Upload
lamanh
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
"IMPRENSA SINDICAL: COMUNICAÇÃO POPULAR DO TRABALHO"
Dennis de Oliveira (Professor da Universidade Metodista de Piracicaba)
1 -Justificativa, objetivos e metodologia empregada
Este trabalho trata do potencial da comunicação sindical como gestora de
uma cultura e discurso contra-hegemônico no âmbito do mundo do trabalho. Este
potencial foi avaliado a partir de várias considerações.
No contexto geral do capitalismo, o principal aspecto a ser considerado é
o neoliberalismo, como doutrina hegemônica do desenvolvimento capitalista. O
neoliberalismo, como doutrina, foi formulado em 1944 por Friederich Hayeck (na obra
"O caminho da servidão"). Naquela ocasião, o texto de Hayeck era uma crítica mordaz
contra o Estado de Bem Estar e a doutrina do Keynessianismo, hegemônicos no mundo
capitalista do pós-guerra. Segundo Anderson,
"o alvo imediato de Hayeck era o Partido Trabalhista inglês às vésperas
da eleição geral de 1945 na Inglaterra."1
Apesar da contundência da crítica de Hayeck, até 1947, os Estados de
Bem Estar Social se consolidaram na Europa. Foi neste momento que Hayeck decidiu
articular uma corrente política internacional contra a tendência social-democrata
européia e mesmo o New Deal dos Estados Unidos. Os esforços dos liberais não
surtiram efeito de início, pois o capitalismo vivia em plena fase de expansão econômica,
principalmente nos anos 50 e 60.
O "intervencionismo estatal" e as "políticas de bem estar" capitalistas
sofrem revés a partir dos anos 70, quando o sistema entra em crise, com queda nas taxas
de crescimento e alta nas taxas de inflação.
Até meados dos anos 70, segundo Anderson, os remédios para a crise
capitalista ainda seguiam os rumos do keynessianismo. Somente com a eleição de
Margareth Tatcher, em 1979, na Inglaterra, o neoliberalismo ganha força e parte para ser
a corrente hegemônica no mundo capitalista. Ano seguinte, novo reforço para os
neoliberais com a eleição de Ronald Reagan para a presidência dos Estados Unidos. Em
1 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo in: SADER, E. & GENTILI, P. (orgs). Pós-
neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. São Paulo, Paz e Terra, 1995, p. 9
2
1982, os liberais vencem na Alemanha Ocidental, através de Helmuth Khol. E assim vão
se seguindo vitórias eleitorais das correntes mais conservadoras no centro do
capitalismo, até a vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria o que o tornou como a
única superpotência mundial.
A vitória desta doutrina político-econômica incorporou e direcionou dois
fatores que completam o contorno do capitalismo contemporâneo: o toyotismo e a
globalização da economia.
O toyotismo foi a forma de organização que substituiu o taylorismo no
modo de produção capitalista. Tem como princípios básicos a flexibilização da
produção (incluindo a jornada e a remuneração do trabalho), o estoque mínimo e a
elitização do consumo.
A globalização da economia foi consequência da forma de
desenvolvimento e apropriação das novas tecnologias - particularmente no campo da
informação - que permitiu uma internacionalização sem precedentes do capital e dos
seus fluxos. As novas tecnologias da informação permitem, hoje, constituir um mundo
conectado e dirigido pelos centros do capital, movimentando mundialmente
informações, mensagens e capital especulativo.
Esta nova configuração do capitalismo - o neoliberalismo - é fundamental
para se compreender as transformações no mundo do trabalho, do consumo, na cultura e
nas possibilidades de resistência contra-hegemônica.
Além desta contextualização mais global, há que se dar importância para
as particularidades do capitalismo brasileiro. Levou-se em consideração os seguintes
fenômenos: o aspecto tardio do capitalismo brasileiro, o caráter dependente e anti-
social, a convivência do capitalismo com um grande exército de reserva de mão de obra,
o que ocasiona freqüentes crises sociais.
Já quanto ao sindicalismo brasileiro, é necessário destacar a sua situação
contraditória de, ao mesmo tempo, ser o representante dos trabalhadores e ter um caráter
institucional, garantido pelo seu poder normativo de estabelecer convenções e acordos
coletivos e estabelecer contribuições compulsórias inclusive para aqueles que pertencem
a sua base mas não são associados.
Finalmente, a última instância considerada neste trabalho foi a da teoria
3
da comunicação. Optou-se pela linha teórica de Adriano Rodrigues2 que considera o
campo da comunicação social como um espaço de intersecção dos vários campos de
mediação social, de operação social da cultura e de ser um dos principais espaços de
sociabilização do indivíduo nos tempos neoliberais, com legitimidade garantida a partir
da construção de laços identitários entre emissor e receptor.
Diante disto, esta trabalho tem como um dos principais objetivos propor
uma metodologia para análise da comunicação sindical, a partir dos seguintes
pressupostos:
a-) Considerar a comunicação como um espaço onde se constróem laços de
identidade entre emissor e receptor, laços estes gestados na confrontação entre as
demandas expressas pelos receptores e a hegemonia exercida pelos emissores, uma vez
que estes últimos tem o poder de reelaborar as demandas de acordo com os seus
objetivos;
b-) Considerar a mensagem como resultante deste processo de mediação
emissor/receptor e que, portanto, expressa demandas reelaboradas e os pontos de
identidade criados para legitimar a relação emissor/receptor;
c-) Considerar o espaço sindical como locus privilegiado para a (re)construção
conceitual da visão de mundo de trabalho e que a comunicação sindical é,
potencialmente, contra-hegemônica a medida que coloca o espaço do trabalho como
lugar de conflito e não de harmonia como prega o discurso da classe dominante;
d-) Considerar que este locus privilegiado tem potencial suficiente para a
gestação de uma cultura contra-hegemônica do trabalho, tendo como um dos principais
vasos comunicantes, a comunicação sindical.
A metodologia proposta e utilizada nesta trabalho combina análise de
emissão, de recepção e de mensagem. Estes três pólos do campo comunicacional,
analisados dentro de uma contextualização social e histórica, apontaram laços
identitários que dão o contorno da comunicação contra-hegemônica do trabalho hoje e
também dos potenciais ainda não explorados desta mesma comunicação. Por isto, é uma
metodologia que não se limita a constatar uma realidade, mas apontar saídas.
