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D a «distância deste tempo» (título emblemático do livro e do poema final) faz-se e alimenta-se esta colectânea, enunciada a partir de uma certa forma de activação da memória poética: memória que é ao mes- mo tempo superação da distância e com- pensação da ausência, mas também forma de permanência. De intensidade lírica, de discreta concentração vivida na intimi- dade da solidão, é feita essa permanência em que a imagem da Terceira ausente per - passa e deixa a marca do tempo perdido e da angústia silenciosa: «Então o silêncio cresce cada vez mais invadindo as pare- des do meu quarto / assim como um bolor que vai nascendo e envolve o lar tomado de abandono» (p.54); um bolor que não pode senão trazer à lembrança palavras de Carlos Oliveira, retomadas por Abelaira: «Os versos / que te digam / a pobreza que somos / o bolor / nas paredes / deste quarto deserto». Instância fundamental da criação poética, a memória é, nestes versos de Marcolino Candeias, a origem da poesia, origem pa- tenteada no belíssimo «Poema de saudade ardente», quando se evoca o desejo de ficar «formigando sobre o mel da chegada» (p. 25), porque a imagem obsidiante no espí- rito do poeta é ainda e sempre a da ilha ausente. Uma ilha que traz con- sigo pessoas, situações, episódios e também os laços afectivos que a todos congraçam: a figura do Pai, também João Vital, Chico Verís- simo e Joe Simas, tornados todos ainda mais distantes por efeito da morte ou da emigração, esta últi- ma uma temática de nítido recorte açoriano. Justamente por força da sobrevivência, na memória, destas figuras, a poesia de M. Candeias é também uma poesia do tu, logo fei- ta poesia do nós, graças a esse diá- logo com os ausentes que serve ainda para superar uma qualquer forma de saudade passiva e inconsequentemente sentimen- tal, abolida de modo radical deste volume. No fundo deste cenário recorta-se, pois, a ilha, os seus objectos, espaços e moti- vos; espécie da Ítaca reconstruída por uma saudade activa, a ilha inspira um regresso sublimado em imagens cuja depuração lí- rica roça a intemporalidade de certo modo perseguida por toda a poesia: «No cheiro a erva / um sonoro subtil soar de silêncio / brota um crepúsculo de flores esmaga- das» (p. 37). Por isso a poesia de Marco- lino Candeias passa ao lado da questão (da polémica, se se quiser) da «literatura açoriana»; sem abdicar de um elenco temático marcantemente relacionado com a terra aço- riana, a poesia de M. Candeias escapa à armadilha do folcloris- mo pitoresco: filtrada pelo crivo de uma emoção lírica refinada, esta poesia estende uma ponte firme entre esse elenco temático e a vivência de mitos e temas (a morte, o tempo) tão ancestrais como a própria poesia. Por isso este volume constitui inegavel- mente um marco importante na (por ora) breve produção deste jovem poeta. Apenas Duas Palavras Diniz Borges [email protected] Mais Que Duas Palavras: No dia 1 de maio deste corrente ano de 2016, o Dia do Trabalhador, partiu o poeta Marcolino Candeias. O meu Angra Brother! Depois de uma doença de poucos, mas duros meses, o meu irmão partiu para a eternidade. Conheci a poe- sia do Marcolino há mais de 30 anos, conheci-o pessoalmente na década de 1990 quando, ainda a residir no Canadá, participou pela primeira vez no simpósio Filamentos da Herança Atlân- tica. Desde então criámos um laço de amizade bastante forte. Por vezes levávamos meses sem falar, por motivos das nossas vidas super ocupa- das, mas quando o fazíamos reatávamos a con- versa como se nunca tivesse sido interrompida. Aprendi muito com o meu Angra Brother. Amava a vida, a literatura, a justiça social, a liberdade. Amava, muito mesmo, a sua Deka, a Maithé e o Rodrigo, os seus amigos e a sua terra, sobretudo a sua Angra do Heroísmo. Com o Marcolino e a Deka, tive, até altas horas da madrugada, durante as minhas visitas a Angra, algumas das conver- sas mais interessantes, sobre as artes, a política, a justiça social, as comunidades (que ele conhecia muito bem), a liberdade, o culto da amizade e em tudo sempre a poesia. Aliás, o meu Irmão acre- ditava no que Gustave Flaubert um dia escreveu: não há segmento nenhum na vida que não conte- nha poesia. Marcolino Candeias, o poeta, o homem dos li- vros, o praticante do culto da amizade, o huma- nista, o homem da sua terra e de todas as terras, o ativista cultural, o pensador, o intelectual, o cria- dor das histórias mais deliciosas que jamais ouvi sobre a emigração para a Califórnia, através do personagem Joe Canoa, partiu num dos dias mais significativos para quem acredita num mundo com mais justiça