Denilson Lopes 6

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Denilson Lopes 6

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A viagem no tem fim

PAGE 152

A viagem no tem fim. S fica cada vez mais intensa. Do rudo emerge a suavidade. O importante no a dissonncia provocada pelo som alto, como nas fuses entre punk, hardcore e msica eletrnica. As massas sonoras se somam num crescendo, ondas de um oceano. Sem delrios surrealistas, psicodlicos. Apenas a viagem pela msica. xtase diante da contemplao de uma paisagem sonora, de um mundo que no cessa de ser criado. Repouso depois das derivas urbanas, estradas percorridas, desencantos, desencontros. Nada de misticismo new age. O sublime est na materialidade e no fluxo do prprio som. No h fala, voz soterrada das outras faixas, no preciso. S a msica fala da fragilidade do sujeito, sem o dilaceramento do eu romntico, expressionista, existencialista, punk gtico. possvel a beleza sem ironia, sem pieguice? A viagem poderia continuar para sempre, mas tem que parar. A bateria ecoa solitria. Silncio. Ela sorriu e enfiou a chave na porta.

Msica para Desaparecer

For things that I desire and have not got

For things I have that I wish I had not,

You compensate me,

Stones.

Marianne Moore

A msica ambiente d uma das respostas ticas e estticas mais fecundas diante do excesso de informao, de rapidez no nosso mundo, Ao resgatar um espao acstico, sem um centro orientador, s muitos centros flutuando num sistema csmico que honra s a diversidade (MCLUHAN e POWERS, 1989, X), parte de um ltimo encontro entre Oriente e Ocidente, no quadro da globalizao tecnolgica, sem o imperativo nico do capital.

A msica ambiente um fecho dessa trajetria que comeou com o sublime no banal, passou pela leveza, por uma potica do cotidiano e se encerra nesta discusso sobre a paisagem. Em meio proliferao de imagens e sons em simulacros, colagens, samplers, pastiches e pardias; a msica ambiente, discreet music (Brian Eno) deseja recuperar um frescor como narrativa do cotidiano, como potica da conteno diante do excesso e dispndio cada vez mais incorporados a uma sociedade de consumo; uma potica de delicadeza e sutileza diante do grotesco e do abjeto cada vez mais banalizados pelos meios de comunicao de massa.

Take a walk at night. Walk so silently that the bottoms of your feet become ears

Pauline Oliveros

Se a msica pop colocou como central os afetos, a noo de paisagem pode dar uma outra inflexo neste debate. A msica pop se constituiu em grande parte na mstica do vocalista enquanto star e no uso da voz como forma de articulao das experincias dos ouvintes, marcando seus cotidianos e suas memrias. Mas, nos anos 70, emerge na msica pop a noo de paisagem ou ambincia que possibilita uma alternativa ao excesso do envolvimento romntico com a msica, nos complexos jogos de identificao e estranhamento entre f e dolo.

A introduo da categoria de paisagem sonora na cultura pop desconstri o formato da cano curta e marcada por refres, associada comumente tradicional constituio das bandas de rock com vocal, guitarra, baixo e bateria. Isto est presente no s na msica ambiente, entendida inicialmente como um subgnero da msica pop eletrnica, mas em vrias formas do rock, chamado por alguns de rock de arte (ver BAUGH, B.: 1994), no fim dos anos 60 e incio dos anos 70, que bem pode incluir uma variedade de tendncias, como o psicodlico e o progressivo, que, no dilogo com formas sinfnicas, na elaborao da msica como uma viagem, constri uma msica mais para a cabea do que para os ps. Na indissociao entre som e imagem, na incorporao de teclados, sintetizadores, em usos diferenciados da guitarra, para alm do solo, estas tendncias afirmam a noo da msica como ambincia, paisagem. Dando um salto no tempo, podemos identificar esse movimento no ps-punk do incio dos anos 80, em trabalhos de bandas populares como Cure a outras menos conhecidas como Durutti Column ou Cocteau Twins e no ps-rock (REYNOLDS, S.: 1995) dos anos 90) debandas como Tortoise, em detrimento de momentos mais puristas, de nfase no formato bsico e despretensioso, do rock dos anos 50 ao hardcore e ao grunge.