Para a aplicação da metodologia, escolheu-se o Sindicato dos Químicos
2 RODRIGUES, Adriano. Estratégias da comunicação. Lisboa, Presença, 1992
4
de Guarulhos por ser este um sindicato que, por não ter nenhuma vinculação com as
atuais correntes do sindicalismo brasileiro - por exemplo, esta entidade sindical não é
filiada a nenhuma central sindical - , busca ter uma definição própria de si mesmo. Além
disto, é importante ressaltar que este sindicato possibilitou e colaborou com a realização
desta trabalho, seja nas entrevistas com os trabalhadores da sua base e com a diretoria,
seja no fornecimento dos materiais necessários para a análise.
Com isto, mais que a análise da comunicação deste sindicato, esta
trabalho visa contribuir para a formulação de uma teoria e uma metodologia que dê
conta da cultura e da comunicação das classes subalternas, um dos principais desafios
dos estudos das ciências da comunicação hoje.
2 - Revisão bibliográfica
Nos últimos anos, vários pesquisadores, especialmente da área de
Comunicação Social, realizaram pesquisas sobre a imprensa sindical. Já não há mais
aquele descompasso entre os estudos de comunicação social e a dimensão da
comunicação produzida pelos sindicatos, pelo menos na proporção em que as primeiras
pesquisas sobre este assunto faziam questão de lembrar.
Nestas recentes pesquisas sobre a comunicação sindical, ou mais
especificamente, sobre os sistemas de comunicação mantidos pelas entidades sindicais,
formularam-se várias propostas conceituais sobre o objeto em questão, além de modelos
metodológicos de análise.
Estas propostas conceituais tendem a se encontrar no aspecto mais geral
de considerar a sociedade capitalista como uma sociedade de exploração da burguesia
sobre o proletariado. Desta forma, a imprensa sindical, em sendo uma imprensa
produzida por organizações voltadas, em tese, a defender os interesses da classe
dominada, cumpriria um papel de constituir um discurso de contraposição à ideologia
dominante.
Se isto, aparentemente, implicaria numa unidade conceitual de imprensa
sindical, na prática, isto não acontece, o que é natural, pois nem mesmo a interpretação
do marxismo enquanto teoria revolucionária é consensual entre os acadêmicos e mesmo
entre as organizações revolucionárias.
5
A divergência principal nas propostas conceituais da imprensa sindical é
quanto a sua dimensão em termos de discurso de contraposição. É um discurso que pode
vir a ser revolucionário, de pregação de uma nova sociedade, de destruição do
capitalismo; é um discurso meramente institucional, produzido por uma instituição
tolerada no seio de uma sociedade de dominação burguesa; é um discurso que constitui
uma nova forma de interação comunicativa diferente da produzida pela comunicação de
massas; é um discurso que cumpre um papel de resistência, sem no entanto, ser
necessariamente revolucionário?
Um dos problemas que se enfrenta ao discutir esta questão é a
singularidade do fenômeno da imprensa sindical no Brasil. Singularidade esta que se
expressa primeiro na sua dimensão objetiva - os sindicatos produzem cerca de 10% de
tudo o que é produzido em termos de material impresso no país, configurando-se num
sistema de comunicação alternativo de porte razoável - e, segundo, nas características
próprias da organização sindical brasileira contemporânea, que combina uma estrutura
oficial, herdada do modelo corporativista imposto no Estado Novo getulista, mas que
comporta na sua direção projetos políticos de superação da realidade de superexploração
do trabalho, uma das características principais da acumulação capitalista brasileira.
Diante disto, faz-se necessário constituir paradigmas teóricos e
estratégias metodológicas de análise que estejam fulcradas na realidade própria do
capitalismo brasileiro, nas formas singulares que se desenvolve a luta de classes no país,
tanto do ponto de vista da exploração por parte das classes dominantes, como da luta
contra esta exploração, por parte das classes dominadas. Sem, claro, rejeitar as
proposições teóricas elaboradas pelos vários estudiosos da comunicação e das lutas
sociais, o primeiro passo para uma análise da imprensa sindical brasileira
contemporânea é a constituição de um novo paradigma teórico e sua conseqüente
estratégia metodológica que dêem conta destas singularidades do capitalismo brasileiro.
2.1 - Imprensa proletária
Maria Nazareth Ferreira foi a pioneira na pesquisa sobre imprensa
sindical. Seu primeiro trabalho, "A imprensa operária no Brasil (1880/1920)"3, analisou
3 Esta pesquisa foi a dissertação de mestrado da profa. Maria Nazareth Ferreira e foi publicada pela
Editora Vozes, em 1978, com o mesmo título.
6
a imprensa dos sindicatos anarquistas no início do século XX, em São Paulo,
particularmente a do sindicato dos gráficos.
Mas o trabalho mais consistente de Ferreira foi a pesquisa que resultou na
tese de livre-docência intitulada Comunicação e resistência na imprensa proletária. É
nesta pesquisa que Ferreira faz uma discussão conceitual consistente sobre a imprensa
produzida pelos sindicatos.
A conceituação proposta por Ferreira parte do pressuposto da existência
de um antagonismo entre a imprensa das classes dominantes e a das classes subalternas.
Segundo ela,
"... A predominância das idéias da classe dominante em sua imprensa
pressupõe o emprego de grande volume de recursos financeiros e tecnologia avançada;
já a imprensa das classes subalternas, que objetiva a resistência às idéias dominantes,
não dispondo dos mesmos recursos, deve pressupor uma organização estruturada e
políticas definidas, para alcançar aqueles propósitos definidos por Lênin."4
Os propósitos de Lênin a que se refere Ferreira são aquelas clássicas três
funções que o líder revolucionário russo defendia para a imprensa do proletariado: ser
um propagandista coletivo, agitador coletivo e organizador coletivo.5 Enfim, para
Ferreira, a imprensa das classes subalternas para ser uma propagandista coletiva,
agitadora coletiva e organizadora coletiva precisa ser produzida por uma organização
estruturada e com políticas definidas. A imprensa das classes subalternas não seria um
fim em si mesma, mas um instrumento de uma organização e uma política que lhe é
anterior.
