pessoa, mas não ajudaesta aqui? Olhe para a própria mente, não olhe em outro lugar. Só há isso, só há amente, faça a mente estar correta. Olhe para a própria mente. Visão correta(sammāditthi) nasce bem ali, bem ali na mente.

- Os budistas acreditam em vida futura?

- Hã? O que você disse?

- Quando morrer nesta vida, vai haver uma nova vida em seguida?

- À frente existe? Amanhã existe ou não? O futuro existe ou não? Opassado existiu ou não? O presente existe ou não? Vá pensar sozinho. Se vocêperguntar: “Vida futura existe ou não?” e eu disser: “Existe!”, o que você vaifazer? Você vai acreditar ou não? Se você acreditar você é burro, porque estamossentados aqui, eu digo: “Existe” e você simplesmente acredita sem razão alguma.Sabendo disso, essa não é uma resposta a ser dada. O que dá para responder é:“Amanhã existe, futuro existe, passado existiu, presente existe?”, é a mesma coisa.Sabendo disso, esse problema você tem que resolver sozinho. Se eu disser: “Existe

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vida futura” e você acreditar… você não tem sabedoria, pois eu estou apenassentado aqui, digo: “Existe” e você logo acredita sem razão alguma. É assim, essanão é uma resposta que se deva dar, é uma questão que você deve procurar dentrode si mesmo. Tendo feito uma pergunta, você deve ir praticar. Não pergunte à toa.Você tem que usar isso como combustível para fazer surgir sabedoria, tem quecontemplar como um aspecto da prática.

Amanhã não haverá atividades. Todos vocês, hoje eu me despeço, amanhãeu já viajo de volta. Estou muito contente com todos, mesmo que vocêsperguntem todo tipo de questões, estou contente, estou contente em dar opinião,contente em responder de forma direta. Dessa vez fica por isso mesmo, eu ensineie praticamos.

Vou falar honestamente, a pessoa que vá ensinar meditação, na verdade,deveria ser um monge. Esse ensinamento teve origem no Buda, uma pessoa pura.Falando de forma direta, é verdade, os leigos também conseguem, mas de formaindireta, não vão direto. Tenham cuidado, hoje em dia existem vários métodos demeditação, muitos métodos hoje em dia. Muitos professores ensinando meditação.Cuidado para não serem vítimas de um professor falso…

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Para quem conhece o Darma não há brigas – 31

Para quem conhece o Darma não há brigasAjahn Chah conversa com um grupo de monges.

(…) outras pessoas conseguiram obter fogo daquilo, mas não há um sinalque diga: “O fogo está aqui neste bambu seco, está bem aqui.” Como ele tem quefazer para vê-lo? Tem que pegar duas varas de bambu e esfregá-las sem parar,após um tempo surge o fogo, ele está bem ali. Acreditamos que há fogo ali eexperimentamos, pegamos duas varas de bambu e esfregamos, fazemos até cansar,quando cansamos vem a preguiça, não é? O bambu está começando a esquentar enós: “Humm… que preguiça!” Havia fogo, mas jogamos fora e depoisanunciamos a todos: “Não há fogo aqui, aqui não há fogo.” Nos enganamos. Naverdade há fogo ali, mas se não criarmos calor suficiente, o fogo não aparece. Issoé porque nos deixamos influenciar por nossa opinião, não procuramos a verdade.Se nos esforçarmos em continuar, se tivermos resiliência, energia, esforço eesfregarmos o bambu até surgir fumaça e fogo, a chama se acende de verdade.Mas não fazemos o suficiente, então não há fogo, então decidimos: “Hum, nãotem fogo aqui.” Na verdade nosso esforço é que não foi suficiente. O mesmoocorre tanto com os monges tailandeses como os ocidentais, vão indo, indo, maschega um dia em que pegam um punhado de flores e vêm dizer:

“Luang Pó, vou deixar a vida monástica…”

“Por quê?”

“Acabou minha diligência.”

Falam sem ter vergonha alguma. Como pode? O Buda praticou e adiligência dele nunca acabou, esses se ordenam um ou dois anos e acabam com adiligência… Como podem ser tão “bons” assim? Falaram errado, na verdadediligência não acaba, pode praticar à vontade que ela não acaba, nós é que ficamoscom preguiça. Vêm dizer que acabou a diligência, o que acabou fomos nós,diligência ainda há. É assim, então falei: “Por que não pensam direito? Estão

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pisoteando a verdade, vão pisoteando e depois vêm dizer que acabou a diligência.Se pensar direito, na verdade a diligência não acaba, não é possível que elaacabe.”

Por exemplo, se sentamos em meditação aqui e eles batem um tambor ali,“tum, tum, tum”, continuamos sentados, continuamos sentados focando a mente,mas ficamos irritados, surge irritação. Por que ficamos irritados? Pensamos:“Viemos procurar paz aqui e eles vêm bater tambor na nossa orelha!”, e aí ficamosirritados. Por que ficamos irritados? Porque pensamos errado, por isso nosirritamos. Como pensamos errado? Pensamos que aquele barulho vem nosincomodar. Isso é pensar errado, se pensamos errado surge sofrimento,insatisfação, um bloco de impurezas composto de desejo, raiva e ignorância. Nãoé possível resolver esse problema, pois fomos procurar paz mas não encontramosporque tinha algo incomodando. Monges com muitos anos de vida monásticamorrem11 por causa disso sem perceber o que ocorreu, mas se a pessoa lutar com asensação por um longo período, se surge um objeto mental e ela contemplacontinuamente – como esse som de tambor que ela diz incomodar – verá que naverdade está pensando errado. Por que está errado? Pensamos que o som vem nosincomodar. Tem que olhar isso por muito tempo para que nasça sabedoria,conhecimento. Pratique bem ali, o sofrimento está bem ali. Após muito tempochega a um ponto, um dia, em que surge o saber: “Hum, aqui não me sinto bem,ali não me sinto bem, o que está me incomodando? Mesmo que atravesse o mundoprocurando onde morar, onde acharia um lugar onde não haja incômodos?” Pensa,pensa, pensa, até conseguir entender: “Oh… é assim. Não são eles que vêm meincomodar, eu é que estou indo incomodá-los!”, ou seja, volta para si. Conseguevoltar desse jeito por ter se irritado, ter sofrido por querer encontrar paz, entãosurge o problema naquele lugar, bem onde não gostamos, onde sofremos, ondenos irrita, e aquilo que é pacífico, feliz, que não irrita, nasce justamente ali.

Se temos a opinião: “Não são eles que vêm me incomodar, sou eu queestou indo incomodá-los”, aquilo se encerra sozinho, é só vermos e aquilo para

11 Significa que aquele monge abandonou a vida monástica. O Buda dizia que deixar a vidamonástica é como a morte para um monge, e daí surgiu essa expressão entre os monges.

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sozinho, não precisa forçar nada. Vemos claramente que somos nós que vamosincomodá-los; se vemos que são eles que vêm nos incomodar, é por causa danossa opinião errada, nossa sabedoria ainda não nasceu. Se vemos: “Oh, somosnós que vamos incomodá-los”, se é assim, jogamos fora as coisas externas efocamos no interior, não gera irritação, pois são coisas distintas. Quando a mentesabe desse jeito ela larga sozinha. Os barulhos podem vir com força total, nãoimporta. Há bem-estar, há paz. Essa paz não é por não ouvir nada, não saber nada,essa paz é por ouvir, por saber de acordo com a verdade. Então podemos soltar amente, só a utilizamos quando necessário. Mas se estamos em grupo, viemosprocurar paz aqui, os monges estão aqui em paz, as pessoas não podem vir fazeralgazarra aqui. Temos que dizer: “Pare! Não trabalhe aqui, não fale alto aqui, nãovenha cantar aqui.” Temos que usar o método mundano, pois, se deixarmos, elesvão ficar bagunçando, não gera benefício algum.

Mas quando chega a hora de verdade, o que podemos fazer? Quando éhora de largar, tem que largar – neste local faz-se assim, naquele, de outro jeito.Hoje fazemos assim, amanhã fazemos de outro jeito, depende da ocasião, derefletirmos quando chegar a hora. Se viermos praticar aqui e eles vierem cantar enos irritar, podemos largar. Isso é como faziam o Buda e os sāvakas que já seforam, eles procuravam evitar as coisas externas que incomodavam. Primeirofaziam como gente tola e iam construir inteligência em outro lugar, portanto elesfugiam. O Buda nos ensinou a ser frugal, a viver em reclusão, a satisfazer-noscom o que temos. Mesmo ele já tendo terminado seu dever em abandonar, emdesenvolver, ele ainda se preocupava conosco. Ele então fugia de um lugar paraoutro, mas fugia para lutar, não fugia por ter sido derrotado, por ser tolo ou por terdefeitos. Ele fugia para treinar, para vencer. O Buda vivia na floresta, não porodiar a cidade, ele foi buscar vitória na floresta, buscar paz. Foi treinar na floresta,num local pacífico. Não fugiu por tolice, ele fugiu por inteligência, fugiu porsabedoria. Por exemplo, todos nós fugimos do mundo e viemos nos ordenar,fugimos dos sons, das cores. Alguns odeiam os sons e as cores exageradamente,fogem continuamente, isso não traz benefício, estão fugindo por terem sidoderrotados. Tem que fugir para vencer, para fazer conhecimento surgir naquelelugar, conhecer até tornar-se lokavidū, como ensinou o Buda, “conhecer o mundo

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claramente”. Enquanto este mundo não estiver claro, tem que treinar, tem queestudar até vencer.

Algumas pessoas dizem: “Eh… Isso é attakilamathānuyogo12, é ter medo.Vive na floresta, só come uma refeição, vai se sentir fraco.” Essa pessoa fala à toa,qualquer coisa que for desagradável ela diz que é “atta”, mas é porque ela nãogosta, ela se deixa influenciar por suas próprias opiniões. Tem gente que é assim.Como é attakilamathānuyogo? Elas não investigam kāmasukhallikānuyogo13, nãoanalisam, só analisam attakilamathānuyogo: “Comer uma só refeição não trazbenefício algum. Frugalidade, reclusão, viver na floresta – é tudo ‘atta’.” Então eudigo: “Se é assim, você come – quando mastiga também é attakilamathānuyogo.”Se alguém constrói uma casa, a madeira não pode ser utilizada enquanto forárvore e estiver na floresta. Se vamos construir uma casa temos que cortar, plainar,serrar, tudo coisas difíceis e cansativas. Se isso é attakilamathānuyogo, é melhornão fazer nada de vez! Eles trabalharam essa madeira, serraram essa madeira,fizeram essa tábua, com que objetivo? Para construir uma casa e morar ali,fizeram por uma causa. É a causa, é algo comum, vemos que essa é a causa.Quando há uma causa como essa, o resultado surge de acordo. O objetivo deconstruir é para que tenhamos onde morar, porque é normal as pessoas terem ondemorar, dormir, deitar, ter onde se apoiar. Tem que ter sabedoria desse jeito.Quando vamos praticar temos que pensar assim.

Hoje em dia temos muito conhecimento, mas pouca bondade, por quê?Porque não vemos o segundo nível, vemos o primeiro, só isso, só o primeiro, nãovemos o segundo, o terceiro, etc. Isso é o mesmo que não saber. Então eu digoque, falando sobre o ensinamento do Buda, costumamos estudar a teoria, mas essanão é a verdadeira essência. Então não fazemos progresso no ensinamento doBuda, somos eloquentes falando, mas não agimos de acordo com aquela verdade,então a coisa real não surge, é como se não conhecêssemos. Por exemplo, se oprofessor na escola ensina e faz junto com as crianças para servir de exemplo,assim é bom. Mas os adultos não fazem, aqueles que sabem, aqueles que deveriam

12 A prática de atormentar a si com o objetivo de obter progresso espiritual.13 A prática de buscar progresso espiritual através da indulgência em prazeres sensuais.

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fazer, não fazem, então não gera benefício algum, as crianças ficam ainda maispreguiçosas.

Eu já falei isso para os monges ouvirem. Quer esteja na cidade ou nafloresta, contemple até entender todas essas coisas, você conhecerá o ensinamentodo Buda através da prática. Tenha poucas opiniões, quem tem muito conhecimentonão consegue morar na floresta, fica com medo de malária, medo de tigre. Mas a“malária” de Bangkok, os “tigres” em Bangkok são ainda mais numerosos que ostigres da floresta, não é? Já levou mordida de tigre? Já foi à floresta e levoumordida de tigre? E os tigres da cidade, já te atacaram alguma vez? A cidade estácheia de “tigres” e são muito perigosos. Se vai para a floresta tem medo de passarfome, ficar fraco, sentir calor, tem medo dos bichos, dos tigres, mas o calor emBangkok, ôôôô…, queima ainda mais quente, como um forno. Não se protege dos“tigres”, então a prática vai acabando, acabando. Não consegue se livrar, então vaipara outro lugar, da Tailândia vai para Índia, da Índia vai para o Sri Lanka e do SriLanka continua viajando até dar a volta ao mundo. Mas não consegue escapardeste mundo: se não conhece o mundo, não consegue escapar dele. É assim. Naverdade não procurou desenvolver o que é necessário para conseguir viver epraticar na floresta.

Atualmente estudam muito a teoria, fabricam todo tipo de diversões hojeem dia. Os praticantes são assim, quando a mente vê claramente… quandocomeçamos a prática, os ouvidos não ouvirem, os olhos não verem: isso é a paz.Mas é uma paz falsa, se chama samathā. Sente paz, é pacífico, mas logo volta aconfusão novamente. É o berço da confusão, samathā é o berço da confusão. Épacífico porque os olhos não veem, os ouvidos não ouvem. Esse tipo de paz écapaz de ser motivo para os monges perderem o caminho. Vivem sozinhos, entramem jhāna e vão lá longe, mas não sabem como são as impurezas mentais, nãoconhecem o “tigre”. Quando perdem o samādhi, desistem. A paz em que os olhosveem formas, os ouvidos ouvem sons, vê tudo, mas vê a desvantagem naquelascoisas – essa é a paz verdadeira. Vê, abre os olhos e vê um perigo bem ali. Nossamente se pacifica, pois vemos aquilo que gostamos como um perigo e tomamoscuidado. Se surge algo que não gostamos, não gera mais confusão. Entendam isso.

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O Buda dizia para não ser descuidado, quem é descuidado está morto14,quem é descuidado é como uma pessoa que já morreu. É assim, uma pessoadescuidada é uma pessoa que não sabe, não tem sati, quem não tem sati não sabede nada, quem não sabe de nada não sabe ter atenção e cuidado, se não sabe teratenção e cuidado não sabe o que é certo e errado, se não sabe o que é certo eerrado não sabe como praticar e fica sonso, surge um objeto mental qualquer e apessoa quebra, cai em confusão. Pensa que é por culpa disso, por culpa daquilo,mas não pensa: “É por minha culpa”, é sempre culpa de alguma outra coisa. Éassim, eles se perdem dessa forma, a maioria dos praticantes se perdem na práticadessa maneira.

Portanto, estudem o Darma! Vejam o bem que o Buda nos deixou,estudem o exemplo dele. Eu penso que temos muito mérito. De que forma é isso?Hoje em dia, as pessoas que têm sabedoria conseguem encontrar os ensinamentosverdadeiros do Buda, não precisam procurar muito, basta pegar e ver. É só pegar olivro, ler e entender, o que estiver errado jogue fora, o que estiver certo,contemple. Na época em que o Buda começou a praticar, era como agarrar umpeixe no meio do oceano, como um pequeno pássaro voando no céu, não sabiaonde se apoiar, ainda não conseguia ver. Não havia nada para ajudar, então tinhaque se virar sozinho. Atualmente temos coisas para nos ajudar: se formos ao mar,temos barcos para utilizar; o que não sabemos, estudamos, todos estudamos,adquirimos conhecimento. Há todo tipo de coisas que podemos saber através danossa prática, mas se conseguirmos olhar do ponto de vista mais elevado, vemosque na verdade não sabemos nada. Se hoje o Jagaro15 fica com raiva de mim,pensa: “Humm, é impermanente, é incerto.” Só isso. Se hoje Jagaro gosta de mimele tem que ensinar a si: “Humm, isso é incerto.” Se sabe disso, acabou.

Mate! Mate continuamente, como uma árvore: quando ela começa abrotar nós cortamos; passa um tempo, cortamos de novo. Se deixar passar e nãocortar, vira uma floresta enorme. Brota e corta, brota e corta. Eu observei oscupins numa cabana onde morava, antes não tinha túnel16, eles vieram e

14 Verso do Dhammapada (Appamadavagga – 21).15 Nome de um discípulo que estava presente quando esse ensinamento foi dado.16 Há um certo tipo de cupim que costuma construir um túnel de barro para servir de

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construíram um e foram subindo, todo dia, todo dia. Pela manhã eu pegava umamadeira e removia o túnel, eles construíam de novo, vinham pelo outro lado, euremovia. Eles construíam, eu removia, não podia descuidar ou eles devoravam acabana inteira. Eu fazia assim, queria saber quanta diligência tinham os cupins.Pois foram vários meses! Às vezes me distraía e eles subiam pelo outro lado. Euremovia, pela manhã eles vinham por aqui, eu removia, eles vinham por ali, euremovia. No final os cupins se irritaram: “Puxa, não importa o quantoconstruímos, vem alguém e remove!”, após um tempo eles desistiram e foramembora. Cupins! Eu já fiz esse teste. Isso também é prática. Conosco é a mesmacoisa, quando as impurezas surgirem tente matá-las continuamente, não faça o queelas mandam e a força delas diminui dia a dia. Quer seja a preguiça ou osofrimento, se matamos, eles se dobram, perdem seu ponto de apoio, nãoconseguem grudar em nós. Cortamos fora, cortamos o sofrimento todo dia atévirar hábito. Vira hábito, construímos o hábito. Isso é útil. Quando eles constroem,nós removemos. Os cupins são assim: se deixarmos, eles sobem. As impurezasmentais também, elas são como cupins, podem olhar.

O Buda ensinou a construir sabedoria. Se a sabedoria for hábil, asimpurezas somem; se nossa sabedoria for mais rápida que elas, é ainda melhor.Construa sabedoria veloz, uma arma para lutar, arma do Darma dentro do seucoração. É só sabermos que isso é uma impureza, aquilo não é, e já estamospraticando. Aqueles que não sabem dizem: “Eu gosto, então faço assim, éagradável”, esses levam tempo, às vezes morrem e ainda não sabem de nada. “Eume ordenei porque quero bem-estar, quero paz, não quero que ninguém me dêordens”, ficam do jeito que der vontade, largam e aí fica ainda mais pesado.Naquele monastério ninguém vai ser capaz de ajudar, dar conselho, eles nãoescutam, aí afundam de vez. Vem de várias formas isso, é muito variado esseassunto. Se não entendemos, não conseguimos captar, fica difícil.

Jagaro, já viu tigre que mora em casa? Tigre morando em casa, já viu?Tigre na floresta você já viu, e tigre em casa? Já viu?! A tigresa17 é feroz, hein!

passagem pelos locais por onde caminha com frequência.17 Nesta ocasião Ajahn Chah ensinava a um grupo de monges, se o grupo fosse de monjas ele

certamente alertaria sobre os perigos do tigre macho.

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Muito cuidado! Os dentes são grandes, as unhas afiadas, tome cuidado. O tigremacho não é muito perigoso, os dentes não são afiados. A tigresa é perigosa, asunhas e dentes são afiados, se encontrar tigre que mora em casa, tem que tercuidado. E você, já viu tigre? Pois é, se esse tigre pegar, você será devorado. Eleagarra e devora.

De agora em diante podem parar de viajar. Já viram vários lugares, maisque o suficiente, agora nos ordenamos, ficamos no mesmo lugar. De agora emdiante, onde houver um professor que consiga nos ajudar, nos aconselhar – useaquele ensinamento. Vá praticando de acordo com o que for apropriado, nãoprecisa procurar muito. Lugar para morar, não precisa procurar nada muitocomplicado; comida, só o suficiente para viver, não precisa procurar coisa boa.Onde conseguir desenvolver visão correta através da prática, viva ali, contempleali. Isso é levar a ordenação a um nível mais alto. Pode procurar a prática ondequiser, não vai encontrar porque as impurezas não estão do lado de fora, não estãolá. O que nos leva a ficar andando é impureza tamanho grande! O que nos leva aficar viajando é impureza tamanho grande. Ela diz: “Vá ver ali, lá, província tal,bem ali, bem aqui, vá praticar na montanha, é bem pacífico na caverna…” Se vai àcaverna, vê a caverna e pensa: “Humm, ficar sozinho é bom…” Chama um leigo:

“Ei! Já veio algum monge passar o retiro das monções (vassa) aqui?”

“Sim senhor.”

“Tranquilo?”

Se ele responder: “Não senhor, vieram aqui e quase não duraram os trêsmeses, vários morreram durante o retiro.”

“Oh! Vou embora, não quero pegar malária!”, e vai embora. Fica commedo, as impurezas mandam ir onde não dá medo. Outros morreram, então ficacom medo.

“Os monges que viveram aqui ficaram doentes?”

“Ôôô! Ficaram doentes o retiro inteiro.”

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Um monge pergunta ao outro: “Vai ficar?”

“Se você quiser ficar, fique! Eu não fico, vou embora!”

Aí penduram a tigela nos ombros e vão todos embora. Medo. Se estão nacidade dizem: “Vou para a floresta”; se estão na floresta dizem: “Vou para acaverna”; se estão na floresta, na caverna, ficam com medo de malária. Aí não têmonde ficar, penduram a tigela nos ombros e andam o tempo todo. Vão lá, vêmaqui; vêm aqui, vão lá, sem parar. Procuram onde praticar, mas não praticam. Issoporque não sabem onde é que se pratica, então são levados a carregar a tigela paracima e para baixo o tempo todo. Desse monastério para aquele, dessa montanhapara aquela, além disso as cavernas. Então vai para Loei18 e vê uma caverna,muito boa:

“Oh! Ótimo! Vou ficar aqui, gostei daqui”, então vai.

Estando lá: “Ôôô, é um pouco difícil de achar água, não tem muitacomida, é difícil ir até a vila, é longe…”

Passa uma semana e vem uma pessoa: “Ôe! Que está fazendo nessacaverna? É muito ruim, a caverna na montanha onde moro é ainda melhor queessa.”

Então pensa “Lá vou eu de novo!”, pendura a tigela nos ombros e vai atélá. Vai desse jeito, os pensamentos mentem para nós o tempo todo. No final sentae pensa “Ôôe, na floresta eu já morei, na caverna eu já morei, já fiz jejum seis,sete dias, já fiz de tudo e não vi benefício algum, me cansei à toa. É melhor largara vida monástica e ir plantar maçãs.” Não é? É melhor deixar de ser monge. Fazisso, aquilo, aquilo outro… cansa: “Chega! Vou deixar de ser monge! Assim nãopreciso depender do trabalho alheio, assim não incomodo ninguém. É issomesmo” e vai de novo. Aí sofre lavrando a terra e fica irritado de novo: “Raios!Não tenho tempo livre, passo o tempo todo fazendo isso e aquilo.”

18 Nome de uma província na região nordeste da Tailândia.

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Muito bom, não? Ordenou-se monge e achou difícil, muitas regras, difícilsustentar, incomoda os noviços19: “Melhor eu mesmo virar noviço: como noviçoposso plantar para comer, posso cozinhar, assim não dependo dos outros. Voudeixar de ser monge e me ordenar noviço.” Vira noviço e aí pode plantar paracomer, vive na floresta, na montanha, mas ainda depende dos leigos, isso édesagradável: “Ainda não posso ter dinheiro20, melhor deixar de ser noviço, assimposso ter dinheiro, planto para comer e posso colocar o dinheiro no banco, é aindamais confortável. Melhor vestir o manto branco21.” Veste o manto branco e vaificando, aí pensa: “Oh! Comer arroz é complicado, comer grama feito as vacas é omais confortável! Agora não vou mais comer arroz, vou comer folhas. Se vieremoferecer arroz, peixe, molho, não aceito, já estou tranquilo, como pouco, comofolhas e raízes da floresta.” Resultado final: morre. Não pratica para subir, praticapara recuar, recuar, recuar. Sabedoria naquele momento não funcionou, não seionde ela foi parar.

Se somos discípulos do Buda… ele ordenou-se monge, ele observavaessas mesmas regras que nós, ele agia assim. Se somos discípulos, mas nãoconseguimos agir como ele, para que continuar? Vamos ter que recuar, recuar,procurando lugares agradáveis. Pensando errado desse jeito não consegueenxergar, pois não tem sabedoria. Está errado, tem uma natureza obstruindo paraque não veja, então recua, recua, até o fim. Quando volta a ser leigo, morre! Nãosei onde fica, não sei onde fica sati, não sei onde vai parar sabedoria, ninguém achama, não sei… É assim, se fosse pobre, seria pobre de tudo, de comida, dedinheiro, de casa, é pobre de tudo. Se a prática é pobre de sabedoria, todo o resto épobre. “Esforço já fiz, melhor largar a vida monástica, melhor ir atrás de esposa,melhor ir jantar”, fica desse jeito. Esses vão fácil porque falta a ferramenta para seproteger, falta sati, falta sabedoria, falta esforço, falta tudo. Desse jeito ficaimpossível. Quando os monges vêm dizer que vão largar a vida monástica, eudeixo ir. Pergunto: “Pensou bem? Pensou direito? Vá pensar.” Eu não posso ajudar

19 Por causa da regra monástica, os monges não podem fazer tarefas simples como cavar osolo ou cortar plantas; esse tipo de trabalho é em geral delegado aos noviços domonastério.

20 Um noviço observa dez preceitos morais que incluem renúncia à posse de dinheiro.21 Tornar-se um anagārika (ver glossário).

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a pensar, apenas mando pensar mais uma vez, alguns mudam de ideia e resolvemficar, alguns não conseguem pensar em nada, então vão embora.

Tudo isso vem das palavras do Darma que conhecemos, não vem de outrolugar, vem das escrituras que estudamos. Mas hoje em dia eles guardam os livros,ninguém os utiliza. Utilizam só para reforçar suas opiniões. Na regra monástica,nos discursos do Buda, está cheio de informações sobre prática, nãodesapareceram e foram para lugar algum. Nós estudamos até ficarmos vesgos,mas tendo estudado não utilizamos o que estudamos. Eu penso: “De onde o mestretirou essa prática? Tirou disso que estudamos.” Estudamos, mas não utilizamos oque aprendemos. É só isso, temos que utilizar, ora essa! Não tem que buscar nadade mais, nosso modo de prática não tem nada de mais, basta praticar de verdade,mas nos deixamos levar por outros interesses. O que aprendemos de correto, sīla,samādhi, paññā, todos falam muito eloquentes, mas não desenvolvem no coração.Isso não é mais útil do que falar sobre qualquer outro assunto.

Hoje em dia no budismo existem várias linhagens. Vai lá, eles fazemassim, vem aqui, eles fazem de outro jeito. Se entendemos o Darma, pode criar aconfusão que for que não nos confundimos. Se conhecemos maçã de verdade, perade verdade, uva de verdade, limão de verdade, conhecemos de verdade todas asfrutas e jogarmos todas numa cesta, todas misturadas na mesma cesta, sequisermos pegar um limão conseguimos pegar, se quisermos pegar uma maçãconseguimos pegar, conseguimos pegar qualquer uma. É Sacca-Dhamma, nãoimporta quem ensine o quê, se o monge entende o Darma, se sabe com certeza, eudigo que ele não balança. Não precisa ter dúvida. Uma é essa história delinhagem, Sacca-Dhamma é outra coisa. Essa linhagem faz desse jeito, a outradaquele jeito… Ainda mais a molecada hoje em dia – cansativo, não? Até sobre oobjeto de meditação brigam feito cachorros. Esse fala “inspirando”, aquele“expirando”, esse “Buddho”, aquele “Dhammo”, “sammā-arahant” e assim pordiante, brigam! Não sabem o que é o quê. Isso é porque não sabem nada sobre acoisa real. Na verdade todas as coisas se reúnem. Sempre que defendemos umalinhagem criticamos as demais. Se não defendemos uma linhagem, não criticamosas outras. O Buda ensinou a estudar todo tipo de coisa, mas tem que conhecer o

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42 - Darma da Floresta

fim, onde tudo isso acaba? Aquilo é só a fala de pessoas, deveríamos ser capazesde ouvir. Por exemplo: a palavra “cão” não é um termo definitivo, também podechamar de “cachorro”. É assim, não precisa se apegar a “cachorro” ou “cão”. Éassim. A coisa real continua no mesmo local que antes. Se entendemos isso, ondeformos entenderemos o significado, eles se unem.

Tem gente que vai praticar e só foca nos pontos de divergência – nessegrupo eles aconselham assim, no outro aconselham assim – depois não sabem oque pegar. Quem pratica “Buddho” se apega até travar, quem pratica ānāpānasati,trava; “sammā-arahant”, trava; “inspirando-expirando”, trava. “Eu estou certo,você está errado.” É sempre assim. Isso não é Darma. Não é Darma verdadeiro. OBuda disse para memorizar, para estudar os seus discursos e memorizar – seconsegue ler – mas é memorizar para largar dos apegos. Mesmo em fazer o bem.Eu entendo que ele disse para praticar o bem, abandonar o mal, fazer o bem, masesse bem, se nos apegamos: “É bom de verdade! Eu sou bom!”, já está errado, jáficou ruim de novo. Se estamos certos podemos dizer, mas se alguém vier e disserque estamos errados, conseguimos largar. Por exemplo: ele diz que estamoserrados, a gente pensava que estava certo, mas conseguimos largar e jogar fora.Segure firme apenas a origem do Darma e entenda que o Darma culmina numúnico ponto. Não tem outro lugar. Se conhecemos o Darma do começo ao fim, atéo ponto final do caminho, eu digo que podemos ir a qualquer grupo e não nosconfundimos. Jogue maçã, limão, jogue numa mesma cesta, pode jogar, quandoqueremos pegar uma maçã, pegamos só a maçã; se quisermos pegar limão,pegamos só limão, não pegamos maçã. Se praticamos o Darma, não importa emque grupo estamos: se conhecemos a verdade do Darma, não erramos.

É algo parecido com a área da sīmā22: em qualquer lugar pode haver sīmāse a pessoa souber enxergar as características da sīmā. Pode ser na água, nafloresta, mesmo aqui pode haver: se conhecemos as características, podemosestabelecer uma. No ponto da verdade, não importa por onde passe, podemos tercerteza, haverá sempre verdade ali. Portanto, se entendemos o Darma, não há nada

22 É uma área designada pela sangha para a realização de cerimônias como a ordenação denovos monges. Os limites dessa área devem ser designados utilizando pontos de referênciageográficos como pedras, árvores, um lago, um rio, etc.

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de mais. Mas na hora de aprender tem que segurar, segurar firme, tem que segurar,segurar sīla, segurar samādhi, segurar paññā como fundação. Tem que segurarfirme. Na verdade isso são expressões que falamos no começo, tem que começarsegurando aquilo.

É como se mandassem carregar uma tora de madeira: “Não largue, hein!”,nós então carregamos. Após um tempo carregando fica pesado, não é? Como fazerpara ficar leve? Largue, jogue fora! Dizem para jogar fora, mas a pessoa que ouvenão quer jogar fora, pensa: “Se eu não segurar isto, o que vou fazer? Se jogar foraesta tora não vou ter madeira, que benefício vai ter?” A pessoa que está com opeso, quando dizem para jogar fora, pensa que não há benefício, que vaidesperdiçar a madeira. Ela não vê o que pode ganhar com isso, então carrega atéquase morrer esmagada. Chega uma hora em que não aguenta mais e joga fora;quando joga fora não sente mais peso, e se não há peso surge a leveza. É isso queganhamos, ganhamos a leveza. Quando vamos pegar pensamos que não dá paranão agarrarmos, não carregarmos, não há benefício em jogar fora, abandonar, maso Buda ensinou a jogar fora, a abandonar para que surja benefício. A pessoa quecarrega a madeira pensa que se jogar fora não vai ganhar nada, carrega até quasemorrer, só quando está a ponto de morrer esmagado é que joga fora, e aí surge aleveza. É isso que ganhamos quando largamos, abandonamos isso e a leveza, obem-estar, surgem bem aqui.

Quando o desejo nos obriga a entender errado, não vemos o quepoderíamos ganhar, então agarramos daquele jeito. Se conhecemos a verdadedessa forma, não há muito o que estudar. Nesse mundo só há uma única coisa, nãohá várias. Nós somos só isso, só corpo e mente, só esses dois. Se formos estudartudo, nunca vai acabar. Se queremos atravessar essa montanha, não dá para pegarum trator e remover a montanha. Vai acabar morrendo antes de conseguir. Pegueum facão e corte uma picada suficiente só para passar. Assim também dá paraatravessar a montanha. Temos essa oportunidade, então fazemos assim. Praticar oDarma é a mesma coisa. Se vemos o Darma, onde formos não há nada de mais.Tudo toma parte no Darma. Quando vemos algo, sabemos se está de acordo com oBuda ou não, se é apropriado ou não.

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Hoje em dia, as pessoas que vão praticar se apegam a isso, se apegamàquilo: “Esta pessoa está certa, você está errado.” Ficam competindo, criam aindamais inimizade, pensando: “Eu estou certo.” O Buda ensinou a largar. Se eu digoque está certo e você que está errado, brigamos. Onde vai acabar isso? Onde vaihaver fim? Eu digo que está certo, você diz que está errado. Se pelo menos eu ouvocê largarmos um lado: “Se estiver certo está certo, se estiver errado está errado,larga.” Não há sobre o que brigar, acaba bem aqui. Eu estou certo, você estáerrado, eu estou certo, você está errado – onde vai acabar? Não tem como acabar,por causa do desejo, discutem até morrer. Se pelo menos um largar, não há briga.A prática é assim.

O Buda ensinou a ter refinamento, contemplar tudo, pois está bem ali. Porexemplo, quando fazemos um exame na escola, eles nos colocam um problema, éum problema e nós temos que resolver o problema. Na verdade, todos aquelesproblemas possuem uma solução, não há exceções; é um problema, mas a soluçãoestá ali, vem junto com o problema. Se a pessoa não sabe, vê apenas o problema,não há solução, então sofre, é difícil, complicado. Se a pessoa conhece, todos osproblemas têm solução. Está ali dentro, está bem ali. Se está pesado aqui, fica levebem aqui, se está escuro aqui, nasce luz bem aqui, se há prazer aqui, haverá dorbem aqui, eles se anulam. Não precisa procurar em outro lugar, tudo é assim, estábem ali.

O Buda disse para praticarmos e descobrirmos sozinhos. Por que ele nãoexplicou o caminho da libertação claramente? Por que não explicou nirvanaclaramente? Essas coisas não podem ser explicadas claramente. O problema nãoestá na pessoa que explica: o problema está na pessoa que ouve, que pergunta.Não se alcança conhecimento no Buda, se alcança em si mesmo. Entender nãovem de outra pessoa, vem de si, tem que praticar para entender bem ali. Aqueleque ajuda só leva até a entrada, “Akkhātāro Tathāgatā” – o Buda apenas aponta ocaminho, ele não pratica no lugar dos discípulos. “Por que é assim? Mostra queele não era inteligente!”, pois essa é a inteligência do Buda. Essa é a inteligênciadele. Qualquer coisa, se virmos só exteriormente, não virmos em si, “quallinhagem está certa”, etc., vamos ficar em dúvida para sempre. É assim em tudo.

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No Darma é assim. Se explicar, as pessoas começam a brigar e, se brigam, veem oDarma? Não veem, se perdem ainda mais, só brigam.

Falando claramente, isso não é o Darma brigando. Não sabem o que é oquê, se fosse Darma poderiam ir a qualquer grupo sem brigar. Não há como brigarsobre o Darma, só se pode ouvir – eles falam, nós ouvimos e contemplamossozinhos. Se estiver certo, há uma prática naquilo; se estiver errado, há umaprática naquilo. Não duvide se esse problema tem solução ou não, não duvide –todos os problemas têm solução. Tudo que nasce na nossa mente – gostar, nãogostar, prazer, dor, etc. – todos os problemas cessam sozinhos quando olhamos devolta para nós mesmos. Sabemos sozinho, sabemos por completo,automaticamente. Senhores, este é nosso verdadeiro lar. Aqui vocês não vãobalançar, nunca. Não importa o que seja, não errarão, não haverá como praticarerrado.

Eu já contei essa história, uma vez vieram me perguntar: “Aqui vocêspraticam samathā ou vipassanā?” Acho difícil responder: se pego uma faca, dessejeito, não consigo separar o lado afiado do lado cego da faca. Ambos têm que estarali. Eu vejo assim, essa faca tem tanto afiado e cego. Você pratica samathā ouvipassanā? Eu acho difícil responder, porque ambos estão juntos nisso, sedesenvolvem juntos, a raiz cresce, o tronco cresce, as folhas crescem junto. Sódifere a localização de cada. Podemos dizer samathā, quer dizer paz, essa paz épor ter se isolado dos objetos mentais, não sabe de nada, foge para a floresta, osobjetos diminuem, joga eles fora. Dessa forma a mente consegue se pacificar, maspor que se pacifica? Porque as impurezas ainda não surgiram naquele momento,se esconderam – é muita burrice. Desse jeito os praticantes fogem continuamente,se obcecam pela paz. Em outros lugares exageram, dizem não que precisa irbuscar paz em lugar algum, paz está aqui, podemos alcançar paz aqui mesmo. Seconsegue fazer, tudo bem, pode falar, mas é difícil fazer. Quando começamos aaprender temos que fazer de acordo com o formato dos livros até conseguir. Nãoé: “Temos que abandonar tudo isso!”, mas no coração não conseguir largar. “Essaimagem do Buda – não faça reverência a ela! Largue isso!”, fala como sefôssemos pegar, alisar, agarrar a imagem, não precisa exagerar a esse ponto.

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Temos que praticar olhando a razão: “É correto isso ou não?” Assim surge deforma harmoniosa, vemos com clareza, então podemos abandonar aquela prática,isso é automático. Isso é difícil, é uma parte da prática que está oculta.

Eu digo: more na floresta, mas não se obceque pela floresta. More nacidade, mas não se obceque pela cidade. Se gosta de ir em peregrinação, vá, masnão se obceque nisso. More no monastério, mas não se obceque pelo monastério.É assim, a verdade é assim. Isso é para entendermos. Veja por si mesmo, pratiquesozinho. Onde quer que consigamos resultados, temos que praticar ali mesmo.Prática é assim. Às vezes, pode-se dizer, conhecimento vem de praticar dessaforma. Por exemplo, somos leigos e temos um amigo, vários amigos, vamos àcasa dele e ele frita um peixe para comermos.

“Eh, de onde você tirou esse peixe?”

“Pesquei com vara.”

Então fritou para nós. Nós entendemos: “Ah, para conseguir peixe tenhoque pescar com vara.” Mais à frente vai visitar um outro amigo, ele estácozinhando um peixe:

“De onde tirou esse peixe?”

“Peguei com uma rede.”

Se assusta: “Eh, aquele teve que usar vara, esse pegou com rede, por quenão são iguais?” Isso é porque não tem sabedoria, se tem sabedoria, de onde veioo peixe não é problema. Basta ter peixe para comer, é o que importa. As pessoasno mundo são assim. Não pense: “Eh, ele usou vara, todos os peixes do mundovêm de pescar com vara”, se for rede, o mundo inteiro pesca com rede, secomprou, todos os peixes vêm do mercado, pois foi dali que ele obteve aquilo.Desenvolver a mente, alguns mestres conseguiram graças a ānāpānasati, outrosconseguiram usando o mantra “Buddho”, alguns contemplaram como forma ementalidade e viram claramente, a mente se pacificou. Quando estudamos comesse, ele nos ensina da mesma forma que ele obteve paz. Como o que vai buscarpeixe, ele nos conta como fez para conseguir peixe. Não devemos nos apegar:

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“Eh, para conseguir peixe tem que usar vara, tem que usar rede, para conseguirpeixe tem que ir comprar, tem que usar um arpão.” Não se apegue a usar arpão,usar vara, usar rede, o significado verdadeiro é conseguir peixe para comer. Bemali o resultado se exprime.

Prática é a mesma coisa, é muito ampla. A maioria de nós pensasuperficialmente, então é difícil nos entendermos. Eu digo que é paccatam, esseDarma é paccatam de verdade. Todas as maldades da nossa mente, quemconsegue ver se não nós mesmos? Toda a felicidade que há em nós, a pureza ou asmentiras que há em nós, quem consegue saber e ver se não nós mesmos? Se nósnão vemos, quem virá resolver nosso problema? Vamos sempre ser ladrões, quemvai nos corrigir? É assim. Então ele ensinava a ver a si, a conhecer a si,“sakkhiputtha”, seja testemunha de si mesmo, não é dever dos outros. Isso é sersuperficial, pegar os outros como testemunha… livros não servem de testemunha,qualquer um que lê consegue dar sermão, é assim. A verdadeira testemunha é oDarma. Não é outra coisa. Por exemplo: fizemos algo errado, deixe o resultadovir. Por exemplo, as coisas das quais não sabemos a causa, vemos e deixamosestar, não estamos perdendo nada porque pelo menos estamos vendo o malefíciodo nosso carma – isso é mais útil.

As pessoas vêm até aqui mas eu não tenho nada de mais, vivo quietominha vida na floresta, em reclusão. Gosto de viver na floresta, então vivo aqui,em seguida os demais monges também vieram viver aqui. É algo bom. É dever deum monge viver desse jeito. A forma ideal é essa, já as outras formas, depende dasabedoria de cada um. O Buda ensinava a não se obcecar. Pratique, mas não seobceque, onde quer que viva, não se obceque. É só isso, assim encontra bem-estar.O que é bem-estar? Vivendo num certo local, ninguém vem nos incomodar, nosdar bronca, nos criticar, então temos bem-estar. Não se apegue a isso. Se acontecerde irmos a um local onde nos criticam, vamos ter bem-estar? As impurezasmentais estão escondidas. Isso é bem-estar por ter o que deseja, ter o objetomental que lhe agrada. Mas em alguns lugares teremos objetos mentais que nãonos agradam, vamos sentir bem-estar? Isso é muito importante. Hoje não temosdoença, então podemos dizer que estamos bem; amanhã, mês que vem, ficamos

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doentes, por exemplo, surge dor no corpo ou na mente, vamos conseguiraguentar?