para quem trabalha para viver, o primeiro de maio. Deixou um legado único na poesia, no seu trabalho com a cultura nos Aço- res e na personagem Joe Canoa. Na sua poesia Marcolino Candeias sempre cultivou o que Pablo Neruda escreveu algures: a poesia é um a ato de paz. A paz entra dentro da composição de um poeta tal como a farinha entra na composição do pão. O Marcolino era um sonhador e um homem que cultivava a paz. Pessoalmente fiquei bastante mais pobre com a morte do meu Angra Brother. A cidade de An- gra, a ilha Terceira e os Açores também ficaram mais pobres. Quer pelo seu trabalho na poesia, quer pela sua dedicação à cultura, o seu traba- lho como diretor da biblioteca de Angra, como diretor da zona classificada da mesma cidade e o seu contributo como Diretor Regional da Cultura. Foi ainda, durante algum tempo, voluntariamen- te, o orientador da geminação Angra-Tulare, na cidade património mundial. Guardarei para sempre as melhores recordações da minha amizade com Marcolino Candeias. Os seus e-mails concisos, cheios de humor e sabe- doria, estarão sempre comigo. As nossas longas conversas em serões de Sanjoaninas. O copo to- mado ao sabor da amizade e da cultura. Aqui fica, nesta Maré Cheia de 15 de maio, uma curta, mas sentida homenagem ao Marcolino Candeias, que desenhou o cabeçalho que usá- mos durante vários anos nesta página. Ele que foi sempre leitor e apreciador da mesma. O poeta índio, Rabindranath Tagore, disse um dia: a vida de um poeta é como uma flauta na qual Deus en- toa sempre melodias novas. Através da vida, o poeta Marcolino Candeias entoou sempre melo- dias novas, inspiradas na crença de um mundo melhor. E porque sempre ouvi dizer que os poetas não morrem, Marcolino Candeias viverá para sempre nas letras dos Açores e nos corações daqueles, como eu, marcados para sempre pela sua amizade. Abraços, meu Angra Brother! diniz O Primeiro Livro de Marcolino Candeias PAGINA DE ARTES E LETRAS DO TRIBUNA PORTUGUESA Carlos Reis Meus amigos meus amigos de escola meus amigos de liceu e de univer - sidade que juntos fizemos a maqueta de um novo mundo meus amigos de pândega meus amigos das touradas da minha adolescência que uns aos outros nos embriagámos de tanta esperança. Oh meus amigos de café de cerveja gelada e coração fervente que resolvíamos a paz e a guerra e inventávamos a justiça social todos os meus amigos das artes que sonhávamos até ao clímax da fúria a utopia suprema e expurgámos do mal todo o universo para o fazer só de beleza. Meus amigos da ciência que em serões enchíamos de generosidade as retortas do progresso em que inventámos novas energias e as novas maravilhas do paraíso terrestre e por que não dos meus amigos os melhor penteadinhos das ideias então apenas futuros hoje consagrados já vedetas mesmo fragatas e cruzadores da política -- se é que na política meu Deus aqui pra nós o Senhor acha que? Ah todos os meus amigos sem falhar nenhum intelectuais semi para-intelectuais e sindicalistas quantos quintais de verbo imolámos ao porvir. Meus amigos todos do mundo inteiro que nunca conheci que nem hei de conhecer meus inimigos e mesmo os menos amigos toda a charanga da imprensa escrita e da falada e mais a do cochicho e a do dizquedizque também. Todos. Ah meus amigos meus inimigos nós que inventámos a computação de bolso e o laser nós que viajamos no imo do invisível nós que fazemos a carambola com neutrões nós que manipulamos a ADN como um castelo de Lego nós mesmos que bordejamos as costas do cosmos nós os que glorificamos nós os que descreditamos nós os que desacreditámos da democracia e quisemos o mundo livre e melhor nós que gravamos no perfeito absoluto da matéria a perpetuidade do Hino à Alegria nós que operámos tanta maravilha. Nós que fazemos Jugoslávias e permitimos Somálias e Timore e que incubámos novas suásticas sob a asa da nossa inconsciência. Nós que por lucro e desleixo fazemos marés negras e por conveniência e hipocrisia ousámos admitir que dos falos fumegantes da indústria era Juno mesma que se ejaculava em jactos de progresso sobre as nações da Terra. Nós que criamos as chuvas ácidas cuspindo para o ar nossa arrogância nós que satisfeitos e inconsequentes multiquotidianamente abrimos a porta do frigorífico e que de higiénicos tanto apertámos o desodorizante que mesmo daqui debaixo rasgámos as cuecas de S. Pedro. Nós que nem mesmo já precisamos de alma para sermos humanos e imortais. Nós que já nem de nós mesmos conseguimos dizer as maravilhas. Nós operámos o inoperável e arrotando à glória de Deus realizámos o impossível. Marcolino Candeias Breve Discurso aos meus Amigos 26 15 de Maio de 2016 Cultura

