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1 "IMPRENSA SINDICAL: COMUNICAÇÃO POPULAR DO TRABALHO" Dennis de Oliveira (Professor da Universidade Metodista de Piracicaba) 1 -Justificativa, objetivos e metodologia empregada Este trabalho trata do potencial da comunicação sindical como gestora de uma cultura e discurso contra-hegemônico no âmbito do mundo do trabalho. Este potencial foi avaliado a partir de várias considerações. No contexto geral do capitalismo, o principal aspecto a ser considerado é o neoliberalismo, como doutrina hegemônica do desenvolvimento capitalista. O neoliberalismo, como doutrina, foi formulado em 1944 por Friederich Hayeck (na obra "O caminho da servidão"). Naquela ocasião, o texto de Hayeck era uma crítica mordaz contra o Estado de Bem Estar e a doutrina do Keynessianismo, hegemônicos no mundo capitalista do pós-guerra. Segundo Anderson, "o alvo imediato de Hayeck era o Partido Trabalhista inglês às vésperas da eleição geral de 1945 na Inglaterra." 1 Apesar da contundência da crítica de Hayeck, até 1947, os Estados de Bem Estar Social se consolidaram na Europa. Foi neste momento que Hayeck decidiu articular uma corrente política internacional contra a tendência social-democrata européia e mesmo o New Deal dos Estados Unidos. Os esforços dos liberais não surtiram efeito de início, pois o capitalismo vivia em plena fase de expansão econômica, principalmente nos anos 50 e 60. O "intervencionismo estatal" e as "políticas de bem estar" capitalistas sofrem revés a partir dos anos 70, quando o sistema entra em crise, com queda nas taxas de crescimento e alta nas taxas de inflação. Até meados dos anos 70, segundo Anderson, os remédios para a crise capitalista ainda seguiam os rumos do keynessianismo. Somente com a eleição de Margareth Tatcher, em 1979, na Inglaterra, o neoliberalismo ganha força e parte para ser a corrente hegemônica no mundo capitalista. Ano seguinte, novo reforço para os neoliberais com a eleição de Ronald Reagan para a presidência dos Estados Unidos. Em 1 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo in: SADER, E. & GENTILI, P. (orgs). Pós- neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. São Paulo, Paz e Terra, 1995, p. 9

Dennis de Oliveira (Professor da Universidade Metodista de ... · 1 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo in: SADER, E. & GENTILI, P. (orgs). Pós-neoliberalismo: as políticas

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"IMPRENSA SINDICAL: COMUNICAÇÃO POPULAR DO TRABALHO"

Dennis de Oliveira (Professor da Universidade Metodista de Piracicaba)

1 -Justificativa, objetivos e metodologia empregada

Este trabalho trata do potencial da comunicação sindical como gestora de

uma cultura e discurso contra-hegemônico no âmbito do mundo do trabalho. Este

potencial foi avaliado a partir de várias considerações.

No contexto geral do capitalismo, o principal aspecto a ser considerado é

o neoliberalismo, como doutrina hegemônica do desenvolvimento capitalista. O

neoliberalismo, como doutrina, foi formulado em 1944 por Friederich Hayeck (na obra

"O caminho da servidão"). Naquela ocasião, o texto de Hayeck era uma crítica mordaz

contra o Estado de Bem Estar e a doutrina do Keynessianismo, hegemônicos no mundo

capitalista do pós-guerra. Segundo Anderson,

"o alvo imediato de Hayeck era o Partido Trabalhista inglês às vésperas

da eleição geral de 1945 na Inglaterra."1

Apesar da contundência da crítica de Hayeck, até 1947, os Estados de

Bem Estar Social se consolidaram na Europa. Foi neste momento que Hayeck decidiu

articular uma corrente política internacional contra a tendência social-democrata

européia e mesmo o New Deal dos Estados Unidos. Os esforços dos liberais não

surtiram efeito de início, pois o capitalismo vivia em plena fase de expansão econômica,

principalmente nos anos 50 e 60.

O "intervencionismo estatal" e as "políticas de bem estar" capitalistas

sofrem revés a partir dos anos 70, quando o sistema entra em crise, com queda nas taxas

de crescimento e alta nas taxas de inflação.

Até meados dos anos 70, segundo Anderson, os remédios para a crise

capitalista ainda seguiam os rumos do keynessianismo. Somente com a eleição de

Margareth Tatcher, em 1979, na Inglaterra, o neoliberalismo ganha força e parte para ser

a corrente hegemônica no mundo capitalista. Ano seguinte, novo reforço para os

neoliberais com a eleição de Ronald Reagan para a presidência dos Estados Unidos. Em

1 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo in: SADER, E. & GENTILI, P. (orgs). Pós-

neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. São Paulo, Paz e Terra, 1995, p. 9

2

1982, os liberais vencem na Alemanha Ocidental, através de Helmuth Khol. E assim vão

se seguindo vitórias eleitorais das correntes mais conservadoras no centro do

capitalismo, até a vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria o que o tornou como a

única superpotência mundial.

A vitória desta doutrina político-econômica incorporou e direcionou dois

fatores que completam o contorno do capitalismo contemporâneo: o toyotismo e a

globalização da economia.

O toyotismo foi a forma de organização que substituiu o taylorismo no

modo de produção capitalista. Tem como princípios básicos a flexibilização da

produção (incluindo a jornada e a remuneração do trabalho), o estoque mínimo e a

elitização do consumo.

A globalização da economia foi consequência da forma de

desenvolvimento e apropriação das novas tecnologias - particularmente no campo da

informação - que permitiu uma internacionalização sem precedentes do capital e dos

seus fluxos. As novas tecnologias da informação permitem, hoje, constituir um mundo

conectado e dirigido pelos centros do capital, movimentando mundialmente

informações, mensagens e capital especulativo.

Esta nova configuração do capitalismo - o neoliberalismo - é fundamental

para se compreender as transformações no mundo do trabalho, do consumo, na cultura e

nas possibilidades de resistência contra-hegemônica.

Além desta contextualização mais global, há que se dar importância para

as particularidades do capitalismo brasileiro. Levou-se em consideração os seguintes

fenômenos: o aspecto tardio do capitalismo brasileiro, o caráter dependente e anti-

social, a convivência do capitalismo com um grande exército de reserva de mão de obra,

o que ocasiona freqüentes crises sociais.

