Depend en CIA Quimica Tese Final

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ALESSANDRA NAGAMINE BONADIO

O PROCESSO DE REABILITAO PSICOSSOCIAL DE DEPENDENTES QUMICOS : estudo qualitativo em uma residncia teraputica

Tese apresentada Universidade Federal de So Paulo Escola Paulista de Medicina, para a obteno do ttulo de Doutor em Cincias. Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Laranjeira Co-orientador: Prof. Dr. Cssio Silveira

So Paulo 2010

Bonadio, Alessandra Nagamine Reabilitao Psicossocial de dependentes qumicos: estudo qualitativo em uma residncia teraputica / Alessandra Nagamine Bonadio. So Paulo, 2010. x, 204f. Tese (Doutorado) Universidade Federal de So Paulo. Escola Paulista de Medicina. Programa de Ps-graduao em Psiquiatria. Ttulo em ingls: Psychosocial Rehabilitation of substance abusers: qualitative research in a therapeutic residence. 1. Transtornos relacionados ao uso de substncias. 2. Reabilitao psicossocial. 3. Reabilitao vocacional. 4. Residncia teraputica. 5. Pesquisa qualitativa.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO ESCOLA PAULISTA DE MEDICINA DEPARTAMENTO DE PSIQUIATRIA

Chefe do Departamento: Profa. Dra. Julieta Freitas Ramalho da Silva Coordenador do Curso de Ps-Graduao: Prof. Dr. Jair de Jesus Mari

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Alessandra Nagamine Bonadio

O PROCESSO DE REABILITAO PSICOSSOCIAL DE DEPENDENTES QUMICOS :

estudo qualitativo em uma residncia teraputica

BANCA EXAMINADORA Profa. Dra. Mara Helena de Andrea Gomes Profa. Dra. Maria Luisa Sandoval Schmidt Profa. Dra. Adriana Marcondes Machado Profa. Dra. Maria da Conceio Coropos Uvaldo Profa. Dra. Andria de Ftima Nascimento (suplente) Prof. Dr. Marcelo Ribeiro de Arajo (suplente)

Aprovada em ___/___/___

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DEDICATRIA

A todos que lutam por retomar a liberdade perdida para a dependncia qumica.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Ronaldo Laranjeira, pela autonomia e confiana conferidas em todo o curso desta pesquisa. Ao mestre e amigo Cssio Silveira, pela disponibilidade com que contribuiu em minha formao acadmica, a partir deste trabalho. Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, pelo apoio tcnico e financeiro disponibilizados, fundamentais viabilizao deste Doutorado (Processo n 05/53982-9). Professora Mara de Andrea Gomes, pelas inspiradoras aulas da ps-graduao e pelas contribuies importantes do exame de qualificao. A Adriana Marcondes Machado, pelo contgio criativo das supervises. Com voc, aprendi a trocar oAbsurdo! pelo Estranho..., o Porque pelo E. Que diferena fez! querida Conceio Uvaldo, incentivadora constante, deste e de outros tempos. A Mariana Brykman e Rosa Quintas, pelo precioso suporte de todos os dias. A Keila Pavani, por me acompanhar anos a fio, em perodos turbulentos, intensos, importantes. Anos de plantio e trabalho conjunto, aqui tambm expressos. A Paulo Bloise, obrigada pelo apoio atento, cuidadoso e criativo destes ltimos mesesanos. Foi realmente fundamental! A Fernanda Ramos e Siglia Leo, parceiras de todas as horas, pelas ajudas diversas e precisas, que s os bons amigos sabem dar. A Dona Geralda Matta, pela cuidadosa reviso do texto, pelas gostosas horas de tric e fuxico e tambm pelas oraes. A meus pais, Glria e Jos Roberto, e ao time todo: Tatiana, Fabiano, Rosamlia e Tiago, pelo presente de pertencer a esta famlia. Como bom t-los por perto! Aos participantes do estudo, pela disponibilidade e generosidade com que partilharam este momento delicado de suas vidas. A Joo Matta, meu amor, pela luminosa parceria de vida.

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SUMRIO Dedicatria .................................................................................................................. v Agradecimentos ........................................................................................................... vi Lista de siglas ............................................................................................................... ix Resumo ........................................................................................................................ x 1. APRESENTAO (o nimo da pesquisa) .................................................................... 2 1.1 Do projeto original s mudanas do percurso: construindo o olhar da pesquisa ........ 2 1.2 O problema da pesquisa .......................................................................................... 7 1.3 Justificativa: o contexto do problema ...................................................................... 7 1.4 Objetivos de pesquisa ............................................................................................. 92. CONTEXTO (cenrio nacional e internacional) ........................................................... 11 2.1 Reabilitao psicossocial e recuperao ........................................................................ 12 2.2 Reabilitao vocacional: uma prtica corrente em mbito internacional ...................... 24 2.3 Diretrizes do governo brasileiro para o tratamento da dependncia qumica .............. 30 3. PROCEDIMENTOS (a construo do campo) ........................................................

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3.1 A busca por um servio para sediar a interveno da pesquisa ............................... 39 3.2 A seleo dos participantes do estudo .................................................................. 42 3.3 Recursos metodolgicos utilizados ....................................................................... 43 3.4 Tratamento dos Dados ......................................................................................... 53 3.5 Aspectos ticos ..................................................................................................... 58 4. O CAMPO (cenrio e atores) .................................................................................. 60 4.1 A Casa .................................................................................................................. 60 4.2 A equipe tcnica .................................................................................................. 72 4.3 Os participantes do estudo ................................................................................... 76 5. CAMPOS TERICOS E CAMPO EMPRICO ................................................... 88(saberes que embasam este estudo e saberes gerados em campo, em dilogo)

5.1 DEPENDNCIA QUMICA ........................................................................................ 88 5.1.1 O processo sade-doena segundo Georges Canguilhem ..................................... 88 5.1.2 Construo histrica do conceito de dependncia qumica ................................ 100 5.1.3 Classificao nosolgica: uso, abuso e dependncia .......................................... 103 5.1.4 Da classificao nosolgica compreenso dinmica ......................................... 105 5.1.5 As adies como sintoma social da contemporaneidade .................................... 116 5.2 RECURSOS TERAPUTICOS .................................................................................... 123

5.2.1 Princpios gerais do tratamento em dependncia qumica .................................. 1235.2.2 O programa dos Doze Passos ........................................................................... 125

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5.2.3 As residncias teraputicas ............................................................................... 130 5.2.4 Percursos teraputicos prvios ......................................................................... 132 5.2.5 A centralidade do dispositivo grupal no tratamento das adies ...................... 137 5.2.6 O processo de reabilitao psicossocial e de recuperao na Casa .................... 142 5.3 TRABALHO ......................................................................................................... 148 5.3.1 A crise das identidades por Claude Dubar ........................................................ 148 5.3.2 Trabalho na atualidade: repercusses sobre as identidades estabelecidas .......... 1575.3.3 A dependncia qumica como fonte de trabalho para quem est em recuperao.... 168

5.4 A finalizao da etapa de campo: dificuldades enfrentadas................................... 172 6. PS-CAMPO (desfechos conhecidos) .......................................................................... 174 7. DISCUSSO (do campo vivenciado ao campo refletido) ......................................... 178 8. CONSIDERAES FINAIS ................................................................................... 185 9. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................... 187 Abstract

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LISTA DE SIGLAS

AA Alcolicos Annimos CAPS Centro de Ateno Psicossocial CAPS-ad Centro de Ateno Psicossocial para lcool e Drogas CECCO Centro de Convivncia e Cooperativas CEP Comit de tica em Pesquisa DQ Dependncia Qumica FEBEM Fundao Estadual para o Bem Estar do Menor FEBRACT Federao Brasileira de Comunidades Teraputicas IPS Individual Placement Support MS Ministrio da Sade MTE Ministrio do Trabalho e do Emprego NA Narcticos Annimos PACS Programa de Agentes Comunitrios de Sade PAS Plano de Ateno Sade PEAD Preveno em lcool e outras Drogas PSF Programa de Sade da Famlia SENAES Secretaria Nacional de Economia Solidria SRT Servio Residencial Teraputico SUS Sistema nico de Sade UNIAD Unidade de Pesquisa em lcool e Drogas UNIFESP / EPM Universidade Federal de So Paulo / Escola Paulista de Medicina

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RESUMO

INTRODUO: O carter crnico da dependncia qumica torna necessrio um suporteteraputico de longo prazo voltado aquisio da abstinncia e ao fortalecimento do indivduo nas esferas da vida prejudicadas pela instalao da dependncia trabalho, moradia, lazer, rede social, relaes familiares, sistema judicirio, entre outras. A este processo d-se o nome de reabilitao psicossocial. OBJETIVOS: Compreender, a partir da percepo de quem est em tratamento para dependncia qumica, quais os aspectos envolvidos no processo de reabilitao psicossocial e como ele ocorre, de modo a favorecer a recuperao. MTODOS: Estudo de caso conduzido em uma residncia teraputica particular, para dependentes qumicos, situada na cidade de So Paulo. Utilizamos a abordagem qualitativa, a partir da combinao de trs recursos metodolgicos: grupos focais, entrevistas individuais em profundidade e observao participante, originando dirios de campo. A temtica do trabalho foi enfatizada como ponto de partida para viabilizar esta investigao. A etapa de campo totalizou seis meses, decorridos entre junho e dezembro de 2008. O material foi submetido anlise de contedo, buscando-se identificar os principais temas emergentes. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comit de tica em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de So Paulo (Processo n 1406/05). RESULTADOS: Como principais temas emergentes, destacaram-se: a presena de configuraes identitrias estanques, pautadas na doena; concepes sobre a relao sade/trabalho tambm marcadas pelo adoecimento e desvinculadas de uma crtica sobre o contexto histrico atual; a centralidade e potncia do dispositivo grupal no tratamento das adies; a dependncia qumica como fonte de trabalho para quem est em recuperao; a relevncia de que o tratamento favorea a inscrio na cultura, auxiliando o desempenho de novos papis sociais e viabilizando a construo de projetos de trabalho e de vida. DISCUSSO: Em uma cultura que preza como valores sucesso, juventude, dinheiro, beleza fsica, felicidade, a ausncia de tais registros em dado momento da vida pode potencializar o sentimento de inadequao e o mal-estar vivenciados, colocando em risco o j frgil sentimento de pertena social do indivduo em recuperao. Neste contexto, torna-se fundamental um suporte teraputico de longo prazo, estvel e seguro o suficiente para promover relaes de confiana e cumplicidade, no apenas inaugurando novas marcas na trajetria do indivduo, mas viabilizando a consolidao destas novas inscries. Visando aos propsitos da recuperao, o dispositivo grupal destaca-se como recurso privilegiado para favorecer a necessria inscrio na cultura, estreitamente vinculada s reais possibilidades de reinsero social. Finalizamos o estudo enfatizando aspectos centrais a serem encaminhados pelos programas de tratamento em dependncia qumica.