Buscamos reclusão para lutar, nos isolamos para lutar; se não estamoscientes disso, fugimos o tempo todo. Aqui não há paz, então foge; aqui não há paz,foge de novo; aqui não há paz, foge, pois se ficar vai sofrer. Acha que sofrimentoé inútil. Já eu, penso que sofrimento é útil, é a Nobre Verdade do sofrimento, senão encontrarmos sofrimento, não lutarmos com ele, não o entenderemos. Se vê osofrimento e foge sempre, sofrerá sempre. É assim que vai ser, vai continuarapanhando da felicidade e do sofrimento. Mas se encontrar algo ruim e nãoconseguir aguentar, não fique ali – fuja, admita derrota. Fuja, mas fuja paravencer, não fuja para ser derrotado, fuja para resolver o problema, para aprender evoltar para lutar mais uma vez. É assim.

Qualquer coisa que vemos, recolhemos e guardamos, colocamos onde égarantido: é impermanente, é sofrimento, é anatta. Acabou. Todos os Darmasacabam ali. Acabou o valor, vira um monge sem valor, sem veneno, sem perigo,não está preso a mais nada. Isso leva à sabedoria, com certeza, vê a corrente donirvana de verdade. Quando vê um problema, a solução surge sozinha, nascesabedoria ali mesmo, é anicca, dukkha, anatta, sempre. É bem aqui, não precisaespecular: “Como é o nirvana? Será que é felicidade ou sofrimento?”; tudo sereúne aqui, acaba bem aqui. É assim que os monges têm que praticar para não seperderem; se usarem isso, não se perdem. Isso protege contra se perder. Com otempo vai contemplando até não ver mais nada, vê só nascer e desaparecer, vê sóanicca, dukkha, anatta, então a felicidade e o sofrimento ficam sem valor. Ficamsem valor. Para que procurar mais? Os apegos se encerraram. Só sobra o Darmapuro, só há nascer e desaparecer, nada de mais. Se falamos assim temos ondesegurar, essa é a fundação.

Isso se chama praticar o Darma. Eu falo tal qual contemplei, não tenhomuito estudo, não sei muito, não tenho nada de mais; em geral vivi na floresta esempre tive essa sensação. Mesmo quando ensino meus discípulos estrangeirosque são formados, eles têm diploma de mestrado mas não vou correndo atrás doconhecimento deles, eu falo de acordo com a linguagem que conheço: “É assim,

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assim…”, falo desse jeito, fica a critério de cada um saber utilizar, eu ficotranquilo. Não precisa de toda essa confusão com esse ou aquele método, falo deforma resumida sobre fazer a visão ficar correta. Se estiver correta, acabou anecessidade de consertar problemas, se não há necessidade de consertarproblemas, não há o que fazer, se não há nada, largamos, é a natureza do Darma.Se fazendo algo sente preguiça, oponha-se à preguiça e vá fazer aquilo, vamosconhecer o Darma, a prática, o que fizermos será Darma, não vamos ficar semDarma. Se fazer algo é errado, procuramos evitar, temos medo de errar, então nãofazemos: isso ainda não está puro, ainda há desejo de fazer aquilo. Enquanto nãoenxergarmos que não é nosso dever fazer aquilo, ainda haverá desejo.

Quando não houver mais desejo, já não haverá mais “abandonar”, já nãohaverá “praticar” – acabou, só isso. Pode chamar do que quiser, quem quiserchamar do quê, que chame! O sol é assim, pode chamar do que quiser, o nome éapenas uma convenção. Quando as pessoas nascem botam um nome “Senhor X,Senhor Y”, mas na verdade ali não há nome algum, é assim. É assim a prática,quem praticar seguindo dessa forma não fracassa! Os monges estrangeiros vêmpedir para morar aqui, eu os recebo, mesmo dos demais grupos, por exemplo ogrupo Dhammayuta, pedem para viver comigo, eu não proíbo, só pergunto: “Vocêpratica dessa ou daquela forma? Seu professor não se opõe? Então pode ficar, masse vai ficar aqui, vai ter que praticar do nosso jeito.”

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Duas pontas da mesma cobra Discurso dado por Ajahn Chah a um grupo de leigos em Wat Pah Nanachat

… podemos dizer que a fé, a crença firme dos monges estrangeiros, émuito boa, muito boa. A ponto de nem conhecerem o idioma tailandês, mas elesaguentam, se esforçam. São pessoas que têm fé. Encontrar fé é raro, encontrar fé édifícil, encontrar quem leve a sério é difícil. Mas acho que no nosso país osmonges são bons, eles respeitam o modo de prática, mas levar a sério – quase nãolevam. Os leigos em Ubon também, é só verem os monges e pedem os preceitos 23,parecem famintos. Mas quando damos eles não levam, ou levam para ir brincar,levam os preceitos para ir brincar. Se nós estamos por perto vêm pedir como seestivessem famintos, mas quando damos, jogam no lixo. Sempre foi assim.

Uns dias atrás as comunidades de várias filiais24 vieram me visitar, váriascentenas de pessoas. Conversamos sobre isso e perguntei: “O que vocês queremaqui? Eu venho ensinando já faz quase trinta anos. Várias filiais vieram se reuniraqui hoje, hoje eu enfim quero perguntar, pois nunca perguntei. Vocês vêm ouvirDarma, vêm praticar, eu me esforço para ensinar aqui há quase trinta anos. Vocêsalguma vez já se decidiram ou já fizeram, alguma vez observaram os cincopreceitos de forma regular?” Perguntei: “Quantas pessoas se decidiram a serupāsikās25 e observar os cinco preceitos pelo resto da vida? Tem alguém?” Todomundo ficou olhando para os lados… Não tem quem tenha coragem, mas pedemos preceitos só para ir jogar no lixo. Pedem de novo e de novo. Pobre gosta depedir, não é? Pobre gosta de pedir; pede, mas não toma conta, então continuapobre como antes. É só verem os monges e: “Me dá, me dá!” Esse negócio é sópedir, não precisa cuidar, não precisa fazer nada em troca. É como as pessoas quesão pobres por preguiça: pedem sempre.

23 Na Tailândia, em quase toda ocasião religiosa, é costume que os leigos peçam que osmonges lhes deem os cinco preceitos. Quase ninguém tem real intenção de seguir os taispreceitos, é feito apenas como cerimônia.

24 Wat Pah Pong possui centenas de filiais dentro da Tailândia e dezenas fora do país.25 Uma discípula leiga (o gênero masculino da palavra é “upāsakā”).

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Naquele dia eu perguntei mas não tinha quem quisesse os cinco preceitos.Mostra que não enxergam nada de mais. Eu vi aquilo e: “Oh, que tristeza!” e falei,naquele dia eu falei: “Eh! Juntando todo mundo aqui… Achei que tinha genteaqui, perguntei e não tem gente, só tem resto de gente! Neste salão inteiro só temresto de gente.” Dei uma bronca para ficarem com vergonha. Se não fizer assimnão vão ter vergonha, ainda vão pedir de novo e de novo. É difícil mudar. Nossatradição é fazer assim, normalmente é assim. Pede e fica ainda mais pobre, pede enão trabalha, pede e não cuida, vê alguém vindo e pede. Quanto mais pede, maispobre fica. Não possui nada, não possui nada em seu próprio corpo e mente, entãotem que pedir. É desse jeito.

Quer dizer, estão praticando, mas falta prática. Conseguem estudar,conseguem saber, mas falta prática. Falta muito. Quando ouvem isso devem sentirvergonha, não? Somos os verdadeiros donos do budismo, não? Mas os discípulosque vêm do exterior saem em disparada na nossa frente, não é? Podem olhar. Elesvêm treinar aqui, o ambiente deles muda de várias formas – eles aguentam. Acomida muda mais que tudo – eles aguentam. Muda tudo, até mesmo a língua,muda tudo, muda, mas eles se esforçam. Me lembra um ditado antigo: “Se nãoestiver em falta, não deseja.”; não está faltando, então não deseja. Abrem os olhose veem monges, mas veem só com os olhos de fora; com os olhos de dentro nãoenxergam. Então sentem-se cheios26, como as coisas que temos em casa: se nãoestiver faltando, nos sentimos cheios, porque temos. Aqui é a mesma coisa,enquanto há a sangha na Tailândia nós estamos cheios, cheios de quê eu não sei –cheios de vento ou o quê, eu não sei. Ficam felizes com isso.

Outro dia fui até a capital, fui até Bangkok, encontrei com uma pessoaque é funcionário publico. Enquanto vivia aqui nunca se interessou pela sangha,mas quando foi morar no exterior ficou com fome. Ficou com fome – não viamonges, queria ver os monges. Foi visitar um monge discípulo meu que vive emLondres, um monge ocidental. Ficou impressionado e sentiu que naquela ocasião

26 Em tailandês existe uma palavra específica para quando se come até ficar satisfeito: ออพม.Quando alguém está “ออพม”, essa pessoa já não sente mais fome. O “cheio” usado nestetrecho se refere a isso.

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foi a primeira vez em que viu o ensinamento do Buda, entendeu o ensinamento doBuda. Esse tipo de coisa acontece por causa da falta de interesse.

- neste ponto houve uma pausa e então Ajahn Chah começa o discurso formal -

Saudações a todos que tiveram a determinação de vir aqui hoje fazermérito, tendo o Sr. Comandante27 como líder que trouxe todos vocês aqui parafazer mérito. Portanto hoje Wat Nong Pah Pong e Wat Pah Nanachat possuem umvínculo. Wat Nong Pah Pong realizou a Mahā-Pavāranā28 e hoje realiza acerimônia de kathina29. Terminada a kathina esperei um bom tempo, pois o Sr.Comandante me convidou desde aquela época e não esqueci, mesmo tendo outrosdeveres, me esforcei para vir nos reunirmos aqui e trouxe vários discípulos, tantomonges tailandeses como monges estrangeiros, misturados, todos vieram se reuniraqui.

Hoje me senti bastante cansado, mas ainda tive que sair. Para quê? Parareceber os visitantes. Eles vêm de manhã, de noite e ficam bastante tempo. Eu osensino. De manhã, desde após a refeição, me sento ali e os visitantes vêm semparar. Demorou até eu poder sair de lá e vir até aqui. O tempo vai passando e aforça do velho vai diminuindo, diminuindo. Mesmo a voz vai diminuindo, ofôlego vai diminuindo. Portanto hoje estou usando a força do coração, porque oSr. Comandante se esforçou em vir aqui e eu tenho que prestigiá-lo. Então peçoque prestem atenção, eu vou ensinar mas por pouco tempo, não muito. Mas eutrouxe vários discípulos. O pessoal de Korat30 aguenta ouvir se eu mandar osmonges ensinarem hoje? E eu fico apenas de líder, falo só um pouco.

27 Em Ubon há uma base militar. Provavelmente a pessoa referida é um membro daaeronáutica tailandesa.

28 Cerimônia realizada ao fim do retiro das monções, onde os monges convidam uns aosoutros a apontar qualquer falta ou mau comportamento que tenham cometido durante operíodo.

29 Cerimônia realizada ao fim do retiro das monções, onde a comunidade monástica devecosturar e tingir um manto e o oferecer como prêmio a um dos monges que tenha bomcomportamento, como forma de reconhecimento de suas nobres qualidades.

30 Nome de uma província tailandesa.

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Terminadas as atividades em Wat Pah Pong, a kathina, vim aqui. Este anoa kathina foi muito tranquila, pois as pessoas só fizeram mérito, não fizeramdemérito. Fazer demérito é mais difícil, mais complicado. Este ano fizemos méritode verdade. A comida que as leigas ofereceram aos monges era vegetariana, entãofoi tranquilo. Mas não teve muita gente hoje à noite. Juntando todos deve ter sidoumas quatrocentas pessoas. Mas só tinha “gente”. Só tinha gente que veio ouvir oDarma, não tinha gente que veio à toa. Silencioso e pacífico, pois não teve nada,não teve música, gincana, teatro, não teve nada. Começamos convidando osmonges novatos que vieram se ordenar comigo este ano, por volta de vintemonges. Pedi que eles subissem e falassem sobre como se sentem em terem seordenado em Wat Nong Pah Pong. Um por um, todos eles falaram e durou porvolta de duas horas. Além disso, nos reunimos só para ouvir Darma. Eu sinto queeste ano nossa prática de mérito rendeu mérito de verdade. Foi tranquilo. Naqueledia era o uposatha. Normalmente no uposaha as pessoas que estão observando ouposatha-sīla31 não jantam, então foi tudo bem, não teve sujeira e bagunça. Bom.Foi bem em todos os aspectos.

O Buda gostava que mérito fosse feito de maneira simples. Não precisacomplicar, é simples por natureza, faça com simplicidade, faça correto, faça comtranquilidade, não precisa se aborrecer. Ontem à noite eu liderei centenas depessoas, mas sinto que foi tranquilo, não houve nenhum problema. Isso é fazermérito de verdade e faz nos alegrarmos. Mérito é alegria naquilo que fizemos: ascoisas que fizemos estão livres de maldade, as perversidades não poluem. Mesmoantes de fazer há alegria, enquanto fazemos há alegria, quando terminamos defazer ainda temos alegria. Essa alegria é o que o Buda chamava de mérito, o quenós encontramos frequentemente é a alegria em fazer mérito: mérito é a alegria.

Mérito hoje em dia… Existem vários tipos de alegria. Às vezes ficamosalegres com coisas erradas, por nos enganarmos. Ficamos alegres por coisas quenão sabemos, então ficamos alegres. Um exemplo: hoje as pessoas de Koratvieram, até mesmo o Sr. Comandante. Quando entrou no carro a carteira que elehavia posto no bolso caiu. O Comandante não sabia, então veio com alegria, ele

31 Entre os oito preceitos do uposatha-sīla há um que proíbe se alimentar após o meio-dia.

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pensou que o dinheiro ainda estava lá. Na verdade ele deveria já estar triste desdea hora em que a carteira caiu. Nesse caso, ele está feliz por ignorância. Quando elechega ao Wat Pah Nanachat, ele olha o bolso e: “Oh! Me lasquei!” Se assusta,resmunga, não é? Deveria se assustar desde a hora em que a carteira caiu do bolso.Aquilo ainda não gerou efeito pois ainda não sabemos. Às vezes, coisas que nósnão sabemos trazem alegria, tem alegria por não saber, por entender que nossodinheiro ainda está ali e então está alegre. Mas quando sabe a verdade, quandochega aqui, a carteira sumiu e a mente fica perturbada. Essa é uma alegriaequivocada.

Fazer mérito é a mesma coisa, o Buda ensinou a fazer para que hajaalegria. A mente é algo muito importante. Os sábios então ensinavam que ocoração do ensinamento do Buda não é nada de mais, tem dois ou três itensapenas. Eles ensinaram: não fazer nenhum tipo de mal através de corpo, fala emente, isso é correto. “Etam buddhāna-sāsanam”, esse é o ensinamento do Buda.Esse é o coração do ensinamento do Buda. Esse é um aspecto. O segundo é fazerque nossa mente seja meritória, boa, isso também é “Etam buddhāna-sāsanam”;esse é outro aspecto do coração do ensinamento do Buda. “Sacitta-pariyodapanam”, purificar nossa mente é “Etam buddhāna-sāsanam”; esse é oensinamento do Buda, é o coração do ensinamento do Buda. Só três aspectos. Nãosão muitos, só três frases. Temos que pegá-las e colocar dentro dos nossoscorações. Que esses três aspetos estejam em nossos corações. Nossos coraçõesserão o coração do ensinamento do Buda. Sentado será o ensinamento do Buda,andando será o ensinamento do Buda, deitado será o ensinamento do Buda. Otempo todo esses três aspectos. O Buda queria isso, é o que se chama BuddhaSāsana.

A ciência do budismo é a mais elevada de todas. Quer dizer, o saber nobudismo tem que estar livre de sujeira, fé cega, tem que estar limpo. Enquantofazemos algo nos sentimos bem, ao terminar nos sentimos bem. Isso fica firme emnossos corações. Quando abandonamos o mal, alcançamos o coração doensinamento do Buda. Quando abandonamos o mal nossa mente fica tranquila,não há confusão. Aquela é uma mente limpa, pura, isso é mérito, bondade

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nascendo bem ali, é paz nascendo bem ali. Pegamos o coração do ensinamento doBuda e sobrepomos com o nosso coração. Em seguida nosso coração se purifica,pois não há nada, só há coisas corretas. É o que se diz “a mente estar limpa”.Quando essas três coisas se reúnem na mente de uma pessoa, ela terá alcançado oensinamento do Buda. Não esquenta, não se agita, isso é o que se chama mérito,inteligência em fazer mérito. Quando faz mérito fica alegre com inteligência, livrede sujeiras. Portando, mérito deve ser feito com sabedoria, inteligência. Ainteligência faz ser limpo, sem sujeira.

A maioria de nós budistas faz mérito só por fazer, mas não alcançamos afundação do ensinamento do Buda, fazemos mérito sem inteligência. Tudo éassim. Portanto mérito não é muita coisa, mas é algo correto. Abandonar o mal éque é importante, não é? Abandonar o mal é mais importante. Abandonar o mal élimpar o local, como quando vamos construir uma casa. Quando vamos construiruma casa, o terreno é muito importante. Se a fundação for firme e duradoura,aquela casa vai ser forte, firme e vai durar muito tempo, esse é um tipo defundação. Fazer mérito é a fundação da nossa mente, faz nossa mente se pacificar,pois se livra de defeitos. Mesmo sentado é mérito, deitado é mérito, o que querque faça é mérito. Faz mérito surgir na mente. Mérito não tem que surgir em outrolugar, tem que surgir na nossa mente por termos tirado a sujeira para fora, o malpara fora, o que há de errado para fora. É só isso, o mérito surge ali.

Quando nós simplesmente fazemos mérito sem remover o mal, surgeconfusão, bagunça, de várias formas. Eu já observei, a maioria dos que vêm fazeroferendas vêm procurar mérito – vêm em vários automóveis – mas, olhando comatenção, é verdade que vieram fazer mérito, mas não abandonam o mal, estáerrado bem aí. Não alcançam a fundação do ensinamento do Buda; quando fazem,não surge benefício no coração. Quando não surge benefício no coração, não hásabedoria, nossa prática está defeituosa. Que isso fique de lição de casa para todosvocês. Não é longe, não é muito, só isso já é suficiente. Abandonar o mal é ocomeço.

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Portanto quando formos fazer mérito, como hoje, o Comandante levantouas mãos e disse “Mayam banthe tisaranena saha pañca sīlāni yācāma”32, o que éisso? Isso é tirar a sujeira para fora do coração – não matar seres, não roubar, nãoter comportamento sexual impróprio, não mentir, não falar mal dos outros, nãobeber. Tirando a sujeira é possível não ficar limpo? A mente fica limpa, comcerteza. Os antigos chamavam isso de sīla, colocavam bem ali. Limpar é afundação, é sīla. Quando é sīla, samādhi surge: paz nos objetos mentais por estarlivre de confusão. Quando nasce paz, sabedoria vem junto. Quando sabedoriavem, entendemos todas as coisas que surgem. A fundação do ensinamento doBuda é sīla, samādhi e paññā. Essas três coisas são a fundação, o coração, é o queé importante no ensinamento do Buda. Quando essas três coisas surgem, já é ocaminho, é sīla, samādhi, paññā, essas três coisas resumem o ensinamento doBuda. O ensinamento do Buda se resume em sīla, samādhi e paññā. Esse é ocaminho que nós temos que trilhar.

Quando nós praticamos dessa forma, nossa sensação muda. Nós sabemoso que é sofrimento, vemos sofrimento, sabemos a causa do sofrimento,conhecemos o cessar do sofrimento, conhecemos o modo de prática para cessar osofrimento. Só isso, saímos por esse caminho. As pessoas não-iluminadas, querseja na época do Buda, quer seja nos dias de hoje, têm que sair por esse caminho.Tem que conhecer o sofrimento. Sofrimento vocês já devem ter encontrado. Outrodia eu conheci uma pessoa importante que veio me visitar, foi só ir conversando esurgiu sofrimento no coração. Ele estava sentado bem na minha frente e aslágrimas começaram… ping, ping, ping. Eu não sabia o que era. Não vi nenhummachucado, não tinha nada, e as lágrimas correndo. Elas vêm do sofrimento, osofrimento as espreme para fora. Eu pensei: “É isso, enquanto as lágrimas nãoacabarem, não acaba o sofrimento.” Sentado bem ali e as lágrimas correndo dessejeito! Eu me perguntei: “Eh, essas lágrimas saem de onde? Deve ter algoespremendo para elas saírem, as lágrimas jorrando desse jeito…” Eu nãoperguntei, mas vendo o evento sabemos – se há lágrimas, tem que haversofrimento. Mesmo sendo uma pessoa importante, sofre por dentro, sofre namente. Tem dinheiro, bens, status, mas ainda sofre. O sofrimento surge baseado

32 Versos recitados pelos leigos quando pedindo os cinco preceitos aos monges.

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em quê? Baseado em insatisfação. Mesmo tendo coisas muito boas, ainda não estásatisfeito. Falta aquilo que quer – então sofre. Então ele me perguntou:

“Eu estou sofrendo, como posso resolver isso?”

“Você sabe como é esse sofrimento? De onde ele nasce? Você sabe? Vocêconsegue traçar? Não tenho como saber em seu lugar, você tem que saber sozinho.Antes de nascer o sofrimento, qual foi a causa? De onde ele surgiu? Olhe na suamente agora, você vai ver sozinho. Não precisa ir procurar em outro lugar.” Eulevantei o cuspidor33 e disse:

“Desse jeito não é pesado, mas é só levantar que ele começa a ficarpesado, é só largar que some o peso. Por que é assim? Se levantarmos o cuspidorele fica pesado porque fomos levantá-lo, então surge o peso. É fácil de enxergar.Estando pesado, qual é o método para que o peso desapareça? Experimente largar.Fica leve, não é? Por que fica leve? Porque largamos o cuspidor.” Eu peguei ocuspidor de novo e expliquei mais uma vez: “É assim, o sofrimento é assim. Nãoestá em nenhum outro lugar, não procure em outro lugar, o sofrimento está bemaqui. Pense nisso.” Eu expliquei por um período curto, as lágrimas desaparecerame ele voltou a conversar comigo com voz normal. “Caso no futuro o Sr. não estiverbem e quiser consultar os monges, procure a causa até encontrar. Procure até nãohaver sofrimento.”

Fazer mérito, ouvir o Darma, é para resolver o sofrimento, resolver oproblema. Nesta vida em que nascemos existe sofrimento, mas quando surge osofrimento, ficamos com medo. O Buda ensinou para quando o sofrimento surgir,não ter medo dele, conhecer o sofrimento. Normalmente vamos atrás dosofrimento, gostamos do que é sofrimento, mas quando surge o sofrimentoficamos com medo! Na época do Buda era a mesma coisa. As pessoas sofriam eentão iam procurar o Buda. Quando estão com calor vão para a sombra, se nãoestiverem com calor ficam debaixo do sol, vão onde querem. Todo mundo éassim.

33 กระโถน – Uma espécie de cesto de lixo pequeno. Serve para cuspir, jogar lixo e, às vezes,urinar.

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Portanto sofrimento é Sacca Dhamma. Todo mundo já passou porsofrimento, mas não sabem como desfazer o sofrimento, não sabem de onde elesurge. Então pensam, pensam, e no final choram – não conhecem a saída. Eu digoque tem que investigar. Tem que investigar, tem que haver um caminho pararesolver o problema, porque o Buda ensinou que o Darma desfaz o sofrimento daspessoas. Resolve de verdade o sofrimento que nasce do coração das pessoas, masnós não sabemos quando o sofrimento surge. Temos que traçar de onde é que essesofrimento vem e descobrir a forma de resolver. Então ele declarou sofrimentosendo Sacca Dhamma – Dukkha Sacca, Samudaya Sacca, Magga Sacca, NirodhaSacca34 O Buda saiu por esse caminho, todos os sāvakas saíram por esse caminho,todos as pessoas têm que sair por esse caminho.

Isso é uma Nobre Verdade; portanto, quando surge o sofrimento, nóstemos que refletir para entender com inteligência: “isso é só sofrimento”. Naverdade o sofrimento é contínuo, mas não estamos cientes disso. Onde estamosagora é só sofrimento. Quando surge o sofrimento, chamamos de sofrimento;quando o sofrimento desaparece, chamamos de felicidade. Não enxergamosclaramente, pensamos que é felicidade só porque o sofrimento desapareceu, masquando desaparece, reaparece em seguida e sofremos. Sofrimento surge edesaparece e então é felicidade e agarramos. Agarramos o sofrimento, agarramos afelicidade, pensamos que são coisas distintas. O Buda ensinava: só há sofrimentosurgindo e desaparecendo, não há nada além isso.

Pode investigar, vai que ver que é assim. Sofrimento surge e sofrimentodesaparece. Se nasce, pensa: “Isto é sofrimento”; se desaparece, pensa: “Isto éfelicidade”, mas na verdade é só sofrimento nascendo e desaparecendo e nósagarrando aqui e ali. Só agarramos sofrimento, nada mais. Mas nós dizemos quesão vários: às vezes é como felicidade, às vezes é como sofrimento. Nósdesejamos felicidade. Tendo desejado felicidade, quando ela desaparece, osofrimento surge novamente.

34 A Nobre Verdade do Sofrimento, a Nobre Verdade da Causa do Sofrimento, a NobreVerdade da Cessação do Sofrimento e a Nobre Verdade do Caminho que Leva à Cessaçãodo Sofrimento.

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A fundação do ensinamento do Buda é a paz. Estar livre dessa felicidade,desse sofrimento, isso é a paz. Desejamos felicidade, mas felicidade é umsofrimento refinado que nós ainda não enxergamos. Quer seja felicidade ousofrimento, ambos… Pensamos: “Eu gosto de felicidade, quero felicidade, precisoprocurar felicidade.” Pensamos que felicidade não tem um lado ruim, mas não éassim. Felicidade é a número um, ela mesma já é sofrimento. Quer seja felicidadeou sofrimento, são como uma mesma cobra. Sofrimento é como a cabeça dacobra, felicidade é o rabo da cobra. Vemos que essa cobra é longa, o rabo estáaqui, a boca lá longe e pensamos: “Eh, a boca é perigosa, o rabo não tem perigo,não tem boca desse lado. Não vou chegar perto da boca senão vou tomar umamordida, vou tomar uma picada! É melhor pegar pelo rabo porque a boca estádaquele lado.” Mas, quando pegamos, o rabo ainda é rabo de cobra, não é? Acobra se vira e vem morder, é sofrimento do mesmo jeito, porque a cabeça dacobra está na cobra, o rabo da cobra está na mesma cobra. Mas nós não sabemosdisso, não sabemos que felicidade é assim, sofrimento é assim. Na verdade elesestão na mesma cobra. Nós só construímos sofrimento, só isso.

Por isso o Buda ensinava: não há muito mais além de sofrimento surgindoe sofrimento desaparecendo, só isso. Não há nada além disso. Se procuramos afelicidade é por pensarmos que felicidade é bom, é bom demais, pois então geraainda mais sofrimento, porque não vemos que é sofrimento. Quando se volta eolha o Darma do Buda: “Ah, essa felicidade não é paz.” Felicidade e sofrimento,se olhar, são iguais, são o mesmo, mas em uma ocasião se chama felicidade e emoutra se chama sofrimento. Portando, caso deseje felicidade, quando estadesaparece, surge sofrimento. Eles são o mesmo dessa forma. Então o Budaensinou para termos paz. Tendo paz, quando o sofrimento surge, sabemos: “Eh,não é isso, larga!” Entendemos o que é. Quando a felicidade surge é a mesmacoisa: não se apegue, é apenas algo comum. Temos que construir bastante essecarma. Construir, construir até ficar grande e alto, alto até ultrapassar essafelicidade e sofrimento. É o que se chama paz.

Quando a paz já se desvinculou da felicidade e do sofrimento, essa é afundação do ensinamento do Buda de verdade. Que isso fique de lição de casa

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para todos vocês. Vá refletir se é verdade ou não, porque neste Darma o Buda nãoelogiou as pessoas que acreditam nos outros, ele não elogiou. Ele elogiou serpaccatam: acreditar com sabedoria que nasce em nossa própria mente, por isso eledizia paccatam – saber por si mesmo. A maioria das pessoas vão ouvir os mongesensinarem ou vêm me ouvir. Algumas pessoas devem acreditar em tudo, mas eupeço licença para proibir: não acredite em tudo, não desacredite, não acredite nemdesacredite, deixe de lado até que sabedoria surja. Em uma ocasião, Sāriputtaestava ouvindo o Darma. O Buda foi explicando e num certo momento eleperguntou: “Sāriputta, você acredita em mim?” Sāriputta respondeu direto: “Euainda não acredito, Senhor.” O Buda disse “Muito bem Sāriputta, os sábios nãoacreditam facilmente. Eles investigam antes de acreditar.” Não é? Mostra quedevemos ver por nós mesmos, o Buda deu permissão. Se fosse hoje em dia ealguém dissesse: “Eu não acredito”, o professor deve ficar com raiva, não? Se amãe perguntar: “Filho, você acredita em mim?” e ele responder: “Não acredito”,será que a mãe fica com raiva? Se o pai perguntar: “Filho, você acredita emmim?” e ele disser: “Não acredito”, será que o pai fica com raiva? Isso o Budafalou com cordialidade: “Você acredita, Sāriputta?”, e Sāriputta respondeu:“Ainda não acredito.” Ele concordou: “Muito bem Sāriputta, um sábio não deveacreditar facilmente, ele investiga com razão antes de acreditar.” É assim, elequeria que nós conhecêssemos nossa própria mente, portanto tenham interesse,tenham cuidado.

Todas as coisas que temos em nós, olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo,estão sob a mente. Por isso o Buda ensinou que essa mente é algo importante.Tenham cuidado com suas mentes. Você é bom ou ruim por causa da sua mente,portanto tenha cuidado com a sua mente. Essa mente é mais venenosa do quetodas as cobras venenosas. Mas se o veneno se acabar, ela se torna mais pacíficado que qualquer outra coisa. Portanto essa mente é algo muito importante. Quandofalamos, a mente chega primeiro. Quando fazemos algo, a mente chega primeiro.Qualquer coisa, a mente chega primeiro. Portanto o Buda declarou que o assuntodo ensinamento dele é a mente, é sobre a mente, é o ensinamento da mente.

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Eu vou contar, eu tenho um discípulo estrangeiro, ele formou-se empsicologia35. Formou-se em psicologia e veio para a Tailândia, ordenou-se comigoem Wat Pah Pong. É psicólogo, tem conhecimento, passou no exame, formou-seem psicologia. Mas… sofre o tempo todo. O salva-vidas morreu afogado! Apessoa estudou sobre a mente, se formou em psicologia, aprendeu apenas a teoria,mas não teve efeito na mente. Ainda não aprendeu, ou não sofreria o tempo todo.Tendo se formado em psicologia, deveria conhecer sua própria mente. Esse é umexemplo: a mente foi criando problemas constantemente até que desistiu da vidamonástica. Isso é se formar em psicologia de acordo com a teoria: o livro é de umjeito, os textos são de um jeito, a realidade é de outro. Portanto o Buda ensinouque aprender o Darma é bom, mas não é o mais elevado. Conhecer o Darma ébom, mas não é o mais elevado. Praticar o Darma é bom, mas não é o maiselevado. Ver o Darma é bom, mas não é o mais elevado – o Buda jogou tudo fora.O que é que faz ser o mais elevado? Ser Darma. Se for Darma, a mente é Darma,todos os Darmas se reúnem na mente. Eko Dhammo, só existe um Darma: amente. Portanto a fundação do ensinamento do Buda é a mente. É o que se chamaBuddha Sāsana. Por isso eu sou capaz de dizer que a ciência do Buda é a ciênciamais elevada, é a ciência que faz as demais ciências se completarem em seguida.Possui tanto conhecimento quanto bondade, possui sabedoria. As demais ciênciaspossuem conhecimento, mas não possuem bondade, é essa a razão.

Por isso peço a todos que vieram fazer mérito aqui hoje: estejam cientesde que a mente é a causa. Tenham cuidado com suas mentes, estejam cientes. Porexemplo: neste momento estamos felizes. Quem nos fez ficar feliz? As orelhas ouos olhos? Pode olhar: foi a mente. Hoje estamos com raiva, por quê? Vocêssabem? Os olhos estão com raiva ou as orelhas? Pode olhar: o coração não estámuito bem, por quê? Por causa da mente. Tal como o Buda ensinou a ensinar amente, quando tivermos ensinado nossa mente e ela tiver aprendido, a felicidadenos seguirá. Olhos, ouvidos, nariz, língua e corpo são secundários; a mente é oque é importante. Portanto peço que todos vocês que vieram aqui estejam atentos:Cuidado com a mente. Esta mente é capaz de gerar os piores males, esta mente é

35 Em tailandês, a palavra “psicologia” se traduz “ciência da mente” (จอตศาสตรย). Portanto aironia: uma pessoa expert em “ciência da mente” ainda sofre!

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capaz de gerar os maiores benefícios. Se agirmos de forma correta, gera muitobenefício.

Mente todo mundo deve ter, não é? Mas ela não tem forma. As pessoassabem o que é a mente? Todos vocês devem ter trazido suas mentes aqui hoje, masse perguntar onde está a mente, fica difícil falar. Olhe por este ângulo: quem é queprestou atenção no ensinamento que dei hoje? Quem é que prestou atenção? Quemé essa pessoa que prestou atenção, onde ela está? Saiba isso, você vai entender queaquilo que prestou atenção é nossa mente. É o que nos faz correr para cima e parabaixo, nos faz bons ou ruins, nos faz felizes ou tristes, é por causa dela. Portantovocês cuidem disso para que possam ver claramente o que se chama “o coração doensinamento do Buda”. Se nós entendermos isso, tudo fica mais leve.

Mas nós aqui, bastar ensinar para respeitar sīla e já é difícil. “Nãoagridam uns aos outros, não tenham inveja”, só isso e ninguém consegue enxergar.Se for para ter cuidado com a mente, é ainda mais difícil. O começo é sīla: quenós tenhamos sīla! Como este gravador aqui, o Sr. X deseja muito ter essegravador, mas pertence a outra pessoa, então ele devolve, tem medo que roubarseja maldade – só isso já é suficiente. Não tem coragem de levar, não tem coragemde roubar – só isso já é Sīla-Dhamma. Não precisa roubar, pode usar o gravador àvontade. Esse é um exemplo e há outros. Quem ver isso já viu o suficiente: temque abandonar, tem que saber aguentar.

“Praticar” é praticar o Darma. “Aguentar” é querer fazer o mal, mas tentarensinar a mente a não fazer. Isso é prática. Pratique continuamente até a menteficar hábil, até que ela conheça certo e errado, maldade e bondade, benefício emalefício. Eu ensino as pessoas de um jeito fácil, mas é um pouco difícil. Como éque ensino? Aonde quer que eu vá eu escuto: “Não sei nada, não consigoaprender, não sei estudar.” Eu digo: “Não precisa, pode parar. Quando for praticarrepita este mantra fácil para conseguir enxergar: ‘Faz o bem, recebe o bem. Faz omal, recebe o mal’, antes de ir dormir. ‘Faz o bem, recebe o bem. Faz o mal,recebe o mal’ e foque na respiração. Esteja ciente e repita ‘Faz o bem, recebe obem. Faz o mal, recebe o mal’.” Até a consciência levar o bem e o mal para dentrode si, até nossa mente se purificar, entender “bem” e “mal”. Quando ela entender o

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mal, ela abandonará o mal. Quando ela entender o bem, ela praticará o bem. Se formal ela não pratica, ela abandona. Constrói o bem naquele momento. A nossamente aceita, entende o bem e o mal.

Na maioria dos casos, os leigos não diferenciam bem e mal. Às vezes éalgo ruim e vão fazer aquilo. Faz com que sofram, chorem, mas ainda nãoentendem que aquilo é ruim, não diferenciam bem e mal. Tem que diferenciarambos. Quando usamos isso como mantra, entra na corrente da nossa mente eseparamos o bem do mal, entendemos a diferença entre mérito e demérito,começamos a ser uma pessoa fácil de ensinar. Pratique com a sua mente. Quandofor praticar repita: “Faz o bem, recebe o bem. Faz o mal, recebe o mal.” Seconhecemos bem e mal, agimos de acordo, construímos bondade, abandonamosmaldade sozinhos, no final alcançamos a paz. Não deixe a mente se apegar àbondade ou à maldade, pois caso nos apeguemos por um longo período, nosapegarmos e não largarmos, não afrouxarmos… Por exemplo: “Só eu estou certo,todo mundo está errado!”, esse pensamento se apoia na bondade e essa bondade,se nos apegarmos e não largarmos, pode gerar maldade. Certeza! Pode nascermaldade. Morre por causa da bondade, não sabe usar a bondade, não sabemoderar. Constrói bondade e pensa: “Agora ficou bom!” e aí não larga, se apegacom firmeza sem largar. Isso também gera problemas. Em última instância o Budaensinou a largar, a conhecer o bem, conhecer o mal. Se conhece, o bem não geraproblemas, o mal não gera problemas, pois nós não nos apegamos. O Budaensinava desse jeito.

De qualquer forma, resumindo, mente é algo muito importante. Possuimuitos malefícios, possui muito benefícios. Choramos por causa da nossa mente,rimos por causa da nossa mente, ficamos tristes por causa da nossa mente, ficamosfelizes por causa da nossa mente. Se vocês ainda não veem claro, olhem. Se surgirraiva, olhe na mente: “Quem está com raiva? Os ouvidos estão com raiva, ou osolhos?” Olhe! Vocês vão saber de onde nasce a causa. Olhem. Quando ficaremfelizes, isso vem dos ouvidos ou dos olhos? Ou vem da mente? Se vocêsacompanharem desse jeito, estudarem desse jeito, vocês vão conhecer a causa. Seconhecerem a causa, ela desaparece bem ali onde ela nasce. Não é? Ela

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desaparece bem ali. Isso é o que se chama ser uma pessoa que pratica o Darma noponto correto. Tudo no mundo vai mudar, vai ver o mundo como Lokavidū. Seenxergamos como Lokavidū vemos que as coisas sempre foram assim, mas somosnós que queremos que sejam de outro jeito, que não sejam assim, e aí nasceinsatisfação. O Buda nasceu neste mundo e tomou este mundo como objeto decontemplação. Ele viu nirvana, a saída do sofrimento, neste mesmo mundo. Porisso é Lokavidū: conhece claramente o mundo. Nós não conhecemos claramente omundo, nosso mundo tem escuridão. Que vocês reflitam sobre isso. Que isso fiquede lição de casa para vocês. Hoje eu dei conhecimento, opinião, o suficiente. Porisso peço licença para encerrar a palestra aqui.

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Problemas do mundo – 65

Problemas do mundoAjahn Chah conversa com um grupo de discípulas leigas. (Devido a interrupções na gravação, algumas frases estão inacabadas e outras perderam um pouco seu contexto.)

- (…) e também pratique meditação, não precisa ser nada de mais, apenasnão deixe a mente ficar confusa ou irritada, deixe ela se pacificar.

- Onde devo me sentar para que haja paz?

- Com um monte de impurezas mentais desse jeito, será que vai haverpaz!? Fala sério!

- Qual a forma mais fácil de pacificar a mente?

- Não importa! Não precisa ser fácil, as causas têm que estar presentespara que seja fácil. Qual a forma mais fácil de encher a barriga? Se comer só umacolherada, vai ficar cheia? Falam desse jeito: “Quero conseguir rápido.” Eu meordenei e quase morri pelo Buddha Sāsana e ainda não alcancei paz e você quersentar e num momento já alcançar paz!? Fala sério! As pessoas têm muito desejo,então sentam e só dá confusão.

- Somos muito impacientes.

- Senta e não tem paz, só tem confusão! O quê? Quem? Sim, viajei aoocidente duas vezes, dois meses em cada ocasião. Fiquei muito tempo.

- E teve quem oferecesse?

- Oferecesse o quê?

- Comida…

- Ôôe, ofereceram! Se não oferecessem como ia ser? Onde eu ia comer?

- Mostra que há interesse pelo budismo por lá…

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- Estão interessados, estão começando a se interessar. Estão começandoagora. Os ocidentais vão ao templo e não conversam sobre outras coisas, vão parapraticar meditação e pacificar a mente, então só há silêncio. Não são iguais aostailandeses: quem vende cesto vai conversar sobre cesto, quem tem horta vaiconversar sobre horta. Conversam sobre qualquer coisa, então não têm tempo depacificar a mente e aí querem alcançar o mais rápido possível. Vão ao temploconversar sobre isso e aquilo, voltam para casa e dizem que foram ao templo. Naverdade não procuram o Buddha Sāsana dentro da própria mente. Já os ocidentaisvão ao templo e sentam na almofada em silêncio, ninguém fala. Pacificam amente. Já nós aqui vamos conversar sobre isso, aquilo… arrastam o templo inteiropara dentro da conversa, depois vão comer.

Muitas cerimônias… Os estrangeiros não estão interessados nisso, nãoestão interessados. No país deles não há esse tipo de interesse: estudar escrituras,ir comer, etc. Eles não estão interessados. Estão interessados em procurar paz, vãodireto ali. Eles não vão ao templo dessa forma, são só os tailandeses é que vão. Ofilho ou a filha vai estudar no exterior e o pai e a mãe vêm visitar, então vão aotemplo para comer, conversar, se divertir e voltam para casa. Não se vê quem vápara praticar meditação – eu observei. Não vi nenhum tailandês ir praticarmeditação. Só vão conversar.

- Vão passear.

- Só isso, não dá em nada. Os estrangeiros não fazem assim, eles buscamo verdadeiro ensinamento do Buda. Os tailandeses têm o ensinamento do Budamas não o conhecem, vão estudar outras coisas. Por lá tem que ir sentar emmeditação, pacificar a mente. Teve uma pessoa chamada Sudama que foi para osEstados Unidos, ela mora na Rua Plêngsit36. Quando fui lá ensinar meusdiscípulos, estava cheio de estrangeiros e essa Sudama, acho que era cristã, ficoucuriosa em saber o que estávamos fazendo e então veio ver. Ela sabe falartailandês. Fui ensinar meditação e um dia ela veio perguntar: “Luang Pó, emBangkok tem esse tipo de atividade?” Veja isso, ela não sabe onde se praticameditação, ela só veio a conhecer no exterior e não sabia se também havia na

36 Rua de um bairro nobre de Bangkok.

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Problemas do mundo – 67

Tailândia. É uma pessoa pobre. Eu dei uma bronca nela… Tem que levar broncaprimeiro para poder começar a praticar. Mostra que nunca foi a um templo, nãoconhece essa atividade. Naquela ocasião praticamos nove dias, faz a mente sepacificar e surgem diversos tipos de sabedoria. Chama-se Sudama, acho que jávoltou para cá. Mora na Rua Plêngsit. Falou que quando voltasse viria me visitarno monastério, ainda não a vi aparecer.