Já quanto ao sindicalismo brasileiro, é necessário destacar a sua situação

contraditória de, ao mesmo tempo, ser o representante dos trabalhadores e ter um caráter

institucional, garantido pelo seu poder normativo de estabelecer convenções e acordos

coletivos e estabelecer contribuições compulsórias inclusive para aqueles que pertencem

a sua base mas não são associados.

Finalmente, a última instância considerada neste trabalho foi a da teoria

3

da comunicação. Optou-se pela linha teórica de Adriano Rodrigues2 que considera o

campo da comunicação social como um espaço de intersecção dos vários campos de

mediação social, de operação social da cultura e de ser um dos principais espaços de

sociabilização do indivíduo nos tempos neoliberais, com legitimidade garantida a partir

da construção de laços identitários entre emissor e receptor.

Diante disto, esta trabalho tem como um dos principais objetivos propor

uma metodologia para análise da comunicação sindical, a partir dos seguintes

pressupostos:

a-) Considerar a comunicação como um espaço onde se constróem laços de

identidade entre emissor e receptor, laços estes gestados na confrontação entre as

demandas expressas pelos receptores e a hegemonia exercida pelos emissores, uma vez

que estes últimos tem o poder de reelaborar as demandas de acordo com os seus

objetivos;

b-) Considerar a mensagem como resultante deste processo de mediação

emissor/receptor e que, portanto, expressa demandas reelaboradas e os pontos de

identidade criados para legitimar a relação emissor/receptor;

c-) Considerar o espaço sindical como locus privilegiado para a (re)construção

conceitual da visão de mundo de trabalho e que a comunicação sindical é,

potencialmente, contra-hegemônica a medida que coloca o espaço do trabalho como

lugar de conflito e não de harmonia como prega o discurso da classe dominante;

d-) Considerar que este locus privilegiado tem potencial suficiente para a

gestação de uma cultura contra-hegemônica do trabalho, tendo como um dos principais

vasos comunicantes, a comunicação sindical.

A metodologia proposta e utilizada nesta trabalho combina análise de

emissão, de recepção e de mensagem. Estes três pólos do campo comunicacional,

analisados dentro de uma contextualização social e histórica, apontaram laços

identitários que dão o contorno da comunicação contra-hegemônica do trabalho hoje e

também dos potenciais ainda não explorados desta mesma comunicação. Por isto, é uma

metodologia que não se limita a constatar uma realidade, mas apontar saídas.

Para a aplicação da metodologia, escolheu-se o Sindicato dos Químicos

2 RODRIGUES, Adriano. Estratégias da comunicação. Lisboa, Presença, 1992

4

de Guarulhos por ser este um sindicato que, por não ter nenhuma vinculação com as

atuais correntes do sindicalismo brasileiro - por exemplo, esta entidade sindical não é

filiada a nenhuma central sindical - , busca ter uma definição própria de si mesmo. Além

disto, é importante ressaltar que este sindicato possibilitou e colaborou com a realização

desta trabalho, seja nas entrevistas com os trabalhadores da sua base e com a diretoria,

seja no fornecimento dos materiais necessários para a análise.

Com isto, mais que a análise da comunicação deste sindicato, esta

trabalho visa contribuir para a formulação de uma teoria e uma metodologia que dê

conta da cultura e da comunicação das classes subalternas, um dos principais desafios

dos estudos das ciências da comunicação hoje.

2 - Revisão bibliográfica

Nos últimos anos, vários pesquisadores, especialmente da área de

Comunicação Social, realizaram pesquisas sobre a imprensa sindical. Já não há mais

aquele descompasso entre os estudos de comunicação social e a dimensão da

comunicação produzida pelos sindicatos, pelo menos na proporção em que as primeiras

pesquisas sobre este assunto faziam questão de lembrar.

Nestas recentes pesquisas sobre a comunicação sindical, ou mais

especificamente, sobre os sistemas de comunicação mantidos pelas entidades sindicais,

formularam-se várias propostas conceituais sobre o objeto em questão, além de modelos

metodológicos de análise.

Estas propostas conceituais tendem a se encontrar no aspecto mais geral

de considerar a sociedade capitalista como uma sociedade de exploração da burguesia

sobre o proletariado. Desta forma, a imprensa sindical, em sendo uma imprensa

produzida por organizações voltadas, em tese, a defender os interesses da classe

dominada, cumpriria um papel de constituir um discurso de contraposição à ideologia

dominante.

Se isto, aparentemente, implicaria numa unidade conceitual de imprensa

sindical, na prática, isto não acontece, o que é natural, pois nem mesmo a interpretação

do marxismo enquanto teoria revolucionária é consensual entre os acadêmicos e mesmo

entre as organizações revolucionárias.

5

A divergência principal nas propostas conceituais da imprensa sindical é

quanto a sua dimensão em termos de discurso de contraposição. É um discurso que pode

vir a ser revolucionário, de pregação de uma nova sociedade, de destruição do

capitalismo; é um discurso meramente institucional, produzido por uma instituição

tolerada no seio de uma sociedade de dominação burguesa; é um discurso que constitui

uma nova forma de interação comunicativa diferente da produzida pela comunicação de

massas; é um discurso que cumpre um papel de resistência, sem no entanto, ser

necessariamente revolucionário?

Um dos problemas que se enfrenta ao discutir esta questão é a

singularidade do fenômeno da imprensa sindical no Brasil. Singularidade esta que se

expressa primeiro na sua dimensão objetiva - os sindicatos produzem cerca de 10% de

tudo o que é produzido em termos de material impresso no país, configurando-se num

sistema de comunicação alternativo de porte razoável - e, segundo, nas características

próprias da organização sindical brasileira contemporânea, que combina uma estrutura

oficial, herdada do modelo corporativista imposto no Estado Novo getulista, mas que

comporta na sua direção projetos políticos de superação da realidade de superexploração

do trabalho, uma das características principais da acumulação capitalista brasileira.

Diante disto, faz-se necessário constituir paradigmas teóricos e

estratégias metodológicas de análise que estejam fulcradas na realidade própria do

capitalismo brasileiro, nas formas singulares que se desenvolve a luta de classes no país,

tanto do ponto de vista da exploração por parte das classes dominantes, como da luta

contra esta exploração, por parte das classes dominadas. Sem, claro, rejeitar as

proposições teóricas elaboradas pelos vários estudiosos da comunicação e das lutas

sociais, o primeiro passo para uma análise da imprensa sindical brasileira

contemporânea é a constituição de um novo paradigma teórico e sua conseqüente

estratégia metodológica que dêem conta destas singularidades do capitalismo brasileiro.

