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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
DESCOLONIZAR OS DIREITOS HUMANOS: ESTUDO E VIVÊNCIA DESDE O KARIRI
CEARENSE
Nayara de Lima Monteiro1
Resumo: O paradigma da modernidade traz consigo a face da colonialidade, presente em todos os
âmbitos da vida social, desde o nível local ao internacional. Entendendo que este paradigma impõe
as formas das relações de gênero, raça, política, instituições, classe, de saber, entre outras, e na
tentativa de auxiliar na construção de um mundo descolonial, idealizou-se o grupo “Direitos
Humanos e descolonialidade na América Latina” no curso de Direito da Faculdade Paraíso-CE no
Kariri cearense. O objetivo é analisar como os Direitos Humanos estão formatados desde esse
paradigma e fazer o giro descolonial teórico-prático dentro do espectro amplo das relações sociais
colonizadas nesse espaço. Para tanto, utilizam-se os ensinamentos de Dussel, Lugones e Freire. Na
próxima fase, dar-se-ão as vivências dos/as discentes em grupos e movimentos sociais feministas,
ou ainda em comunidades de povos tradicionais para visualizar na práxis, como outras formas de
relações anti-coloniais e/ou descolonizadas são possíveis.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Descolonialidade; Feminismo descolonial; América Latina
Quem somos? De onde falamos? Por que falamos? Quais bases teórico-práticas nos
fundamentam?
As linhas que se seguem são uma tentativa resumida para explicar um pequeno espaço que
surge para questionar os padrões de saber-poder existentes na estrutura da sociedade brasileira, e
porque não afirmar, na estrutura de mundo abissalmente2 ocidental. Contextualizando de forma
pessoal, nos anos de 2013 e 2014, tive a oportunidade, enquanto estudante, de ter acesso aos debates
em torno da análise dos direitos humanos a partir da Filosofia da Libertação, que tem como
referência Enrique Dussel. Além dessa perspectiva, também tive acesso à chamada “Teoria Crítica
dos Direitos Humanos”, que em poucas linhas, trata do questionamento das bases filosóficas,
históricas, jurídicas, entre outras, dessa categoria dentro do mundo jurídico, como retrata David
Sanchez Rubio:
1 Advogada e Mestra em Relações Internacionais. Professora de Direito Internacional Público e Privado e Mediadora
do Grupo de Estudos “Direitos Humanos e descolonialidade na América Latina” no curso de Direito da Faculdade
Paraíso-CE no Kariri cearense. 2 Para explicar o termo abissal, uma pequena citação de seu criador: “El pensamiento occidental moderno es un
pensamiento abismal. Éste consiste en un sistema de distinciones visibles e invisibles, las invisibles constituyen el
fundamento de las visibles. Las distinciones invisibles son establecidas a través de líneas radicales que dividen la
realidad social en dos universos, el universo de ‘este lado de la línea’ y el universo del ‘otro lado de la línea’. La
división es tal que ‘el otro lado de la línea’ desaparece como realidad, se convierte en no existente, y de hecho es
producido como no-existente. No-existente significa no existir en ninguna forma relevante o comprensible de ser. Lo
que es producido como no-existente es radicalmente excluido porque se encuentra más allá del universo de lo que la
concepción aceptada de inclusión considera es su otro. Fundamentalmente, lo que más caracteriza al pensamiento
abismal es, pues, la imposibilidad de la presencia de los dos lados de la línea. Este lado de la línea prevalece en la
medida en que angosta el campo de la realidad relevante. Más allá de esto, sólo está la no-existencia, la invisibilidad, la
ausencia no-dialéctica” (SANTOS, 2010, p.31-32).
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Correntemente, os direitos humanos são compreendidos e, consequentemente, instrumentalizados,
dentro de uma perspectiva universalizante, de forma hierárquica, de matriz jurídico-estatal,
formalista e pós-violatória, gerando uma cultura anestesiada, reproduzindo práticas e anseios
simplificados das relações humanas. Os paradigmas hegemônicos do direito acabam respaldando a
manutenção e a difusão desses aspectos tradicionais, engendrando percepções insuficientes sobre
os múltiplos fenômenos jurídicos (RUBIO, 2010, p.1).