Seria o caso de resgatarmos a paisagem no como mera inveno de habitantes da cidade, cansados do seu ritmo (ainda que isto tenha uma certa verdade histrica, a partir do Romantismo), mas de construirmos uma paisagem que j no se v, desde que ns moramos aqui mesmo (SERRES, M.: 1998, 196), quebrando a dualidade entre sujeito e objeto, entre o que olha e o que contemplado, no como mero gesto vanguardista de quebrar as fronteiras da representao, mas colocando em pauta uma outra subjetividade.

A paisagem, num primeiro momento, se situa na tradio da histria moderna das artes plsticas, constituindo-se para alguns historiadores como a principal criao artstica do sculo XIX (CLARK, K.: 1961, 15), incluindo grandes pintores como Turner e Constable at chegar no Impressionismo, em Czanne, adentrando no sculo XX pela mo das vanguardas expressionistas e surrealistas, at chegar s experincias contemporneas da land art (TIBERGHIEN, G.: 1993). Mesmo que a msica seja nosso objetivo, podemos recuperar o sentido da paisagem como ligada a um ritual, maneira de existir graa aos objetos , no instante de sua apario (CAUQUELIN, A.: 1989, 14).

Ao usarmos a palavra paisagem no contexto da msica, ela se situa, por um lado, num momento em que o conceito de msica se amplia enormemente, incluindo a rigor todo som que produzido, dialogando com o acaso e com o cotidiano. neste sentido que R. Murray Schaffer fala de uma paisagem sonora em que os rudos so os sons que aprendemos a ignorar e de uma espcie de ecologia sonora que mapeia os sons do mundo (2001, 18), em sintonia com as aberturas realizadas na histria da msica erudita, aproximando mais vida cotidiana e arte, empreendendo uma reeducao da audio, como declara John Cage: as pessoas podem deixar meus concertos pensando que ouviram barulho, mas elas ouviro belezas inesperadas na sua vida cotidiana (apud SCHAFFER, 2001, 184), destacando, para nosso caso aqui, sobretudo a srie Imaginary Landscapes, em que o uso de sons quietos se contrapem ao que grande na sociedade (KHAN, D.: 2001, 185). Ao seguir o pioneirismo de Erik Satie que considerava a msica como uma contribuio para a vida da mesma forma que uma conversa particular, um quadro ou uma cadeira em que podemos sentar ou no (idem, 180), desmistifica-se o processo de especializao da msica, com o risco, no caso de Murray Schaffer (1993), de uma nostalgia de um mundo pr-cultura de massa, mas chegando a ponto de termos declaraes radicais como as de Cage, repetida por Brian Eno, ao se considerar um no-msico (CAGE, J.: 1961, 79), no sentido de ser no tanto criador mas arquiteto de sons (SCHAFFER, 2004, p. 30) ou um realizador de snteses, como Eno diz no filme Imaginary Landscapes (1989), dirigido por Duncan Ward e Gabriella Cardazzo.

Ocean of Sound de David Toop parece mais rico do que o trabalho clssico de Murray Schaffer, ao fazer uma espcie de genealogia da paisagem, da noo de ambincia, pelo sculo XX, de Satie msica eletrnica pop nos anos 90, atravs de um mistura de ensasmo, depoimentos, entrevistas, narrativas, fragmentos, em que a msica se apresenta como paisagem onde o ouvinte pode caminhar (1995, XI). Livro que interessa tanto pela sua construo em aberto quanto pela sua aproximao com a msica ambiente, especialmente a um dos seus mais notveis artistas e pioneiros na esfera pop: Brian Eno.