2.1 - Imprensa proletária

Maria Nazareth Ferreira foi a pioneira na pesquisa sobre imprensa

sindical. Seu primeiro trabalho, "A imprensa operária no Brasil (1880/1920)"3, analisou

3 Esta pesquisa foi a dissertação de mestrado da profa. Maria Nazareth Ferreira e foi publicada pela

Editora Vozes, em 1978, com o mesmo título.

6

a imprensa dos sindicatos anarquistas no início do século XX, em São Paulo,

particularmente a do sindicato dos gráficos.

Mas o trabalho mais consistente de Ferreira foi a pesquisa que resultou na

tese de livre-docência intitulada Comunicação e resistência na imprensa proletária. É

nesta pesquisa que Ferreira faz uma discussão conceitual consistente sobre a imprensa

produzida pelos sindicatos.

A conceituação proposta por Ferreira parte do pressuposto da existência

de um antagonismo entre a imprensa das classes dominantes e a das classes subalternas.

Segundo ela,

"... A predominância das idéias da classe dominante em sua imprensa

pressupõe o emprego de grande volume de recursos financeiros e tecnologia avançada;

já a imprensa das classes subalternas, que objetiva a resistência às idéias dominantes,

não dispondo dos mesmos recursos, deve pressupor uma organização estruturada e

políticas definidas, para alcançar aqueles propósitos definidos por Lênin."4

Os propósitos de Lênin a que se refere Ferreira são aquelas clássicas três

funções que o líder revolucionário russo defendia para a imprensa do proletariado: ser

um propagandista coletivo, agitador coletivo e organizador coletivo.5 Enfim, para

Ferreira, a imprensa das classes subalternas para ser uma propagandista coletiva,

agitadora coletiva e organizadora coletiva precisa ser produzida por uma organização

estruturada e com políticas definidas. A imprensa das classes subalternas não seria um

fim em si mesma, mas um instrumento de uma organização e uma política que lhe é

anterior.

Por esta razão que a pesquisa de Ferreira desenvolve-se a partir de uma

periodicização histórica da luta da classe operária brasileira. Ou seja, os diversos

momentos históricos da luta de classes do Brasil geraram diferentes formas de

organização da classe operária - inclusive suas táticas e estratégia políticas - formatando

diferentes discursos e formas de comunicação próprias. A periodicização histórica da

imprensa sindical do Brasil proposta por Ferreira - que, se não for a única, é a que serve

4 FERREIRA, M. N., Comunicação e resistência na imprensa proletária. (tese de livre docência), São

Paulo, ECA/USP, 1991, p. 14 5 LÊNIN, V. I., Acerca de la prensa, Moscu, Progresso, 1979 (edição em espanhol)

7

de referência para a esmagadora maioria das pesquisas sobre o tema - tem como suporte

básico a história da luta da classe operária no Brasil.

2.2 - Imprensa operária ou imprensa proletária?

Ferreira coloca que "uma das grandes dificuldades que se enfrenta ao

estudar a imprensa das classes subalternas é a questão da conceituação."6 O problema

da conceituação que Ferreira alerta é quanto ao emprego do termo "imprensa operária".

Aqui, a autora faz uma revisão conceitual, pois os seus primeiros trabalhos sobre a

imprensa dos sindicatos, ela utilizou do termo "imprensa operária"7. Quais são os

problemas que Ferreira aponta na utilização do termo "imprensa operária"?

O primeiro problema é quanto à produção desta imprensa. A primeira

vista, o termo "imprensa operária" significa uma imprensa produzida por operários - se

considerarmos do ponto de vista do emissor - ou que se dirige prioritariamente ao

público operário - se considerarmos do ponto de vista do receptor. Porém, estes dois

pontos de vista são limitados e podem levar a enganos, fato que é reconhecido pela

autora. Isto porque a maioria da imprensa dos sindicatos hoje é produzida por

profissionais especializados contratados pelas entidades e não pelos próprios operários.

Do ponto de vista do receptor, se for considerada "imprensa operária" aquela que é

dirigida especialmente para o público operário, incluir-se-ia nesta categoria os jornais

internos produzidos pelas empresas ("house-organs") e vários produtos da indústria

cultural, como os jornais sensacionalistas.

Sendo assim, Ferreira joga a definição conceitual para um outro campo

que não o do emissor e receptor apenas. O fundamental, para a autora, é o conteúdo

ideológico das mensagens desta imprensa - em última instância é ele o definidor se

determinada imprensa é da classe operária ou não.

Mas e quanto à imprensa sindical? Veja-se esta passagem de Ferreira:

"Esta problemática remete a outra questão: a imprensa partidarista.

Quando se trata de imprensa proletária e de partidos operários, fica difícil desvincular

um termo do outro, principalmente se se levar em conta o fato de que a primeira é

resultado dos segundos e que ambos têm objetivos idênticos. Entretanto, existe um

6 FERREIRA, M. N. Comunicação e resistência... , p. 24 7 Ver FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil (1880/1920), Petrópolis, Vozes,

1978 e da mesma autora A imprensa operária no Brasil, São Paulo, Ática, 1987.

8

outro elemento complicador, o sindicato, que não pode ser analisado senão formando,

com os outros dois elementos, um tripé de suporte da luta da classe trabalhadora: o

jornal, o partido e o sindicato."8

Assim, a conceituação que Ferreira propõe parte de um princípio geral - o

de que o jornal é um dos alicerces de sustentação da luta da classe trabalhadora, junto

com as organizações partidária e sindical, mas numa posição de subordinação - ou seja,

a imprensa é o produto das organizações e não o contrário. Mas, além de produto, ela é

instrumento - se recuperar-se a proposta de Lênin, um dos referenciais da autora - pois o

jornal é também um organizador coletivo.

Mas, ainda voltando a Ferreira:

" O ponto de partida é a expressão imprensa operária. Aqui, nesta

palavra operária, tem início o problema. O conceito de operário nasceu na Europa, no

século passado, derivado do termo 'proletariado', significando, grosso modo, um tipo

de trabalhador pouco qualificado, um trabalhador manual, que tanto poderia exercer

uma atividade urbana como rural. Durante aquele século, esta denominação passa a

ser universalizada na realidade européia. Ao ser transplantada para a América Latina -

e para o Brasil, especificamente - passa, justamente com o emigrante europeu, a ser

popularizada como significando o trabalhador pura e simplesmente. (...) No entanto,

com o desenvolvimento da sociedade e do proletariado, esta expressão torna-se

insuficiente para designar a moderna imprensa das classes subalternas. Neste sentido,

o primeiro passo para resolver o mais agudo problema, mas não todos, é renunciar à

expressão 'imprensa operária' substituindo-a por 'imprensa proletária'" 9.

