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O Governo espera que a Providência
lhe permita manter, sem quebra
de compromissos nacionais,
o bem inigualável da paz.
Salazar
O Dr. Salazar hesita porque
é um financeiro ortodoxo, e sabe
que a guerra viria desequilibrar
o orçamento.
David Eccles
Australianos sob pretexto
necessidade imperiosa evitar vinda
Japoneses não hesitarão diante
conveniência ocupar Timor ou parte
seu território nomeadamente Díli.
Governador de Timor
Caso seja atacado tem contudo V. Ex.ª
defender colónia com meios possui
resistindo limite máximo suas forças.
Ministro das Colónias
Com quê, Santo Deus, se eu não tinha
armamento e não tinha munições
que merecessem a mais pequena
confiança.
Governador de Timor
O que pensará de nós amanhã
a Nação, quando souber a verdade,
toda a verdade?
Fernando dos Santos Costa a Salazar
No que respeita à atribuição às Forças
Armadas dos fundos necessários,
ninguém duvida de que chegada
a emergência tal atribuição
se verificará.
Kaúlza de Arriaga
Chocava-me a todo o momento
a opinião expressa pelo Dr. Salazar
de que havíamos atingido já há muito
uma exagerada percentagem
de encargos com as Forças Armadas,
percentagem essa que não podia ser,
de forma alguma, ultrapassada.
Ministro Almeida Fernandes
O vento da mudança sopra através
do continente. Quer seja ou não
do nosso agrado, este surto
de consciência nacional constitui
um facto político.
Harold MacMillan – 13/02/1960
Entre os muitos boatos, a título de
exemplo, se pode citar o facto de se
dizer que não há forças suficientes...
General Beleza Ferraz
D A V I D M A R T E L O
Timor Angola
1941 1961
DAVID MARTELO. É oficial do Exército (coronel) reformado. Nascido em 1946, em Viseu,
ingressou na carreira militar em 1963, mantendo-se no activo até 1995. Encetou, então, a sua
actividade como escritor, privilegiando o debate dos temas de defesa contemporâneos e a his-
tória militar. É autor das seguintes obras: ,
, , , ,
, .
Para as Edições Sílabo, traduziu e prefaciou as três principais obras de Maquiavel ( ,
e ) e a
, de Tucídides. É membro efectivo do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de
História Militar. De 2007 a 2012, foi membro do Comité Bibliográfico da Comissão Internacio-
nal de História Militar.
O Exército Português na Fronteira do Futuro
As Mágoas do Império A Espada de Dois Gumes 1974 – Cessar-Fogo em África O Cerco do Porto
A Dinastia de Avis e a construção da União Ibérica Os Caçadores e Origens da Grande Guerra
O Príncipe
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio A Arte da Guerra História da Guerra do Pelo-
poneso
Os casos de Timor-1941 e de Angola-1961, que aqui se recordam,
têm em comum as seguintes circunstâncias:
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Respeitam a parcelas do que foi o Império Colonial português.
Foram apresentados pelo governo de Lisboa como acções de força,
inesperadas e desleais.
Em ambos os casos, houve perda de milhares de vidas e de avulta-
dos bens materiais.
A documentação disponível esclarece, sem margem para dúvidas,
que ambas as situações não só nada tiveram de surpreendentes
como eram absolutamente expectáveis.
Não havia falta de meios, tanto assim que, após as agressões, os
meios foram disponibilizados.
Na época dos acontecimentos, foram muito bem-sucedidas as medi-
das tendentes ao encobrimento de responsabilidades. Inexistindo
liberdade de imprensa e oposição política organizada, não tiveram
condições para provocar os estrondosos escândalos que ambos os
casos amplamente justificariam.
Por fim, as duas dramáticas situações lograram, ainda, subtrair-se a
um mais severo juízo da História, graças a condições específicas que,
em cada caso, desviaram as atenções dos historiadores do início
para as consequências – que, em ambos os casos, se estenderam
por vários anos –, ou para outros acontecimentos contemporâneos
de maior relevo.
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A Imprevidência
Estratégica de Salazar
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A Imprevidência
Estratégica de Salazar
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18-8
27-8
513
Timor1941
Angola1961
A Imprevidência Estratégica de Salazar
Timor (1941) – Angola (1961)
DAVID MARTELO
EDIÇÕES SÍLABO
É expressamente proibido reproduzir, no todo ou em parte, sob qualquer forma
ou meio, NOMEADAMENTE FOTOCÓPIA, esta obra. As transgressões
serão passíveis das penalizações previstas na legislação em vigor.
