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DESCONFIANÇA SISTÊMICA E PRATICIDADE NO DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO Vinicius Marins * Resumo O estudo objetiva analisar a utilização, cada vez mais intensiva, de técnicas de desconfiança sistêmica no âmbito do sistema jurídico-tributário brasileiro, destacando suas finalidades e seu potencial “destrutivo” relativamente a alguns direitos e garantias do contribuinte. A desconfiança sistêmica é apresentada como antípoda da confiança e, tal como seu equivalente funcional, também possui o condão de reduzir a complexidade e a contingência. Os conceitos fundamentais da análise são extraídos da sociologia do cientista alemão Niklas Luhmann. Abstract This paper aims to analyze the increasingly use of systematic mistrust in the scope of the Brazilian legal tributary system, highlighting its ends and the “destructive” potential for certain rights and interests of the taxpayer. Systematic mistrust is presented as antipode of trust and, as it’s functional equivalent, also intends to reduce complexity and contingency. The most fundamental concepts in this analysis are draw from the work of German sociologist Niklas Luhmann. 1 CONFIANÇA SISTÊMICA E REDUÇÃO DA COMPLEXIDADE Nos últimos anos o tema da confiança tem recebido as melhores atenções dos estudiosos das Ciências Sociais, materializando-se no campo do Direito por meio de princípios como o da “boa-fé objetiva”, “proibição do comportamento contraditório” (nulli concedictur venire contra factum proprium) e “segurança jurídica”. No Brasil, autores como ALMIRO COUTO E SILVA 1 e MISABEL ABREU MACHADO DERZI 2 , em seus * Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Visiting Scholar – Rühr Universität/Bochum, Alemanha. Professor Substituto de Direito Administrativo e Direito Econômico da Faculdade de Direito da UFMG. Professor de Direito Administrativo da Pós-Graduação em Direito Público do IEC/PUCMINAS. Coordenador do Curso de Direito da Faculdade Minas Gerais – FAMIG. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Gestão Estratégica da Defesa Civil – Faculdades Del Rey. Empreendedor Público do Governo de Minas Gerais. Advogado. 1 Principalmente, COUTO E SILVA, Almiro. “O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público brasileiro e o direito da administração pública de anular os seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei n° 9.784/99)”. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 237, jul./set. 2004. 2 Dentre inúmeros trabalhos da Professora Catedrática de Direito Tributário na UFMG, todos de destaque nacional e internacional, consulte-se Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009.

Desconfiança sistêmica e praticidade

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DESCONFIANÇA SISTÊMICA E PRATICIDADE NO DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO

Vinicius Marins∗ Resumo O estudo objetiva analisar a utilização, cada vez mais intensiva, de técnicas de desconfiança sistêmica no âmbito do sistema jurídico-tributário brasileiro, destacando suas finalidades e seu potencial “destrutivo” relativamente a alguns direitos e garantias do contribuinte. A desconfiança sistêmica é apresentada como antípoda da confiança e, tal como seu equivalente funcional, também possui o condão de reduzir a complexidade e a contingência. Os conceitos fundamentais da análise são extraídos da sociologia do cientista alemão Niklas Luhmann. Abstract This paper aims to analyze the increasingly use of systematic mistrust in the scope of the Brazilian legal tributary system, highlighting its ends and the “destructive” potential for certain rights and interests of the taxpayer. Systematic mistrust is presented as antipode of trust and, as it’s functional equivalent, also intends to reduce complexity and contingency. The most fundamental concepts in this analysis are draw from the work of German sociologist Niklas Luhmann. 1 CONFIANÇA SISTÊMICA E REDUÇÃO DA COMPLEXIDADE

Nos últimos anos o tema da confiança tem recebido as melhores atenções

dos estudiosos das Ciências Sociais, materializando-se no campo do Direito por meio de

princípios como o da “boa-fé objetiva”, “proibição do comportamento contraditório”

(nulli concedictur venire contra factum proprium) e “segurança jurídica”. No Brasil,

autores como ALMIRO COUTO E SILVA1 e MISABEL ABREU MACHADO DERZI

2, em seus

∗ Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Visiting Scholar – Rühr Universität/Bochum, Alemanha. Professor Substituto de Direito Administrativo e Direito Econômico da Faculdade de Direito da UFMG. Professor de Direito Administrativo da Pós-Graduação em Direito Público do IEC/PUCMINAS. Coordenador do Curso de Direito da Faculdade Minas Gerais – FAMIG. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Gestão Estratégica da Defesa Civil – Faculdades Del Rey. Empreendedor Público do Governo de Minas Gerais. Advogado. 1 Principalmente, COUTO E SILVA, Almiro. “O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público brasileiro e o direito da administração pública de anular os seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei n° 9.784/99)”. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 237, jul./set. 2004. 2 Dentre inúmeros trabalhos da Professora Catedrática de Direito Tributário na UFMG, todos de destaque nacional e internacional, consulte-se Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009.

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respectivos campos da Enciclopédia Jurídica, abriram, com seus pioneiros estudos,

importantes sendas a serem desbravadas pelos pesquisadores.

Em linhas preliminares, pode-se dizer que a confiança é mecanismo que

fundamenta a convergência social, por meio da redução de complexidade dos sistemas,

dada a significativa redução de possibilidades previsíveis e imprevisíveis3. NIKLAS

LUHMANN desenvolveu festejado estudo utilizando a confiança como elemento

sociológico fundamental e as suas definições e conclusões devem ser tomadas como

premissas para a análise da necessidade de existência e de proteção da confiança no

âmbito do sistema jurídico.

A confiança pode ser objeto das mais diversas ciências, da Política à

Epistemologia, da Filosofia do Direito ao Direito Tributário. Em sua obra4 mais

conhecida sobre o tema, NIKLAS LUHMANN destaca a confiança como uma garantia para

o presente em face de expectativas do futuro, que via de regra serão previsíveis e

variáveis. Aquele que tem confiança orienta as suas ações como se o futuro fosse certo.

Os atos com confiança reduzem as possibilidades futuras e tornam mais estáveis e

menos incertas as relações sociais. Logo, a confiança teria o poder de neutralizar ou ao

menos minimizar as modificações inerentes à passagem do tempo. Segundo LUHMANN ,

“mostrar confiança é antecipar o futuro. É comportar-se como se o futuro fosse certo.