Seria importante inserir a msica ambiente em uma tradio, tanto das artes plsticas como da literatura, que remonta ao Impressionismo, no o considerando como episdio curto e limitado da histria da arte e [que] h muito deixou de ter relao com o esprito criador de nossa poca (CLARK, K.: 1961, 123). O Impressionismo foi criticado por limitar a pintura a puramente sensaes visuais, entendido com um aflorar a superfcie de nosso esprito (idem, 125) e uma pintura da felicidade. O que gerava uma limitao, nos termos deste defensor da dimenso trgica da arte moderna, porque os impressionistas estavam distantes das mais profundas intuies do esprito humano (idem, 141).

Portanto, resgatar o Impressionismo implica no s "compreender a sensibilidade impressionista [que] envolve portanto uma expanso enorme das faculdades de percepo sensual e um aguamento dos sentidos, pois o intelecto sozinho totalmente incapaz de apreender o significado do tempo, do movimento e da vida" (KRONEGGER, M. E.: 1973, 39), diferenciando-se da subjetividade transcendente do Romantismo e da objetividade onisciente do Realismo (STOWELL, H. P.: 1980, 4), na busca de uma atmosfera difusa mas material.

Tambm o resgate dessa trajetria no seria apenas para identificar uma espcie de perverso da leveza quanto mais dentro da arte da alta modernidade, na medida em que o Impressionismo cede mais lugar ao Expressionismo e a leveza se substitui pelo excesso, mas tambm para lanar luzes sobre uma possvel e sutil volta da leveza no presente, no prazer de olhar deriva, seja nas fices de viagem ou no desafio do invisvel, seja no Minimalismo ou na msica ambiente. Se o Impressionismo pictrico representa hoje um gosto visual basicamente acadmico e o culto de imagens e sons atmosfricos acabou se constituindo numa arma essencial para a publicidade, que quer vender uma atitude antes de vender o produto, isso diz tanto da dificuldade como do interesse do retorno do Impressionismo como um imaginrio no seio da sociedade de massas.

O Impressionismo seria, portanto, menos um efeito de iluminao, um estilo de poca do que uma base para construir a genealogia de uma esttica da leveza para a contemporaneidade, para a arte que se constri na ps-vanguarda, a partir da segunda metade dos anos 70, bem como o vislumbre de um mundo onde a suavidade est presente e possibilita se pensar em uma felicidade possvel, uma modesta alegria (ABREU, C. F.: , 157).

Mas antes de falarmos sobre Brian Eno, seria importante lembrar Erik Satie, a partir da provocao irnica de uma de suas peas executada num intervalo de uma pea de Max Jacob, em 1920. Satie defende a criao de uma msica como moblia, parte dos barulhos do ambiente, que os leve em considerao [; msica] feita para preencher os silncios pesados que, s vezes, caem entre amigos jantando juntos. Esta msica os pouparia de prestar ateno a suas observaes banais. E, ao mesmo tempo, neutralizaria os barulhos que vindos da rua to indiscretamente entram na conversa. Fazer tal msica corresponderia a uma necessidade (apud CAGE, J.: 1961, 76). Assinale-se que Cage e Eno procuram mais incorporar os sons do ambiente do que neutraliz-los (TAMM, E.: 1988, 28). Outro ponto comum importante entre Cage e Eno seria a aproximao da paisagem sonora a uma viso material: Eu nunca me interessei em simbolismo. Preferia considerar as coisas por elas mesmas, no por outras coisas (CAGE, J.: 1961, 85).