Visite a Sílabo na rede
www.silabo.pt
A autorização para reprodução da fotografia da capa de António Oliveira Salazar faz parte da colecção Estúdio Mário Novais e foi gentilmente cedida pela Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.
A autorização para reprodução da fotografia da capa da parada militar em Angola foi gentilmente cedida pelo Arquivo Histórico Militar do Exército Português.
Editor: Manuel Robalo
FICHA TÉCNICA: Título: A Imprevidência Estratégica de Salazar: Timor (1941) – Angola (1961) Autor: David Martelo © Edições Sílabo, Lda. Capa: Pedro Mota
1.ª Edição – Lisboa, Novembro de 2015. Impressão e acabamentos: Cafilesa – Soluções Gráficas, Lda. Depósito Legal: 399709/15 ISBN: 978-972-618-827-8
EDIÇÕES SÍLABO, LDA. R. Cidade de Manchester, 2 1170-100 Lisboa Tel.: 218130345 Fax: 218166719 e-mail: [email protected] www.silabo.pt
O que pensará de nós amanhã a Nação,
quando souber a verdade, toda a verdade?
Fernando dos Santos Costa a Salazar
Í n d i c e
Acrónimos 9
Prólogo 11 Duas surpresas altamente prováveis 11 Salazar e os Princípios 12 As despesas da Defesa 15 Os custos da Geografia na sustentação da ideia de Império 17 Salazar e as soluções heróicas 18 As desatenções da História 21
1.ª PARTE
O Caso de Timor (1941)
Capítulo I – O Extremo-Oriente do Império 25
Capítulo II – Portugal perante o eclodir da 2.ª Guerra Mundial 29 A longínqua colónia de Timor 30 Perigo de guerra 39
Capítulo III – Guerra no Pacífico 49
Capítulo IV – Australianos e Holandeses invadem Timor português 57
Capítulo V – A invasão japonesa de Timor 83
Capítulo VI – A longa ocupação japonesa 93
Capítulo VII – O final da guerra e a expedição militar portuguesa a Timor 99
Capítulo VIII – As dificuldades da História 109
2.ª PARTE
O Caso de Angola (1961)
Capítulo IX – A vitória dos Aliados e o fim dos Impérios Coloniais 115
Capítulo X – As Forças Armadas portuguesas do pós-guerra 121 A adesão à NATO 121 Prioridade ao Ultramar 123
Capítulo XI – O vento da mudança sopra através do continente 133 A caminho da independência do Congo Belga 133 Seis meses desperdiçados 137 Últimos indícios antes da tormenta 140
Capítulo XII – A crise de 1961 143 Um início de ano sombrio 143 Primeiros sobressaltos 145 Os EUA propõem uma solução para Angola 150
Capítulo XIII – Os massacres de Março 155 Sinais de perigo 155 Madrugada sangrenta 157 Do golpe de Estado legal ao «andar rapidamente e em força» 161 Há mesmo guerra em Angola 171
Capítulo XIV – A História acrítica 179
Epílogo 183 A verdade que convém à Nação 183 O milagre permanente 187
Bibliografia 191
A c r ó n i m o s
BCaç Batalhão de Caçadores
CArt Companhia de Artilharia CCaç Companhia de Caçadores
CCaçEsp Companhia de Caçadores Especiais
CEMA Chefe do Estado-Maior da Armada CEME Chefe do Estado-Maior do Exército
CEMFA Chefe do Estado-Maior da Força Aérea
CEMGFA Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas CIOE Centro de Instrução de Operações Especiais
CSDN Conselho Superior de Defesa Nacional
EME Estado-Maior do Exército EUA Estados Unidos da América
GACA Grupo de Artilharia Contra Aeronaves
NATO North Atlantic Treaty Organization/ /Organização do Tratado do Atlântico Norte
ONU Organização das Nações Unidas
PIDE Polícia Internacional e de Defesa do Estado PM Polícia Militar
QO Quadro Orgânico
RAAF Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa RAL Regimento de Artilharia Ligeira
RI Regimento de Infantaria
SHAPE Supreme Headquarters Allied Powers Europe (Comando Supremo das Potências Aliadas na Europa)
SIM Serviço de Informações Militares
UPA União dos Povos (Populações) de Angola URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
1 1
P r ó l o g o
Porque havia de falhar no problema da defesa da Nação, que mais que
outro qualquer tomamos a peito?