Pode-se dizer que, através da confiança, o tempo se invalida ou, pelo menos se

invalidam as diferenças do tempo5”.

Nesse sentido, a confiança é instrumento necessário para tornar menos

problemática a relação da ordem social com o tempo. Os sujeitos sociais agem no

presente, levando em consideração as experiências passadas para prever, interpretar e

planejar expectativas, reduzindo as possibilidades futuras.

3 Em sua Sociologia do Direito - I (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983), Luhmann oferece o aporte teórico para a compreensão das ideias de complexidade e contingência: “Cada experiência concreta apresenta um conteúdo evidente que remete a outras possibilidades que são ao mesmo tempo complexas e contingentes. Com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar. Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas, ou seja, que essa indicação pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente, inatingível, ou a algo que após tomadas as medidas necessárias para a experiência concreta (por exemplo, indo-se ao ponto determinado), não mais lá está. Em termos práticos, complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se riscos” (p. 46). 4 LUHMANN, Niklas. Confianza. Trad. Amanda Flores. Santiago: Anthropos Universidad IberoAmericana, 1996. 5 LUHMANN, Niklas. Confianza…, p. 15.

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A liberdade dos indivíduos cria um número infinito de possibilidades

diferentes de conduta. Entretanto, a liberdade pessoal acaba sendo limitada pela ordem

social, já que o indivíduo atua geralmente de forma a preservar e afirmar a sua

personalidade. Assim, a confiança acaba sendo uma expectativa generalizada de que,

dentro de um conjunto de relações sociais, as partes manejarão a sua liberdade de ação

mantendo a sua personalidade.

Ademais, na ordem social, a confiança é outorgada não àquele que se

mantém fixo ou imutável, vez que todos estão submetidos aos efeitos do tempo e a

imutabilidade é algo impossível, mas àquele que mantém constante a sua

autoapresentação. Aquele que age de acordo com a personalidade externada em meio

aos grupos dos quais participa reduz a possibilidade de mudanças futuras de conduta,

cria expectativas previsíveis e produz confiança.

Tanto o ato de produzir confiança como o de confiar devem ser

racionais, ou seja, devem ser realizados de forma consciente e reflexiva, de modo que as

relações de confiança se generalizem e reduzam a complexidade da ordem social. Em

meio a atitudes racionais de confiança, o ator social que outorga confiança conhece o

valor de sua ação e omissão, medindo o seu comportamento da devida forma, ainda que

não saiba das consequências de seus atos e ainda que seus motivos de atuação sejam

distintos. Por outro lado, aquele que confia age na expectativa de que o outro manejará a

sua liberdade de ação, preservando a personalidade que mantém socialmente visível.

LUHMANN adverte, entretanto, que a complexidade social não é mitigada

apenas através da confiança como prática subjetiva e pessoal, e exige que a confiança

também ocorra no âmbito coletivo e social. Para reduzir a complexidade social com a

ajuda da confiança, o autor recorre à teoria dos sistemas, que orientou toda a sua linha

de pesquisa sociológica.

O sistema consiste num corte, que permite a análise das condições e

limites das possibilidades. A análise de um sistema fechado facilita a percepção da

influência do tempo nas suas relações internas. O interior de um sistema é menos

complexo, pois conta com menos possibilidades e co mais ordem que o seu exterior.

Logo, a certeza interna acaba elevando a tolerância à incerteza das relações externas e

garante o presente frente às diversas expectativas futuras.

Page 4: Desconfiança sistêmica e praticidade

A confiança pessoal passa a ser uma confiança no sistema quando as

relações racionais e reflexivas entre sujeitos geram experiências, que são estendidas a

casos similares. A generalização conduz a um aprendizado de agir com confiança. O ato

de confiar em si mesmo ou de confiar que os outros confiam em si (confiança pessoal)

levam à confiança automática de que os outros também confiam entre si (confiança

sistêmica).

A generalização de atos de confiança, em sistemas sociais complexos,

com várias cadeias de processos seletivos, só é possível através de símbolos. Os

símbolos são mecanismos de transmissão intersubjetiva dos atos de seleção, culminando

com a criação de diferentes sistemas. Quando as relações sociais ou jurídicas passam a

se dar através de símbolos, em substituição à totalidade de informações, a confiança

deixa de ser pessoal e passa a ser confiança no sistema. Os símbolos ajudam no

processo de aprendizado da confiança dentro de um sistema, ainda que limitem ou

dificultem o controle pessoal dos indivíduos que fazem parte de uma relação.

Assim, diante da crescente complexidade e consequente diferenciação

funcional na sociedade moderna, surgem, segundo LUHMANN , meios de comunicação

simbolicamente generalizados. Para ele, estes são “mecanismos adicionais à linguagem

cotidiana, que são códigos de seleção simbolicamente generalizados, cuja função é

prover a capacidade intersubjetiva dos atos de seleção, por meio de imposições

maiores ou menores” 6.

Esses meios são: a verdade, o poder, o amor e o dinheiro. Eles

possibilitam a formação de estruturas, aliviando, dessa forma, a elevada contingência

existente na sociedade. Sob essa ótica, a contingência incrementada por meio da

linguagem exige dispositivos suplementares que, na forma de códigos simbólicos

adicionais, dirijam a transmissão, de forma efetiva, da complexidade reduzida7.

LUHMANN não se refere, especificamente, ao estabelecimento de uma

relação de confiança entre pessoas, mas na confiança que elas depositam em tais

mecanismos e, consequentemente, em um sistema. Os indivíduos que confiam nestes

mecanismos estão diretamente participando de um sistema, mesmo que

inconscientemente. E, segundo LUHMANN , “ao trocar a confiança pessoal pela

6 LUHMANN, Confianza…, p. 120. 7 LUHMANN, Niklas. Complejidad y Modernidad: de la unidad a la diferencia. Edición e traducción de Josetxo Beriain y José María García Blanco. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 104.

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confiança sistêmica, o processo de aprendizagem torna-se mais fácil, porém o controle

resulta mais difícil8”. Tal afirmação significa que quem confia em tais mecanismos não

pode corrigi-los, todavia, precisa manter a confiança, como se estivesse coagido; não

obstante, institucionalizada a confiança, cria-se uma espécie de certeza equivalente.