Por esta razão que a pesquisa de Ferreira desenvolve-se a partir de uma
periodicização histórica da luta da classe operária brasileira. Ou seja, os diversos
momentos históricos da luta de classes do Brasil geraram diferentes formas de
organização da classe operária - inclusive suas táticas e estratégia políticas - formatando
diferentes discursos e formas de comunicação próprias. A periodicização histórica da
imprensa sindical do Brasil proposta por Ferreira - que, se não for a única, é a que serve
4 FERREIRA, M. N., Comunicação e resistência na imprensa proletária. (tese de livre docência), São
Paulo, ECA/USP, 1991, p. 14 5 LÊNIN, V. I., Acerca de la prensa, Moscu, Progresso, 1979 (edição em espanhol)
7
de referência para a esmagadora maioria das pesquisas sobre o tema - tem como suporte
básico a história da luta da classe operária no Brasil.
2.2 - Imprensa operária ou imprensa proletária?
Ferreira coloca que "uma das grandes dificuldades que se enfrenta ao
estudar a imprensa das classes subalternas é a questão da conceituação."6 O problema
da conceituação que Ferreira alerta é quanto ao emprego do termo "imprensa operária".
Aqui, a autora faz uma revisão conceitual, pois os seus primeiros trabalhos sobre a
imprensa dos sindicatos, ela utilizou do termo "imprensa operária"7. Quais são os
problemas que Ferreira aponta na utilização do termo "imprensa operária"?
O primeiro problema é quanto à produção desta imprensa. A primeira
vista, o termo "imprensa operária" significa uma imprensa produzida por operários - se
considerarmos do ponto de vista do emissor - ou que se dirige prioritariamente ao
público operário - se considerarmos do ponto de vista do receptor. Porém, estes dois
pontos de vista são limitados e podem levar a enganos, fato que é reconhecido pela
autora. Isto porque a maioria da imprensa dos sindicatos hoje é produzida por
profissionais especializados contratados pelas entidades e não pelos próprios operários.
Do ponto de vista do receptor, se for considerada "imprensa operária" aquela que é
dirigida especialmente para o público operário, incluir-se-ia nesta categoria os jornais
internos produzidos pelas empresas ("house-organs") e vários produtos da indústria
cultural, como os jornais sensacionalistas.
Sendo assim, Ferreira joga a definição conceitual para um outro campo
que não o do emissor e receptor apenas. O fundamental, para a autora, é o conteúdo
ideológico das mensagens desta imprensa - em última instância é ele o definidor se
determinada imprensa é da classe operária ou não.
Mas e quanto à imprensa sindical? Veja-se esta passagem de Ferreira:
"Esta problemática remete a outra questão: a imprensa partidarista.
Quando se trata de imprensa proletária e de partidos operários, fica difícil desvincular
um termo do outro, principalmente se se levar em conta o fato de que a primeira é
resultado dos segundos e que ambos têm objetivos idênticos. Entretanto, existe um
6 FERREIRA, M. N. Comunicação e resistência... , p. 24 7 Ver FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil (1880/1920), Petrópolis, Vozes,
1978 e da mesma autora A imprensa operária no Brasil, São Paulo, Ática, 1987.
8
outro elemento complicador, o sindicato, que não pode ser analisado senão formando,
com os outros dois elementos, um tripé de suporte da luta da classe trabalhadora: o
jornal, o partido e o sindicato."8
Assim, a conceituação que Ferreira propõe parte de um princípio geral - o
de que o jornal é um dos alicerces de sustentação da luta da classe trabalhadora, junto
com as organizações partidária e sindical, mas numa posição de subordinação - ou seja,
a imprensa é o produto das organizações e não o contrário. Mas, além de produto, ela é
instrumento - se recuperar-se a proposta de Lênin, um dos referenciais da autora - pois o
jornal é também um organizador coletivo.
Mas, ainda voltando a Ferreira:
" O ponto de partida é a expressão imprensa operária. Aqui, nesta
palavra operária, tem início o problema. O conceito de operário nasceu na Europa, no
século passado, derivado do termo 'proletariado', significando, grosso modo, um tipo
de trabalhador pouco qualificado, um trabalhador manual, que tanto poderia exercer
uma atividade urbana como rural. Durante aquele século, esta denominação passa a
ser universalizada na realidade européia. Ao ser transplantada para a América Latina -
e para o Brasil, especificamente - passa, justamente com o emigrante europeu, a ser
popularizada como significando o trabalhador pura e simplesmente. (...) No entanto,
com o desenvolvimento da sociedade e do proletariado, esta expressão torna-se
insuficiente para designar a moderna imprensa das classes subalternas. Neste sentido,
o primeiro passo para resolver o mais agudo problema, mas não todos, é renunciar à
expressão 'imprensa operária' substituindo-a por 'imprensa proletária'" 9.
A mudança de termo proposta por Ferreira está alicerçada no fato de que
os segmentos não hegemônicos do sistema capitalista brasileiro não se limitam aos
trabalhadores braçais urbanos e rurais ("operários"), mas toda uma gama de segmentos
sociais que a autora incorpora no termo "proletariado", designando sua imprensa como
"proletária".
Note-se aqui que a base da conceituação de Ferreira é o conteúdo
ideológico, ou mais que isto, a proposta política. Os termos proletariado e imprensa
proletária não estão ligados diretamente a posições que os atores políticos ou do
8 FERREIRA, M.N. Comunicação e resistência..., p. 25 9 idem, ibidem, p. 29
9
processo comunicacional ocupam na estrutura econômica, mas sim às posições políticas
que defendem ou que a imprensa defende. Em outras palavras, o referencial para
imprensa proletária - para Ferreira - é a luta contra o sistema capitalista.
Assim, todos os setores ou segmentos que lutam contra o sistema
capitalista estão no campo do proletariado e sua imprensa é considerada como
proletária. Por isto, Ferreira afirma que:
"Uma imprensa proletária desdobra-se em imprensa sindicalista,
partidarista, imprensa das associações culturais, das sociedades de bairro, etc. desde
que estas entidades representem, majoritariamente, os interesses das classes
subalternas."10
Esta visão mais ampla de imprensa proletária está nítida numa nota de
rodapé da mesma obra da autora, quando ela explica que...
"outras modalidades da imprensa proletária, tais como imprensa de
mulheres, etc. não serão avaliadas nesta pesquisa."11
Uma outra contribuição importante de Ferreira foi a periodicização
proposta para a história da imprensa proletária. Ela dividiu esta história em cinco
períodos:12
1) Imprensa anarquista - até os anos 30
2) Imprensa sindical-oficial - no período getulista, especialmente no Estado Novo
3) Imprensa partidista - entre os anos 40 e 60, com predomínio do Partido Comunista no
movimento sindical.