Quanto relao entre Cage e Eno, seria interessante lembrar certas aproximaes: reintroduo da espiritualidade na msica, fascnio pelo acaso, interesse pela filosofia oriental, atitudes irreverentes em direo aos princpios cannicos da msica de arte ocidental, tipografia no convencional, livre utilizao de mdia escrita e musical, a composio como processo, e o axioma sempre repetido de que todos os sons tm o potencial de serem vivenciados como msica (TAMM, E.: 1988, 29/31). H algumas diferenas entre seus programas: Cage busca composies musicais livres do gosto individual e da memria; Eno enfaticamente no est interessado em fazer msica livre do gosto individual e da memria, mas tem um desejo de fazer msica com uma superfcie francamente sedutora e que desperta a emoo de encantamento (idem, 31). Talvez por suas razes musicais estarem na cultura pop, com superficial conhecimento da tradio musical erudita, a msica de Eno mais consonante e acessvel do que muito do trabalho de Cage (idem, 33). A componente emocional da msica ambiente de Eno forte, mas est usualmente presente como um tipo de subcorrente profunda; no explode na superfcie da msica, nem confronta o ouvinte com um propsito direto, expressionista (idem, 89). Eno no hesita em criticar o excessivo intelectualismo e a no sensualidade suficiente da msica experimental, da msica eletrnica sem corao (idem, 56). Mas diferente de muito da msica pop, Eno no est interessado em canes de amor (idem, 90), mais uma vez, prximo, ainda que por motivos diferentes, do punk.

Brian Eno constri sua carreira solo ao se afastar do Roxy Music, banda glitter que ajudou a criar, e no meios dos anos 70 vai dar uma guinada no lbum Before and After Science. O primeiro lado remetia s perverses prximas ao Roxy Music e, no segundo, inicia um caminho na recusa do estrelato pop. Sua voz comea a se retirar em favor do instrumental. Ao lado da listas das msicas na contracapa, h quadros que remetem a paisagens sem a presena humana - recusa do narcisismo egocntrico da indstria de pop stars e da uma aspereza de uma tradio mais cerebral da msica erudita.

Curiosamente, a partir de ento, nas capas, seu rosto foi substitudo por imagens que evocam mapas. O sujeito se eclipsa, como tambm o objeto. No mais falar de si, nem danar em xtase permanente. Em meio exploso do punk e da disco, Eno prefere a discrio de ser um pintor de sons ou construtor de paisagens snicas. O que mais do que uma metfora trata-se de considerar a fita magntica como tela (TAMM, E.: 1988, 100), na tradio dos cantores que pintavam com palavras a partir da psicodelia (idem,127); ser um criador de trilhas para novos espaos, de pausas e silncios, em contraponto ao rudo e ao excesso, ou ser produtor de trabalhos como a coletnea No New York, da guinada terceiro mundista dos Talking Heads e da deriva eletrnica do U2. O prprio Eno sintetiza sua posio e seu afastamento do rock numa entrevista feita em 1980: uma das coisas belas sobre o tipo de msica que estou fazendo agora que ela me faz sentir muito desimportante. Eu gosto deste sentimento. O rock, por outro lado, tende a me fazer sentir muito importante ( apud idem, 43).

Ao ouvirmos, como exemplo, a penltima msica de Before and After Science, By the River, percebemos que a cano coloca em pauta uma questo central de sua obra a partir da: a msica de Eno divinamente simples ou meramente simplista, primal ou elementar? (idem,18) . A msica apresenta duas pessoas, um casal talvez, que contempla o rio passar. O fluxo do tempo e a correnteza do rio se interligam. A msica um quadro, cria uma paisagem temporal, ainda no formato curto de uma cano pop, mas no limiar da dissoluo que ocupar seu trabalho seguinte e manifesto da msica ambiente Music for the Airports. A msica ambiente , ento, definida como uma atmosfera, ou, para usar as prprias palavras de Eno uma influncia que nos rodeia, um matiz (ENO, 2004, p. 97), carregada de dvidas e incertezas que acentuam idiossincrasias atmosfricas e acsticas mais do que as ocultam, nesse sentido diferente da muzak, que busca preencher de forma homogeneizante o espao, acrescentando estmulos que busquem aliviar o tdio das tarefas rotineiras, tornando o vazio menos assustador (KASSABIAN, 137). A musica ambiente leva calma e constri um espao para pensar, acomoda vrios nveis de prestar ateno sem reforar um em particular (ENO, 2004, p. 97). O que implica ouvir a msica de forma quase sem ser ouvida, um sussurro. A ambincia a cor da luz e o som da chuva (ENO apud SHAPIRO, 2000, p. 159).