Salazar
D u a s s u r p r e s a s a l t a m e n t e p rov á v e i s
Os casos de Timor-1941 e de Angola-1961, que aqui vamos recor-dar, têm em comum as seguintes circunstâncias:
• Respeitam a parcelas do que foi o Império Colonial português; • Foram apresentados pelo governo de Lisboa como acções de
força, inesperadas e desleais; • Em ambos os casos, houve perda de milhares de vidas e de avul-
tados bens materiais; • A documentação disponível esclarece, sem margem para dúvi-
das, que ambas as situações não só nada tiveram de surpreen-
dentes como, pelo contrário, eram absolutamente expectáveis; • Não havia falta de meios, tanto assim que, após as agressões, os
meios foram disponibilizados; • Na época dos acontecimentos, foram muito bem-sucedidas as
medidas tendentes ao encobrimento de responsabilidades; • Por fim, as duas dramáticas situações lograram, ainda, subtrair-
-se a um severo juízo da História, graças a condições específicas que, em cada caso, desviaram as atenções dos historiadores do
início para as consequências – que, em ambos os casos, se esten-
deram por vários anos –, ou para outros acontecimentos contem-porâneos de maior relevo.
A I M P R E V I D Ê N C I A E S T R A T É G I C A D E S A L A Z A R
1 2
São essas invulgares circunstâncias que, no entendimento do
autor, justificam amplamente a reconstituição de algumas páginas da nossa história recente, para que dela se possam retirar as convenientes
lições.
S a l a z a r e o s P r i n c í p i o s
Para não enevoar a análise destes dois infaustos acontecimentos, o
autor faz questão de não adoptar um tom de censura ideológica ao
regime do Estado Novo, porque considera essa missão já abundante-mente cumprida por inúmeros historiadores. Assim sendo, como
metodologia, adoptaremos não uma crítica de alguém desafecto ao
regime mas sim a que até poderia ser feita (mentalmente) por um qualquer dos seus correligionários. No fundo, trata-se de confrontar
Salazar com os seus próprios princípios, para assim percebermos a
utilização que lhes entendeu dar. Deixaremos para o último capítulo (Epílogo) as conclusões de teor político e estratégico que a reconstitui-
ção histórica que vamos fazer necessariamente há-de sugerir.
Não é difícil enunciar os princípios que norteavam a política do Estado Novo, porque Salazar se encarregou de os afirmar, por escrito e
de viva voz, um sem número de vezes. Logo em 30 de Julho de 1930 –
ainda desempenhava as funções de Ministro das Finanças do governo da Ditadura Militar –, profere, na Sala do Conselho de Estado, um
longo discurso, que, justamente, passou à história com o título Princí-
pios Fundamentais da Revolução Política. No início da Parte III, sob o subtítulo Os princípios fundamentais da nova ordem de coisas,
Salazar começa pelo essencial:
Na nossa ordem política, a primeira realidade é a existência indepen-
dente da Nação Portuguesa, com o direito de possuir fora do conti-
nente europeu, acrescendo à sua herança peninsular, por um impera-
tivo categórico da História, pela sua acção ultramarina em desco-
bertas e conquistas, e pela conjugação e harmonia dos esforços
civilizadores das raças, o património marítimo, territorial, político e
espiritual abrangido na esfera do seu domínio ou influência.1
(1) SALAZAR, António O., Discursos, Vol. I, p. 77.