4) Imprensa clandestina - durante a ditadura militar, especialmente na vigência do AI-5
(1964/78)
5) Imprensa sindical contemporânea - a partir do final dos anos 70 com a rearticulação
do movimento sindical brasileiro sob a hegemonia do Partido dos Trabalhadores.
Note-se que nesta proposta de periodicização de Ferreira, o elemento
norteador é a direção dos sindicatos, ou seja, os períodos são caracterizados pela
ideologia hegemônica no movimento operário: anarquistas, comunistas, organizações
10 idem, ibidem, p. 29 11 idem, ibidem, p. 30 12 idem, ibidem
10
clandestinas, petistas (partido que teve suas bases originadas na organização sindical),
etc.
Em outras palavras, o fundamental para Ferreira são as estratégias
políticas das organizações políticas operárias, são elas as definidoras do discurso da
imprensa chamada por ela de “proletária”. Por isto, a metodologia de Ferreira,
particularmente no seu último trabalho sobre imprensa sindical, centra-se na análise da
evolução histórica destas organizações, tendo como pano de fundo, as condições
objetivas da luta de classes no Brasil.
Hoje, vários pesquisadores já começam a apontar a necessidade de se
estudar o receptor destes discursos13. A decodificação do discurso sindical por parte dos
trabalhadores passa a ser o elemento de preocupação de várias pesquisas, provavelmente
influenciadas pelas novas tendências que a pesquisa em comunicação vem tomando nos
últimos anos.
Porém, além deste problema da necessidade de se enfocar também o
receptor, no que concerne particularmente à imprensa sindical há algumas questões
ainda em aberto no tocante a definições conceituais e estratégias metodológicas.
A primeira delas refere-se às condições de produção da mensagem, o que
vai além da análise do emissor e transfigura-se para as relações internas e externas
existentes dentro da instituição que emite. Exemplificando, as relações de poder
existentes dentro dos sindicatos, as relações entre as direções e os profissionais que
executam o trabalho; as relações entre as direções e outras instituições sociais (como os
partidos, o Estado e outros movimentos) e mesmo as relações entre as direções e suas
bases. Todo este universo de relações internas e externas configurar-se-ia em um
universo cultural/ideológico do emissor que não se explica apenas pelas opções políticas
ou pelas estratégias de ação que ele, enquanto dirigente sindical, tem. É a partir deste
universo cultural/ideológico que este emissor constrói seus mecanismos de
decodificação e leitura da realidade.
A segunda questão em aberto refere-se às condições de recepção da
mensagem, ou em outras palavras, todas as relações sociais que permeiam a
13 Destaca-se, aqui, os pesquisadores do Centro de Estudos Latino-Americanos de Comunicação e Cultura
que vem desenvolvendo projetos de estudos sobre o consumo cultural das classes subalternas, incluindo
aí, o consumo da mensagem dos sindicatos.
11
recepção/decodificação dos discursos da imprensa sindical por parte dos trabalhadores.
Da mesma forma que um universo de relações internas e externas da instituição
sindicato configuram um universo cultural/ideológico que molda a decodificação da
realidade e, conseqüentemente, o falar sobre esta realidade, no caso do receptor, o
mesmo acontece. O universo de relações sociais que tem o trabalhador/receptor também
moldam a decodificação das mensagens do discurso sindical. Em outras palavras, a
recepção não se constitui, unicamente, numa leitura linear dos discursos por parte do
receptor, mas fundamentalmente, na relação daquele discurso - que já é uma
decodificação da realidade - com o universo cultural/ideológico de quem o recebe.
Tem-se, assim, uma concepção da comunicação como um processo de
mediação e não como uma transmissão linear. Por processo de mediação, entende-se por
um processo social ou de socialização.
Entretanto, não se pode considerar a imprensa sindical como um processo
comunicacional autônomo, próprio, que se descola de outros processos
comunicacionais. Pelo contrário, ela se insere (sem, obviamente, perder as suas
especificidades e singularidades) num contexto processual macro. A sua singularidade
não é a defesa dos interesses dos trabalhadores, pois outras formas de imprensa podem
assumir este papel, às vezes com mais eficiência (como, por exemplo, a imprensa dos
partidos políticos operários). A imprensa sindical enquanto tal, com esta dimensão, é um
fenômeno tipicamente brasileiro, o que não implica que outros países não disponham de
jornais que defendam os interesses dos trabalhadores. Os partidos comunistas europeus,
grosso modo, todos tem jornais de grande alcance social, que formam uma opinião
pública e disputam espaço dentro do sistema de comunicação hegemônico. Outras
instituições de caráter reivindicatório-popular também tem suas formas próprias de
comunicação (como rádios livres, televisão comunitária e jornais comunitários) também
com um discurso de defesa dos interesses das classes trabalhadoras.14 Não é essa,
portanto, a singularidade da imprensa sindical, embora seja uma das suas características.
Esta singularidade deve ser buscada no lugar social onde se desenvolve o
processo comunicacional da imprensa sindical: o mundo do trabalho. É por reação à
exploração do trabalho que surgem e organizam-se os sindicatos (pólo emissor) e é no
14 As organizações revolucionárias da América Central comunicavam-se com a população por meio de
estações de rádio livres. Exemplos: Rádio Sandino, da Nicarágua; Rádio Venceremos, da Frente Farabudo
Marti de Libertação Nacional de El Salvador.
12
universo do trabalho que se dão, prioritariamente, as relações entre os sindicatos e os
trabalhadores. Dentro deste universo do trabalho é que se dá a decodificação da
realidade, tanto por parte do emissor, como por parte do receptor.