Várias pessoas daqui vão viver lá, vão estudar, e só fazem contato com obudismo no exterior. Só vão entender no exterior, quando moravam na Tailândianão entendiam nada. Os monges ficam ali, os leigos ficam aqui, e é assim, cadaum na sua e não dá em nada. Algumas pessoas vão lá e se sentem solitárias, nãotêm ninguém, olham ao redor e os velhos são gringos, os jovens são gringos, ascrianças são gringas, todo mundo é gringo, não tem tailandeses. Quando veem umtailandês, como eu, eles vêm me procurar. É como se viéssemos da mesma vila,todo mundo se conhece. Eles trazem os filhos para oferecer37, oferecem para quemnão tem filho! Eles vêm oferecer – várias pessoas! Eles chamam os amigos paravir junto. Não dá em nada. A maioria dos tailandeses são estudantes, só vãoentender lá, só lá é que fazem contato com o budismo. Quando fui, vieram muitosdesses aí. Me assustei: “Eh! De onde veio essa gente!?” Ensinei o método depraticar, os estrangeiros praticavam, mas os tailandeses não sabiam praticar. Elessentam e é como se algo estivesse queimando, então pensei muito sobre isso erefleti sobre o Buddha Sāsana.

Vão procurar os monges, mas vão por outros motivos. Não deveria serassim. Vão procurar amuletos de vários tipos, só confusão! Eu não quero ouviressas coisas. Isso não é assunto de monge, não é assunto do Buddha Sāsana.Todos só vão procurar isso. E então não conhecem o assunto real do BuddhaSāsana; se tivéssemos o Buddha Sāsana ia haver toda essa confusão? Eles pegamsomente aquilo que é o oposto, só as coisas de que gostam. Sīla que é o verdadeiroaspecto do Buddha Sāsana capaz de proteger as pessoas, eles não têm… não têm.

37 Tradição comum no interior da Tailândia. As pessoas pedem que o Ajahn aceite serpadrinho do filho deles com a ideia de que assim o mérito do Ajahn vai ajudar a protegera criança. Isso é feito apenas como cerimônia, o monge não assume de fato nenhumaresponsabilidade pela criança.

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68 - Darma da Floresta

- Ajahn, alguns têm medo que se a Tailândia não tiver mais confusão,respeitar o Buddha Sāsana e todos praticarem o Darma, os países estrangeirosvirão criar confusão aqui…

- Incerto.

- Eles querem roubar nosso país…

- É incerto, isso são as outras pessoas vindo nos agredir, não dá paraevitar, é assunto deles. Nós não temos como evitar, mas…

- Se respeitarmos o Buddha Sāsana isso deve nos proteger.

- Protege a si mesmo, não protege aos outros.

- Protege o nosso país?

- Pode ser, mas não é garantido. Até o Buda eles queriam matar! Não éincrível? Um Buda nasce no mundo e eles queriam matar. É assim o mundo. Senasceu no mundo, só vai encontrar perigos e desgraças. É um tipo de carma, nãoestá além do sofrimento. Neste mundo há violência. Com o passar do tempo aspessoas que seguem uma religião vão mudando. Mas conseguir evitar todos osperigos é muito difícil neste mundo. Este mundo é um perigo.

- Mas, por exemplo, queremos cuidar do nosso monastério, mas temsempre alguém vindo roubar…

- Vai fazer o quê? Proteja, se não conseguir proteger, entregue para eles!Não tem como carregar o monastério nas costas, no final a gente morre. Mundo,isso é coisa do mundo. O Buddha Sāsana se estabelece neste mundo, mas não écapaz de proteger o mundo, isto está além do âmbito dele. Quando chega a hora,tem que ir de acordo com sua natureza. Não é possível proteger com garantia. OBuda ensinava que é impermanente, tudo isso é impermanente. Ainda estandovivos, procuramos felicidade e tranquilidade, procuramos proteger o país dessesperigos todos. Se não tivermos sīla, surge ainda mais confusão. É assim.

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Problemas do mundo – 69

- Eu ouvi dizer que antigamente o Buddha Sāsana prosperava emPequim38, deve ser verdade…

- Isso eles dizem, mas é algo que dizem sem saber.

- Hoje, na China, religiões são proibidas…

- Às vezes foi porque acabou o combustível. Quando isso passar talvez ascoisas melhorem. Na verdade as pessoas que hoje em dia são budistas ainda nãoalcançam o coração do ensinamento do Buda. Como os que dizem “Oh! Nada vaiacontecer, nós temos o Buddha Sāsana, nada vai acontecer conosco”, esse tipo decoisa. Eles entendem que o Buddha Sāsana tem um poder mágico e é capaz deproteger o mundo inteiro. Não é possível se nós não praticarmos. O Buda ensinavaa praticar desse jeito, se esforçar dessa forma. Não é para jogar a responsabilidadepara que ele tome conta de todos nós. Fácil demais, não? É assim. Está commedo? Medo por quê? Se acontecer está bom, se não acontecer também está bom.Que diferença faz? Não se apegue demais.

Algumas pessoas pensam errado, têm tanto medo dos comunistas queficam loucos: “Vou lutar até morrer!”, só confusão. Todas as coisas têm seu ladobom, por exemplo, uma pessoa que não é budista, vamos ensinar o budismo e elenão enxerga porque não reflete sobre aquilo. Na verdade há algo de bom ali, masele não enxerga. Como as pessoas ruins que depredam o mundo, às vezes tem umlado bom ali mas ainda não enxergamos, temos a mente fixa em outroentendimento daquilo. Há vários tipos de coisas escondidas. Mas eu digo que bomé ficar quieto. Não pense muito.

(…) não é possível vencer: quando chega a hora, se degenera. Porexemplo, nós nascemos, antes de nascer estávamos na barriga da mãe, não é?Quando saímos da barriga viramos crianças, garoto, garota, etc., até conseguirandar. No final o cabelo e os dentes caem, dá para evitar?

- Não dá. Os olhos começam a ficar embaçados…

38 A pessoa refere-se ao fato de que no passado existia budismo na China, mas depois o paísse tornou comunista. Note que essa gravação ocorreu na época da guerra do Vietnã ehavia um perigo real de a Tailândia também tornar-se um país comunista.

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- Dá para evitar?

- Não dá.

- E vocês gostam disso ou não?

- Não gostamos.

- Não gostam, mas não conseguem evitar. Pois é, que fazer? É algonatural, é melhor aceitarmos. Aceitem, aceitem essa situação, nós temos queenvelhecer. Envelhecer é bom? É! Se não envelhecêssemos não cresceríamos aeste tamanho. Íamos ficar igual a um feto que não nasceu, se nãoenvelhecêssemos. Graças à força da velhice é que nos desenvolvemos até esteponto. Temos que saber a causa, velhice tem sua razão de ser. Se desenvolve e nofinal se degenera até desaparecer. Isso é a natureza, o mundo é assim. Issopodemos aceitar, é assim.

(…) Se olharmos o que fizemos no passado, como é que é? O mundo éassim. O Buda e o Ānanda eram mendigos. Eles saíram em pindapāta, o Ānanda eo Buda. Umas pessoas com micchā-ditthi39, não sabiam de nada, eles tinham aopinião de que esses monges não serviam para nada a não ser pedir esmolas. Nãoviam utilidade nenhuma neles. Pensavam assim e sentiam desdém. Às vezes oBuda ia em pindapāta com o Ānanda e essa gente criticava, xingava. Às vezesameaçavam caso eles não fossem embora. O Buda ficava com ainda maissabedoria, o Ānanda ficava ainda mais tolo, ficava com raiva, com vergonha. OBuda via de acordo com o Darma, que as pessoas são assim mesmo. Duaspessoas: o discípulo pensa de um jeito, o professor pensa de outro. O discípuloficava cada vez mais tolo, pois não aguentava ouvir aquilo. O Buda era como umapipa soprada pelo vento, voava ainda mais alto. O Ānanda ficava tremendo comouma pipa que não aguenta a força do vento.

O Buda ficava de pé bem em frente à casa dos micchā-ditthi, com a tigelaà mão, e as pessoas da casa xingavam “Que monge é esse? Não serve para nada!

39 Visão Incorreta, mas nesse caso específico, significa pessoas que não gostavam do Buda edo ensinamento dele.

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Problemas do mundo – 71

Eu não vou dar nada, vá embora!” O Ānanda ficava ainda mais confuso, comraiva e envergonhado, o Buda ficava com ainda mais sabedoria, ficava ainda maistranquilo. Ele pensava: “Neste mundo as pessoas ignorantes são assim.” OĀnanda não sabia de nada e ficava ainda mais tolo, o Buda sabia das coisas eficava ainda mais sábio.

Quando o Buda disse para o Ānanda: “Vamos embora”, Ānanda avisou:

“Eu não aguento essas ofensas.”

O Buda respondeu: “Ānanda, para onde ir então?”

“Vamos àquela outra casa mais à frente.”

“Ānanda, se naquela casa eles também falarem desse jeito, para ondevamos?”

“Vamos mais à frente. Vamos sair dessa vila e vamos para a outra.”

“Se naquela vila eles falarem assim, para onde vamos?”

“Vamos à outra vila ainda mais à frente.” O Buda perguntou:

“Se na outra vila eles falarem assim, para onde vamos?”

“Vamos para outro distrito.” O Buda respondeu:

“Se no outro distrito eles falarem assim, para onde vamos?”

“Vamos àquela outra cidade.”

“Se naquela cidade falarem assim, para onde vamos?”

“Vamos para a outra cidade ainda mais à frente.”

“Quando não houver mais para onde ir, para onde vamos, Ānanda? Aquieles falam, lá eles falam, onde vamos conseguir escapar disso? ‘Natthi lokeanindito’, neste mundo não há quem não seja criticado.”

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Se nós caminharmos o mundo inteiro e eles nos criticarem, como é quevai ser? O mundo é assim mesmo. As pessoas que têm micchā-ditthi falam de umjeito, os que têm sammā-ditthi falam de um outro jeito, não tem para onde ir.

“Ānanda, se vencermos aqui, mais à frente vamos vencer. Se perdermosnesta cidade, na cidade mais à frente vamos continuar perdendo. Que fazer?”

O Ānanda não sabia responder. Isso também é assim, onde vai conseguirescapar? Não apenas indo em pindapāta, pedir esmola, como dizem as pessoas.Mesmo um casal que se casa com sinceridade, se gostam, se amam, ou mesmo dopai e da mãe ainda temos que ouvir palavras desagradáveis. Fazer o quê? Omundo é assim. Lokavidū – se nós não conhecermos o mundo, nossa vida nestemundo será grosseira. Não vamos ter onde morar, aonde formos será assim. Oproblema do mundo é assim. Aonde quer que vá, não é possível evitar que digamque somos bons ou ruins. No mundo é assim, tem que ser assim. O Buda ensinouao Ānanda “Nós temos que vencer bem aqui! Se vencermos aqui, mais à frentevamos vencer, onde quer que formos vamos vencer. Vamos vencer no mundointeiro.” Isso é algo sobre o qual o Buda alertava seus discípulos: quando algodesagradável vem, algo agradável vem junto com aquilo.

Nem precisa falar das outras pessoas, mesmo nós às vezes não gostamosdo que nós mesmos pensamos. Às vezes pensamos assim, mas acontece daquelejeito; pensamos daquele jeito, mas acontece assim, aí não gostamos. Nem precisafalar dos outros, nós mesmos às vezes somos assim. Por isso precisamos nosesforçar para refletir e ver que o mundo é assim, não é possível fugir desse tipo defala: o Buda tinha que ouvir essas coisas, os sāvakas tinham que ouvir essascoisas. Portanto temos que começar a entender que o mundo é assim, temos queaguentar. Aguentar. Aguentar todo tipo de coisa. Aos poucos ensine sua mente.Como se diz: cabeça fria. Cabeça fria… Vá fazendo e aos poucos se desapegando.Se entendermos essas coisas seremos capazes de vencer esses estados mentais.

Nasce sabedoria pensando assim, fazendo assim. Só isso. Não dá paraproibi-los: “Não me critique! Não me critique!”, não dá, o mundo é assim. Viverno mundo é assunto mundano. Se entendemos, podemos dizer que isso nos ensina

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a ser uma boa pessoa; se pensarmos bem, tudo isso nos ensina a refletir, só háDarma ali. Não pense: “Que ele não venha me criticar, cada um no seu canto!”Não pense dessa forma. Queremos que eles pensem de um jeito, mas as pessoasnão pensam daquele jeito. E aí, como é que fica? Queremos que eles pensemassim e eles não pensam assim. Onde vai acabar isso? Não queremos que elesfalem desse jeito e eles falam exatamente daquele jeito! Onde vai acabar isso?Aquela pessoa não para e nós não paramos, onde vai acabar isso? Não vai acabar.É assim. O correto é: se ele não parar, nós paramos. Não é? É assim que seresolve. Se ele não parar, nós paramos. Se nós paramos, ele não corre para lugaralgum, ele estava correndo por uma razão. Quando paramos de correr atrás dele,ele também para, se volta e reflete sobre nós e sobre si mesmo. As pessoas quetêm sabedoria pensam: “Ôôô, estou errado! Ele está tranquilo, ele consegueparar.” O problema acaba bem ali. Hoje em dia é a mesma coisa, o mundo é assim.

Quem não conhece esse Darma sofre continuamente, não sabe que omundo é assim. Portanto, nós que temos sabedoria temos que contemplar dessaforma, temos que fugir através da sabedoria. Onde as pessoas não nos critiquem,não existe. Elas nos criticam uma vez, é como se afiássemos nossa faca uma vez.Elas nos criticam com frequência, é como se afiássemos a faca com frequência,não é? Se afiamos a faca com frequência, está sempre afiada, não é? É assim.Todas as coisas que elas dizem serem boas, serem ruins, são ótimos ensinamentos,só que nós não usamos para refletir. Se nos agrada, gostamos; se não nos agrada,não gostamos, desse jeito. Desse jeito não dá, o mundo é assim. Por isso aspessoas sofrem o tempo todo – pois não pensam dessa forma. Vai aumentando,aumentando, e sofre com frequência – aí nasce sabedoria com frequência. Sofrecom frequência, tem sabedoria com frequência, tem sabedoria com frequência eentão surgem benefícios com frequência. Isso é resultado do nosso pensamentocorreto.

(…) deve ser porque estamos indo para casa que esfria, se nós pensarmosque não vamos mais embora deve esquentar.

- O senhor ainda não enterrou as nimitas40?

40 Neste caso específico, nimitas significam pedras que demarcam os limites do bôt (uma

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- Ainda não, ainda não está pronto, a estátua principal do Buda ainda nãoveio. Vem de Bangkok.

- E essa que está ali?

- Aquela é a secundária, a principal é do mesmo tipo, mas maior, maisalta, por volta de quatro metros. Hã? Ajahn Kitbóbut41 é o artesão. Se não estiverbonita ele não vai trazer. Nós não fizemos um contrato escrito, fizemos um acordoverbal para agosto e agosto já passou… Encomendamos essa estátua sem fazercontrato. Vários milhares de bahts e não há contrato. Ele não gosta de fazercontrato, mas se não houver contrato como é que vai ser? Por volta de 300.000 ou400.000 bahts. Mandamos fazer a estátua e não há contrato, não há documento. Aspessoas comuns não fazem isso, as pessoas hoje em dia não aceitam. Se fosse parafazer um contrato, Ajahn Kitbóbut disse: “Eu vou fazer essa estátua, mas eu nãosou empregado. Eu não sou empregado, não quero pagamento, vou oferecerminhas habilidades ao monastério de forma satisfatória, assim é mais correto.”

Sendo assim, como fazer? Eu falei “Vamos fazer assim:” – eu reuni acomunidade leiga – “esses 400.000 bahts para construir a estátua, se for paravocês conversarem com o artesão, a estátua não vai sair, pois um não confia nooutro. Façamos dessa forma, se for para construir, vai ter que ser assim; acreditemem mim. Certo ou errado, dessa vez abram mão. Esses 400.000 bahts vocês deempara mim, não se envolvam. Se eu jogar no rio, vocês não digam nada, se eu usarpara abrir uma loja, vocês não digam nada, já não é mais assunto de vocês, éassunto meu. Deem para mim e vocês abram mão do direito a dar opinião. Nãofiquem pensando ‘Como é que vai ser?’ Não pensem, fiquem tranquilos. Eu medecidi a construir essa estátua, a ter uma estátua. Se conseguir, ótimo, se nãoconseguir, ótimo. Que ninguém fique chateado. Se for assim vamos conseguirfazer. Não é necessário fazer contrato, vamos tratar em termos de bondade, honra,

espécie de templo). É tradição que essas pedras (em geral esféricas) sejam enterradas sobo solo.

41 A palavra ‘ajahn’ significa ‘professor’ mas também é utilizada na Tailândia de formaparecida com ‘doutor’ no Brasil, ou seja, qualquer pessoa que possua um certo status échamado de ‘ajahn’ tal como no Brasil qualquer pessoa que possua uma posição de certorespeito é às vezes chamada de ‘doutor’.

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mérito de ser gente. Se o Ajahn Kitbóbut não morrer, tiver senso de dever, tiverapreço pela honra dele, já está bom. Ele nasceu nesta vida, se quiser jogar issofora, que jogue! Eu também jogo fora esses 400.000 bahts, sem remorso. Nemquero saber para onde vai. Se não for assim, não vai ser possível construir essaestátua.”

Feita a forma, veio folhear a ouro aqui em frente ao monastério, narotatória. Encheu de gente, folheamos a ouro bem aqui, as pessoas ao redor.Terminado, botou a estátua no caminhão e foi embora. As pessoas disseram:“Eh… por que levou embora?” Eu disse: “Para onde for, não importa! Que leveembora! Deixe estar. Qual o problema? Se ele pode fazer assim, nós tambémpodemos. Nós já abrimos mão, então deixem ir.” Aconteceu que ele disse que iatrazer de volta em agosto, agosto já passou e ainda não veio. Os leigos vieram mepressionar, eu falei: “Calma, calma, se sumir, que suma! Não tenham medo, nós jáabrimos mão.” E aí fui ajustar a estátua, fui a primeira vez e achei que já estavabom, mas não gostei, ajustei de novo. Na segunda, achei que ia ficar bom, masainda não gostei e mandei fazer de novo. Ajustei três vezes. Um dia ele veio ouvirDarma e disse: “Não tenho coragem de prometer. Na verdade não falta muito. Euvim dizer ao Luang Pó que eu vou terminar essa estátua antes do ano novo comcerteza, mas já prometi várias vezes e então não tenho coragem de prometer denovo.”

- Ele tem reputação, não?

- Com uma reputação daquele tamanho, se ele quiser jogar fora o Wat PahPong, que jogue! Eu também jogo fora os 400.000 bahts. O Darma tem preço? ODarma não tem preço. Dizer que não tem preço não é o mesmo que dizer que nãovale nada. O Darma não tem preço. É assim. Já as nimitas, colocamos no lugar eum rio de gente veio folhear ouro42, e aí fechei, quando fui para o exterior eu

42 No caso anterior, da estátua do Buda, significa de fato folhear a ouro – o artesão usa ouroderretido para cobrir a imagem. Já no caso nas nimitas citado aqui, significa que aspessoas vão trazer pequenas folhas de papel metálico de cor dourada (só em casos muitoraros são de fato folhas de ouro) e, usando um pouco de cera de abelha, colam esse metalà nimita (às vezes também às estátuas do Buda). Algumas pessoas fazem isso como umaforma de reverência, mas a maioria faz porque acha que como resultado desse ato elas vão

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fechei. Se forem fazer quando não estou, vira uma bagunça. Eles não podem maisfolhear a ouro, mas não dão ouvidos, ainda vêm jogar coisas dentro43.Antigamente vinha um rio de gente folhear ouro. Então eu fechei. Enquanto isso oAjahn Kitbóbut continua trabalhando e eu vou esperar. Agora só falta ele trazer devolta. Trazer de volta e construir a base. Eu disse para juntar o preço da base como preço da estátua, ele então disse que se juntar com o preço da estátua ele nãofaz. “Eu trabalho mas não sou empregado, se for para fazer como oferta, eu faço.”Bom, não? Falou assim, bom, não? Então está bom! Eu sei que ele vai fazer umbom trabalho.

Não tem perigo. Se não fosse assim, eu não teria oferecido minha vida aoBuddha Sāsana. Monge joga fora várias coisas, joga fora tudo. Coisas que nomundo as pessoas desejam, acham divertido, os monges jogam tudo fora. Não é?Se não jogar fora, não consegue virar monge. Como vai conseguir? Eu já jogueifora minha vida, por que não haveria de jogar fora 300.000 ou 400.000 bahts, algoque não faz parte do meu corpo? Se tiver que dar, dou, se fizer, fez – jáconversamos. Se ele fizer algo errado, quem está errado é ele. Ele está errado, nósestamos certos. Se foi ele quem fez errado, para que vamos esquentar a cabeça?Temos que esquentar quando somos nós que fazemos errado. Se a outra pessoa foiquem fez errado, para que vamos esquentar? A gente costuma ser assim, mas naverdade deveria ser a pessoa que fez errado que deveria esquentar. Ela faz errado enós é que esquentamos, é muita burrice. Entende? Fique de olho. Quem é dono decasa, dona de casa, fique de olho: quando os outros fazem algo errado, somos nósque sofremos. Pense direito. Quando acontecer, vai lembrar: “É como o Luang Pófalou.” Não é melhor se a pessoa que fez errado sofra? Agora, ela fazer errado enós sofrermos é o quê? É o cúmulo da burrice! É assim. Estudamos, maspassamos por cima disso; essas coisas, as pessoas não sabem. Ele fez errado, eleque sofra! Vamos sofrer ao invés dele para quê? Esse conhecimento é difícilencontrar onde estudar.

ficar ricas.43 As nimitas são enterradas sob o solo, e o significado aqui é que as nimitas já foram postas

nos buracos, mas ainda não foram enterradas, e as pessoas se aproveitam para jogarobjetos dentro do buraco como forma de reverência (na maioria dos casos jogam moedasou pequenas imagens do Buda).

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Difícil estudar, mas na verdade é assim. Quem fizer errado que sofra, paraque vamos sofrer? Nós já conversamos, ele disse que ia fazer, já combinamos. Seele não fizer, é ele quem está errado, vamos sofrer para quê? Nós não temos culpa.Que seja! Aonde formos vai ser assim. Isso é o que se diz: “Em qualquer trabalhoque fizer, não vença as outras pessoas – vença a si mesmo para vencer os outros.”Se vencer os outros não vence a si mesmo, não vence ninguém. Se vencer a simesmo vai vencer os outros. Isso, os estudantes passam por cima. A maioria sóquer vencer os outros e por isso sofrem. Não é? Se não vencer a si mesmo, quandoestará bem? Vencer os outros é só sofrimento. Não serve para nada. Os estudantespassam por cima disso. Aprendem coisas muito elevadas, mas passam por cimadisso. Não aprendem de forma balanceada, então passam por cima, não tocam noponto certo. Não serve.

Bondade é a mesma coisa: as pessoas só querem “bem, bem, bem”, mastambém tem que haver equilíbrio. Se for bom demais, vira maldade, não é? Nós sóqueremos “bem, bem”, e vira maldade. Idade é a mesma coisa, quer viver muitotempo. Bom, não é? “Que tenha longa vida, que tenha longa vida…” Eu estoudoente e as pessoas dizem:

“Que o senhor viva até os 100, 200 anos!”

“Hum!? Não venham amaldiçoar o monge! Vêm amaldiçoar o mongepara quê? Já viu gente velha? Não podem andar, ficam deitados, não conseguemcomer. Vocês gostariam de ser assim? Então para que vêm pedir que eu sejaassim?”

Vocês querem? Eu não vejo utilidade nenhuma, não tem utilidade. Só vêmamaldiçoar o monge. Se fosse para ter vida longa de forma agradável, então tudobem, se puder andar, então tudo bem, mas com idade avançada não conseguesequer cuidar de si mesmo, como isso pode ser bom? É como as pessoas queamam o pai e a mãe, cuidam com todo amor, mas se eles estiverem doentes pormuito tempo, cinco anos, seis anos – não morrem nem vivem de verdade e nofinal todo mundo vai embora. Às vezes até esquecem de dar comida… Até queponto nossos filhos, genros e noras nos amam? Se passar da medida eles não

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conseguem amar. Eles jogam fora, não é? Eles pensam consigo mesmos: “Quandoserá que ele vai morrer? É muito difícil.” Eles pensam consigo mesmos, ficamreclamando como se fosse um mantra: “Disseram que ia morrer, já amanheceu eainda está vivo. Que dificuldade!”

Entendem? Que as coisas não aconteçam de acordo com os nossosdesejos! Aceite o que vier, não deseje vida longa. Algumas pessoas querem vida-longa caso estejam felizes; caso estejam com raiva, querem morrer hoje mesmo,agora mesmo, aqui mesmo!44 Quem vai conseguir agir de acordo com os desejosda mente? Se quiser viver muito, vai a vários templos estender sua vida, novetemplos45, vai se benzer para ter vida longa. Mas quando está com raiva: “Queromorrer agora, hoje! Amanhã não quero, tem que ser agora!” Às vezes bebeinseticida e morre, muitos se matam com um tiro. Dá para dizer que pensamoscerto? Eu quero só o suficiente, esta vida em que nascemos não nos pertence, nãonos pertence. É como se fôssemos comprar açúcar no mercado:

“Quanto é um quilo?”

“Um quilo, 20 bahts.”

O vendedor vai colocar no saco e o cliente diz: “Não quero, deixa que eucoloco sozinho!”, bom, não? O vendedor só coloca no saco, ele não compraaçúcar; se o comprador quer colocar sozinho, é assunto dele, a gente vende e fimde papo. Isso é pensar na medida certa. Experimente. Sempre que surgesofrimento é porque passou do limite. Às vezes é pouco demais, às vezes é muito;quando chega no ponto, é a medida certa, vem à tona a palavra “suficiente”. Nãoé?

Por exemplo, estamos limpando uma cumbuca ou um prato, quando estálimpo dizemos: “Já chega, é o suficiente.” Tranquilo, não? Se ainda estiver sujo,ainda não é o suficiente, ainda não acabou, aí continuamos limpando. É o que se

44 Na Tailândia, uma forma bem-humorada de expressar raiva é dizer “Quero morrer! Queromorrer!”

45 Algumas pessoas têm a superstição de que se fizerem uma certa cerimônia, num certo dia,num número específico de templos, elas conseguirão estender seu tempo de vida.

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chama “pessoa insuficiente”. Uma pessoa suficiente é tranquila: “OK, já chega”,fica tranquilo e não se preocupa. Isso é uma pessoa suficiente, na medida certa. Jápensou dessa forma alguma vez? A sabedoria dos monges da floresta vai por esselado, ela não voa muito alto.

Vocês funcionários públicos também, se é de baixo escalão não estásatisfeito: “É muito difícil ter que depender dos outros”, reclama que é difícil.Então vai desejando, desejando, buscando o caminho e no final vira chefe, viralíder. Quando vira chefe pensa: “Agora está bom”, mas é bom só naquele pequenoinstante, quando conquistou; logo fica com medo de cair, pois subiu alto demais,tem que ter cuidado. Ter que depender dos outros não é agradável; quando nóssomos chefes, são eles que dependem de nós. Aí vêm os subalternos: “Conserteaquilo para mim.” Foram eles que fizeram errado e nós é que temos que consertar!O que fazer? Se não consertarmos, faz com que reclamem; às vezes causa muitosproblemas, pois são nossos subalternos. Quando vira chefe as dificuldades de serchefe surgem.

É por isso que digo: pegue só o suficiente. Conseguiu algo, satisfaça-secom aquilo. Tranquilo. Dê comida todo dia; se não crescer, então que fiquepequeno! Regue as flores todo dia; se morrerem, que morram! Coloque adubotodo dia, fazemos nosso esforço e isso é o suficiente, a planta que cresça sozinha.A gente pensa, mas não pensa direito. Ou o que é que vocês dizem? Pode falar, oque você diz? Daqui a pouco vocês já vão embora, se alguém quer dizer algumacoisa, fale.

Vir ver os monges é bom, é auspicioso. Se temos um estado mental bom,não precisamos de um palácio, ao pé de uma árvore já estamos felizes. Mesmosentados na grama estamos tranquilos. Se a mente está fervendo, pode deitar numcolchão bem macio, mas sente queimar por dentro. Vira para um lado, vira para ooutro, não acha conforto, a não ser que a mente esteja bem; caso contrário, nãoacha conforto. Confuso, não? Nascer como ser humano é confuso, não? Hein?Confuso, não? É assim o mundo. Aonde quer que vá é assim, há conforto só porum segundo. O mundo é assim. Eu estava conversando com uma discípula:

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“Trabalhar com os outros é difícil, mas se fico sozinha fico com medo defantasma; se fico com os outros, acabo brigando.”

“E onde você vai encontrar bem-estar?”

“Se eu morar sozinha vou ficar bem.”

Aí fica com medo de fantasma. Se tem várias pessoas – brigam. Comofazer para acertar? Se não pensarmos certo, não fica certo. Onde mora o bem-estar? Em estar correto. Isso é Sacca-Dhamma. Se algo sumir, que suma, se nãopuder recuperar, que suma! Vai chorar para quê? O que venha a acontecerconosco, se for para acontecer, que venha! Depois que surgir vai desaparecer, nãoforce a permanecer! Esse negócio é assim. Temos que aceitar, aceitar o Darma doBuda. Aceitar todos os acontecimentos, não fuja dos acontecimentos! Quando algoacontecer, temos que conhecer aquele acontecimento, temos que aceitar. Aspessoas não aceitam o Darma do Buda, se recusam a aceitar.

Eu observo quando vou ensinar onde há um funeral, ensino sobre anicca,dukkha, anata, sobre a incerteza. Algumas pessoas ouvem, algumas ficamsonolentas, algumas dormem, não entendem o Darma. Mais um morre e choramde novo. Por que isso? É por não ouvir o Darma, não aceitar o Darma. Se aceitar oDarma, pensam: “Oh, morreu, isso é normal”, aceita o Darma. Se conhece, aceita.Se estiver doente, toma os remédios; se sarar, sarou, se morrer, morreu, se nascer,nasceu, é assim mesmo. Se aceitar os acontecimentos dessa forma, fica tranquilo.O problema é que não aceitamos o Darma, só ouvimos a nós mesmos.

Ensino os monges que estão internados no hospital: se sarar, aceite, senão sarar, aceite. Tranquilo. Caso só aceite se sarar, se não sarar não aceita – sofre,sofre até chorar. Tem que haver resolução: se sarar, aceito; se não sarar, aceito.Mas no coração tomamos partido do sarar, o não-sarar não queremos, aí sofremos.Se sarar tem que aceitar, se não sarar tem que aceitar, tem que aceitar ambos porcompleto. Se sarar, sarou – se não sarar, não sarou. Tranquilo. Continuamos osmesmos, não perdemos nada. Se deixa influenciar por si mesmo e então não aceitao Darma do Buda. Eu já vi isso, um parente morre, vai embora, alguém que elesamam morre, vai embora, os monges ensinam dia após dia, mas quando alguém

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Problemas do mundo – 81

morre ainda choram daquele jeito. Choram, “que pena, que pena…” mesmoquando o monge está ensinando ainda choram na frente dele: “Que pena…” Porque não refletem: “Chorar para quê? Por que não ficar bem?” É que eles nãoaceitam, não praticam, não contemplam. Só pensam em querer que a pessoapermaneça, que ela não vá a lugar algum.

A mãe de uma pessoa morreu, ela estava chorando quando veio ouvir oDarma e eu perguntei “Por que está chorando? A sua dívida já não é grande osuficiente? Ainda não está satisfeita? Ela cuidou de você desde que era criança,procurou dinheiro para construir casa para você com muita dificuldade. Elamorreu e você ainda chora? Que defeito você está achando no pai e na mãe?Ainda não é o suficiente? Ainda quer se aproveitar mais deles ou o quê? Ou querque eles ainda venham ajudar a pagar as contas? Pense bem, por que estáchorando?” Tem que pensar. Eu digo que já chega, se conseguir aceitar ficatranquilo. Se estiver de acordo com o Darma, fica tranquilo. Não tem maisproblemas. Tem que se preparar desde antes, meditar…

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Mudando de ComportamentoEnsinamento dado à comunidade monástica de Wat Pah Pong.

(…) upajjhāya. Tendo pedido tutela ao upajjhāya, se não houveroportunidade de viver com ele, o upajjhāya então o delega a um professor, um queseja bem-comportado, ensine bem e pratique bem. O aluno pede para viver junto aele e pede tutela àquele professor, vive sob a tutela dele. Essa é uma fundaçãomuito importante. Podemos comparar, quer seja no mundo ou no Darma.Atualmente é assim: o aluno que quer estudar deve permanecer na escola porcinco anos; após cinco anos ele vai estudar em outro local. É igual no mundo.Todas as pessoas têm seu comportamento, carregam seu próprio comportamento.Pois esse comportamento existe graças ao poder dos desejos, da ganância.Ganância surge tendo ignorância como fundação e então ela tem a oportunidadede se apoiar naquele comportamento.

Quando nos ordenamos monges temos que mudar de comportamento,temos que pedir tutela ao upajjhāya, ao professor, para que ele nos supervisionesempre. Não deve se ausentar do professor. Caso se ausente por dois dias, devepedir tutela novamente, pois a anterior se quebrou. Os monges e noviços devemagir assim. Caso se ausentem, mesmo que só dois ou três dias, a tutela se quebra.Quando o mestre, o upajjhāya ou o professor vier, tem que renovar a tutela, temque pedir tutela novamente46. É feito dessa forma para que fique mais atento, maiscuidadoso. Não seja descuidado em pedir tutela, não seja descuidado em seguirtutela, porque ainda está sob tutela. Temos que contar com a supervisão doupajjhāya e do professor até o quinto ano de vida monástica47.

46 Se o discípulo se ausenta sob permissão do professor, não é necessário pedir tutelanovamente, pois esta ainda está vigente.

47 A regra monástica sugere um período de tutela de cinco anos, mas esse período pode serestendido caso o professor entenda que o aluno ainda não é maduro o suficiente paracuidar de si mesmo.

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Após cinco anos já saberá o suficiente; caso tenha morado com umupajjhāya ou um professor que pratica de forma correta, conhecerá o modo deprática. Conhece e então sente vergonha e medo48, sabe o que é uma ofensa à regramonástica com profundidade. Quer esteja de pé, andando, sentado, deitado, ondequer que vá, não age como bobo, não pensa à toa, não faz à toa. Mas ainda háganância, raiva, ainda há de tudo, mas está ciente, não tem coragem de fazeraquilo, não age sob a força dos desejos. Não importa o quão doloroso e difícilseja, não tem coragem de fazer. Por quê? Medo. Medo e vergonha. Tem vergonhado que é errado, não tem coragem de fazer, não tem coragem de dizer. Temvergonha, medo. Vergonha e medo transformam-se em sīla impecável. Tornam-sehábito e no final a mente se pacifica.

Tem que se tornar uma pessoa de hábitos de comportamento e faladiferentes do que eram antes. Muda do comportamento velho para umcomportamento novo. Comportamento de monge, de noviço, comportamento deasceta. Muda de comportamento. As pessoas que praticam também, pode olharnossos monges e noviços, se já possuem um comportamento estabelecido, têm quemudar aquele comportamento. Para mudar de comportamento, a mente tem quemudar. Se tentar mudar sem mudar a mente, a mente não toma conhecimento enão consegue mudar. Pode ouvir todo dia sem falta, mas não consegue mudar. Porquê? Porque a mente ainda não tem medo, não tem vergonha, ainda não adquiriunovo comportamento. Se adquiriu o novo comportamento ela sente vergonha emedo, não tem coragem de falar, muda todo o sistema de corpo e fala daquelapessoa. Muda tudo, a não ser o que é vāsanā.

Como por exemplo o Sāriputta. Esse vāsanā os sāvakas largam comfacilidade, mas só em parte. Não como o Buda, só ele consegue largar porcompleto, consegue abandonar qualquer forma de comportamento. Esse vāsanā éo comportamento que as impurezas mentais condicionaram em vidas passadas,elas condicionaram por várias vidas. Viemos agindo dessa forma até ficarmoshabituados, falamos até ficarmos habituados, agimos até ficarmos habituados, até

48 Esse é um aspecto do treinamento frequentemente enfatizado pelo Buda. Em páli: “hiri” e“ottappa”.

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virar nossa personalidade, até entrar nos ossos, até fixar-se firme nos ossos. Comoum bêbado. Bebe todo tipo de bebida, é um boêmio de longa data, mesmo quandonão bebe, anda como se estivesse bêbado. Sempre que olham pensam que estábêbado: fala como bêbado. Isso é porque já se fixou firme na mente, nos ossos, jávirou parte da personalidade dele. Mesmo quando não bebe é um bêbado, mas naverdade não há nada, não está embriagado. Isso não é possível mudar. Vāsanā é amesma coisa.

Como o Sāriputta. No passado ela era um macaco. Ele nasceu comomacaco, e os macacos gostam de correr, balançar, pular para frente e para trás. OSāriputta também não conseguia largar esse hábito, esse vāsanā. Às vezes andavaaté uma poça de água e pulava, “pum!”, como um macaco. Mas era só um pulo,não havia nada de mais. Não tinha a ver com nada. Tinha a ver com o vāsanā deleser assim; quando fazia, não havia nada de mais. Não gerava impureza, não geravaganância, maldade ou demérito. É o que se diz, a mente se acostumou àquelehábito.

Isso é a mesma coisa. Se viermos praticar querendo encontrar paz,querendo praticar, temos que abandonar nossa forma anterior de ser. Mudar nossocorpo, nossa fala, nossa postura, nosso modo de falar, nosso modo de agir. Mudatudo. Vai mudando de pouco em pouco. Isso é o que se chama pedir tutela eganhar um novo hábito. Quer dizer, jogamos fora o hábito antigo, a forma antigade falar, a forma antiga de brincar, a forma antiga de fazer piadas, jogamos fora.Ao ver isso ele joga fora. Ao jogar fora, ele muda. Abandona o demérito, pratica omérito, abandona a maldade, pratica a bondade, abandona o comportamentoantigo e toma um novo. Quando o novo comportamento vem, ele muda a mentepor completo. Sabe sentir medo, sabe sentir vergonha, sabe todo tipo de coisa.Isso já é uma nova vida. É como nascer em uma nova vida. Morre daquela vida enasce nessa outra. Morre daquele comportamento e nasce nesse outro. São duaspessoas diferentes, mas são a mesma pessoa: morreu e nasceu de novo. Muda,muda, muda.

De acordo com o nível de prática, chamam-se Sotāpanna, Sakadāgāmi,Anāgāmī, Arahant. Esses são nomes de pessoas que conseguiram remover

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impurezas mentais. São a mesma pessoa, não são várias pessoas, são a mesmapessoa. Existem vários nomes porque eles mudam de acordo com a característicada mente, tomando a capacidade de abandonar e remover impurezas mentais comoponto de referência. Quando remove aquelas impurezas, aquele comportamento,não há diploma como há no mundo. Quando faz contato com aqueleconhecimento, muda, abandona, fica diferente. É o que dizemos “nascenovamente”, muda. Pode chamar de “nascimento aryia” se quiser. Ele já escapoudo inimigo anterior, aquilo que passou era um inimigo. Aquilo que nos faziadegenerar se acaba. Não há mais inimigos, já os ultrapassamos. Os aryiasultrapassaram os inimigos, escaparam dos inimigos, o coração escapou dosinimigos, a fala escapou dos inimigos, o corpo escapou dos inimigos doensinamento do Buda, do que é belo e bom. Escapa. É um inimigo e nósescapamos dele. Matamos o que é inimigo à nossa sinceridade.

No começo é como nascer de novo – ganha um novo comportamento,adota um novo comportamento. Os monges também. Pode olhar aqui mesmo: elespraticam, praticam, até virar hábito. Podem comparar como são agora com o queeram no passado – é muito diferente. Mudam de sensação, pensamento, sãocompletamente diferentes. Isso se chama “comportamento interior”. Quando oBuda diz que uma pessoa já não precisa de tutela, é porque a mente já não praticamais o mal. Por isso se diz que o Sotāpanna é uma pessoa que não volta. É umamente que não volta, é uma mente que caiu na correnteza do nirvana. Não chega aoito vidas49. Aqui podemos observar que o que mudou foi o comportamento.Quando surge sabedoria, é capaz de remover essa impureza. Quando tem aindamais sabedoria do que isso, não consegue mais se apegar, acontece sozinho.Aquele comportamento muda.

Vê a coisa velha e joga fora, como se fôssemos à floresta e entrássemospara colher frutas. Vemos as frutas que ainda estão verdes e colhemos, enchemos asacola. Em seguida vemos frutas que estão melhores que aquelas, então temos quejogar fora as frutas verdes. Quando vemos assim, jogamos fora, mudamos. Nossamente é igual. Mudamos, vemos a desvantagem do antigo e abandonamos ainda

49 De acordo com as escrituras, um sotāppana alcança iluminação em no máximo 7 vidas.

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mais, jogamos fora. Quanto mais vemos, mais abandonamos. O que estamospraticando aqui – se pensamos que está correto, que é bom – é um aprendizadocontínuo, vamos abandonando continuamente. Por isso o nome vai de acordo coma prática, com o nível da mente que vai mudando, mudando. Chama-secomportamento.

Então, todos nós também temos que mudar nosso comportamento antigo.Quando mudando de comportamento, no começo temos que obrigar, mas emseguida não é preciso obrigar, a mudança ocorre sozinha. No começo temos quenos adaptar, ensinar, aconselhar a nós mesmos, aguentar. Vamos praticando atéconseguirmos ficar de pé sozinhos, então não há mais problemas. Vira nossaprópria natureza, nossa personalidade. Nasce uma sensação firme na mente, nãoadmitimos mais, não admitimos fazer errado, não admitimos fazer o mal.