[email protected] O Primeiro Livro de · enunciada a partir de uma certa forma de activação da ... «Os versos / que te digam / a pobreza que ... «formigando sobre o mel da

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Da «distância deste tempo» (título emblemático do livro e do poema final) faz-se e alimenta-se esta colectânea, enunciada a partir de uma certa forma de activação da

memória poética: memória que é ao mes-mo tempo superação da distância e com-pensação da ausência, mas também forma de permanência. De intensidade lírica, de discreta concentração vivida na intimi-dade da solidão, é feita essa permanência em que a imagem da Terceira ausente per-passa e deixa a marca do tempo perdido e da angústia silenciosa: «Então o silêncio cresce cada vez mais invadindo as pare-des do meu quarto / assim como um bolor que vai nascendo e envolve o lar tomado de abandono» (p.54); um bolor que não pode senão trazer à lembrança palavras de Carlos Oliveira, retomadas por Abelaira: «Os versos / que te digam / a pobreza que somos / o bolor / nas paredes / deste quarto deserto».Instância fundamental da criação poética, a memória é, nestes versos de Marcolino Candeias, a origem da poesia, origem pa-tenteada no belíssimo «Poema de saudade ardente», quando se evoca o desejo de ficar «formigando sobre o mel da chegada» (p. 25), porque a imagem obsidiante no espí-

rito do poeta é ainda e sempre a da ilha ausente. Uma ilha que traz con-sigo pessoas, situações, episódios e também os laços afectivos que a todos congraçam: a figura do Pai, também João Vital, Chico Verís-simo e Joe Simas, tornados todos ainda mais distantes por efeito da morte ou da emigração, esta últi-ma uma temática de nítido recorte açoriano. Justamente por força da sobrevivência, na memória, destas figuras, a poesia de M. Candeias é também uma poesia do tu, logo fei-ta poesia do nós, graças a esse diá-logo com os ausentes que serve ainda para superar uma qualquer forma de saudade passiva e inconsequentemente sentimen-tal, abolida de modo radical deste volume.No fundo deste cenário recorta-se, pois, a ilha, os seus objectos, espaços e moti-vos; espécie da Ítaca reconstruída por uma saudade activa, a ilha inspira um regresso sublimado em imagens cuja depuração lí-rica roça a intemporalidade de certo modo perseguida por toda a poesia: «No cheiro a erva / um sonoro subtil soar de silêncio / brota um crepúsculo de flores esmaga-das» (p. 37). Por isso a poesia de Marco-lino Candeias passa ao lado da questão (da polémica, se se quiser) da «literatura

açoriana»; sem abdicar de um elenco temático marcantemente relacionado com a terra aço-riana, a poesia de M. Candeias escapa à armadilha do folcloris-mo pitoresco: filtrada pelo crivo de uma emoção lírica refinada, esta poesia estende uma ponte firme entre esse elenco temático e a vivência de mitos e temas (a morte, o tempo) tão ancestrais como a própria poesia. Por isso este volume constitui inegavel-mente um marco importante na (por ora) breve produção deste jovem poeta.