A contraposição da imprensa sindical com a grande imprensa, ou a
imprensa hegemônica centra-se nesta singularidade. A imprensa hegemônica, dado o seu
caráter comercial/mercadológico, conforma-se com um receptor constituído como
consumidor de bens simbólicos (ao adquirir o jornal ou revista, um bem simbólico), ou
de bens materiais (ao ser visto como um potencial comprador do que é anunciado no
jornal ou na revista). O mundo do consumo é, portanto, o norteador do discurso da
imprensa hegemônica - o leitor/receptor é tido como sujeito a medida que
potencialmente consome. O mundo do trabalho é o norteador do discurso da imprensa
sindical - o leitor/receptor é tido como sujeito a medida que potencialmente trabalha e
produz. É esta a contraposição que distingue, que singulariza a imprensa sindical das
demais formas de comunicação. Não é o seu projeto político/ideológico, pois não há,
nem nunca houve uma unidade política no discurso sindical (ainda que, em
determinados momentos, haja uma corrente majoritária no movimento), não é pelo fato
de ser feita por trabalhadores, pois hoje os sindicatos tem equipes profissionais para
fazer esta pesquisa, equipes estas, as vezes, com nível técnico semelhante ou superior as
existentes na grande imprensa15, tampouco pelo fato dela se dirigir para os
trabalhadores, pois estes são também receptores da comunicação de massa.16
Porém, quando fala-se em conformar-se com um leitor que pertence ao
mundo do trabalho, ou seja, que trabalha e produz, este discurso entra num campo onde
ele tanto pode reforçar ideologicamente a pragmática do trabalho alienante ("labour"),
base do modo de produção capitalista, ou, num sentido contra-hegemônico, constituir-se
num discurso da práxis desmitificadora do trabalho alienante, em defesa do trabalho
concreto ("work"), base de um projeto transformador. Ou seja, a conceituação da
imprensa sindical deve estar situada no entrecruzamento de seu lugar social (o mundo
15 Já é comum os grandes sindicatos contratarem profissionais com larga experiência na grande imprensa
para trabalharem nos seus departamentos de comunicação. Exemplos: Luiz Fernando Emediato (Sindicato
dos Metalúrgicos de São Paulo e Força Sindical) e Celso Horta (Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo do Campo e Diadema). 16 Lembra-se aqui que dentro da indústria cultural existem os produtos destinados especificamente para
este segmento de trabalhadores. Estes produtos, como os programas populares de rádio, a imprensa
sensacionalista, as telenovelas, etc. são classificados pelos teóricos da comunicação como populares-
massivos.
13
do trabalho) transfigurado numa contraposição ou reforço do discurso hegemônico (o
receptor enquanto trabalhador e não como consumidor). A categoria trabalho assume,
assim, o papel de orquestradora deste discurso, razão pela qual, propõe-se aqui uma
nova proposta de definição conceitual da imprensa sindical: comunicação do mundo do
trabalho.
2.3 - A cultura hegemônica do neoliberalismo
As preocupações expressas nesta tentativa de conceituação da
comunicação sindical remetem para um problema: como constituir uma imprensa
proletária dentro do espaço sindical?
Tendo em vista que o movimento sindical é o espaço onde pode (embora,
na maior parte das vezes, isto não acontece) aflorar conflitos cotidianos do mundo do
trabalho, que a luta sindical - como disse Lênin - era uma luta onde o trabalhador
disputa melhores condições para a venda da sua força de trabalho, significa que o espaço
sindical incorpora dois aspectos importantes: um é a cotidianidade da vida no mundo
do trabalho e o outro é a reelaboração, por parte dos trabalhadores, dos elementos
constitutivos do sistema social capitalista. Está se falando, portanto, de um sistema de
significações sindicais, de uma cultura - enquanto espaço onde, por meio de um
conjunto de processos simbólicos, se compreende, reproduz e transforma a estrutura
social17.
A comunicação sindical só cumprirá um papel de contra-hegemonia a
medida que for gestora de uma cultura de contraposição ao hegemônico, ser gestora da
cultura das classes subalternas. A cultura neoliberal é, segundo Canclini, a reconstrução
do consenso ideológico necessário para estabelecer uma nova hegemonia. Em que bases
se estabele esta nova hegemonia?
Em primeiro lugar, é necessário retomar os princípios da reorganização
do capitalismo na sua fase neoliberal. A desregulamentação da economia, via a redução
do intervencionismo do Estado e a flexibilixação da produção e do consumo cria um
cenário de acirrada competição social e de busca constante de diferenciação.
17 CANCLINI, N.G. Cultura transnacional y culturas populares: bases teorico-metodológicas para la
investigación in: CANCLINI, NG. & RONCAGLIOLO, R. (orgs) Cultura Transnacional y Culturas
populares. Lima, Ipal, 1988
14
A transformação do cenário político-social numa verdadeira lei da selva,
onde a única norma ética é a maximização dos lucros a qualquer custo, manifesta-se,
dentro do mundo da produção, na busca da qualidade total, na expansão espaço-
temporal dos mercados.
Porém, ao pólo de produção corresponde ao pólo do consumo. "Produção
é imediatamente consumo e consumo é produção", conforme afirma Marx.18. Isto
significa que as alterações no modo de produção significam imediatamente alterações no
modo de consumo.
Entende-se consumo como um sistema articulado de necessidades
gestado a partir da organização do modo de produção e não como comportamento
individual ou suprimento de necessidades individuais.19
Este sistema de necessidades cumpre um papel social: a de configurar-se
como forma de distinção social, de diferenciação social. Por isto, o consumo é, no dizer
de Baudrillard, a "extensão organizada das forças produtivas"20 , pois trata-se de uma
manifestação cotidiana da forma de organização da produção. Conforme exemplo dado
por ele mesmo, "uma máquina de lavar roupa serve de utensílio e funciona como
elemento de conforto, de prestígio, etc." 21 É por esta razão que as mercadorias, no
sistema de necessidades, adquirem, além do valor de uso e de troca, o valor simbólico
que é, na verdade, o seu significado social que integra um campo maior - o "habitus" de
classe no conceito de Bordieu:
"o habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e
também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista), o
habitus, a héxis, indica a disposição incorporada, quase postural." 22
Porém, o habitus só se caracteriza para aquele grupo ou fração social se
ele também for reconhecido e caracterizado enquanto tal por outros grupos e classes
sociais. Por isto, ao mesmo tempo que o consumo é lugar de diferenciação, é de unidade
sistêmica.