A “Teoria Crítica dos Direitos Humanos”, por sua vez, objetiva construir uma concepção
muito mais complexa, racional, sócio-histórica e holística, que priorize as próprias práticas
humanas, que fazem e desfazem, constroem e desconstroem os direitos humanos. O viés crítico,
sócio-histórico, relaciona-se com as obras de diversos autores, principalmente os da mencionada
filosofia da libertação (RUBIO, 2010).
É nessa perspectiva e a partir dos questionamentos suscitados com o acesso a esse
conhecimento, e também por todo um histórico de vida pessoal e estudantil, que, uma vez, já no
ofício de docente dentro da Faculdade Paraíso – FAP, idealizo o “Grupo de Estudos em Direitos
Humanos e De(s)colonialidade na América Latina”3. Esse grupo, formado por 17 mulheres e 6
homens, estudantes do curso de Direito do 3º ao 10º semestres, surgiu, primeiramente, com os
seguintes objetivos: a) aprofundar o estudo no que seriam os “direitos humanos” tradicionais de
cunho moderno/europeu; b) analisar a abordagem de(s)colonial realizada pelos(as) estudiosos(as)
latino-americanos(as) na releitura dos “direitos humanos” de cunho moderno/europeu; c) averiguar
como os “direitos humanos” tem sido reinventados a partir das práticas de grupos sociais de
variadas matizes na América Latina; d) investigar se existe em três municípios da região do Cariri4,
Juazeiro do Norte, Crato e/ou Barbalha, agrupamentos sociais que, na sua práxis, de(s)colonizam o
que são os direitos humanos de cunho moderno/europeu. Alguns dos objetivos estão sendo
alcançados desde outubro de 2016, momento em que é criado o grupo. E é sobre o caminho que se
3 Sobre o termo “descolonial” ou “decolonial” e suas variações, opta-se pelo uso dos dois, pois se pensa que um
complementa o outro, ainda que no resumo e nas palavras-chave não tenha vindo o termo com o “s” em parênteses. A
professora Luciana Ballestrin explica que a expressão “descolonial” (ou decolonial) não deve ser confundida como
mera descolonização: “Em termos históricos e temporais, esta última indica uma superação do colonialismo; por seu
turno, a ideia de decolonialidade (ou descolonialidade) procura transcender a colonialidade, a face obscura da
modernidade, que permanece operando ainda nos dias de hoje em um padrão mundial de poder” (BALLESTRIN,
2013). 4 “Reporta-se, no texto, à grafia do Cariri região com ‘C’, e Kariri indígena com ‘K’, segundo convenção etnográfica. A
microrregião do Cariri é uma das microrregiões do Estado brasileiro do Ceará, pertencente à mesorregião Sul Cearense.
Sua população foi estimada, em 2009, pelo IBGE, em 528.398 habitantes e está dividida em oito municípios. Possui
uma área total de 4.115,828 km²” (LIMAVERDE, 2015, p. 8). Neste trabalho, está sendo usado a fusão de Cariri como
região que é fundada pelos Kariris, etnia indígena. Lugar e pessoas confundem-se e apresentam mundos que se inter-
relacionam.
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tem percorrido para se chegar a esses objetivos, que esse trabalho foi proposto como uma forma de
catalogação de todo o trabalho já ministrado e desenvolvido com esses estudantes. Ora de maneira
leve, ora árdua, ora já quase parando, são algumas possibilidades de descrever como se tem trilhado
esse caminho de (des)construção de pensamento dos direitos humanos no lugar onde estamos.