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1. APRESENTAO

1. APRESENTAO (o nimo da pesquisa)

Voc viu que a Casa1 fechou? Fechou? Como assim? Para reforma? Vai reabrir quando? No. Fechou de vez. No existe mais. A Patrcia1mandou ligar para todos os familiares e mandar o pessoal de volta para as suas casas. No tem mais Casa.

Foi desta maneira, inesperada e repentina, que recebi a notcia sobre o fechamento da residncia teraputica na qual foi desenvolvida a etapa de campo desta pesquisa. das relaes que se passaram nesta moradia assistida, espao de residncia e tratamento para dependentes qumicos, que tratarei nesta tese. Um ambiente que j no existe mais. Como difcil falar de algo que j no existe. Esta foi das primeiras inquietaes que me ocorreram, quando da empreita de iniciar a elaborao escrita desta experincia. Dar um formato inteligvel e acadmico a uma diversidade de vivncias e reflexes advindas de um lugar que no existe mais. Desafiadora esta tarefa. Seria como falar, em memria pstuma, de algum que j se foi, no fosse o carter de continuidade que permanece, a despeito do fechamento desta organizao em especfico. Continuidade de qu?

1.1 Do Projeto Original s Mudanas do Percurso: construindo o olhar da pesquisa Esta pesquisa versa sobre a temtica da reabilitao psicossocial de pessoas em tratamento para a dependncia qumica. Por dependncia qumica, compreendemos um fenmeno multifacetado e complexo, cujas origens e consequncias so de natureza biopsicossocial. Os prejuzos observados no curso de instalao da dependncia qumica podem ser mais ou menos visveis e objetivos, envolvendo aspectos da vida cotidiana (trabalho, lazer, rede social, famlia, problemas com o sistema judicirio, entre outros) e

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O nome original da residncia teraputica e os nomes dos participantes do estudo foram alterados a fim de

preservar o anonimato.

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vivncias de natureza subjetiva, como as identidades estabelecidas, o senso de autoeficcia e a auto estima experimentadas pelo sujeito acometido por esta condio. O carter crnico da dependncia qumica remete necessidade de um suporte teraputico de longo prazo, voltado no apenas aquisio ou manuteno da abstinncia, mas ao fortalecimento do indivduo, nas diversas esferas prejudicadas. A este processo d-se o nome de reabilitao psicossocial. A inquietao inicial, motivadora deste estudo, nasceu dos atendimentos que realizei, como psicloga clnica, em um ambulatrio pblico para tratamento da dependncia qumica. Conforme observei, a partir desta experincia, a aquisio da abstinncia frequentemente no repercutia em melhoras em outras reas da vida do paciente, visivelmente prejudicadas pela instalao da dependncia, evidenciando a necessidade de se prover ao cliente outros suportes. Assim se iniciou a configurao do interesse deste estudo: como auxiliar aquelas pessoas em tratamento a retomar satisfatoriamente suas vidas? O trabalho que no existia ou era nocivo, muitas vezes fonte de adoecimento; as condies precrias de moradia que atuavam diretamente sobre o processo teraputico vivenciado; a rede social que, mudados os hbitos relacionados dependncia qumica, tornara-se praticamente inexistente. Foi a partir deste contexto que o processo de reabilitao psicossocial de pessoas em tratamento para dependncia qumica passou a figurar como campo de interesse deste estudo, configurando, desde suas origens, uma pesquisa essencialmente clnica. O foco deste estudo foi compreender quais elementos atuam sobre o processo de reabilitao psicossocial e de que maneira se articulam para favorecer a retomada ou inaugurao de condies favorveis a uma inscrio autnoma na vida, por aqueles cuja trajetria pessoal foi marcada pelo aprisionamento na dependncia qumica. Dos muitos eixos que compem o processo de reabilitao psicossocial, escolhi focalizlo a partir da temtica do trabalho, motivada pelo sentido social a ele vinculado: trabalho enquanto protoforma da atividade humana, historicamente considerado uma das atividades centrais constituio da identidade pessoal e ao ingresso no universo adulto temticas caras ao processo de recuperao de pessoas acometidas pela dependncia qumica.

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Interessava inicialmente conhecer a trajetria de pessoas em tratamento para dependncia qumica no mundo do trabalho, a fim de avaliar de que maneira esta temtica poderia ser includa no tratamento, de modo a favorecer sua recuperao. Como se dava a entrada e a manuteno destas pessoas no universo do trabalho? Que dificuldades permeavam a retomada da atividade ocupacional ao longo do processo de recuperao? Com que recursos contavam para realizar esta empreita? Como avaliavam o papel dos espaos formais de tratamento, em relao s possibilidades de ajuda quanto temtica ocupacional? Na outra ponta do fenmeno, o interesse por conhecer o discurso oficial do governo brasileiro sobre este tema: Quais seriam as diretrizes governamentais para a chamada reabilitao psicossocial de dependentes qumicos? Como estas diretrizes se atualizariam nos cotidianos clnicos praticados nos Centros de Ateno Psicossocial (CAPS), os equipamentos de sade mental to caros ao processo da reforma psiquitrica no Brasil? No processo de reabilitao psicossocial de dependentes qumicos, de que maneira a temtica do trabalho estaria, ou no, contemplada, pelas diretrizes oficiais? A voz de quem formula as polticas pblicas; a voz de quem habita a condio de dependente qumico; a voz tcnica de quem trata clinicamente desta questo, profissionais da sade ou no, tal como se descortinou ao longo do trabalho de campo: todo um contingente de pessoas que atua terapeuticamente na clnica da dependncia qumica, em formato de ajuda mtua, contando primordialmente com a experincia pessoal como dependente qumico. Trs eixos de investigao e anlise, resultantes de uma metodologia de pesquisa mutvel ao longo do trabalho de campo. Como mutveis foram as prprias concepes que originaram a formulao deste projeto de pesquisa: concepes sobre trabalho, sobre o que teraputico e sobre o prprio foco da pesquisa inicialmente, circunscrito formulao de um modelo de interveno em reabilitao profissional para dependentes qumicos em tratamento ambulatorial. Tratava-se, originalmente, de um estudo clnico descritivo, com interveno teraputica e seguimento de um ano, com follow up aps 6 e 12 meses. O desenho original do estudo previa a realizao da pesquisa em duas etapas. A 1 etapa consistiria na coleta de informaes sobre intervenes em reabilitao profissional realizadas no Brasil e em outros pases, por meio de investigao da literatura e do contato telefnico com uma amostra de Centros de Ateno Psicossocial para lcool e Drogas (CAPS-ad) do Estado de So Paulo. Na 2 etapa seria conduzida a realizao experimental do modelo de

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interveno sugerido, em um ambulatrio pblico da cidade de So Paulo, acompanhada de avaliaes de seguimento, aps seis meses e um ano, a partir da utilizao de instrumentos especficos voltados a avaliar qualidade de vida, gravidade da dependncia qumica e status ocupacional dos pacientes. Os dados seriam analisados por meio de anlise estatstica descritiva, comparando-se os dados encontrados anteriormente interveno e os dados encontrados nos dois seguimentos. Este era o delineamento do projeto de pesquisa com o qual iniciei a investigao e do qual muito me distanciei, a partir das vivncias enfrentadas, sobretudo na etapa de campo. Tratava-se, neste momento inicial, de um olhar preocupado em propor solues, j que as indagaes subjacentes no tinham outro propsito seno o planejamento de um modelo de interveno que pudesse auxiliar os pacientes a retomar uma atividade ocupacional significativa qualquer que fosse o contexto poltico, econmico e social em que ocorresse o tratamento; quem quer que fosse a populaoalvo da interveno formulada. Misto de ingenuidade e onipotncia, um tanto frequentes no incio da vida acadmica e certamente potencializados em determinados campos de atuao, pautados em concepes estanques sobre os fenmenos humanos, pressupondo-os lineares e previsveis. Contudo, diversas dificuldades e enfrentamentos emergiram ao longo desta pesquisa, modificando em muito o desenho do estudo original e o aporte terico-metodolgico subjacente. A primeira dificuldade enfrentada relacionou-se busca por um lugar para realizar a interveno proposta. Do locus originalmente previsto, um ambulatrio pblico, passou-se a uma residncia teraputica particular, aps um extenso processo de busca. Disto decorreram todas as outras mudanas significativas, pois foi do contato com os pacientes-moradores desta residncia teraputica que a vivacidade da pesquisa emergiu, em seus aspectos mais orgnicos. Foi lanada a campo que pude me aproximar do fenmeno que pretendia estudar, a partir de um lugar privilegiado, j que se tratava de um campo que era, ao mesmo tempo, casa, local de tratamento e, ainda, local de trabalho para muitos ali. O confronto com esta realidade em campo, somado interlocuo com pessoas hbeis na tarefa de fazer pensar, crtica e refletidamente, tratou de desfazer qualquer equvoco iminente, ajudando a delinear outro caminho: mais investigativo e menos assertivo; mais receptivo aos inmeros estranhamentos emergentes em campo e, assim, menos taxativo. Um caminho mais enriquecedor ao propsito de ampliar a compreenso

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sobre o fenmeno de que trata este estudo e, certamente, muito mais honesto e respeitoso com aqueles que dele fizeram parte, porque em momento algum prometeu respostas que no podia dar, tratando, antes, de fazer aos participantes do estudo um convite para percorrermos, juntos, um universo muito mais desconhecido para ns, pesquisadores, do que para eles, nomeados pacientes. Efetivamente bastante pacientes e colaboradores ao longo de todo o processo de pesquisa. Compreender, portanto, foi algo que se instalou como objetivo deste estudo apenas l adiante do trabalho de campo, repercutindo na necessria reviso da metodologia utilizada e consolidando a abordagem qualitativa como o mtodo de escolha para a observao do fenmeno em questo. Se as perguntas que guiaram o desenho original desta pesquisa relacionavam-se busca pelos ingredientes ativos de intervenes em reabilitao profissional consideradas bem sucedidas para favorecer o retorno ao mercado formal de trabalho, conforme avanou o percurso em campo, as perguntas se modificaram substancialmente. J no se tratava mais de investigar o que funcionaria para auxiliar aquelas pessoas no retorno ao mercado formal de trabalho ou a alguma atividade ocupacional significativa, mas o que poderia ajud-las a acessar e encaminhar seus desejos pessoais, em direo elaborao e concretizao de seus projetos de vida. O registro deslocou-se da reabilitao profissional para o processo de recuperao em si. A temtica do trabalho redimensionou-se, ento, como uma via possvel de conversa, mas no mais a nica. Como temas igualmente pertinentes, emergiram os relacionamentos pessoais; a vivncia enriquecedora em grupo, no ambiente protegido da casa, possibilitando-lhes experienciar novos papis sociais e outras maneiras de agir: como a experincia de aprender a vivenciar situaes de frustrao e descontentamento recorrendo ajuda de outras pessoas, ou mesmo ao isolamento pessoal momentneo, em detrimento da agresso fsica; bem como a possibilidade de se apropriarem de talentos e potencialidades at ento desconhecidos ou pouco estimulados como a capacidade de se expressar por meio da escrita ou a simples descoberta do prazer em cozinhar. Aspectos amplamente diversificados, mas igualmente pertinentes ao processo de recuperao, porque atuantes sobre as identidades estabelecidas temtica que se revelaria central neste processo. O foco desta pesquisa, portanto, redimensionou-se da identificao dos aspectos envolvidos no processo de reabilitao profissional de pessoas em tratamento para dependncia qumica, para a compreenso dos aspectos envolvidos no processo de

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reabilitao psicossocial desses indivduos, a partir de discusses relacionadas ao universo do trabalho, segundo o ponto de vista de quem est em tratamento.