Então, o Sotāpanna é uma pessoa que não volta, sotā patipanno – pessoaque segue adiante, não volta, segue adiante, vai continuamente. Como ir a Ubonou Warin, quanto mais formos, mais próximos ficamos, mais próximos ficamosaté chegar a Ubon. É uma pessoa que flui adiante, sotā significa fluir. Como osrios e pequenos riachos, que fluem em direção ao oceano. É a mesma coisa. Issosabemos no aqui e agora, não dependemos da aprovação de ninguém, bastapraticarmos e saberemos. Aquilo que é pesado fica leve, aquilo que é difícil ficafácil. Aquilo de que gostamos, mas que quando fazemos gera malefício, não temoscoragem de fazer. Portanto, aqueles que praticam o Darma, se forem leigos, sãodiferentes dos demais leigos. Se forem monges, são diferentes dos demaismonges, graças à sua prática. Em seus modos, seu ir e vir, comer, em tudo quefazem, não há bobagem, não brincam. A mente fica hábil. No começo o mestreajuda a obrigar, nós nos obrigamos a treinar. Com o passar do tempo a menteenxerga e então mudamos. Quando ela muda, não quer mais voltar a ser comoantes. Não quer voltar ao que era antes, pois é errado, não está certo. Portanto, oSotāpanna consegue remover impurezas desse jeito e é uma pessoa que não volta.Não volta a fazer maldade, não volta a causar destruição. Mesmo que ele queirafazer, queira falar, queira o que seja, não segue aquele impulso. Se chama “umapessoa que não volta”.

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Todos nós também, podem olhar, nos ordenamos e, se praticarmos, vamosmudar. Mudamos nosso comportamento antigo, nossa sensação antiga, nossomodo de falar antigo. Tem que mudar, muda continuamente, tem que mudar. Porquê? Porque estamos atentos, temos cuidado, chama-se “sīla samvara”. Sīla éaquilo que controla, para que tenha medo, vergonha, até se desenvolver e nãoquerer mais fazer o que é ruim, o que não é bom, graças à sīla. Sīla nos faz mudarde comportamento, nos faz ver claramente: “Isso está errado, aquilo está certo”,nos faz ter vergonha e medo. Esses dois, medo e vergonha, são a totalidade desīla. Quer seja sīla de monge, noviço, leigo, todas as formas de sīla. Se não tiververgonha e medo, fica tudo sujo.

Portanto, aqueles que são sábios não sentem dificuldade em observar sīla.Se não entendemos sīla, sentimos dificuldade em observar. Não precisa ler a regramonástica do começo ao fim: “Se fizer isso é uma ofensa, se fizer aquilo é umaofensa”, tentar fazer dessa forma é muito difícil, não tem como não ser. Naverdade os sábios observam sīla resguardando suas mentes para que sejam dessaforma normalmente e pronto, isso já é sīla por completo. Já é sīla. Portanto,quando a prática chega ao nível mais alto, a prática de sīla se refina ainda mais, ocuidado, a atenção, pois a mente fica hábil, a mente vê. Não precisamos forçá-la,ela é correta naturalmente, ela vê por si claramente, então se distancia ainda maisdo que é ruim. Ela vê que a prática, que todas essas observâncias, têm muito valor.Vemos o mal naquilo que fazíamos e que não é bom. Quando vemos o malnaquilo, podemos praticar. Qualquer coisa em que ainda não vimos o mal, nãoconseguimos abandonar. Qualquer coisa em que ainda não vimos o benefício, nãoqueremos praticar. Na hora de abandonar vemos o malefício, na hora de praticarvemos o benefício, assim fica fácil. É como se fôssemos puxados. Vemos omalefício e fugimos dele, vemos o benefício e vamos em busca dele. Quando vê omalefício dessa forma, a sensação, o pensamento que surge naqueles sábios que sededicam a essa prática é: “Quando conseguirei escapar disso?” Surge desencanto,desilusão, procuram um caminho para não voltar a nascer, não buscam maisnascimento, buscam aquilo que não nasce, tentam encontrar aquilo que não nascemais. Procuram abandonar, procuram remover, observam e verificam seus corpos,

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fala e mente, onde estiver errado – praticam bem ali, se esforçam bem ali. É assimmesmo.

Portanto, esse comportamento que o Buda ensinou, deixou para nós, estámuito correto. Quem não tem esse comportamento tem que mudar o antigo. Aindatem o comportamento antigo, portanto tem que mudar de comportamento. Se opraticante quiser seguir de acordo com o Darma, deve mudar. Quando sabe e vê,ele muda. Aquele monge fica diferente dos demais monges, o noviço fica diferentedos demais noviços, o leigo fica diferente dos demais leigos, pois é algo diferente.

Aqueles que praticam o Darma têm que conhecer moderação. Mesmo emcasa, por exemplo, tendo uma esposa ou esposo, ainda consegue tornar-se umSotāpanna, mas tem que conhecer moderação. O Sotāpanna conhece a moderaçãodele, não é uma pessoa que não conhece moderação, ele conhece moderação.Conhece moderação de que forma? Tendo sede, bebe água e chega. Tendo fome,come e chega. Isso é conhecer moderação. No nosso grupo é assim: quandocomemos, chega. Beber álcool, drogas, cerveja, o Sotāpanna não vai nessadireção. Se tem uma família, toma deleite somente em sua família, quer dizer, nãoadmite buscar diversão nas diversas formas de sensualidade. Não busca esse tipode diversão. É como se ele caminhasse até cansar parasse neste mundo só umminuto para descansar e depois fosse embora. Só isso. Não vê como algo bom,algo elevado, não vê como algo especial, ele vê como algo normal. Viver, comer,para aquele que pratica, é tranquilo. Vivendo em casa ele é diferente das demaispessoas, o modo de viver é diferente dos demais, vive com felicidade. Se vive nomonastério é a mesma coisa. Se é monge também é diferente dos demais monges.O modo de ser dessa pessoa é diferente das demais. Ela possui um coraçãosaudável. Não tem coragem de fazer o mal, respeita o Buda, o Darma e a Sanghaao máximo.

Prática é a mesma coisa: se formos desenvolver nossa mente, temos quesaber o que se passa na nossa mente, o que estamos sentindo. Tem que ter medo,vergonha, não ter coragem de fazer o que não é nosso dever. Nosso dever é apenasabandonar. Essa sensação nasce graças à prática: estando ciente, abandona. Não épara estar ciente mas não abandonar, isso é ficar só na teoria, não alcança o

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coração. É a mesma coisa, o que estamos estudando juntos, desenvolvendo juntos,requer que pratiquemos muito. Tem que ser muito. Não é só vir aqui no dia douposatha e ouvir o sermão. Se praticarmos vamos ver, se praticarmos vamossaber, até mudarmos de comportamento. Se mudamos não precisamos mais ficardirecionando muito, só um pouco e a mente vai sozinha. Por exemplo, se forSotāpanna não precisa mais direcionar. Ele já caiu na correnteza, ele seguesozinho, ele consegue ir sozinho. É uma pessoa que já não precisa de tutela.

Hoje em dia quase não existe quem siga essa regra. Se ordenam e em umou dois dias já vão embora, seis ou sete dias e vão embora sem avisar ninguém, deacordo com o que der vontade. Ainda não terminou a tutela, ainda toma ocomportamento antigo, o jeito antigo, a sensação antiga e vai praticar. Ainda é umleigo, um dono de casa, não tem comportamento de monge, pois ainda nãomudou. Portanto o Buda disse que se ainda não tem vergonha, não tem medo, nãotem disciplina, mesmo que tenha sessenta anos de vida monástica, ainda deveriaestar sob tutela. Mesmo que tenha setenta anos de vida monástica, ainda deveriaestar sob tutela. Deixamos a tutela quando conseguimos cuidar de nós mesmos, éisso. No mínimo cinco anos. É verdade, se durante os cinco anos tevedeterminação em praticar, se esforçou em fazer, estará bom. Quer seja monge ounoviço, onde for viver será bom. Após cinco anos pode-se dizer: “Dá pro gasto.”Sabe executar tarefas, é hábil em remover impurezas mentais. Portanto o Budadeterminou que houvesse a tutela. Enquanto estamos sob tutela dependemos deoutra pessoa, dependemos do upajjhāya, dependemos do professor. Ou, caso deixeaquele professor, tem que buscar um monge de bom comportamento, sīlaimpecável, e pedir tutela a ele. Esse é o modo de prática do Buda. Assim nãodegenera. Se agir assim, não se degenera, só encontra progresso à frente.

Bom, ajudem uns aos outros. Se ajudarmos alguém a ficar dentro daordem monástica, ele se beneficia ao máximo. É fácil de ensinar, não é um fardo.Não é um fardo para o professor nem para os demais monges, pois já sabe o que éerrado, o que é perigoso e abandona ambos – caso a mente seja desse jeito. Issoconsegue acontecer graças à prática, a saber aguentar, a fazer esforço. Olhe numúnico ponto: nossa mente. Olhe aqui porque “saber” está na nossa mente, nosso

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comportamento está na nossa mente. A mente é um ponto no nosso corpo, esteamontoado chamado forma, esta forma que usamos para sentar, há um únicoponto em que sabemos, vemos, é o ponto do coração. Os olhos, ouvidos, nariz,língua e corpo passam pelo ponto do coração. Portanto, o Buda dizia para sabercuidar do coração. Ter habilidade em cuidar do coração. Ter sati cuidando docoração, porque quando guardamos ali, cuidamos ali, naquele ponto, qualquerobjeto mental que passe vai chegar àquele ponto. Quando chegar naquele pontonós saberemos. Quando sabemos, é como um visitante que chegou, temos querecebê-lo. Se somos uma pessoa esperta, recebemos com sabedoria, conseguimoslidar com aquele objeto mental. Se não somos espertos, temos que recebê-lo comignorância e ele vai nos puxar pelo nariz50. A mesma coisa com os objetosmentais.

Portanto, ele dizia para aprender, mudar de comportamento, conhecertodas essas coisas. Quando chega o uposatha estudamos sīla. A mesma coisa paranós praticando o uposatha hoje, é para podermos ser dessa forma. Para podermosver dessa forma, ser dessa forma. A prática do ensinamento do Buda não requermuito, basta observar nossa mente, viver com o mestre e observar. Quando umobjeto mental surgir, não se apresse em ir atrás dele, não vá correndo atrás dele:“Eu gosto muito disso”, quando a mente estiver assim, não vá atrás dela. “Dissonão gosto nem um pouco!”, não diga ainda, observe. Observar é uma forma deenriquecer a sabedoria. Faça, largue aquilo, largue isso. Dessa forma sabedoriaconsegue surgir. Se formos correndo atrás dos objetos mentais, sabedoria nãoconsegue surgir. Se corrermos para aquele lugar, sabedoria não consegue surgir.Por quê? Porque aquele lugar não é onde nasce sabedoria. Sabedoria nasce ondevemos essas duas coisas.

Corra, veja e volte. Depois de segui-la, voltamos para nosso lugar, é aquique nasce sabedoria. O que segue os objetos mentais é a ignorância, é ela quesegue. O Buda dizia para ficar firme: quando os objetos mentais fazem contato,aqui continua firme. Firme significa normal. Se algo desagradável fizer contato –continuamos firmes. Essa firmeza que não se inclina à esquerda ou à direita, é

50 Na Tailândia rural era comum o uso de argolas no nariz para domar búfalos.

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bem aqui que sabedoria nasce. Talvez perguntem: “Por que não mais vamos atrásdos objetos mentais?” Porque a mente vê que aquilo é incerto, que aquilo não é deverdade. Aquilo é incerto, não é preciso ficar correndo atrás, não precisa seapegar. A mente age sob essa razão, ela entende todas essas coisas de acordo coma verdade dessa forma.

Por isso observe sua mente continuamente, contemple continuamente.Sabedoria nasce da mente, sabedoria nasce na mente. Fazer a mente ficar esperta éfazer sabedoria nascer ali. Se vamos correndo atrás, não temos esperteza, somosburros. Se corremos atrás, não somos espertos, não somos sábios, então somosburros, ficamos correndo de um lado para o outro. Corre, corre, sem saber paraonde está indo. Quando está feliz, corre até o limite da felicidade; quando estátriste, corre até o limite da tristeza; quando gosta, corre até o limite do gostar;quando não gosta, corre até o limite do desgostar. Só sofrimento. O Buda ensinavaa ficar firme, a ser unificado.

Falando de forma simples, pratique “Buddho”51 até a mente ficarunificada o tempo todo. Mesmo o Buda e os sāvakas tinham felicidade esofrimento, tinham coisas de que gostavam e não gostavam, mas eles conheciamaquilo e não corriam atrás. Largavam, pois viam o mal daquilo. Esse tipo deDarma não é um Darma para desenvolver, é um Darma para abandonar. Quandosurge deleite, estamos cientes; quando insatisfação surgir é a mesma coisa, elestêm o mesmo valor. Ele ensinava a largar, largar esses dois objetos mentais. Não épara largar por ignorância, é largar por conhecer todas essas coisas. Eles surgemrápido. Quando é felicidade, sabemos que é a mente feliz. Surge sofrimento esabemos, mas não nos apegamos ao sofrimento. Não há dono daquele sofrimentonem daquela felicidade. Assim que está ciente, solta. Surge e desaparece, surge edesaparece. Os elementos surgem e desaparecem, só isso.

A mente é livre. A mente não se mistura com os objetos mentais: mente émente e objetos mentais são objetos mentais. Quando separamos a mente dosobjetos mentais, vemos que são distintos. Um objeto ruim surge, mas a mente

51 Na Tailândia é comum o uso da palavra “Buddho” como mantra para ajudar adesenvolver samādhi.

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ainda está boa, ela não fica ruim atrás do objeto. O que é ruim é o objeto, a mentenão corre atrás. Objetos bons, ruins, de que gostamos, de que não gostamos, sãoapenas objetos mentais. É apenas o Darma surgindo e desaparecendo. Sesentarmos e olharmos, vemos apenas surgir e desaparecer, surgir e desaparecer.Quando ouve ou vê, está ciente, o mesmo quando de pé, andando, sentado oudeitado. Vê que aquilo é do jeito que é, não sofre por causa daquilo, não fica felizpor causa daquilo. Não se apega à dor ou prazer que vem daquilo. É da naturezadaquilo surgir e desaparecer em seguida, vê o surgir e desaparecer, surgir edesaparecer. Naquela hora ele sabe que aquilo que surge tem que desaparecer. Vêo Darma surgindo e desaparecendo. Vê o Darma surgindo e desaparecendo, o quemais haveria de ser?

É como uma onda no mar que cresce, cresce, e nós observamos. Quandoela chega à margem ela: “Ahhh!”, quebra e se dispersa, não sobra nada. Essa ondaacabou, vem a seguinte, vem até a margem; quando chega, se dispersa novamente.É assim o ano inteiro, a vida inteira, é desse mesmo jeito. É como uma ondaatingindo a margem. Esses Darmas são a mesma coisa: surgem e desaparecem,surgem e desaparecem, desaparecem e surgem, surgem e desaparecem. Eles sãoassim mesmo. A mente não nasce, não desaparece junto com aquilo. A mente nãonasce ou desaparece junto. Por que não nasce nem desaparece junto? Porque vêque tudo isso é existência, vida. Não é possível ficar correndo atrás disso. Quandoa mente sabe de tudo isso, quando se torna uma pessoa esperta – larga, a mentelarga.

Largar não é o mesmo que não saber, tem que saber para poder largar. Seusar a linguagem do Darma, podemos dizer que a mente ficou vazia. Se disser quea mente fica vazia, é como o Venerável Mogharaja52. Māra não conseguia alcançá-lo, a morte não conseguia alcançar, ele já tinha uma proteção. Māra é a morte, elanão conseguia alcançar. Não conseguia alcançar o Venerável Mogharaja. Por quenão conseguia alcançar? Porque ele sabia de acordo com a verdade, que nãoexistem seres ou pessoas. O que nasce e morre é só “nascer e desaparecer”, mentee corpo surgem e desaparecem de acordo com a natureza delas. Ele não morre –

52 Sutta Nipata 5.15 (Mogharaja-manava-puccha)

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Māra não conseguia alcançá-lo. Terra, fogo, água, ar se dispersam de acordo coma natureza deles, não há um ser ou pessoa ali. É vazio dessa forma, não é vazio deoutra forma. Não é vazio sem saber de nada, sem conhecer prazer, dor, não saberde nada – vazio. Normalmente a mente de uma pessoa não consegue ser vaziadessa forma. Se ficar vazia dessa forma, ainda vão existir dúvidas.

Temos que procurar o que é vazio naquilo que não é vazio; temos queprocurar libertação nas convenções53. Temos que procurar frescor no calor,procurar paz na confusão, procurar felicidade no sofrimento. Tem que ser assimmesmo. A mente vazia não é vazia sem saber de nada. Ela larga dos apegos, largadesejo, larga raiva, larga ignorância. Esses objetos mentais não conseguem maiscriar desejo ou raiva, pois não há mais dono. Surge prazer, mas não há donodaquele prazer. Surge dor, mas não há dono. Quando forma, sensações,percepções, formações mentais54 morrem e se dispersam, não há alguém paramorrer. Māra não consegue alcançar, não consegue alcançar essa pessoa. PortantoMāra não conseguia alcançar o Venerável Mogharaja. Māra só consegue alcançaraqueles que se apegam a “eu”, “meu”, “nós”, “ele”. Só alcança aqueles que têmimpurezas mentais, que não sabem de acordo com a verdade. Por isso se diz“mente vazia”, “mente vazia”. Se só pensarmos a respeito, não veremos nada demais. Pensa, fala isso, fala aquilo mas não sabe nada. Não sabe nada sobre o que évazio, pois ele é justamente o pacificar de todas essas coisas, não é outra coisa.

É o que se chama comportamento. No começo isso nasce docomportamento e vai mudando continuamente, Sotāpanna, Sakadāgāmi,Anāgāmī, Arahant, etc. Essas são manifestações da mente, vêm da prática erecebem esses nomes por abandonarem essas impurezas mentais, não é outracoisa. Não pergunte: “Eu pratiquei esse tanto, minha mente chegou a esse ponto,que nível é esse, o que já atingi?”, não pergunte pois só cria confusão. A mente eesses termos são diferentes, não são iguais. Já leram? “Desejo, raiva, ignorância”,já leram? O que surge no seu coração e a palavra nos livros, são diferentes? Se sóler o livro é fácil: “Eh, desejo é assim, raiva é assim” – fácil. Mas quando nasce na

53 Trocadilho entre as palavras “somut” (สมมด) e “vimut” (วอมมต), pode ser interpretado como“o incondicionado no que é condicionado”.

54 Os cinco khandhas (o quinto sendo “consciência”).

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nossa mente é daquele jeito? Eles vêm com violência, a coisa real é assim.Portanto, é característica da prática enxergar mais fundo do que isso. Oconhecimento teórico não leva a abandonar. Com o conhecimento que vem daprática, se conhercemos de acordo com a verdade, conseguiremos abandonar. Seaquilo é ruim, vemos de verdade; se é útil, é útil de verdade. Gera malefícios ougera benefícios na mente de verdade. É assim, e por isso o comportamento vaimudando continuamente. Vai nascendo continuamente, continuamente nossamente, por isso temos que procurar sabedoria na nossa mente.

Na maioria dos casos as pessoas pensam que essas são unidadesseparadas. Por que o Buda separou em sīla, samādhi, paññā? Separou para que osque estudam a teoria aprendam fácil, entendam fácil. Essa característica se chamasīla, essa samādhi e essa paññā. Mas na verdade sīla, samādhi, paññā são amesma coisa. São o mesmo, mas separamos, por exemplo nosso corpo: estes sãoos olhos, estas as orelhas, esta a boca, este o braço, todas as coisas no corpo dealguém, são a mesma pessoa. É a mesma pessoa. Separamos para saber “ali são osolhos, orelhas, nariz, pés, corpo” – separamos. Pode separar o quanto quiser, elesnão vão a lugar algum, continuam sendo a mesma pessoa. O praticante tem queser assim, vai unindo, unindo. Unindo sīla, samādhi, paññā. Sīla, samādhi, paññāsão um mesmo corpo. Se são um mesmo corpo, fica difícil estudar a teoria, entãoseparam: corpo e fala são sīla, mente é samādhi, paññā é paññā. Separam. Acaracterística de sentir, pensar, saber com clareza chama-se paññā, a característicaque é pacífica se chama samādhi, a característica que tem cuidado e atenção sechama sīla.

O nariz inala e sente fedor, sente perfume. Os olhos veem uma forma, osouvidos ouvem um som, tudo se reúne no saber da mente. Por que separamos?Para saber que aqui é o nariz, conhecer o nariz. Este é o nariz, estes são os olhos,esta é a boca, esta é a carne, a pele, os pelos, separa tudo mas ainda fica no mesmolugar. Quando juntamos tudo isso e contemplamos, vemos que este corpo é algoincerto; então a mente consegue escapar, consegue largar, ver a desvantagemdaquilo. Entende e vê todos os fios de pelo, todos os fios de cabelo, todos osossos, todos os tendões, vê tudo e surge nibbidā – desencanto com este corpo.

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Separamos para podermos entender mais facilmente, só isso, mas no final tudo sereúne.

A prática é a mesma coisa, upacāra samādhi, appanā samādhi. Como éappanā samādhi? Upacāra samādhi, khanika samādhi, appanā samādhi, tudo issodiz respeito à mesma mente. Khanika samādhi é ter paz por um período curto.Upacāra samādhi vai indo aos poucos, senta um período maior. São períodos detempo, esse período é curto, aquele é longo. Appanā samādhi fica direto váriashoras, é firme; quando a mente está assim se chama appanā samādhi, upacārasamādhi, khanika samādhi. É a mesma mente. Quando tem pouco samādhi temum nome, quando tem mais samādhi que aquilo, tem um outro nome, quandochega ao máximo tem um outro nome. Esse assunto temos que estudar para poderconhecer. Por exemplo, estude como é khanika samādhi, como é upacārasamādhi, como é appanā samādhi, pode estudar antes, mas ainda não vai saber.Tem que fazer, aí vai ver que existe paz por um período curto – upacāra samādhianda, upacāra samādhi passeia, reflete. Passeia dentro daquela paz por umperíodo. Appanā samādhi é firme, tem ainda mais força que os dois tiposanteriores de samādhi. Esses três só podem ser encontrados na mente daquele quepratica. Se perguntar antes, não vai entender: “O que é isto?” Não vai entenderporque quando chega em upacāra samādhi não surge nenhuma placa com osdizeres: “Aqui é upacāra samādhi”, não aparece desse jeito. Só as característicassão visíveis. Se temos sabedoria vemos: “Este nível é leve desse jeito, aquele éleve daquele jeito, aquele outro é assim”, enxergamos a mente desse jeito, deacordo com os textos. Essas são manifestações da mente.

Tem que ver por si mesmo, não precisa pensar nem complicar muito. Nocomeço da prática, peço que tenha atenção e cuidado com sīla. Esse é o começode tudo, tem que virar comportamento. Se estiver em grupo é como se estivessesozinho. Se está sozinho, está sozinho. Não há diferença, está ciente. Temdiligência o tempo todo dessa forma. Isso é o que se chama prática: quando amente enxerga, é assim. Ela não abandona seu dever. Quando chegar a esse nível,cuide para que a mente continue assim, procure cuidar dessa mentecontinuamente. Então saberá, verá tudo o que surgir naquela mente. Como uma

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tela de cinema: não olhe para outro lugar, olhe para a tela. Qualquer evento queocorrer vai aparecer na tela; a mente é a mesma coisa. Não precisa dar nó nacabeça, não precisa pensar demais. Tenha cabeça fria e cuide para que nadaconsiga lhe enganar. Conhecemos aquilo que gostamos e aquilo que não gostamosde acordo com a verdade, largamos aquilo até isso virar comportamento. Quandolargamos ficamos tranquilos. Quando carregamos é pesado, quando largamos ficaleve, vemos de acordo com a verdade na nossa prática. Não é de outra forma, nãoprecisa ter dúvidas. Peço apenas que pratiquem, cada um por si, pouco ou muito,mas se comportem de acordo, criem as condições, respeitem o treinamento.

Quando a mente se distrair, um pouco que seja, esteja ciente e largueaquilo. Quando quiser dizer algo que é ruim, largue e tente unificar a mente, issose chama samvara-sīla: cuidado, atenção, unificar a mente. Vá diminuindo atéchegar ao ponto em que é fácil de olhar. Quando sobrar somente corpo e mente, jáacabou. Declarar possuir poderes psíquicos, quebrar o celibato55, isso está longe,mas acontece bem aqui, temos que praticar bem aqui. É fácil ver, temos queverificar a regra monástica bem aqui. Temos que treinar, pois esse treinamento é anossa prática. Não precisa olhar isso ou aquilo: veja que nossa mente sofre e serácapaz de largar esse sofrimento. Veja a mente se apegando a desejo, raiva eignorância, pouco a pouco. Não precisa ver garudās, nāgas, devatas, brahmas56,pratique bem aqui, não precisa olhar para essas coisas, já é suficiente olhar parasua própria mente. O Buda queria que víssemos isso, soubéssemos isso de acordocom a verdade, nada mais.

55 Ambos são ofensas à regra monástica.56 Diversas classes de seres celestiais.

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Prática correta – 97

Prática corretaAjahn Chah ensina um grupo de pessoas que veio experimentar a vida monástica por um período curto de tempo.

(…) quando êxtase surge, há felicidade, não dá para descrever, mas quemchegar nesse ponto vai saber. Quando surge a felicidade, unificação mental surge.Então há pensamento aplicado, pensamento sustentado, êxtase, felicidade eunificação mental57. Essas cinco coisas se unem no mesmo ponto, não importa queelas tenham características diferentes; elas se unem no mesmo ponto. Nósenxergamos todas elas. Como frutas que estejam no mesmo cesto: não importaque elas sejam diferentes, vemos todas naquele cesto. Quer seja pensamentoaplicado, pensamento sustentado, êxtase, felicidade ou unificação mental, seolharmos na mente, vemos todos. É dessa característica, é desse jeito, existeassim. É felicidade de que jeito? Pensa de que jeito? É êxtase de que jeito? Não dápara falar. Quando elas se unem naquele lugar, nós vemos, acontece dentro donosso coração. A partir daqui fica diferente, a prática fica diferente do que eraantes.

Tem que ter sati, sampajañña. Não se engane! Não pense: “O que é isso?”Isso é só uma característica da mente, uma capacidade da mente, não fique comdúvidas na hora de praticar. Se afundar no chão – não importa. Se flutuar noespaço – não importa. Se for morrer sentado aqui – não importa, não fiqueduvidando, prática é assim. Olhe: quando ela é assim, qual é a característica danossa mente? Fique com isso. É só isso. Vá praticando. Isso já é dar resultado. Jádeu resultado. Há sati, sampajañña, está ciente de si quando está de pé, andando,sentado ou deitado. Desse ponto em diante, quando vemos alguma coisa não nosprendemos como antes, não nos apegamos. Quando vemos aquilo surgindocontinuamente – gostar, não gostar, felicidade, sofrimento, ter dúvida, não terdúvida – há investigação, reflexão, investigação dos resultados dessas atividades.Não aponte: “Isso é aquilo!”, não faça isso em hipótese alguma. Apenas esteja

57 Quatro fatores do primeiro jhāna.

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ciente. Veja que todas as coisas que surgem na mente são apenas sensações. Isso éimpermanente, nasce e cessa. Nasce e então permanece, permanece e então cessa,só vai até aí. Não há “eu”, “meu”, “nós”, “ele”. Não devemos nos apegar anenhuma dessas coisas.

Quando vê que corpo e mente são assim por natureza, quando sabedoriavê dessa forma, viu por completo. Vê a impermanência da mente, vê aimpermanência do corpo, vê a impermanência da felicidade e do sofrimento.Amor e ódio não são permanentes. Só vai até aí, a mente vira e: “Oh…”, sedesencanta58. Se desencanta com este corpo e mente, se desencanta com as coisasque surgem e desaparecem, coisas que são incertas. Só isso. Onde sentar-se, verá.Quando a mente se desencanta ela procura o caminho de saída, procura o caminhode saída de todas essas coisas. Não quer ser assim, não quer ficar assim, vê adesvantagem. Viu a desvantagem neste mundo, vê desvantagem na vida em quenasceu. É assim. Quando a mente é assim, onde quer que nos sentemos, vemosanicca, dukkha, anatta, e não há mais onde segurar nada.

Aí, caso sente sob uma árvore, ouve o Buda ensinando. No topo de umamontanha, ouve o Buda ensinando. Numa área plana, ouve o Buda ensinando,ouve. Vê todas as árvores como uma só, vê seres de todos os tipos como de um sótipo. Não há nada além disso, nasce e então permanece, permanece e então muda,cessa; só isso. Então vemos o mundo mais claramente, vemos o corpo e a mentemais claramente, vemos o mundo material e imaterial mais claramente. Fica maisclaro em termos de anicca, dukkha, anatta. Se as pessoas se apegam pensando: “Épermanente, é verdadeiro”, imediatamente surge sofrimento. É assim que elesurge, mas se virmos que corpo e mente são assim, ele não surge. Vemos quecorpo e mente são assim mesmo, não nos apegamos a eles. Onde quer que nossentemos teremos sabedoria. Mesmo vendo uma árvore nasce sabedoria, vê osseres nascendo nesta terra e surge sabedoria, vê os insetos e surge sabedoria, nofinal todos se unem no mesmo ponto, são Darma.

58 A palavra tailandesa “ ” เบบพอ agrega uma conjunção de significados difícil de reproduzir emportuguês. Ela expressa o tipo de cansaço mental que é uma mistura de tédio, irritação,falta de interesse e desânimo.

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Prática correta – 99

O ponto é: são incertos59, essa é a verdade, esse é o Sacca-Dhamma, éalgo impermanente. Onde há permanência? Só há permanência no fato de quesurge e é assim, não é de outra forma. Só isso, não há nada de mais além disso. Sevirmos dessa forma, terminou a viagem. No budismo, pensar: “Eu sou maisignorante que ele” ainda não está certo. Pensar: “Eu sou igual a ele” ainda não estácerto. Pensar: “Eu sou melhor que ele” ainda não está certo – pois não há “eu”. Éassim. Remove o apego à ideia de “eu”. É o que se chama lokavidū, sabeclaramente de acordo com a verdade. Se enxerga de verdade desse jeito, a mente éverdadeira, ela conhece a si mesma, sabe até o fim. Ela já cortou a causa e, nãohavendo causa, não surge mais nada, a chuva não consegue mais chover.

Eu estou falando sobre a prática, ela decorre dessa forma. As fundaçõesque devem que praticar, novatos iguais a vocês, são: número um – ser honesto,sincero; número dois – ter vergonha, medo, vergonha de fazer o mal; número três– ter humildade na mente, satisfazer-se com pouco, ser frugal. Se a pessoa é frugalao falar e nas demais coisas, ela vê a si mesma, ela não se envolve em confusão.Essa é a causa, essa é a fundação. Naquela mente não há nada. Só há sīla, só hásamādhi na nossa mente, está cheio de paññā na nossa mente, não há outra coisa.A mente naquela hora está andando dentro de sīla, samādhi, paññā.

Por isso, praticantes, não sejam descuidados. A instrução “não serdescuidado” nós quase não ouvimos – pouco, ouvimos pouco. Descuidado…Descuidado significa: com todo tipo de coisa, não seja descuidado. Mesmo queesteja correto – não se descuide. Errado – não se descuide. Bom – não se descuide.Tem felicidade – não se descuide. Todas as coisas – não se descuide. Por que nãodevemos nos descuidar? Porque tudo isso é incerto – segure desse jeito. Nossamente é a mesma coisa: caso haja paz, largue a paz. Também queremos ter alegria,é bom, mas entendemos o assunto? Ruim – entenda; bom – entenda.

Por isso treinar a mente é, na verdade, assunto de nós mesmos. O mestreensina o método para treinar a mente. Se vamos treinar a mente, tem que ser nós

59 Em tailandês “ ”ไมพแนพ . Essa expressão é recorrente no ensinamento de Ajahn Chah, ela éum aspecto de “anicca”, expressa impermanência, incerteza, imprevisibilidade, acaracterística de não ser garantido, não confiável e, portanto, não digno de apego.

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mesmos, pois a mente está em nós. Conhecemos tudo que está em nós, ninguém écapaz de saber tão bem quanto nós essa história de prática. Se fizer de formacorreta desse jeito, ficamos numa boa. Andando estamos bem, sentados estamosbem. Se quer ver por si mesmo, tem que fazer de verdade, não faça de mentira.Alguns dizem: “Se fizer de verdade não vou ficar cansado?” Não fica, pois faz namente, pratica na mente, treina na mente. Caso haja sati e sampajañña, tem queser capaz de saber o que é certo e errado. Se sabe isso, conhece o modo de prática.Não precisa muito. E, tendo conhecido todas as atividades, todos os modos deprática, traga tudo de volta a si mesmo.

Como com os monges e noviços que moram juntos, existem duas coisas:emular e imitar60. Emular e imitar – não se deve imitar, deve-se emular. Porexemplo, Tahn Ajahn Tongrat que é um grande mestre do passado. As pessoas quenão eram inteligentes não conseguiam receber o Darma dele, pois o imitavam.Não o emulavam, mas o imitavam. O hábito do Tahn Ajahn Tongrat era falar deforma descuidada, era o comportamento dele. Volta e meia ele pedia coisas 61.Quando ele dava bronca em público, eram broncas ferozes. O comportamento deleera assim. Mas na mente dele não havia nada, no fundo, ele já não tinha nada.Aquilo era apenas falar, o objetivo era o Darma. Na verdade, no que quer quedissesse ou fizesse, o objetivo dele era o Darma, mas eramos nós que não

60 Mesmo em tailandês o significado dessa expressão não é óbvio, o ponto chave aqui é ojogo de palavras เออยง - อยพาง (“íeng” - “yáng”). O que ele quer dizer é que não devemos sóimitar a expressão externa do comportamento de alguém, mas sim olhar maisprofundamente e procurar aprender com o que há de bom naquela pessoa.

61 Dentro do círculo de monges da floresta é considerado deselegante um monge pedir algoaos leigos, principalmente se isso os estiver incomodando. Conta a história que no vilarejoonde Luang Pó Tongrat morava havia uma família muita avarenta, que não dava nada deesmola aos monges quando eles saíam em pindapāta. Luang Pó Tongrat, famoso por suapersonalidade excêntrica, usava o seguinte recurso para “ajudar” aquela família a deixara avareza e fazer mérito: ele ficava de pé bem em frente à casa gritando “E aí? Cadê acomida?” e não ia embora enquanto eles não trouxessem um pouco de arroz para oferecer.A família então tentou outra estratégia para não doar: no dia seguinte, quando Luang Póchegou, a dona de casa se desculpou dizendo que não havia cozinhado porque haviaacabado a lenha. Na manhã seguinte Luang Pó apareceu na porta da casa com um feixede lenha nos ombros: “Tá aqui a lenha, eu fico aqui e espero você cozinhar o arroz.”Detalhe: é óbvio que uma colher de arroz tem muito menos valor que um faixo de lenha –ele realmente estava fazendo aquilo por compaixão àquelas pessoas.

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Prática correta – 101

entendíamos nada. O objetivo dele era o Darma, não causar o mal – e não causava.Andava para cima e para baixo, não era circunspecto. Onde quer que fosse ocomportamento dele era assim. Alguns monges o imitavam e se prejudicavam. Eraassim.

Portando todos nós, como eu já contei, dukkhā patipadā dandhabhiññā,dukkhā patipadā khippabhiññā, sukhā patipadā dandhabhiññā, sukhā patipadākhippabhiññā. Não podemos competir para ver quem tem mais pāramī que ooutro. Dá para comparar quem tem mais força no corpo, mas não dá para competirsobre pāramī. É como aquele monge disse: “Eu tenho boa intenção, queroprogredir, tenho boa intenção, mas ainda não é possível.” Mas tem que tentar, vádando chibatadas. Dukkhā patipadā dandhabhiññā é a pessoa cuja prática édifícil, há atrito, tudo é difícil, pratica com dificuldade e alcança o Darma devagar.Significa que acumulou pouco pāramī. Tem que usar esta oportunidade aqui paraacumular muito, não desista. Como um pobre, se ele pensa: “Eu sou pobre, nãovou trabalhar”, aí piora de vez. Se nos achamos pobres, temos que ter esforço nomínimo igual à demais pessoas e aí poderemos comer. Isso é igual, nós temos quepraticar muito, treinar muito, desenvolver muito, e também será possível para nós.

Esse é o dukkhā patipadā dandhabhiññā. O dukkhā patipadākhippabhiññā pratica com dificuldade mas alcança rápido, diferente do anterior.Alcança rápido, quase morre, vai aos trancos e barrancos mas alcança rápido. Semachucar não importa, se doer não importa, alcança rápido. Esse é o segundo tipo.O terceiro é sukhā patipadā dandhabhiññā: esse pratica fácil, mas alcançadevagar. Não há muito atrito, não há muita confusão, vai aos poucos, mas usamuito tempo. Às vezes alcança quando já está quase morrendo. Na época do Budatinha gente assim. Sukhā patipadā khippabhiññā, o quarto tipo aqui, pode-se dizer,pratica com felicidade e facilidade, alcança rápido, esse tipo também existe. Isso oBuda declarou. É assim.

Isso é igual… É igual ao ugghatitaññu, vipacitaññu, neyya, padaparama.O ugghatitaññu não precisa de muito, é só ele olhar e já sabe o que deve fazer ecomo fazer. É só a sensação do sofrimento surgir: “pup!” e ele resolve: “pup!”,muito rápido o ugghatitaññu. Vipacitaññu é preciso aconselhar, dar símiles para

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ele ouvir, ele não consegue abandonar o sofrimento em uma ou duas noites, masele consegue corrigir seus erros. É possível dar conselhos, dá para resolver oproblema. Esse é o vipacitaññu. Neyya… Estou falando da mente aqui, o nome damente é ugghatitaññu, vipacitaññu, neyya, padaparama. Estamos falando sobre amente. Existe mente que alcança muito rápido, se fosse um cavalo não precisavabater, era só levantar o chicote e ele já começaria a correr, era só ver a sombra dochicote e já começaria a correr. O vipacitaññu é do tipo que dá para aconselhar,levanta o chicote e ele não corre – então bate! Só então esse cavalo corre. Oterceiro tem que bater sem parar – ainda não corre. Então bate com frequência,caso contrário ele não corre – esse é o neyya. O Padaparama, pode bater àvontade – não vai, não corre, não anda. Se deixa levar por qualquer emoção:ensinamos o suficiente para que possa enxergar, mas ele não anda, fica quieto alimesmo, bate e ele ainda fica parado. Essa mente não enxerga, há muita escuridão.Esse é difícil, o cavalo desse quarto tipo aqui, o Buda joga fora. Não está jogandofora nada de mais, é algo que só oprime, não dá para ensinar, não entende – entãojoga fora. Por que isso? Carma do passado. Carma do passado vem interferir aponto de o carma novo não conseguir se manifestar. Como água numa garrafa quejá está cheia e não está vazando; se quiser colocar água nova, não consegue. Temque jogar fora a água velha antes. Tem que usar a água velha até acabar antes decolocar a nova. Isso é igual, se tiver carma interferindo é difícil. Se tiver carmaantigo interferindo, é muito difícil.

Então, de qualquer forma, para nós aqui, se vai ser rápido ou devagar, ouo que quer que seja, é fazer o bem e isso é bom. Quando faz, nada se perde, tendofeito é bom. Fazer o bem desfaz o mal, fazer correto expulsa o que é errado.Assim só traz benefícios; se nesse momento ainda não deu resultados, numaocasião futura dará. Carma, quando o carma antigo está dando resultado, o carmanovo não consegue se manifestar. É assim. Alguém aí já acumulou carma? Se essecarma está dando resultado, o carma que nós estamos fazendo agora não conseguedar, mas não é desperdiçado. Quando esse carma se exaurir, aquele carma surgeem seguida.

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Prática correta – 103

Por isso eu disse que não há desperdício: faça como reserva para colherbenefícios. Todas as coisas, caso ainda não tenha chegado a hora delas, elaspermanecem. Todos vocês que vieram praticar no Wat Nong Pah Pong durante oretiro das monções, tenham sempre a atitude de “deixar estar” para com os demaismonges e noviços. Tenham consideração pelos outros, ajudem-se uns aos outros.Ajudem-se a acumular pāramī, tenham firmeza e seriedade. Entendam que todosnós que viemos nos reunir aqui hoje somos filhos do Buda. Não somos filhos depai e mãe, somos filhos através do Darma. Se não agirmos de acordo com asinstruções do pai e da mãe, só os difamamos.

Tal qual declaramos: “Buddham saranam gacchāmi, Dhammam saranamgacchāmi, Sangham saranam gacchāmi” e assim por diante, essa é uma fala muitoimportante. Nós tomamos o Buda como refúgio, nós o estimamos. Dhammamsaranam gacchāmi, nós temos o Darma como refúgio, nós o estimamos. Sanghamsaranam gacchāmi, nós tomamos a Sangha como refúgio, nós a estimamos eassim por diante. É fácil falar, mas difícil fazer; é fácil falar, mas difícil agir deacordo. Se não tivermos sinceridade, não diminuirmos nossa arrogância, nãoalcançaremos o Buda, o Darma e a Sangha. Portanto não discuta e brigue sobre omodo de prática. Viemos construir pāramī, então acerte o alvo. É verdade que otempo é curto, é verdade que a quantidade de tempo é pequena, pois que sejapequena como uma cobra que é pequena, mas tem veneno. Não seja pequena deoutra forma, seja útil. Pense assim: “Fazer maldade 100 ou 1000 anos é ainda pior.Vir fazer bondade, que seja cinco ou sete dias, é muito melhor.” Tem essepotencial, dá resultado.

Portanto, a maioria das pessoas, antes mesmo de chegar na metade doretiro… na verdade, a característica das pessoas é com o passar do tempo ficaremdescuidadas. Quebram as regras de conduta que foram estabelecidas. Começam deum jeito e terminam de outro. Mostra que nossa prática ainda está defeituosa.Portanto, aquilo que no começo do retiro nos decidimos a fazer, façamos até queesteja completo. Que nesses três meses pratiquemos de maneira uniforme, docomeço ao fim. Todos têm que se esforçar, todos. Antes de começar o retiro nósdecidimos praticar de que forma, vamos fazer o que, como vamos praticar, o que

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foi que decidimos? Lembrem-se. Lembre-se, se estiver ficando desleixado temque se reajustar continuamente.