Ao longo dessa caminhada, e a partir das tomadas de consciência em torno dos textos lidos e
debatidos, chegou-se a um ponto interessante e relevante de ser mencionado e que apresenta uma
roupagem e substância mais viscerais a este trabalho acadêmico, que é o “lugar de onde se fala” ou
“a enunciação da fala”. Contextualizando geopolítica e cartograficamente, e usando os
ensinamentos de Boaventura de Sousa Santos, fala-se desde a América Latina, Sul do mundo,
afunilando-se e chegando-se ao Nordeste brasileiro e ao Kariri cearense. A importância em se tratar
do lugar de enunciação da fala reporta-se em afirmar que qualquer análise ou prática que envolva
direitos humanos terá características descoloniais em si mesmas, ainda que invisíveis ou não-
existentes do entendimento hegemônico dos direitos humanos enquanto matriz de
conhecimento/poder/ferramenta jurídica. E esse argumento aqui é baseado na fundamentação
teórica que levamos a cabo para nossas reuniões, quais sejam: filosofia da libertação, teoria crítica
dos direitos humanos e as epistemologias do sul.
Desde mi punto de vista, las Epistemología del Sur son el reclamo de nuevos procesos de
producción, de valorización de conocimientos válidos, científicos y no científicos, y de
nuevas relaciones entre diferentes tipos de conocimiento, a partir de las prácticas de las
clases y grupos sociales que han sufrido, de manera sistemática, destrucción, opresión y
discriminación causadas por el capitalismo, el colonialismo y todas las naturalizaciones de
la desigualdad en las que se han desdoblado; el valor de cambio, la propiedad individual de
la tierra, el sacrificio de la madre tierra, el racismo, al sexismo, el individualismo, lo
material por encima de lo espiritual y todos los demás monocultivos de la mente y de la
sociedad –económicos, políticos y culturales– que intentan bloquear la imaginación
emancipadora y sacrificar las alternativas. En este sentido, son un conjunto de
epistemologías, no una sola, que parte de esta premisa, y de un Sur que no es geográfico,
sino metafórico: el Sur antiimperial. Es la metáfora del sufrimiento sistemático
producido por el capitalismo y el colonialismo, así como por otras formas que se han
apoyado en ellos como, por ejemplo, el patriarcado. Es también el Sur que existe en el
Norte, lo que antes llamábamos el tercer mundo interior o cuarto mundo: los grupos
oprimidos, marginados, de Europa y Norteamérica. También existe un Norte global en el
Sur; son las elites locales que se benefician del capitalismo global. Por eso hablamos de un
Sur antiimperial. Es importante que observemos la perspectiva de las Epistemologías del
Sur desde este punto de partida (SANTOS, 2011, p.16) (grifo nosso).
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Tendo isso em vista, o lugar de enunciação da nossa fala vem do Kariri5 cearense, localizado
no Araripe, coração do Nordeste do Brasil. O Araripe é um imenso planalto6 de formação
sedimentar, sem dúvida é uma deslumbrante paisagem que, do seco sertão da Caatinga, pode ser
contemplada a quilômetros de distância, separando-se do espaço por uma regular, extensa e nítida
linha horizontal. “Rari” ou “Lugar das Araras” é o significado do seu nome “Araripe”, originário da
língua Tupi. (LIMAVERDE, 2015). Podemos definir a região do Cariri cearense como um oásis no
coração do seco sertão nordestino. No Cariri, os fatores ambientais favorecem a vida de forma
singular e os vestígios arqueológicos sugerem que a escolha do habitat humano na região aconteceu
desde épocas muito antigas. Nesse sentido, no Cariri, a paisagem do Araripe é que mantém o
diferencial, pois é fruto de uma história comum e interligada: a história humana e natural. Podemos
perceber fortemente essa integração porque o ambiente da Chapada reflete na cultura local, sendo o
Cariri considerado o Santuário do Nordeste, berço da cultura cearense, inspirando com maior
intensidade a criatividade humana que é ritualizada através de inúmeras manifestações culturais,
expressões, celebrações, saberes e fazeres. É o Cariri uma riqueza em patrimônio imaterial, mestres
da cultura popular, manifestações artísticas e movimentos de arte popular e contemporânea.