A mudança de termo proposta por Ferreira está alicerçada no fato de que

os segmentos não hegemônicos do sistema capitalista brasileiro não se limitam aos

trabalhadores braçais urbanos e rurais ("operários"), mas toda uma gama de segmentos

sociais que a autora incorpora no termo "proletariado", designando sua imprensa como

"proletária".

Note-se aqui que a base da conceituação de Ferreira é o conteúdo

ideológico, ou mais que isto, a proposta política. Os termos proletariado e imprensa

proletária não estão ligados diretamente a posições que os atores políticos ou do

8 FERREIRA, M.N. Comunicação e resistência..., p. 25 9 idem, ibidem, p. 29

9

processo comunicacional ocupam na estrutura econômica, mas sim às posições políticas

que defendem ou que a imprensa defende. Em outras palavras, o referencial para

imprensa proletária - para Ferreira - é a luta contra o sistema capitalista.

Assim, todos os setores ou segmentos que lutam contra o sistema

capitalista estão no campo do proletariado e sua imprensa é considerada como

proletária. Por isto, Ferreira afirma que:

"Uma imprensa proletária desdobra-se em imprensa sindicalista,

partidarista, imprensa das associações culturais, das sociedades de bairro, etc. desde

que estas entidades representem, majoritariamente, os interesses das classes

subalternas."10

Esta visão mais ampla de imprensa proletária está nítida numa nota de

rodapé da mesma obra da autora, quando ela explica que...

"outras modalidades da imprensa proletária, tais como imprensa de

mulheres, etc. não serão avaliadas nesta pesquisa."11

Uma outra contribuição importante de Ferreira foi a periodicização

proposta para a história da imprensa proletária. Ela dividiu esta história em cinco

períodos:12

1) Imprensa anarquista - até os anos 30

2) Imprensa sindical-oficial - no período getulista, especialmente no Estado Novo

3) Imprensa partidista - entre os anos 40 e 60, com predomínio do Partido Comunista no

movimento sindical.

4) Imprensa clandestina - durante a ditadura militar, especialmente na vigência do AI-5

(1964/78)

5) Imprensa sindical contemporânea - a partir do final dos anos 70 com a rearticulação

do movimento sindical brasileiro sob a hegemonia do Partido dos Trabalhadores.

Note-se que nesta proposta de periodicização de Ferreira, o elemento

norteador é a direção dos sindicatos, ou seja, os períodos são caracterizados pela

ideologia hegemônica no movimento operário: anarquistas, comunistas, organizações

10 idem, ibidem, p. 29 11 idem, ibidem, p. 30 12 idem, ibidem

10

clandestinas, petistas (partido que teve suas bases originadas na organização sindical),

etc.

Em outras palavras, o fundamental para Ferreira são as estratégias

políticas das organizações políticas operárias, são elas as definidoras do discurso da

imprensa chamada por ela de “proletária”. Por isto, a metodologia de Ferreira,

particularmente no seu último trabalho sobre imprensa sindical, centra-se na análise da

evolução histórica destas organizações, tendo como pano de fundo, as condições

objetivas da luta de classes no Brasil.

Hoje, vários pesquisadores já começam a apontar a necessidade de se

estudar o receptor destes discursos13. A decodificação do discurso sindical por parte dos

trabalhadores passa a ser o elemento de preocupação de várias pesquisas, provavelmente

influenciadas pelas novas tendências que a pesquisa em comunicação vem tomando nos

últimos anos.

Porém, além deste problema da necessidade de se enfocar também o

receptor, no que concerne particularmente à imprensa sindical há algumas questões

ainda em aberto no tocante a definições conceituais e estratégias metodológicas.

A primeira delas refere-se às condições de produção da mensagem, o que

vai além da análise do emissor e transfigura-se para as relações internas e externas

existentes dentro da instituição que emite. Exemplificando, as relações de poder

existentes dentro dos sindicatos, as relações entre as direções e os profissionais que

executam o trabalho; as relações entre as direções e outras instituições sociais (como os

partidos, o Estado e outros movimentos) e mesmo as relações entre as direções e suas

bases. Todo este universo de relações internas e externas configurar-se-ia em um

universo cultural/ideológico do emissor que não se explica apenas pelas opções políticas

ou pelas estratégias de ação que ele, enquanto dirigente sindical, tem. É a partir deste

universo cultural/ideológico que este emissor constrói seus mecanismos de

decodificação e leitura da realidade.

A segunda questão em aberto refere-se às condições de recepção da

mensagem, ou em outras palavras, todas as relações sociais que permeiam a

13 Destaca-se, aqui, os pesquisadores do Centro de Estudos Latino-Americanos de Comunicação e Cultura

que vem desenvolvendo projetos de estudos sobre o consumo cultural das classes subalternas, incluindo

aí, o consumo da mensagem dos sindicatos.

11

recepção/decodificação dos discursos da imprensa sindical por parte dos trabalhadores.

Da mesma forma que um universo de relações internas e externas da instituição

sindicato configuram um universo cultural/ideológico que molda a decodificação da

realidade e, conseqüentemente, o falar sobre esta realidade, no caso do receptor, o

mesmo acontece. O universo de relações sociais que tem o trabalhador/receptor também

moldam a decodificação das mensagens do discurso sindical. Em outras palavras, a

recepção não se constitui, unicamente, numa leitura linear dos discursos por parte do

receptor, mas fundamentalmente, na relação daquele discurso - que já é uma

decodificação da realidade - com o universo cultural/ideológico de quem o recebe.

Tem-se, assim, uma concepção da comunicação como um processo de

mediação e não como uma transmissão linear. Por processo de mediação, entende-se por

um processo social ou de socialização.