1.2 O problema da pesquisaInteressava originalmente identificar quais eram os ingredientes ativos envolvidos na retomada de uma atividade ocupacional significativa, por pessoas em tratamento para a dependncia qumica. De que maneira seria possvel incluir a varivel trabalho no mbito do tratamento, de modo a favorecer o processo de reabilitao profissional do paciente ento compreendido como o retorno ao universo formal de trabalho. Conforme avanou a pesquisa de campo, contudo, culminando em mudanas epistemolgicas, o foco da pesquisa ampliou-se da reabilitao profissional para o processo de reabilitao psicossocial, redimensionando a investigao do estudo para os fatores envolvidos neste complexo processo de retomada da vida. O foco estendeu-se das relaes com o trabalho, para as relaes com familiares e amigos; a nova experincia de moradia com colegas de tratamento e com a equipe tcnica; as vivncias em relao ao prprio corpo; as experincias de lazer desvinculadas do consumo de substncias; as identidades estabelecidas. J no se tratava, portanto, de identificar os chamados ingredientes ativos atuantes no retorno ao trabalho, mas de compreender, a partir da escuta de quem est em tratamento para dependncia qumica, de que maneira a ampla gama de experincias vivenciadas no ambiente protegido do tratamento ou de maneira ampliada, na vida, atua sobre o processo de recuperao, no registro da retomada de pactos vitais.

1.3 Justificativa: o contexto do problema Por que interessava aprofundar o conhecimento sobre o processo de reabilitao psicossocial de pessoas em tratamento para dependncia qumica? sabido, tanto pela descrio da literatura, quanto pela experincia clnica em contextos diversificados (ambulatorial, internao, consultrios particulares), que uma das etapas mais complicadas do processo teraputico de dependentes qumicos relaciona-se

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justamente ao restabelecimento da vida nos diversos eixos que a compem (casa, trabalho, rede social, lazer, entre tantos outros), para alm da conquista da abstinncia da substncia psicoativa. O corpo liberado quimicamente da droga, em geral, constitui um primeiro passo para favorecer o processo de reabilitao psicossocial, mas a condio de abstinncia, por si, no suficiente para garantir que o estabelecimento de outros pactos vitais se faa com sucesso. O corpo liberado da substncia no postula, por si, a respeito de dificuldades relacionais ou motivacionais, frequentemente atuantes anteriormente instalao da dependncia qumica, ou mesmo emergentes neste decurso. Assim como no produz, autonomamente, novas e criativas formas de viver e enfrentar as dificuldades resultantes da instalao da doena ou relacionadas vida em geral. Da a necessidade de um olhar que se constitusse amplo e aprofundado o suficiente para capturar as diversas nuances envolvidas neste processo, em nada objetivo ou quantificvel. Falamos aqui do processo de recuperao, que conceituaremos mais adiante. A necessidade deste olhar em profundidade sobre o fenmeno em questo evidencia-se tanto mais quando se considera a incipincia do conhecimento sobre os processos envolvidos na reabilitao psicossocial de pessoas acometidas pela dependncia qumica. Para isto, concorre a perspectiva temporal: trata-se de uma abordagem que se delineia, sobretudo, em longo prazo, dado o carter crnico da dependncia qumica. Uma perspectiva muito distinta do recorte pontual que caracteriza os programas de tratamento, ao abarcarem um perodo de tempo restrito na vida da pessoa portadora de uma condio clnica crnica. Some-se a isto a prpria incipincia do enfoque da reabilitao psicossocial nos programas de tratamento brasileiros, ainda bastante ancorados na concepo mdica dos transtornos mentais, o que, na prtica clnica, frequentemente se traduz pela hegemonia de aes teraputicas voltadas aquisio da abstinncia, em detrimento de aes mltiplas e integradas, efetivamente comprometidas com o objetivo de recuperao da pessoa em tratamento. Deste modo, entendemos que um olhar em profundidade aos fenmenos envolvidos neste processo pode representar uma contribuio importante ao incremento das prticas assistenciais disponibilizadas no contexto brasileiro, em direo a um enfoque teraputico efetivamente mais alinhado aos propsitos de empoderamento do sujeito em tratamento para a dependncia qumica um conceito nuclear ao processo de recuperao e s prticas da reabilitao psicossocial.

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1.4 Objetivos de pesquisa O objetivo central da pesquisa foi compreender, a partir da percepo de quem est em tratamento para dependncia qumica, quais so os aspectos envolvidos no processo de reabilitao psicossocial e como eles interagem. Como objetivos especficos do estudo, destacaram-se: A identificao dos componentes teraputicos envolvidos nas trajetrias clnicas vivenciadas; Como se articulam, neste processo, as histrias de vida pessoais, o percurso na dependncia qumica, as identidades constitudas, os projetos de vida futuros; Compreender as especificidades relacionadas ao trabalho com dependncia qumica, para quem est em tratamento observar o campo da dependncia qumica como fonte de trabalho para quem est em recuperao;

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2. CONTEXTO

2. CONTEXTO (cenrio nacional e internacional) A descrio realizada a seguir objetiva contextualizar a temtica da reabilitao psicossocial e profissional, em relao produo cientfica contempornea. Como a concepo sobre reabilitao psicossocial e o movimento do recovery1 emergiram no campo dos transtornos mentais graves, e no especificamente no campo da dependncia qumica, a literatura existente sobre estes temas refere-se a uma realidade que nem sempre converge com o que se observa entre os dependentes qumicos uma populao que em geral apresenta a autonomia mais preservada, em relao a portadores de transtornos mentais graves. Contudo, a cronicidade da dependncia qumica e os prejuzos que ela acarreta em diversos mbitos da vida, tal como os desdobramentos decorrentes dos transtornos mentais, justificam o resgate de tais concepes. Alm disso, historicamente, o debate acerca das duas condies clnicas sempre foi centrado nas causas e na natureza de tais condies, destacando-se a criminalizao, acompanhada de preconceito e estigmatizao (GAGNE et al, 2007). Em comum entre as duas condies, observamos com frequncia dificuldades em retomar uma atividade produtiva, isolamento social, fragilidade da rede de suporte social, entre outros. Apresentamos a seguir os conceitos relacionados reabilitao psicossocial, recuperao e reabilitao profissional, destacando brevemente o contexto histrico em que emergem estas prticas. Em seguida, apresentamos as diretrizes do governo brasileiro para o tratamento da dependncia qumica, pautadas nos princpios da reabilitao psicossocial e da reduo de danos.

Optamos por manter em ingls a terminologia que descreve o movimento emergente no campo da sade mental, originrio nos Estados Unidos. Utilizaremos a expresso traduzida para o portugus (recuperao) quando fizermos referncia ao processo pelo qual passa o portador de transtorno mental e de dependncia qumica.

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2.1 Reabilitao psicossocial e recuperao As concepes sobre reabilitao psicossocial e recuperao emergiram no campo da sade mental, nas ltimas dcadas. A literatura sobre estes temas, no entanto, no consensual quanto aos conceitos utilizados. O termo recuperao, por exemplo, aparece tanto vinculado remisso total da sintomatologia decorrente do transtorno mental, quanto ao aprendizado sobre como conviver e lidar com a doena no dia-a-dia (JORGE-MONTEIRO & MATIAS, 2007). Alguns autores criticam o uso deste termo, por consider-lo insuficiente para descrever a real dimenso do que acontece na vida da pessoa portadora de um transtorno mental ou mesmo para descrever os resultados do processo teraputico (JORGE-MONTEIRO & MATIAS, 2007). Portanto, no existe uma compreenso consensual ou nica sobre o que signifique recuperao; os diversos entendimentos acerca deste processo resultam de uma diferena de perspectiva a partir da qual a recuperao encarada como processo ou resultado. Em geral, familiares e profissionais da sade encaram a recuperao do ponto de vista da aquisio de resultados, tais como a concretizao dos objetivos de vida em domnios como emprego, qualidade de vida, bem-estar psicolgico; j os pacientes, encarariam sua recuperao como processo, um fenmeno que ocorre gradualmente no curso do tempo um processo profundamente pessoal que implica em ir alm da doena, desenvolvendo um novo significado e propsito para a vida pessoal (JORGEMONTEIRO & MATIAS, 2007). Esta ltima viso enfatiza a recuperao como um percurso pessoal estritamente significativo e concreto, ao invs de um constructo abstrato. Um processo pessoal, lento e deliberado. Disto decorre o fato de que ningum e nenhum dispositivo teraputico podem incutir, ao portador do transtorno mental, o esprito da recuperao, pois este no um processo forado, da mesma maneira como no suficiente que seja um processo desejado (DEEGAN, 1988). Apesar disto, contudo, possvel afirmar que existem ambientes mais propiciadores de recuperao do que outros. importante atentar a este fato, pois comum observar entre familiares e profissionais da sade o estabelecimento de metas visando aquisio de certos resultados, que podem no coincidir com os desejos e propsitos da pessoa em tratamento. Priorizam-se, assim, experincias que podem no ser relevantes ou significativas para aquele a quem primeiramente diz respeito o processo de recuperao. Tais diferenas de expectativas refletem-se diretamente na organizao dos servios em sade mental, bem como nos tratamentos