Como praticar ānāpānasati: a respiração entra e sai de maneira contínua;quando a mente se perde nos pensamentos nós a reestabelecemos, firmamos denovo. Quando ela vai seguindo os pensamentos nós a reestabelecemos, firmamosde novo. Isso é igual, firmar a mente é assim, firmar o corpo é assim, tem quehaver esforço. Os outros tipos de coisas que fazemos desde que nascemos até osdias de hoje, vários anos, já conhecemos. Não dá para fazer ainda mais maldade,coisas ruins, já fizemos muito. Agora viemos decididos a construir bondadedurante três meses. Todos nós neste retiro, pensem que estão nascendo de novo,comecem de novo, abandonem os velhos hábitos. Quer vocês continuem comomonges ou vão embora, que isso passe a fazer parte da sua personalidade. Fazer obem não é desperdício, fazer o que é correto não vira desperdício. Só não é bompara a maldade, só não é correto para o errado. Não vai para lugar algum, fica nasua própria mente.

A maldade, quando fazemos, é só pensar e nos sentimos mal, quer tenhasido ontem, anteontem, dois ou três meses atrás – quando lembramos nossentimos mal. Por exemplo, na época em que nós éramos leigos destruímos acabeça da estátua do Buda aqui, isso é um exemplo. É só entrarmos no monastérioe vermos a imagem do Buda que sentimos: “Ôôô! Que maldade!” Mesmo estandofora do monastério, é só pensarmos e sentimos a maldade, não nos sentimos bem.Mesmo que venhamos nos ordenar dessa forma, ainda pior: vamos fazerreverência à imagem do Buda todo dia e não tem cabeça porque nós a destruímos.Isso se chama fazer o mal, é maldade, não nos sentimos bem. Quando fazemosmaldade, mais tarde sofremos. A bondade quando feita não gera sofrimento, isso éigual.

Agora que viemos virar monges; se nos comportarmos direito, vamos nossentir muito bem. Depois que largarem a vida monástica, quando pensarem emWat Nong Pah Pong, vão sentir felicidade, sentir que fizeram algo de bom paraque o pai e a mãe possam se orgulhar. Vai ser nosso refúgio, vai ser o refúgio dosnossos filhos e netos. Este local é onde construiremos bondade nesta vida. Tenham

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Prática correta – 105

isso bem firme no coração de vocês. Muito bom. Fazer as coisas é assim, se fizero mal encontra o mal mais tarde…

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Nascimento e RenascimentoEnsinamento dado por Ajahn Chah à comunidade monástica de Wat Pah Pong.

(…) se há algo a que não nos apegamos, aquilo não vem a existir,sofrimento não nasce. Sofrimento nasce de existência, tem que haver existênciapara que nasça. Nascimento, nasce na existência62. O próprio apego é a existência.Agarrar-se, apegar-se é existência para que sofrimento nasça, para sofrimentonascer – pode olhar. Não olhe longe, olhe o presente, olhe o nosso corpo e menteneste momento em que estamos praticando. Quando surge sofrimento, por que ésofrimento? Olhe bem naquele momento! Quando surge felicidade, por que éfelicidade? Olhe bem naquele momento: onde quer que ela nasça, investigue bemali. Sofrimento nasce do apego, felicidade nasce do apego, só isso. Nascimentonecessita de existência, vida. Se há vida ela tem que vir da existência, então hávida. Na vida há velhice, na velhice há doença, morte, sofrimento, angústia, etc.Não precisa olhar longe, olhe bem aqui. Apego faz nascer felicidade, faz nascersofrimento, sem se dar conta. Se há algo que goste, se apega: “Isto é meu, disto eugosto”, e fica feliz. Vê? Nasceu. Nasceu por quê? Apego. É fácil de ver, nãoprecisa olhar muito. Naquilo onde houver existência, será mais um lugar ondenascerá sofrimento. Sofrimento nasce da existência, sofrimento é vida; quando hávida, há existência – sofre. Nasce bem ali.

Esta vida já sabemos: ela nasce da existência; seja felicidade ousofrimento, nasce da existência. Só isso já vem a ser uma vida. Nasce felicidade,nasce uma vida, nasce sofrimento, nasce mais uma vida. Não é o caso que as

62 ภพ-ชาตอ. Essas duas palavras tailandesas têm um significado difícil de traduzir ao ocidentepois existem dentro do sistema de pensamento que enxerga a vida como uma em uma longasequência de vidas. Em geral, essas duas palavras são utilizadas nesse contexto. Adiferença para nós é semelhante à diferença entre “a vida” e “uma vida” - o significado“uma dentre várias” já vem embutido na palavra. Não há tradução direta para oportuguês, o melhor que conseguimos arrumar foi “existência” para ภพ e “vida” paraชาตอ, embora “vida” no sentido de “estar vivo, possuir vida” é melhor traduzida como ชอวอต.Mesmo para alguém que fale o idioma tailandês, o jogo de palavras feito por Ajahn Chahaqui é um pouco inusitado e requer um certo esforço para entender.

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pessoas nasçam e morram num dia ou noutro, não é assim. São os objetos mentaisque morrem e nascem, morrem e nascem. Isso é o que Buda chama “pessoanascendo uma vida”, mil vidas. Nisso ele não está interessado, no que se chamapessoa morrendo e nascendo o Buda não estava muito interessado. No que eleestava interessado é o momento mental que nasce e morre – quantas vidas nisso?

O nosso corpo nasceu e nós ainda não morremos, não é? Estamossentados aqui, ainda não morremos. Mas morte na mente não é uma ou duas, sãodez mil, cem mil. Às vezes tem felicidade e gosta, às vezes tem sofrimento e nãogosta – estão vendo? Mas nós já nascemos quantas vezes? Quantas vidas,existências? Isso é que é importante. O corpo não tem importância; enquanto amente estiver se apegando, não precisa duvidar – vai continuar sendo escravo dosdesejos, se falarmos em termos da realidade última da mente. Sendo assim,sabemos na nossa mente: uma pessoa sem sabedoria, um tolo, nascecontinuamente. Está desejando aquilo que vem a nascer, deseja aquilo que nasce,ou seja, vida, e não quer morrer. Está vendo? Nascer e não morrer, isso existe? OBuda ensinou assim, mas nós queremos nascer, contudo não queremos morrer – édigno de se ouvir? É para dar risada? É bobagem? Tem sabedoria?

Vida. Se há vida, ela nasce da existência e tem que morrer, mas as pessoasdesejam muito, desejam nascer mas não querem morrer. Olhe, em nós mesmos éassim. Como querer que não haja sofrimento? Tem que ser assim. Isso é a pessoaque se deixou iludir pelo mundo, perdeu-se no mundo, não vai a lugar algum,deseja estar aqui. Na verdade o mundo real nasce, envelhece e morre o tempotodo. Os antigos mestres, praticantes de verdade, viam assim. Eles viam que éassim – nasce, morre, nasce, morre, não há nada garantido em lugar algum. Secontemplar, verá por todos os aspectos. É assim mesmo, não há nada garantido emlugar algum. Nasce, morre, nasce, morre, não há real substância. Andando elesente que é assim. Sentado ele sente que é assim. E aí, como é que vai ser? Só hásofrimento. No mundo como um todo, só há sofrimento. Como uma grande barrade ferro que foi posta na fornalha e está quente por inteira. Pegue, ponha a mãopara ver: em cima está quente, embaixo está quente, dos lados está quente, só há

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quente, não há onde não esteja quente, por quê? Ela saiu da fornalha, a barrainteira está vermelha de calor, tem onde esteja fria?

Por isso o Buda ensinou a contemplar até que não haja mais nascimento.Se falamos “que não haja nascimento” as pessoas se assustam, não é? Morrer enão nascer é a pior coisa possível. As pessoas no mundo entendem: morrer e nãonascer é a pior coisa no mundo – a pior! Não tem quem queira morrer, não é? Naverdade, se morrer e não nascer, está encerrado. Não há nada nascendo, não hámais nada, não há nada. “Vai ser felicidade?” Não há felicidade, e aí? “Então ésofrimento.” Não há sofrimento. “Então não é agradável.” Naquele lugar opensamento de que não é agradável não existe. Como é que fica? Se formospensar “hum… eu não estou gostando…” o pensamento “não estou gostando” nãoexiste ali, acabou. Se formos falar é assim; se for falar de acordo com a verdade,as pessoas se incomodam, não é? “É doido varrido, oh…” Então tem que ensinarde acordo com o mundo: “āyu, vanno, sukham, balam”63. Eles ficam felizes edizem “saaaaaaadhu!”, não é? Idade: que chegue ao máximo. Feição: a mais belapossível. Felicidade: que tenha ao máximo. Que tenha energia ao máximo. Bom,não é? Essa é a benção que se dá às pessoas mundanas, elas gostam assim.

Isso aqui, se não contemplarmos de acordo com a verdade, nãoentenderemos nada. Tem que conhecer a causa; se não houver causa, não dá emnada, não há efeito. Hoje em dia também é assim. Temos que ver com clareza,temos que não nascer, tem que não nascer. Experimente, para não nascer tem queentender o que é nascimento. Mesmo o pensamento “Puxa, essa pessoa medesagradou, me fez ficar com muita raiva”, já não existe. “Essa pessoa meagradou, eu gostei muito”, já não existe, há apenas a expressão mundana que fala“gosto muito”, “odeio muito”. Falam de um jeito, pensam de outro – sãodiferentes. Tem que usar as convenções do mundo para poder se entender com osdemais, só isso. Eles já não têm mais nada, eles estão acima. Tem que estar acimadesse jeito, é lá que os aryias moram. Conosco é a mesma coisa, temos quepraticar desse jeito, fazer um esforço. Não fique em dúvida, vai duvidar do quê?

63 Palavras finais dos versos que são recitados por monges como forma de benção ouagradecimento (anumodanā).

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Nascimento e Renascimento – 109

Quando eu ainda não praticava, pensava: “Estando o ensinamento doBuda presente no mundo, por que algumas pessoas praticam e algumas nãopraticam? Ou praticam um pouco e desistem, esse tipo de coisa, ou aqueles quenão desistem não praticam com dedicação total, por quê? Eles não sabem…” Euentão fiz uma promessa no meu coração: “Pois bem! Nesta vida eu ofereço estecorpo e mente. Até a morte, vou praticar de acordo com o ensinamento do Budaem todos os aspectos, então vou saber, vou praticar para saber nesta vida. Ficarsem saber é doloroso, então vou me entregar por completo, vou me esforçar! Nãoimporta quão sofrido ou difícil, tenho que praticar. Se não for assim, vou ficarpara sempre na dúvida.” Eu pensava dessa maneira, então me decidi a praticar:“Não importa quão sofrido ou agradável, tenho que praticar. Esta vida vai sercomo um dia e uma noite, só isso. Vou jogá-la fora! Jogar fora! Vou praticar deacordo com o ensinamento do Buda, com o Darma, até saber porque toda essaconfusão e dificuldade neste samsāra. Eu quero saber isso, eu quero ser assim.”Eu pensava em praticar e sentia alegria naquilo.

Neste mundo os monges renunciam a alguma coisa? Se é monge e aindanão desistiu, ainda pratica – joga fora tudo. Não há nada a que ele não renuncie:formas, sons, odores, sabores, toques – joga fora tudo. Todos os contatos, jogafora tudo. Renuncia ao máximo; aquilo que o mundo deseja, ele joga fora porcompleto. Por isso nós, sendo praticantes, temos que nos contentar com pouco.Temos que possuir frugalidade, contentamento. Mesmo em falar, conversar,comer, beber, tem que haver simplicidade ao máximo. Come com simplicidade,dorme com simplicidade, seja o que for, faz com simplicidade. Da forma que sediz “é nosso modo de ser normal”. Do tipo “simplicidade” – desse tipo.

Vá praticando, quanto mais pratica… Quanto mais pratica, sente maisalegria. Vemos nossa mente, coisas estranhas e incríveis. Queremos que as pessoastambém vejam, mas está fora da nossa capacidade fazê-las ver. Por isso esseDarma é paccattam, sabemos por nós mesmos. Se é sabendo por nós mesmos,então temos que praticar sozinhos. Na nossa prática contamos com o Ajahn emparte apenas. Por exemplo, hoje eu estou ensinando, vocês estão ouvindo? Estão.Isso ainda não é útil, falando claramente, mas o que estou dizendo ainda é algo

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que vale a pena ouvir. Ainda não é algo útil para nós mesmos; mesmo que hajaalguém que acredite só porque eu falei, ainda não gera benefício por completo. Sealguém acredita piamente no que eu digo, aquela pessoa ainda é burra. Se ouvir efor investigar com razão, for contemplar até ver claramente na sua própria mente,até conseguir largar sozinho, fazer sozinho – isso sim é algo que já deu muitofruto, já conhece o gosto dele e a pessoa sabe por si mesma dessa forma, deverdade.

Por isso o Buda não falava diretamente, não dá para falar com clareza. Écomo explicar a luz para uma pessoa cega, dizer: “Puxa, é branco de verdade, éamarelo mesmo, é preto de verdade!”, não dá para dizer. Explica, mas é como nãoter explicado, pois explicou para um cego. Explica, mas não traz benefício, poisaquela pessoa é cega. Por isso ele voltava e dizia para fazer e ser paccattam, a verclaramente em si mesmo.

Quando vê claramente em si mesmo, torna-se sakkhiputtha, viramostestemunha de nós mesmos, de verdade. Não temos dúvida, quer estejamos de pé,sentados ou deitados. Se alguém vier dizer: “Sua prática está completamenteerrada!”, ainda não nos preocupamos, ainda temos nossa fundação, nãoesquentamos a cabeça. Tem alguma fundação? Por exemplo, estamos sentadosaqui, sentados, estamos confortáveis. Se não houver algo fora do comum, estamosconfortáveis. Se houvesse um jarro e surgisse vontade de pegar, ele pesa um oudois quilos, é o peso dele. Eu estendo a mão para levantar aquele jarro, é algo forado comum, eu sei: “Hã… isso aumentou de peso, dois quilos.” Se estamos apenassentados, esse peso não existe. O peso vem de estendermos a mão e levantar ojarro, aí sentimos que há peso por volta de dois quilos aqui. Isso só nós sabemos.Mas se alguém disser: “Não há peso, você não está sentindo peso algum”,acreditamos nele? Nós não temos que pensar: “Eu não sinto peso – eu sinto peso”,não precisa falar. Por isso o Buda dizia para saber por si mesmo, não dá paraexplicar de verdade esse caminho. Só há “botar a mão na massa” e praticar. Asangha também é assim, eles praticam.

Eu vejo que aqui a maioria das pessoas têm essa atitude: vão indo, olhamaqui, olham ali, perguntam isso, perguntam aquilo, pensam: “Se eu falar algo que

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lhe agrade, ele vai dizer que é bom e ficar feliz.” Mas não é assim, isso nãoresolve o sofrimento, não corrige as opiniões. Essas explicações – não é que nãose deva ouvir – é bom ouvir. Tendo ouvido, vá contemplar até ver claramente emsi mesmo, só isso. É bom ouvir, não seja desrespeitoso, é digno de ouvir, digno derespeito, vá contemplar. Se for pensar, um praticante tem que ser assim. Aondequer que formos, não é possível que alguém explique para que possamos sabercom clareza, exceto nossa própria sensação, nossa própria visão – ela vira oelemento de sammāditthi. Prática é assim, conosco é a mesma coisa. Nessaprática, mesmo se formos ordenados monges por cinco anos, dez anos, mas nãotivermos praticado mais que um mês – fica difícil. A verdade é essa.

Na verdade temos que lutar com as sensações o tempo todo. Feliz,confortável – tem que saber. Triste – tem que saber. Gosta – tem que saber. Nãogosta – tem que saber. Tem que conhecer convenção, tem que conhecer libertação;convenção e libertação vêm juntos. Se conhece o bem conhece o mal, conhecejunto, eles nascem juntos. Isso é o resultado que nasce do trabalho do praticante.Portanto, o que quer que seja que gere benefício para si e gere benefício para asdemais pessoas – de acordo com o ensinamento do Buda que diz: “Tendobeneficiado a si mesmo, beneficie os demais” – isso é agir de acordo como oBuda.

E eu sempre ensino: aquilo que deveriam fazer, não querem fazer. Como arotina do monastério que eu ensino com frequência. As pessoas falam que nãoquerem se dedicar porque não sabem fazer, mas na verdade é preguiça, é irritação,é confusão, essa sim é a causa. Se formos para algum lugar e não houverenvolvimento, vai haver alguma coisa? Comida é a mesma coisa. Se comermos enão houver envolvimento, como é que é? Gostoso? Experimente para ver. Oouvido – se alguém falar e não nos envolvermos, entendemos alguma coisa? Senão entendemos nada, vemos o problema? Não havendo problema, há razão?Onde corrigir? Tem onde corrigir? Tem que entender assim.

Antigamente eu vivia no norte, fui morar com uns monges velhos.Tinham se ordenado já com idade avançada, tinham dois ou três anos de vidamonástica. Eu já era monge havia dez anos. Fui ficar com os velhos, mas eu havia

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me decidido a praticar, então recebia a tigela deles, recebia o manto deles, limpavao cuspidor, todo tipo de coisa64. Eu não pensava “Estou fazendo isso para essa ouaquela pessoa”, não pensava desse jeito, eu fazia como uma prática. Se os outrosnão fizessem, eu fazia. Era lucro para mim, era algo que me dava bem-estar,alegria. Quando vinha o dia do uposatha eu já conhecia os protocolos65, mesmosendo um monge jovem. Eu ia preparar o salão do uposatha, varria, colocava águapara lavar, água para beber, todo tipo de coisa – tranquilo. Aqueles que nãoconheciam os protocolos ficavam na deles; eu não dizia nada porque eles nãosabiam – isso eu tomei como prática. Eu fazia e me sentia alegre, tranquilo.Preparava os assentos e tudo mais e, quando dava a hora, vestia o manto epraticava meditação andando numa boa, alegre. A prática ia bem e tranquila, tinhaenergia. Minha prática tinha energia, muita energia.

Onde quer que seja necessário trabalho no nosso monastério, quer seja nanossa habitação ou na dos outros, onde estiver sujo – pode limpar. Não precisafazer para os outros verem, para se exibir, faça por sua própria prática. Se fazemosassim é como se varrêssemos a sujeira para fora dos nossos corações. Varrer ascabanas é como varrer a sujeira para fora dos nossos corações pois somospraticantes. Que isso esteja nos corações de todos nós. Não precisa muito, nãoprecisa pedir harmonia – surge sozinha. Que seja Darma dessa forma. Tranquilo,tranquilo, pacífico, quieto. Ajudem uns aos outros. Procurem fazer seus coraçõesserem desse jeito e nada será capaz de perturbá-los. Quando houver algumtrabalho pesado que requeira que todos ajudem – ajudem. Quando nos ajudamos étranquilo, não leva muito tempo, ajudem e fica fácil, logo está feito – essa é amelhor forma. O manto, a comida, as cabanas, os medicamentos são os nossossuportes.

Eu também já passei por isso, mas saí lucrando. Fui morar onde haviamuitos monges, alguns deles diziam: “Ei, no dia tal vamos tingir os mantos, OK?Ferva a tintura.” Eu fervia bem a tintura, alguns monges, amigos meus, apareciam,lavavam o manto e iam embora em seguida, penduravam para secar e iam dormir

64 Estes são deveres normalmente realizados pelos monges recém-ordenados.65 Deveres dos monges no preparar do local para a cerimônia do uposatha.

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numa boa. Não ajudavam a ferver a tintura, não ajudavam a lavar a panela, nãoajudavam a arrumar nada; eles pensavam que eles desse jeito estavam levandovantagem. É o cúmulo da burrice, acumula ainda mais burrice em si mesmoporque pensa: “Não trabalho e os amigos arrumam tudo, vou só quando estiverpronto.” Isso é o cúmulo da burrice, aumenta a burrice ainda mais. Pode ver:aquilo não gerava benefício algum para eles, olhem bem isso. Isso é o pensamentoignorante das pessoas. Elas pensam: “Nós somos bons, limpos, onde der para seesquivar, ficamos ali mesmo. Não precisamos trabalhar; o trabalho que tem quefazer, não fazemos. Se der para se esquivar, é o que há de melhor.” Isso é ocúmulo da burrice. Temos que ter essa opinião nos nossos corações, e aí não vaiser possível ser assim. Eu já fui assim, já me deparei com isso, já vi isso, tendovisto, entendi: “É assim.” Quando era hora de ficar com esse grupo, eu ficava.Quando era hora de ir embora, eu ia, não tinha problema algum. Portanto as coisaserradas e certas são os assuntos da nossa prática.

Numa época vieram alguns amigos de prática, eu já contei essa históriavárias vezes. Naquela época o Venerável Sumedho veio e o doutor… como é onome? Esses europeus vindo me procurar e eu nunca os tinha visto antes. Apenastinha ouvido falar que o país deles era muito divertido, mas nunca havia visto. Eupensei: “Agora eles terão oportunidade de ficar conosco”, quando ouvi a notícia…Dr. Burns! O nome era Dr. Burns. Eu fiquei incomodado, com medo, fiquei commedo: “Xiii, eles vão morar comigo, eles só têm prazer, tudo confortável, comoeles vão conseguir ficar aqui? Comida quase não tem, não é boa, molho depimenta com peixe azedado… Verduras e legumes comuns da roça…” Fiqueiincomodado, pensando desse jeito. Então eles vieram e: “Hummm…”, conseguirefletir: “Hummm… tente pensar desse jeito: Eu só tenho dez dedos na mão, cincoem cada mão. Se eles pedirem para ver minha mão com dez dedos cada, eu tenhopara mostrar? Cada mão tem cinco dedos; se eles quiserem ver uma mão com dezdedos, sete dedos, oito dedos, eu vou ter para mostrar? Eles vieram para aTailândia, por quê? Porque vieram estudar o budismo, estudar a cultura tailandesada Tailândia: ‘Como é que os tailandeses moram, como é que eles comem, o queeles fazem.’ Eles querem conhecer. Se eu arrumar tudo para eles, eles vão ficar é

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burros. Se ficarem comendo pão66, vão ter ganho algo para quando voltarem paracasa? ‘Como é na Tailândia? Como eles praticam?’, eles não vão saber nada. Vaiser causa para que sejam burros desse jeito. Portanto eles podem ficar.” Entãoficaram. Foi só pensar assim e fiquei feliz, tranquilo, mas para eles foi difícil.Como o Venerável Jagaro, esse pessoal aqui, vem para cá e tem problemas dedigestão. Ficam doentes um ano, dois anos – eu também fico com pena, mas nofinal eles ficam mais espertos, dá resultado. Eles aprendem várias coisas, elespraticam, eles conhecem, passam a conhecer o método de prática do budismo naTailândia – muito bom.

Tem que investir… Tem que investir. Portanto, quando for falar ou fazeralgo, tem que haver a sensação: “O que é que vim fazer aqui?” Queremos comerbem, dormir bem, esse tipo de coisa, mas “O que é que vim fazer aqui? Qual opropósito de ter vindo até aqui?”, temos que saber. Se pensarmos assim sempre,vai despertar nosso coração o tempo todo. Não perde atenção, fica desperto otempo todo. Quer esteja de pé, você estará praticando. Andando, estará praticando.Deitado, estará praticando. Se estiver praticando é assim. Aqueles que nãopraticam não são assim. Sentados é como se estivessem em casa. De pé, estão emcasa. Não demora, vão brincar em casa, vão brincar com as pessoas em casa 67,ficam lá arrumando confusão com elas. O coração fica desse jeito, não pratica.Ficam assim, sem treinar e controlar a própria mente, largam a mente ao vento, àsemoções. É o que se chama “seguindo as emoções”. Como uma criança em casa,se fizer tudo o que ela quer, é bom? O pai e a mãe fazer tudo que a criança quer, ébom? Se fizer tudo seguindo suas emoções, é como uma criança. Se teminteligência, tem que se irritar com isso, pois é burrice.

Tem que ser assim, treinar a mente tem que ser assim, tem que se sentirassim, tem que conhecer, tem que saber treinar sua própria mente. Se nós nãotreinarmos nossa mente, esperar que os outros o façam por nós é difícil, muitodifícil. Por isso, agora eu já me decidi: quando vier até Wat Pah Pong aqui, de

66 Originalmente não havia produção de trigo na Tailândia. Pão era considerado um artigode luxo. Atualmente, com o processo de ocidentalização, pão é um produto comum e podeser encontrado em qualquer lugar.

67 Vão deixar o monastério e voltar à vida laica.

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agora em diante, vou me esforçar, já me decidi. Por quê? Minha vida já não vaidurar muito, vou me esforçar para ensinar aqui. De manhã, na hora da pūja, deixoa cargo de Ajahn Chu e Ajahn Liem ajudarem. De noite, deixe para mim, eu lideroos monges e noviços aqui. Vou tentar fazer com regularidade. Já me decidi assim,já refleti. Vou tentar fazer mesmo que ninguém venha, vou tentar fazer assim. Aoportunidade é essa, é uma boa oportunidade. Quando penso no Buda lá atrás,vejo que é correto. Velho daquele jeito, abriu mão da vida, do agregado corporal edo mental – largou. Se for para morrer, que morra dentro dessa nossa prática. Issoé suficiente.

Tem que se esforçar, todos os monges e noviços, tem que refletir, tem quese esforçar na prática de samādhi, tem que haver continuidade. Se vocêspraticarem samādhi com frequência, a sīla de vocês vai melhorar, vocês terãoatenção e cuidado. Se vocês tiverem atenção e cuidado, a paññā de vocês vaimelhorar. Paññā melhorando, sīla melhora. Sīla melhorando, samādhi melhora.Samādhi melhorando, paññā melhora. É um ciclo desse jeito. Esse é o dever quetemos que cumprir, temos que nos esforçar. Se houver alguma dúvida no modo deprática, que não sejam muitas, não fique duvidando muito. Ao invés disso,pratique muito. Na minha prática já tive muitas dúvidas, mas não tinha muitacoragem de pedir respostas para as dúvidas. O mestre já havia ensinado, mas euainda não sabia por mim mesmo. Ele falava de acordo com a opinião dele. Aindanão resolvia, mas era bom, era um ponto de referência que eu tinha parainvestigar. Não me deixava influenciar pelas minhas opiniões ou as dos outros, iaestudando até ver por mim mesmo.

Não pense que, estando aqui, não está praticando: prática não possuiobstáculos. Dá para praticar de pé, sentado ou deitado; mesmo varrendo elimpando o monastério é possível alcançar a iluminação. Mesmo olhando um raiode sol é possível alcançar a iluminação. Não precisa ir sentar de olhos fechados otempo todo, cuidado! Quer estejamos de pé, sentados, deitados, onde quer queseja, temos que estar prontos. Por que tem que ser assim? Porque assim há aoportunidade de alcançar a iluminação a qualquer momento, em qualquer lugar

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em que tenhamos determinação, quando estivermos contemplando. Por isso, nãosejam descuidados, não sejam descuidados. Cuidado, estejam cientes.

Nos sentamos, saímos em pindapāta, surgem várias sensações antes devoltar para o monastério. Bem ali tem vários Darmas ótimos surgindo. Quandovoltamos para o monastério e nos sentamos para comer, tem vários Darmas ótimossurgindo para conhecermos e estudarmos. Conhecer que é assim que isso nasce.Se tivermos dedicação o tempo inteiro, não vai ser de outro jeito. Vai haver ideias,problemas, Darmas, vai haver dhammavicaya, investigação do Darma, o tempotodo. Será bojjhanga, “Bojjhango sati-sankhāto dhammānam vicayo tathā.Viriyam-pīti-passaddhi-bojjhangā ca tathāpare. Samādh’upekkha-bojjhangā satt’ete sabba-dassinā. Muninā sammadakkhātā bhāvitā bahulīkatā. Sanvattanti…”68

Na medida que estudamos, somos eruditos. Estamos estudando alguma coisa?Estamos estudando esses objetos mentais. Darma vai nascer nesta mente, nãoprecisa ir estudar com ninguém, em lugar algum, estude bem aqui. Sempre quetivermos sati, temos o que estudar.

“Bojjhango sati-sankhāto dhammānam vicayo” – se tiver sati temdhammavicaya. Eles estão em contato direto, são fatores da iluminação. Se temossati, temos dhammavicaya, não ficamos à toa. É fator da iluminação: se estivernesse sistema, alcança a iluminação. Está bem aqui, eu acredito firmemente nisso:aqui dentro da nossa mente, a prática, a contemplação não tem dia ou noite, não háhorário. Nos esforçamos ao máximo, é assim. Outros assuntos não atrapalham. Seestiverem atrapalhando, notamos, corrigimos. Tem que virar bojjhanga, o fator dailuminação, ter dhammavicaya no coração o tempo todo, investigar o Darma otempo todo. Por isso bojjhanga são os fatores da iluminação. “Bojjhango sati” –tem sati, “dhammānam vicayo” – surge investigação do Darma o tempo todo.

Quando a mente é assim, caso ela já tenha caído na correnteza, ela nãoinvestiga outras coisas: “Vou passear por lá, vou passear por aqui, por ali, aquelemunicípio, aquela província”, não vai desse jeito. Isso é se perder no mundo,então morre ali mesmo. Não vai desse jeito. Se for, morre e é enterrado bem ali.Há lucro e prejuízo o tempo todo, tem que pensar assim. Por isso se esforcem.

68 Trecho da Bojjhanga Pārita.

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Não é só sentar e fechar os olhos e vai haver sabedoria. Olhos, ouvidos, nariz,língua, corpo, mente estão sempre presentes; estamos sempre acordados, estamossempre cientes, estudando o tempo todo. Do lado de fora vemos uma folha deárvore, vemos os animais e estudamos o tempo todo. Trazemos para dentro – éopanayika-dhamma. Vemos claramente em nós mesmos – é paccatam. Mesmoque haja objetos de fora entrando em contato conosco, é paccatam, não hádesperdício.

Falando de maneira simples, é como um forno de produzir carvão, jáviram? Forno de produzir tijolo, já viram? Se fizerem direito, acendem o fogo àfrente do forno, cerca de um metro, e toda a fumaça é sugada para dentro doforno. Podem olhar, de onde vem isso, por que falo assim? Vemos claramenteassim, é a forma de comparar. Se fizer direito, um forno de produzir tijolo vai serassim: acendemos o fogo na frente do forno, cerca de dois ou três metros; quandosurge a fumaça ela é sugada para dentro do forno por completo, não sobra nada. Ocalor se acumula no forno, nada escapa, tem que ser assim. Como a fornalha decremar defunto: quando eles acendem, o fogo é sugado todo para dentro, o calorvai atuar o mais rápido possível. É assim a sensação do praticante, é a mesmacoisa. Quando é assim, qualquer sensação é sugada para dentro de sammāditthi. Ésó os olhos verem, os ouvidos ouvirem, o nariz sentir um cheiro, a língua sentirum gosto, tudo é sugado para dentro e vira sammāditthi, é assim que é. Isso é umsímile, tenho que explicar desse jeito.

Que vocês levem a sério, quer seja monge residente, quer seja visitanterecém-chegado, quer seja monge recém-ordenado, quer seja candidato àordenação – tem que entender dessa forma. É o modo de prática aqui em Wat PahPong. Tem que conhecer o modo de se comportar aqui em Wat Pah Pong. Euestando aqui, não me envolvo muito com ninguém, com os discípulos. Algumaspessoas podem não entender, pensando: “Ele não pergunta nada, ele não conversanada”, não sejam burros a esse ponto. Tome Pó Kao Pân69 como exemplo. Nuncaperguntei, esse ano fui perguntar:

69 “Pó Kao” (pai branco) é o nome utilizado na região nordeste da Tailândia para se referira homens que moram no monastério e observam oito preceitos (anagārika).

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“Pó Pân, de onde você é?”

“De Nong Pen Nok.”

“E há quanto tempo mora aqui?”

“Oito anos.”

“Já mora há oito anos, ainda não está entediado?”

“Ainda não estou entediado.”

“Como pode ser que ainda não esteja entediado!?”

“É porque decidi vir morrer aqui.” Isso é muito bom de ouvir: “Decidi virmorrer aqui.”

“E até que ponto você vai praticar? Como é que vai ser?”

“Vou até encerrar.” Este ano perguntei a Pó Kao Pân:

“E já está chegando perto?”

“Já está chegando.”

Isso eu ouvi sair da mente de Pó Kao Pân. Ele veio morar aqui, nuncareclamou: “Luang Pó, minha prática está confusa, eu quero virar monge, eu querovirar noviço…” Nunca. Nunca ouvi: “Eu estou desse, daquele jeito…” Nuncaouvi. Mesmo doente, eu só pergunto:

“Tem dinheiro para usar?”

“Tenho um pouco.”

Não sei se tem ou não tem, sei lá. Os filhos vêm visitar ou não – nuncame interessei. Oito anos até ter perguntado, perguntei este ano. Isso é o que sechama “árvore na floresta”, não precisa regar, não é? Ela suga a energia do sol,usa o sol como adubo, não morre – natureza é assim.

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Ajahn Liem – 119

Ajahn Liem

“Se não tiver felicidade nemsofrimento, o que é que há? Há frescor.Há frescor, há bem-estar. Frescor ébem-estar, no bem-estar há felicidade.O Buda disse que felicidade maior doque essa não existe, ‘natthi santi paramsukham’ – felicidade maior que paz nãoexiste. Paz exterior e paz mental quefazem parte do Darma fazem surgirfrescor. O modo de ser que faz surgiraquilo que chamamos de Darma.”

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Gratidão à naturezaAjahn Liem fala à comunidade leiga de Wat Pah Pong.

Saudações a todos. Hoje é um dia em que temos um dever. É um diaprecioso e esse dever precioso é um adorno para nós. Quando chega um dia comoeste, damos importância a reforçar nossas qualidades e pāramīs, o que há de beloe bom, pois entendemos que é uma parte do que dá valor à vida. Se temosqualidades e bondade, o valor da nossa vida fará nascer felicidade e progresso. Odia de ouvir o Darma, o dia do uposatha, faz parte das atividades que devemosrealizar. É um dever para nós, seres humanos. Temos que dar importância areforçar isso, nos encontrando para tomarmos parte nessas atividades. Essasatividades que realizamos nos ajudam a ganhar uma boa disposição, uma mentehumilde, a ter o que se chama “algo belo”. Para obter isso, utilizamos o ato de darimportância. No começo utilizamos dar importância a essas atividades para criar afundação. Se construirmos a fundação, nossa personalidade naturalmente seguiránaquela direção.

O dia de ir ao monastério praticar o Darma é condizente com nossaintenção de reforçar nossas boas qualidades; portanto, viemos dar importância aisso. Hoje é dia três de agosto e, no budismo, esse é um dia em que fazemosmérito70. É o dia da Lua Nova do oitavo mês, podemos dizer que é o dia derealizarmos nosso dever. É o dia três de agosto e em agosto tomamos parte emexpressar respeito, na forma de pessoas que possuem gratidão71. Todos temos quepensar em nossa dívida de gratidão, temos que ter gratidão. Se não soubermos tergratidão, é possível irmos na direção de não mais nos desenvolvermos, porque nãoter gratidão é o caminho da degradação, é o caminho da ruína. Não se encontradesenvolvimento ou, se quiser, pode-se dizer que não há desenvolvimento algum.O Buda então comparava, dava o símile na forma de linguagem, dizia que é umcaminho que temos que abandonar, não dar importância. Nos lembramos da dívida

70 Naquela ocasião, o dia de três de agosto era o dia do uposatha.71 Em agosto se celebra o dia das mães na Tailândia.

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Gratidão à natureza – 121

de gratidão para quem? É bom pensar com gratidão ao pai e à mãe, não é ruim,pois são aqueles que cumpriram o dever de nos dar suporte. Nos deramnascimento, cuidaram de nós, nos sustentaram para que pudéssemos nosdesenvolver tanto fisicamente como intelectualmente. Tudo isso graças àquelesque cumpriram seu dever com bondade e compaixão, que tiveram bem-querer. Talqual dizemos que bem-querer é o Darma que sustenta o mundo. Devemos darimportância a isso.

Outro item é ter muita gratidão, gratidão completa. E aquilo a quedevemos ter gratidão completa são aos recursos da natureza. Os recursos naturaisgeram a oportunidade para nascermos. Não podemos dizer que não temosenvolvimento – temos que nos envolver com os recursos naturais. O que são osrecursos naturais? Podemos entender que a natureza faz parte das coisas com asquais temos que nos envolver sempre, o tempo todo. Acho que somos capazes desaber: não está além da nossa capacidade de pensar e entender com o que estamosenvolvidos o tempo todo. É aquilo que recebe e sustenta diversas coisas, ou seja, ochão, a terra. A terra é parte dos recursos naturais, temos que ter gratidão a ela,reconhecer o valor dela. Se reconhecemos seu valor, nós nos adaptamos,mudamos. Mudamos qualquer comportamento que seja ruim, porque normalmentejá sabemos que ficar de pé, andar, sentar, deitar, tudo, até mesmo o realizar donosso ofício, é possível graças à terra, ao chão, àquilo que chamamos de “mãe”,“mãe terra”. Provavelmente todos já vimos na forma de imagem na cidade deWarin, onde eles fizeram uma imagem representando a mãe terra em que elaespreme seu cabelo para que a água saia72. Fizeram uma representação e podemosver.

Então isso é algo que devemos entender. Quando entendermos, vamosprestar reverência, vamos agir de forma a não causar degradação, para que nãodesapareça. Se houver degradação haverá consequências, haverá consequências

72 Diz a história que, na noite em que o bodisatva alcançou a iluminação, ele invocou a“mãe terra” para dar testemunho dos longos anos que passou desenvolvendo os dezpāramīs. Ela, então, personificada na forma de uma mulher, espremeu a água de seu longocabelo, e essa água se transformou em uma grande enxurrada que arrastou Māra e seuexército, que tentavam obstruir o bodisatva.

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122 - Darma da Floresta

que podem causar o desaparecimento da nossa vida e também da espécie humana.Temos que entender assim. Quando entendemos assim, temos que saber comodevemos agir para surgir o sentimento de querer evitar causar degradação oudestruição. O mesmo que fazemos em relação a nossos pais: nós os veneramos,honramos nossos pais praticando o que se chama “bom comportamento”, querdizer, agir de forma a não fazer o pai e a mãe sentir preocupação e apreensão. Nomínimo temos que nos comportar de forma a não criar problemas. Se nossos atoscriam problemas, os pais se sentem mal, faz os pais sentirem mal-estar; nomínimo, sofrem. Por exemplo: se nosso filho ou filha tiver problemas, fizer coisasque a sociedade não aceita e isso virar um assunto, disputa na sociedade, a pontode haver brigas e ir parar num tribunal, os pais devem ficar incomodados, não têmfelicidade, não dormem tranquilos, não sentam tranquilos, não têm tranquilidadequando estão de pé. Por que isso? Porque aquele filho não dá importância àquelesque cumpriram o dever de criá-los.

Isso é a mesma coisa: nós dependemos dos recursos do mundo, que é oberço, é onde nascem todas as coisas que têm vida. As coisas vivas e as coisas quecriam condições para que haja vida dependem do mundo, dependem da plenitudedo mundo. Portanto, no que diz respeito à plenitude do mundo, temos que sersensíveis e agir com sabedoria e compreensão. Se nosso saber e compreensãoforem completos, agiremos de forma a nos harmonizarmos. Provavelmente todosjá ouvimos falar de qualidades que entendemos serem aquelas que fazem surgirfelicidade por toda parte. Isso existe no modo correto de agir, conduzir a si,conduzir a si de forma a ter bem-querer, desejar que haja felicidade por toda parte.Temos que evitar agir de forma a fazer surgir disputas. Disputas fazem surgir mal-estar, e mal-estar faz surgir destruição. Isso é algo sobre o qual devemos refletir.Portanto, nosso comportamento, especialmente no nosso país, pode-se dizer nanossa terra, na nossa sociedade… Já estudamos e sabemos isto: conduzir a vidadepende de ações, boas ações, o que chamamos de supatipanno – pessoa que agebem. Ao conduzir a vida de modo a obter os requisitos básicos para sobreviver,peço que ajam com boas ações. Pensem assim, pensem de maneira ampla,pensamento do tipo sem barreiras, sem limites, que é um aspecto do Appamaññā

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Gratidão à natureza – 123

Dhamma73, que é a fundação para viver como um aryia. Os aryias vivem comAppamaññā Dhamma.

Todos devemos ser capazes de entender que somos parte da mesmafamília. Não é de outra forma. Somos uma espécie e temos um vínculo de acordocom a verdade da natureza. Não diferimos em absolutamente nada. Mesmo nossossentimentos são iguais. Esse sentimento todos conhecem: todos queremos afelicidade, mas o sofrimento não aceitamos, recusamos. É assim: não importa emque situação, é sempre igual. Dizemos que queremos o que é bom. O que não ébom – recusamos. Se vemos assim, se nos sentimos assim, será característicanossa que sempre que fizermos algo, terá que ser útil. Ser útil para si e para osdemais também. Se for útil para si e para os demais, trará união. Irá se expressarem cuidar um do outro, morar juntos ajudando uns aos outros. Isso é algonecessário. Não é possível evitar. Temos que contar uns com os outros. O mesmocom relação a nós que estamos vinculados aos recursos naturais, temos que cuidar.Se somos praticantes do Darma, temos que dar importância a isso.

Hoje em dia todos sabemos que a evolução natural, isso quase não falammas na verdade ela tem a ver com nossa vida, tem a ver com nossa prática. Porisso, tem que se dizer e avisar que essa evolução tem ambos, lado positivo enegativo. O mesmo ocorre com as mudanças na nossa sociedade. Atualmente elasindicam a aproximação de um colapso, aproximação do desaparecimento destasociedade. O que significa colapso e desaparecimento? Significa o extermínio. Empoucas palavras, extermínio. A sociedade está de uma tal forma que não gera umasensação boa. Temos que pensar, investigar: de onde vem isso? Deve vir de algoque tem uma causa. Causa do quê? Causa da falta de plenitude da natureza. Deveser assim. Quando é assim temos que considerar, refletir. Eu, por isso, costumoensinar que nós devemos viver sabendo ter moderação. Em pāli se chama bhojanemattaññutā. Ter moderação no consumo tem a ver com viver com equilíbrio, combeleza. Equilíbrio e beleza não têm o que adicionar ou remover.

73 “As quatro qualidades imensuráveis”, ou seja: bem-querer (mettā), alegria pelo bem-estaralheio (muditā), compaixão (karunā) e equanimidade (upekkhā).