Entretanto, não se pode considerar a imprensa sindical como um processo

comunicacional autônomo, próprio, que se descola de outros processos

comunicacionais. Pelo contrário, ela se insere (sem, obviamente, perder as suas

especificidades e singularidades) num contexto processual macro. A sua singularidade

não é a defesa dos interesses dos trabalhadores, pois outras formas de imprensa podem

assumir este papel, às vezes com mais eficiência (como, por exemplo, a imprensa dos

partidos políticos operários). A imprensa sindical enquanto tal, com esta dimensão, é um

fenômeno tipicamente brasileiro, o que não implica que outros países não disponham de

jornais que defendam os interesses dos trabalhadores. Os partidos comunistas europeus,

grosso modo, todos tem jornais de grande alcance social, que formam uma opinião

pública e disputam espaço dentro do sistema de comunicação hegemônico. Outras

instituições de caráter reivindicatório-popular também tem suas formas próprias de

comunicação (como rádios livres, televisão comunitária e jornais comunitários) também

com um discurso de defesa dos interesses das classes trabalhadoras.14 Não é essa,

portanto, a singularidade da imprensa sindical, embora seja uma das suas características.

Esta singularidade deve ser buscada no lugar social onde se desenvolve o

processo comunicacional da imprensa sindical: o mundo do trabalho. É por reação à

exploração do trabalho que surgem e organizam-se os sindicatos (pólo emissor) e é no

14 As organizações revolucionárias da América Central comunicavam-se com a população por meio de

estações de rádio livres. Exemplos: Rádio Sandino, da Nicarágua; Rádio Venceremos, da Frente Farabudo

Marti de Libertação Nacional de El Salvador.

12

universo do trabalho que se dão, prioritariamente, as relações entre os sindicatos e os

trabalhadores. Dentro deste universo do trabalho é que se dá a decodificação da

realidade, tanto por parte do emissor, como por parte do receptor.

A contraposição da imprensa sindical com a grande imprensa, ou a

imprensa hegemônica centra-se nesta singularidade. A imprensa hegemônica, dado o seu

caráter comercial/mercadológico, conforma-se com um receptor constituído como

consumidor de bens simbólicos (ao adquirir o jornal ou revista, um bem simbólico), ou

de bens materiais (ao ser visto como um potencial comprador do que é anunciado no

jornal ou na revista). O mundo do consumo é, portanto, o norteador do discurso da

imprensa hegemônica - o leitor/receptor é tido como sujeito a medida que

potencialmente consome. O mundo do trabalho é o norteador do discurso da imprensa

sindical - o leitor/receptor é tido como sujeito a medida que potencialmente trabalha e

produz. É esta a contraposição que distingue, que singulariza a imprensa sindical das

demais formas de comunicação. Não é o seu projeto político/ideológico, pois não há,

nem nunca houve uma unidade política no discurso sindical (ainda que, em

determinados momentos, haja uma corrente majoritária no movimento), não é pelo fato

de ser feita por trabalhadores, pois hoje os sindicatos tem equipes profissionais para

fazer esta pesquisa, equipes estas, as vezes, com nível técnico semelhante ou superior as

existentes na grande imprensa15, tampouco pelo fato dela se dirigir para os

trabalhadores, pois estes são também receptores da comunicação de massa.16

Porém, quando fala-se em conformar-se com um leitor que pertence ao

mundo do trabalho, ou seja, que trabalha e produz, este discurso entra num campo onde

ele tanto pode reforçar ideologicamente a pragmática do trabalho alienante ("labour"),

base do modo de produção capitalista, ou, num sentido contra-hegemônico, constituir-se

num discurso da práxis desmitificadora do trabalho alienante, em defesa do trabalho

concreto ("work"), base de um projeto transformador. Ou seja, a conceituação da

imprensa sindical deve estar situada no entrecruzamento de seu lugar social (o mundo

15 Já é comum os grandes sindicatos contratarem profissionais com larga experiência na grande imprensa

para trabalharem nos seus departamentos de comunicação. Exemplos: Luiz Fernando Emediato (Sindicato

dos Metalúrgicos de São Paulo e Força Sindical) e Celso Horta (Sindicato dos Metalúrgicos de São

Bernardo do Campo e Diadema). 16 Lembra-se aqui que dentro da indústria cultural existem os produtos destinados especificamente para

este segmento de trabalhadores. Estes produtos, como os programas populares de rádio, a imprensa

sensacionalista, as telenovelas, etc. são classificados pelos teóricos da comunicação como populares-

massivos.

13

do trabalho) transfigurado numa contraposição ou reforço do discurso hegemônico (o

receptor enquanto trabalhador e não como consumidor). A categoria trabalho assume,

assim, o papel de orquestradora deste discurso, razão pela qual, propõe-se aqui uma

nova proposta de definição conceitual da imprensa sindical: comunicação do mundo do

trabalho.

2.3 - A cultura hegemônica do neoliberalismo

As preocupações expressas nesta tentativa de conceituação da

comunicação sindical remetem para um problema: como constituir uma imprensa

proletária dentro do espaço sindical?

Tendo em vista que o movimento sindical é o espaço onde pode (embora,

na maior parte das vezes, isto não acontece) aflorar conflitos cotidianos do mundo do

trabalho, que a luta sindical - como disse Lênin - era uma luta onde o trabalhador

disputa melhores condições para a venda da sua força de trabalho, significa que o espaço

sindical incorpora dois aspectos importantes: um é a cotidianidade da vida no mundo

do trabalho e o outro é a reelaboração, por parte dos trabalhadores, dos elementos

constitutivos do sistema social capitalista. Está se falando, portanto, de um sistema de

significações sindicais, de uma cultura - enquanto espaço onde, por meio de um

conjunto de processos simbólicos, se compreende, reproduz e transforma a estrutura

social17.

A comunicação sindical só cumprirá um papel de contra-hegemonia a

medida que for gestora de uma cultura de contraposição ao hegemônico, ser gestora da

cultura das classes subalternas. A cultura neoliberal é, segundo Canclini, a reconstrução

do consenso ideológico necessário para estabelecer uma nova hegemonia. Em que bases

se estabele esta nova hegemonia?

Em primeiro lugar, é necessário retomar os princípios da reorganização

do capitalismo na sua fase neoliberal. A desregulamentação da economia, via a redução

do intervencionismo do Estado e a flexibilixação da produção e do consumo cria um

cenário de acirrada competição social e de busca constante de diferenciação.

17 CANCLINI, N.G. Cultura transnacional y culturas populares: bases teorico-metodológicas para la

investigación in: CANCLINI, NG. & RONCAGLIOLO, R. (orgs) Cultura Transnacional y Culturas

populares. Lima, Ipal, 1988

14

A transformação do cenário político-social numa verdadeira lei da selva,

onde a única norma ética é a maximização dos lucros a qualquer custo, manifesta-se,

dentro do mundo da produção, na busca da qualidade total, na expansão espaço-

temporal dos mercados.