ApenasDuas Palavras

Diniz [email protected]

Mais Que Duas Palavras:

No dia 1 de maio deste corrente ano de 2016, o Dia do Trabalhador, partiu o poeta Marcolino Candeias. O meu Angra Brother! Depois de uma doença de poucos, mas duros meses, o meu irmão partiu para a eternidade. Conheci a poe-sia do Marcolino há mais de 30 anos, conheci-o pessoalmente na década de 1990 quando, ainda a residir no Canadá, participou pela primeira vez no simpósio Filamentos da Herança Atlân-tica. Desde então criámos um laço de amizade bastante forte. Por vezes levávamos meses sem falar, por motivos das nossas vidas super ocupa-das, mas quando o fazíamos reatávamos a con-versa como se nunca tivesse sido interrompida. Aprendi muito com o meu Angra Brother. Amava a vida, a literatura, a justiça social, a liberdade. Amava, muito mesmo, a sua Deka, a Maithé e o Rodrigo, os seus amigos e a sua terra, sobretudo a sua Angra do Heroísmo. Com o Marcolino e a Deka, tive, até altas horas da madrugada, durante as minhas visitas a Angra, algumas das conver-sas mais interessantes, sobre as artes, a política, a justiça social, as comunidades (que ele conhecia muito bem), a liberdade, o culto da amizade e em tudo sempre a poesia. Aliás, o meu Irmão acre-ditava no que Gustave Flaubert um dia escreveu: não há segmento nenhum na vida que não conte-nha poesia. Marcolino Candeias, o poeta, o homem dos li-vros, o praticante do culto da amizade, o huma-nista, o homem da sua terra e de todas as terras, o ativista cultural, o pensador, o intelectual, o cria-dor das histórias mais deliciosas que jamais ouvi sobre a emigração para a Califórnia, através do personagem Joe Canoa, partiu num dos dias mais significativos para quem acredita num mundo com mais justiça para quem trabalha para viver, o primeiro de maio. Deixou um legado único na poesia, no seu trabalho com a cultura nos Aço-res e na personagem Joe Canoa. Na sua poesia Marcolino Candeias sempre cultivou o que Pablo Neruda escreveu algures: a poesia é um a ato de paz. A paz entra dentro da composição de um poeta tal como a farinha entra na composição do pão. O Marcolino era um sonhador e um homem que cultivava a paz. Pessoalmente fiquei bastante mais pobre com a morte do meu Angra Brother. A cidade de An-gra, a ilha Terceira e os Açores também ficaram mais pobres. Quer pelo seu trabalho na poesia, quer pela sua dedicação à cultura, o seu traba-lho como diretor da biblioteca de Angra, como diretor da zona classificada da mesma cidade e o seu contributo como Diretor Regional da Cultura. Foi ainda, durante algum tempo, voluntariamen-te, o orientador da geminação Angra-Tulare, na cidade património mundial. Guardarei para sempre as melhores recordações da minha amizade com Marcolino Candeias. Os seus e-mails concisos, cheios de humor e sabe-doria, estarão sempre comigo. As nossas longas conversas em serões de Sanjoaninas. O copo to-mado ao sabor da amizade e da cultura. Aqui fica, nesta Maré Cheia de 15 de maio, uma curta, mas sentida homenagem ao Marcolino Candeias, que desenhou o cabeçalho que usá-mos durante vários anos nesta página. Ele que foi sempre leitor e apreciador da mesma. O poeta índio, Rabindranath Tagore, disse um dia: a vida de um poeta é como uma flauta na qual Deus en-toa sempre melodias novas. Através da vida, o poeta Marcolino Candeias entoou sempre melo-dias novas, inspiradas na crença de um mundo melhor. E porque sempre ouvi dizer que os poetas não morrem, Marcolino Candeias viverá para sempre nas letras dos Açores e nos corações daqueles, como eu, marcados para sempre pela sua amizade.