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disponibilizados (JORGE-MONTEIRO & MATIAS, 2007). Vale destacar, ainda, a diferenciao existente entre recuperao e cura. Esta ltima pressupe a remisso total dos sintomas relacionados doena mental; a ausncia de doena. J a recuperao, no significa a remisso total dos sintomas associados doena ou o regresso a uma condio anterior, a um estado pr-existente. A recuperao implica, antes, no desenvolvimento de novos comportamentos e aprendizados que resultem em uma nova maneira de viver, integrando as restries impostas pela doena, mas transpondo-as funcionalmente. Trata-se de uma adaptao, em que ficam valorizados os potenciais da pessoa, em detrimento das limitaes ocasionadas pela doena. Neste sentido, portanto, a recuperao, como qualquer outro processo de aprendizado e transformao, pressupe um movimento ascendente, em espiral, destacando-se natureza dinmica deste processo. Consideremos agora a concepo de reabilitao. Se retomarmos o conceito genrico de reabilitao presente no campo da sade, como a restaurao de um funcionamento prejudicado, temos que a reabilitao psicossocial consistiria na restaurao, sobretudo, do funcionamento psicolgico e social (KING et al, 2007). Tal concepo parte de dois princpios bsicos: as pessoas so capazes de aprender e se adaptar para atender s suas necessidades e atingir as metas estabelecidas, desde que estejam motivadas a atingir independncia e auto-confiana (CNAAN et al, 1988). Embora a reabilitao psicossocial e a recuperao sejam processos complementares, apresentam algumas distines. A reabilitao psicossocial pertinente aos programas de tratamento, constituindo estratgias e tcnicas utilizadas pelos servios de sade mental para promover a recuperao da pessoa em tratamento por algum transtorno mental (KING et al, 2007; PITTA, 2001). Trata-se de um processo eminentemente interpessoal. J a recuperao, conforme destacado anteriormente, considerada uma tarefa prioritariamente pessoal, constituindo responsabilidade de cada indivduo viabilizar seu processo de recuperao; o que pode ser feito por meio de caminhos diversos, incluindo ou no a frequncia a tratamentos especializados (KING et al, 2007). Diferentemente do processo de recuperao, que pode ocorrer de maneira aleatria, no sistematizada, o processo de reabilitao psicossocial sempre pressupe a estruturao de um programa voltado recuperao dos clientes, a partir de objetivos e metas especficos (KING et al, 2007).

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A transposio destes conceitos para o campo da dependncia qumica requer algumas ressalvas, pois diferentemente dos prejuzos relacionados ao transtorno mental, a exemplo da esquizofrenia, os prejuzos observados no campo da dependncia qumica apresentam especificidades que precisam ser consideradas. Um destes pontos est na prpria organizao dos servios oferecidos. Nos ltimos trinta anos, o sistema de sade mental tem se reorganizado para oferecer servios de suporte na comunidade. Contudo, os programas de tratamento para dependncia qumica avanaram menos nesta direo, em relao aos servios de sade mental, continuando a oferecer, principalmente, um suporte de curto prazo, focalizado na fase aguda da doena e prestado nos ambulatrios especializados, com pouco suporte contnuo prestado na comunidade (GAGNE et al, 2007). Outra diferena apontada por Gagne e colaboradores (2007), em artigo comparando o modelo da recuperao no campo da sade mental e da dependncia qumica, relaciona-se s estratgias utilizadas no mbito do tratamento para facilitar o processo de recuperao. Enquanto os transtornos mentais exigiriam uma nfase na interveno durante a crise, o tratamento no campo das adies deveria disponibilizar, segundo os autores, o monitoramento contnuo do paciente, aps o episdio de tratamento na fase aguda, a fim de facilitar seu retorno ao tratamento, em momentos crticos. Em relao aos demais aspectos envolvidos no processo de recuperao, contudo, o caminho seria idntico, segundo os autores.

2.1.1 Contexto histrico em que emergem as prticas reabilitatrias e o movimento do recovery O modelo da reabilitao tem incio na segunda metade do sculo XX, com as mudanas de paradigma no sistema de tratamento oferecido aos doentes mentais. A partir de progressos no campo da psicofarmacologia, com o desenvolvimento de novas medicaes; do fortalecimento do movimento de direitos humanos; e da plena incorporao dos componentes social e mental na definio do conceito de sade proposto pela Organizao Mundial da Sade, o momento histrico tornava favorvel o incio da transposio do tratamento, at ento pautado no modelo asilar, para a comunidade (WHO, 2001).

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em meados dos anos 70, acompanhando o processo de desinstitucionalizao e a emergncia do atendimento prestado na comunidade (community support system), que as prticas em reabilitao ganham fora (ANTHONY, 1993). A desinstitucionalizao, como parte importante da reforma do sistema de sade mental, levou implementao de uma rede alternativa de atendimento na comunidade, j que se tornava necessrio cuidar adequadamente do retorno sociedade de pessoas reclusas por longo perodo de tempo, beneficiando-as a partir dos dispositivos existentes na prpria comunidade. O movimento do recovery comeou a emergir em meados dos anos 70, nos Estados Unidos, a partir da iniciativa de portadores de transtornos mentais, em busca de seus direitos de cidado (Anthony, 1993). Contudo, no incio dos anos 90 que este movimento ganha visibilidade, a partir da divulgao de textos escritos por portadores de transtornos mentais, sobre suas experincias de enfrentamento e convivncia com a doena. Este gnero de literatura, somado aos primeiros escritos publicados por profissionais da rea de sade mental, legitimando a importncia de tais textos e das experincias neles contidas, tambm no incio da dcada de 90, configuraram o recovery como um movimento na rea da sade mental (RALPH & MUSKIE, 2000; ANTHONY, 1993).

Reabilitao psicossocial e recuperao: conceituaes possveis Embora no exista uma nica e consensual definio sobre estes dois processos, faremos um esforo didtico de apresentar uma conceituao que abarque, do nosso ponto de vista, diferentes e significativos aspectos destes fenmenos. Constituindo um processo pouco estruturado teoricamente, a reabilitao psicossocial melhor descrita por prticas diversas; prticas mais sofisticadas que as teorias disponveis (SARACENO, 2001) e prticas que no pertencem a um campo de domnio nico, conforme enfatiza Bertolote (2001):

() ainda no existam profisses, no existem estamentos profissionais ou sociais que detenham a Reabilitao Psicossocial, ningum sabe fazer Reabilitao Psicossocial, cada um de ns sabe um pedao deste processo complexo e multifacetado.

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Algumas definies descritas na literatura enfatizam reabilitao psicossocial como um processo que envolve: indivduos prejudicados; demandas singulares; reconstruo de contratualidade em diversos mbitos (casa, trabalho, comunidade); remoo de barreiras; estmulo s competncias e potenciais individuais; nfase na rede social; e foco na equidade e na cidadania. Seguem algumas conceituaes possveis:A Reabilitao Psicossocial um processo que enfatiza as partes mais sadias e a totalidade de potenciais do indivduo, mediante uma abordagem abrangente e um suporte vocacional, residencial, social, recreacional, educacional, ajustados s demandas singulares de cada indivduo e cada situao de modo personalizado.(International Association of Psychosocial Rehabilitation Services, 1985)

Trata-se de um processo que oferece a indivduos prejudicados ou incapacitados por alguma doena mental a oportunidade de alcanar seu nvel timo de funcionamento na comunidade. Isso inclui tanto melhorar competncias individuais quanto introduzir mudanas no ambiente. (OMS, 1995)

Reabilitao Psicossocial fundamentalmente um processo de remoo de barreiras. De barreiras que impedem a plena integrao de um indivduo na sua comunidade e de barreiras que impedem o pleno exerccio de seus direitos, da sua cidadania. (...) A reabilitao psicossocial no a reabilitao do doente. (Bertolote, 2001)

O processo de Reabilitao um processo de reconstruo, um exerccio pleno de cidadania; (...) uma transio que leve, efetivamente, a uma maior contratualidade entre trs grandes cenrios: casa, trabalho e rede social. (Saraceno, 2001)

Segundo Saraceno (2001), um dos objetivos da reabilitao psicossocial aumentar o poder contratual do portador de transtorno mental. Por contratualidade, entendemos a capacidade do indivduo de engendrar contratos sociais, a partir dos quais possa subverter a recluso a que foi lanado, em decorrncia do estigma associado doena mental (PINHO et al, 2008). De maneira geral, as definies de reabilitao e recuperao assemelham-se, sobretudo, quanto aos propsitos estabelecidos, j que a meta da recuperao seria, de maneira

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genrica, auxiliar pessoas afetadas por algum transtorno mental a reduzir o prejuzo e a incapacidade, direta ou indiretamente relacionados doena, melhorando sua qualidade de vida (GAGNE et al, 2007). Conforme enfatizado anteriormente, trata-se de um processo centrado na pessoa, exigindo, portanto, seu envolvimento pessoal. A nfase da recuperao est no crescimento pessoal, traduzido pela capacidade de fazer escolhas caracterstica relacionada contratualidade. A concepo de recuperao engloba trs dimenses distintas. Como fenmeno objetivo, o processo de recuperao pode ser avaliado a partir de uma gama de indicadores, como: escalas avaliando sintomas, funcionamento social e qualidade de vida; mudanas no status profissional; nmero de internaes e frequncia a outros tipos de servios clnicos; e dependncia em relao a benefcios pblicos sociais2. Progressos visveis em um ou mais destes indicadores, sem que haja retrocesso em outros, apontam para a existncia objetiva de recuperao. Contudo, as evidncias objetivas de recuperao nem sempre correspondem vivncia de quem est em recuperao, destacando-se a dimenso subjetiva deste processo. Esta dimenso refere-se s experincias do cliente em relao a si prprio, sua auto-estima, o sentido de autoeficcia experimentado e o bem-estar psicolgico e espiritual vivenciados (KING et al, 2007). fundamental que a dimenso subjetiva da recuperao seja considerada e legitimada pela equipe tcnica que conduz o tratamento, uma vez que a crena dos membros da equipe sobre o processo de recuperao do cliente atua diretamente sobre as possibilidades teraputicas observadas. Quando a equipe tcnica no acredita nas reais possibilidades de recuperao do cliente, o trabalho teraputico corre o risco de ficar estacionado em uma manuteno bsica, sem conseguir prover ao cliente a inspirao e a confiana necessrias ao seu crescimento pessoal (KING et al, 2007). Considerando-se a dimenso subjetiva do processo de recuperao, princpios como a aquisio de conscincia sobre a doena, que facilitar o ajustamento s limitaes impostas pela doena; o empoderamento da pessoa portadora do transtorno mental, em seus direitos de cidado; auto-estima e auto-determinao; alm de otimismo e satisfao com a vida tornam-se centrais (VASCONCELOS, 2008; RESNICK et al, 2005; ANTHONY, 1993). neste sentido que a literatura sobre recuperao enfatiza a esperana como um valor crucial viabilizao deste processo. Esperana e presena de pessoas significativas, que por diversas vezes faro a funo de auxiliar a pessoa em recuperao a manter a crena em sua possibilidade de melhora e de mudana, nos

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momentos em que ela prpria vier a perder a confiana em si mesma (ANTHONY, 1993). Da a importncia do apoio familiar e dos pares, ao longo do processo de recuperao, sobretudo considerando-se seu carter contnuo e no linear (GAGNE et al, 2007). Abrangendo elementos diversos, o contexto no qual toma parte o processo de recuperao pode ser caracterizado em dois nveis: o primeiro deles envolvendo variveis macro (poltica de sade mental vigente em determinada regio, cidade, bairro ou pas; marco organizacional, estrutural, poltico); e no outro mbito, as variveis micro (vnculo paciente-profissional; mbito teraputico, afetividade, continuidade, tempo) (OMS, 2001). Vejamos algumas caractersticas pertinentes s variveis micro, relacionadas aos programas de tratamento.