Para Eno, a msica ambiente est associada ao uso de sintetizadores, reverberaes e ecos (TAMM, E.: 1988, 205). Msica ambiente denota musica quieta, que d a cor da atmosfera do local em que tocada; msica com senso de espao e profundidade, que est em volta do(a) ouvinte, ao invs de ir at ele(a); mais decorativa do que expressionista, seno totalmente livre do gosto individual, memria, psicologia (como no ideal de Cage); na proposta de Eno, falta o pathos da auto-importncia e a apresentao confessional de feridas psquicas abertas (idem, 206).

Se houvesse uma paisagem que melhor sintetizasse a proposta de Eno, esta seria um jardim. O jardim se distingue da cidade como da natureza furiosa, tempestuosa e desrtica. Seus limites tambm devem ser defendidos da interioridade ou do excesso de subjetividade (STEWART, S.: 2005, 111). O jardim ameno, a meio caminho entre dois perigos, o da natureza e o da sociedade, o jardim oferece um asilo desejado. Sem temer a palavra, h uma forma da vida sbia ilustrada pela forma jardim (CAUQUELIN, A.:1989, 53)

Nada de grandioso, retumbante, visceral; apenas detalhes, pequenos gestos, notas frgeis que evocam um mundo etreo, to tranqilo quanto fugaz, recuperando o que de melhor o Impressionismo nos deixou como postura diante do mundo, que dissolveu o eu romntico, suavizou o descritivismo naturalista. O que resta no a realidade, nem as emoes em primeira pessoa, mas traos, vestgios, impresses.

Se nutrindo dos clichs da muzak, da msica feita para elevador, para suavizar ambientes de tenso e trabalho, sem redundar no que vai se chamar de msica new age, trilha favorita de aulas de yoga e meditao, a msica ambiente, como encarnada neste trabalho de Eno, lana um apelo beleza do cotidiano, ao sublime no banal.

Pensar a possibilidade de uma msica ambiente nos ltimos 30 anos implica uma diversidade de caminhos. A noo de paisagem pode incorporar rudos e dissonncias, mesmo em bandas de rock, na esteira do Velvet Underground, como Jesus and Mary Chain, My Bloody Valentine, e sobretudo Sonic Youth, presente tambm no rock industrial do Einstrzend Neubauten e do Nine Inch Nails, ou o clima soturno no trip hop de Tricky, Portishead e Massive Attack.

Mas, a partir de Eno, seria importante mapear desde os trabalhos lanados pela influente gravadora Warp, como Artificial Intelligence 1 e 2, que em 1991/2, passada a febre do xtase das raves, dizia fazer msica danante para sedentrios e para estar em casa (apud Reynolds, S.: 1999, 181) e defendia na contracapa: Voc est sentado confortavelmente? Inteligncia Artificial para longas jornadas, noites quietas e amanheceres sonolentos em clubs. Oua com uma mente aberta.