P R Ó L O G O
1 3
Esta «forte realidade» – como o próprio Salazar a classifica mais
adiante no seu texto – constituía uma quase tradição nacional, con-solidada no século XIX e partilhada por um vasto leque de tendências
políticas. A visão arrebatada da sacralidade do património ultramarino estivera presente na crise do Ultimato Britânico, fora determinante na
ascensão da República e encaminhara Portugal para a participação na
Grande Guerra de 1914-18. Convergindo com esses princípios, definidos com os contornos
próprios dos Grandes Objectivos Nacionais, encontrava-se a con-
fiança decorrente da existência de um velho aliado – a Inglaterra – também ele com vocação imperial e marítima. Se a história sugeria,
por vezes, que Portugal tendia a desleixar a sua preparação para a
guerra, devido à esperança do socorro britânico, os sinais veiculados nos tempos mais recentes pelos canais diplomáticos apontavam para
uma visão menos tolerante dos Britânicos relativamente a essa descui-
dada propensão. De resto, o próprio Salazar está tão ciente de que assim é que faz questão de o recordar num longo discurso proferido,
em 6 de Julho de 1937, na Sala dos Passos Perdidos da Assembleia
Nacional. Dirigindo-se aos ministros militares e aos chefes da Armada e do Exército, vai ao ponto de recuar mais de um século para evocar
um memorando do secretário de Estado britânico, Lorde Hawkesbury,
para o Ministro de Portugal em Londres, datado de 7 de Junho de 1803, no qual é acentuado:
Sua Majestade Britânica espera que o governo de Portugal se não fie
somente nos auxílios externos, mas que se lembre que a segurança de
cada Estado deve depender principalmente dos seus próprios esforços.1
E se assim era nas situações em que seria do interesse de Portugal
o empenhamento directo britânico, ainda mais seria quando, mesmo em situação de perigo, esse empenho directo pudesse ser indesejado.
Durante toda a década de 1930, já com Salazar a controlar as
Finanças Públicas, o governo português põe em execução um plano de rearmamento que representa um esforço significativo de moderniza-
ção das Forças Armadas. Inicialmente, a prioridade vai para a Mari-
nha, dada a sua maior importância nas ligações com o Império Colo-
(1) Idem, Vol. II, p. 311.
A I M P R E V I D Ê N C I A E S T R A T É G I C A D E S A L A Z A R
1 4
nial e Ilhas Atlânticas. No entanto, a partir de 1935, essa prioridade é
reorientada para o Exército, o qual verá ser-lhe atribuída a verba de 500.000 contos para aquisição de armamentos modernos.1 Embora
esses passos no âmbito do reequipamento militar sejam de realçar, as quantidades adquiridas e o poder de fogo acrescentado são, num
plano de auto-suficiência defensiva, ainda bastante modestos. Como
modestas são a organização e o treino das tropas activas, longamente vocacionadas para a manutenção da Ordem Pública.
O real interesse de Salazar no desenvolvimento e modernização
das Forças Armadas, nos anos imediatamente anteriores ao início da 2.ª Guerra Mundial, é assumido publicamente de forma clara, sendo
destacada, até, a sua primordial importância quando comparada com
as outras tarefas do Estado. Em 16 de Outubro de 1937, durante umas manobras militares, já no período em que acumula a pasta da Guerra2
com as funções de Presidente do Conselho, Salazar não hesita em
salientar:
Nas finanças, na economia, no crédito, na moeda e nos câmbios, [...] na
organização corporativa, na formação da nova mentalidade nacional,
na valorização externa do País – ninguém hoje pode dizer que haja
falhado a nossa acção. ¿Porque havia de falhar no problema da defesa
da Nação, que mais que outro qualquer tomamos a peito?3
É, em grande parte, para responder a esta questão que tentaremos,
com a reconstituição histórica que adiante faremos, deslindar esta aparente incongruência.
Mas não custa perceber que, para Salazar, a defesa da Nação tinha
um enorme «rival» quando se tratava de competir para o problema
(1) Decreto 26.177 de 31-12-1935. (2) Desde 11 de Maio de 1936. Tenha-se em consideração que, nessa época, não havia
Ministério da Defesa. O Ministro da Guerra tutelava apenas o ramo Exército,
havendo um Ministério da Marinha a tutelar a Armada. Com a adesão à NATO, esta
estrutura de governo alterou-se. Assim, a partir de 1950, é criado o Ministério da
Defesa Nacional e o Ministério da Guerra passa a designar-se por Ministério do Exér-
cito. O Ministério da Marinha mantém-se sem alteração. Em 1955 é criada uma Sub-
secretaria de Estado da Aeronáutica. Salvo a elevação da Subsecretaria de Estado da
Aeronáutica a Secretaria de Estado, era esta estrutura que estava em vigor em Abril
de 1974. (3) SALAZAR, António O., Idem, Vol. II, p. 346.