Também eclodiram na sua história movimentos messiânicos como a figura mítica do Padre Cícero
Romão Batista e a experiência comunitária e mística do Caldeirão do Beato José Lourenço (século
XIX).
Sua toponímia e sua história são marcadas pelos registros históricos de grupos indígenas,
etnias irrequietas, cuja braveza indômita lhes propiciara a posse de tão ricas e opulentas terras.
Quando o colonizador português começa a expandir o colonialismo desde a Metrópole, começam as
disputas por essas terras férteis no final do século XVII. O nome Cariri foi herdado dos indígenas
submetidos ao aldeamento na Missão do Miranda, hoje Município de Crato – CE, liderados pelo
Capuchinho italiano Frei Carlos Maria de Ferrara, no século XVIII. Assim, neste trabalho, procura-
se incorporar o sentido mítico-ancestral ao conceito de lugar de onde se enuncia a fala, por nos
sentirmos representados pela valentia e resistência dos Kariris nestas terras contra o colonizador e
5O espaço vivido do Cariri é um ‘Reino Encantado’, onde pela força da natureza e do homem se expressam os mitos do
Lugar Sagrado (LIMAVERDE, 2015). 6 É a Chapada do Araripe um patrimônio singular. Guarda um dos maiores tesouros paleontológicos do Brasil e do
mundo, de inestimável valor para o estudo da história geológica da Terra. Os testemunhos fósseis do Araripe, em
privilegiado estado de conservação, são essenciais para o esclarecimento de questões ligadas ao surgimento de oceanos,
formação de climas e desenvolvimentos de ecossistemas há milhões de anos. A Chapada do Araripe é notícia desde o
século XIX e, atrai a atenção de paleontólogos e botânicos de todo o mundo pela quantidade e qualidade dos fósseis lá
encontrados. A diversidade de sua fauna e flora é única e apresenta aspectos em comum à Mata Atlântica e à Floresta
Amazônica. A região conserva ainda hoje, em meio a diversas outras espécies, plantas e insetos tais quais eram no
período Cretáceo (LIMAVERDE, 2015).
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toda a sua carga social, jurídica, política, de gênero, de raça, imposta por meio da violência contra
os povos nativos Kariris. É um resgate e ao mesmo tempo um forma de visibilizar histórias por
mais de 500 anos ocultadas pelo saber-poder europeus. Ou seja, a história não-existente, segundo os
ensinamentos de Boaventura de S. Santos.
Sendo mais específico quanto às áreas em que todo o trabalho do grupo atua, sua
fundamentação tem guarida no questionamento sobre o conhecimento moderno e o direito moderno
como as bases fundantes e que mantem o mundo colonial e o pensamento abismal tão atuais.
El conocimiento moderno y el derecho moderno representan las más consumadas
manifestaciones del pensamiento abismal. Ambos dan cuenta de las dos mayores líneas
globales del tiempo moderno, las cuales, aunque sean diferentes y operen
diferenciadamente, son mutuamente interdependientes. Cada una de ellas crea un
subsistema de distinciones visibles e invisibles de tal modo que las invisibles se convierten
en el fundamento de las visibles. En el campo del derecho moderno, este lado de la línea
está determinado por lo que se considera legal o ilegal de acuerdo con el estado oficial o
con el derecho internacional. Lo legal y lo ilegal son las únicas dos formas relevantes de
existir ante el derecho y, por esa razón, la distinción entre los dos es una distinción
universal. Esta dicotomía centra abandona todo el territorio social donde la dicotomía
podría ser impensable como un principio organizativo, ése es, el territorio sin ley, lo a-
legal, lo no-legal e incluso lo legal o lo ilegal de acuerdo con el derecho no reconocido
oficialmente6 . Así, la línea abismal invisible que separa el reino del derecho del reino del
no derecho fundamenta la dicotomía visible entre lo legal y lo ilegal que organiza, en este
lado de la línea, el reino del derecho. En cada uno de los dos grandes dominios –ciencia y
derecho– las divisiones llevadas a cabo por las líneas globales son abismales hasta el
extremo de que efectivamente eliminan cualquier realidad que esté al otro lado de la línea.
