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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 8, n. 18, p. 93-112, dezembro de 2002

    GENEALOGIA DE OBJETOS E ANTROPOLOGIA DA OBJETIVAO

    Philippe Descolacole des Hautes tudes en Sciences Sociales Frana

    Resumo: O artigo defende a idia de que a questo da gnese social de tcnicasdeve ser abordada levando-se em conta prioritariamente aquilo que se chama, por

    conveno, de escolhas tcnicas, invertendo o procedimento habitual para

    estud-las. Ao invs de explicaes tautolgicas que visam a esclarecer as vanta-

    gens adaptativas que tornariam necessrias a emergncia de uma tcnica, ques-tiona-se, aqui, as determinaes negativas da escolha: por que tal tcnica no

    apareceu em tal contexto particular que a tornaria possvel? Toda tcnica resu-

    mindo-se a uma relao entre o homem e a matria viva (nela compreendido ele

    mesmo) ou inorgnica, esta relao deve ser objetivvel, ou seja, representvel a

    partir do estoque preexistente de relaes consideradas como possveis no interior

    do conjunto cultural considerado. Esta proposio ilustrada por uma explicao

    da rejeio da domesticao animal pelas populaes amerndias da Amaznia.

    Palavras-chave: amansamento, caa, domesticao animal, ndios da Amaznia,tcnicas.

    Abstract: The present article defends the idea that we should subvert the usualprocedure used to study the social genesis of techniques. The issue of the social

    genesis of techniques should be studied by considering, first and foremost, that which

    is conventionally called technical choices. Habitually, tautological explanations

    are given in an attempt to explain the adaptive advantages that make a certain

    technique necessarily emerge. Rather than offering such explanations, the negative

    determinants for a technological choice are examined here. Negative determinantsare sought with questions such as why did such technique not appear in that parti-

    cular context where it could have possibly appeared? Any technique may be thought

    of as a relationship between man and the inorganic or live matter (which he himself

    is a part of). If so, then such a relationship can be objectified, that is, it can be

    represented with preexistent relationships considered possible in a given cultural

    group. This idea regarding technique is illustrated here with an explanation for the

    rejection by the Amazon Amerindian populations of animal domestication.

    Keywords: Amazon indians, animal domestication, hunting, tameness, techniques.

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    Philippe Descola

    Gnese mtica e histria regressiva

    A Etnologia comeou a progredir apenas a partir do momento em queela abandonou a questo das origens. Origem das lnguas, origem daexogamia, origem do patriarcado, tantas vs questes nas quais se encer-rava um evolucionismo apaixonado de explicaes pelas causas anteceden-tes e que a anlise estrutural recolocou numa problemtica diferente, a decondies de funcionamento de um sistema definido por suas relaes entreunidades elementares: a instituio arbitrariamente isolada pela explicaogentica no mais, neste caso, que uma das configuraes possveis do

    sistema, e sua transformao torna-se representvel em termos de produolgica e no mais exclusivamente consecutiva (conforme a desmistificaoda iluso totmica por Lvi-Strauss, 1962).

    Pode-se ento legitimamente colocar a questo da gnese social dastcnicas sem recair nos equvocos da histria conjetural? Em outras pala-vras, as tcnicas constituiriam uma singularidade no interior das produeshumanas tal que se poderia, sem muitos riscos, reconstituir suas condiesde emergncia e seus modos de filiao? verdade que tentativas sedutorasforam conduzidas neste sentido, pelos pr-historiadores principalmente, quesouberam mostrar as seqncias evolutivas de uma ferramenta ltica porsucessivas especializaes das formas e portanto do conjunto de funes.Mas tais empreendimentos no podem dar conta nem de saltos qualitativos(passagem a uma forma inteiramente nova) nem de razes da adoo de umaforma dentre outras igualmente possveis nem mesmo, mais freqentemente,de regresses. Quanto gnese de um artefato ltico particular, ela dificil-mente conhecida pela razo que somente as tcnicas plenamente dominadasparecem diretamente produzir testemunhos arqueolgicos perceptveis, ex-

    cluindo por a toda a reconstituio de hesitaes e insucessos (Ploux;Karlin, 1994). Portanto, neste domnio a coerncia necessariamente retros-pectiva, a realizao de uma potencialidade somente aparece como necess-ria se se abstm de examinar as potencialidades negligenciadas. Esta arma-dilha metodolgica por muito tempo conduziu a Arqueologia no caminho deum finalismo inconfesso, muito felizmente atacado, desde h alguns anos,por uma abordagem em termos de alternativas e de variaes sincrnicasinspirada em parte pela Etnologia. Abordar a questo da gnese social detcnicas supe, portanto, para um etnlogo, colocar o problema das origens

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    Genealogia de objetos e antropologia da objetivao

    numa perspectiva mais lgica que cronolgica; em outras palavras, interes-sando-se por aquilo que, por conveno, costuma-se chamar de escolhas.

    A expresso tem conotaes infelizes, pois evidentemente no se trata aquide considerar a inovao como o produto de uma deliberao individual oucoletiva; a primeira permanecendo desconhecida quando nenhum documen-to ou depoimento existe para atest-la, e a segunda implicando numa visotranscendental da sociedade como sujeito autnomo e onisciente. Osimpasses epistemolgicos onde se foram meter a sociobiologia e a ecologiacultural testemunham em abundncia aporias insuperveis, ocasionadas poruma concepo finalista da escolha em termos da maximizao inconsciente.