Abraços, meu Angra Brother! diniz

O Primeiro Livro de Marcolino Candeias

PAGINA DE ARTES E LETRAS DO TRIBUNA PORTUGUESA

Carlos Reis

Meus amigos meus amigos de escola meus amigos de liceu e de univer-sidade que juntos fizemos a maqueta de um novo mundo meus amigos de pândega meus amigos das touradas da minha adolescência que uns aos outros nos embriagámos de tanta esperança. Oh meus amigos de café de cerveja gelada e coração fervente que resolvíamos a paz e a guerra e inventávamos a justiça social todos os meus amigos das artes que sonhávamos até ao clímax da fúria a utopia suprema e expurgámos do mal todo o universo para o fazer só de beleza. Meus amigos da ciênciaque em serões enchíamos de generosidade as retortas do progresso em que inventámos novas energias e as novas maravilhas do paraíso terrestre e por que não dos meus amigos os melhor penteadinhos das ideias então apenas futuros hoje consagrados já vedetas mesmo fragatas e cruzadores da política -- se é que na política meu Deus aqui pra nós o Senhor acha que? Ah todos os meus amigos sem falhar nenhum intelectuais semi para-intelectuais e sindicalistas quantos quintais de verbo imolámos ao porvir. Meus amigos todos do mundo inteiro que nunca conheci que nem hei de conhecer meus inimigos e mesmo os menos amigos toda a charanga da imprensa escrita e da falada e mais a do cochicho e a do dizquedizque também. Todos.

Ah meus amigos meus inimigos nós que inventámos a computação de bolso e o laser nós que viajamos no imo do invisível nós que fazemos a carambola com neutrões nós que manipulamos a ADN como um castelo de Lego nós mesmos que bordejamos as costas do cosmos nós os que glorificamos nós os que descreditamos nós os que desacreditámos da democracia e quisemos o mundo livre e melhornós que gravamos no perfeito absoluto da matéria a perpetuidade do Hino à Alegria nós que operámos tanta maravilha. Nós que fazemos Jugoslávias e permitimos Somálias e Timoree que incubámos novas suásticas sob a asa da nossa inconsciência. Nós que por lucro e desleixo fazemos marés negras e por conveniência e hipocrisia ousámos admitir que dos falos fumegantes da indústria era Juno mesma que se ejaculava em jactos de progresso sobre as nações da Terra. Nós que criamos as chuvas ácidas cuspindo para o ar nossa arrogância nós que satisfeitos e inconsequentes multiquotidianamente abrimos a porta do frigorífico e que de higiénicos tanto apertámos o desodorizante que mesmo daqui debaixo rasgámos as cuecas de S. Pedro. Nós que nem mesmo já precisamos de alma para sermos humanos e imortais. Nós que já nem de nós mesmos conseguimos dizer as maravilhas. Nós operámos o inoperável e arrotando à glória de Deus realizámos o impossível.

Marcolino Candeias

Breve Discurso aos meus Amigos

26 15 de Maio de 2016Cultura

Neste inquieto ano de 2016, o mês de Abril começou e termina quente na temperatura e no ânimo popular, es-

pelhando um crescente destem-pero nacional a tomar conta dos brasileiros. “Nunca antes na his-tória deste país” se desviou tanto dinheiro público e muito menos se assistiu a tantos desvarios na administração do Brasil. Uma mistura de sentimentos de intran-quilidade, perplexidade, indigna-ção abunda e se manifesta por toda parte e de todas as maneiras numa reação à impunidade. Esse funesto Março que fechou o ve-rão revelou a polarização de opi-niões e atitudes, com força viral, rompendo limites inaceitáveis da convivência social para ganhar às ruas e ser voz coletiva de um Brasil afrontado, mas nunca sem esperança. Assim, resguardo-me, agora, de emitir opinião sobre o caos político, econômico e so-cial que sufoca e divide o povo brasileiro, ciente que ninguém supera a nossa marca de levan-tar, sacudir a poeira, dar a volta por cima. Sigo, vestindo o verde da esperança, mesmo sabendo-a