P R Ó L O G O
1 5
que mais que qualquer outro tomava a peito – o equilíbrio orçamen-
tal. Percebe-se que esta «rivalidade» fizesse todo o sentido no pensa-mento do chefe do governo. Afinal – como os Portugueses contem-
porâneos vêm aprendendo nos últimos anos –, Defesa e Equilíbrio Orçamental concorrem fortemente, embora de forma distinta, para a
comensuração da Independência Nacional. Resta saber se, no caso dos
desastres que iremos analisar, o travão orçamental funcionou para acautelar a ameaça de bancarrota ou por simples obsessão de pou-
pança. E, finalmente, se a poupança veio efectivamente a ter lugar ou
se, bem pelo contrário, redundou em grave perda de vidas humanas e numa despesa ainda mais avultada.
A s d e s p e s a s d a D e f e s a
Quando, ainda Ministro das Finanças, Salazar se define como
«civil e mestre-escola, desconhecedor profundo dos regulamentos, da vida e da história militar, e ai de mim! sabendo apenas alguma coisa
das respectivas despesas»,1 o futuro chefe do governo traça de si pró-
prio uma imagem muito mais sincera e rigorosa do que, porventura, os contemporâneos terão considerado. Tê-la-ão tomado por modéstia – e
nalguma medida o era, por ser essa uma das coberturas do criador do
Estado Novo –, mas também reflectia uma sujeição interior de Salazar ao desígnio primordial do reequilíbrio das finanças públicas. No segui-
mento do discurso atrás evocado, o então Ministro das Finanças não
perde o ensejo académico de rever a doutrina de defesa, sem se esque-cer, uma vez mais, da questão das despesas:
Se a necessidade da função militar é problema de filosofia e de ciência
social, a sua eficiência prática é a resultante das soluções de um pro-
blema político e de um problema técnico. Tanto internamente como no
terreno internacional, a política diz o objectivo a atingir; a técnica –
tida em conta a limitação do esforço orçamental – dita os meios e a
organização, para que a força militar realize os fins que tem em vista.2
(1) Alocução proferida em 30 de Dezembro de 1930, no Quartel-General do Governo
Militar de Lisboa. SALAZAR, António O., Discursos, Vol. I, p. 100. (2) Ibidem, p. 103.
A I M P R E V I D Ê N C I A E S T R A T É G I C A D E S A L A Z A R
1 6
No pensamento de Salazar, os traços da formação académica são
identificáveis no raciocínio doutrinariamente bem estruturado e conducente a soluções estáticas e expectantes. Mas raramente se vis-
lumbram as expressões de acção que a guerra ou a ameaça dela sem-pre suscitam, tais como previsão, oportunidade, rapidez, etc. Por isso,
alguém haveria de comentar que a frase de 13 de Abril de 1961 –
andar rapidamente e em força –, respeitante a Angola, não parecia ser dele.
O imobilismo e a imprudente expectativa vão, por isso, ser mar-
cantes na política de defesa de Salazar. As decisões mais importantes são, quase sempre, uma reacção a qualquer acontecimento. A haver
guerra, ela teria de «nos ser imposta», o que prejudicava enorme-
mente a adopção de medidas preventivas. A dar consistência a esta tese pode citar-se um telegrama para
Salazar do embaixador português no Reino Unido, Armindo Monteiro,
por ocasião do triunfo franquista na Guerra Civil Espanhola. Sendo notórias as ambições expansionistas de alguns sectores da Falange,
Monteiro revela que teme pelo enorme atraso na preparação das For-
ças Armadas portuguesas, no caso de se vir a produzir um conflito com o triunfante exército espanhol. Sobre essa eventualidade, o embaixa-
dor expressa os seus receios, em telegrama de 5 de Maio de 1939, sub-
linhando que está convicto de que o socorro britânico só será possível se Portugal for capaz de resistir sozinho durante algum tempo. Se tal
não suceder e o país soçobrar, seguir-se-ia uma ocupação e teria de ser
objecto duma campanha militar de libertação, com todos os custos inerentes. O embaixador português coloca, assim, o dedo no ponto
fraco de Salazar, porque a soma das suas fidelidades – à Pátria e ao
orçamento – dificultam enormemente a adopção de medidas de defesa de carácter preventivo. O Presidente do Conselho acusa o toque, como
se de uma acusação de incúria na defesa nacional se tratasse, e replica,
em 9 de Maio, de forma veemente:
Tem V. Ex.ª informações precisas sobre os esforços empregados, as difi-
culdades encontradas e os resultados obtidos na execução do plano de
rearmamento e sabe se este pode ser excedido em tempo de paz sem
lançar o país na miséria?1
(1) NOGUEIRA, Franco, Salazar, Vol. III, p. 208. Sublinhado nosso.