    A idia de escolha no significa portanto nada mais que a proposio quasetautolgica, segundo a qual uma tcnica emerge e retida por ser compatvelcom toda uma srie de elementos no interior de uma totalidade consideradafechada por razes puramente analticas1. De direito, essa totalidade no limitada nem no tempo nem no espao (tribo, etnia, civilizao, rea cultu-ral, rede de laboratrio, multinacional), mas seu contorno deve ser definido,anteriormente, de modo a conservar uma mesma escala aos fenmenos, dosquais se ter que examinar a compatibilidade.

    Contrariamente aos pr-historiadores que tm geralmente acesso ape-

    nas aos determinantes fsicos e ecolgicos da escolha, os etnlogos, os so-cilogos e os historiadores tm a vantagem de poder, em princpio, dispordo conjunto de fatores, principalmente sociais e culturais, que parecemcondicion-la. Em si, todavia, esses fatores no so explicativos. Se noforem assim considerados, corre-se o risco reincidir no trusmo funciona-lista precedentemente evocado: toda escolha percebida como adaptativa ouculturalmente coerente tornar-se-ia necessria pelo simples fato de sua rea-lizao. Parece portanto mais fecundo inverter a questo da gnese e inter-rogar-se sobre as determinaes negativas da escolha: porque tal tcnica noapareceu em tal contexto particular que a tornaria logicamente possvel?Esta mudana de perspectiva permite escapar aos pressupostos

    1 Ainda, Lvi-Strauss: [...] as mais simples tcnicas de qualquer sociedade primitiva revestemo carter de um sistema mais geral. A maneira pela qual certos elementos deste sistema foramretidos, outros excludos, permite conceber o sistema local como um conjunto de escolhassignificativas, compatveis ou incompatveis com outras escolhas (1973, p. 20) [...les plussimples techniques dune quelconque socit primitive revtent le caractre dun systme plusgnral. La manire dont certains lments de ce systme ont t retenus, dautres exclus,

    permet de concevoir le systme local comme un ensemble de choix significatifs, compatiblesou incompatibles avec dautres choix].

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    Philippe Descola

    funcionalistas da problemtica tradicional da origem: enquanto uma compa-tibilidade ser sempre funcional a posteriori, uma incompatibilidade de-

    monstrada torna-se um constrangimento a priori da evoluo de um sistema.Para tomar emprestado o vocabulrio da ergonomia, seria alis mais justofalar aqui de sujeio do que de constrangimento, a primeira constituindoa resposta de um ator individual ou coletivo aos determinantes materiais, dosquais a segunda portadora. Porque ela se exprime sob a forma de umaimpossibilidade, a condio suficiente torna-se uma condio necessria;melhor, a existncia de uma resposta negativa permite considerar as trans-formaes que o sistema deve experimentar para que ela desaparea. Con-

    tudo, a incompatibilidade demonstrada com algum rigor apenas se tomar-mos por objeto uma tcnica j presente sob uma forma marginal ou embri-onria na totalidade retida como quadro de referncia, ou ainda largamenteutilizada na sua periferia e portanto transfervel por difuso e emprstimo.Em outras palavras, o problema no tanto o de condies de inovaoradical elas esto condenadas, eu creio, a permanecer largamenteespeculativas j que se trata de sociedades sem escrita , mas de condiesde recusa ou da no-intensificao deliberada de uma tcnica j conhecidapotencialmente.

    Compatibilidade e objetivao

    Para as sociedades que o etnlogo estuda, elementos de resposta jexistem. Em primeiro lugar, as pesquisas em Antropologia econmica principalmente as de Maurice Godelier (1973) e Marshall Sahlins (1972) contriburam para trazer luz certas razes daquilo que foi chamado diver-samente de estagnao das foras produtivas, homeostase ou bloqueios

    estruturais nas sociedades sem mercado, mais particularmente nas socieda-des sem classe, razes muito conhecidas para que sobre elas me detenhaaqui. A implicao disto que uma nova tcnica no seria adotada nessassociedades se ela colocasse manifestamente em perigo a reproduo idnticade objetivos do sistema socioeconmico e os valores sobre os quais ele sefunda. Este efeito de inrcia no impede a aquisio de novas tcnicas, masele limita geralmente a sua envergadura. Assim, os grandes ganhos deprodutividade tornados possveis na Nova Guin, pela substituio de ferra-mentas de rocha por machados de metal, no levaram a uma intensificao

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    Genealogia de objetos e antropologia da objetivao

    da produo horticultora, como uma boa lgica marginalista teria permitidoesperar, mas a uma realocao do tempo assim economizado em relao a

    atividades socialmente desejveis, tais como a guerra e a vida cerimonial(Salisbury, 1962).

    Da mesma forma, e sempre para este tipo de sociedade, a mudana deescala no uso de uma tcnica raramente resulta em um efeito natural decrescimento engendrado pelas propriedades da tcnica ela mesma: a intensi-ficao no interviria sem que todo um conjunto de condies sociais estives-se anteriormente colocado. Um bom exemplo disto a generalizao da cul-tura do milho em terraos nos Andes: de importncia marginal na subsistncia

    das comunidades pr-incaicas, que dele se serviam sobretudo nas libaesrituais, e que se alimentavam principalmente de batatas, o milho tornou-se umfator de produo estratgica apenas quando sua produo foi empreendida emgrande escala e estocada em vastos celeiros para satisfazer as necessidades doexrcito e do aparelho de Estado inca (Murra, 1975).