18 MARX, K. Contribuição à crítica da economia política., Lisboa, Estampa, 1979 19 BAUDRILLARD, J. Sociedade de consumo. Lisboa, Edições 70, 1995, pp. 73-75 20 idem, ibidem, p. 76 21 idem, ibidem, p. 77 22 BORDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand-Brasil, 1989, p.61
15
"Se os membros de uma sociedade não compartilhassem os sentidos dos
bens, se estes só fossem compreensivos à elite ou a maioria que os utiliza, não
serviriam como instrumentos de diferenciação. Um carro importado ou um computador
com novas funções distinguem os seus poucos proprietários a medida que quem não
pode possuí-los conhece o seu significado sociocultural."23
Assim, a cultura hegemônica assenta-se, justamente, na disseminação de
tais valores socioculturais que legitimam as diferenciações gestadas no sistema de
necessidades (e na prática social do consumo). Ideologicamente, esta cultura
hegemônica reconstrói o consumo como satisfação individual de necessidades, tomando
esta prática social como livre-individual e totalmente independente do sistema de
produção a quem cabe, tão somente, o fornecimento dos produtos para o consumo.
Por esta razão, o efêmero e a busca desenfreada pela diferenciação são
as bases da cultura hegemônica. Esta é a reconstrução simbólica do neoliberalismo.
Importante para compreender melhor esta questão é o estudo de David Harvey que faz
um paralelo das correntes das artes plásticas e da arquitetura e as diferentes formas de
organização do modo de produção capitalista.
Dois estudos recentes dão uma breve visão de como isto se manifesta.
Pesquisa da Almapp - Agência de Propaganda, de 1994, aponta as expectativas de
consumo de vários níveis sócio-econômicos, conforme demonstra tabela abaixo:
Escala social Faixa de renda (em
US$)
% da População Consumo desejado
Miseráveis 0 - 135 7,60% Eletrodomésticos
Pobres 136 - 355 21,31% Eletrodomésticos e
vestuário
Baixa Renda 356 - 570 19,81% Vestuário e
Calçados
Baixa Renda Alta 571 a 1.495 34,54% Vestuário,
Eletrônicos e
Eletrodomésticos
23 CANCLINI, N. G. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro, Editora da UERJ, 1995, p. 56
16
Classe Média
Média
1.496 a 2.955 11,32% Vestuário e Carro
Classe Média Alta 2.956 a 7.395 4,46% Carro e Eletrônicos
Ricos Acima de 7.395 0,96% Carro
Observação: as denominações da escala social e as correspondentes faixas de renda
foram propostas pela própria agência que fez a pesquisa.
É possível observar que os níveis sócio-econômicos mais baixos aspiram
bens de consumo voltados para a própria residência (os eletrodomésticos), enquanto que
a medida que se vai subindo de faixa de renda, aparecem bens de consumo com
visibilidade exterior, como automóveis. Já as faixas intermediárias dão importância ao
consumo de vestuário.
Uma outra pesquisa, realizada pelo Dieese (Departamento Intersindical
de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos), em 1995, analisou os hábitos de consumo
das famílias paulistanas, com objetivo de reavaliar a forma de cálculo do Índice de
Custo de Vida feito pela instituição. A POF (Pesquisa de Orçamento Familiar), como foi
chamada esta pesquisa, detectou um aumento no consumo de eletrodomésticos e de
alimentos industrializados (como congelados), principalmente nas faixas mais baixas,.
Sem querer entrar numa análise mais detalhada do porquê destas
mudanças no consumo, o que é importante reter aqui que isto são elementos que
formatam o habitus das classes sociais. Este habitus sinaliza não só para uma
caracterização (diferenciação) perante o todo social, mas também se articula como uma
forma de conhecimento e reprodução da realidade por parte das classes subalternas. E é
aí que entra a necessidade de se conhecer um outro fator: a cotidianidade das classes
subalternas.
Há aqui que se fazer uma advertência. Ao se falar em cotidiano, não se
espera retirar da mera observação empírica de manifestações pontuais do dia-a-dia das
classes subalternas os elementos necessários para compreendê-la. É importante a
afirmação de José Paulo Netto a este respeito:
"O tratamento positivista e neopositivista da cotidianidade consagra sua
imediaticidade como instância da verificabilidade e controle das formulações abstratas
(quando não se reduz a prova destas a equações semânticas), identificando na
17
objetividade dada imediatamente (a pseudoconcreticidade como batizou Kosik) a
concreção da realidade. Nunca será demasiado reiterar que a filiação positivista da
reflexão independe da remissão a uma escola - seja comteana, seja derivação
neokantiana, seja a filosofia analítica, seja o estruturalismo, etc. - mas consiste,
sobretudo, na concepção da faticidade imediata como a fronteira logicizável do
pensamento."24
Em outras palavras, a análise do cotidiano das classes subalternas implica
em considerá-lo como parcela, como singularidade (ainda no dizer de Netto) de um
sistema estruturado de produção.
Falar em cotidiano das classes subalternas implica, necessariamente, em
falar do mundo do trabalho. Este é o centro de sua articulação social: é no trabalho que
as classes subalternas passam a maior parte da sua vida e é o trabalho o centro
organizador da sua vida (inclusive em termos de consumo de bens simbólicos como
"lazer administrado"25; da visão de educação como adestramento para o trabalho e
ascensão social no trabalho; o consumo de determinados bens materiais como
vestimenta para o próprio trabalho, moradia em local de fácil acesso ao trabalho, etc.). É
aqui que reside a grande questão para a gestação da contra-hegemonia: compreender a
essência do cotidiano do mundo do trabalho.
Lukács observou com pertinência que a alienação é fruto da própria
forma de organização do trabalho no capitalismo.26 O estranhamento entre sujeito
produtor e objeto produzido e o fato do trabalhador estar organizado sob e não sobre o
sistema de produção são os principais elementos geradores da alienação no trabalho. Por
esta razão, os movimentos sociais que interrompem esta forma de produção são também
momentos de rompimento do sistema alienante, como as greves.
Porém, a luta economicista desenvolvida pela esmagadora maioria do
movimento sindical brasileiro contemporâneo contribui para a manutenção desta
24 NETTO, José Paulo & CARVALHO, M. C. Brant. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo,
Cortez Editora, 1994, p. 73 25 O conceito de lazer administrado foi proposto pelos teóricos da Escola de Frankfurt. Ver a este
respeito o texto de ADORNO, Th. Tiempo Libre in: Consignas. Buenos Aires, Amorrortu, 1973, pp.