Porém, ao pólo de produção corresponde ao pólo do consumo. "Produção

é imediatamente consumo e consumo é produção", conforme afirma Marx.18. Isto

significa que as alterações no modo de produção significam imediatamente alterações no

modo de consumo.

Entende-se consumo como um sistema articulado de necessidades

gestado a partir da organização do modo de produção e não como comportamento

individual ou suprimento de necessidades individuais.19

Este sistema de necessidades cumpre um papel social: a de configurar-se

como forma de distinção social, de diferenciação social. Por isto, o consumo é, no dizer

de Baudrillard, a "extensão organizada das forças produtivas"20 , pois trata-se de uma

manifestação cotidiana da forma de organização da produção. Conforme exemplo dado

por ele mesmo, "uma máquina de lavar roupa serve de utensílio e funciona como

elemento de conforto, de prestígio, etc." 21 É por esta razão que as mercadorias, no

sistema de necessidades, adquirem, além do valor de uso e de troca, o valor simbólico

que é, na verdade, o seu significado social que integra um campo maior - o "habitus" de

classe no conceito de Bordieu:

"o habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e

também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista), o

habitus, a héxis, indica a disposição incorporada, quase postural." 22

Porém, o habitus só se caracteriza para aquele grupo ou fração social se

ele também for reconhecido e caracterizado enquanto tal por outros grupos e classes

sociais. Por isto, ao mesmo tempo que o consumo é lugar de diferenciação, é de unidade

sistêmica.

18 MARX, K. Contribuição à crítica da economia política., Lisboa, Estampa, 1979 19 BAUDRILLARD, J. Sociedade de consumo. Lisboa, Edições 70, 1995, pp. 73-75 20 idem, ibidem, p. 76 21 idem, ibidem, p. 77 22 BORDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand-Brasil, 1989, p.61

15

"Se os membros de uma sociedade não compartilhassem os sentidos dos

bens, se estes só fossem compreensivos à elite ou a maioria que os utiliza, não

serviriam como instrumentos de diferenciação. Um carro importado ou um computador

com novas funções distinguem os seus poucos proprietários a medida que quem não

pode possuí-los conhece o seu significado sociocultural."23

Assim, a cultura hegemônica assenta-se, justamente, na disseminação de

tais valores socioculturais que legitimam as diferenciações gestadas no sistema de

necessidades (e na prática social do consumo). Ideologicamente, esta cultura

hegemônica reconstrói o consumo como satisfação individual de necessidades, tomando

esta prática social como livre-individual e totalmente independente do sistema de

produção a quem cabe, tão somente, o fornecimento dos produtos para o consumo.

Por esta razão, o efêmero e a busca desenfreada pela diferenciação são

as bases da cultura hegemônica. Esta é a reconstrução simbólica do neoliberalismo.

Importante para compreender melhor esta questão é o estudo de David Harvey que faz

um paralelo das correntes das artes plásticas e da arquitetura e as diferentes formas de

organização do modo de produção capitalista.

Dois estudos recentes dão uma breve visão de como isto se manifesta.

Pesquisa da Almapp - Agência de Propaganda, de 1994, aponta as expectativas de

consumo de vários níveis sócio-econômicos, conforme demonstra tabela abaixo:

Escala social Faixa de renda (em

US$)

% da População Consumo desejado

Miseráveis 0 - 135 7,60% Eletrodomésticos

Pobres 136 - 355 21,31% Eletrodomésticos e

vestuário

Baixa Renda 356 - 570 19,81% Vestuário e

Calçados

Baixa Renda Alta 571 a 1.495 34,54% Vestuário,

Eletrônicos e

Eletrodomésticos

23 CANCLINI, N. G. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro, Editora da UERJ, 1995, p. 56

16

Classe Média

Média

1.496 a 2.955 11,32% Vestuário e Carro

Classe Média Alta 2.956 a 7.395 4,46% Carro e Eletrônicos

Ricos Acima de 7.395 0,96% Carro

Observação: as denominações da escala social e as correspondentes faixas de renda

foram propostas pela própria agência que fez a pesquisa.

É possível observar que os níveis sócio-econômicos mais baixos aspiram

bens de consumo voltados para a própria residência (os eletrodomésticos), enquanto que

a medida que se vai subindo de faixa de renda, aparecem bens de consumo com

visibilidade exterior, como automóveis. Já as faixas intermediárias dão importância ao

consumo de vestuário.

Uma outra pesquisa, realizada pelo Dieese (Departamento Intersindical

de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos), em 1995, analisou os hábitos de consumo

das famílias paulistanas, com objetivo de reavaliar a forma de cálculo do Índice de

Custo de Vida feito pela instituição. A POF (Pesquisa de Orçamento Familiar), como foi

chamada esta pesquisa, detectou um aumento no consumo de eletrodomésticos e de

alimentos industrializados (como congelados), principalmente nas faixas mais baixas,.

Sem querer entrar numa análise mais detalhada do porquê destas

mudanças no consumo, o que é importante reter aqui que isto são elementos que

formatam o habitus das classes sociais. Este habitus sinaliza não só para uma

caracterização (diferenciação) perante o todo social, mas também se articula como uma

forma de conhecimento e reprodução da realidade por parte das classes subalternas. E é

aí que entra a necessidade de se conhecer um outro fator: a cotidianidade das classes

subalternas.

Há aqui que se fazer uma advertência. Ao se falar em cotidiano, não se

espera retirar da mera observação empírica de manifestações pontuais do dia-a-dia das

classes subalternas os elementos necessários para compreendê-la. É importante a

afirmação de José Paulo Netto a este respeito:

"O tratamento positivista e neopositivista da cotidianidade consagra sua

imediaticidade como instância da verificabilidade e controle das formulações abstratas

(quando não se reduz a prova destas a equações semânticas), identificando na

17

objetividade dada imediatamente (a pseudoconcreticidade como batizou Kosik) a

concreção da realidade. Nunca será demasiado reiterar que a filiação positivista da

reflexão independe da remissão a uma escola - seja comteana, seja derivação

neokantiana, seja a filosofia analítica, seja o estruturalismo, etc. - mas consiste,

sobretudo, na concepção da faticidade imediata como a fronteira logicizável do

pensamento."24

Em outras palavras, a análise do cotidiano das classes subalternas implica

em considerá-lo como parcela, como singularidade (ainda no dizer de Netto) de um

sistema estruturado de produção.