    Para ser retida, uma tcnica deve, logo, ser compatvel com o conjuntodo sistema tcnico no qual ela venha a se inserir. Esta evidncia bemconhecida dos tecnlogos e dos pr-historiadores e eu somente a retomoaqui porque ela ainda parece bastante ignorada ou, talvez, afastada de

    propsito pelos exportadores de tecnologia em direo aos pases em viade desenvolvimento (Geslin, 1994). Uma terceira condio para a adoo deuma tcnica, e aquela sobre a qual eu gostaria de agora em diante insistir, comumente menos considerada: como toda tcnica se resume a uma rela-o entre o homem e a matria no-viva ou viva (nela compreendido elemesmo), esta relao deve ser objetivvel. Objetivar uma nova tcnica nosignifica poder conceitualmente decompor sua cadeia operatria em unida-des elementares ou poder pensar seu lugar no interior de um sistema tcnicoenglobante. Objetivar uma tcnica supe que a relao original que elainstitui entre o homem e a matria possa ser representada a partir do estoquepreexistente de relaes consideradas como logicamente possveis no inte-rior da totalidade sociocultural que se ter definido de antemo como uni-dade de investigao. Penso portanto que a inovao o produto de umareconfigurao de elementos j presentes, mas eu no prejulgo a natureza deelementos reimportados, nem considero a relao de objetivao como umsimples desvio de competncias (tcnicas ou sociais).

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    Philippe Descola

    Considerar as tcnicas em termos de relaes no certamente origi-nal: uma velha tradio entre os etnlogos e os pr-historiadores ao

    menos os que se dizem influenciados por Leroi-Gourhan. Ainda e sempreenfatiz-lo no , no entanto, indiferente se quisermos escapar ao efeito dereificao que ocasiona uma abordagem fundada ainda muitofreqentemente somente nos estudos de propriedades intrnsecas de artefa-tos. As tcnicas no so coisas, isto no seria assim somente porque aexistncia de tcnicas (em si e por si) bem anterior a existncia de coisas(por si). Para que haja coisa, com efeito, preciso que tenha havidoobjetivao de uma relao particular, que se pode provisoriamente qualificar

    de separao ontolgica. Que ela seja um elemento do ambiente natural ouum artefato, a coisa acontece somente como uma existncia autnomaquando sua essncia diferentemente de seu modo de produo con-cebida como inteiramente independente, ou de uma natureza totalmente dis-tinta daquela dos homens. Este movimento tardio na histria da humani-dade e muitas culturas no dispem, alis, de um lexema equivalente acoisa ou objeto, seno como expresso substitutiva que serve paradesignar genericamente aquilo que no se pode nomear especificamente.Uma sarabatana, uma planta ou uma casa no so coisas nestas culturas,

    mas entidades de um nvel ontolgico inferior, posto que possuidoras decertos atributos de humanidade. Nelas, a relao com coisas no , pois,objetivvel em si, pois aparece como um caso particular, historicamentedatada, da relao tcnica em geral.

    Entendida neste sentido, a relao tcnica consideravelmente estvel notempo: porque o conjunto de relaes possveis com ela mesma ou com umoutrem, vivo ou inerte, muito mais restrito que o conjunto de objetos dedireito, quase infinito que estas relaes so suscetveis de engendrar, agnese social de tcnicas ou gnese tcnica de homens poderiam desdeento se conceber no como um cenrio de evoluo do simples ao complexo(ou ao complicado), mas como uma srie restritiva e mais ou menos cumula-tiva de processos de objetivao de relaes novas. Sem dvida, uma talproposio escandalizar os especialistas de tecnologia cultural, pois ela pa-rece menosprezar seus esforos para identificar, descrever, analisar e classifi-car artefatos, cadeias operatrias e sistemas tcnicos singulares, empreendi-mentos evidentemente necessrios e sem os quais nenhuma generalizaoseria possvel (Cresswell, 1994); a hiptese que eu avano resulta sobretudo

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 8, n. 18, p. 93-112, dezembro de 2002

    Genealogia de objetos e antropologia da objetivao

    da ingenuidade assumida por um etnlogo que jamais estimou necessrioconferir um estatuto epistemolgico particular tecnologia no interior do con-

    junto de relaes materiais e ideais de uma cultura em relao ao seu meioambiente, e deveremos pois tom-la como uma conjectura que outros, melhorqualificados, podero confirmar ou organizar.