54/63. 26 V. LUKÁCS, G. História e consciência de classe. Porto, Escorpião, 1974. Ver também a dissertação
de mestrado: OLIVEIRA, Dennis. Imprensa sindical, greve e consciência de classe. São Paulo,
ECA/USP, 1992. Neste trabalho, os conceitos de Lukács são aplicados na análise da greve geral de 21 de
julho de 1983 com base nos boletins editados pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do
18
alienação, a medida que limita a perspectiva do proletário ao tipo de trabalho organizado
nestas condições. Um conceito marxista importante que dá melhor entendimento a esta
questão é o da dupla dimensão do trabalho - o trabalho concreto que produz o valor de
uso (work) e o trabalho abstrato (alienado), que produz o valor de troca (labor).
Não questionando o sistema em si, apenas buscando melhores condições
para se submeter a ele, o movimento sindical não consegue sair do plano de labor. É por
esta razão que o movimento sindical, não obstante ter uma ação junto as classes
subalternas no seu cotidiano do mundo do trabalho não consegue gestar uma cultura
popular-alternativa que tenha na recuperação da dimensão concreto do trabalho a sua
centralidade o que levaria a uma contestação ao sistema capitalista e a um projeto de
nova sociedade.27
Assim como o trabalho - nesta dimensão alienante, da labor - é visto
pelas classes subalternas apenas como um meio de sobrevivência (um "mal" necessário),
o sindicalismo também. Por isto que os jornais dos sindicatos são consumidos apenas e
tão somente dentro do universo das fábricas e que o discurso dos mesmos limitam-se a
questões vinculadas as condições de trabalho.
Harvey afirma que o sistema capitalista para se desenvolver econômica e
politicamente precisa de órgãos de regulação que disciplinem a sociedade como um todo
a caminhar para este sentido. Os sindicatos, na visão de Harvey, cumpriram e cumprem
este papel. Ele cita o exemplo do papel dos sindicatos como órgãos homogeinizadores
das condições de trabalho e salário, fundamentais para o desenvolvimento do
capitalismo no período fordista/taylorista/keynessiano. 28 Hoje, o tipo de sindicalismo
que interessa ao neoliberalismo é aquele fragmentado (plural, por empresa) e partícipe
das estratégias do capital. Exemplos claros são as bandeiras de participação dos
trabalhadores nos lucros e resultados levantadas por vários sindicatos que, na prática,
legitima a remuneração flexível do toyotismo.
Voltando a questão do estranhamento, nota-se que esta categoria (como
pólo articulador da alienação) está presente não só no processo laboral, da produção,
Campo e Diadema. 27 Ver a este respeito as análises sobre os dilemas do movimento sindical contemporâneo feitas por
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo
do trabalho. São Paulo, Cortez, 1995. 28 HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 1992.
19
mas também no sistema de diferenciação do consumo. Em outras palavras, a cultura
hegemônica de cristalizar as classes sociais via habitus de consumo legitima o
estranhamento já existente no processo laboral. Portanto, o neoliberalismo será um
sistema de alienação muito mais forte e poderoso. E é com base nesta realidade que se
deve discutir a questão da cultura das classes subalternas.
2.3 - Cultura da classes subalternas
Canclini retoma a discussão do conceito de cultura popular fazendo uma
crítica aos reducionismos antropológico (que reduz o popular ao primitivo), folclorista
(popular como objetos folclóricos) e político (popular como conscientização). Segundo
ele, para se discutir cultura popular é preciso responder, primeiro, a questão: por que
existem culturas populares?
"Nossa hipótese é que existem culturas populares porque a reprodução
desigual da sociedade gera: a-) uma apropriação desigual dos bens econômicos e
culturais por parte de diferentes classes e grupos na produção e no consumo; b-) uma
elaboração própria de suas condições de vida e uma satisfação específica de suas
necessidades nos setores excluídos de participação plena no produto social, e c-) uma
interação conflitiva entre as classes populares com as hegemônicas pela apropriação
dos bens.29
A teoria marxista da reprodução é a que melhor fornece pistas para esta
compreensão, particularmente no que concerne à necessidade do sistema social de
reproduzir suas condições de produção (força de trabalho e relações de produção).
Porém, esta reprodução no campo material só é possível se for consensada (no sentido
gramsciniano) no cotidiano da sociedade. É aqui que entra o papel da cultura
hegemônica.
Quando se fala que a reprodução no campo material é consensada,
entende-se que há hegemonia e também contra-hegemonia, ou o campo do subalterno.
Este campo é fruto, justamente, das contradições do sistema capitalista manifestadas na
cotidianidade das classes subalternas, como a apropriação desigual do consumo (a
sociedade de consumo capitalista nunca caminha para a plena satisfação das
necessidades, ao contrário: tende a criar cada vez mais distinções e carências). O
29 CANCLINI, N. Cultura transnacional ..., p. 49
20
subalterno se contrói, portanto, frente ao hegemônico, é, dialeticamente, produto de e
contrário a ele.
Uma questão que se coloca, por fim, é como este subalterno torna-se
alternativo, ou seja, como esta cultura das classes subalternas rompe o círculo de
reprodução do sistema social, configurando-se num projeto de transformação social - o
momento em que o popular deixa de ficar sob o hegemônico e passa a ficar frente a ele.
Ou ainda, no dizer de Canclini, "o que se necessita para que uma acumulação de
acontecimentos possa transformar as estruturas?"30
A resposta disto está nas categorias de compreensão do cotidiano
propostas por Lukács e sistematizadas por Netto:
"Nenhuma existência individual cancela a cotidianidade, daí que esta
imponha aos indivíduos um padrão de comportamento que apresenta modos típicos de
realização, assentados em características específicas que cristalizam uma modalidade
de ser do ser social no cotidiano, figurada especialmente no pensamento e numa
prática peculiares. Ambos se expressam, liminarmente, num materialismo espontâneo e
num tendencial pragmatismo."31
Interessa aqui reter estas duas categorias da prática cotidiana: o
materialismo espontâneo e o pragmatismo. Estas duas categorias sintetizam o aspecto
heterogêneo, instrumental e imediato da prática cotidiana, enquanto instrumento de
compreensão da realidade. A sua superação, necessária num processo de ruptura ou de
rompimento do ciclo de reprodução do sistema capitalista, não significaria a supressão
do cotidiano (tida como insuprimível por Lukács), mas a sua "suspensão" (conforme
propõe José Paulo Netto) no sentido desta heterogeneidade da prática se transformar em
totalidade consciente. Isto significa transformar o "materialismo espontâneo" em
materialismo dialético-histórico e o "pragmatismo" em práxis. Este é, portanto, o
movimento metodológico da transformação da elevação do subalterno em alternativo.