Esta negación radical de la co-presencia fundamenta la afirmación de la diferencia radical
que, en este lado de la línea, separa lo verdadero y lo falso, lo legal y lo ilegal. El otro lado
de la línea comprende una vasta cantidad de experiencias desechadas, hechas invisibles
tanto en las agencias como en los agentes, y sin una localización territorial fija. Realmente,
como he sugerido, hubo originariamente una localización territorial e históricamente ésta
coincidió con un específico territorio social: la zona colonial. (SANTOS, 2010, p.33-34)
Para mudar um pouco essa realidade, é que se pensou na criação do grupo de estudos, para
oxigenar, trazer perspectivas diferentes da lógica hegemônica, e tudo o que de aí se derive, tanto o
âmbito do conhecimento quanto do direito, partindo desse nível local. Agora, vamos entrar no
âmbito mais prático das atividades do grupo, seus logros, seus percalços, seus anestesiamentos,
sentimentos, dúvidas, inseguranças, alegrias, frustrações...
Caminhos trilhados e futuramente trilháveis
O grupo começou suas atividades logo na primeira semana do mês de outubro de 2017,
assim que autorizado pela Direção Acadêmica da faculdade, com a frequência de encontros
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semanais, no turno da tarde. O objetivo, já exposto mais acima, inicialmente foi tratar sobre os
Direitos Humanos de forma geral, mas concentrando na práxis latino-americana desses direitos. Nos
estudos, interconectamos várias áreas do conhecimento acadêmico (Direito, Relações
Internacionais, Ciência Política, Filosofia, Sociologia, História). Porém, temos como viés de análise
de todas essas ciências o que seria a "decolonialidade".
Em termos mais práticos, a decolonialidade tem sido abordada pelo grupo de pesquisa como
via de análise da nossa vida em sociedade em temas atinentes a: nossas relações particulares, se
existe respeito ao outro/a e a prática da alteridade; no conhecimento, no saber e na forma como a
educação está construída no Brasil e na América Latina, se é uma educação questionadora dos
padrões eurocêntrico-modernos ou libertadora, como já dizia Paulo Freire; nossa relação com o
meio ambiente, se estamos reproduzindo a prática predatória moderna de se relacionar com a
natureza, sempre tendo a linha do lucro do sistema econômico capitalista como objetivo nessa
relação; nas relações de poder entre os Estados na sociedade internacional, questionando por que,
por exemplo, Bolívia é menos poderosa que França e EUA dentro da ONU, ainda que sejam iguais
juridicamente; na nossa cultura popular, questionando se preservamos nosso saber e nossa prática
culturais ou estamos nos abrindo sem questionamentos e sem medidas ao que seria o american way
of life; nas relações de gênero e raça e como o patriarcado influencia nossas vidas, de pensar o
racismo institucional e que a dicotomia feminino e masculino é algo construído com a modernidade
eurocêntrica, sendo que, por exemplo, algumas etnias de povos originários na América Latina, não
encaixam os seres humanos em "homem" ou "mulher"; ou ainda na religão, se somos intolerantes
com outras religiões que não seja de cunho cristã, entre outros temas.
Com todos esses exemplos, podemos visualizar praticamente todos os direitos humanos
conhecidos e positivados desde a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 da ONU, mas
o objetivo geral do grupo é analisar como a própria estrutura de enunciação desse direito via
Estados e organizações internacionais estão atramados em bases que não se conectam com um todo
da nossa realidade local-nacional-regional latino-americana da prática, garantia e efetivação dos
direitos humanos nesses âmbitos. A utilização da "decolonialidade" é a via de análise e construção
de novas abordagens e reafirmação de práticas de vida em sociedade de forma digna que
escolhemos caminhar.