    Ingenuamente, pois, reconheo que a complexificao tcnica nuncame pareceu ser problema: a passagem do almofariz para o moedor mecnicoou do tear manual ao tear Jacquard me parece, seno inelutvel ou previs-vel, ao menos congruente com as caractersticas de operaes e com a na-tureza de produtos inerentes a cada um destes artefatos. Acontece exatamen-

    te o contrrio na objetivao de uma nova relao tcnica por exemplo,a domesticao de plantas: revoluo mental tanto na apreenso como notratamento de fronteiras de si e do outro, como a histria da humanidadeoferece, na minha opinio, poucos exemplos. Dentre esses que me vmespontaneamente ao esprito, e em detrimento de um inventrio mais coeren-te, mencionaria desordenadamente: a instrumentalizao, isto , a transfern-cia de uma funo fsica do organismo para um objeto que ser chamadoferramenta por conveno cronologicamente primeiro, pois central noprocesso de hominizao ; a domesticao de plantas e de animais (uso

    diferido); a preservao e a estocagem de alimentos, dito de outro modo, aacumulao de energia para a reproduo da vida2; a disjuno do todo ede partes na organizao de tarefas3; o emprego de uma energia motriz no-humana; a inveno de artefatos cognitivos (Norman, 1988); a criao demquinas auto-organizadas (indivduo tcnico de Simondon) e a engenhariagentica. Em todos estes casos, a objetivao toma a forma seja de umaexternalizao de propriedades ou de funes fsicas e psquicas humanasseja de uma artificializao de uma poro do reino natural.

    2 Na falta de uma teoria cintica da matria, a acumulao de energia realizada na estocagempode ser expressa apenas metaforicamente por aqueles que a praticam; ela contudo formulvel(conforme Reichel-Dolmatoff, 1976, para os ndios Desana), diferentemente da acumulaopassiva de energia em artefatos, tal como aquela que realiza, sem o saber, o pescador Ankaveem sua armadilha para enguias (Lemonnier, 1994) quando ele aproveita uma propriedadeempiricamente constatvel da resistncia de materiais.3 Uma tal disjuno advm quando as competncias polivalentes de cada indivduo, antesexercidas em operaes coletivas sem coordenao explcita, so reorientadas por um mestre-de-obra em direo realizao de tarefas especficas destinadas a cada um: a natureza dascompetncias no mudou, mas a modificao na relao das partes com o todo torna possvel

    a emergncia de uma especializao, e, pois, de uma diviso social do trabalho.

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    Philippe Descola

    Nenhuma dessas rupturas na relao com a matria a exceo talvezda estocagem supe ou mesmo origina uma modificao radical de con-

    dies sociais da produo, a atualizao de potencialidades produtivas con-tidas na nova relao tcnica nada tendo de automtico. Sem dvida, amelhor ilustrao disto a domesticao de plantas, extraordinria mutaono tratamento da natureza, mas que no poderia ser considerada como odeus ex machina da estratificao social, do crescimento demogrfico e daexplorao do outro: lembremos que muitos caadores-cultivadores dificil-mente se distinguem de caadores-coletores do ponto de vista da organiza-o sociopoltica, do modo de produo ou de estratgias de ocupao e de

    gesto do espao, enquanto sociedades fundadas exclusivamente napredao de recursos naturais (ndios da costa noroeste da Amrica do Norteou do Sul da Flrida), apresenta elementos de desigualdade (disparidades deriqueza, uso de mo-de-obra servil, estrutura poltica hierarquizada) que seprocuraria em vo na maior parte dos cultivadores de tubrculos tropicais.

    A desconfiana que experimento em relao a toda problemtica deorigens no implica, por isso, na rejeio de toda perspectiva evolutiva, nacondio de considerar a evoluo como uma reorganizao peridica deelementos j presentes, mas anteriormente combinados de uma maneira di-

    ferente, abordagem atualmente muito clssica e que Marx inaugurou nosculo dezenove com a sua anlise da gnese das relaes de produocapitalistas4. Todavia, e pelas razes j evocadas inicialmente, a atualizaode uma nova estrutura por exemplo, um sistema tcnico no traz em sinenhuma caracterstica de necessidade, salvo por efeito retrospectivo: da aexigncia de considerar antes os fatores negativos ou os constrangimentosde incompatibilidade que interditam a adoo de uma tcnica, e mais pre-cisamente daquilo que j chamei de uma relao tcnica, esta, porque elainstaura uma nova relao com a matria, podendo ser vista como umaespcie de matriz de inovaes tcnicas. o que gostaria de fazer agoraexaminando as causas da no-objetivao de uma relao tcnica particular,a domesticao animal, numa vasta regio do mundo, a saber, a Amrica doSul no-andina.

    4 Principalmente em as Formas que precedem a produo capitalista (Centre dtudes et deRecherches Marxistes, 1970, p. 180-226).

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 8, n. 18, p. 93-112, dezembro de 2002

    Genealogia de objetos e antropologia da objetivao

    Objetivao de uma relao e objetivao de um objeto

    A totalidade escolhida como quadro de referencia suficientementevasta para que a anlise seja desempenhada tanto do particularismo estreitode uma monografia singular como de iluses de uma temporalidade mutila-da: vrios milhares de culturas diferentes, repartidas sobre um continente de10 milhes de quilmetros quadrados, manifestam, sem falhar, desde hvrios milnios, uma teimosa rejeio domesticao animal, entendidaaqui no sentido restritivo da reduo a um estado de domesticabilidade deuma srie de indivduos descendentes uns dos outros sob controle do homem