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É como nossa mente; se for comparar, é como nossa mente. Se nãotivermos a sensação de deleite ou aversão, como fica? Se olharmos, vamos verque se não tivermos deleite ou aversão, ou seja, nem preto, nem branco – se disserque é preto, não é; se disser que é branco, está errado. É um estado que tem acaracterística de ser Darma, faz com que não sinta nem felicidade nem sofrimento.Se não tiver felicidade nem sofrimento, o que é que há? Há frescor. Há frescor, hábem-estar. Frescor é bem-estar, no bem-estar há felicidade. O Buda disse quefelicidade maior do que essa não existe, “natthi santi param sukham” – felicidademaior que paz não existe. Paz exterior e paz mental que fazem parte do Darma,fazem surgir frescor. O modo de ser que faz surgir aquilo que chamamos deDarma. Darma de quem? Daqueles que têm bem-querer pelo mundo inteiro, quechamamos de aryias. Devemos pensar sobre isso.

Portanto, se queremos nos desenvolver para que haja plenitude, para quenão causemos destruição, devemos procurar um método, ou reajustar nossasações. Simplificando: se antes bebia, para de beber; se antes fumava, não precisamais fumar; antes passeava à noite, para de passear74, e assim por diante. Como éo resultado? Conseguem ver? Se parar de beber, na sociedade em geral e dentro dasua família, não haverá mal-entendidos e confusão, quer dizer, não vai gerarbrigas e desavenças, pois sabemos que a bebida faz o sistema nervoso da pessoatornar-se um sistema nervoso de monstros e demônios, de pessoas ruins e de seresdo inferno. E é algo que é fácil de ver, não é difícil de observar. É fácil de ver essefenômeno. É algo gráfico o suficiente para podermos notar. É algo queconseguimos ver. E parar de fumar – fumar não é algo bom, queima o dinheiroque ganhamos usando energia e inteligência, aumenta a quantidade de coisassupérfluas de forma negativa. Temos que simplesmente abandonar esse hábito,não tem nada de mais, e ainda traz benefícios para a saúde. Isso se manifesta dessaforma. Por exemplo, não passear à noite, pois nossa sociedade é uma sociedade deparceria, sociedade de grupo; se não passeamos à noite, falando de forma simples,

74 No Sigalovada Sutta (Digha Nikaya, 31), o Buda cita o ato de passear à noite como ummau hábito que os leigos devem evitar (vale lembrar que antigamente não havia nemautomóveis nem iluminação elétrica nas ruas, e passear à noite era algo perigoso, quenormalmente não era feito por “pessoas de bem”).

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nossa família se sente acalentada. Nossa sociedade não vai nos olhar com mausolhos. Se passeamos à noite, nos olham com maus olhos, como uma pessoa ruim,alguém em que não se pode confiar; não faz surgir a sensação de confiança. Isso éalgo que podemos ver por nós mesmos. O Buda tinha boa intenção dessa forma,ele então recomendou um modo de vida que gerasse a sensação de inocência esegurança, que trouxesse a sensação do Darma para que tenhamos bem-estar.

Bem-estar nasce do quê? Nasce de não ter doenças. Nosso corpo é umadas ferramentas para vivermos. Se essa ferramenta não está em mau estado nemestá danificada, ela não nos gera preocupações. Não ter preocupações ajuda atermos uma vida que não gera sofrimento. Surge assim. Pensem nisso, reflitamsobre isso, e conduzam suas ações de forma a gerar plenitude no nosso viverjuntos na sociedade. Quando a sociedade vive tendo Darma, ela nos trazfelicidade. Como eu gosto de falar com frequência: “Esteja bem aonde quer quevá, tenha Darma sempre em sua mente.” Darma é a bondade, é o que é correto,bom e belo. Se nossa mente tem Darma, nosso coração tem Darma, nossasatividades serão compostas de Darma. Tudo que fizermos será construtivo, faráhaver a sensação de poder contar uns com os outros. Isso é semelhante. Portanto,devemos praticar usando nosso modo de vida no nosso país, na nossa sociedade. Éverdade que temos essa ou aquela profissão, mas temos que ter profissão destetipo: profissão do tipo que traga felicidade. Essa é nossa profissão básica, querequer nossa energia, energia do corpo, energia em aguentar as dificuldades, aqualidade da resiliência – temos que tê-la. Se tivermos essas coisas, elas vêm àtona. Portanto, em nossas diversas atividades devemos agir de forma a não gerardisputas e causar problemas.

A saúde do corpo. Não ter doenças não vem de outro lugar: vem daalimentação, nossa alimentação, nosso sistema digestivo. Quando comemos temosque saber: o que há naquela comida que estamos consumindo, trará malefício oubenefício? Pensem assim. Não é o caso que o Buda não tenha ensinado sobre isso:ele ensinou, mas nós não nos interessamos em aprender, então ficamos desse jeito.Portanto, as atividades que produzem os alimentos – eles vêm da atividade quechamamos de “sol nas costas, enxada no chão”. É uma atividade que requer

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esforço, resiliência, e é necessário que tenhamos parte nessa atividade. Sepensarmos assim… Quando vejo aqueles que fazem esse trabalho, penso quetemos vida graças a eles; eles se esforçam a ponto de podermos dizer que devemosmuita gratidão a eles. Não olho por outro ângulo, olho como pessoas que fazemalgo muito útil para que possamos ter vida – é graças a eles. Não devemosmenosprezar essa atividade: em outras palavras, não devemos ridicularizar, nãodevemos oprimir, não devemos pensar que são escravos. Antigamente diziam: “Éjeca, é uma pessoa que não merece respeito.” Mas quando eu olho, vejo umapessoa de muita dignidade, muita honra; é uma pessoa de muita beleza e bondade.Se olharmos assim, sentimos felicidade. Ficamos felizes, felizes em vermos umapessoa desse tipo. Quando trabalham é como se nos ensinassem, é como se fossemnossos professores, aqueles que nos trazem luz; podemos dizer que fazem eservem de exemplo para que todos vejam. Isso é uma coisa boa.

Nós aqui temos que pensar e refletir para dar luz ao Darma. Se pensarmose refletirmos para dar luz ao Darma, nossa mente não conhecerá rancor. Rancor éa mente que ainda não está correta. Temos que estar atentos a isso. Portanto, essetipo de coisa hoje em dia ocorre por se deixar levar pela onda. Caso se deixe levarpela onda, só há perdas, pois a maioria das pessoas não usam o cérebro, nãoutilizam sua própria capacidade. Dependem da capacidade de pensar dos outros,então em tudo que fazem dependem de algo. É verdade que dependemos do clima.Na época de chuvas, plantamos; se não chover não podemos plantar, dependemosdisso. Isso é depender da natureza, ela cria as condições. Temos que pensar nisso.Se a utilizarmos sem haver paz dentro de nós, talvez não surja uma intençãobondosa. Temos que treinar nosso cérebro, treinar o pensamento para enxergar portodos os ângulos. O mesmo para quando fazemos algo, temos que fazer de formaplena, fazer de forma útil. Isso é parecido.

Portanto, podemos observar as diferentes formas de agir, podemosobservar em nossa sociedade. Em alguns lugares, todos os dias, o tempo todo,vêm pessoas me dizer que hoje em dia o modo de agir para ganhar a vida faz otempo de vida de nós, seres humanos, diminuir, rebaixar-se, encurtar-se. Em tudoé assim. Vocês já devem ter ouvido falar que antigamente o ato de dar

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continuidade à raça humana, o ato da procriação, requeria no mínimo 25 anos deidade. Antigamente era assim, não faz muito tempo – por volta de sessenta anosatrás. Víamos assim. Mas hoje em dia não é assim. Por quê? Não sei o queacontece, eu também penso: “O que será isso? O que está acontecendo nasociedade, no modo de vida de nós, seres humanos?” Crianças com apenas oitoanos! Olhem o que vem acontecendo. Me faz sentir que nosso modo de agir e deviver está errado, distorcido. Não está dentro de um sistema alinhado à natureza.Então esse tipo de coisa ocorre: obsessão sexual, doenças de todo tipo vêmsurgindo. Temos que pensar que dependemos uns dos outros, tudo tem conexãocom nossa vida.

Quando esse tipo de acontecimento surge, temos que procurar um métodopara mudar nosso modo de vida, olhar sob um ponto de vista que nos leve aentender a natureza. A natureza é pura, como água limpa, água não contaminada.Como uma região que não oferece perigos, por exemplo. Dessa forma não haverádoenças, e o sistema que sustenta a vida se adapta e volta a um estado apropriado.As doenças diminuem, aquelas que ainda persistem são as doenças da natureza,como o Buda disse: “Nascer é um tipo de doença, envelhecer é um tipo de doença,adoecer e morrer são um tipo de doença.” É uma doença natural, não é umadoença que gera desarmonia. Se pensarmos dessa forma, devemos mudar nossaforma de agir, mudar pensando em como devemos fazer para conseguir pureza,para que haja benefício, não haja malefício ou perigo.

Por exemplo, nosso modo de ganhar a vida. Podemos ganhar a vida comatividades básicas como antigamente, do tipo que antes as pessoas davam muitovalor. Antigamente, mesmo as famílias que conhecemos através dos livros dehistória, a família do Siddhattha75, a família do Buda, quando davam nome àspessoas, davam nomes relacionados a alimentos, cereais, comida. Chamavam-seSukkodana, Suddhodana, Amitodana, Dhotodana. Que espécie de nomes sãoesses? São nomes de coisas que têm vínculo com o corpo, o que chamamos debhojana ou bhojanam – comida, alimentos. Se traduzir, chamam-se “alimentos

75 Siddattha Gotama: o Buda.

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que trazem benefícios ao corpo”. É assim. Isso é para sabermos que elesexpressavam honra dessa forma.

Se desejamos isso, temos que agir, temos que praticar sabendo comomanipular os recursos da natureza sem gerar desarmonia. A água não vira veneno,o solo não vira uma ameaça, não tem substâncias que causam doenças, perigos àsaúde. Hoje em dia não é assim. Por exemplo, se formos para os lados do distritoKantararom, distrito Yang Som Nói, dizem que é uma área contaminada porprodutos químicos, substâncias venenosas à saúde do corpo. Estamos brincandocom fogo… Ontem fui ao distrito Nam Yu, fui a Kantalak e os vi usando aquilo.Ôôô… que fazer? É difícil as pessoas mudarem de comportamento. Quando olho,vejo que não tem jeito, eles não têm como evitar, então agem daquele jeito.Quando fazem, sentem que aquilo não é seguro. Se aquilo acumula no agregadocorporal, surgem anormalidades, vai ao hospital e volta com uma doença grave,fica desse jeito. Vi quem? Vi um leigo, vi um leigo que conhecia, conversamos eperguntei: “Por que faz assim?”; “Não tem importância.”, ele disse. Elepulverizava inseticida para repelir insetos, matar ervas daninhas, esse tipo decoisa. Perguntei “Por que faz assim?” Ele disse que não tem escolha, esse é oúnico jeito. Eu então disse: “Ôôô, se eles viverem é bom, os insetos são seresvivos, mas eles também são úteis para nós. Até os besouros76 ainda conseguem serúteis.” Se olharmos assim, entendemos. Temos vínculo com tudo, se dermos odevido respeito não há problema, não há perigo algum, mas temos que saber o queestamos fazendo.

Depois recebi a notícia de que ele passou mal, foi levado de motocicletaao posto de saúde e voltou com uma doença grave, algo desse tipo. É realmenteassustador. Ontem estava conversando com uma leiga que veio me procurar e eladisse: “Oh, aquele homem morreu, Luang Pó.” Pois é, desse jeito morre mesmo,uma pessoa em plena idade produtiva. Não desligava o trator, pulverizava o diainteiro, então ocorre desse jeito mesmo. Por que é assim? É porque ele não tinhaoutra opção, nunca teve interesse em mudar, resolver o problema, se não fizesseassim não conseguiria viver na sociedade, então é assim. Então digo que mesmo

76 แมงกอนนน é um tipo de besouro que pode ser consumido como alimento.

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que não tenha oportunidade de fazer direito, procure estudar, procurarconhecimento complementar.

Por exemplo, investigar o passado, investigar o futuro. Se olharmos nopassado, antigamente a terra não tinha nada, nosso mundo não tinha nada, era umamatéria sem vida alguma, ali não existia nada que possuísse vida, mas isso mudoucom a evolução da natureza. Antes o mundo era quente, mas então houveevolução. Se falar sob um certo aspecto, podemos dizer que era quente e há sinaisque indicam o nível do calor. Dizem que o solo deste mundo explodiu, chamamosde vulcão. Quando vemos, chamamos de vulcão. Tsunami, quando surge na água,no meio do oceano. É algo quente, sendo quente há coisas que nascem daquelecalor, temos que pensar assim, também há coisas que nascem do calor. Não é ocaso que aquele calor não tenha nada, ele tem algo. No mínimo tem uma parte danatureza que chamamos de bactérias ou micro-organismos, depende de comoqueremos chamar seguindo os termos técnicos.

Se são micro-organismos podemos observar de acordo com a evolução domundo, em outras palavras. O mundo esfriou, esta superfície do mundo é fria, masabaixo da superfície é quente. A superfície esfriando fez com que surgissemorganismos que chamamos de bactérias ou micro-organismos. Parte das bactériassão causadoras de doenças; se olharmos assim, mesmo nós somos uma forma dedoença, vemos que também somos uma forma de bactéria. Se olharmos um poucomais além, no desenvolver da evolução da natureza, há lado positivo e ladonegativo. É possível que a evolução seja algo positivo ou negativo. Se pensarmosassim, temos que pensar em como agir para desenvolver o lado positivo, temosque pensar; pensar, mas sem ficar loucos. Temos que pensar que é assim, é naturaldessa forma. Então vemos o benefício que surge do lado positivo, do lado bom, eo utilizamos, como a comida. A comida que comemos, se olharmos sob um certoângulo, veremos que comemos coisas que não são atraentes, comemos coisas quepossuem formas muito pequenas de vida. Muito pequena é pequeno a que ponto?É pequeno a ponto do que se diz “invisível”, exceto caso tenhamos a capacidadeque se chama visão divina77. Parece que hoje em dia todo mundo tem, antigamente

77 A capacidade de ver que vai além das pessoas comuns, desenvolvida através da prática de

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ninguém tinha, agora qualquer um fala que tem visão divina78. Vemos que aquilocom o qual nos envolvemos deve ter algo a ver com criar algo composto.

Por exemplo nosso corpo, não pense que é vazio, tem de tudo aqui. Hámicro-organismos no sistema digestivo, podemos dizer que fazem parte daquelesórgãos. Eles fazem o corpo ser capaz de se adaptar, ajudam o sistemaimunológico, constroem o sistema imunológico. Se há sistema imunológico, nãohá doenças. Quando vamos consultar o médico por causa da degradação dosórgãos e das células, ele então diz que é por não haver adaptação ou por não haveranticorpos. Se não há anticorpos, temos doenças, temos que pensar assim. Sepensamos assim, temos que construir uma composição harmoniosa. Entãoingerimos aqueles micro-organismos. A comida que consumimos está cheia demicro-organismos. Dependendo do tipo, às vezes gera dano, como quandocomemos algo que faz o corpo se degradar, há dano. Mas se comermos aquilo quecria uma boa composição, teremos anticorpos. Isso conhecemos bem,conseguimos entender, mas temos que estudar através de nossa própriaexperiência. Isso é algo bom, é útil, e o que é bom é um mérito. Por exemplo, senosso corpo não tem doenças dizemos que temos mérito, temos um tesouro, temosum bem.

Isso também faz parte da nossa prática, também temos que cuidar dasaúde do corpo, também temos que cuidar da saúde da nossa mente. O corpo temque ter sistema imunológico, tem que ter fortaleza; a mente também tem que ter,possuindo paz e frescor, possuindo felicidade, permanecendo sem desarmonia.Isso já é felicidade, já faz surgir felicidade, mas essa felicidade é uma felicidadeindividual. Porém, a felicidade que chamamos de excelente, de aryia, nasce dessafelicidade individual, é dessa forma. Se surgir essa felicidade, é um mérito nosso,é uma bondade nossa, entendemos assim.

samādhi e jhāna.78 Ele está criticando pessoas têm “visões” e logo se apressam em concluir que aquelas

visões são verdadeiras, que elas desenvolveram “visão divina”, quando na verdade éapenas a imaginação delas ou, em muitos casos, resultado de problemas psiquiátricos.

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Portanto, todos nós que chegamos a esse estágio nas nossas vidas temosque desenvolver boas qualidades mentais; a bondade, as habilidades que fazemparte da vida, temos que utilizá-las também. Assim felicidade e progresso surgirãoem nossa sociedade. Nossa sociedade terá paz e felicidade. Trará paz, seremoscomo pessoas que têm familiares por toda parte, seremos capazes de ser como umsó. Hoje eu ofereci vários pensamentos, para que possamos refletir, ponderar econtemplar, utilizar raciocínio que fará termos felicidade e progresso. Hoje jáofereci pensamentos o suficiente. Peço licença para encerrar aqui.

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Ajahn Sumedho – 133

Ajahn Sumedho

“Um ideal, nós reconhecemos: umhomem ideal, uma mulher ideal – éapenas um padrão. Não é como alguémconsegue viver de forma permanente.Nossa humanidade, nossa condiçãohumana nos faz ter que nos adaptar atodo tipo de situações que não podemosprever no nível do ideal, as quais temosque aguentar e aprender com elas. Noideal, você pode pensar em como vocêdeveria ser um homem ou mulher ideal,isso é uma coisa, não é? Mas a vida emsi é uma energia em constante mudançaem que não conseguimos prever o quevai acontecer…”

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Os cinco obstáculosPalestra dada por Ajahn Sumedho durante um retiro de meditação.

Um dos primeiros obstáculos à clareza mental (nīvaranas) é a luxúria,cobiça. Esse é o tipo de problema que surge por focarmos nos aspectos desejáveisdas coisas, você se obceca em desejar algo. Focar nos aspectos desejáveis,esperando, ansiando prazeres, prazeres sensuais – isso é chamado luxúria. Umamente cheia de luxúria é uma que não desenvolveu a faculdade da discriminaçãomuito bem. A pessoa está tão obcecada com as qualidades agradáveis de algo oualguém, que ela só quer obtê-lo. Ela anseia, antecipa, planeja, trama ou fantasiasobre aquilo. Mantemos a mente ocupada, temos que criar tudo isso. Se você pararde pensar, o desejo não surge, desaparecerá. Enquanto você continuar a pensarnaquilo, é claro, a luxúria vai continuar sendo um problema para você.

Um modo de lidar com luxúria é apenas estar ciente de como a mentefunciona: se você adicionar algum impulso, se surgir uma atração e você entãofocar naquilo, então, é claro, surge luxúria. Luxúria é isso. Mas se você parar defocar a mente naquilo que você quer, que você deseja, mantenha sua atenção, nãodeixe a mente ficar presa em fantasiar, ansiar, esperar, criar histórias – então ohábito da luxúria irá diminuir, desaparecer. Se sua mente ainda está ocupadapensando nessas coisas, então, ao invés de pensar nas qualidades desejáveis dealguém, pense mais nas qualidades indesejáveis. Por exemplo, se você sentedesejo sexual por alguém, então você foca no cabelo bonito dele, nos olhos, dentesbrancos como pérolas, olhos brilhantes e pele linda. Vemos a superfície exteriorcomo se fosse algo desejável. A mente com luxúria não foca, não vê nenhuma dasqualidades indesejáveis, quando você sente luxúria você não nota as verrugas, ascicatrizes, as sardas.

Quando nos ordenamos, um dos ensinamentos que nos é dado, oupajjhāya ensina kesā, que significa cabelo, lomā, pelos, nakhā, unhas, dantā,dentes, taco, pele. Cabelo, pelos, unhas, dentes e pele. Recitar isso faz parte da

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cerimônia de ordenação. Qual o significado disso? Por que dizemos isso quandonos ordenamos? Essa é uma reflexão para a vida monástica. Quando dizemos“cabelo, pelos, unhas, dentes e pele”, isso é no que tendemos a sentir atração nasoutras pessoas, quando apenas olhamos a beleza de alguém. Mas se nóscomeçarmos a olhar isso à parte, com mais discriminação, o impulso da luxúriadiminui. Se só vemos cabelo, quando só olhamos cabelo, não sentimos luxúria.Mas se estiverem todos conectados e arrumados de uma maneira agradável sobre apele e os dentes e as unhas e etc., então nós sentimos essa atração. Se vocêencontrar o cabelo de alguém na sua sopa, não desperta luxúria. Nem precisamencionar se for um dente ou um pedaço de pele! Tende a estimular aversão, nãoé? Quando você vai além do cabelo, pelos, unhas, dentes e pele – fica ainda menosatraente. Se você olhar, digamos, sangue, linfa, veias, nervos, estômago, baço,bexiga, coração, pulmões, intestino delgado, intestino grosso, estômago, esse tipode coisa, gordura e pus, muco… Isso é o que chamamos “reflexão sobre aquiloque não é atraente.” Aquilo que não é atraente, que não desperta luxúria.

Nós todos temos essas coisas, todos temos esses órgãos, coração, fígado,baço, gordura, muco, pus, sangue e todas essas coisas, mas não refletimos sobreisso. Quando temos luxúria só vemos que belos olhos, que belos dentes, belocabelo, bela pele, não pensamos no fígado, baço, entranhas, esqueleto. Então essaé uma outra maneira de usar o processo do pensamento, a capacidadediscriminatória, para quebrar a tendência de focar em quão desejável uma pessoaé, um outro ser humano é. Não é para criar aversão por outros seres humanos, maspara remover a paixão. Há uma diferença. Não estamos fazendo isso para pensarem quão nojenta uma pessoa é, não estamos tentando estimular nojo ou aversão,mas sim a “não-paixão”, significando um frescor mental, não uma mente presa em“eu tenho que ter, eu quero, eu preciso, eu devo”, qualidades excessivas daluxúria, mas sim o frescor da “não-paixão”. É uma forma hábil de utilizar nossopensamento: em vez de fantasiar sobre como maravilhoso será, ansiar, esperar,planejar, usar nossa capacidade de pensamento para reflexão sem paixão.

Existem essas duas maneiras de lidar com luxúria, eu penso. Uma é estamaneira: sendo mais discriminativo, trabalhando com a tendência de focar na

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beleza, estar fascinado e obcecado com beleza. Ou apenas impedindo que a mentecrie qualquer coisa que seja, apenas estar atento, notar a sensação da luxúria, ocalor no corpo que surge, mas não criar nada ao redor daquilo, não seguir comqualquer tipo de ação, fala ou pensamento, ter apenas atenção pura naquilo.

O segundo obstáculo é o obstáculo da aversão. Nós podemos focar,podemos sentar em meditação nos sentindo incrivelmente negativos e aversivos,bravos, raivosos. Quando sua mente está cheia de ódio, raiva e aversão, é claro,você não tem concentração, sua mente não consegue se concentrar. Mas, uma vezque tendemos a nos sentirmos culpados sobre a aversão, no nosso históricocristão, judaico, nós tendemos a sentir muita culpa pelo ódio. Então a raiva, nósnão sabemos o que fazer com ela, e nos sentimos culpados por isso. Entãodesenvolvemos um sistema muito complexo chamado “culpa”, em que sentimosque odiamos a nós mesmos por sentirmos ódio – é chamado “culpa”. Nós nosodiamos e temos aversão por nós mesmos por odiar alguém, ou por estar comraiva. Isso é complexo, somos seres complexos, não é só o ódio, esse tipo deaversão a algo, mas é também a aversão à aversão. Por causa disso, investiguem:aquilo sobre o que você sente aversão, você tende a querer aniquilar, se livrar. Areação imediata é reprimir, tentar escapar. “Eu sou terrível”, então tentamos fazeralguma outra coisa, pensar em alguma outra coisa. Dessa maneira, se você éalguém que está tentando aniquilar ou se livrar da raiva, ódio, ou suprimindo parafora da consciência, então você tem que permitir que ela se torne plenamenteconsciente.

A raiva reprimida ou o ódio que você guardou na sua mente por toda suavida, você deve permitir que se torne um ódio plenamente consciente. O quesignifica que você deve trazê-lo à tona porque sua tendência pode ser de reprimir,empurrar, se livrar daquilo. Ao invés disso, uma forma hábil é realmente odiar,sentar e realmente odiar, plenamente, completamente, odiar conscientemente. Masnão é direcionado, não é um ódio maléfico, não é com o propósito de criarsofrimento para ninguém, mas é o que chamamos de “soltar o ódio”, umapurificação da mente em que o ódio só pode acabar quando nós ocompreendemos, quando permitimos que ele cesse ao invés de apenas reprimir.

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Nós temos que conscientemente permitir que o ódio se torne consciente em nossasmentes, não apenas reagir com aversão ou repressão, aniquilação. Às vezes nossentamos e nos encontramos ficando muito aversivos, talvez muitas memóriasvindo à tona, sentimentos de amargura, decepção com parentes, marido, esposa,sociedade, filhos, seja lá o que for, esse tipo de coisa, e há a tendência de suprimir,tentar se livrar daquilo. Nós devemos pacientemente trazer à tona para que setorne plenamente consciente.

Eu descobri isso no monastério. Querer se livrar do ódio era meuprincipal problema, era a culpa e o medo do ódio. E sendo um monge você pensaque deveria amar a todos, tentando ser um santo, querendo ser santo e amar atodos e tendo então esse tremendo fardo de culpa por sentir essa tremendaamargura e ódio. Então eu descobri que um modo hábil de soltar isso era odiarconscientemente, tentar trazer à tona, trazer à consciência, tentar pensar, realmenteinvestigar, pensar em odiar a todos que conseguisse lembrar. Estar disposto asimplesmente odiar, pensar com aversão e ouvir tudo isso, não acreditar naquilo,mas ouvir minha mente. “Ele fez isso com ela, ele fez aquilo, ele fez isso comigo,ela disse aquilo, ele disse isso…” Após um tempo soa ridículo, se você realmenteouvir, se você levar o ódio ao absurdo, é bastante divertido. “Minha mãe nunca meamou de verdade, meu pai isso, aquilo… eu não recebi minha devida parte,ninguém me entende.”

Ouça, traga à tona, à forma consciente, ouvindo, mas não acreditando.Acreditar é “ninguém me ama e eu fui mal tratado pela vida”, e se você começar aacreditar, então é o que realmente acontece. Mas sim escutar as reclamações, oamargor, a decepção para que você saiba o que eles são: são condicionamentos damente que agora você pode conscientemente aceitar na consciência e deixar que sevá. É um “deixar ir”, um tipo de limpeza da mente em vez de: “Eu não deveria serdesta maneira, eu não deveria odiar as pessoas, afinal de contas eu deveria amar atodos, mas eu tenho esses rancores e não consigo perdoar as pessoas, eu souterrível”, e então começamos a odiar a nós mesmos. Portanto, nós ouvimos nossoódio por nós mesmos. Ouça, se você tem muita aversão por si, traga à tona. “Eunão valho nada, eu sou estúpido, não sirvo para nada, inútil.” Então você consegue

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ouvir o condicionamento da mente, o sentimento reprimido de aversão, e podedeixá-los ir de forma plenamente consciente. Você tem uma perspectiva deles,você os vê claramente e então pode deixá-los ir.

Você não está tentando simplesmente se livrar deles: “eu não deveria estarpensando assim, isso é nojento” e então reprimir, mas reconhecer que muito danossa vida tem sido raiva reprimida e aversão, porque na sociedade ocidental,posso falar sobre os Estados Unidos da América, os americanos são pessoas muitoidealistas e portanto eles vêm de um idealismo muito elevado sobre o que umhomem deveria ser – é um ideal, e então temos medo do modo como somos. Nóssentimos uma tremenda falta ou uma tremenda inabilidade de fazer jus àqueleideal, então começamos a pensar sobre nós mesmos de formas muito negativas.Porque é muito raro conseguirmos viver no padrão em que achamos que devemosestar o tempo todo, o nível ideal. Tendemos a nos sentir incrivelmente culpadospor nossas fraquezas, por nossos fracassos, nossos medos, covardia, falta deenergia, aversão, tudo isso. Nos sentimos terrivelmente culpados, aversivos a nósmesmos por não fazermos jus a esses altos padrões.

Um ideal, nós reconhecemos: um homem ideal, uma mulher ideal – éapenas um padrão. Não é como alguém consegue viver de forma permanente.Nossa humanidade, nossa condição humana nos faz ter que nos adaptar a todo tipode situações que não podemos prever no nível do ideal, as quais temos queaguentar e aprender com elas. No ideal, você pode pensar em como você deveriaser um homem ou mulher ideal, isso é uma coisa, não é? Mas a vida em si é umaenergia em constante mudança em que não conseguimos prever o que vaiacontecer, então temos que aprender a aguentar e aprender através de tentativa eerro. Mas, por causa dessa falta de entendimento de como as coisas são, tendemosa criar um monte de culpa, remorso, aversão para conosco ou o mundo, por causada nossa falta de entendimento. Agora poderemos entender.

Esse é o obstáculo da aversão, é aversão porque é algo que tendemos anão gostar e querer nos livrar. Então, nós temos que trazê-la para nós, torná-lauma aversão plenamente consciente, ouvi-la. Se você encontra muita raiva por seuesposo ou esposa, tem a sensação de que eles não te entendem, sensação de

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insatisfação – ouça aquilo. Ouça a aversão em vez de tentar descobrir o que estáerrado em você ou seu esposo. Isso é o suficiente, ouvir a aversão para que sesaiba exatamente o que é. Talvez haja fundamento para ela, mas não é necessáriotransformar em nada. É melhor deixar passar do que esperar que o mundo, seuesposo, seus pais, seus amigos, filhos se enquadrem em todos os seus desejos.

Em Chitrust79 eu era o monge chefe do monastério, às vezes eu podia veraversão surgindo com relação a algumas pessoas no monastério, eles estavamcausando problemas, sendo difíceis. Eu dizia “Por que eles têm que fazer aquilo?Por que eles não podem ser iguais a todo mundo? Por que eles têm que criarproblemas com tudo? Por que eles não podem ser mais atentos, ter maisconsideração? Por que eles não podem ser sensíveis? Por que eles não podempraticar como eu venho ensinando? Eu estou ensinando, fazendo meu melhor paraensinar e eles não fazem nenhum esforço, ficam com preguiça e de repente fogem,nem me dizem que estão indo, eles simplesmente fogem80! Vivendo de esmolas!Ingratos, insensíveis.”, etc., e vai dessa forma. E também sobre qualquer um quelhe cause frustração, ou que seja difícil, você pode pensar: “Queria que ele fosseembora, queria que ele fugisse.”

Ouvindo isso, ouvindo essa aversão em minha mente – eu usei isso comomeditação. Alguém sendo muito difícil e eu reagindo de maneira negativa – euouvia. E o que saiu disso, o que eu descobri é: “Eu quero que todos vocês ajam deuma maneira que nunca me incomode, que sempre me gratifique, me faça feliz,não façam nada que me traga medo, dúvida ou preocupação, e vocês devem viversuas vidas exclusivamente para o meu benefício e conduzam a si da forma que eu

79 O primeiro monastério da tradição da floresta criado no ocidente, Ajahn Sumedho foi ofundador e o primeiro abade deste monastério.

80 Quem já viveu num monastério ou numa comunidade de praticantes já deve ter passadopor essa experiência: muitas pessoas estão procurando por algo que elas mesmas nãosabem o que é, e às vezes elas aparecem no monastério esperando que o local faça jus aosideais delas, sem dar importância às pessoas que vivem ali ou ao modo de agir jáestabelecido no local. Esse tipo de gente costuma criar muitos problemas, reclamam,criticam, criam divisão, tentam angariar partidários, criar revoluções, e após toda essabagunça, como é comum às pessoas de mente confusa, elas simplesmente se entediam evão embora, desaparecem, vão procurar novas “causas nobres” pelas quais lutar emalgum outro lugar.

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quero, para que eu não tenha que me incomodar.” É o que eu percebi estavadizendo, era como eu estava agindo. “Eu quero que todos os monges, todas asmonjas neste monastério, todos os leigos ajam de forma que não me incomode.” Émuito estúpido, não é? Se é isso que eu quero, é inútil, não é? Esperar que todosao meu redor se comportem de forma que não me cause sofrimento, nem me deixenervoso ou incomodado por nada. Quando eu realmente descobri isso comecei aficar muito mais tolerante e mais disposto a permitir que mais pessoas fossem dojeito delas. Não me sentia mais ameaçado por idiossincrasias ou excentricidadesnas pessoas ou pela rebeldia delas ou a teimosia, eu não mais as tomavapessoalmente como uma ameaça para mim. Comecei a relaxar, a dar bastanteespaço para as pessoas e ser capaz de refletir melhor àquelas pessoas em vez deapenas forçá-las a se comportar. Os relacionamentos ficaram muito melhoresquando comecei a permitir que as pessoas trabalhassem com os problemas delas,em vez de forçá-las à conformidade ou me livrando daqueles que não seconformavam: “Você não é adequado para ser um monge, saia daqui!” Você podepermitir às pessoas serem como são porque você não exige que elas sejam deoutra forma. Você percebe que é assim que elas têm que ser naquele momento.Essa é uma boa reflexão para as pessoas também, não é? Então você poderealmente ajudá-las porque apenas forçar, castrar, amedrontar as pessoas até elasconformarem é apenas condicionamento por medo novamente, como animais.Elas talvez se comportem porque estão com medo, ou porque querem me agradar,mas não por real sabedoria ou por entenderem o problema.

Então ficou claro, e ficou muito mais fácil ser um professor quando eunão estava carregando tudo, quando eu não estava sentindo medo ou ameaçadopelo que estava acontecendo à minha volta. Na verdade isso veio através derefletir sobre minha própria mente. O que estava realmente me incomodando eramedo. Medo de que as coisas dessem errado, medo de fazer algo errado, medo dealguém arruinando algo ou me causando muito sofrimento ou perturbando acomunidade. Havia um medo, um protecionismo paternal, do tipo que, eu observo,pais e mães devem sentir – querer proteger a família de qualquer coisa danosa ousubversiva. Então se você vê alguém causando muitos problemas ou desilusãodentro do monastério, quer se livrar deles: “Saia daqui, nós não queremos você

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aqui porque você está perturbando tudo.” Um tipo de desejo de proteger. Comoum “pai”, pai tentando proteger sua família de influências estranhas, incomuns ousubversivas. Isso era se apegar e tornar-se um pai.

Refletindo nisso, você consegue ver o tipo de armadilhas em quepodemos entrar, porque soa bastante razoável – se incomodar, proteger os mongese monjas… Muito admirável. “Ele é um ótimo abade, muito protetor, ama muitosua família, toma conta dela, isso é admirável.” Mas também é uma armadilha nosentido de que, se identificando com um pai, sendo protetor, terá um resultadocármico muito forte. O senso de dependência e também a exclusão daqueles quevocê não sente se encaixam no grupo primário ou no monastério. Você não estácriando uma família, você não quer um grupo privado de amigos íntimos àexclusão dos demais que você acha não fazem parte, que você pensa podemcausar problemas ou perturbações. Então, você abre o Darma para qualquer umque vier e pedir, não importando quais são seus sentimentos sobre aquela pessoa.

A forma de medir isso é a quantidade de sofrimento que você tem, nãoimporta o que esteja fazendo. Machuca. Quanto sofrimento vocês têm em relaçãoaos seus filhos? Protecionismo, querendo que eles se comportem, medo decometer erros, medo de que você faça algo errado, culpando a si mesmo por nãoter sido capaz de sempre ser o melhor e mais sábio. Sofrimento dos pais, vocêspodem refletir sobre isso, esse tipo de apego, posições às quais você se apega. Etodos esses apegos nos trazem a esse sofrimento. Portanto, a quantidade desofrimento que você tem reflete isso.

O primeiro obstáculo é luxúria ou ganância, o segundo é aversão. Doisextremos, as grandes paixões. Desejo por algo e desejo de se livrar de algo. Ostrês obstáculos seguintes se manifestam quando as grandes paixões diminuem emsua vida, grandes quantidades de luxúria e ódio. Quando está livre delas vocêencontra os estados mentais mais entediantes, deludidos, eles se tornam maisconscientes, como torpor e abatimento.

Torpor e abatimento. Antes sua mente tinha uns pensamentos de luxúriabastante interessantes, ódio verdadeiramente passional e inveja. De repente é esse

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abatimento, tédio, cansaço. É aqui que muitos monges abandonam a vidamonástica, quando eles têm que enfrentar abatimento e torpor, porque daquelaluxúria e ódio você tira muita energia, você ganha muita vitalidade, uma fantasiasexual lhe dá muita energia. Se você está se sentido abatido e começa a fantasiarsobre sexo, você… Se você está abatido e deprimido e ódio surge, você pensa:“Aquele fulano…” Quando estou realmente bravo posso me sentir realmente vivo,muito afiado, claro. Indignação, eu tenho muita tendência à indignação, eu ficoindignado: “Como ele se atreve a dizer aquilo!? É revoltante!” E parece tãocorreto, se alguém faz algo que você sabe é muito irritante ou estúpido ouhorrível, o que quer que seja: “Como ele se atreve!? Terrível!” É tão correto, tãoindigno, tão vivo, e além disso eu tenho tanta razão! Tem muita energia conectadaa isso.

Eu noto que alguns monges em Chitrust tendem a obter muita energiaficando indignados com coisas. “Você sabe o que aquela pessoa disse? Sabe o queele está fazendo? Ele está saindo para fumar cigarros na floresta!” Se você estánum estado abatido e vê alguém fazendo algo errado, você pode ficar indignado:“Como eles se atrevem!?” Você assiste àquilo, observe como você obtém energia,porque fantasias de luxúria, indignação, aversão, raiva passional, ódio e tudo issolhe dão muita energia. E então quando você pensa em abatimento e torpor, essessão estados muito desagradáveis, não gostamos deles porque você acaba existindonesse tipo de estado mental abatido, deprimido, e a vida parece sem esperançacomo um deserto infinito. Nada naquele deserto a não ser areia e tédio, nadainteressante para olhar, nada tentador. Nem sequer algo para se indignar, sócansaço, abatimento. Então, nós podemos afundar nesse abatimento e não colocarnenhuma energia, porque se nossa energia está sempre vindo da cobiça, da luxúriaou do ódio, quando essas coisas não estão operando, nós não temos energiaalguma.

Temos que começar a trazer energia da nossa própria mente, não é? Éaqui que você começa a trazer energia para o momento. Então você mantém suapostura, você existe com o abatimento, você investiga o abatimento, a sonolência– alerta. Às vezes temos tanta aversão ao abatimento que só queremos nos livrar

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dele, e por simples força de vontade nos colocamos eretos para conquistar otorpor, então você vai dessa forma por um período, muita energia, mas logo vai deum extremo ao outro, você cria um hábito. Eu vi monges fazendo isso naTailândia, você os vê sentados eretos assim, de repente eles simplesmente caemdesse jeito e voltam imediatamente à postura ereta. Não é muito atento, não háreflexão, você não está trabalhando com o abatimento, você só está tentando selivrar dele. “Eu odeio este abatimento e eu não vou me submeter, vou aniquilá-lo.”Há aversão ali, não é? Você ganha a energia para fazer esse extremo somente poraversão ao abatimento. Quando passa, você cai. Você precisa usar algo mais sutil,uma reflexão mais sábia sobre o abatimento e sonolência em vez de apenas teraversão e tentar aniquilá-los através de um ato de força de vontade. Portanto,quando você se sentir abatido, conscientemente note o abatimento e sonolência.Você aguenta, você trabalha com aquilo, você mantém a energia, tente manter ocorpo ereto e vencer. Continue trabalhando com isso, com gentileza e paciência.Até você começar a largar o abatimento, permitir que o abatimento e o torpor sevão, ao invés de apenas reprimi-los. Se não, você está apenas reprimindo de novo,o que significa que ele vai continuar voltando.

E o quarto obstáculo é igualmente desagradável: inquietação. É quandovocê está inquieto, você se sente inquieto, sua mente não possui ódio passional,cobiça, você certamente não está abatido, você apenas quer ir a algum lugar. Umaterrível inquietação, ansiedade, agitação. Nós também tendemos a tentar reprimirisso, mas quanto mais você tenta reprimir, mais agitado você fica. Para seconcentrar, você não coloca mais energia na postura, você apenas mantém apostura e aguenta com paciência, olhando a inquietação, observando com umaatitude bondosa. Bondade, paciência. Estar disposto a aguentar o que há dedesagradável naquilo sem reagir, sem fugir, estar disposto a aguentar, para semprese necessário, com uma paciência incrível.

E o último é “dúvida”, estado mental cheio de dúvidas. Esse é um grandeproblema para as pessoas, elas sempre se enroscam em dúvidas. Dúvidas sobre simesmas, dúvida sobre o que elas deveriam fazer, dúvida sobre a prática, dúvidassobre budismo, dúvida sobre o professor, dúvida sobre toda e qualquer coisa.

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“Não sei se estou fazendo certo, não sei… talvez eu não seja capaz, talvez estenão seja o caminho certo para mim, talvez isto esteja além da minha capacidade,talvez eu devesse investigar o cristianismo mais cuidadosamente, talvez eudevesse… talvez mahāyana seja mais… não tenho certeza sobre o AjahnSumedho… o que eu faço em seguida? Devo concentrar na minha respiração ou…Não foi o que ele disse? Quando você ganha um certo nível de concentração vocêchega a atenção pura… o que significa isso?”

Dúvidas. Dúvidas. Então, você não é isso. Dúvida, esse estado de nãosaber algo. Na nossa mente estamos acostumados a saber coisas. Nós tendemos aevitar dúvidas ou, assim que uma dúvida surge na mente, tentamos encontrar aresposta. Você quer tudo decifrado: “Eu faço isso e depois faço aquilo, então eusei exatamente o que fazer.” Mas se você deixar: “Eu não sei o que devo fazer emseguida…” você se sente muito incerto, inquieto, inseguro, e não gostamos disso.Queremos respostas definitivas, tudo definido, claro, clarificado, enumerado emdetalhes, este estágio, o próximo, etc. “Onde estou agora como praticante doDarma? O que já alcancei? Já alcancei alguma coisa? Será que alcancei algo? Euvou perguntar ao Venerável Sumedho: ‘já alcancei alguma coisa?’” Eu costumavatentar espremer informações de Ajahn Chah… era inútil. Ou tentava ludibriá-lo adizer algo sobre minhas realizações. Porque gostamos de saber, nós esperamossaber o que alcançamos. Ridículo, não é? Então, esse tipo de dúvida, pensar quealguém sabe algo que você deveria saber e assim por diante, você traz isso àconsciência.