Como devem ser os servios em sade mental orientados recuperao? Um estudo encomendado pela Associao Mundial de Reabilitao Psicossocial (World Association of Psychosocial Rehabilitation), ao Centro de Reabilitao Psiquitrica, da Universidade de Boston, sobre as prticas em reabilitao psicossocial e psiquitrica realizadas em mbito internacional, aponta algumas caractersticas consideradas mnimas para um bom programa em reabilitao. So elas (FARKAS, 1999): 1. O programa deve focalizar o atendimento de pessoas com transtornos mentais graves; 2. Deve ser orientado promoo de melhoras no funcionamento intelectual, emocional e fsico dos indivduos, nos campos do trabalho, escolarizao e moradia, considerando-se sua idade, suas expectativas culturais e seus interesses pessoais; 3. O programa deve visar ao desenvolvimento de parcerias e o empoderamento de seus participantes, no como usurios de servios de sade mental, mas como cidados; 4. Deve atuar em rede, de maneira integrada, com outros servios, recursos e suportes da comunidade; 5. Incluindo os tratamentos especializados. No contexto brasileiro, contudo, este ltimo tpico no faz sentido, uma vez que nosso sistema de sade no prev programas de reabilitao desvinculados dos programas de tratamento, como ocorre em outros pases. Desta descrio, destacam-se algumas caractersticas relacionadas ao funcionamento de um bom programa voltado recuperao: ele atende aos desejos e necessidades

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prprias de cada indivduo; auxilia a pessoa em tratamento a se integrar em sua comunidade, de modo a que ela consiga desenvolver atividades que outros membros da comunidade fazem, em suas vidas dirias; deve funcionar de maneira integrada com recursos da comunidade, no se bastando em seu prprio universo. Alm do tratamento clnico, portanto, um servio orientado recuperao deve focalizar a reabilitao psicossocial do cliente, favorecendo sua participao em grupos de ajuda-mtua, estabelecendo parcerias com recursos da comunidade, oferecendo-lhe assistncia jurdica e apoio para encaminhar necessidades primrias (moradia, educao, trabalho, entre outras), alm de disponibilizar apoio e orientao aos familiares (GAGNE et al, 2007). Alm disso, preciso que o ambiente teraputico seja propcio a prticas de reabilitao psicossocial; uma caracterstica assegurada somente pelo sentido atribudo pelo servio s estratgias de reabilitao. somente este sentido que garante ao processo o seu carter reabilitador, e no as tcnicas de reabilitao em si, visto que tais tecnologias so apenas etapas do processo de reconstruo da contratualidade. Conforme nos alerta Saraceno (2001), as tcnicas reabilitatrias so estratgias, ou seja, pontos de partida, jamais devendo constituir-se ponto de chegada do processo de reabilitao psicossocial:No necessitamos de esquizofrnicos pintores, necessitamos de esquizofrnicos cidados, no necessitamos que faam cinzeiros, necessitamos que exeram a cidadania. O que no quer dizer que uma etapa para a reconstruo da contratualidade passe por teatro, por artes plsticas, por fazer cinzeiros; passe por, no termine em. (SARACENO, 2001)

O prprio acesso ao tratamento clnico compe uma estratgia importante para facilitar o processo de recuperao. No campo da dependncia qumica, fazem parte do tratamento, alm de medicao e psicoterapia, o acompanhamento contnuo do cliente, aps a fase aguda do tratamento, para facilitar uma interveno clnica imediata, em caso de risco de reinstalao da dependncia qumica (GAGNE et al, 2007). O desenvolvimento de habilidades para desempenhar papis sociais importantes constitui outra estratgia importante ao processo de recuperao, junto frequncia contnua a programas de tratamento orientados recuperao, bem como o engajamento em recursos da comunidade (GAGNE et al, 2007). Por englobar dimenses to variadas e subjetivas, fica evidente que o processo de recuperao no pode ser viabilizado, em sua integralidade, a partir exclusivamente de settings teraputicos. Neste

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sentido, fundamental incluir no processo de recuperao atividades e organizaes fora do mbito da sade mental, como atividades esportivas, religiosas, recreacionais, educacionais (ANTHONY, 1993). O fato de serem atividades realizadas em grupo de crucial relevncia recuperao, uma vez que favorece o rompimento do isolamento social que frequentemente acompanha a doena mental. Conforme enfatiza Anthony (1993), a recuperao uma experincia profundamente humana. Portanto, em muito influenciada pelas respostas humanas de outros significativos. Da a importncia de que o processo de recuperao favorea a (re) inscrio do indivduo na coletividade de que ele faz, ou deveria fazer, parte. Ainda considerando os programas de tratamento, vejamos algumas variveis que podem contribuir viabilizao do processo de recuperao.

Estratgias, tcnicas e plano teraputico em reabilitao psicossocial As prticas de reabilitao caracterizam-se pela intersetorialidade, envolvendo as reas da sade, previdncia, moradia, trabalho, escola, lazer, cultura. Podem ocorrer em variados settings e sob ideologias diversas. Mas necessariamente devem contar com a articulao de diversos servios comunitrios, como os centros de ateno psicossocial, cooperativas de trabalho, moradias assistidas, atelis teraputicos, centros de ajuda diria de diferentes tipos (OMS, 2001). No mbito dos programas de tratamentos, diversos recursos podem ser utilizados nas iniciativas de reabilitao, como elementos mediadores deste processo: grupos operativos, atelis teraputicos, reabilitao vocacional, treino de habilidades, psicoeducao, suporte social, atendimento familiar (OMS, 2001; PITTA, 2001). Existem tambm diversas atividades que podem ser enfatizadas para estimular o processo de recuperao: discusso de livros, de filmes, discusses em grupos, visitas a lugares fora do ambiente de tratamento, estmulo a conversa com pessoas diferentes, ou mesmo o contato com pessoas que tenham conseguido se recuperar ou que estejam mais adiantadas neste processo. Canguilhem (2007). O programa teraputico oferecido deve ser criativo e estimulante para os clientes, uma vez que no h sade sem criao, como nos lembra

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a partir de uma avaliao inicial minuciosa, que pode ou no ser estruturada sob a forma de questionrios padronizados, que ser delineado o plano teraputico, contendo as estratgias mais adequadas de serem utilizadas. Independentemente do formato, importante que a avaliao psicossocial seja sistemtica e abrangente, priorizando os pontos fortes do cliente (KING, 2007). Dentre as informaes a serem pesquisadas pela avaliao em reabilitao psicossocial, destacam-se: a natureza da doena mental (diagnstico, perfil sintomtico, incio, curso da doena); o impacto funcional da doena (prejuzos diretamente decorrentes da doena); as habilidades pessoais atuais (atividades que a pessoa consegue fazer, apesar da doena); os pontos fortes do cliente, existentes anteriormente instalao da doena; o estgio em que se encontra no processo de recuperao; a maneira com a qual a pessoa lida com a experincia do adoecimento; o seu ambiente social atual (qualidade do suporte familiar, relaes de amizade, participao em associaes da comunidade e outros relacionamentos); os recursos teraputicos com que conta (pessoas e servios envolvidos no tratamento fsico e mental do cliente); os recursos fsicos atuais (qualidade de moradia, rendimentos, alimentao, vesturio etc.); alm das suas prioridades no processo de recuperao (metas de curto e longo prazo) (KING, 2007). A Tabela 1 apresenta um resumo dos principais pontos a serem abordados na entrevista psicossocial, a fim de manter o foco na recuperao do cliente.

TABELA 1: Avaliao em reabilitao psicossocial Avaliao uma oportunidade para o engajamento teraputico do cliente, tanto quanto para a obteno de informaes. nfase na busca pelos pontos fortes do cliente, alm de suas necessidades e dificuldades. Investigao sobre o estilo de recuperao do cliente. Identificao das prioridades do cliente, entre as suas necessidades de reabilitao. Uso de medidas padronizadas para complementar a entrevista de avaliao. Assegurar-se de que o plano de reabilitao foi elaborado conjuntamente com o cliente e que est expresso em linguagem significativa para ele. Ateno para no confundir metas com estratgias, no plano reabilitatrio.

Adaptado de King (2007)

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O plano de reabilitao um desdobramento natural da avaliao realizada. Este plano identifica as metas, estratgias e objetivos que sero trabalhados durante o processo de reabilitao. O plano realizado tem mais chances de se efetivar, quanto mais negociado e elaborado em conjunto com o cliente tiver sido seu processo, refletindo as prioridades e o estgio de recuperao em que se encontra o cliente, bem como ancorado em seus pontos fortes (KING, 2007). importante identificar o estgio do processo de recuperao em que o cliente se encontra, pois cada momento acompanhado de questes especficas, que precisam ser consideradas para que o processo tenha mais chances de se efetivar com sucesso. Na tabela 2 apresentamos os principais desafios e questes pertinentes a cada estgio de recuperao.

Tabela 2: Modelo esquemtico da recuperao do transtorno mental Estgio Tarefas / Desafios Questes

Crise aguda Ps-trauma Inventrio

Reconstruo Aproximao Consolidao

Estabilizao, conteno dos sintomas Lidar com as rupturas ocasionadas em relao ao mundo externo e interno Avaliao da extenso do impacto da doena na vida pessoal e social do cliente Redescoberta das capacidades pessoais Retomar o contato com o mundo social Engajar-se em projetos de longo prazo, como relacionamentos, carreira, estudos ou outras atividades

Segurana, eficcia do tratamento Controle dos danos, reao ao advento da doena Moral pessoal, teste de realidade Retomar o sentido de si Esperana, estigma Confiana suporte,

Adaptado de King (2007)

A escolha das estratgias mais adequadas para serem utilizadas em dado momento do processo de reabilitao resulta das melhores negociaes entre as necessidades do cliente e as oportunidades e recursos disponveis no contexto, considerando: 1) o nvel timo de estimulao, a fim de no deixar o cliente aqum, ou solicit-lo alm, de suas possibilidades; 2) impedimentos especficos, delimitando restries; 3) expectativas dos profissionais de sade mental que frequentemente podem ser opostas s aspiraes do cliente (KING, 2007; OMS, 2001).

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Uma vez descritos os processos relacionados recuperao e reabilitao psicossocial de pessoas em tratamento para a dependncia qumica, cabe enfatizarmos algumas consideraes a respeito dos equvocos potencialmente atrelados a esta terminologia.