    (Geoffroy Saint-Hilaire apud Digard, 1988, p. 34). Com efeito, fora dosAndes, onde os cameldeos e a cobaia foram domesticados h pelo menos6 mil anos, o nico animal domstico autctone da Amrica do Sul tropical o pato-do-mato (Cairina moschata), provavelmente domesticado no inciode nossa era no litoral setentrional do continente, e cuja criao somente seespalhou muito lentamente a outras regies das terras baixas, onde ele ainda relativamente raro neste momento. A despeito da grande antigidade dadomesticao dos principais cultivos da Amrica do Sul no-andina (talvez6 mil anos para a mandioca), no houve a um movimento equivalente em

    direo domesticao de animais.A primeira explicao possvel deste estado de coisas naturalmente

    de ordem zootcnica: nenhum animal da fauna tropical sul-americana seprestaria domesticao. Nada mais duvidoso, principalmente se pensar-mos que os amerndios conservam em semicativeiro vrias dezenas de es-pcies de animais de estimao. So os filhotes dos animais caados, reco-lhidos e alimentados diretamente no bico ou amamentados, e que recebem,assim, o que os etlogos denominam uma marca (Prgung) de substitui-

    o, levando-os a se apegar aos seus donos ao ponto de os seguir livrementepor todos os lugares. Entre essas espcies costumeiramente amansadas, asmais prprias domesticao so sem dvida os grandes roedores (a paca,a cutia, a cutiaia um myoprocta e a capivara), a anta, os animais perten-centes famlia Tayassuidae (porco-cateto5, porco-do-mato-queixada6 e por-co-do-mato do Chaco7) e certos pssaros, principalmente terrestres, que j

    5 Pcari collier, conforme o autor (N. de T.).6 Pcari lvres blanches, segundo o autor (N. de T.).

    7 Pcari du Chaco (N. de T.).

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    Philippe Descola

    levam ao redor das casas amerndias uma vida semelhante quela que levamas aves criadas em ptios cercados (uma meia dzia de espcies de

    cracdeos e de tinamdeos, e o jacamim Posphia crepitans , muitoutilizado em toda a regio como animal de guarda) 8. Quando eles so fami-liarizados muito cedo com o homem, estes animais so geralmente dceis esuportam bem o cativeiro; eles representam tambm uma fonte potencial eno-desprezvel de carne9. Ento, salvo rarssimas excees, estes animaisdomsticos no so mortos para ser comidos (Erikson, 1987); quando o so,isto acontece por causa de uma caracterstica particular de seu dono e nocomo resultado de uma norma culturalmente dada, ou, ainda, em condies

    rituais muito especficas, que implicam um verdadeiro luto coletivo, como o caso do sacrifcio da anta entre os Pano (Frank, 1987).A questo da no-domesticao do porco-do-mato foi, particularmente,

    objeto de ateno de Morton (1984) para a Amrica do Sul, e de Hunn (1982)para a Amrica Central, local onde ele igualmente est presente, especialmenteem razo de uma possvel analogia com as condies de criao do porco naNova Guin10. Se verdade que os porcos-do-mato machos tornam-se svezes turbulentos, at agressivos, na idade adulta, tornando assim uma repro-duo controlada mais difcil, teria sido possvel, entretanto, adotar na Am-

    rica do Sul a mesma soluo que na Nova Guin, onde as porcas erramlivremente nos matos dos arredores da aldeia e so cobertos por machos no-castrados que permaneceram selvagens (Haudricourt, 1986). Na Amaznia,porcos-do-mato e antas amansados so, alis, muito raramente confinados emum cercado, e perambulam livres nas proximidades dos locais habitados,voltando apenas para serem alimentados quando seus donos os chamam. Aalimentao de um rebanho no exigiria uma intensificao considervel das

    8 Em um estudo zootcnico recente de potencialidades para a domesticao de diferentes

    espcies selvagens em termos de rendimento e de etogramas, Franois Feer sobretudo tomoupara a Amrica do Sul: a capivara, o porco-do-mato e a cutia (comunicao no SimpsioUnesco-CNRS A alimentao na floresta tropical: interaes bioculturais e aplicaes para odesenvolvimento, Paris, 10-13 de setembro de 1991), o que parece confirmar experinciasrealizadas por toda a Amrica do Sul. Lembremos, alm disso, que a anta foi s vezes utilizadacomo animal de trao pelos brasileiros contemporneos (Grzimek, 1975, p. 29) e que a paca,a cutia e a cutiaia so zoolgica e etologicamente muito prximas da cobaia.9 Entre 200 e 300 kg para a anta; de 15 a 35 kg para os porcos-do-mato, segundo a espcie;mais ou menos a mesma quantidade para a capivara; de 10 a 12 kg para a paca; ao redor de 7kg para a cutia.10 De todas as espcies da fauna tropical americana, o porco-do-mato tambm aquela cujo

    etograma corresponde mais estreitamente aos traos caractersticos reconhecidos pelos etlogoscomo favorecendo o processo de domesticao (Digard, 1990, p. 96-97).

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    Genealogia de objetos e antropologia da objetivao

    fontes oriundas da horticultura, de um modo geral subexploradas atualmente(Descola, 1986), visto que a batata-doce, uma das primeiras espcies de planta

    a ser domesticada na Amrica e cuja introduo na Nova Guin contribuiujustamente para o desenvolvimento da criao do porco a famosa revolu-o ipomeana11, j geralmente empregada na Amaznia para alimentar umoutro animal domstico, o co.