Desliga-se, assim, de uma contingente vinculação com um indivíduo em específico,

uma vez que não existe só uma, mas sim, várias decisões individuais vinculadas a um

mecanismo que, por sua vez, está vinculado à formação das estruturas de um sistema.

A verdade – vista como um meio de comunicação simbolicamente

generalizado – desempenha um papel primordial, pois se encontra presente no

estabelecimento de uma relação de confiança sistêmica concomitantemente com outros

meios, tais como o dinheiro ou o poder. Desse modo, pode-se dizer que, em especial, a

verdade e o dinheiro são os meios presentes em uma relação contratual. A verdade é o

meio que atua como portador da redução de complexidade intersubjetiva. Assim,

assegura LUHMANN , “a confiança somente é possível onde a verdade é possível, vale

dizer, onde se pode chegar a um acordo acerca de alguma entidade dada que é

obrigatória para uma terceira parte9”. A falta de controle ou limitação da liberdade

individual é compensada pela redução da complexidade social, de acordo com o

sociólogo alemão:

Portanto, a consolidação da confiança constitui uma solução vantajosa para o problema primordial da ordem social, a existência de uma alter ego livre, ainda que ele se sujeite a toda classe de condições. Ao invés de desejar a incerteza de outra pessoa na intensa complexidade de todas as possibilidades, o agente pode tratar de reduzir a complexidade se esforçando na criação e conservação de uma confiança mútua, e comprometendo-se em uma ação mais significativa, no que diz respeito a um problema agora mais estreitamente definido. Presumivelmente, caso os indivíduos se conhecessem melhor poderia ocorrer um melhor uso das oportunidades que a circunstância oferece10.

Como se extrai do pensamento luhmaniano, a confiança não se revela

como algo fundado em algum subjetivismo, mas sim, como um mecanismo que

possibilita a construção do social.

Observada nessa perspectiva, a confiança demanda tempo para sua

efetivação, o que vale dizer: a confiança é uma forma que possibilita o controle do

tempo. Ela encontra-se entre o passado e o futuro, possibilitando que, no presente,

8 LUHMANN, NIklas. Confianza..., p. 86. 9 LUHMANN, Niklas. Confianza..., p. 88.

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reduza-se complexidade. Segundo LUHMANN , o cerne de tal problemática “consiste no

fato de que o futuro contem possibilidades superiores às que se podem prever no

presente11”. Ou seja, confiar não é propriamente eliminar os perigos existentes no futuro

– que, por sua vez, é incerto e permanecerá sendo incerto –, mas agir como se o futuro

fosse certo, ou melhor: confiável.

Pode-se afirmar que a confiança, assim, vai se erigindo de modo

tridimensional. Duas dessas dimensões pertencem ao âmbito da confiança pessoal.

Nessa perspectiva, ela é condição essencial para o convívio dos indivíduos em

sociedade, pois o homem orienta-se especialmente pela confiança que é depositada nas

pessoas e no mundo. Contudo, transcende-se este âmbito em situações de elevada

complexidade: surge então uma terceira dimensão, denominada por LUHMANN

confiança sistêmica, a qual para operar depende dos meios de comunicação

simbolicamente generalizados. Em suma, duas dimensões da confiança estão

diretamente vinculadas à confiança pessoal, sendo que, uma terceira dimensão,

demonstra como se estabelece uma relação de confiança sistêmica.

Ao avaliar o papel da confiança nas sociedades complexas

contemporâneas, M ISABEL DERZI chega a conclusões que merecem ser reafirmadas: (i) a

confiança não significa mera esperança; (ii ) a confiança supõe certa exposição ao risco,

não se relevando em hipóteses nas quais exista supremacia sobre os

eventos/acontecimentos (o Estado, p. e., não ocupa a posição daquele que confia, mas

sobre ele poderá ser imputada a responsabilidade pela confiança gerada); (iii ) a

confiança expande os tempos de um sistema, permitindo o resgate do passado e a

antecipação do futuro12.

2 DESCONFIANÇA SISTÊMICA: EQUIVALENTE FUNCIONAL DA CONFIANÇA

Existindo no sistema a par da confiança, a desconfiança é seu

equivalente funcional, visto que dispõe da mesma função de fundamentar técnicas de

simplificação da complexidade nas relações internas. Contudo, a desconfiança carrega

10 LUHMANN, Confianza… , p. 112. 11 LUHMANN, Confianza…, p. 20. 12 DERZI, Modificações da jurisprudência..., p. 338.

Page 7: Desconfiança sistêmica e praticidade

uma série de desvantagens, fazendo com que a sua generalização ameace o

funcionamento do sistema, como um todo.

Isso ocorre porque aquele que desconfia passa a exigir um número maior

de informações para agir, ao mesmo tempo em que admite dados de um número menor

de pessoas a quem atribui credibilidade13. Para obter mais informações, quem desconfia

é obrigado a explorar mais detalhada e profundamente os elementos do sistema, o que

dificulta o aprendizado e a generalização de atos de confiança. Particularmente, o que

desconfia altera a sua autoapresentação no sistema, despertando a desconfiança dos

demais agentes. Logo, a desconfiança, que começa individualmente com uma surpresa

ou com falsos símbolos, pode contaminar todo o grupo, fazendo com que os sistemas

criem mecanismos para a sua minimização e expurgação.

Segundo análise inovadora de MISABEL ABREU MACHADO DERZI, o

sistema jurídico também absorve desconfiança, que permaneceria em estado de latência:

Sem dúvida o jogo dos delitos e das penas tem a função de estabilizar expectativas, mas também sinalizam desconfiança sistêmica. No Direito Financeiro, as técnicas de controle das Finanças Públicas, como legalidade orçamentária, execução do orçamento e prestação anual de contas absorvem desconfiança, justificada pela experiência histórica do passado. No Direito Tributário, a desconfiança manifesta-se, frequentemente implícita, em regras de controle, por meio da imposição de uma série de deveres acessórios, informações, registros contábeis e declarações impostas aos contribuintes; às vezes, em regras de presunção, simplificação e pautas de valores (...). De fato, a simplificação que a desconfiança obtém pode ser mais drástica e a ela corresponder uma renúncia a maiores informações ou a valores, que são sacrificados, pela recusa da confiança14.