Para tanto, os quatro primeiros encontros foram divididos em dinâmicas de grupo para que
todos os integrantes se conhecessem e, assim, os trabalhos fluíssem da melhor maneira. Como
também, foi abordado o objetivo do grupo e uma grande explanação do é todo este debate teórico já
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apresentado. Logo, então, os três próximos encontros foram reservados para leitura e discussão de
parte do livro “A afirmação histórica dos Direitos Humanos” de Fábio Comparato, com a intenção
de revisar os conceitos universais de direitos humanos que comumente são vistos na Academia.
Após esse primeiro momento, começou-se a trabalhar textos trazendo uma visão descolonial de
direitos humanos dos seguintes autores: Boaventura de Sousa Santos, Enrique Dussel e Alejandro
Rosillo.
Para finalizar o semestre 2016.2, o grupo criou um meio de externalizar algo dos
questionamentos que permearam todos os encontros acontecidos até então. Por isso, pensamos na
ideia da intervenção nos murais da FAP (principalmente nos murais dos corredores e salas do curso
de Direito). A intervenção consistiu em confeccionar balões usados comumente nos gibis (fala,
pensamento, afirmação) em cartolinas coloridas com frases que abarcaram as áreas da vida em
sociedade em que entendemos que o binômio modernidade/colonialidade afeta a garantia plena dos
direitos humanos, desde o nível local até o regional latino-americano e global. Algumas das
perguntas foram: “Se a liberdade religiosa é um direito humanos, porque as religiões de matriz
africanas são tão discriminadas?”; “Se existe igualdade jurídica entre os Estados, porque a Bolívia
não é tão poderosa quanto os EUA?”; “Você sabe o que é pachamama?”; “Você já ouviu falar em
feminismo descolonial?”. Todo esse trabalho foi realizado em conjunto (docente e discentes) em
novembro do semestre mencionado.
O grupo finaliza esse primeiro semestre de atuação com uma grande reflexão sobre tudo o
que foi estudado e sobre a experiência da intervenção. Primeiro, os percalços enfrentados para
idealizar e pôr em prática uma atividade não comum no espaço onde está o grupo, e menos ainda
direcionado a um público que, na sua grande maioria, vê/viu tal intervenção como “besteira” ou
com questionamentos no sentido de não agregar ao debate, mas sim de reagir de forma a silenciar a
intervenção. A partir dessa primeira atividade, chegaram-se a duas grandes conclusões: que é
importante seguir incomodando o hegemônico e que é mais que necessário o diálogo com o
“externo” à faculdade, através de vivências de extensão e convite a representantes de movimentos e
grupos sociais estarem agregando a nossa prática.
No segundo semestre de atuação do grupo, começado em fevereiro de 2017, planejamos
continuar nos estudos dos textos que tratam sobre as questões de(s)coloniais dentro dos direitos
humanos, promover ações dentro da faculdade, como eventos, fazer a seleção de novos/as
membros/as para composição do grupo, e empreender na extensão com viés popular, que seria a
saída dos/as estudantes para vivenciarem em espaços ditos populares na região do Kariri no intuito
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de sentir e perceber espaços de resistência e construção dos direitos humanos nessa perspectiva
descolonial. Alguns objetivos foram alcançados, outros não. Explicam-se, pois, os motivos nas
linhas que se seguem.
A construção do “processo seletivo” foi empreendida de forma horizontal e participativa,
onde foi dividido o grupo em subgrupos, para, no momento da seleção, cada estudante ser
protagonista na fala e no debate neste momento, e não somente a docente, que vos escreve, e que
normalmente é incubida a tal função. Os subgrupos foram divididos em temáticas sobre:
feminismos, meio ambiente, espiritualidade/religiosidade, cultura popular, América Latina e
educação. Poucas pessoas inscreveram-se para tal momento, fato que se pode analisar como um
percalço ao debate sobre tais temáticas. O corpo discente não se motiva para tais questões, por
motivos vários, mas um mais palpável é a tão latente falta de interesse ou de compreensão de que a
formação do/a profissional do direito também se faz a partir da pesquisa e da extensão, como
âmbitos importantes e tão equivalentes ao ensino. Pode-se dizer também que a falta de oportunidade
para estar em espaços como esses, que no histórico da faculdade, é mais ausente que presente,
possivelmente influenciou na falta de inscrições para a seleção. Porém, ainda com todos os
percalços, aconteceu a seleção e esse foi um momento de importante debate entre todos/as que já
compunham o grupo e os seis estudantes que se interessaram em fazer parte.