E esta posio atinge nomes mais populares, como The Orb, que resgata elementos do rock progressivo, passando por bandas como Seefel ou Moby que tem um CD chamado justamente de Ambient bem como as incurses do Aphex Twin in Selected Ambient Works Volumes I e II, bem como KLF, Autechre e Black Dog. Sendo importante destacar a emergncia da cena ill-bient em Nova Iorque, catalisada no CD Necropolis, espcie de No New York dos anos 90, mixado pelo DJ Spooky, que em 1996, lana seu primeiro trabalho, Songs of a Dead Dreamer, em que em numa de suas ltimas faixas, Terrain Invasion of Alpha Cantauri Year 2794, sintomaticamente Satie reaparece. Um ciclo se fecha? fato que nos ltimos anos, a noo de msica ambiente se disseminou mas perdeu sua noo de cena, como podemos ver na sua presena em bandas como Air, no CD Vespertine de Bjork, ou ainda em bandas to populares como Radiohead, no seu trabalho mais surpreendente, Kid A, ou no retorno do sagrado na pica God moving over the Face of the Waters em Everything is Wrong que abre as portas para transformar Moby em pop star com seu Play.

Tudo questo de manter

a mente quieta

a espinha ereta

e o corao tranqilo

Walter Franco

A atualidade da msica ambiente aponta para longe das pistas de dana. A festa acabou. Ainda que ela continue. E ela vai continuar, mais de quinze anos depois do vero do amor na Inglaterra. No a vertigem do ato, mas a serenidade. No o xtase, o excesso, nem o tdio de noite aps noite, mas a sutileza, a claridade, a luz, um outro corpo, em repouso. No a nostalgia eletro, techno, house, drum and bass, nem a cano pop, mas o som bruto, o gesto intil, a voz solta. No mais danar, mas contemplar. Ou danar devagar, com vagar. Olhar com o corpo. Menos altura, menos volume. Menos. No o grandioso, o retumbante, mas o pequeno, o banal. No o eterno, mas o precrio, o que no dura. No mais confisses, sentimentos, mas a matria, o corpo, a pele.

A msica no mais msica, um caminho, uma viagem, um destino, um espao, um ambiente, este ou outro. Nada de especial. Um lugar onde se pode morar. Uma pausa. Um porto. Uma paisagem. A paisagem redime o sujeito. A paisagem no fala de si, . A paisagem no expresso, impresso. Frgil marca. A paisagem no precisa de porqus, nem de espectadores distantes. Exige pertencimento, naufrgio, no mais ser, dissolver. Imagem. Quadro. Retorno ao indefinido, ao inumano, ao mistrio das superfcies. Frgil marca, frgil texto. A paisagem solicita a adeso dos viajantes, andarilhos, nmades. Onde h um lugar para se estar, para falar a frgil fala. A sutileza como companhia da leveza e da delicadeza. Uma fala baixa, um modo menor. Viagem potica.

A msica um mar. preciso desateno para ouvir. Som repetido, quase imperceptvel, quase invisvel. preciso tempo. preciso se deixar. preciso no ter medo. As ondas vo chegando, envolvendo. Voc no quer fugir. No consegue. Lentamente, o corpo se torna leveza, ar, gua, transparncia. Espuma. A msica no sua, voc da msica. Voc msica. Esta msica fala da fragilidade do sujeito sem o sujeito. Nem mquina, nem homem.

Bibliografia

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Escutando a ltima faixa, A Saga sem Fim de Gollo Galtico, prola e sntese do CD A coerncia uma armadilha de Frank Poole.

Verso anterior deste texto foi publicada em Comunicao &Msica Popular Massiva, org. Por Joo FreireFilho e Jeder Janotti Jr. para EDUFBA em 2006.

No intil lembrar que as declaraes de Eno a partir de 1976 so simultneas exploso do punk, movimento que critica a mistura pomposa da msica erudita do sculo XIX, no ento chamado rock progressivo, fazendo dos msicos de rock mais que virtuoses de seus instrumentos, tcnicos acadmicos. Vrios punks declaram no saberem tocar antes de comearem a ter uma banda.

Para uma viso mais global da carreira de Brian Eno, ver TAMM, E.: 1988.

Nas palavras do prprio DJ Spooky, para falar de vrios trabalhos de artistas originrio do Brooklyn, como Byzar, We & Sub Dub, alm de seu prprio: msica que cria paisagens distpicas minimais (apud SHAPIRO, 2000, p. 219).