É também de DERZI a afirmação: apesar de a desconfiança ser manejada

técnica redutora da complexidade e da contingência, é, simultaneamente, um

instrumento destrutivo, sendo submetida pelos sistemas sociais a inúmeros controles

com o fito de interceptá-los e neutraliza-los15.

O Direito Tributário e o Direito Administrativo, como típicos “direitos

de massa” (Massenreccht), na expressão de ALBERT HENSEL16, recorrerão a técnicas de

13 Segundo Luhmann, “la desconfianza también logra la simplificación, a menudo una simplificación drástica. Uma persona que desconfia necesita tanto de más información como al mismo tiempo limita la información em la que se siente seguro que puede confiar” (Confianza..., p. 124). 14 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2009, p. 335. 15 DERZI, Modificações... p. 336. 16 HENSEL, Albert. Verfassungsrechtliche Bindungen des Steuergesetzgebers. Bestereurung nach der Leistungsfähigkeit: Gleichheit vor dem Gesetz., p. 174

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desconfiança sistêmica considerando a aguda necessidade de praticidade aplicativa que

neles irá se observar. Tal necessidade revela-se, no plano legislativo, por meio da

produção de normas passíveis de serem aplicadas eficazmente a uma multidão de fatos

homogêneos17. Praticidade e desconfiança, dessarte, são signos que se imbricam

semanticamente quando de sua aplicação pela Dogmática Jurídica, merecendo enfoque

unificado. Vale dizer, assim, que a desconfiança sistêmica será ativada, na maioria dos

casos, a partir da necessidade de produção de atos exequíveis pela Administração, em

raciocínio que se revelará tipificante na sua escolha de elementos que buscarão alcançar

segurança jurídica, uniformidade, garantia, fortalecimentos do crédito tributário e

praticidade – muito embora, segundo alerta de MISABEL DERZI, o legislador acabe

desnaturando o tipo, na hipótese, transformando-o em conceito fechado ou

quantificando-o18.

3 PRATICIDADE E DESCONFIANÇA SISTÊMICA COMO INSTRUMENTOS DE SIMPLIFICAÇÃO

O tema da praticidade sempre foi tratado de maneira secundária pela

dogmática jurídica nacional. MISABEL ABREU MACHADO DERZI, a respeito, afirma que a

“ literatura nacional é muito escassa a respeito e o estudo desse importante tema, em

regra, fica relegado a aspectos parciais da questão com economicidade, utilidade ou

exequibilidade19.”

Apesar do pouco interesse despertado pelo tema, por razões

desconhecidas, observa-se que no Direito Tributário e no Direito Administrativo a

praticidade pode ser vislumbrada em um número cada vez maior de hipóteses, com o

escopo de garantir a operacionalidade do sistema jurídico, dando solução a impasses

que, se demandassem abertura à discussão, não teriam fim, ou o custo para alcançá-lo

seria desproporcional à finalidade normativa:

A tipificação e a conceitualização abstrata estão, portanto, relacionadas com o princípio da praticabilidade, o qual se manifesta pela necessidade de utilização

17 PAULICK, Heinz. Lehrbuch des allgemeinem Steuerrechts. Köln: Carl Heymanns, p. 136. Parece ser consenso entre tributaristas alemães que o legislador possui, especialmente nos fenômenos de impacto multitudinário (Massenerscheinungen), espaços (Spielraum) para generalizar (generalisieren), tipificar (typiesieren) e estabelecer estimativas genéricas (pauschalieren). 18 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Princípio da praticidade. Texto ainda não publicado, fornecido pela autora para fins acadêmicos. p. 643. 19 DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo..., p. 138.

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de técnicas simplificadoras da execução das normas jurídicas. Todas essas técnicas, se vistas sob o ângulo da praticabilidade, têm como objetivo: (i) Evitar a investigação exaustiva do caso isolado, com o que se reduzem os custos na aplicação da lei; (ii) Dispensar a colheita de provas difíceis ou até mesmo impossíveis em cada caso concreto ou aquelas que representem ingerência indevida na esfera privada do cidadão e, com isso, assegurar a satisfação do mandamento normativo20. Segundo a Professora Titular de Direito Tributário da Faculdade de

Direito da UFMG, a praticidade pode ser definida como “todos os meios e técnicas

utilizáveis com o objetivo de tornar simples e viável a execução das leis. Como

princípio geral de economicidade e exequibilidade, inspira o Direito de forma

global21”.

Analisando as presunções e ficções no âmbito do Direito Tributário,

LEONARDO SPERB DE PAOLA afirma que a difusão de tais técnicas de simplificação

“ responde a exigências de praticabilidade e certeza, que não poderiam ser plenamente

garantidas, caso sempre se buscasse diretamente a riqueza do contribuinte”22. As

justificações para a sua utilização, segundo a doutrina alemã, são (i) a defesa da esfera

privada, (ii) a uniformidade da tributação e (iii) o estado de necessidade

administrativo23. Para REGINA HELENA COSTA, o atributo da praticidade “está

intimamente relacionado ao Direito, permeando-o em toda a sua extensão, pois este só

20 DERZI, Direito Tributário, Direito Penal e Tipo..., p. 139. Regina Helena Costa vê, no contexto da complexidade do mundo atual, “a importância da praticidade ou praticabilidade, inerente, pois, ao fenômeno jurídico”. Afinal, segundo, a mesma autora, “a necessidade de aumentar a eficiência da arrecadação dos tributos veio a impor a adoção de mecanismos voltados à simplificação do sistema, envolvendo medidas de ordem legislativa e administrativa. Tornar mais simples os sistemas tributários constitui, mesmo, um dos grandes objetivos da fiscalidade de nossos dias, já que, por razões várias, os ordenamentos fiscais se têm convertidos em realidades cada vez mais complexas” (Praticabilidade e justiça tributária: exequibilidade da lei tributária e direitos do contribuinte. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 22). No direito alemão, segundo noticia Dieter Birk, há consenso a respeito de uma “exortação à simplificação da legislação tributária” (Ruf nach Steuervereinfachung) (BIRK, Dieter. Steuerrecht. 9 Aufl. Heidelberg: C.F.Muller, 2006). 21 DERZI, Direito Tributário... p. 138. No mesmo sentido é a construção do saudoso Alfredo Augusto Becker, ao afirmar que “a regra jurídica somente existe (com natureza jurídica) na medida de sua praticabilidade”. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2007, p. 73. 22 PAOLA, Leonardo Sperb de. Presunções..., p. 98 23 DERZI, Misabel Abreu Machado. Princípio da Praticidade. Texto não publicado, cedido para fins acadêmicos, p. 643. Ao tratar, especificamente, do “estado de necessidade administrativo”, afirma a autora que o estado de necessidade administrativo indica que tais práticas são inevitáveis, diante da “acentuada desproporção entre a incumbência legalmente atribuída à Administração para a execução e fiscalização da aplicação das normas tributárias e a capacidade e os meios de que dispõem os órgãos fazendários para prestar o serviço. Cria-se, então, um estado de necessidade administrativo. Invoca-se o princípio rebus sic stantibus, pois a capacidade financeira da Administração não é suficiente para satisfazer a prestação a que, por lei, o Poder Executivo estaria obrigado”.