Em paralelo, aconteceu a coincidência de Leonardo Boff, teólogo e um dos criadores da
“Teologia da Libertação” está presente na região do Kariri, onde pude contatá-lo para fazer uma
fala dentro da faculdade a partir do que seria uma atividade proposta pelo grupo. O motivo do
contato foi de Boff ser uma referência para nossos estudos, já que estamos promovendo uma
perspectiva contra-hegemônica de construção de novas sociabilidades, descoloniais. Nas
articulações, não foi possível tal evento, por questões financeiras (e, possivelmente, de ausência de
interesse institucional). Um grande golpe para o grupo, mas seguimos, ainda que quase parando,
anestesiados com a perda de tal evento com uma grande referência para nossos estudos. Isso
influenciou no objetivo anteriormente previsto sobre o fazer extensão. Ficamos imóveis, quase
parados, vendo na prática como o pensamento hegemônico atua com um simples “não” desde o seu
gabinete.
Nos encontro do meio do semestre para o final, continuamos estudando, utilizamos
documentários, debates em torno do momento político brasileiro e um marco teórico interessante de
Fernanda Bragato, onde ela reafirma a contribuição da descolonialidade para ir além do discurso
europeu dos direitos humanos.
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A teoria dominante dos direitos humanos assenta-se em duas concepções centrais
amplamente influentes para a fundamentação destes direitos. Do ponto de vista histórico-
geográfico, sustenta-se que os direitos humanos são direitos que nasceram das lutas
políticas europeias e de suas respectivas reivindicações: parlamentarismo inglês, revolução
francesa e independência americana. Na perspectiva filosófico-antropológica, são direitos
resultantes da concepção de indivíduo racional e autossuficiente. Cada um destes
pressupostos traz implicações para a construção da justificação prática e teórica dos direitos
humanos que têm, desde as primeiras manifestações de reconhecimento legal desses
direitos, motivado as mais diferentes críticas: realistas/reacionárias, marxistas, feministas e
pós-coloniais. Este trabalho pretende demonstrar as principais críticas ao discurso
dominante desde o pensamento descolonial. Segundo essa crítica, a concepção dominante
dos direitos humanos é localizada e parcial. No aspecto histórico-geográfico, rejeita ou
subestima as contribuições globais para a afirmação da ideia dos direitos humanos. A
crítica pode ser construída a partir de duas ideias centrais do pensamento descolonial:
transmodernidade (Dussel) e geopolítica do conhecimento (Mignolo). Em relação à
concepção filosófico-antropológica, esse discurso salienta uma ideia de ser humano próprio
do ideário moderno-burguês. Porém, encobre como a construção do sujeito racional
permitiu a produção dos outros não humanos, historicamente explorados e que hoje
representam os sujeitos e os grupos oprimidos e vulneráveis no contexto de sociedades
culturalmente plurais. Para a compreensão desse fenômeno, os estudos descoloniais
contribuem com as seguintes categorias: colonialidade do poder (Quijano) e diferença
colonial (Mignolo) (BRAGATO, 2014, p. 201-202).
No começo de junho, após um episódio de injúria racial contra quem vos escreve, por parte
de estudantes de uma turma que ministrava aulas, levei o debate do racismo mais profundamente
para o grupo. Juntos de outras professoras, realizamos uma roda de conversa com a seguinte
questão: “Onde você esconde seus racismos?”, com a participação de duas integrantes, Karla e
Jéssyca, do Grupo Pretas Simoa - Grupo de Mulheres Negras do Cariri, empoderadas, atuantes e
ativistas na região do Cariri. O convite foi feito pensando que o tema do racismo, principalmente
contra às mulheres pretas, é mais que urgente ser falado e necessita ocupar esses espaços
acadêmicos. O momento foi de muito aprendizado entre todas/os e um momento de cura para as
mulheres negras da roda. O mais especial desse encontro foi que o grupo Pretas Simoa ressoava
bem na mesma perspectiva teórica e de visão do mundo do grupo de estudos. Um ponto interessante
que elas trouxeram também ao debate foi o de que algumas mulheres do grupo “não se consideram
feministas”, que seus vínculos eram construídos a partir da irmandade que pulsa dentro de cada
uma, e o feminismo elas consideram ainda uma categoria excludente e europeia, radicalizam nesse
sentido, pois sua teoria-prática provem dos seus vínculos afetivos, espirituais, ancestrais que não
passam pelo feminismo deste século.