Esse é um método muito hábil, a mente em dúvida. Você pode usar okoan: “Quem sou eu?” Quem sou eu? A mente fica bem vazia, não é? Eu sou oVenerável Sumedho, não é? Eu já sei disso. Não estou fazendo essa pergunta paraobter essa resposta, não é? Eu já sei essa resposta. “Quem sou eu?” Há a perguntae, naquele momento, se você estiver realmente atento, no final da pergunta quevocê fez há um vazio, a mente fica em branco por um instante, não é? “Quem soueu?” – vazio. Naquele instante não há nada na mente. Então você começa “Bom,eu sou… como assim ‘quem sou eu’, o que é que eu deveria ser?” Começa denovo.

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Então você pergunta “Quem sou eu?” e ouve aquele vazio, o ponto ondenão há pensamentos. Continue se concentrando naquilo, e trazendo aquilo à tona,estando plenamente atento àquele ponto em que a mente está vazia. Quando sefala sobre a mente vazia as pessoas pensam: “O que isso significa? Eu acho quenunca experienciei vazio, talvez seja algo sobre suññata, o que eles querem dizercom isso?” É claro que a mente não está vazia quando você pensa: “O que elesquerem dizer com suññata?” Você está ocupado procurando uma resposta e entãovocê não nota o vazio, não é? Você pensa que há uma resposta, algum tipo deresposta para isso. E você se sente muito desconfortável: “O que ele quer dizer?Certamente não é isso. Eu tenho que desvendar, descobrir. Talvez eu deva ler maislivros sobre Zen ou algo do tipo…” Você lê todos os livros Zen e sua mente aindanão está completamente vazia e você ainda não entende. “Eu não entendo o queesses budistas do Zen estão falando. Eu li todos esses livros falando sobre vazio,‘o som de uma mão batendo palmas’ e ‘qual é seu rosto original’ e ainda continuoquestionando, para que isso?” É porque ainda estamos procurando por algo,aquele vazio é… As pessoas que têm esse desejo desesperado por coisasdefinitivas, tudo definido e esclarecido e têm muita fé em respostas e conceitos,acham o vazio ameaçador…

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Ajahn Piak – 147

Ajahn Piak

“Você tem que lembrar que você não éiluminado, mas consegue ensinarporque leu e memorizou. Os mestresfalaram e você escutou, você leu asescrituras, você estudou, memorizou eportanto é capaz de repetir o que ouviu,mas você ainda não é Darma. Se vocênão é Darma ainda há algo defeituosoem você.”

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Perguntas de praticantes brasileirosEm entrevista, Ajahn Piak responde a perguntas enviadas por praticantes brasileiros.

- Luang Pó, a primeira pergunta é “Por que a Tailândia, apesar de ser umpaís budista, ainda possui violência, ainda possui problemas com pessoas secomportando mal, como em qualquer outro país?”

- Eu acho que é normal, em todos os países só há confusão. Não é “serpaís budista” que faz não haver confusão. Se todas as pessoas agissem de acordocom os ensinamentos do budismo não haveria confusão. É igual no mundo inteiro.No islamismo, no cristianismo, por que eles têm confusão? Porque confusão vemdas pessoas. No mundo inteiro são as pessoas que criam confusão, mas opropósito da religião não é gerar confusão.

- Pergunta de uma mulher. Ela pergunta se é errado querer ir morarsozinha, largar o marido e ir morar sozinha, porque a sensação dela é que vivernum relacionamento é um obstáculo em desenvolver a si, faz desperdiçar muitotempo em nossa prática, pois temos que viver com pessoas que não se comportamde forma correta. Está errado? Se ela quiser largar do marido e ir viver sozinha?

- Se tivermos essa resolução é bom, mas temos que olhar qual é nossoobjetivo, não é? Se vivemos no mundo, o modo de ser é assim: quando vocêcresce você tem que ter um marido ou esposa, tem que ter um emprego, esse é omodo de viver das pessoas no mundo. Mas se você pensa que quer praticar paraalcançar nirvana, você vai ter que fugir dessas coisas todas. Mas você vai ter forçade vontade suficiente? Porque algumas pessoas têm fé, mas quando vão praticarnão conseguem os resultados que queriam, ou seja, paz. Se praticarmos mas aindanão encontramos samādhi, ficamos desapontados e voltamos para onde estávamosantes. Temos que ter fé e ter sabedoria. Se tivermos fé mas não tivermossabedoria, não vamos conseguir alcançar o ponto, não vamos alcançar o objetivoque havíamos determinado. Temos que ter fé e também sabedoria.

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Perguntas de praticantes brasileiros – 149

- Uma pergunta parecida, suponha que não largue o marido…

- Comece praticando os cinco preceitos. Treine observando os cincopreceitos ainda junto à família.

- Ela quer saber se vivendo uma vida conjugal ainda é possívelconseguirmos fazer progresso na nossa prática do Darma.

- Sim, só depende das nossas ações. Mas na maioria dos casos as pessoasnão conseguem fazer, porque na vida conjugal há muitos fardos, muitos deveres,não temos liberdade.

- Mais uma mulher, ela diz que os hormônios femininos – essa é asensação dela – fazem as mulheres terem uma libido muito forte. Ela diz que édifícil aguentar, é difícil lidar com isso. Ela pergunta se há algum artifício paranão se identificar com aquilo, ela quer sair desse ciclo.

- Se ela quer sair disso ela tem que observar – se for fazer de formacorreta – tem que observar os oito preceitos81, quer dizer, praticar nekkhammapāramī82. Mas será que ela consegue fazer? Isso é que é importante.

- A pergunta é “Se desejamos que algo aconteça, esse desejo conseguerealmente ajudar aquilo a acontecer? Por exemplo, nosso pensamento é capaz defazer que aquilo aconteça?”

- Isso é pensar, mas temos que agir, não é só pensar.

- Se apenas pensar…

- Não há ação.

- Se, por exemplo, alguém está doente e nós rezamos, pensamos “que elemelhore”, desse jeito, ajuda?

- Ajuda mas pouco. Procurar um médico funciona melhor.

81 Um dos oito preceitos é o voto de celibato.82 A capacidade de renunciar, principalmente prazeres sensuais.

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- A próxima pergunta é: “A energia do Buda ainda envolve o mundo?” Elapergunta: “Essa energia consegue nos ver? Está ao nosso redor? Ou ela desaparecequando o Buda alcança parinirvana? A energia dele desaparece?”

- Cinco mil anos após o Buda ter alcançado nirvana ela desaparecerá. Masela ainda está presente nos lugares em que as pessoas têm fé; nos lugares em queas pessoas não têm fé, ela não existe.

- Significa que a energia mental do Buda ainda está presente no mundo?

- Ainda está.

- Pergunta: “O Buda e os arahants desaparecem após o parinirvana? E sefor assim, como é possível alguns mestres dizerem que ainda conseguemconversar com o Buda e com arahants?”

- Isso eu não respondo, pois perguntou alto demais. Depois que vocêtornar-se um arahant venha falar sobre esse assunto. É difícil explicar, as pessoasnão conseguem entender. Alto demais, se você ainda é uma pessoa comum epergunta sobre isso, foi alto demais.

- É verdade que o Buda ensinou para acreditarmos que, após morrermos,vamos renascer? O Buda ensinou assim de verdade ou não? A pessoa queperguntou viu num livro que o Buda ensinou a não acreditar em nada: se nãovemos por nós mesmos, não devemos acreditar. Então a pergunta é a seguinte: “Sequisermos ser budistas, somos obrigados a acreditar nisso?”

- Tem dois aspectos. Isso é crença, significa acreditar – nós acreditamos.No começo temos que ter fé, acreditar. Não acreditar em absolutamente nada temnível alto e baixo. O baixo é, na verdade, não acreditar em nada que qualquerpessoa diga. O alto, na verdade, é o Buda tendo declarado, ensinado: “praticandoassim vai acontecer isso”, e a pessoa então vai praticar e treinar até conseguir,como Sāriputta. Em uma ocasião o Buda estava ensinando à sangha sobre prática,sobre o Darma, e perguntou:

“Sāriputta, acredita em mim?”

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Perguntas de praticantes brasileiros – 151

E ele disse “Não acredito.”

Os demais disseram “Sāriputta não acredita na doutrina do Buda!”

Mas o Buda perguntou “Por que não acredita?”, e Sāriputta respondeu:

“Antes tenho que ir praticar até conseguir. Quando conseguir, vouacreditar. Se ainda não consigo fazer, não acredito.” Tem alto e baixo, se estivermuito baixo não acredita em ninguém. O alto é praticar até conseguir, e só depoisacreditar.

- Uma pessoa comum é capaz de ver seres de outros mundos, como anjos,fantasmas e esse tipo de coisa?

- Se tiver visão divina83 consegue… Se tiver! Eu não quero falar sobreisso, pois, se falar, é como se estivesse declarando ter poderes psíquicos84. É umapergunta que não deve ser respondida, mas se a mente daquela pessoa conseguever, então vê!

- E ele pergunta como fazer para desenvolver essa habilidade.

- Faça sua visão ficar boa. Seus olhos ainda não estão bons, vá curá-los evai ver.

- Como faz para melhorar a visão?

- Vá praticar.

- Praticar e desenvolver samādhi?

- É.

- E como é possível saber se aquilo que vemos, por exemplo, seestivermos vendo um anjo, como podemos saber se aquilo é de verdade ou éapenas a nossa imaginação?

83 A capacidade de ver que vai além das pessoas comuns, desenvolvida através da prática desamādhi e jhāna.

84 É uma ofensa à regra monástica declarar possuir esse tipo de capacidade a um leigo.

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- É difícil responder isso porque ele ainda não sabe. Ele ainda não sabe oque é o quê. Isso é difícil falar porque explicar certas coisas… uma pessoa comvisão boa explicar algo a uma pessoa cega é difícil. É melhor você ir curar suavisão, depois venha conversar comigo!

- É mais fácil.

- É mais fácil. Explicar para uma pessoa cega entender é difícil, essa corela não vê, como explicar o céu se ela não vê?

- A pergunta é “Se uma pessoa é leiga e ensina prática de meditação, éapropriado que ela cobre? Quando as pessoas vêm aprender ele cobra e às vezesainda se envolve amorosamente com as pessoas que vêm aprender.”

- Depende da opinião, mas, na verdade, ensinar ou transmitir o Darmadeveria ser feito de graça. Ensinar o Darma como doação. Mas, às vezes, emalguns lugares, eles querem obter algo e então abrem um curso de meditação.Aqueles que não têm dinheiro são proibidos de participar. Às vezes é assim. Masse for olhar de acordo com a forma correta, deveríamos ensinar o Darma comodoação.

- E ter relacionamento com as pessoas que vêm estudar, é apropriado? Seuma moça vem estudar…

- Budista pode ser homem, mulher, criança, não importa.

- Digo, ele vai namorar com as alunas.

- Como?

- Às vezes se aproveitam da situação em que se é um professor paranamorar com as alunas ou alunos…

- Isso mostra que, como dizer… você é um professor, mas você ainda nãoalcançou o Darma. Ainda não entrou no Darma, você ensina mas não tem Darmano coração. Você vai ensinando, e enquanto ensina surge desejo e você logo vaipara a cama com aquela pessoa… Você está ensinando o Darma mas está

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ensinando para obter dinheiro, fama, elogios, ou para buscar marido e esposa?Isso não é ensinar o Darma. Você tem que lembrar que você não é iluminado, masconsegue ensinar porque leu e memorizou. Os mestres falaram e você escutou,você leu as escrituras, você estudou, memorizou e portanto é capaz de repetir oque ouviu, mas você ainda não é Darma. Se você não é Darma ainda há algodefeituoso em você.

- Supondo que uma pessoa bebe álcool, mas só um pouco, não osuficiente para ficar embriagado, não o suficiente para interferir em sua clarezamental, ele pergunta: “Isso é pecado?” Se ele beber só um pouco de álcool, semficar bêbado, é pecado?

- Não sei se é pecado ou não, mas é uma quebra dos cinco preceitos. Essequer beber de um jeito ou de outro…

- A religião cristã ensina que as pessoas homossexuais, quer sejamhomens ou mulheres, todas irão para o inferno. É o que ensina a religião cristã.Ele quer saber se a religião budista ensina a mesma coisa ou não.

- Eles se envolvem de maneira correta ou incorreta? Por exemplo, se duaspessoas são casadas elas podem ter relacionamento sexual, mas se não foremcasadas, se aquela pessoa for esposa de uma outra pessoa, você então está errado.Seguindo os cinco preceitos você pode ter esposo ou esposa, não tem problema.Pode fazer sexo, não tem nada de errado. Mas se sair disso, se você tem umaesposa ou esposo e vai se envolver com outra pessoa, você está errado.

- Uma pergunta estranha: quando ele senta em meditação ainda consegueouvir outras pessoas conversando sem entender a linguagem deles. Ouve somenteo som. Então quer saber se isso está certo, se fizer isso há algo de errado? Àsvezes ele está trabalhando e gosta de fazer isso, foca a mente de modo a não ouvirlinguagem, ouvir somente o som. Tem algum problema?

- Não tem nada demais não entendermos a língua dos outros. Não ésentando em meditação que você vai conseguir entender todas as línguas.

- Eles falam a mesma língua…

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- Então é como não estar interessado. Se não está interessado não temproblema.

- Mais uma: quando ele foca na respiração ele sente que, se forçar muito,a mente não se pacifica, não fica parada. Se ele relaxa, larga, a mente vai pensarem outros assuntos. Ele não sabe como fazer para encontrar o equilíbrio. Se forçara mente se excita, se relaxar a mente se distrai.

- Tem que ter equilíbrio: feche os olhos de forma equilibrada, inspire eexpire de forma equilibrada. O equilíbrio faz surgir paz.

- Pergunta: quando senta em meditação, sente que a mente se pacifica massomente quando está se sentindo bem; se não está bem ou se tem um barulhoincomodando ou algo que o incomoda… Se for algo que ele gosta, sente paz, masse não gosta não consegue suportar, não consegue ficar parado, a mente foge paraoutro lugar, ele pede o conselho do Luang Pó.

- Procure um lugar onde não haja som para se sentar, assim vai surgirpouca confusão. Mas não está correto o que ele disse, se ele ouvir uma música e amente canta junto com a música, onde vai haver paz? Se ouvimos algo quegostamos a mente fica pensando naquilo que gostamos; se não gostamos, elapensa naquilo que não gostamos.

- A última é: “Como ter sati na hora em que estamos trabalhando ouconversando com outras pessoas?”

- Tem que treinar, se esforçar em treinar. Neste momento o que estamosfazendo? Se a mente escapar, estabelecemos novamente. Escapa, estabelecemosde novo, tem que fazer assim. Reestabelece um bilhão de vezes, mil, dez mil, cemmil, um milhão, vai reestabelecendo até conseguir fazer. Quando ela escapa não énada de ruim, quando voltamos a ter sati estabelecemos de novo, até conseguir.

- Ele tem dúvida se praticando assim, tendo sati na vida diária, isso éprática de verdade, dá resultado de verdade fazer isso?

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Perguntas de praticantes brasileiros – 155

- Se quiser praticar para valer contemple seu corpo e mente sendo anicca,dukkha, anatta. Tem que contemplar o corpo sendo algo vazio, anicca, dukkha,anatta; não é “meu”, não sou “eu”, não é estável, permanente. Tem quecontemplar bem aqui.

- É só isso, muito obrigado.

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Ajahn Anan – 157

Ajahn Anan

“Pensem: nesta vida temos uma boaoportunidade de treinar nossa mente,tivemos a oportunidade de encontrar oDarma do Buda. Ocorrer de nascermose encontrarmos o Darma dele não é algofácil. O Buda está no Darma: quemenxergar o Darma, enxerga o Buda;quem alcançar o Darma, alcança ser‘Buda’; depende da nossa mente.”

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Sati, Samādhi, PaññaEnsinamento dado por Ajahn Anan à comunidade leiga e monástica de Wat Marp Jan.

Sentem-se em meditação e foquem sati em um só objeto. Por exemplo,usem o entrar e sair da respiração como objeto, foco de sati. Quando focamos satiem um só objeto de forma contínua, qual é o resultado? No Satipatthāna Sutta, jáestudamos – usamos o corpo, as sensações, a mente ou o Darma como fundaçãopara sati. Porque, por natureza, sati fica por toda a parte, foca no exterior, nãofoca na fundação que traz firmeza. Focamos na fundação que traz firmeza, comopor exemplo o corpo, a primeira fundação é o corpo. A respiração faz parte docorpo, ou seja, no ato de ir e vir, quando temos atividades e deveres,estabelecemos sati ao mesmo tempo em que trabalhamos, estamos cientes dosnossos movimentos, ou quando estamos parados temos sati, estamos cientes. Issoé desenvolver sati, desenvolver presença mental.

Quando sati aumenta, nós observamos como é a mente, quando a mentepossui apego ou aversão, quando a mente possui desejo, raiva, ignorância,estamos cientes. Se a mente não tem desejo, raiva ou ignorância, estamos cientes.Se há raiva, quando pensamos que não demorará muito e teremos que morrer, épossível abandonar a raiva, o rancor, a má vontade – se tivermos sati olhando amente. Temos uma fundação firme, como quando saímos para lutar contra uminimigo: temos que ter firmeza na nossa fundação, temos que ter uma fundaçãopara nossa ação.

Nos esforçamos para focar sati nas fundações, como a respiração ou omantra85 “Buddho”. Pode ser “Dhammo”, “Sangho”, pode ser “Bhagavā”, podeser “Sammā Arahant”, ou pode ser “Araham Sammā”, “Sugato Lokavidū” ou

85 Na Tailândia é comum o uso de mantras como objeto de meditação, mas, diferente deoutras religiões ou escolas budistas, não há a crença de que esses mantras possuampropriedades mágicas sobrenaturais, eles são utilizados apenas como um foco para amente.

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Sati, Samādhi, Pañña – 159

qualquer trecho do Buddhābhitthutim, Dhammābhitthutim, Sanghābhitthutim86. Àsvezes os mestres usam “Buddham Saranam Gacchāmi”, “Dhammam SaranamGacchāmi” – que é o mesmo que “Buddho, Dhammo, Sangho” – como apoio paraa prática. Isso é capaz de fazer a mente parar e ficar em paz. Quando encontramosum objeto de meditação que pacifica nossa mente, temos que usar esse objeto comfrequência. Se frequentemente ficamos com raiva, temos que usar bem-querer(mettā) com frequência, como “aham sukhito homi” - que eu tenha felicidade, quetodos os seres tenham felicidade. Nós desenvolvemos bem-querer, treinamos amente. Como se nossa mente estivesse quente e nós balanceássemos usando algofrio, como a água. Se o nosso corpo estiver muito quente, nós temos que buscar aajuda do frio. Se nossa mente estiver quente, temos que utilizar uma meditaçãoque esfrie, como o bem-querer, os quatro brahmavihāras – bem-querer (mettā),alegria pelo bem-estar alheio (muditā), compaixão (karunā) e equanimidade(upekkhā) – para ajudar nossa mente a pacificar-se. Isso é treinar sati; quando satiestá bem treinada, surge firmeza mental – samādhi.

Samādhi é quando nossa mente se estabelece firmemente, mas firme deque forma? No Nobre Caminho Óctuplo é citado “pensamentoaplicado/sustentado, êxtase, felicidade, equanimidade”87 Quando focamos numobjeto de meditação, sati se torna contínua, samādhi se firma, há êxtase, felicidade– é energia para que a mente se desenvolva e surja sabedoria. Quando nossa mentese firma, contemplamos para gerar sabedoria. Quando nossa mente pensa,treinamos em contemplar que as sensações e pensamentos, sensação de felicidadee sofrimento, nascem, se estabelecem e desaparecem, só isso. Então vemos queeste corpo, nasce, se estabelece e desaparece. Isso é treinar a mente a ter sati.Treinar a mente a se firmar, treinar a mente a ter sabedoria. No final, quandotivermos sabedoria, não será necessário treinar, não será necessário focar noobjeto de meditação, não será necessário contemplar para gerar sabedoria pois elasurgirá automaticamente, porque a mente já largou, já se desapegou. É o caminhomais rápido, não precisa fazer nada. Essa é a mente cuja sabedoria está completa.

86 Versos recitados durante a pūja, que descrevem as qualidades do Buda, Darma e daSangha.

87 Os fatores do primeiro jhāna.

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Mas, no começo, na hora em que vamos focar a mente, fazer que ela fique quieta eem paz, andamos de acordo com o Nobre Caminho Óctuplo.

Em alguns lugares dizem que focar a mente não é correto, que utilizar umobjeto para interromper os pensamentos não é correto. Isso, temos que refletir, nãoestá completando todos os aspectos do Nobre Caminho Óctuplo que são sīla,samādhi e paññā. Sīla educa nosso corpo e fala, isso não há quem contradiga,todos concordam que é necessário manter o corpo e a fala dentro dos cincopreceitos. Isso é igual. Desenvolver sati é para entendermos como é nossaatenção. Se nós prestarmos mais atenção, vemos a movimentação do corpo. Se amente se unificar em samādhi e nascer sabedoria, vemos: “Oh! Esse andar para cáe para lá… Corpo é apenas corpo, não é um ser, pessoa, um ‘eu’ ou ‘ele’”. Isso ésó falar, mas quando entendemos de verdade, vemos andar para cá e para lá epercebemos: “Oh… não sou eu, não é meu!” A mente e o corpo conseguem seseparar e vemos claramente que o corpo é apenas corpo. Então conseguimoslargar, abandonar o apego, remover o apego, a mente fica à vontade pois não há“eu”.

Se enxergar de acordo com a realidade, que não há “eu”, já é Sotāpanna.Não é difícil. Se treinarmos com firmeza, treinarmos nossa mente, alcançarSotāpanna não é tão difícil como pensamos. Se enxergarmos que o corpo é apenascorpo, de maneira clara, enxergamos o Darma naquele mesmo momento. Masagora nossa mente está com este corpo e ainda não enxerga, por quê? Há algoescondendo? Há ignorância, desejo e apegos escondendo a verdade. Mesmo seensinarmos à mente: “Isso aqui não somos nós, OK?”, podemos ensinar mas elaainda não vê, ela ainda não viu, então ainda entende que são “eu”. Temos quetreinar, treinar a mente a ter sati, samādhi, paññā, ter diligência em praticar,contemplar mais e mais.

Se nós aqui formos até a Índia, o local onde o Buda nasceu, se iluminou,ensinou e alcançou parinirvana, e sentirmos fé, surgir êxtase e felicidade gerandosamādhi, peço que contemplem que este corpo e mente são impermanentes eassim verão o Darma, verão o Buda. Ou se não formos e ficarmos praticando aquina Tailândia, faça sua mente entrar em paz, ficar quieta, com êxtase e felicidade,

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Sati, Samādhi, Pañña – 161

nossa mente em paz e quieta, e contemple que este corpo e mente não são “eu”,não são “meu”, claramente. Nasce conhecimento que é bhāvanā-mayā paññā88; sevirmos o Darma vemos o Buda, este Buda aqui. Vemos na nossa própria mente,vemos nirvana na nossa mente.

Pensem, nesta vida temos uma boa oportunidade de treinar nossa mente,tivemos a oportunidade de encontrar o Darma do Buda. Ocorrer de nascermos eencontrarmos o Darma dele não é algo fácil. O Buda está no Darma: quemenxergar o Darma, enxerga o Buda; quem alcançar o Darma, alcança ser “Buda”,depende da nossa mente. Se esforcem em praticar ao máximo: quando tiveroportunidade, faça pūja no templo ou em casa, procure treinar sua mente para queela se aquiete, se pacifique. No começo eu também treinei como vocês leigos. Euera leigo, tinha fé em ir ao templo, tinha fé em praticar, seguia os cinco preceitosde forma contínua, tinha fé em fazer pūja, praticar meditação, estudar o Darma,ouvir o Darma, buscar o caminho de prática. Eu procurei um livro sobre oSatipatthāna Sutta e li… Ele ensina de maneira direta, mas minha mente aindanão entendeu. “No ir e vir, tenha sati. Parado, tenha sati. Falando, tenha sati. Emtodas as posturas, tenha sati, esteja ciente. Respirando, tenha sati.” Eu tentavapraticar, mas ainda não enxergava que o corpo é apenas corpo.

Que fazer? Vai praticando, praticando. No final, se a mente se unificarfirme em samādhi, veremos que os elementos são apenas elementos, todas ascoisas no mundo são só o que são – nascem, permanecem e desaparecem. O apegopor todas as coisas materiais deste mundo desaparece: não há desejo por elas, oque deseja, é o Darma. Isso já é ver o Darma: tem fé inabalável no ensinamento doBuda, tem determinação em praticar, vê que, no mundo inteiro, o agregado docorpo nasce, permanece e desaparece. Não há refúgio, a morte se aproxima a todomomento. O conhecimento de vipassanā surge claro, se unifica e nós vemos oDarma, não é muito difícil.

No começo sentimos como que tateando no escuro, não conseguimosachar o ponto certo. Como é que se pratica? Ficamos confusos, em dúvida. Mas

88 Conhecimento que nasce da prática, em oposição ao que nasce do estudo de textos ou deouvir ensinamentos.

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mesmo em dúvida, continuamos praticando. Pode ser assim mesmo, só nãodesista. Mesmo que esteja em dúvida: “Como devo praticar? Quero resultadosrápidos”, não diminua o esforço, vá praticando simultaneamente às dúvidas. Naverdade não queremos ter dúvidas, mas as impurezas mentais nos fazem ficarconfusos porque queremos resultados rápidos. É o comportamento normal queensinamos à nossa mente, então fica com dúvidas sem parar na hora de praticar.Surge samādhi e fica em dúvida de novo: “O que é isso? É êxtase ou felicidade?”e tenta encaixar de acordo com os livros. Mas isso é só memória: a coisa deverdade já surgiu bem à nossa frente. Êxtase é a sensação de alegria – nós estamosalegres, está em linha com os textos, é o que estamos praticando.

Luang Pó Chah ensinava a praticar até o ponto em que a mente entra empaz e se aquieta. Contemplando, entendemos que este corpo e mente são apenasanicca, dukkha, anatta. Toda vida que nasce tem que morrer. Nasce fé no Buda, jáviu o Darma, já é Sotāpanna, não precisa ter dúvida. Então continua praticando,continua investigando, enxerga ainda mais claramente que este corpo não é “eu”,não é “meu”. O entendimento se aprofunda de acordo com o nível, e no finalsurgirão nimittas89, mas isso vem depois. Queremos que desde já apareçamnimittas para vermos claramente. Nisso temos que ter calma: caso não estejamosvendo nimitta alguma, não tem importância. Não é necessário se preocupar comnimittas. Pacifique sua mente, contemple, cuide para que sua mente não sintaapego ou aversão, já está bom. Não é necessário ver nimittas. Ver nimittas émelhor do que não ver? Não dá para comparar. Às vezes não precisa ver nimittaalguma e a mente consegue remover as impurezas. Então já está correto,contemplando e comparando o exterior com o interior é possível alcançar ailuminação, entendam isso.

Procurem praticar. Acontece que nossa prática ainda não está pacífica eficamos com dúvidas. Temos dúvidas e aí ficamos procurando qual é o métodocorreto. Em alguns lugares eles ensinam: “Não precisa, não precisa focar em nada,apenas se desapegue. Não precisar fazer nada, se desapegue…”, e nósentendemos? Como Luang Pó Chah ensinava: o método mais rápido é não fazer

89 Imagens que surgem na mente quando ela se estabelece num nível superficial de samādhi.

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Sati, Samādhi, Pañña – 163

nada. Nós entendemos isso? “Não fazer nada.” Como pode ser possível? Masvamos praticando, temos que desenvolver sati, desenvolver samādhi, paññā, atéestarmos repletos e não precisarmos fazer mais nada. No começo é necessáriopraticar, temos que fazer sati ser contínua, samādhi ser firme. Não pense “Nãoprecisa samādhi nenhum. Se surgir cobiça, raiva, ignorância, deixa surgir, énatural, nasce e desaparece sozinho!”, não é assim, tem que treinar. Cobiça, raiva,ignorância ainda surgem, mas em seguida vão diminuindo, em seguidapermanecem menos tempo, pois sati fica mais forte, sabedoria aumenta e então épossível derrotar as impurezas. Não é: “Não precisa fazer nada, apenas estejaciente, isso surge e desaparece sozinho.” Até está certo, caso permaneça apenasciente, mas essa ciência tem força suficiente? Se não treinarmos sati para saber,não treinarmos samādhi para estabelecer-se firme, não vamos conseguir saber deforma clara.

Eu usei paññā para desenvolver samādhi – comecei com sati. No começosamādhi ainda não se estabelecia, eu não via muita utilidade em samādhi, eupensava: “Estou desenvolvendo sati”, contemplava e conseguia me desapegar;desse jeito me sentia à vontade. Alguns monges praticavam, mas ainda tinhamemoções se manifestando. Eu dizia: “Esse aí ainda não pratica direito, pois aindatem impurezas, ainda tem impurezas se mostrando. Se praticamos sati desse jeito,conseguimos acompanhar, mantemos sīla. Se não, as impurezas mentais semostram no corpo e na fala. Eu consigo controlar minha mente com sati, estouciente de apego e aversão e consigo contemplar.” Eu sentia que isso era mais leve,melhor. Outros monges tinham samādhi, mas, quando surgia uma emoção, elavinha à tona e eu pensava: “Isso mostra que sua sati ainda não é suficiente.” Aí euficava achando defeito naqueles que desenvolviam samādhi: “Sati ainda não ésuficiente!” Aqueles que tinham samādhi diziam: “Eu já desenvolvi sati, seusamādhi é que não é suficiente, você ainda não entende direito.” E aí discutíamos.Mais à frente o samādhi daquele que tinha sati firmou-se e melhorou, a satidaquele que tinha samādhi melhorou pouco a pouco. Pouco a pouco vimos: “Oh,ambos são necessários: tendo sati, samādhi se firma; tendo samādhi tem que ter

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sati, ter paññā junto, magga-sāmaggiya90!” Entende que corpo e mente sãoanicca, dukkha, anatta.

Nesse ponto já não há mais discussão, já não discutem mais sobre o que émais importante: termos sati, mas samādhi ainda não é suficiente, termossamādhi, mas pouca sati; não discutem mais. Entendem que o Caminho Nobretem oito aspectos, eles se unem em sīla, samādhi e paññā – magga-sāmaggiya.Isso é algo importante: a pessoa que desenvolve sati tem que firmar a mente –samādhi. A pessoa que desenvolve samādhi para vencer as impurezas tem que tersati – atenção e cuidado – porque é possível separar a mente dos objetos mentais.Samādhi estando firme, quando surgem emoções é possível separá-las. Nós vemosclaramente que a mente é uma coisa, as emoções são outra. Exteriormente épossível parecer, para as pessoas que olham, que está com raiva, tem raiva, ódio,mas na mente não há, a mente é uma coisa, as emoções são outra, elas se separam.Se nós treinamos de modo comum, observando sīla, quando temos raiva a mente eas emoções vão juntas, isso é no nível de sīla; no nível de sati somos capazes desaber claramente que raiva surgiu e desapareceu, mas quando samādhi seestabelece, sati sabe: “Vai surgir raiva”, mas a raiva e a mente, a emoção e amente se separam.

Isso talvez nós ainda não entendamos, mas se continuarmos praticandoveremos claramente que a mente é uma coisa, e as emoções são outra. Porexemplo, eu vivia com Luang Pó Chah, várias vezes ele mostrava, às vezes elemostrava como se estivesse com muita raiva para ensinar os discípulos. Era só umsegundo e aquela raiva desaparecia e ele voltava a seu estado feliz normal, davarisada, conversava, sorria. Conseguem ver? Mente e emoções são distintas uma daoutra. Peço que treinem nesse ponto e nós veremos o Darma. Procurem abandonardesejo, aversão e ignorância, firmem-se em sua prática. Procurem desenvolversamādhi, procurem treinar sati para que seja contínua. Contemplem para que surjasabedoria, enxerguem que este corpo é apenas corpo, não é um ser, pessoa, “eu”ou “meu” e veremos o Darma. Possam todos vocês fazerem progresso no Darma.

90 “Harmonia do Caminho” - os oito aspectos do Nobre Caminho Óctuplo devem estarharmonizados entre si.

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Ajahn Tan – 165

Ajahn Tan

“Mas eu disse para meu coração que,caso não estivesse pronto, eu então seriaa melhor pessoa possível e tentariaobservar os preceitos, sempre. Mas seeu estivesse pronto, me ordenaria. E nãome ordenaria temporariamente ou debrincadeira. Se me ordenasse seria umaúnica vez e para o resto da vida.”

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A mente controlada por ilusõesPalestra e sessão de perguntas e respostas dada por Ajahn Tan durante um retiro de meditação.

A natureza da mente que ainda está envolta em delusão é dehabitualmente se perder, se apegar às emoções e pensamentos de todos os tipos,como se fossem de fato nossa mente. A correnteza de emoções que vêm da nossamente – ela se apega a essa correnteza como se fosse ela própria. As emoções sãomanifestações da mente. Se surge desejo, raiva ou deleite por diversas coisas,nossa mente se apega frequentemente a essas manifestações ou emoções como sefossem ela própria.

A mente de todos nós deseja a verdadeira felicidade, não há quem desejeo sofrimento. Já observamos ou não? Por que dentro de nossas mentes hásofrimento e confusão? Uma vez que desejamos felicidade, por que às vezes surgesofrimento na nossa mente? Se tivermos um pouco de atenção, veremos osofrimento surgindo na nossa mente vindo do desejo, da raiva, do deleite e daaversão. Por que não procuramos o caminho para cessar o sofrimento na nossamente? Visto que temos inteligência91, alguma vez já refletimos sobre porque éque é possível treinar um elefante, treinar um cavalo ou um cachorro, mas essamente que nós pensamos ser nossa, por que não seria possível treinar para que elamelhore? Por que devemos desenvolver a prática de samādhi? Porque nossamente, se não possuir samādhi, é como o mato e o vento que sopra das quatrodireções. O vento são as emoções que surgem na nossa mente. Quando o ventovem de qualquer direção, o mato se inclina de acordo com o fluxo do vento: nossamente se agita e flui de acordo com o fluxo das emoções.

91 Em tailandês, a palavra comum para “inteligência” é o composto “sati-paññā”. Às vezesé óbvio que o autor está se referindo ao significado comum; outras vezes, dá a impressãoque ele se refere ao significado mais profundo, em páli. A pessoa que esteja lendo podeentão escolher sozinha como quer interpretar o uso do termo nas diferentes ocasiões aolongo do texto.

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A mente controlada por ilusões – 167

Faça sua mente firme como uma montanha que é muito resistente. Asmontanhas não se agitam com o vento; mesmo que seja um tufão soprando, nãoimporta quão forte, ou um tornado, não são capazes de fazer uma montanha seagitar. A mente de um anāgāmī ou arahant também é assim, não se agita com ofluxo das emoções. Para fazer que a mente tenha sati, tenha samādhi, nós temosque treinar em focar a mente em samādhi, ou seja, focar sati em um objeto demeditação para que a nossa mente tenha paz. Focar sati de maneira contínua numafundação faz surgir êxtase, felicidade; surge a equanimidade de samādhi. Sepraticar bastante, a mente se unifica, é ekaggatā arama, ekaggatā citta, tem satifirme no momento presente. Focar sati em uma fundação de forma contínua fazsurgir samādhi; quando samādhi surge, gera força para sati, se torna energia parasati-paññā92 na nossa mente.

Nossa mente ou sati, que vem sendo agitada como o mato, se perde nasemoções, desejos, raivas, deleites e aversões. Quando começamos a ter sati, acapacidade de lembrar, essa capacidade de lembrar consegue acompanhar asemoções que surgem na mente. As emoções não surgem no céu ou na terra, elassurgem na mente das pessoas. Basta termos sati vigiando nossa mente e nósveremos as emoções, todas as diferentes manifestações da mente surgindo em nósmesmos. Se perdemos a atenção, se quebramos sati, nossa mente se perde nofluxo das emoções como desejo, raiva e sofrimento que surgem na mente. Quandoperdemos a atenção ou quebramos sati, as impurezas – desejo, raiva, delusão –obcecam nossa mente. Tudo que nós pensarmos, falarmos ou fizermos estará sob opoder do desejo e da raiva.

Para que sati-paññā surja é necessário desenvolver samādhi pāramī.Quando temos a força de sati, vemos as emoções e todo tipo de manifestações damente. É como se nesse local houvesse uma cerca. Se formos para o andar debaixo ou para a cozinha, não veremos as pessoas que entram e saem pelo portão.Mas se nós colocarmos uma cadeira na porta de entrada e nos sentarmos ali,veremos todas as pessoas que entrarem e saírem. Portanto, se tivermos sati,focarmos sati na mente, vamos ver as emoções e todas as manifestações da mente.

92 Veja nota anterior sobre “inteligência”.

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As emoções não nascem nos olhos, ouvidos, nariz, língua ou corpo; asemoções não nascem nas imagens, sons, odores, sabores ou tato; todas asemoções, quer seja desejo, aversão ou deleite de todos os tipos, nascem em nossasmentes. Os olhos são apenas a ponte de contato com as imagens. Quando os olhosveem uma imagem, surge uma sensação na mente: surge deleite, aversão ouindiferença. Os ouvidos são a ponte de contato com os sons; a sensação de deleite,aversão ou indiferença surge na mente apenas. O nariz contata cheiros, a línguacontata sabores, o corpo com frio, calor, macio e duro, mas todas as sensaçõessurgem na nossa mente.

Portanto, se nós ficarmos atentos e tivermos sati cuidando da mente otempo todo, vigiando a mente, veremos os objetos mentais e as manifestações damente. Treinar e desenvolver samādhi pāramī é causa para que sati nasça econsiga acompanhar e conhecer os objetos mentais e as impurezas que surgem namente. Quando estamos nas posturas comuns, quer seja de pé, andando, sentadoou realizando alguma atividade, tenhamos sati cuidando da mente, em todas asposturas. Realizando qualquer trabalho, tenha sati focada naquele trabalho. Casoesteja livre de trabalho, use sati para observar sua própria mente, faça sua menteficar livre de objetos mentais. Caso haja emoções, pensamentos de diversos tipossurgindo na mente, teremos inteligência para refletir e ver a impermanência deles.Quando desejo, ódio, deleite e aversão surgirem, sati-paññā tem que enxergar aimpermanência, largar os objetos mentais, e então a mente fica em equanimidade.Mas se sati-paññā não tiver força suficiente, então focamos sati no objeto demeditação por três ou cinco minutos e o pensamento ruim some da nossa mente.

Focar sati na respiração, ou no mantra “Buddho”, é possível em qualquerpostura, quer seja de pé, andando, sentado ou deitado – é possível focar sati,desenvolver samādhi da mesma forma. Mas quando desejamos desenvolver sati esamādhi de forma contínua, procuramos a oportunidade de praticar sentado ouandando em meditação. Por exemplo, todos nós tivemos a oportunidade de virpraticar neste local. Este local está afastado de imagens, sons, cheiros, sabores etoques – as emoções ou pensamentos na nossa mente diminuem. Se nosesforçarmos em usar sati para olhar a mente, veremos todas as formas de

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pensamentos surgindo na mente. Quando as distrações de fora diminuem, ospensamentos em geral vão para assuntos do passado ou do futuro.

Se tivermos sati e virmos os pensamentos sobre o passado, usamosinteligência para refletir: “O passado já se foi, para que pensar nisso?” Traga satide volta ao momento presente ou de volta à respiração. Se a mente estiverpensando no futuro: “Amanhã ou depois de amanhã, o que vou fazer?”, nósusamos inteligência para refletir: “O futuro ainda não chegou, para que mepreocupar?” Traga sati de volta à respiração ou ao mantra “Buddho, Buddho” e anossa mente se pacifica. Se a mente estiver pensando no futuro, use inteligênciapara refletir: “O futuro ainda não chegou, para que me preocupar?” e traga sati devolta ao momento presente.

Experimentem usar uma técnica de meditação chamada maranasati. Porexemplo, hoje a noite iremos dormir às onze ou à meia-noite. Use maranasati paraimaginar que às onze ou à meia-noite morreremos. Às vezes essa técnica demaranasati é capaz de fazer nossa mente não ser capaz de pensar em nada queesteja além do horário das onze ou meia-noite, pois sabemos que às onze ou meia-noite vamos morrer, e a mente volta para o momento presente. Usar inteligênciapara contemplar a morte, não para criar medo, mas para despertar nossa mentepara que não seja descuidada com a vida. Contemplar a morte para cortar aganância, o ódio e a ignorância da nossa mente. Ou usem seus próprios métodospara trazer a mente de volta ao presente, de acordo com a habilidade de cada um.

Portanto, quando estamos num lugar como este, devemos treinar em focarsati e desenvolver samādhi continuamente: desde o momento em que acordar eabrir os olhos, estabeleça sati em sua mente. Quer esteja fazendo um trabalhosozinho ou em grupo, tenha sati naquela atividade. Quando tiver tempo livre,procure uma oportunidade para praticar sentado em meditação. Quando cansar,mude de postura e vá praticar meditação andando.

A primeira vez, na época em que eu era leigo, em que vi a mente e osobjetos mentais, eu tinha um pouco mais de vinte anos. Antes eu tinha oentendimento incorreto de que os pensamentos e emoções que surgem na mente

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são a própria mente. Mas foi na ocasião em que surgiu confusão na minha mente,após ter voltado da faculdade por volta das sete horas da noite. Estava voltandopara casa por volta das nove ou dez horas e a mente não parava de pensar. Pensavaem todo tipo de coisas, mas por sorte tive sati e consegui me perguntar: “Eh? Estaé a minha mente, por que não consigo controlá-la?” Eu tive sati para ver osobjetos mentais surgindo na mente e tomei a decisão de achar um caminho paraconseguir controlar minha própria mente. Eu não queria pensar de forma confusaou naquilo que é danoso.

Na minha casa havia um altar93. Fui até lá e me sentei em meditação. Foia primeira vez que pratiquei meditação. É possível que tenha sido por ter vistomeu pai. No uposatha, ou quando tinha tempo livre, ele ia até o altar vestindo umaroupa branca94 e praticava meditação. Quando minha mente estava pensando semparar, decidi procurar um caminho para parar as emoções e pensamentos na menteaté encontrar. Então sentei em meditação e foquei sati na ponta do nariz: quandoinspirava e o ar tocava a ponta do nariz, eu pensava “Bud”; quando expirava, o artocava a ponta do nariz e eu pensava “dho”.