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atua no campo da possibilidade, vale dizer, somente pode operar efeitos num contexto

de realidade24”.

Defende-se aqui a hipótese de que a praticidade, especialmente nos

Direitos Tributário e Administrativo, tem viabilizado concretização de instrumentos de

materialização da chamada desconfiança sistêmica, revelando-se num campo extenso de

aplicação por meio de presunções, ficções legais quantificações estabelecidas em lei,

tributação na fonte, eleição de responsáveis e substitutos tributários, no modo de pensar

tipificante, em enumerações taxativas, somatórios, quantificações, etc25. Todas

previsões constituídas, enquanto categorias normativas, a partir da finalidade de

simplificação (Vereinfachungszwecknormen, na tradição dos germânicos26), e,

comumente, explicitados de acordo com parâmetros de ordem legal:

Quando esses fenômenos se passam nas leis, em geral admite-se a legitimidade. A praticabilidade, no entanto, opõe-se à justiça no caso ou à distinção segundo a capacidade econômica pessoal e real, embora sirva à uniformidade geral (não-discriminação). Por isso, como regra, exige-se que as presunções ensejem sempre a mais ampla prova em contrário (juris tantum) e que a retenção ou o reembolso possibilitem a compensação financeira ao responsável tributário27.

Deve-se destacar, para os fins deste trabalho, que a praticidade também é

utilizada pela Administração Pública, para execução em massa das leis. Segundo

assinala MISABEL DERZI, “em vez de descer às múltiplas distinções do caso concreto, o

administrador passa a trabalhar com um padrão: o caso médio ou frequente,

desprezando as diferenças individuais que, em rigor, seriam de considerar do ponto de

vista legal28”. Já na abordagem de REGINA HELENA COSTA, a praticidade na seara

administrativa advém dos próprios atributos do ato administrativo, dentre os quais

ressalta a presunção de legalidade ou de legitimidade e de veracidade, a tipicidade, a

imperatividade e a autoexecutoriedade, que “facilitam a execução dos atos

administrativos29”.

24 COSTA, Regina Helena. Praticabilidade..., p. 69. Para a referida professora, trata-se de uma noção lógico-jurídica, e não jurídico-positiva, pois sua “noção antecede o próprio direito posto, correspondendo a exigência do senso comum”. 25 DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo..., p. 555. 26 TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Steurerecht. Ein systematischer Grundriβ. 8. Aufl. Köln: O. Schmidt, p. 71. Segundo os autores alemães, distinguem-se três categorias de normas tributárias: normas com finalidade fiscal (Fiskalzwecknormen), normas com finalidade social (Sozialzwecknormen) e normas com finalidade de simplificação (Vereinfachungszwecknormen). 27 DERZI, Direito Tributário... cit., p. 554. No mesmo sentido é a posição de Regina Helena Costa, para quem “é indiscutível ser a lei o instrumento da praticabilidade por excelência”. (Praticabilidade..., p.61) 28 DERZI, idem. 29 COSTA, Praticabilidade..., p. 62.

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4 MECANISMOS DE PRATICIDADE E DESCONFIANÇA SISTÊMICA: APLICAÇÕES NO DIREITO E ALGUMAS CONDICIONANTES

A introdução de padrões de praticidade ao aplicador do Direito, como já

se viu, não é trabalho que se inclui no alvedrio daquele que executa a lei. Um vasto

elenco de pressupostos deve ser observado a fim de se viabilizar, de maneira

consentânea ao ordenamento jurídico, as expectativas de simplificação na aplicação do

direito e de redução das dificuldades e dos obstáculos a uma atuação administrativa

eficiente.

Vários estudiosos lançaram-se à tarefa de sistematização dos

mecanismos de praticidade. MISABEL DERZI, por exemplo, sistematiza os exemplos no

ordenamento brasileiro da seguinte forma: a) há as presunções e padronizações legais; e

b) existe a execução simplificadora nos regulamentos, orientações e práticas

administrativas30.

Exemplo de utilização das presunções e padronizações legais de forma

legalmente autorizada está na realização do chamado “lançamento do imposto por

estimativa”, em que não se leva em conta as operações realizadas, mas a média

presumível dessas operações; e a substituição tributária “para a frente” que presume a

“operação de circulação futura, de acordo com o usual e ordinário, embora,

eventualmente, ela possa não ocorrer.”

Já exemplos da execução simplificada na prática administrativa

tributária, para a referida autora, pode-se destacar os seguintes, em rol não exaustivo: a)

imposto de renda arrecadado na fonte que supõe a ocorrência de fato jurídico tributário

“futuro”; b) regimes especiais; c) pautas de valores; d) quadro de valores de imóveis

urbanos; e) quadro de valores de veículos automotores; f) lançamentos com base em

índices artificiais de produtividade etc31. Outro exemplo de alargada importância da

praticabilidade, nos dias atuais, é o próprio “lançamento por homologação”, tão

30 DERZI, Direito Tributário..., p. 326-331. 31 DERZI, Direito Tributário..., p. 330.

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prestigiado por sua economicidade. REGINA HELENA COSTA destaca ainda a analogia, a

privatização da gestão tributária, meios alternativos para resolução de conflitos etc32.

No direito alemão, o foco para o estudo do postulado da praticidade

(Praktikabilitätprinzip) está dirigido à tipificação, enquanto modelo, exemplo ou

esquema ideal33. Em verdade, a expressão é de caráter plurissêmico e suscita, diante de

elementos históricos e sistêmicos, uma série de significados distintos, muito bem

abordados por KARL LARENZ em sua clássica obra sobre Metodologia da Ciência do

Direito34.