numa corda bamba e o vermelho sangue, encarnado, do Divino e do coração. Na verdade, o tema deste artigo está distante no tempo e no espa-ço. Reflito sobre a “veracidade” da verdade histórica firmada na memória coletiva e reconhecida por todas as gerações. Muitas ve-zes, ela se perde nas brumas do tempo, se esconde entre folhas amareladas, comidas de traças, em esquecidas pastas dos arqui-vos públicos ou, simplesmente, é omitida, escamoteada, silencia-da, apagada. Alguns fatos históricos perdidos no limbo do tempo dariam um ótimo enredo para um romance ou até para uma Escola de Samba

no carnaval. É o caso da presen-ça de norte-americanos da Costa Leste na Ilha de Santa Catarina, em meados do século XIX, che-gados às centenas na pacata Vila de Nossa Senhora do Desterro e que iam ao encontro da fortuna na Califórnia. Trata-se, da gran-de aventura da corrida de ouro de 1848-1856 com a Ilha de Santa Catarina no meio do caminho. Uma história esquecida pela me-mória coletiva ou não revelada pelos nossos historiadores e ago-ra, deliciosamente, contada pela jornalista Marli Cristina Scoma-zzon e Jeff Franco em A Cami-nho do Ouro – Norte-americanos na Ilha de Santa Catarina (Ed. Insular, 2015).O resultado é o precioso resgate de um capítulo da história de Santa Catarina que de forma inexplicável encontra-va-se num “buraco negro”. Confesso que ao conhecer a in-crível história desvendada pelos autores, Maria Cristina e Jeff, fi-quei atônita, corroída pela curio-sidade, aturdida. Maravilhada, talvez seja a palavra certa para definir a sensação de euforia que me abraçou. Imaginar que, há 166 anos, a corrida do ouro pas-sou por aqui, em frente e casa, já que atravessar o país, da Costa

Leste ao Oeste, era impensável e não havia ain-da o canal do Panamá. A so-lução era descer o Atlântico Sul, atracar na para-disíaca Ilha de Santa Catarina com pouco mais de 6000 habitan-tes, a maioria de origem açoriana

e alcançar o Pacífico contornan-do o Cabo Horn. Qualidades já conhecidas dos viajantes e ba-leeiros norte-americanos que frequentavam o litoral Sul. Nesta louca aventura rumo ao El Dora-do passaram pela Ilha cerca de 700 navios por ano. Um espan-to! Só em 1849 “saíram do por-to de Nova York 214 navios; de Boston,151; de New Bedford,42; de Baltimore,38; de New Or-leans,32; da Philadelphia,31 e outros 250 de portos menores, todos com destino à Califórnia” (p.26). Navios, carregados de tripulantes tomados pela febre de ouro que, após meses de so-frimentos, confinados em navios acanhados, espalhavam-se por