    Todavia, e assim observado justamente por Morton (1984, p. 54), atcnica de criao habitualmente praticada na Nova Guin implica que ashortas sejam preservadas de incurses de porcos por meio de barreiras; suaconstruo supe um investimento em trabalho no desprezvel, que os

    amerndios, cujas roas no so cercadas, mostrariam m vontade talvez emaceitar. Seria, entretanto, possvel criar os porcos-do-mato em currais, postoque sua reproduo em zoolgicos parece no apresentar dificuldades parti-culares, ao menos para aqueles da espcie com colar12 (Sowls, 1974, p. 160);o emprego de recintos cercados foi, alis, provavelmente usado no Brasilcomo tcnica de caa, sem que este tipo de estocagem desencadeasse porisso uma tentativa de reproduo controlada13. Esse ltimo exemplo enfati-za bem, ademais, a diferena de atitude dos amerndios com relao aosanimais capturados para ser consumidos, mas mantidos coletivamente, sepa-

    rados da aldeia, e os indivduos de mesma espcie que no so comidos, poiseles foram tratados de maneira maternal e socializados nos lugares habita-dos. Igualmente, a criao do porco europeu em cercados no desconhe-cida: algumas sociedades da alta Amaznia em contatos regulares com osAndes a praticam aparentemente desde h muito tempo e no tm nenhumescrpulo particular em comer porco. Tratar-se-ia, pois, menos de uma re-pugnncia em relao aos animais domsticos em geral do que uma repug-nncia em domesticar os animais passveis de ser caados 14.

    11 Ipomea, nome cientfico da batata-doce (N. de T.).12 Porco-cateto (N. de T.).13 o que Lvi-Strauss (1964, p. 95) infere de mitos mundurucu e kayap, que parecem indicarque os porcos-do-mato eram antigamente caados atravs de tcnicas em que estes animais eramdirecionados fora para cercados nos quais eles eram conservados e alimentados antes de sermortos na medida das necessidades; ver tambm Rodrigues (1890).14 o que confirma o exemplo de ndios cavaleiros do sul do continente (Tehuelches,Guaycurus, etc.) e sobretudo os Guajiros, que, adotando desde o sculo XVI a criao de bovinos,de cavalos, de ovelhas e de cabras, rapidamente se transformaram em verdadeiros pastores

    nmades, sem por isso abandonar a caa nem o sistema de representao que lhe est associado(Perrin, 1983, 1987; Picon, 1983).

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    Uma tal repugnncia poderia evidentemente se explicar pelo simples fatode que mais econmico conseguir carne caando animais relativamente

    abundantes do que se dar o trabalho de os criar. Sabe-se agora, com efeito,que a Amaznia no este deserto protico que alguns advogados daecologia cultural quiseram pintar, e que aos amerndios est longe de lhes faltara caa, mesmo existindo disparidades notveis na sua acessibilidade em fun-o de meio ambientes (Chagnon; Hames, 1979; Descola, 1986). Igualmente, verossmil que, como sugere Sigaut (1980), o animal no foi inicialmentedomesticado para ser comido porque ele podia ser caado , mas antespelos produtos secundrios. No menos verossmil que as fracas densidades

    de populao que permitem atualmente nas regies interfluviais uma aquisiocorreta de protenas animais atravs da caa no foram sempre a norma naAmaznia. Sociedades extremamente densas, mas muito cedo destrudas pelaexpanso colonial europia, desenvolveram-se durante aproximadamente doismilnios sobre os terraos aluviais de grandes rios, que no julgaram neces-srio recorrer domesticao de animais para compensar o que a caa nopodia mais lhes assegurar (Roosevelt, 1991): fontes de protena alternativas caa foram encontradas, principalmente o cultivo intensivo do milho e, emmenor quantidade, a fauna aqutica (a estocagem de tartarugas de gua doce

    em espaos cercados, assaz largamente atestada no curso do Amazonas, impossvel de ser semelhante a uma domesticao). Tudo se passa, pois, comose entre o amansamento dos animais autctones passveis de ser caados esua domesticao verdadeira havia um passo que os amerndios de regiestropicais sempre recusaram dar15.

    Interrogando-se sobre as razes que conduziram os ndios da Amazniaa no comer seus animais de estimao, Erikson prope considerar oamansamento como uma prtica compensatria, reparando simbolicamente,atravs da adoo dos filhotes dos animais caados, o dano causado a seusgenitores (1987). O respeito escrupuloso da tica da caa matar apenas os

    15 Admito perfeitamente a argumentao de J.-P. Digard que, diante da extrema diversidade derelaes possveis entre o homem e o animal vivo com ele em contato cativeiro,familiarizao, amansamento, domesticao, etc. , prefere considerar estas como variantes deum mesmo processo de domesticao ao invs de distinguir em seu interior etapas ou formasparticulares, cuja tipologia necessariamente contradita por excees (Digard, 1988, 1990);entretanto, me parece que do ponto de vista no-gentico ou no-etolgico, mas das repre-sentaes da ao do homem sobre o vivo no-humano, existe, sim, como o exemploamericano sugere, uma diferena de natureza e no de grau entre o animal amansado e o animal

    domesticado (no sentido restrito definido anteriormente).