De sua própria etimologia pode-se inferir que o substantivo tipificação

(Typisierung) designa a formação de tipos ou, mais adequadamente, de modelos, de

esquemas ideiais. No âmbito jurídico, a tipificação pode ser considerada, em um

primeiro momento, como a redução da realidade a modelos normativos.

O fenômeno da tipificação, contudo, é muito mais amplo do que se

costuma generalizar. Utiliza-se, para os fins deste o trabalho, o conceito de tipo

consolidado na obra de Misabel Derzi, sem dúvida a principal referência sobre o tema

no sistema jurídico brasileiro. A citação, a despeito de longa, é pertinente à

compreensão do tema:

O princípio da especificação conceitual – que costuma ser denominado, impropriamente, de tipologia ou tipicidade – diz respeito ao princípio da legalidade, materialmente considerado, como conteúdo mínimo imposto ao legislador, matéria indelegável. (...) Tipo e conceito são movimentos em conflito no Direito, manifestados na estrutura aparente do ordenamento, mas que, na realidade, correspondem a tensões internas mais profundas. Essas tensões encontram-se nas relações de interdependência entre os valores jurídicos básicos que se manifestam, concretamente, em bens e interesses juridicamente protegidos ou direitos fundamentais e complexo de garantias que os assegurem. De um lado, encontramos o tipo como ordem rica de notas

32 COSTA, Pratiabilidade...p. 159. 33 Como, entre nós, anotou Misabel Derzi, “o modo de pensar, impropriamente chamado tipificante, é uma técnica a serviço da praticidade”. Ainda na mesma passagem, a professora mineira exorta a comunidade científica: “Especialmente no Brasil, é de se refletir sobre o tema, uma vez que a Constituição Federal, ao regular o sistema tributário, desce a pormenores que acabam por delimitar materialmente a competência legislativa dos entes estatais tributantes. Além disso, as leis complementares de normas gerais, abaixo da Constituição, mas acima das leis ordinárias acrescem outros requisitos de validade. Assim, além da “tipificação” realizada na jurisprudência administrativa ou judicial, é preciso, então, conferir e aferir a legislativa. Dentro desse quadro, em nosso País, ainda é necessário conferir a validade do modo de raciocinar “tipificante” dentro da lei, assim chamado porque, em geral, na eleição dos recursos que objetivam alcançar segurança jurídica, uniformidade, garantia, fortalecimento do crédito tributário e praticidade, o legislador se vale do tipo, deduzindo-o daquilo que é padrão usual, médio ou freqüente (embora, via de regra, o desnature, transformando-o em conceito fechado ou quantificando-o)”. (Princípio da praticidade..., cit, p. 643). 34 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbelkian, p. 655 e ss.

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referenciais ao objeto, porém renunciáveis, que se articulam em uma estrutura aberta à realidade, flexível, gradual, cujo sentido decorre dessa totalidade. Nele, os objetos não se subsumem, mas se ordenam, segundo método comparativo que gradua as formas mistas ou transitivas. De outro lado, observamos os conceitos fechados que se caracterizam por denotar o objeto através de notas irrenunciáveis, fixas e rígidas, determinantes de uma forma de pensar seccionadora da realidade, para a qual é básica a relaço de exclusão ou ...ou. Por meio dessa relação, calcada na regra da identidade, empreendem-se classificações com separação rigorosa entre as espécies. O tipo propriamente dito, por suas características, serve mais de perto a princípios jurídicos como o da igualdade-justiça individual, o da funcionalidade e permeabilidade às mutações sociais. Em compensação, com o seu uso, enfraquece-se a segurança jurídica, a certeza, a legalidade como fonte exclusiva de criação jurídica e a uniformidade. O conceito determinado e fechado (tipo fechado no sentido impróprio), ao contrário, significa um reforço à segurança jurídica, à primazia da lei, à uniformidade no tratamento dos casos isolados, em prejuízo da funcionalidade e adaptação da estrutura normativa às mutações sócio-econômicas. Ora, resta evidenciado que, à luz da Constituição, são prevalecentes os princípios de segurança, certeza e previsibilidade no Direito Tributário, assim como no Direito Penal. Por isso, instituir e regular tributo mediante lei é criar norma, veiculada por meio de diploma legal próprio do Poder Legislativo, com conteúdo que, no mínimo, disponha sobre todos os pontos enumerados, expressa ou implicitamente, no art. 97 do CTN. Esses pontos são as notas e qualificações determinantes, que necessariamente devem especificar os conceitos descritivos e prescritivos contidos na norma tributária. A lei tributária evita assim a utilização de conceitos fluidos e transitivos, indeterminados ou abertos. Devem eles, tanto quanto possível, primar pela precisão, definição e objetiva determinação. A legalidade estrita, a segurança jurídica, a uniformidade e a praticidade determinam a tendência conceitual prevalecente no Direito Tributário. Além desses princípios citados, a repartição constitucional do poder tributário, assentada, sobretudo, na competência privativa, tem como pressuposto antes a forma de raciocinar por conceitos fechados do que por tipos. Os tributos são objeto de uma enumeração legal exaustiva, de modo que aquilo que não está na lei, inexiste juridicamente. A diferenciação entre um tributo e outro se dá através de uma classificação legal, esgotante do conceito de tributo. Criam-se, a rigor, espécies tributárias como conceitos determinados e fechados que se distinguem uns dos outros por notas fixas e irrenunciáveis. (...) Com essas afirmaçes, insistimos, não se está a negar a existência de uma zona cinzenta ou da chamada zona de penumbra de Carrió, no Direito Tributário, tampouco asseverando a ausência de conceitos indeterminados ou carentes de especial valoração. Essas formas, quando presentes, são um ponto de difícil caracterização e uma transição entre o conceito determinado fechado e o tipo. Por essa razão, constata-se ser, como quer Leenen, meramente gradual e tipológica a distinção entre tipo e conceito, no campo jurídico. O importante é realçar que, no Direito Tributário, mesmo quando em presença de indeterminação e de uma ‘zona de penumbra’, os casos-limites são submetidos, assim como aqueles claramente identificáveis, a uma subsunção alternativa excludente. Ou se está em presença de uma taxa, ou de um preço; ou imposto sobre serviços ou sobre operação de circulação de mercadorias ... tertium non datur. Ao intérprete não é dado dizer que se tem, no caso, tanto uma taxa quanto um preço ou o imposto A, B e C. A segurança jurídica e a certeza, imperantes nesse ramo jurídico, levam a uma decisão excludente. A competência de um ente político para exigir o tributo é privativa e definida