P R Ó L O G O
1 7
Monteiro não se fica e, no dia seguinte, noutro telegrama, responde
de forma mais explícita, ao afirmar:
...os resultados da obra financeira de V. Ex.ª permitem um esforço sério
no sentido da preparação militar e que esta feita em tempo de paz ficará
mais barata do que feita sob o fogo inimigo e acarretará menores misé-
rias.1
Tinha razão Monteiro, mas não era essa a matriz do pensamento estratégico de Salazar. A verdade é que, em tempo de paz, mesmo nas
ocasiões em que parecia interessado pelas questões de Defesa, acabava
por privilegiar a contenção de gastos, sempre fiado numa espécie de protecção divina. Quando, afinal, chegasse a confirmação da ausência
desse esperançoso amparo, então sim, era a hora do rapidamente e em força, mesmo que o montante da despesa fosse muito elevado.
Uma das figuras do regime que mais de perto trabalharam com
Salazar na área da Defesa não teve dúvida em salientar a sua tendência para colocar a questão orçamental acima de qualquer medida desti-
nada a prevenir uma hipotética ameaça. Quando, após a independên-
cia da União Indiana, se desenhou a possibilidade de uma acção mili-tar deste país contra os territórios portugueses da Índia, recorda San-
tos Costa, «fui incumbido de estudar as necessidades de defesa do
Estado da Índia. Estudei dois ou três planos para o efeito, mas desisti. O Dr. Salazar deitou-nos abaixo com as suas habituais preocupações
financeiras.»2
O s c u s t o s d a G e o g r a f i a n a s u s t e n t a ç ã o d a i d e i a d e I m p é r i o
Se a influência da História vinha frequentemente à tona nos dis-cursos de Salazar, era menos notório o peso que atribuía à Geografia.
Nunca tendo viajado para qualquer parcela do Império que tanto fer-
vor patriótico lhe inspirava, parecia que não processava da melhor maneira o problema das distâncias existentes entre as parcelas que o
constituíam. Talvez por isso, o pensamento geopolítico do chefe do
(1) OLIVEIRA, Pedro A., Armindo Monteiro – Uma biografia política, pp. 188-189. (2) O último governador da Índia – O Jornal (2.º Caderno), 15-08-1985.
A I M P R E V I D Ê N C I A E S T R A T É G I C A D E S A L A Z A R
1 8
governo português padecesse de um preocupante estreitamento de
horizontes. Esvoaçando a bandeira nacional em múltiplos territórios, geograficamente dispersos e distantes entre si, alguns deles de con-
figuração insular mas de enormes potencialidades estratégicas, Sala-zar não lograva aperceber-se do perigo que representava para a sobe-
rania nacional o seu vazio em termos de ocupação militar, perigo esse
que era tão plausível tornar-se realidade com inimigos como com alia-dos.
Na maior parte dos casos, as parcelas do Império não geravam
riqueza suficiente para a sua auto-sustentação, o que agravava o pro-blema das despesas militares. Mas, ainda assim, o facto de, até à
década de 1950, essas parcelas confinarem ou estarem próximas de
outras colónias europeias, servia de justificação para não recear nelas a ocorrência de uma ameaça externa. Era uma questão de soberania
numa área geográfica onde os vizinhos mais próximos eram potenciais
aliados. Situação esta bem diversa da que se verificaria depois da inde-pendência da Indonésia, caso em que, a haver uma ameaça, não era só
a soberania que estava em causa – era a própria defesa do território
que se tornava impossível, a partir do momento em que a Indonésia decidisse anexar Timor, como a União Indiana fez, no final de 1961,
relativamente a Goa, Damão e Diu.
S a l a z a r e a s s o l u ç õ e s h e r ó i c a s
A devoção de Salazar pela ideia de Império e a forma como a foi expressando ao longo do seu extenso consulado não foi uniforme. Em
1933, o Presidente do Conselho dá de si próprio, nesta matéria, uma
opinião bastante moderada, algo distante dos arrebatamentos orató-rios que exibiria mais tarde. Poder-se-á dizer, mesmo, que chega a
questionar o efeito prático de semelhantes paixões, expressando uma
visão do culto dos antepassados que hoje pode parecer surpreendente-mente pragmática:
Até que ponto deve ser deixado imutável, deve ser cultivado o conceito
generalizado, tradicional da vida da nação, os seus velhos ideais patrió-
ticos, a sua forma de compreender a vida e de actuar no mundo?