Falar em cotidiano das classes subalternas implica, necessariamente, em

falar do mundo do trabalho. Este é o centro de sua articulação social: é no trabalho que

as classes subalternas passam a maior parte da sua vida e é o trabalho o centro

organizador da sua vida (inclusive em termos de consumo de bens simbólicos como

"lazer administrado"25; da visão de educação como adestramento para o trabalho e

ascensão social no trabalho; o consumo de determinados bens materiais como

vestimenta para o próprio trabalho, moradia em local de fácil acesso ao trabalho, etc.). É

aqui que reside a grande questão para a gestação da contra-hegemonia: compreender a

essência do cotidiano do mundo do trabalho.

Lukács observou com pertinência que a alienação é fruto da própria

forma de organização do trabalho no capitalismo.26 O estranhamento entre sujeito

produtor e objeto produzido e o fato do trabalhador estar organizado sob e não sobre o

sistema de produção são os principais elementos geradores da alienação no trabalho. Por

esta razão, os movimentos sociais que interrompem esta forma de produção são também

momentos de rompimento do sistema alienante, como as greves.

Porém, a luta economicista desenvolvida pela esmagadora maioria do

movimento sindical brasileiro contemporâneo contribui para a manutenção desta

24 NETTO, José Paulo & CARVALHO, M. C. Brant. Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo,

Cortez Editora, 1994, p. 73 25 O conceito de lazer administrado foi proposto pelos teóricos da Escola de Frankfurt. Ver a este

respeito o texto de ADORNO, Th. Tiempo Libre in: Consignas. Buenos Aires, Amorrortu, 1973, pp.

54/63. 26 V. LUKÁCS, G. História e consciência de classe. Porto, Escorpião, 1974. Ver também a dissertação

de mestrado: OLIVEIRA, Dennis. Imprensa sindical, greve e consciência de classe. São Paulo,

ECA/USP, 1992. Neste trabalho, os conceitos de Lukács são aplicados na análise da greve geral de 21 de

julho de 1983 com base nos boletins editados pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do

18

alienação, a medida que limita a perspectiva do proletário ao tipo de trabalho organizado

nestas condições. Um conceito marxista importante que dá melhor entendimento a esta

questão é o da dupla dimensão do trabalho - o trabalho concreto que produz o valor de

uso (work) e o trabalho abstrato (alienado), que produz o valor de troca (labor).

Não questionando o sistema em si, apenas buscando melhores condições

para se submeter a ele, o movimento sindical não consegue sair do plano de labor. É por

esta razão que o movimento sindical, não obstante ter uma ação junto as classes

subalternas no seu cotidiano do mundo do trabalho não consegue gestar uma cultura

popular-alternativa que tenha na recuperação da dimensão concreto do trabalho a sua

centralidade o que levaria a uma contestação ao sistema capitalista e a um projeto de

nova sociedade.27

Assim como o trabalho - nesta dimensão alienante, da labor - é visto

pelas classes subalternas apenas como um meio de sobrevivência (um "mal" necessário),

o sindicalismo também. Por isto que os jornais dos sindicatos são consumidos apenas e

tão somente dentro do universo das fábricas e que o discurso dos mesmos limitam-se a

questões vinculadas as condições de trabalho.

Harvey afirma que o sistema capitalista para se desenvolver econômica e

politicamente precisa de órgãos de regulação que disciplinem a sociedade como um todo

a caminhar para este sentido. Os sindicatos, na visão de Harvey, cumpriram e cumprem

este papel. Ele cita o exemplo do papel dos sindicatos como órgãos homogeinizadores

das condições de trabalho e salário, fundamentais para o desenvolvimento do

capitalismo no período fordista/taylorista/keynessiano. 28 Hoje, o tipo de sindicalismo

que interessa ao neoliberalismo é aquele fragmentado (plural, por empresa) e partícipe

das estratégias do capital. Exemplos claros são as bandeiras de participação dos

trabalhadores nos lucros e resultados levantadas por vários sindicatos que, na prática,

legitima a remuneração flexível do toyotismo.

Voltando a questão do estranhamento, nota-se que esta categoria (como

pólo articulador da alienação) está presente não só no processo laboral, da produção,

Campo e Diadema. 27 Ver a este respeito as análises sobre os dilemas do movimento sindical contemporâneo feitas por

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo

do trabalho. São Paulo, Cortez, 1995. 28 HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 1992.

19

mas também no sistema de diferenciação do consumo. Em outras palavras, a cultura

hegemônica de cristalizar as classes sociais via habitus de consumo legitima o

estranhamento já existente no processo laboral. Portanto, o neoliberalismo será um

sistema de alienação muito mais forte e poderoso. E é com base nesta realidade que se

deve discutir a questão da cultura das classes subalternas.

2.3 - Cultura da classes subalternas

Canclini retoma a discussão do conceito de cultura popular fazendo uma

crítica aos reducionismos antropológico (que reduz o popular ao primitivo), folclorista

(popular como objetos folclóricos) e político (popular como conscientização). Segundo

ele, para se discutir cultura popular é preciso responder, primeiro, a questão: por que

existem culturas populares?

"Nossa hipótese é que existem culturas populares porque a reprodução

desigual da sociedade gera: a-) uma apropriação desigual dos bens econômicos e

culturais por parte de diferentes classes e grupos na produção e no consumo; b-) uma

elaboração própria de suas condições de vida e uma satisfação específica de suas

necessidades nos setores excluídos de participação plena no produto social, e c-) uma

interação conflitiva entre as classes populares com as hegemônicas pela apropriação

dos bens.29

A teoria marxista da reprodução é a que melhor fornece pistas para esta

compreensão, particularmente no que concerne à necessidade do sistema social de

reproduzir suas condições de produção (força de trabalho e relações de produção).

Porém, esta reprodução no campo material só é possível se for consensada (no sentido

gramsciniano) no cotidiano da sociedade. É aqui que entra o papel da cultura

hegemônica.

Quando se fala que a reprodução no campo material é consensada,

entende-se que há hegemonia e também contra-hegemonia, ou o campo do subalterno.

Este campo é fruto, justamente, das contradições do sistema capitalista manifestadas na

cotidianidade das classes subalternas, como a apropriação desigual do consumo (a

sociedade de consumo capitalista nunca caminha para a plena satisfação das

necessidades, ao contrário: tende a criar cada vez mais distinções e carências). O

29 CANCLINI, N. Cultura transnacional ..., p. 49

20

subalterno se contrói, portanto, frente ao hegemônico, é, dialeticamente, produto de e

contrário a ele.