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segundo a natureza jurídica de cada exação, forçando a escolha alternativa, sem possibilidade de conciliações mistas e fluidas. O modo de pensar tipológico, ao admitir leis ‘em branco’, ou notas legais conceituais renunciáveis, apenas indicativas para o intérprete e aplicador da norma, reduz substancialmente a segurança, a certeza e a previsibilidade, em favor de criativas concepções administrativas ou judiciais. Por meio desse modo de pensar, a chamada interpretação econômica e a cláusula geral antielisiva encontrariam plena justificação. Igualmente as presunções, somatórios e pautas de valores poderiam ser adotados pela Administração Fazendária, sem possibilidade de contraste com a lei, pois o modo de pensar tipológico reside, exatamente, na possibilidade discricionária de uma multiplicidade de caracterizações35.

Existem diversos problemas para a delimitação do campo lícito de

atuação do Estado no campo da praticidade, criando tipos, presunções, estimativas e

ficções. Nesse sentido, afirma ALESSANDRO MENDES CARDOSO:

É indiscutível que a praticidade é um aspecto cada vez mais levado em conta pelos tribunais, principalmente o Supremo Tribunal Federal, na apreciação das questões tributárias. Só que este princípio não pode se tornar uma justificativa para toda e qualquer forma de atuação das autoridades fiscais. Entendemos, sim, que tendo em vista a complexidade da sociedade moderna, algumas ferramentas de simplificação devem ser aplicadas, mas desde que isso se faça efetivamente de forma proporcional, controlando-se o grau de ingerência do Estado sobre a vida e a atividade dos cidadãos e contribuintes36.

Do mesmo modo, REGINA HELENA COSTA assevera a existência da

“necessidade de observância de certos limites para sua realização, cuja identificação

revela-se um dos maiores desafios no trato deste tema.37”

Os principais problemas, indubitavelmente, colocam-se no campo da

conciliação da técnica da praticidade, enquanto postulado econômico e financeiro, com

a implementação fática de princípios e garantias constitucionais. Isto porque, como já

percebeu a doutrina germânica, a praticidade não se afigura como postulado jurídico

constitucional autônomo; é um princípio técnico, que não possui a mesma relevância

axiológica dos princípios éticos (etische Prinzipien). Sua força jurídica, assim, é

derivada, somente podendo justificar a restrição de direitos fundamentais e princípios

estruturantes da ordem constitucional quando se apoie em pilares de mesmo nível,

suficientes à sua fundamentação.

35 DERZI, Misabel Abreu Machado. A Desconsideração dos Atos e Negócios Jurídicos Dissimulatórios, segundo a Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001”. O Planejamento Tributário e a Lei Complementar nº 104. São Paulo: Dialética, 2001, pp. 222 a 226. 36 CARDOSO, Alessandro Mendes. A responsabilidade…, p. 142. 37 COSTA, Praticabilidade..., p. 211.

Page 15: Desconfiança sistêmica e praticidade

Doutrina remansosa, assim como a jurisprudência pacífica do

Bundesverfassungsgericht (BVerfGE) propugnam, nessa vertente, que os critérios de

praticidade submetam-se a um rigoroso controle de proporcionalidade, além de uma

necessária compatibilidade com a realidade afetada pelas medidas garantidoras de maior

exequibilidade da legislação38.

Nos próximos itens buscar-se uma exposição mais detidas das técnicas

que importam o uso de mecanismos de desconfiança sistêmica pela Administração

Tributária.

4.1 Estimativas genéricas

No Direito Tributário, a estimativa genérica consiste na imputação de

somas predeterminadas (ou de percentuais) a hipóteses específicas, com a finalidade de

quantificar economicamente a obrigação tributária. É concebida normalmente como

uma forma de tipificação, que se singulariza pelo seu objeto, ou seja, por consubstanciar

uma tipificação de aspectos numéricos. Uma hipótese evidente de estimativa genérica

ocorre na estipulação de um valor determinado para a dedução de despesas, comuns no

Direito Tributário Europeu.

Conquanto a estimativa genérica seja uma forma de tipificação lato

sensu, diferencia-se da tipificação stricto sensu. Primeiro, porque não regula a situação

tributada (isto é, não integra a hipótese de incidência), mas o conseqüente (a base de

cálculo ou a alíquota), conformando diretamente a conseqüência jurídica, ou seja,

determinando o quantum da obrigação tributária. Segundo, porque não lhe é inerente a

abstração de peculiaridades fáticas ou a substituição de características de difícil

identificação e/ou prova por características típicas.

E não obstante a estimativa genérica se conjugue freqüentemente a uma

tipificação (na estimativa das despesas de transporte do trabalhador, por exemplo,

identifica-se claramente o fato de a estimativa fundar-se em uma situação típica, a qual

38 Essa condição foi claramente adotada pelo BVerfGE ao asseverar que “uma regulação legislativa pode efetivamente tipificar, contudo não pode escolher um caso atípico (atypischer Fall) como modelo (Leitbild)”. Com efeito, o legislador, ao tipificar, há de partir de uma representação global (Gesamtbild) que resulte da experiência, de modo a criar um contexto legislativo em harmonia com a realidade; e, após fazê-lo, deverá manter-se atento à evolução do contexto sócioeconômico, porque, quando o tipo real (Realtypus) mudar, será imprescindível substituir o tipo jurídico. (ECKHOFF, Rolf. Rechtsanwendungsgleichheit im Steuerrecht. Köln: Otto Schmidt, 1999, p.91).

Page 16: Desconfiança sistêmica e praticidade

deverá ser considerada para controlar a sua necessária adequação à realidade), não se

confunde com esta e nem sequer há, entre elas, uma inter-relação necessária. Há

situações nas quais não se pretende que a soma corresponda a uma situação típica, senão

que substitua a dimensão econômica da realidade, ou seja, que constitua um valor

substituto.