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    animais necessrios, comportar-se com respeito em relao aos animaiscaados, etc. como os ritos de contrapartida no seriam, com efeito, sufi-

    cientes, em um universo cultural no qual a reciprocidade um valor cardeal,para desfazer o mal-estar conceitual do caador frente supresso uni-lateral de uma vida: da a funo de justificao do amansamento. Certa-mente de mau gosto comer os rfos cujos pais se matou, mas no seguro que o hbito de recolher e de criar os filhotes de animais caadospossa ser reduzido inteiramente a uma operao de reabilitao psicolgica.Muitas sociedades amerndias, com efeito, comportam-se de maneira idn-tica no que diz respeito aos inimigos, dos quais se rapta as crianas para

    integr-las famlia do assassino de seus pais e onde elas so, desde ento,tratadas sem discriminao como se fossem consangneos de antiga cepa.Longe de ser o produto da m conscincia, este canibalismo sociolgicorepousa sobre uma ideologia predadora que v na captura de pessoas, desubstncias e de identidades junto ao outro uma condio necessria para areproduo do grupo local (Descola, 1992): na guerra como na caa, aabsoro da alteridade e de seu poder gensico passa pois tanto pela incor-porao fsica (antropofagia ritual, caa aos trofus, consumo dos animaiscaados) como por uma incorporao social (rapto, amansamento). Em

    outras palavras, em toda a Amrica do Sul tropical caracterizada, lembre-mos, pela predominncia de sistemas dravidianos com duas sees comum que os inimigos e os animais passveis de ser caados sejam tratadoscomo afins, relao de oposio complementar fundadora de toda sociabi-lidade. Tornar as crianas raptadas e os animais de estimao semelhantesa consangneos faz notar, pois, a simetria lgica prpria deste dualismo, noqual tratamento da natureza e tratamento de outrem esto em estreita cor-respondncia16, uma equivalncia que se poder exprimir segundo a clssicafrmula de homologia estrutural:

    afins : consangneos :: inimigos : crianas cativas :: animais paraa caa : animais de estimao

    Se o amansamento jamais se converteu em uma proto-domesticao pois, antes de tudo, em razo da maneira pela qual a relao do homemao animal est representada praticamente em toda a Amrica do Sul no-

    16

    Para retomar a justamente clebre hiptese de Haudricourt (1962).

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    andina. Os animais passveis de ser caados so vistos tanto como um alterego em posio de exterioridade absoluta quando eles so caados como

    demasiadamente idnticos a ego para serem comidos, uma vez amansados.Exterioridade absoluta porque a sociedade dos animais concebida ima-gem da dos homens, independente e obedecendo a suas prprias regras, eque as relaes entre os dois mundos so governadas por uma lgica detroca na qual os participantes so de direito, seno de fato, equivalentes.Esta equiparao exprime-se principalmente na prtica muito comum denegociar com um esprito, o Senhor dos Animais, ou com um ser represen-tando a figura prototpica da espcie, a autorizao de empreender uma

    caada em contrapartida de almas humanas, de tabaco, ou mais simplesmen-te, s vezes, da perpetuao de uma afinidade ideal (Zerries, 1954). Quandoo contrato no respeitado, ou quando intervm uma grave falta de tica dacaada, o Senhor dos Animais vinga-se nos humanos, enviando doenas,espritos canibais ou serpentes venenosas, violando as mulheres ou delasretirando os filhos. Em outras palavras, a relao dos animais com seusenhor , ela mesma, concebida maneira de uma domesticao: ele osconserva na sua casa ou num cercado, os protege de predadores humanos,e deles se alimenta quando necessrio. Os animais caados so, pois, j

    domesticados no imaginrio, e bem, mais completamente que no o so osanimais de estimao, mas de um modo que interdita aos homens tentar aoperao por sua prpria conta. Isto implicaria, com efeito, no tanto em umprocesso emprico teoricamente prefigurado pelo amansamento mas em umatransferncia de sujeio a qual o Senhor dos Animais deveria consentir,hiptese no somente inconcebvel para os amerndios, mas que, abolindo aexterioridade dos animais passveis de ser caados, reconsideraria comple-tamente as fronteiras internas de seu edifcio cosmolgico, como os princ-pios graas aos quais eles pensam suas relaes com a sociedade e com anatureza.

    Ao contrrio do porco na Nova Guin ou do gado na frica, objetosde uma transferncia metonmica tornando-os aptos a exprimir as qualidadese as aspiraes daquele que os possui, e suscetveis em conseqncia deservir de substituto aos homens nas trocas (compensaes matrimoniais ouindenizao de um homicdio)17, os animais passveis de ser caados na

    17 Para a Nova Guin, ver Lemonnier (1994); para diferentes regies da frica, ver Kuper

    (1982), Evans-Pritchard (1940), Bonfiglioli (1988).

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    Genealogia de objetos e antropologia da objetivao

    Amrica do Sul tropical so pensados apenas como o sujeito independentee coletivo de uma relao contratual com os homens. A relao com o

    animal assim a definida por aquilo que eu chamei, em outro lugar, de umsistema anmico, ou seja, uma inverso simtrica de classificaestotmicas: enquanto essas ltimas usam relaes diferenciais entre as esp-cies naturais impondo uma ordem conceitual segmentao social, os sis-temas anmicos empregam as categorias elementares, estruturando a vidasocial para pensar as relaes entre os homens e as espcies naturais. Arecusa da tcnica de domesticao na Amrica do Sul no-andina poismenos o produto de uma escolha consciente que teria sido independente-

    mente efetuada por milhares de culturas do que o efeito de uma impossibi-lidade necessariamente conjuntural, mas de muito longa durao detransformar profundamente seu modelo de relao com o animal selvageme, mais geralmente, com a natureza.