Desterro, sedentos de tudo, numa verdadeira invasão à Ilha, atraí-dos por sua beleza natural e ávi-dos por diversão em terra firme.As viagens pelo Cabo Horn fo-ram fartamente documentadas e ilustradas em diários de bordo e noticiadas nos jornais da épo-ca. Valiosos registros em cartas, crônicas, fragmentos de diários e centenas dessas narrativas já estão publicadas em livro, como bem esclarecem os autores na farta bibliografia citada e dis-ponibilizada. Narrativas de um preciosismo ímpar pintam aqua-relas da paisagem e cinzelam fi-ligranas no descrever a vida em Desterro marcada por suas idios-sincrasias locais. Histórias de marinheiros deixa-dos para trás por doença ou por-que se apaixonaram por mulheres da Ilha, largaram de seus sonhos na rica Califórnia e se deixaram ficar por cá, enredados na teia da paixão e afortunados por rica prole, tal qual ocorreu com o jo-vem Thom McElereth, conta o Capitão Henry Green no seu diá-rio de bordo.Das poucas mulheres que se aventuraram na corrida do ouro encontra-se a nova-iorquina Eli-sa Woodson Burhans Farnham. Desejosa em atender à demanda feminina, contratou o barco An-gelique e partiu para Califórnia com dois filhos e um grupo de mulheres “casadoiras”, fazendo escala na Ilha de Santa Catarina por nove prazerosos dias. Surpreendeu-me a memorável descrição do capelão da Marinha americana Charles Samuel Ste-wart sobre a Festa do Divino Es-pírito Santo em Desterro de 1852. A mais completa e deliciosa nar-rativa sobre os festejos em louvor ao Espírito Santo a contar dos nove dias de novena que antece-dem à Pentecoste até a coroação do Menino-Imperador ricamente trajado, a Menina-Imperatriz, a Irmandade, o cortejo imperial, os mordomos, os foliões com sua cantoria gritada, e a emblemática bandeira de seda vermelha, com uma pomba bordada e fitas colo-ridas esvoaçantes pendentes de seu mastro. Sem deixar de lado, a alegria dos folguedos popula-res, as comilanças, os fogos de artifício e os leilões. Uma tradi-ção cultural açoriana que há 240 anos se repete com igual devoção e louvor.Não era fácil a convivência dos ilhéus com a turba de america-

nos excitados à porta de casa, por mais hospitaleiros que fossem ou por mais lucros que podiam usu-fruir com esta ruidosa presença. Ânimos acirrados e ocorrências desconfortáveis, beligerantes até às raias da violência e da criminalidade pipocavam entre marinheiros e os locais. Contu-do, é inegável que “os Ianques” deram sua contribuição à socie-dade catarinense, como a vinda de profissionais liberais e com a atuação de alguns Cônsules em 50 anos de Desterro. Os autores, no capítulo dedicado à memória de Desterro sobre a invasão, des-tacam o papel da imprensa brasi-leira ao noticiar e lidar com este fenômeno de intensa mobilidade humana, motivado pelo “estopim no imaginário mundial da corri-da ao ouro da Califórnia” (p.87). Havia um fadário tecido sobre a dourada costa do Pacífico. Do real ao fantasioso, o fato é que a febre do ouro não seduziu os catarinenses, talvez por cautela, ou por estarem muito assustados com as inquietantes reportagens e notas divulgadas na imprensa e com a boataria medonha que cor-ria solta por Santa Catarina.Na última parte, o livro traz a re-lação dos nomes e a atuação dos

que responderam pelo Consulado norte-americano na Vila de Des-terro, segue uma nominata de to-dos os navios que passaram por Desterro entre 1848 e 1856. A caminho do Ouro – norte--americanos na Ilha de Santa Ca-tarina, de autoria de Marli Cris-tina Scomazzon e Jeff Franco apresenta uma escrita investiga-tiva competente de quem bebeu na fonte e sabe da pureza d’ água. Ao mergulhar na sua leitura vol-tei à antiga Desterro e fui argo-nauta de sonhos, terminando por lembrar do fascinante e terrível No Coração do Mar (In the Heart of the Sea, Estados Unidos,2015), filme dirigido por Ron Howard que reconstitui o naufrágio do baleeiro Essex, em 1820. Episó-dio que inspirou o grande clássi-co da literatura mundial – Moby Dick de Hermann Melville, em 1851,uma história grandiosa na realidade e na ficção.Finalmente, A caminho do Ouro – norte-americanos na Ilha de Santa Catarina, de Marli Cristi-na Scomazzon e Jeff Franco é a verdade histórica revelada. Nada tem de ficção. É muito real! É um capítulo que faltava na história de Santa Catarina. Haverá mais?

Uma Ilha na Corrida do Ouro, a verdade histórica

Recordar Marcolino

Do Brasil

Lélia Nunes

[email protected]

2715 de Maio de 2016 Opinião