O Governo espera que a Providência
lhe permita manter, sem quebra
de compromissos nacionais,
o bem inigualável da paz.
Salazar
O Dr. Salazar hesita porque
é um financeiro ortodoxo, e sabe
que a guerra viria desequilibrar
o orçamento.
David Eccles
Australianos sob pretexto
necessidade imperiosa evitar vinda
Japoneses não hesitarão diante
conveniência ocupar Timor ou parte
seu território nomeadamente Díli.
Governador de Timor
Caso seja atacado tem contudo V. Ex.ª
defender colónia com meios possui
resistindo limite máximo suas forças.
Ministro das Colónias
Com quê, Santo Deus, se eu não tinha
armamento e não tinha munições
que merecessem a mais pequena
confiança.
Governador de Timor
O que pensará de nós amanhã
a Nação, quando souber a verdade,
toda a verdade?
Fernando dos Santos Costa a Salazar
No que respeita à atribuição às Forças
Armadas dos fundos necessários,
ninguém duvida de que chegada
a emergência tal atribuição
se verificará.
Kaúlza de Arriaga
Chocava-me a todo o momento
a opinião expressa pelo Dr. Salazar
de que havíamos atingido já há muito
uma exagerada percentagem
de encargos com as Forças Armadas,
percentagem essa que não podia ser,
de forma alguma, ultrapassada.
Ministro Almeida Fernandes
O vento da mudança sopra através
do continente. Quer seja ou não
do nosso agrado, este surto
de consciência nacional constitui
um facto político.
Harold MacMillan – 13/02/1960
Entre os muitos boatos, a título de
exemplo, se pode citar o facto de se
dizer que não há forças suficientes...
General Beleza Ferraz
D A V I D M A R T E L O
Timor Angola
1941 1961
DAVID MARTELO. É oficial do Exército (coronel) reformado. Nascido em 1946, em Viseu,
ingressou na carreira militar em 1963, mantendo-se no activo até 1995. Encetou, então, a sua
actividade como escritor, privilegiando o debate dos temas de defesa contemporâneos e a his-
tória militar. É autor das seguintes obras: ,
, , , ,
, .
Para as Edições Sílabo, traduziu e prefaciou as três principais obras de Maquiavel ( ,
e ) e a
, de Tucídides. É membro efectivo do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de
História Militar. De 2007 a 2012, foi membro do Comité Bibliográfico da Comissão Internacio-
nal de História Militar.
O Exército Português na Fronteira do Futuro
As Mágoas do Império A Espada de Dois Gumes 1974 – Cessar-Fogo em África O Cerco do Porto
A Dinastia de Avis e a construção da União Ibérica Os Caçadores e Origens da Grande Guerra
O Príncipe
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio A Arte da Guerra História da Guerra do Pelo-
poneso
Os casos de Timor-1941 e de Angola-1961, que aqui se recordam,
têm em comum as seguintes circunstâncias:
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Respeitam a parcelas do que foi o Império Colonial português.
Foram apresentados pelo governo de Lisboa como acções de força,
inesperadas e desleais.
Em ambos os casos, houve perda de milhares de vidas e de avulta-
dos bens materiais.
A documentação disponível esclarece, sem margem para dúvidas,
que ambas as situações não só nada tiveram de surpreendentes
como eram absolutamente expectáveis.
Não havia falta de meios, tanto assim que, após as agressões, os
meios foram disponibilizados.
Na época dos acontecimentos, foram muito bem-sucedidas as medi-
das tendentes ao encobrimento de responsabilidades. Inexistindo
liberdade de imprensa e oposição política organizada, não tiveram
condições para provocar os estrondosos escândalos que ambos os
casos amplamente justificariam.
Por fim, as duas dramáticas situações lograram, ainda, subtrair-se a
um mais severo juízo da História, graças a condições específicas que,
em cada caso, desviaram as atenções dos historiadores do início
para as consequências – que, em ambos os casos, se estenderam
por vários anos –, ou para outros acontecimentos contemporâneos
de maior relevo.
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A Imprevidência
Estratégica de Salazar
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A Imprevidência
Estratégica de Salazar
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Timor1941
Angola1961