2.1.3 Reabilitar e recuperar o qu? Restries terminologia utilizada. Encerramos este captulo atentando para os riscos embutidos nos termos reabilitao e recuperao. A utilizao do prefixo re evoca a expectativa, equivocada, de que possvel retornar a uma suposta condio original, de dita normalidade. Embora a aferio da incluso seja desejvel, trata-se de definir, conforme interroga Benetton (2001), se a aferio se far pelo novo ou pelo readquirido? Como se o retorno condio original fosse uma possibilidade efetiva. A autora prope o afastamento de todo conceito que implique em restituio do estado anterior, de modo a no mais haver comparaes: apenas o vivido e o experimentado tornam-se subsdios para o futuro. E retornando terminologia, conclui:o termo reabilitao precisa ser desvinculado de estados de exceo e precisa, ao mesmo tempo, ter e manter compromissos de fato com o desenvolvimento da vida, qualquer vida, no sentido habitual da trama do cotidiano que implica na aceitao de tudo o que habitual. (BENETTON, 2001)

Recorrendo ao conceito de sade proposto por Canguilhem (2007), temos a impossibilidade de restaurao de qualquer condio original, quando se trata de vida. Conforme enfatiza o autor, a vida no conhece a reversibilidade e a nova sade no a mesma que a antiga. A vida admite, contudo, a possibilidade de reparao, gerando sempre inovaes. nesta possibilidade que reside o potencial de sade. No campo da dependncia qumica, embora saibamos que a trajetria de estabilizao seja longa e marcada pela necessidade de mltiplos resgates, tambm no se trata de realizar a volta a uma suposta condio original, mas de seguir adiante num percurso marcado pela busca de novas e dignas formas de viver, com as limitaes e possibilidades inerentes a toda condio de vida (BONADIO, 2005).

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2.2 Reabilitao Vocacional: uma prtica corrente em mbito internacional O trabalho compe um dos eixos centrais ao processo de reabilitao psicossocial de pessoas em tratamento para a dependncia qumica, favorecendo tanto a recuperao inicial, como a manuteno da abstinncia e a reduo do consumo de substncias (BECKER et al, 2005; CAMPBELL, 1998; ROOM, 1998; HAMMER et al, 1985). Por ser essencial ao processo de recuperao, o trabalho deve constituir-se foco de interesse e monitorao do terapeuta, tanto quanto o consumo da substncia em si ou os problemas psicolgicos e fsicos associados dependncia (EDWARDS et al, 1999). Em pesquisas de avaliao sobre programas de tratamento para a adio, a varivel trabalho vista tanto como um resultado desejado (meta a ser atingida), como um elemento do tratamento (PLATT, 1995), vinculando-se a resultados clnicos positivos e adeso do paciente ao tratamento (NIDA, 1979; PLATT, 1995). Em reviso da literatura sobre a reabilitao vocacional de dependentes qumicos, Platt (1995) afirma que os artigos publicados nas ltimas dcadas refletem um aumento de conscientizao sobre a importncia do trabalho, e de intervenes relacionadas a este enfoque, para o tratamento e recuperao de dependentes qumicos. Apesar disto, contudo, os usurios de servios teraputicos para lcool e drogas historicamente apresentam altos ndices de desemprego e grandes dificuldades para conseguir trabalho, durante ou aps o perodo de tratamento (MAGURA & STAINES, 2004). Segundo os autores, este fato pode ser atribudo a diversos fatores, envolvendo desde deficincias na formao tcnica ou acadmica dos clientes, relutncia dos empregadores para contratar pessoas com histrico de dependncia qumica, ou mesmo a falta de estmulo ao trabalho que pode decorrer da aquisio de benefcios sociais vinculados doena e ao desemprego. A despeito da condio de dependncia qumica, sabido o lugar central que o trabalho ocupa na constituio do ser humano. Ainda que a centralidade do trabalho esteja em discusso, na atualidade, parece inquestionvel o quanto esta atividade ainda permeia esferas diversas da vida humana, engendrando a vida social e sendo por ela ao mesmo tempo determinada (FERRETTI, 1997). a partir do trabalho enquanto protoforma da atividade humana - que o homem se torna um ser social, distinguindo-se de todas as formas no-humanas e possibilitando a prpria produo e reproduo desta humanidade (ANTUNES, 2000). Em qualquer esfera que seja (atividade remunerada ou

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no), o trabalho desempenha papel central na constituio da identidade pessoal, assim como na conquista de um sentimento de dignidade social, dando s pessoas um senso de propsito e significado na vida, contribuindo para aumentar a auto-estima e para estruturar o cotidiano, ao favorecer a participao no contexto social, o contato com os semelhantes e o engajamento em uma atividade produtiva (BECKER et al, 2005; COMERFORD, 1998; MOWBRAY et al, 1997). Focalizando a questo ocupacional de pessoas prejudicadas por alguma condio clnica ou social, Mowbray e colaboradores (1997) so enfticos ao afirmar que todos os indivduos, independentemente do grau e tipo de comprometimento que apresentem, so capazes de trabalhar produtivamente em qualquer tipo de ambiente, desde que providos de suporte adequado. Segundo os autores, eventuais fracassos no mbito do trabalho no decorreriam de uma incapacidade pessoal, mas de uma atividade ou ambiente inapropriados, ou de suportes inadequados. No contexto internacional, os servios de reabilitao vocacional constituem o suporte disponibilizado para auxiliar pessoas em tratamento por diversas condies crnicas a buscar e manter uma atividade ocupacional. No mbito especfico do tratamento da dependncia qumica, a reabilitao vocacional frequentemente vista como um dos meios mais efetivos de se promover o retorno do dependente qumico ao mundo do trabalho (DEREN & RANDELL, 1990) e, por conseqncia, sociedade, pois ao conseguir obter e manter um trabalho, no apenas estabelece um meio legal de fonte de renda, mas tem melhorada sua auto-estima, contribuindo muitas vezes para a reduo do consumo de drogas ilcitas e para o afastamento de atividades criminais (JOE, CHASTAIN & SIMPSON, 1990). Mas em que consiste a reabilitao vocacional? De maneira genrica, a reabilitao vocacional descrita como um processo destinado a auxiliar pessoas com comprometimentos de diversas naturezas e graus a retomar e manter uma atividade produtiva, segundo suas possibilidades (MOWBRAY et al, 1997). No contexto internacional, este processo encaminhado por servios especificamente voltados a esta finalidade, os chamados servios de reabilitao vocacional, que podem ou no integrar os programas de tratamento. Vejamos como funcionam estes servios.

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2.2.1 Os servios de reabilitao vocacional Surgidos inicialmente no contexto norte americano, em meados dos anos 60, os servios vocacionais so geralmente disponibilizados por agncias especificamente voltadas a este fim, governamentais ou no (TIP 38, 2000). Tambm podem, contudo, integrar os programas de tratamento, sendo disponibilizados nos prprios settings teraputicos. A populao alvo dos servios vocacionais inclui os dependentes qumicos, mas no se restringe a eles. Portadores de transtornos mentais crnicos frequentemente integram o quadro de usurios dos servios vocacionais, conjuntamente a pessoas com problemas relacionados ao abuso de substncias (MOWBRAY et al, 1997). O foco destes programas a empregabilidade e a recolocao no mercado de trabalho. Por isso, os conceitos centrais que embasam as prticas realizadas, assim como as estratgias e os instrumentos utilizados no processo, relacionam-se prontido para o trabalho, empregabilidade, recolocabilidade e s barreiras ao trabalho, conforme descrito a seguir (KARUNTZOS, 2002): 1) Empregabilidade: atributo relacionado capacidade da pessoa de funcionar adequadamente em uma situao particular de trabalho ou uma ocupao especfica; 2) Recolocabilidade: refere-se probabilidade de uma pessoa conseguir trabalho em uma ocupao especfica, considerando-se suas habilidades pessoais; 3) Postura de prontido ao trabalho: conceito relacionado aos atributos pessoais (motivao, auto-estima, desejo e habilidades gerais para obter e manter um emprego, entre outros) e aos fatores ambientais (preferncias do empregador, condies gerais do mercado de trabalho); 4) Barreiras ao trabalho: obstculos que dificultam a retomada de uma atividade produtiva, podendo ser internos ou externos pessoa. No mbito das barreiras internas, tm-se: a) aquelas que resultam diretamente da doena (sintomatologia, como ansiedade, fobia social, dificuldades de concentrao e memria, entre outras); b) aquelas que so consequncia indireta do transtorno do paciente (exemplo: diminuio da auto-estima devido ao estigma enfrentado ou a fracassos sucessivos no mbito profissional; motivao diminuda para procurar e manter um trabalho); c) barreiras no relacionadas doena (escolarizao deficitria, atividades ilegais) (MOMBRAY et al, 1997). No mbito das barreiras

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externas ao cliente esto: oportunidades restritas de trabalho, resultantes, muitas vezes, do estigma dos empregadores; dificuldades com transporte; suporte social prejudicado; condies precrias de moradia e subsistncia, entre outras. Quanto s abordagens que integram os servios de reabilitao vocacional, destacam-se o treinamento de habilidades relacionadas recolocao no mercado de trabalho (elaborao de currculos, preparao para entrevistas de empregos, busca de vagas disponveis), aperfeioamento educacional, desenvolvimento pessoal e servios de suporte, relacionados ao atendimento das necessidades primrias do cliente, como creche para os filhos, transporte, moradia, alimentao (SCHOTTENFIELD et al 1992). Em linhas gerais, o protocolo de reabilitao vocacional utilizado nas agncias vocacionais inclui: a) avaliao das necessidades vocacionais do cliente; b) planejamento do atendimento vocacional; c) acesso s informaes relacionadas ao atendimento para dependncia qumica; d) aconselhamento vocacional individual; e) workshops em treinamento/motivao para o trabalho; f) atendimento das necessidades primrias do cliente, identificadas como barreiras sua reabilitao vocacional (KARUNTZOS, 2002; PLATT, 1995). O tempo adequado ao recebimento dessas intervenes varia conforme a histria vocacional do cliente, sua motivao em relao questo ocupacional e conforme a prpria diretriz do servio de reabilitao vocacional. Existem distintas concepes subjacentes aos programas de reabilitao vocacional. A mais antiga delas the trainplace model surgiu em meados dos anos 60, nos Estados Unidos, e valoriza o chamado status ocupacional do cliente uma avaliao sobre a prontido da pessoa para retornar ao mercado de trabalho. A partir desta concepo, alguns clientes so considerados prontos para ingressar em um programa de reabilitao vocacional, j que possuiriam habilidades, histrico profissional e motivao para imediatamente conseguir trabalho; enquanto outros precisariam de mais atividades pr-vocacionais antes de focalizar o trabalho propriamente dito (KARUNTZOS, 2002). Esta abordagem prioriza, portanto, as etapas iniciais do processo de reabilitao vocacional (avaliao e intervenes pr-vocacionais), voltadas motivao e preparao do cliente para o retorno ao mercado de trabalho. As intervenes pr-vocacionais enfatizam trabalhos temporrios e/ou voluntrios, que ocorrem em ambientes protegidos, constituindo treinamentos vinculados ao servio vocacional.