Deve ter sido sorte minha que, quando foquei sati na respiração, minhamente parou de pensar em todas aquelas histórias. Tinha sati no momentopresente, tinha sati na respiração, tinha sati na meditação sobre a respiração deforma ininterrupta. A mente aos poucos se pacificou, o corpo ficou leve, a menteficou leve, surgiu êxtase. Eu percebi que a mente não estava mais confusa, nãoestava mais pensando de forma confusa, o corpo estava leve, a mente estava leve,surgiu felicidade e frescor na mente. Eu não sentei em meditação por muitotempo, talvez uns dez ou quinze minutos, mas a mente estava em paz o tempotodo. Quando mudei de postura e saí da meditação, tinha sati firme no momentopresente, a mente estava unificada.

93 หหองพระ – Tradução literal: “quarto do Buda”. Antigamente, na Tailândia, as pessoasreservavam um cômodo da casa onde moravam para colocar um altar e utilizar para aprática de pūja e meditação. Hoje em dia ainda é comum haver um altar dentro de casamas em geral não é um quarto separado. Mas ainda assim permaneceu o costume dechamar de “quarto do Buda”.

94 Algumas pessoas gostam de vestir roupas brancas quando observam o uposatha.

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A mente controlada por ilusões – 171

Eu vi o resultado de praticar meditação. Quando saí da postura demeditação sentada, sati era capaz de controlar a mente. Quando fazia meusdeveres em casa, por volta das dez ou onze da noite, minha mente estavaunificada. Então eu descobri que essa prática de samādhi é causa para que hajasati, e quando há sati somos capazes de controlar nossa mente. Desde então,qualquer dia em que sentisse que a minha mente estava pensando de formaconfusa, eu procurava uma oportunidade para sentar em meditação. Mas eu erauma pessoa acostumada ao conforto, não gostava de dificuldades, então sópraticava meditação nos dias em que a mente estava confusa. Mas eu tinha essasorte: todas as vezes que sentava em meditação, minha mente se pacificava.

Não sentava por muito tempo: no começo eram apenas dez ou quinzeminutos. Então fiquei sabendo que, para ter sati controlando a mente, é necessáriopraticar samādhi. Depois disso eu passei a procurar controlar a mente para pensarcoisas boas, falar coisas boas e fazer apenas coisas boas o tempo todo. Quandoestava em qualquer posição, de pé, andando, sentado ou fazendo o que quer quefosse, caso houvesse um pensamento ruim, sati via aquele pensamento e eu usavainteligência para achar alguma forma de expulsá-lo o mais rápido possível. Seinteligência não encontrasse uma forma para abandonar aquilo, eu simplesmentetrazia sati de volta à respiração e o pensamento desaparecia. Na época em que euera leigo, usava esse método para cuidar da minha mente e minha mente tinha paze frescor o tempo todo.

Eu observava os cinco preceitos de forma regular e tinha intenção de sóconstruir bondade no meu coração. Me lembro de que quando tinha dezessete oudezoito anos tive uma emoção no coração que dizia: “Qualquer forma de bondadeque exista neste mundo – aspiro a todas elas. Eu desejo construir apenas coisasboas.” Numa outra época da minha juventude, quando eu tinha dezenove ou vinteanos, se fosse a um templo, qualquer que fosse, eu procurava um altar que fossetranquilo. Eu me lembro que quando ia ao altar, onde era silencioso, me prostravatrês vezes e o que eu pensava ou determinava não era como as demais pessoasfaziam, na minha mente surgia a frase: “O caminho mais excelente – eu desejoencontrar esse caminho.” Era assim todas as vezes que me prostrava, nunca pensei

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de nenhuma outra forma. Isso eu só contei para que sirva de reflexão, paradespertar o coração.

Por isso, uma vez que todos nós tivemos a resolução de vir praticar,observar sīla e desenvolver samādhi, usem sati para cuidar de sua mente de formaequilibrada, não tensionem demais para que não surja estresse, nem afrouxemdemais para que não percam sati. A prática não é feita para gerar sofrimento, massim para que a mente se desprenda do sofrimento, dos apegos ao que quer queseja. Hoje eu já ofereci pensamentos o suficiente, peço para parar por aqui. Emseguida há um pouco de tempo, quem tiver algum problema relacionado à práticapode perguntar.

- Eu sou novo em meditação e o que eu gostaria de saber é: como lidarcom a dormência nas pernas e nas costas durante a meditação?

- Se a mente ainda não se pacificou e sente dor surgindo, se não consegueaguentar, mude de posição. Mas se focou sati e desenvolveu samādhi, se a mentese pacificou primeiro e em seguida surgiu a dor, por exemplo dor na perna,existindo um pouco de sati e samādhi, sati vai focar naquela dor. Use inteligênciapara contemplar o corpo nesse corpo até enxergar como elemento terra, água, ar efogo. Separe a mente e o corpo. Contemplar o corpo como elementos não é nadadifícil. Use inteligência para refletir que se nós inspirarmos e não expirarmos, ouexpirarmos e não inspirarmos, nosso coração vai parar de funcionar. Quando oelemento ar cessa, o elemento fogo cessa em seguida: vai surgir frio no nossocorpo e em três ou cinco dias o elemento água, o sangue, o pus – nosso corpo nãoconseguirá retê-los, eles vazarão e se espalharão pelo chão. A parte do elementoterra, que é a parte dura, o cabelo, os pelos, as unhas, os dentes, a pele, os ossos,vai se desmanchar e se espalhar pelo chão.

Procure separar a mente do corpo utilizando sati-paññā; contemple ocorpo sendo quatro elementos – terra, água, ar e fogo. Quando nossa mente virque o corpo é uma coisa e que a mente é outra, nossa mente se separará do corpo.Quando a mente se separar do corpo, use sati-paññā para contemplar e buscar averdade sobre a dor. A dor que surge com este corpo é realmente nossa mente ou

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não? Dor é um fenômeno que surge do corpo apenas e é da natureza de surgir edesaparecer. Procurem usar sati-paññā para contemplar o corpo no corpo e separara mente do corpo. Usem sati-paññā para contemplar as sensações nas sensações eseparar a mente do corpo, separar a mente das sensações. A mente é uma coisa, ocorpo é outra, as sensações são outra. Esses três não estão relacionados. Mas paraque sati-paññā tenha força para contemplar o corpo no corpo, as sensações nassensações, tem que haver samādhi unido à sati-paññā. Se samādhi ainda nãosurgiu, se nós não aguentarmos a dor, às vezes temos que mudar de posição.

Na verdade, se nossa mente sair deste corpo, quer dizer, se nósmorrermos, estes elementos, este corpo, não sentem nada, nem calor nem frio.Levam para cremar ou enterrar sob a terra e ele não sente nada. As sensações estãosomente na nossa mente, que se apega a este corpo como se fosse “eu”. Deu paraentender? Alguém tem mais alguma pergunta?

- Sim, eu tenho uma pergunta. Tahn Ajahn, você mencionou que quandotinha vinte anos você descobriu que conseguia encontrar paz na sua mente atravésde sati, porque você disse estava tendo muitos pensamentos em sua cabeça, entãopercebeu, por ter sati. Então você foi a um quarto e então descobriu, ou soube, queconseguia ter uma mente calma, uma mente muito pacífica. De fato, para mim,isso já é superar o sofrimento. E então você disse que, sempre que tinha esseproblema, você fazia isso, você fazia essa meditação. Nos é dito que o budismoserve para superar o sofrimento. Tahn Ajahn já encontrou, mas ainda assim, apesardisso, ele foi adiante e tornou-se um monge. A razão pela qual tornou-se monge éporque está obtendo mais felicidade do que a que ele havia descoberto? E nessecaso, ele poderia nos dizer onde ele encontrou mais para superar esse sofrimento?Sādhu.

- Naquela ocasião eu sabia o método para parar o sofrimento vindo dasimpurezas mais grosseiras apenas, o que era feito de forma temporária. Mas, naverdade, na época em que eu era leigo, na minha vida eu queria: número um,estudar e atingir a graduação mais elevada. Número dois, encerrados os estudos,ter o melhor emprego; e número três, eu pensava em ter família. Tinha esses três.

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Na minha vida laica, naquela época, eu não tinha visto muito sofrimento, pois euvivia como os jovens em geral, tinha muitas diversões e distrações.

Mas o sofrimento que eu vi de verdade… Eu ainda não tinha tido nenhumsofrimento, mas eu vi na mente. Uma vez, eu tinha dezenove ou vinte anos, estavaindo de ônibus para a faculdade. Eu tinha onde sentar no ônibus, mas uma moçacom um bebê de colo entrou e eu cedi meu lugar. Aquele bebê ainda não tinha umano de idade, pois a mãe o carregava no colo. Eu me levantei e me segurei nabarra de ferro perto de onde ela estava sentada, e meu olhar caiu sobre a criança.Foi só meu olhar cair sobre a criança e a minha mente começou a pensar, a pensarem algo que nunca havia pensado antes, foi a primeira vez. Eu pensei: “Essacriança, até que ela consiga falar, andar e cuidar de si mesma, até ela ficar do meutamanho, vai ter que passar por muita felicidade e sofrimento.” Minha inteligênciapensou só isso e surgiu desencanto na mente. Eu terminei de contemplar sobre acriança, então olhei para a frente. Eu vi uma pessoa que me pareceu não estar sesentido bem, estava indo ao hospital, pois esse ônibus passava em frente aohospital. Algo que eu nunca havia pensado veio à mente: “Dentre todas aspessoas, não há quem consiga escapar das doenças, mesmo eu um dia ficareidoente como ele.” E eu senti desânimo e desencanto na mente. Então meu olharsaiu daquela pessoa e foi encontrar uma pessoa idosa, por volta de sessenta ousetenta anos. Pensei pela primeira vez naquilo que nunca havia pensado: “Dentretodas as pessoas, não há quem consiga escapar da velhice: cedo ou tarde eutambém serei daquele jeito.” E de novo surgiu desencanto na minha mente e emseguida eu pensei: “Todas essas pessoas nesse ônibus, essas trinta ou quarentapessoas aqui, para onde estão indo?” e surgiu uma sensação na minha mente querespondeu: “Todas as pessoas nesse ônibus estão indo em direção à morte.” Esurgiu muito desencanto na minha mente. Eu vi crianças, doentes, idosos noônibus quase todos os dias, por volta de vinte ou trinta dias, e minha mentepensava assim todos os dias. E no último dia eu disse para mim mesmo quequando fosse possível me ordenaria monge. Se não fosse possível, então faria omáximo para ser uma boa pessoa. Talvez eu não seja bom na opinião dos outros,mas que na minha mente eu seja uma boa pessoa.

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Esse foi o sentimento que surgiu na minha mente. Mas eu era uma pessoaacostumada ao prazer e ao conforto e meu coração naquela época ainda não estavapronto. Eu tinha planos como as pessoas comuns, me decidi a estudar até agraduação máxima e ainda não tinha alcançado aquela meta. Número dois, quandoacabasse os estudos, queria trabalhar. Número três, queria ter família. Mas eudisse para meu coração que, caso não estivesse pronto, eu então seria a melhorpessoa possível e tentaria observar os preceitos, sempre. Mas se eu estivessepronto, me ordenaria. E não me ordenaria temporariamente ou de brincadeira. Seme ordenasse seria uma única vez e para o resto da vida.

Foi assim, na verdade eu não tinha visto sofrimento ao redor, mas vi naminha mente daquele jeito. Eu ainda não tinha me encontrado com a velhice, coma doença, com a morte, mas pensei: “Não importa quantas vidas eu nasça. Tendonascido não serei capaz de evitar a velhice, a doença e a morte.” E surgiudesânimo, desencanto. Deu para entender?

- Sim, eu acho que entendemos porque Tahn Ajahn decidiu tornar-semonge. Eu acho que a maioria dos praticantes, incluindo a mim, ainda estamosesperando para ver os três sinais95 em um ônibus, e se não os virmos, vamos tentarser o melhor possível. Sādhu, sādhu!

- Bom. Determinem um objetivo e criem as condições. Gostamos de terobjetivos na vida, então criem as condições para alcançarem aqueles objetivos.

- Tahn Ajahn, saudações. Eu tenho uma pergunta que diz respeito à morte,porque não há muito escrito dentro do Budismo Theravada sobre a morte. Entãoeu gostaria de saber: em geral, como uma pessoa deve se preparar para a morte?Quando estamos próximo ao momento, o que devemos fazer?

- Quando estiver perto da morte tenha sati focada no momento presente.Ainda estando vivo, foque sati e desenvolva samādhi para que a mente sepacifique. Quando a mente estiver pacificada e ainda estivermos respirando, tragaà frente o corpo como objeto de meditação dos elementos terra, água, ar e fogo,

95 Velhice, doença e morte. Foi ao ter visto esses mesmos três sinais que Siddattha Gotamadecidiu abandonar seu lar e tornar-me um monge.

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para que a mente contemple e se desapegue do corpo. Se a mente enxergar queeste corpo não é a mente e que a mente não é o corpo, nossa mente não vai termedo de morrer. Nossa mente não vai tremer diante de qualquer perigo de mortepois vai saber, de forma natural, que é normal que este corpo surja e se degenere,ele não é a mente. Tendo contemplado, deixe a mente descansar em samādhi.

Aí vai surgir uma imagem do nosso carma, o carma que fizemos desdeque nascemos até o momento da nossa morte. Se o carma bom tiver muita força,ele dará resultado; se o carma ruim tiver muita força, ele dará resultado. Haveráuma imagem do carma surgindo na mente. Se fizemos mérito, seguimos ospreceitos, construímos um templo, um monastério, ou fizemos algum tipo demérito, às vezes doamos comida aos monges, a imagem do carma aparece e amente vai agarrar aquela imagem. A imagem sendo boa, quando morrermos, amente vai nascer de acordo com o carma que acumulamos. Vai de acordo com oresultado do carma. Se acumulamos carma ruim, surgirá uma imagem ruim. Se amente agarrar aquilo, surgirá medo e pavor e quando morrermos vamos para ummundo inferior. Carma gera os resultados, carma é nossa origem, carma é quemnos acompanha, carma é o que nos sustenta. Quem fizer carma bom obtém bonsresultados, quem fizer carma ruim obtém resultados ruins.

- Tahn Ajahn, a maneira como envelhecemos está fora do nosso controle,e o modo como o cérebro envelhece está fora do nosso controle. Para uma pessoaque pratica muito o Darma, quando nossa mente está clara e acontece que a pessoatem demência ou Alzheimer, haveria uma boa chance de que a mentepermanecesse clara durante a morte para poder observar e prestar atenção àrespiração?

- Se ela tiver sati ela vai conseguir, e o carma que eu disse, a imagem docarma que tenha realizado, bom ou ruim, irá se manifestar na forma de imagem.Se for uma imagem boa, nascerá felicidade e a mente agarrará aquela imagem:nesse caso, a imagem do carma trará um bom resultado. Se a mente ainda nãoalcançou um estágio de iluminação, não é um Aryia Puggala, quer seja dos níveismais baixos ou mais altos, está exposto à imagem do carma que fez no passado.Se fez o bem, tem um bom resultado; a imagem surgirá na hora da morte.

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Por exemplo, uma imagem conectada ao budismo, às vezes doamoscomida aos monges e aquela imagem surge, a mente sente felicidade. Se doamosalgo à sangha, e a mente vê aquela imagem. Se construímos uma cabana para osmonges, um templo ou ajudamos a construir, ou oferecemos algo material paraajudar o budismo, o carma irá se concentrar em uma imagem. Esse carma é aqueleque, vendo, fará a mente sentir felicidade e ela agarrará aquela imagem. E essaimagem é o que vai nos levar a nascer entre os seres humanos ou entre os serescelestiais.

- Tahn Ajahn, eu também tenho uma pergunta relacionada. Digamos quenosso carma seja bom o suficiente para renascermos num estado favorável, existealguma maneira de quando estivermos perto da morte, se nós ainda nãocompletamos nosso trabalho espiritual, nós ainda não entramos na corrente96,existe alguma forma de evitar nascer nos reinos celestiais para não perder temponaquele nascimento97? Obrigada.

- Tem que determinar o pāramī. Se não quiser receber o resultado domérito que leva a nascer como anjos ou deuses… não é? Tem que determinar opāramī. Fizemos mérito frequentemente e isso é o que gera resultado, mas nóstemos que determinar o pāramī: “Eu desejo nascer humano, encontrar oensinamento do Buda e viver num país onde o budismo prospera.” Temos quedeterminar o pāramī. Se acumulamos mérito o suficiente, determinar o pāramīconseguirá que as coisas aconteçam da forma que queremos. É como o vestibular:tem nota alta e nota baixa, e cada curso tem um mínimo exigido. Se tivermos notasuficiente, podemos escolher aquele curso. Se acumulamos mérito suficiente,podemos escolher.

96 Refere-se à realização do primeiro estágio de iluminação.97 Esta pergunta vem do entendimento de que um nascimento celestial não é favorável à

prática do Darma, pois esse tipo de ser experiencia muita felicidade e tende a perder oímpeto em buscar um fim para o ciclo de nascimento e morte.

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Ajahn Jayasaro

“…como professor, você deve semprelembrar a si mesmo que você é umestudante, você é um ‘professor-estudante’ e você está ensinando‘estudantes-professores’. Porque sevocê se esquecer que você também éum estudante, você provavelmentetambém esquece que seus estudantestambém são seus professores.”

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Conselho para estudantes e professores de DarmaPalestra dada por Ajahn Jayasaro durante um encontro de professores de Darma.

Com a permissão da venerável sangha, gostaria de oferecer meus bonsvotos e apreciação pela presença de todos aqui. E a reunião hoje é uma ocasiãohistórica para mim, pois esta é a primeira vez que eu dou uma palestra sobre oDarma havendo antes um show de abertura. Várias vezes, quando era um jovemmonge, eu era convidado a palestrar durante sessões de Darma que ocorriam naTailândia, que duravam a noite inteira. Vão das oito da noite até as cinco damanhã. Eu costumava ser convidado por volta da uma da manhã, quando todosestavam começando a ficar bastante sonolentos. “Oh, vejam! É um mongeestrangeiro, e ele sabe falar tailandês!”, então todos acordavam. Quando vi aagenda de hoje, notei que estava diretamente após o almoço e pensei: “Oh, esse éo mesmo tipo de ideia…”, mas tivemos esse maravilhoso grupo cantando e vitodos rindo e batendo palmas. Portanto não caiu sobre mim a tarefa de acordar aspessoas.

Então, começando com valores e, é claro, tenho que começar com sīla. Euestava conversando com um venerável hoje cedo, que uma das razões pela qual euescolhi tornar-me um budista theravada foi por causa do ensinamento de sīla e daideia de um treinamento holístico triplo: sīla, samādhi, paññā. E sīla sendo algoque deve emergir de sabedoria e deve vir de uma vontade, um desejo de limitarsuas ações e fala, dentro de limites aceitos voluntariamente. E a relação desse tipode esforço com a purificação da mente. Eu achei que isso era apresentado deforma extremamente clara na tradição theravada.

Do que eu já estava bastante cansado, tendo tido algumas experiênciascom isso, era de seitas e movimentos nos quais a ideia é que o professor espiritualalcança, em última estância, um nível que está além da moralidade e no qual elenão pode ser avaliado sob o mesmo padrão das pessoas comuns – ele játranscendeu isso. Portanto seria ilegítimo, incorreto, criticar uma pessoa dessa

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estatura por agir de maneiras pelas quais uma pessoa comum seria condenadaseveramente. Eu achava que essa era uma atitude muito perigosa para se tomar,perigosa para comunidades e perigosa para os próprios professores espirituais,porque mesmo na época do Buda existiam monges que superestimavam suasrealizações. Mesmo tendo o Buda e os grandes arahants como kalyānamittas.Então, quanto maior é a possibilidade e a probabilidade de superestimaçãoespiritual nos dias e época atuais? Me parece que nossa tradição theravada é umatradição segura e confiável, porque deixa muito claro à ordem monástica que,mesmo de um monge que já esteja usando o manto por trinta, quarenta, cinquentaanos, é esperado que observe todas as mesmas regras que um que tenha sidomonge por apenas um dia, mesmo que ele seja um arahant – ainda mais se ele forum arahant. Nós temos essa ideia de praticar para as gerações futuras, entãomesmo que você não tenha que manter um código moral em especial para suaprópria purificação, mesmo que sua mente esteja completamente livre de impulsosimpuros ou corrompidos, ainda assim nos comportamos dentro desses limites,como um exemplo aos demais.

Quando um jovem monge, ou uma jovem monja, ou jovem praticantecomeça a se desenvolver no Darma e fica um pouco confiante demais, então Māraou as impurezas mentais surgem: “Na verdade, eu não preciso mais fazer isso…eu posso fazer isso e não vejo nenhuma impureza surgindo, minha mente estácompletamente indiferente, está estável e clara. Então, por que não?” Esse é o tipode pensamento perigoso que surge em pessoas no caminho espiritual, emparticular quando você ganha um pouco de experiência com meditação. “Naverdade, eu não preciso fazer isso.” E é por isso que temos esse valor de que, nãoimporta quão realizado você seja, você faz do mesmo jeito. Você faz do mesmojeito, mesmo que você não precise, por compaixão pelos seus estudantes e pelasgerações futuras. Esses são os valores chave.

Agora, ser um professor espiritual significa que você está sob os olhos detodos, todos estão olhando para você. Todo ponto bom, todo ponto ruim, não sãoapenas exagerados, mas são também distorcidos, e isso faz parte do carma de serum professor espiritual. E não adianta reclamar sobre isso, simplesmente é assim

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que as coisas são. Há muitas projeções sobre os líderes, as pessoas projetarão emvocê ideias sobre os pais delas. Eu me lembro, tendo há pouco tomado a função deabade de um monastério, de ter ficado bastante exasperado com um jovem mongeamericano e lhe dito: “Ei, eu não sou o seu pai, OK? Não me trate como o seu paiporque eu não sou!” Então, embora o upajjhāya ou o ajahn cumpram o papel deum pai, o lado ruim disso são relacionamentos disfuncionais entre o estudante efiguras-chave na vida dele, que são muitas vezes projetadas em você, sendo anova figura de autoridade, e isso é algo com o qual você tem que estar preparadopara lidar.

Ontem eu estava falando sobre essa ideia de ser apenas você mesmo e eudisse: “O que é que isso realmente significa?” Eu não acho que isso esteja muitoclaro e acho que podemos ser muito iludidos sobre quem realmente somos. Masum valor e ponto de referência mais prático é: “não tente ser outra pessoa”. Émuito comum jovens aspirantes a líderes espirituais tentarem moldar suas ações,suas condutas, até mesmo o estilo de falar sobre o Darma etc., sobre um professorque eles admiram. Mas passa a impressão de algo um pouco falso. Portanto, nãotentem ser uma outra pessoa, mas seguir os princípios de sīla, samādhi e paññā.

E um outro princípio que eu gostaria de expressar é diligência, ouappamāda. E particularmente no sentido de que o Buda reservou o termo asekha,asekha puggala, “aquele que se graduou”, “aquele que encerrou o treinamento”,para o arahant. Então, como professor, você deve sempre lembrar a si mesmo quevocê é um estudante, você é um “professor-estudante” e você está ensinando“estudantes-professores”. Porque se você se esquecer que você também é umestudante, você provavelmente também esquecerá que seus estudantes tambémsão seus professores. E uma vez que você se esquece dessas coisas, você podeentrar em modos de relacionamento muito rígidos e começar a esperar e exigircertas atitudes e certos tipos de respeito, quando na verdade essas coisas deveriamser conquistadas. Você deve estar constantemente treinando a si mesmo eaprendendo.

A tendência é que, se a sua prática espiritual atingir um certo tipo de nívelestável, você perderá aquela vontade, ou paixão por mais desenvolvimento e é

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muito mais provável que essa armadilha lhe prenda caso você esteja cercado depessoas que pensam que você é maravilhoso. Então, é um perigo muito real, efique sempre voltando para si mesmo e sua própria prática. E isso significaencontrar tempo para meditação formal todos os dias.

Algumas pessoas ensinam, promovem meditação regularmente, masquase não praticam, e uma das razões para isso, eu vou sugerir, é que prática demeditação não é quantificável, ou é muito difícil dizer: “Hoje eu coloquei essetanto de horas e eu consegui esse tanto de produto”, entende? Há o input nesseprocesso, onde está o output? É difícil dizer. Mas se você passar uma hora emfrente ao computador, ou escrevendo um artigo, ou aconselhando, ou ensinando àspessoas, no final você tem um senso real de realização. E eu não estou denegrindoessas coisas, elas são certamente parte de nossas vidas e responsabilidades, mas oque eu estou apontando é que é um pouco perigoso, no sentido de que podemosusufruir dessa sensação de realização, realização tangível, mensurável, ao pontode ignorar, negligenciar o muito importante e vital trabalho interior, que nãonecessariamente tem um resultado diário óbvio sobre que possamos dizer: “É,hoje eu consegui isso ou alcancei algo.” Mas, a longo prazo, para ser um bomprofessor e um professor criativo, que possa realmente liderar comunidades, essetrabalho constante não pode ser negligenciado.

E o meu próprio professor, Ajahn Chah, muitos de vocês sabem, não sabiafalar uma só palavra de inglês, mas foi capaz de atrair estudantes de todo omundo. E muitas vezes os ensinamentos que ele dava eram maravilhosos eprofundos, mas a maioria deles eram ensinamentos bastante comuns, que nóspoderíamos ouvir ou ler em outros lugares. Mas ouvindo um ensinamentodiretamente de Ajahn Chah, o ensinamento mais básico, que você encontraria num“ABC do Budismo”, lhe impressionava, alcançava seu coração de uma maneiramaravilhosa por razão de quem ele era, por causa da integridade dele, por causa daprática dele, por causa da autoridade espiritual dele. Então, comunicação não é sóquestão de ter feito o estudo, conhecer seu assunto, ser articulado, mas é viverisso. É quem você é, e isso não é algo que você consegue fingir. Sem isso não háuma transmissão de longo prazo realmente eficiente do Darma. Isso é um

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chamado para essa diligência e real devoção a estudar e à prática interior, e a verque quanto mais trabalho você põe nisso, mesmo que você não consiga identificarmuito claramente, você tem a fé de que isso de fato afeta a sua habilidade demodelar os ensinamentos e torná-los reais e de dar às pessoas uma sensação deesperança de que, se ele consegue fazer, eu também consigo. Se ela conseguefazer, eu também consigo. Isso é absolutamente vital.

Um aspecto da disciplina monástica que é muitas vezes negligenciado éque os estudantes têm o dever de repreender, com grande respeito, os professoresdeles se os professores começarem a agir de maneira excêntrica ou inapropriada.E em sociedades hierárquicas, como aquela em que vivo em particular, é muitodifícil. Psicologicamente, é muito, extremamente difícil em uma sociedade denão-enfrentamento, como a sociedade tailandesa, para os membros mais jovens deuma comunidade dar feedback positivo ou repreensão respeitosa para os maisvelhos. E aqui você pode dizer: “Bom, eu sou um professor, mas eu faço umverdadeiro esforço para estar aberto e convidar as pessoas a apontar defeitos.” Eisso é muito bom, mas você também deveria se perguntar: quão frequentementeisso acontece? Porque muitas vezes professores espirituais e líderes de qualquertipo de situação podem fazer esse tipo de oferta, mas ninguém acredita deverdade. Isso é dito, mas em efeito ninguém de fato aceita o convite. Então, temque haver uma sensação real de convite, e não apenas as palavras de convite.

Essa devoção à sīla, o senso de humildade que vem de olhar e verclaramente o trabalho que precisa ser feito… É verdade que humildade podefacilmente tornar-se do tipo “Uriah Heep”, aqueles entre vocês que leram CharlesDickens conhecem, a pessoa que é a mais deficiente em humildade, Uriah Heep,está sempre dizendo: “Você deve ser humilde, seja humilde” e, é claro, toda aironia do personagem dele é que ele não é humilde. Então, só falar em humildadenão é o suficiente, não é algo que você pode assumir como se fosse uma posição.Humildade vem de olhar com bastante clareza, sem medo e com neutralidade,para a natureza das corrupções surgindo e desaparecendo na mente, sem tomarposse daquilo e dizer: “Eu sou uma pessoa ruim, eu realmente não sirvo para serprofessor, eu sou uma farsa, eu ainda possuo essas corrupções”, mas perceber:

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“Sim, isso é um trabalho que eu ainda tenho que realizar e é um trabalho ao qualestou devotado, mas, no meio tempo, vou fazer o melhor que puder para ajudar aspessoas ao meu redor.” Esse constante olhar para dentro, e desassociar-se do ego,como uma prática.

Outro valor é a compreensão da natureza dos “Darmas Mundanos”98, emparticular elogio e crítica. Esse é um teste constante da sua maturidade espiritual.Mas não dizemos: “Você é um professor espiritual, você deveria ser equânimecomo uma montanha é para o vento. As pessoas lhe elogiam ou criticam, você nãodeveria ser afetado por essas coisas.” Essa atitude à vida espiritual que diz quevocê deveria ser de um certo jeito e que não deveria ser de um certo jeito écompletamente inútil, portanto não se deixe enganar por isso. O que estamosolhando é: o que é elogio, o que é crítica, qual é o relacionamento que temos comeles, e começarmos a notar, por exemplo, que quanto mais nos deleitamos emelogios, mais nos incomodamos com críticas. Então, se você simplesmentegostaria de viver num ambiente sem críticas e ser apenas elogiado, você estariavivendo num paraíso falso, porque essas duas coisas andam juntas. E a únicamaneira de não sentir angústia ou desapontamento quando alguém lhe critica é vera natureza dos elogios sendo desse mesmo jeito. É só isso e nada mais: você não émelhor porque alguém lhe elogiou e não fica pior porque alguém lhe criticou. Temuma história boa que vou contar sobre um rei que é aconselhado por seu sábioministro:

“Tem uma pessoa vindo vê-lo hoje e ele é um verdadeiro galanteador. Elevai tentar te conquistar, ele vai dizer que você é maravilhoso, ele vai te elogiarterrivelmente. Não acredite nele, OK?”

Então o rei diz: “Não, não vou acreditar em nenhum elogio.”

O homem entra e imediatamente começa: “Oh rei, você é tãomaravilhoso, tão sábio…” e vai dessa forma.

E o rei: “Hum… obrigado…”

98 Loka dhammas são os oito fenômenos inerentes ao mundo: elogio e crítica, perda e ganho,fama e anonimato, felicidade e sofrimento.

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O primeiro-ministro então olha para o rei e diz, sussurrando no ouvidodele: “Eu te disse, eu te disse! Não acredite quando ele te elogia!”

O rei diz: “Tudo bem, eu não me esqueci de você. Ele ainda não começoua me elogiar, tudo que ele disse até agora é verdade!”

Então, tenha muito cuidado com acreditar no seu próprio currículo,acreditar na sua própria propaganda, acreditar no papelzinho que o moderador lêquando ele te introduz. Não acredite em nada disso. Não acredite nos seuspensamentos, sempre tenha os ensinamentos do Buda como um lembrete e comoum ponto de referência. E o seu kalyānamitta: mesmo que você seja um professor,você sempre precisa de alguém para olhar e referenciar-se. O seu kalyānamittadeveria ser um “kalyāna-metro”, ser uma pessoa que metrifica, que mede, quejulga a quantidade de kalyāna dhamma no seu coração. Não é alguém que lhe dáelogios o tempo todo. E algo que eu notei em meu professor, Ajahn Chah: ele eratão firmemente fundado no Darma, que ele não se importava caso você ficassecom raiva dele. Ele não se importava mesmo que você o odiasse, porque ele sabiaque o que ele estava fazendo era para seu próprio bem. Como um médico que lhedá um remédio que você odeia ou um tratamento que você não quer, pois ele sabeque é o melhor para você. Então, como professor, não pense que você tem que serpopular o tempo todo, não meça seu sucesso como professor pelos rostossorridentes e “Oh… você é tão maravilhoso.”

E, estudantes, tenham cuidado com carisma! Existe uma correlação muitoforte entre o número de professores espirituais que traíram seus estudantes e seenvolveram em todo tipo de impropriedades e o carisma deles. Isso não é dizerque todo líder carismático é corrupto, mas a maioria dos líderes espirituaiscorruptos são carismáticos. Então, qual é o “trio de ouro”? Carisma, um bomvocabulário e um uniforme. Se você tiver essas três coisas a seu favor, você vai terseguidores. Tenham muito cuidado com essas coisas, não deem muita importânciaa elas. Não estou dizendo que elas são sinais de que uma pessoa não é confiável,mas mantenha em mente: “incerto, incerto…” A moralidade e a conduta, ao invésda propaganda, são realmente o lugar onde podemos testar se este é um centro, umprofessor, um líder para quem possamos nos entregar.

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Sim, como professores precisamos ter esse sentido de devoção ao estudoe à prática. Algo que foi mencionado essa manhã. O Darma, eu estava pensando…alguém estava falando em espalhar o Darma e eu pensei “É, o Darma é comomanteiga, não é?” Por quê? Porque se a manteiga estiver muita fria, mesmo sendomanteiga, você não consegue espalhar, então como é que se espalha manteiga?Primeiro você esquenta, então você espalha. O Darma, os ensinamentos, podemser duros e frios, então eles necessitam desse calor, o calor humano da compaixãoem aliança com a sabedoria do Darma, e estar disposto a abrir mão do seu próprioconforto, sua zona de conforto, para o bem-estar dos outros. Isso não é mahāyānaou theravada, não é um ensinamento confinado a nenhum grupo em particular.Esse é o principal valor no budismo: sabedoria e compaixão; essas são as duasasas da águia, como disse um professor.

Como professor você precisa ser muito paciente. Não espere que o que éobvio para você vá ser óbvio para seus estudantes. Se fosse completamente óbviopara eles, eles seriam os professores e você seria o aluno. O fato de que não éóbvio é justamente o ponto em questão. Seja muito paciente e constantementetente encontrar novas maneiras de se fazer entender às pessoas. Nunca se sente noalto de um pedestal, mas, ao mesmo tempo, não dê tanto aos outros ao ponto denegligenciar seu próprio bem-estar, não entre nisso. Não fique isolado das pessoaspor ter que tentar criar uma certa imagem de professor. Você talvez sinta que deveficar distante e que deve esconder seu sofrimento e suas imperfeições. Esse é umcaminho perigoso; sempre tenha bons amigos com quem possa conversar. Nãofique solitário, que é uma das principais causas para monges largarem a vidamonástica: quando ficam solitários como professores.

E não entre nesse tipo de pena de si mesmo: “Ninguém me dá valor,ninguém…” Eu vou encerrar isso com uma anedota. Uma história verdadeira,aparentemente, de um líder que estava reclamando: “Eu fiz todas essas coisas, eufiz isso, eu fiz aquilo e não ganhei nenhum reconhecimento, nenhum avanço naminha carreira e agora estou sendo mal tratado e isso está acontecendo. Ninguémveio à frente para me apoiar, me ajudar, é tão injusto, é uma completa conspiraçãode silêncio. O que devo fazer?”, e o amigo disse: “Junte-se a ela!”

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Eu estou para me juntar a essa conspiração, a essa associação de silêncio,mas, antes de fazê-lo, existe uma antiga tradição poética na Inglaterra e naTailândia de pegar palavras chaves e usar a primeira letra de cada palavra paracomeçar um ensinamento ou uma linha de poesia, então minha benção para todosvocês é que vocês se desenvolvam como líderes, com “sábia atenção, ciência clarae desapego”99. Obrigado.

99 Essa palestra foi proferida, em inglês, durante um encontro de professores de Darma naMalásia e o nome da conferência era “Wacana”. Então o trocadilho com “Wise Attention,Clear Awareness and No Attachment.”

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Glossário – 189

Glossário(Nota: alguns dos termos relacionados, apesar de origem sânscrita ou páli, estão sendo assinalados como pertencentes à língua portuguesa, uma vez que já foram incorporados à mesma.)

Ajahn (tailandês)

Professor. Esta palavra é a transcrição tailandesa do termo em páli “acārya”.

Akaliko(páli)

Não limitado pela ação do tempo, não sujeito ao tempo – uma das qualidades atribuídas ao Darma.

Anāgāmī(páli)

O estágio de iluminação anterior ao arahant. Nesse estágio, qualquer desejo por existência corporal foi definitivamente abandonado, e portanto essa pessoa não mais toma nascimento entre seres humanos (nascimento como animal já tendo sido abandonado anteriormente no estágio de sotāpanna).

Ānāpānasati(páli)

Técnica de meditação que utiliza a respiração como foco.

Anatta(páli)

Ausência de uma entidade, ausência de um “eu”.

Anicca(páli)

Impermanência.

Arahant(páli)

Pessoa que alcançou nirvana.

Aryia Puggala(páli)

Ou “aryia”. Aqueles que alcançaram um dos quatro estágios de iluminação (sotāpanna, sakadāgāmi, anāgāmī e arahant)

Baht(tailandês)

Denominação da moeda tailandesa.

Bhikkhu(páli)

Um monge ordenado dentro da linha monástica iniciada pelo próprio Buda, ou seja, esse termo não engloba todas as pessoas que se declaram “monge budista”.

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190 - Darma da Floresta

Bodisatva(português)

Aquele que almeja tornar-se um Buda. (páli: bodhisatta)

Buda(português)

Uma pessoa que desenvolveu ao máximo suas qualidades espirituais (ver pāramī) com o objetivo de tanto alcançar a iluminação como também estabelecer um Buddha Sāsana para ajudar os demais seres a alcançar nirvana. (páli: Buddha)

Buddha Sāsana(páli)

O conjunto de recursos e suportes que o Buda cria para auxiliar as demais pessoas a alcançar a iluminação, ou seja, os textos, os exercícios espirituais, os valores, os costumes, astradições, etc. De maneira superficial, poderia se traduzir como “o budismo”.

Carma(português)

Resultado de ações boas e ruins. (páli: kamma)

Darma(português)

A doutrina do Buda. Outro uso comum desta palavra é para se referir a algo como “a verdade transcendental”, a verdadeira natureza de todas as coisas. (páli: Dhamma)

Dukkha(páli)

Sofrimento, desconforto, insatisfação.

Jhāna(páli)

Estados profundos de samādhi. No ensinamento do Buda são catalogados oito estágios de jhāna.

Kalyāna Dhamma(páli)

Darmas belos e louváveis, boas qualidades do coração.

Kalyānamitta(páli)

Amigo no Darma, pessoa que nos ajuda a trilhar o caminho da libertação.

Koan(japonês)

Um objeto de meditação utilizado na tradição Zen/Chan.

Lokavidū(páli)

Conhecedor do mundo, título atribuído ao Buda.

Luang Pó(tailandês)

Respeitado pai, venerável pai.

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Glossário – 191

Mahāyana(páli)

Uma segunda vertente do budismo cujas expressões mais conhecidas vêm do Tibete, China e Japão.

Nirvana(português)

O objetivo final do caminho budista, iluminação completa, o fim do ciclo de nascimento e morte. (páli: nibbāna)

Nobre Caminho Óctuplo(português)

O modo de prática ensinado pelo Buda para a realização de nirvana, composto de: visão correta, intenção correta, fala correta, ação correta, modo de vida correto, esforço correto, sati correta e samādhi correto. (páli: Ariya Atthangika Magga)

Opanayika-dhamma(páli)

Darma que conduz à realização de nirvana.

Paccatam(páli)

Algo que só pode ser visto por si mesmo, experienciado por simesmo.

Páli(português)

Idioma proferido na região norte da Índia na época do Buda. É derivado do magadi, tem semelhança com o sânscrito e os únicos registros encontrados nesse idioma são os ensinamentos do Buda. (Pāli)

Pāramī(páli)

Boas qualidades mentais/espirituais, necessárias no caminho para a iluminação.

Parinirvana(português)

Morte de um arahant, quando ele alcança completa cessação.(páli: parinibbāna)

Pindapāta(páli)

O ato de os monges saírem pelas ruas recolhendo alimentos como esmola.

Pūja(páli)

Serviço devocional, gestos de louvor como fazer prostrações, recitar cânticos, oferecer flores, velas, incenso, etc.

Sacca Dhamma(páli)

A Verdade, O Verdadeiro Darma, o aspecto mais sutil e profundo do Darma.

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Sādhu(páli)

Em páli, significa “muito bem!”, “excelente!” Já em tailandês, significa algo parecido com “amém!”, não tem um significado muito claro.

Sakadāgāmi(páli)

O segundo estágio de iluminação. A partir deste ponto o praticante nasce no máximo mais uma vida entre seres humanos antes de alcançar nirvana.

Samathā(páli)

O aspecto da prática de meditação que diz respeito a estabilizar, pacificar e descansar a mente.

Sammāditthi(páli)

Visão correta, ponto de vista correto. O primeiro aspecto do Nobre Caminho Óctuplo.

Sampajañña(páli)

Compreensão clara do momento presente.

Samsara(páli)

O ciclo de nascimento e morte onde estão presos todos os queainda não alcançaram nirvana.

Sangha(páli)

Nome normalmente utilizado para se referir à comunidade demonges budistas. Em geral, quando se referindo à comunidade laica, utiliza-se “Sangha Leiga/Laica”.

Sati(páli)

A capacidade de aplicar a mente ao momento presente, estar ciente, presença mental.

Sāvaka(páli)

Praticantes contemporâneos ao Buda que alcançaram algum estágio de iluminação.

Sotāpanna(páli)

O primeiro estagio de iluminação. A partir deste ponto o praticante nasce no máximo mais sete vezes entre seres humanos antes de se tornar um arahant.

Tahn Ajahn(tailandês)

Forma respeitosa de referir-se a um mestre. “Senhor Professor”.

Theravada(páli)

A linhagem budista mais antiga ainda presente nos dias atuais.

Upajjhāya(páli)

Monge que preside a cerimônia de ordenação monástica.

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Glossário – 193

Uposatha(páli)

Dia em que os monges se encontram para confessar suas ofensas e recitar a regra monástica.

Vāsanā(páli)

Tendências de comportamento acumuladas em vidas passadas.

Vipassanā(páli)

O aspecto da prática de meditação que diz respeito a investigar a realidade, enxergar com clareza.

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194 - Darma da Floresta

“O Buda vivia na floresta, nãopor odiar a cidade, ele foibuscar vitória na floresta,buscar paz. Foi treinar nafloresta, num local pacífico.Não fugiu por tolice, ele fugiupor inteligência, fugiu porsabedoria.

(…) As pessoas vêm até aquimas eu não tenho nada demais, vivo quieto minha vidana floresta, em reclusão. Gostode viver na floresta, então vivoaqui, em seguida os demaismonges também vieram viveraqui. É algo bom. É dever deum monge viver desse jeito. Aforma ideal é essa, já as outrasformas, depende da sabedoriade cada um”

Ajahn Chah