Esta consideração teórica é importante porque as práticas culturais
subalternas não são, sempre, necessariamente transformadoras. Conforme observou
Canclini, há uma tendência das práticas culturais subalternas serem adaptativas, ou seja,
30 idem, ibidem, p. 64 31 NETTO, José Paulo & CARVALHO, M.C. Brant, op cit, p. 68
21
elementos culturais das classes subalternas são reelaborados de forma que permitam
uma adaptação (e não uma contestação) à cultura hegemônica.
No mundo do trabalho, tal afirmação também é pertinente, pois todo o
universo cultural gestado pelo discurso sindical pode tanto sinalizar para uma cultura
subalterna de contestação ao hegemônico, como de adaptação ao mesmo. E a linha
demarcatória que divide estas duas possibilidades frente ao hegemônico no que tange ao
mundo do trabalho, está justamente na forma de caracterização do trabalho. O trabalho
alienante (labor) ou o trabalho consciente (work).
2.4 - Comunicação popular e cultura das classes subalternas
Quando se fala em comunicação popular, ou mais especificamente, em
comunicação popular do trabalho, é necessário retomar o conceito de cultura das classes
subalternas nos termos gramscinianos. Por isto, a conceituação de cultura das classes
subalternas que mais se encaixa nesta perspectiva é a desenvolvida por Ferreira, que
afirma que o núcleo gerador desta modalidade de cultura são as práticas cotidianas das
classes subalternas na sua confrontação com a cultura hegemônica, ou dominante.32
Em outras palavras, é a partir das práticas cotidianas de resistência à
ofensiva do capital e das suas instituições que as classes subalternas forjam uma cultura
diferenciada, uma cultura que sinaliza para novos valores. É evidente que quando se fala
em cultura, está-se falando também em memória coletiva, história de vida e
determinados elementos de ancestralidade que dá contornos identitários a um grupo.
Chega-se, assim, a uma questão crucial para esta trabalho: quais são os
elementos que formam a identidade de um segmento específico, como, por exemplo, a
classe proletária? E como, a partir destes elementos, se constrói um discurso contra-
hegemônico, ou, no caso específico da classe proletária, a comunicação popular do
trabalho?
A construção de uma identidade é necessária para que determinado grupo
se constitua não só como um grupo diferenciado, mas como um grupo específico. Ser
um grupo diferenciado está muito mais ligado a postura do outro, dos outros grupos ou
segmentos sociais que, para preservar seus privilégios, diferencia os demais. É o caso,
por exemplo, do racismo que é uma manifestação das etnias consideradas superiores.
32 FERREIRA, Maria Nazareth et alli. Globalização e identidade cultural na América Latina. São
22
Porém, para este grupo diferenciado tornar-se um grupo específico, ou
seja, tomar consciência da sua diferença e das suas especificidades enquanto tal, a
construção da identidade é fundamental. Por isto, tem fundamento esta afirmação de
Ferreira:
"Na construção da identidade cultural (nacional), cristaliza-se a
capacidade de um povo de determinar seu próprio destino, seu porvir individual, de
classe e como nação. Nisto consiste a identidade. A identidade de um sujeito individual
ou coletivo é o compasso, a bússola que o orienta através da história. É por isso que
qualquer projeto de dominação utiliza-se do controle psicológico do submetido. A
destruição da identidade é o primeiro passo em qualquer tentativa de dominação: a
colonização da personalidade."33
Por isto, uma modalidade de comunicação popular, que se proponha a ser
contra-hegemônica, tem na construção de uma identidade o seu ponto central. Aliás,
qualquer modalidade de comunicação, na medida em que cria campos mediáticos, de
relação com o receptor, tem na criação de elementos identitários uma das suas maiores
preocupações. Isto é mais marcante ainda no atual contexto da globalização e da
vigência do neoliberalismo, onde há um esvaziamento das estruturas de intermediação
entre as pessoas, com tudo tendo como referência a ação direta do capital. Esta questão
dos campos mediáticos e da ação direta do capital ver-se-á mais adiante.
O que importa reter para complementar a proposta de conceituação da
comunicação popular do trabalho é que ela só se realiza a medida que se proponha
também a criar elementos de identidade entre os seus receptores. Ou seja, que se criem
laços mínimos de identidade e, portanto, de cumplicidade entre emissor e receptor, a fim
de que esta comunicação popular do trabalho tenha o mínimo de legitimidade para se
arvorar como porta-voz de um grupo e entrar na disputa sócio-simbólica contra a
ideologia dominante.
Paulo, Cebela, 1995, pp. 22-23. 33 FERREIRA, Maria Nazareth "Identidade cultural: resistência ou dependência?" in: FERREIRA, M.N.
et alli. Globalização e identidade..., p. 58
23
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Th. Tiempo Libre in: Consignas. Buenos Aires: Amorrortu, 1973
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo in: SADER, E. & GENTILI, P.
(orgs). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. São
Paulo: Paz e Terra, 1995
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1995.
BAUDRILLARD, J. Sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995
BORDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand-Brasil, 1989
CANCLINI, N. G. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora da UERJ,
1995
CANCLINI, N.G. Cultura transnacional y culturas populares: bases teorico-
metodológicas para la investigación in: CANCLINI, NG. & RONCAGLIOLO, R.
(orgs) Cultura Transnacional y Culturas populares. Lima: Ipal, 1988
FERREIRA, M. N., Comunicação e resistência na imprensa proletária. (tese de
livre docência). São Paulo: ECA/USP, 1991
FERREIRA, Maria Nazareth et alli. Globalização e identidade cultural na
América Latina. São Paulo: Cebela, 1995
FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil (1880/1920),
Petrópolis: Vozes, 1978
FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil, São Paulo: Ática,
1987.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
LÊNIN, V. I., Acerca de la prensa, Moscou: Progresso, 1979 (edição em espanhol)
LUKÁCS, G. História e consciência de classe. Porto: Escorpião, 1974
MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. Lisboa: Estampa, 1979
NETTO, José Paulo & CARVALHO, M. C. Brant. Cotidiano: conhecimento e
crítica. São Paulo: Cortez Editora, 1994
OLIVEIRA, Dennis. Imprensa sindical, greve e consciência de classe. São Paulo:
ECA/USP, 1992 (dissertação de mestrado)
RODRIGUES, Adriano. Estratégias da comunicação. Lisboa: Presença, 1992