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A outra abordagem subjacente aos servios vocacionais supported employment consolidou-se nos Estados Unidos, a partir dos anos 80, enfatizando a importncia de um retorno imediato ao mercado de trabalho, em oposio abordagem pautada em extensos perodos de atividades pr-vocacionais e em empregos transitrios e protegidos (BECKER et al, 2005; BOND et al, 2001). De acordo com a definio proposta pelo governo norte-americano (in BOND et al, 2001), esta abordagem visa a auxiliar pessoas prejudicadas por alguma condio crnica incapacitante a obter emprego no mercado de trabalho formal, em ambientes integrados comunidade, conforme suas potencialidades, recursos, prioridades, preocupaes, capacidades, habilidades, interesses e preferncias pessoais. Os clientes destes programas vocacionais so pessoas que, em funo dos prejuzos relacionados ao quadro clnico, jamais pleitearam uma vaga no mercado de trabalho ou pessoas cuja participao foi interrompida ou intermitente, como resultado do adoecimento. O supported employment atualmente a abordagem mais utilizada nos servios vocacionais na Amrica do Norte e Europa. Nesta abordagem, so privilegiadas as situaes reais, vivenciadas nos cotidianos de trabalho, em detrimento de situaes enfrentadas em ambientes protegidos ou mesmo em contextos de trabalho temporrio. Este enfoque prev um suporte contnuo ao cliente, para alm da busca inicial pelo trabalho. Em alguns destes servios, a ajuda disponibilizada em tempo real, por meio de acesso online ao conselheiro vocacional, de maneira que o cliente pode tirar dvidas e buscar orientaes sobre como lidar com alguma situao difcil, no momento exato em que ela est ocorrendo. Entre os dependentes qumicos, a demanda por atividades relacionando-se autoestima, motivao e desenvolvimento de atitudes positivas em relao ao trabalho alta, relacionando-se tanto ao momento de busca, quanto de realizao da atividade ocupacional (KARUNTZOS, 2002). Segundo esta autora, os principais problemas apresentados por esta populao so: dificuldades de trabalhar em equipe, auto-estima frequentemente diminuda, experincias ruins de trabalho, habilidades deficitrias para resoluo de problemas (KARUNTZOS, 2002). Do ponto de vista dos clientes, as barreiras ao trabalho comumente relatadas por clientes das agncias vocacionais norte-americanas incluem: uso continuado da droga, ficha criminal, atividades ilegais, atividades de lazer negativas, habilidades interpessoais prejudicadas, dificuldades em relao ao idioma (no caso de imigrantes), problemas

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familiares, problemas de sade, insatisfao com a aparncia pessoal, discriminao racial ou sexual, fatores ligados economia, dificuldades com transporte, responsabilidades concorrentes ao trabalho (como cuidados com filhos e outros familiares) e o estigma relacionado dependncia qumica (French et al, 1992; Schottenfield et al, 1992). A prpria interao do cliente com o programa de reabilitao vocacional tambm pode tornar-se um obstculo ao processo de reabilitao, na medida em que muitas vezes as percepes do cliente e da equipe sobre as prioridades a serem trabalhadas no processo de reabilitao profissional so discrepantes, podendo, inclusive, comprometer os objetivos enfatizados no tratamento (BREWINGTON et al, 1987). Da a relevncia de que as metas norteadoras do processo de reabilitao profissional sejam necessariamente estabelecidas em conjunto com o cliente. Embora de extrema relevncia ao processo de reabilitao do dependente qumico, o que se observa na literatura uma oferta escassa de servios ocupacionais a esta populao, mesmo nos pases onde esta interveno est estruturada, como nos Estados Unidos. Brewington e colaboradores (1987), em anlise da literatura sobre o tema, sugerem que, embora a reabilitao profissional esteja relacionada a resultados clnicos positivos, como diminuio no consumo de drogas e comportamento criminoso, alm do aumento nas taxas de emprego, grande parte dos programas de tratamento no oferece servios voltados reabilitao ocupacional dos pacientes, ainda que haja demanda por este servio. Segundo o autor, os motivos que justificam este fenmeno ainda no esto claros, embora respostas potenciais incluam: conflitos com a filosofia do tratamento, falta de incentivos financeiros aos programas e treinamento e superviso equipe inadequados. Consideraes realizadas por Craddock e colaboradores (1982) corroboram tais indcios. Em estudo realizado, encontrou-se uma larga discrepncia entre o que os pacientes relatavam receber de servios ocupacionais e educacionais, nos programas de tratamento, e o que eles diziam precisar. Tais dados, segundo o autor, no surpreendem, j que servios voltados educao e ao trabalho so os mais difceis de reverter em lucro para os programas de tratamento, embora sejam, conforme aponta o

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autor, servios cruciais conquista de benefcios duradouros. Em estudo de seguimento, realizado junto equipe tcnica de quatro clnicas para tratamento de metadona, na cidade de Nova Iorque, Arella e colaboradores (1990) observaram que os principais obstculos apontados pela equipe para a utilizao dos servios vocacionais foram: a baixa prioridade dada pela equipe s necessidades vocacionais/educacionais dos clientes, em comparao a outras necessidades; superviso inadequada ou inexistente do servio prestado no mbito vocacional/educacional; prevalncia de dficits considerveis nos conselheiros dos programas de lcool e drogas, quanto a conhecimentos sobre manejo de caso, resultando em encaminhamentos inapropriados para as agncias de reabilitao vocacional da comunidade; falta de incentivos fiscais aos programas de tratamento. No contexto brasileiro, no h porque supor que as dificuldades sejam menos acentuadas. Considerando-se a precariedade do sistema pblico de sade, os desafios ficam ainda maiores. Apesar de considerar a interao entre diversos fatores (tanto pessoais, quanto ambientais), o objetivo final do processo de reabilitao vocacional praticado na Amrica do Norte e em diversos pases da Europa a recolocao no mercado formal de trabalho. Em geral, o processo de reabilitao vocacional praticado no contexto internacional no focaliza a identidade ocupacional da pessoa em tratamento, tampouco atenta ao seu funcionamento psicodinmico fatores diretamente atuantes sobre a relao que o indivduo estabelece com o trabalho e as dificuldades ocupacionais que enfrenta. Tais consideraes ficariam a cargo dos programas de tratamento, e no dos programas de reabilitao para o trabalho.

2.3 Diretrizes do governo brasileiro para o tratamento da dependncia qumica Historicamente, a questo do consumo problemtico de lcool e drogas foi abordada sob a tica predominantemente psiquitrica, focalizando como meta central a abstinncia e desconsiderando-se as implicaes sociais, psicolgicas, econmicas e polticas deste fenmeno, tal como reconhecido pelo Ministrio da Sade no documento intitulado A Poltica do Ministrio da Sade para a Ateno Integral a Usurios de lcool e outras Drogas (MINISTRIO DA SADE, 2004a). Uma poltica nacional de ateno aos usurios de substncias psicoativas est ainda em

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consolidao no Brasil e vincula-se estreitamente poltica de sade mental vigente. No mbito do Ministrio da Sade, as polticas e prticas dirigidas aos usurios de lcool/drogas subordinam-se rea Tcnica de Sade Mental/lcool e Drogas. Toda a poltica oficial voltada ao campo da dependncia qumica vincula-se, portanto, aos princpios preconizados pelo Sistema nico de Sade (SUS) e pela reforma psiquitrica, enquanto marco terico-poltico. Institudo por leis federais nos anos 90, o SUS tem base na Constituio Federal de 1988, que prev a sade como direito de todos e dever do Estado. Trata-se de um sistema pautado em um conjunto de aes e servios de sade voltados a garantir o acesso universal da populao a uma rede de assistncia integral e equitativa, prevendo ainda a descentralizao dos recursos de sade e um controle social misto (Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Sade, com representantes de diversos setores sociais: usurios, prestadores de servio, trabalhadores) (MINISTRIO DA SADE, 2004a). Em abril de 2002, o Ministrio da Sade instituiu o Programa Nacional de Ateno Comunitria Integrada a Usurios de lcool e outras Drogas, no mbito do SUS, pautado nos princpios estabelecidos pela Lei Federal 10.216 (2001), que dispe sobre a Sade Mental vigente enfatizando a proteo e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionando o modelo assistencial em sade mental (substituio gradual do modelo asilar pelo atendimento prestado na comunidade) diretrizes reafirmadas e ampliadas pela III Conferncia Nacional de Sade Mental, realizada em 2001 (MINISTRIO DA SADE, 2002). Como principais componentes assistenciais do Programa de Ateno Integral a Usurios de lcool e outras Drogas destacam-se, conforme enunciado pela Portaria n 2.197 (2004): Dispositivos do mbito da ateno bsica: unidades de ateno bsica, ambulatrios no-especializados, Programa Sade da Famlia e Programa de Agentes Comunitrios de Sade; Centros de Ateno Psicossocial para lcool e Drogas (CAPS-ad), ambulatrios e outras unidades extra-hospitalares especializadas; Ateno hospitalar de referncia; Rede de suporte social (associaes de ajuda mtua e entidades da sociedade civil), complementar rede de servios disponibilizados pelo SUS.