    Contanto que certas condies sejam preenchidas, muito mais fciladotar um objeto tcnico novo que inventar uma nova relao tcnica. Osndios da Amaznia compreenderam imediatamente a vantagem de utensli-os metlicos, de armas de fogo e, mais recentemente, de motores de popa oude motoserras, os quais executam de maneira muito mais eficiente que seus

    utenslios de madeira e de rocha funes perfeitamente idnticas: cortar,enviar projteis, propulsar uma embarcao. Eles nem mesmo hesitaram,em certos casos, de aprender com os Brancos tcnicas elementares de fun-dio e de moldagem de metais com o fim de fabricar e consertar as armasde que tinham necessidade para se livrar da presena daqueles que, commuita ingenuidade, os haviam instrudo nesta arte18. O emprstimo pelosamerndios de animais domsticos europeus, a comear pelo co, fez-se,igualmente, sem grandes dificuldades, pois as modalidades tcnicas e ideo-lgicas do tratamento do animal foram-lhe, em grande parte, transmitidascom o animal ele mesmo e implicavam somente alguns rearranjos nastaxonomias (conforme Descola, 1986, para o exemplo do co entre osJvaros). De modo inverso, acontece exatamente o contrrio nadomesticao de animais autctones, cujo princpio abstrato estava no entan-to presente por analogia com a relao do Senhor dos Animais com seussditos e desde h quase cinco sculos, em certas regies, por uma certafamiliaridade com os animais domsticos europeus , mas cuja atualizao

    18 O caso de forjas amuesha foi discutido em detalhes por Santos Granero (1988).

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    teria exigido uma reorientao completa de princpios estruturais que gover-nam os sistemas sociolgicos e cosmolgicos.

    Este exemplo permitir-me- precisar, guisa de concluso, certascaractersticas disto que chamei de uma relao de objetivao. Para dissipartodo mal entendido, faz-se necessrio, em primeiro lugar, enfatizar de novoque a objetivao de uma relao no leva necessariamente reificao deum de seus termos. Assim, a objetivao da relao de domesticao nosignifica absolutamente que o animal domesticado ser a partir deste mo-mento destitudo de seu status de quase-pessoa e concebido como umacoisa; mais exatamente, ele tornar-se- uma coisa apenas no momento de ser

    morto para ser consumido, isto , precisamente quando a relao que seestabeleceu entre seu dono e ele deva ser abolida a fim de tornar legtimasua morte, at mesmo suportvel, fenmeno que se observa ainda presente-mente nas sociedades rurais europias (Dalla Bernardina, 1991). A naturezados termos influi, pois, sem nenhuma dvida, na natureza da relao: acoexistncia, em muitssimas culturas da Amrica do Sul tropical, de duasmodalidades diferentes de objetivao de duas classes de animais distintos(a caa-amansamento dos animais passveis de serem caados e a criao deanimais domsticos europeus) sugere que os termos no podem ser facil-

    mente transferidos de uma relao para a outra. A transferncia, quandofeita, se opera, de preferncia, por incluso de termos algenos na relaooriginal e no o inverso: conhece-se vrios casos nos quais animais doms-ticos tornados selvagens de novo foram transformados em animais passveisde serem caados, sem que tenha sido constatada a transformao de animaispassveis de ser caados em animais domsticos.

    Pode-se, agora, retomar a pergunta que eu tinha cunhado, no incio, deinvlida: quais condies uma relao de objetivao deve satisfazer paraemergir? Nela, eu me arriscarei apenas dissimulando minhas conjecturasatrs do vu protetor de uma alta abstrao. permitido supor que antes deser objetivada, uma relao tcnica existe de maneira imanente sob a formade um esquema elementar da prxis (Descola, 1992), isto , de um prin-cpio geral de ao sobre a matria e o ser vivo, orientando as aes de umasociedade ou de um grupo de sociedades culturalmente aparentadas. Paraser breve, eu diria que a idia de enclausuramento, tal qual Lemonnierdemonstra (1994), parece-me fornecer uma excelente ilustrao. Mas esteesquema pode apenas se prestar a dar forma a uma nova relao de

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    objetivao se os termos suscetveis de ser objetivados por ele sejam ouinteiramente novos (fenmenos de emprstimo, de difuso, etc.), ou j pro-

    fundamente modificados pelo progressivo desaparecimento da relao queos objetivava no incio (transformaes do modo de produo como resul-tado da expanso territorial, de acidentes da demografia, da adaptao adiferentes ecossistemas, etc.). A contingncia tem sempre um papel deprimeiro plano nesta interao dialtica entre os termos e as relaes, semque ela seja no entanto completamente entregue ao arbitrrio, pensamentoconsolador para todos aqueles que ainda no renunciaram a esclarecermecanismos da variabilidade cultural no curso da histria humana.

    Traduzido do francs por Sergio Baptista da Silva eRogrio Reus Gonalves da Rosa

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