Uma questão que se coloca, por fim, é como este subalterno torna-se

alternativo, ou seja, como esta cultura das classes subalternas rompe o círculo de

reprodução do sistema social, configurando-se num projeto de transformação social - o

momento em que o popular deixa de ficar sob o hegemônico e passa a ficar frente a ele.

Ou ainda, no dizer de Canclini, "o que se necessita para que uma acumulação de

acontecimentos possa transformar as estruturas?"30

A resposta disto está nas categorias de compreensão do cotidiano

propostas por Lukács e sistematizadas por Netto:

"Nenhuma existência individual cancela a cotidianidade, daí que esta

imponha aos indivíduos um padrão de comportamento que apresenta modos típicos de

realização, assentados em características específicas que cristalizam uma modalidade

de ser do ser social no cotidiano, figurada especialmente no pensamento e numa

prática peculiares. Ambos se expressam, liminarmente, num materialismo espontâneo e

num tendencial pragmatismo."31

Interessa aqui reter estas duas categorias da prática cotidiana: o

materialismo espontâneo e o pragmatismo. Estas duas categorias sintetizam o aspecto

heterogêneo, instrumental e imediato da prática cotidiana, enquanto instrumento de

compreensão da realidade. A sua superação, necessária num processo de ruptura ou de

rompimento do ciclo de reprodução do sistema capitalista, não significaria a supressão

do cotidiano (tida como insuprimível por Lukács), mas a sua "suspensão" (conforme

propõe José Paulo Netto) no sentido desta heterogeneidade da prática se transformar em

totalidade consciente. Isto significa transformar o "materialismo espontâneo" em

materialismo dialético-histórico e o "pragmatismo" em práxis. Este é, portanto, o

movimento metodológico da transformação da elevação do subalterno em alternativo.

Esta consideração teórica é importante porque as práticas culturais

subalternas não são, sempre, necessariamente transformadoras. Conforme observou

Canclini, há uma tendência das práticas culturais subalternas serem adaptativas, ou seja,

30 idem, ibidem, p. 64 31 NETTO, José Paulo & CARVALHO, M.C. Brant, op cit, p. 68

21

elementos culturais das classes subalternas são reelaborados de forma que permitam

uma adaptação (e não uma contestação) à cultura hegemônica.

No mundo do trabalho, tal afirmação também é pertinente, pois todo o

universo cultural gestado pelo discurso sindical pode tanto sinalizar para uma cultura

subalterna de contestação ao hegemônico, como de adaptação ao mesmo. E a linha

demarcatória que divide estas duas possibilidades frente ao hegemônico no que tange ao

mundo do trabalho, está justamente na forma de caracterização do trabalho. O trabalho

alienante (labor) ou o trabalho consciente (work).

2.4 - Comunicação popular e cultura das classes subalternas

Quando se fala em comunicação popular, ou mais especificamente, em

comunicação popular do trabalho, é necessário retomar o conceito de cultura das classes

subalternas nos termos gramscinianos. Por isto, a conceituação de cultura das classes

subalternas que mais se encaixa nesta perspectiva é a desenvolvida por Ferreira, que

afirma que o núcleo gerador desta modalidade de cultura são as práticas cotidianas das

classes subalternas na sua confrontação com a cultura hegemônica, ou dominante.32

Em outras palavras, é a partir das práticas cotidianas de resistência à

ofensiva do capital e das suas instituições que as classes subalternas forjam uma cultura

diferenciada, uma cultura que sinaliza para novos valores. É evidente que quando se fala

em cultura, está-se falando também em memória coletiva, história de vida e

determinados elementos de ancestralidade que dá contornos identitários a um grupo.

Chega-se, assim, a uma questão crucial para esta trabalho: quais são os

elementos que formam a identidade de um segmento específico, como, por exemplo, a

classe proletária? E como, a partir destes elementos, se constrói um discurso contra-

hegemônico, ou, no caso específico da classe proletária, a comunicação popular do

trabalho?

A construção de uma identidade é necessária para que determinado grupo

se constitua não só como um grupo diferenciado, mas como um grupo específico. Ser

um grupo diferenciado está muito mais ligado a postura do outro, dos outros grupos ou

segmentos sociais que, para preservar seus privilégios, diferencia os demais. É o caso,

por exemplo, do racismo que é uma manifestação das etnias consideradas superiores.

32 FERREIRA, Maria Nazareth et alli. Globalização e identidade cultural na América Latina. São

22

Porém, para este grupo diferenciado tornar-se um grupo específico, ou

seja, tomar consciência da sua diferença e das suas especificidades enquanto tal, a

construção da identidade é fundamental. Por isto, tem fundamento esta afirmação de

Ferreira:

"Na construção da identidade cultural (nacional), cristaliza-se a

capacidade de um povo de determinar seu próprio destino, seu porvir individual, de

classe e como nação. Nisto consiste a identidade. A identidade de um sujeito individual

ou coletivo é o compasso, a bússola que o orienta através da história. É por isso que

qualquer projeto de dominação utiliza-se do controle psicológico do submetido. A

destruição da identidade é o primeiro passo em qualquer tentativa de dominação: a

colonização da personalidade."33

Por isto, uma modalidade de comunicação popular, que se proponha a ser

contra-hegemônica, tem na construção de uma identidade o seu ponto central. Aliás,

qualquer modalidade de comunicação, na medida em que cria campos mediáticos, de

relação com o receptor, tem na criação de elementos identitários uma das suas maiores

preocupações. Isto é mais marcante ainda no atual contexto da globalização e da

vigência do neoliberalismo, onde há um esvaziamento das estruturas de intermediação

entre as pessoas, com tudo tendo como referência a ação direta do capital. Esta questão

dos campos mediáticos e da ação direta do capital ver-se-á mais adiante.

O que importa reter para complementar a proposta de conceituação da

comunicação popular do trabalho é que ela só se realiza a medida que se proponha

também a criar elementos de identidade entre os seus receptores. Ou seja, que se criem

laços mínimos de identidade e, portanto, de cumplicidade entre emissor e receptor, a fim

de que esta comunicação popular do trabalho tenha o mínimo de legitimidade para se

arvorar como porta-voz de um grupo e entrar na disputa sócio-simbólica contra a

ideologia dominante.

Paulo, Cebela, 1995, pp. 22-23. 33 FERREIRA, Maria Nazareth "Identidade cultural: resistência ou dependência?" in: FERREIRA, M.N.

et alli. Globalização e identidade..., p. 58

23

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