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Entre estes dispositivos de assistncia, preconiza-se a utilizao da estratgia de reduo de danos sociais e sade e aes de carter teraputico, preventivo, educativo e reabilitador, direcionadas tanto a usurios quanto a familiares, a serem conduzidas na prpria comunidade, evitando-se internaes em hospitais psiquitricos. Em mbito legal, so consideradas atividades de reinsero social do usurio ou dependente de substncias aquelas voltadas sua integrao em redes sociais, prevendo, portanto, o investimento em alternativas diversificadas - esportivas, culturais, artsticas, profissionais, entre outras - como forma de incluso social e de melhoria da qualidade de vida. A utilizao de estratgias de reduo de danos, bem como a nfase em parcerias interministeriais e com setores da sociedade civil organizada, so princpios enfatizados pelo governo como fundamentais ao enfrentamento da problemtica relacionada ao consumo de substncias psicoativas, considerando-se: 1. A heterogeneidade caracterstica da dependncia qumica e, portanto, a necessidade de diferentes enfoques, capazes de abarcar a multiplicidade de demandas presentes no contexto da dependncia; 2. A nfase ao carter de sade pblica envolvido na problemtica lcool/drogas, prevendo-se o desafio de prevenir, tratar e reabilitar o usurio de lcool/drogas como uma questo de sade pblica. Como parte das mudanas ocasionadas no campo da sade mental, em julho de 2003, o governo institui o Auxlio-Reabilitao Psicossocial para pacientes acometidos por transtornos mentais e egressos de internaes psiquitricas. Trata-se de uma ajuda financeira, no valor de R$ 320.00, disponibilizada pelo perodo mnimo de um ano, para pessoas que tenham passado pelo menos dois anos em hospitais ou unidades psiquitricas (MINISTRIO DA SADE, 2003). o principal componente do programa de ressocializao proposto pelo governo e denominado De volta para casa. Tal programa focaliza a insero social de pessoas acometidas por transtornos mentais a partir da organizao de uma rede ampla e diversificada de recursos assistenciais e de cuidados capazes de propiciar o convvio social, incentivando o exerccio dos direitos civis, polticos e de cidadania da pessoa em processo de ressocializao (MINISTRIO DA SADE, 2003). Contudo, este Programa abarca ainda num nmero pequeno de beneficirios. Apenas 1/3 do nmero estimado de pessoas internadas com longa permanncia hospitalar recebe o benefcio, totalizando 3.574 beneficirios, conforme

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dados publicados pelo Ministrio da Sade (2010). De acordo com esta publicao, os principais obstculos a serem enfrentados pelo processo de desinstitucionalizao so: problemas relacionados documentao dos pacientes, crescimento em ritmo insuficiente das residncias teraputicas e dificuldades para a reduo pactuada e planejada de leitos psiquitricos e aes judiciais (MINISTRIO DA SADE, 2010). Tendo em vista a necessidade de expandir a rede assistencial disponvel aos usurios de substncias psicoativas, em junho de 2009 lanado o Plano Emergencial de Ampliao do Tratamento e Preveno em lcool e outras Drogas (PEAD), visando a intensificar, ampliar e diversificar as aes orientadas para a preveno, promoo da sade e tratamento dos riscos e danos associados ao consumo prejudicial de drogas (MINISTRIO DA SADE, 2010). O PEAD tambm busca qualificar os Hospitais Gerais na ateno s pessoas que fazem uso prejudicial de drogas e necessitam eventualmente de ateno hospitalar o Plano aumentou as dirias em psiquiatria nesses hospitais, pela primeira vez maiores que as dos Hospitais Psiquitricos. O Plano tambm investe em pesquisas para investigar o perfil do consumo de crack, os riscos associados e as intervenes clnicas que so eficazes na sade pblica. Considerando-se a complexidade envolvida no fenmeno da dependncia de substncias psicoativas, veicula-se ainda, como diretriz oficial, uma abordagem intersetorial, envolvendo ministrios do governo, organizaes da sociedade civil de interesse pblico e outras entidades no-governamentais, direta ou indiretamente relacionadas ao assunto. O modelo dos Consultrios de Rua um bom exemplo de iniciativa intersetorial. Tratase de uma estratgia de ampliao do acolhimento e acesso para usurios de drogas em situao de vulnerabilidade social, iniciada em Salvador, no final dos anos 90. O Consultrio de Rua consiste em uma equipe volante, integrada por profissionais da sade mental, da ateno bsica, e pelo menos um profissional da rea de assistncia social, que realiza, nas ruas, uma rotina de atividades e intervenes psicossociais e educativas, junto a usurios de drogas (MINISTRIO DA SADE, 2009). Para a realizao do trabalho, as equipes contam com insumos para tratamento de situaes clnicas comuns, cartilhas e material instrucional, material para curativos, medicamentos de uso mais freqente, alm de preservativos para serem distribudos.

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Os Centros de Ateno Psicossocial (CAPS) Os CAPS constituem o principal dispositivo de tratamento da reforma psiquitrica, assumindo papel estratgico na articulao dos diversos servios de sade. A inaugurao do primeiro CAPS data de 1986, na cidade de So Paulo, mas a disseminao destes dispositivos de tratamento deu-se apenas a partir de 2002, quando passaram a ser regulamentados pela Portaria n 336 /GM, publicada em Fevereiro de 2002 (MINISTRIO DA SADE, 2004b). Existem atualmente, espalhados pelo Brasil, mais de 1.540 CAPS cadastrados, cobrindo 63% do territrio nacional. Destes, em torno de 15% so unidades voltadas para o tratamento de lcool e drogas (CAPS-ad) (MINISTRIO DA SADE, 2010). Como equipamento estratgico da reforma psiquitrica, os CAPS acumulam funes diversas, relacionadas tanto assistncia direta populao, quanto organizao da rede de servios de sade mental do territrio de que faz parte. Em relao assistncia, os CAPS devem: prestar atendimento em regime de ateno diria; gerenciar os projetos teraputicos de maneira personalizada; promover a insero social dos usurios a partir de aes intersetoriais, envolvendo educao, trabalho, esporte, cultura e lazer. J como principal articulador dos servios de sade mental do territrio, cabe aos CAPS: dar suporte e supervisionar a ateno sade mental na rede bsica (PSF e PACS); regulamentar a porta de entrada da rede de assistncia em sade mental de sua rea de abrangncia; coordenar, junto com o gestor local, as atividades de superviso das unidades hospitalares psiquitricas do seu territrio; e controlar a listagem dos pacientes de sua regio que fazem uso de medicamentos controlados (MINISTRIO DA SADE, 2004b). Cambraia (2010), alerta para os riscos ao atendimento ofertado, decorrentes do excesso de funes que caracteriza os CAPS. Segundo a autora, a ameaa recai justamente sobre o potencial reabilitador destes Servios, j que a oferta de atividades e de oficinas aos pacientes no garante a efetivao do potencial reabilitador destes Servios. Algumas das dificuldades atualmente enfrentadas pelos CAPS foram apontadas em um estudo de avaliao com uma amostra de CAPS do Estado de So Paulo, conduzido pelo Conselho Regional de Medicina deste Estado (CREMESP), em 2009. Dentre as maiores dificuldades encontradas na amostra pesquisada destacaram-se, sobretudo dificuldades para realizar a funo de articulador dos servios de sade do territrio, conforme expressam os seguintes ndices: 27,4% no mantinham articulao com recursos da

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comunidade para promover a reintegrao profissional dos usurios; 29,8% no apresentavam nenhum tipo de parceria com outros recursos da comunidade, voltados promoo da reinsero social; 45,2% dos CAPS avaliados no realizavam capacitao das equipes de ateno bsica; 64,3% no disponibilizavam superviso tcnica para os membros das equipes da ateno bsica; 42% no tinham retaguarda para internao psiquitrica; e para 37,6% dos CAPS avaliados a relao intersetorial com outros servios do territrio foi apontada como a maior dificuldade enfrentada pelo Servio, enquanto para a grande maioria da amostra (69,4%) a maior dificuldade enfrentada estava na insuficincia do quadro de pessoal (CREMESP, 2010). Considerando a complexidade envolvida nos propsitos dos CAPS e os riscos relacionados sua implantao, fundamental que sejam avaliados sistematicamente. Iniciativas governamentais tm contribudo neste sentido. Entre os anos de 2004 e 2005, o Ministrio da Sade promoveu em mbito nacional uma pesquisa de avaliao junto aos CAPS credenciados Projeto Avaliar-CAPS. Dentre outros dados, a avaliao revelou a inexistncia de acompanhamento e superviso clnico-institucional regular na maioria dos CAPS do Brasil, alm de outras necessidades de qualificao para equipe. Visando a suprir esta carncia, em Julho de 2005, por meio da Portaria n 1.174, o Ministrio da Sade institui incentivo financeiro emergencial para o Programa de Qualificao dos Centros de Ateno Psicossocial, prevendo como uma das aes a instituio regular (semanal) de superviso clnico-institucional nos CAPS. Tambm em 2005, o Ministrio da Cincia e Tecnologia, em parceria com o Ministrio da Sade, lanou um edital para financiamento de pesquisas na rea da Sade Mental, prevendo uma linha de pesquisa especificamente voltada avaliao de Servios em Sade Mental, com nfase nos CAPS. Diversos projetos de avaliao resultaram desta linha de financiamento, conduzidos por diferentes grupos de pesquisadores, vinculados a diversas universidades. Em 2006, por meio da Portaria n 678, o Ministrio da Sade institui a Estratgia Nacional de Avaliao, Monitoramento, Superviso e Apoio Tcnico aos CAPS e outros servios da rede pblica de sade mental, prevendo parceria com diversas instituies de ensino, pesquisa e extenso. O foco da Estratgia estava na elaborao e execuo de projetos de pesquisa para avaliao e aperfeioamento dos CAPS, focalizando desde a acessibilidade, a organizao dos servios, a gesto, a qualidade da ateno, at a formao dos profissionais e o incremento da qualidade de vida dos usurios. Embora se

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evidencie o esforo governamental voltado necessria avaliao e incremento da assistncia prestada nos CAPS, o alcance prtico das iniciativas observadas ainda incipiente. Tanto mais quando se considera a natureza complexa do Servio em questo, conforme destaca Onocko-Campos e Furtado (2006), considerando a proposta de ruptura como o modelo hospitalocntrico embutida na concepo dos CAPS:Essas caractersticas constitutivas dos CAPS, representadas por compromissos de ordem prtica inerente a qualquer unidade de sade e, ao mesmo tempo, por elementos provenientes de novos referenciais de ordem epistemolgica, tica, clnica e poltica, derivados de sua vinculao com a superao das polticas pblicas tradicionais de sade mental no Brasil, tornamno, a partir dessa convergncia, um servio de sade particularmente complexo. (ONOCKO-CAMPOS E FURTADO, 2006)

Sade Mental e Economia Solidria: incluso social pelo trabalho No campo especfico da reabilitao profissional de dependentes qumicos, destaca-se a parceria entre o Ministrio da Sade (MS) e o Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE), por meio do programa governamental intitulado Sade Mental e Economia Solidria: Incluso Social pelo Trabalho. Trata-se de uma proposta claramente filiada aos princpios da reforma psiquitrica e comprometida com a possibilidade de incluso social de usurios de servios de sade mental e de lcool e drogas por meio da construo de empreendimentos solidrios (cooperativas de trabalho auto-sustentveis), organizados segundo os princpios da auto-gesto e administrao participativa e democrtica, visando ao trabalho emancipado. Conforme descrito no Documento Final da I Conferncia Nacional de Economia Solidria (MINISTRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2006), a economia solidria inspira-se em valores culturais que colocam o ser humano na sua integralidade tica, como sujeito e finalidade da atividade econmica, ambientalmente sustentvel e socialmente justa, em detrimento da acumulao privada do capital. Trata-se, portanto, de uma alternativa diferenciada de trabalho, cujo incentivo volta-se s iniciativas locais e alternativas ao mercado formal de trabalho - emergentes como resposta crise no mundo do trabalho e precarizao das condies de trabalho, agravada pelo alto ndice de desemprego. As iniciativas em economia solidria agregam, em geral, populaes marcadas pela excluso, qualquer que seja o fator propiciador desta condio aspectos scio-econmicos, sade mental prejudicada, consumo de substncias.

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Amparado