Terminamos o semestre mais experientes e com uma grande análise de que para seguir
nesses caminhos, é mais que necessário força, coragem, sensibilidade e estratégia. Nesse grande
círculo de diálogo, algumas vozes das estudantes mulheres disseram que o mais revolucionário que
aconteceu na vida delas que o grupo estava proporcionando era acesso a outras formas de conhecer
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o conhecimento, fortalecimento das suas posturas e visões críticas, e todo o ano de participação no
grupo proporcionou uma abertura de sensibilidade para tratar sobre as dimensões do ser e da vida.
Construção de uma visão holística de vida, pensamento, sentimentos, de forma contra-hegemônica,
conscientes de onde estamos a nível local e regional-mundial, e nossas características pessoais que
são também (des)construídas em sociedade. Nos aspectos do que seria o lado dos percalços, além
do grupo tratar de perspectivas de pensamento diametralmente opostos ao que se tem no cotidiano
da instituição de ensino onde se atua, a falta de apoio institucional para algumas ações, tanto porque
é um espaço que não tem a pesquisa como prioridade institucional quanto por conta dos temas
tratados dentro do grupo que não despertam interes$es, e talvez até por outros fatores invisíveis que
podem estar, mas somente conjecturamos. Seguimos, apesar de tudo, na construção de um mundo,
de um conhecimento, de um não-poder, do respeito às diferenças e à pluralidade de pessoas,
descolonizando nosso ser, nosso corpo, nosso saber, nosso entorno. Termino com uma frase da
preta Karla, do Pretas Simoa: aos “índios” deram espelhos. Os dos “africanos” quebraram todos.
Não imaginavam que nos reconhecemos na face de noss@s irmãs e irmãos. Nos contemplamos em
nosso semelhante reconhecendo cada cicatriz, cada brilho na constelação do olhar. Cortaram nossas
raízes sem saber que podemos voar. Que a força Kariri esteja conosco!
Referências
BALLESTRIN, Luciana. Entrevista: Para transcender a colonialidade. IHU-Online – Revista do
Instituto Humanitas – UNISINOS. Autores: Luciano Gallas e Ricardo Machado. 2013. Disponível
em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/5258-luciana-ballestrin>. Acesso em fev 2017.
BRAGATO, Fernanda Frizzo. Para além do discurso eurocêntrico dos direitos humanos:
contribuição da descolonialidade. Revista Novos Estudos Jurídicos - Eletrônica, Vol. 19 - n. 1 - jan-
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Decolonizing human rights: study and experience since the Kariri cearense
Abstract: The paradigm of modernity brings with it the face of coloniality, present in all spheres of
social life, from the local to the international level. Understanding that this paradigm imposes the
forms of relations of gender, race, politics, institutions, class, knowledge, among others, and in the
attempt to help in the construction of a decolonial world, idealized the group "Human rights and
decoloniality in America Latina "in the law course of Paraíso-CE Faculty in Kariri cearense. The
objective is to analyze how human rights are formatted from this paradigm and to make the
theoretical-practical decolonial shift within the broad spectrum of social relations colonized in this
space. For that, the teachings of Dussel, Lugones and Freire are used. In the next phase, the
experiences of the students in groups and feminist social movements, or in communities of
traditional peoples to visualize in the praxis, will be given as other forms of anti-colonial and / or
decolonized relations are possible.