Com respeito a essas últimas situações, seria mais correto reconhecer

uma conexão entre as estimativas genéricas e as ficções jurídicas. Somente assim se

poderá realizar um controle correto da sua constitucionalidade, haja vista que elas

afetam de modo especialmente intenso os princípios da igualdade tributária e da

capacidade contributiva e, por conseqüência, requerem uma justificação mais robusta.

4.2 Presunções e ficções

As presunções legislativas são caracterizadas pela dedução, em abstrato,

da existência de um fato real ou de uma situação ou fato jurídicos a partir da constatação

de certos pressupostos. Pressupostos que constituem a denominada “base da presunção”

e fundam a inferência da hipótese presumida. As ficções e as presunções identificam-se

por estabelecer a inferência a priori de uma situação α a partir de uma situação β e

diferenciam-se porque as presunções são baseadas em juízos de probabilidade, enquanto

as ficções caracterizam-se precisamente pela incompatibilidade com a realidade.

Entre a tipificação como abstração e generalização e a presunção há,

contudo, diferenças nítidas. Quando o aplicador desconsidera uma diferença para

facilitar o seu trabalho, não presume nada, limitando-se a aplicar a norma, ademais das

situações que ela compreende, a outras que não abrange (tipificação aplicativa contrária

à lei) ou que poderia não abranger se fosse adotada outra variante interpretativa

(tipificação nos espaços interpretativos). Ele aceita a existência de desigualdades e as

justifica com base no dever de praticidade.

O tema das presunções e ficções é merecedor de debate agudo na

doutrina nacional. No que se refere às ficções jurídicas, a questão se mostra ainda mais

complexa. Segundo ROQUE ANTÔNIO CARRAZZA, os tipos tributários “fecham a

realidade tributária, não podendo ser alargados por meio de presunções, ficções ou

meros indícios”, devendo ser utilizadas com “parcimônia – quando não com mão

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avara.39”. Para ÂNGELA MARIA DA MOTTA PACHECO, a técnica das presunções

absolutas e ficções – que não admitem prova em contrário – cria privilégios probatórios

que não se coadunam com a tipologia tributária, o devido processo legal e a capacidade

contributiva40. Para a autora, muitas vezes, tais normas serão inválidas, se pretendem

estender a abrangência de outras normas, se afrontam a Constituição ou leis

complementares de nível hierárquico superior, ou ainda leis ordinárias em processo de

coordenação. MISABEL DERZI realça que a execução simplificadora de normas, no plano

vertical, tende à inconstitucionalidade41.

Coadunar as ficções jurídicas e outros instrumentos de desconfiança

sistêmica diante de todo o arcabouço constitucional tributário brasileiro afigura-se como

tarefa das mais complexas. De fato, em nome da praticidade pode-se estar à margem da

estrita legalidade, que envolve não somente a previsão em lei, mas também a

observância da tipicidade e da detalhada delimitação de competências tributárias

realizada pelo Texto Constitucional. Pode-se, ademais, estar diante de lesão à

capacidade contributiva, além de alguns dos postulados do devido processo legal. A

consideração de tais condicionantes é relevante para conter os citados condões

destrutivos das respostas de desconfiança sistêmica.

4.3 Algumas confrontações no uso das técnicas de pr aticidade

Como visto anteriormente, só se pode falar propriamente em ficção

jurídica – incluindo aqui as chamadas presunções absolutas –, se uma norma modifica a

realidade jurídica estabelecida por outra, de grau hierárquico superior, simplificando sua

execução. Afinal, qual seria o limite para criação de ficções jurídicas pela lei? Sem

qualquer dúvida, as próprias limitações estabelecidas nas normas de grau hierárquico

superior, notadamente, no caso do sistema tributário brasileiro, as previstas na

39 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros, p. 423. 40 PACHECO, Ângela Maria da Motta. Ficções Tributarias: Identificação e Controle. São Paulo: Noeses, 2008, p. 247. 41 DERZI, Direito Tributário, Direito Penal e Tipo…, p. 326. Parece ter razão Regina Helena Costa quando afirma que “há que se assinalar ser sempre cabível indagar-se se o legislador está autorizado, pelo ordenamento jurídico, a construir a presunção ou ficção, vale dizer, se essas ‘verdades’ não conculcam normas de superior hierarquia. E, em conseqüência, há de se admitir a possibilidade de afastar a ficção e a presunção quando incompatíveis com os valores aos quais devem curvar-se”. (Praticabilidade..., p. 61).

Page 18: Desconfiança sistêmica e praticidade

Constituição Federal e em leis complementares, de acordo com a matéria. Sobre tal

relação entre praticidade e legalidade afirma REGINA HELENA COSTA:

o princípio da praticidade, em sua indissociável convivência com o princípio da legalidade, opera atenuações à determinabilidade decorrente deste, diante da indispensável exeqüibilidade das leis fiscais, afastando, em conseqüência, o excesso de pormenorização e complexidade, conducente a um maior grau de indeterminação e ao comprometimento do combate eficaz à fraude e à evasão fiscais42.

Questão ainda mais delicada se impõe quanto à relação entre a

capacidade contributiva e a praticabilidade da tributação em sua manifestação através de

ficções tributárias. Afinal, como também registra REGINA HELENA COSTA, “o princípio

da capacidade contributiva revela-se o mais forte óbice ao emprego de técnicas

generalizantes43”.

Para MISABEL ABREU MACHADO DERZI, a praticidade é um

contraprincípio da igualdade. Afirma a autora:

Quando esses fenômenos se passam nas leis, em geral admite-se a legitimidade. A praticabilidade, no entanto, opõe-se à justiça no caso ou à distinção segundo a capacidade econômica pessoal e real, embora sirva à uniformidade geral (não-discriminação). Por isso, como regra, exige-se que as presunções ensejem sempre a mais ampla prova em contrário (júris tantum) e que a retenção ou o reembolso possibilitem a compensação financeira ao responsável tributário.

E, em outras oportunidades, aduz:

o dilema é instaurado quando o esclarecimento de cada acontecimento tributável, com a profundidade e o cuidado requeridos pela lei, resultar em custos superiores à arrecadação, inexistindo possibilidade de se atender à maioria dos casos pendentes a serem solucionados. Todavia, se cada acontecimento não for investigado em pormenor, o potencial programado pela norma legal não será esgotado, será ferido o princípio da igualdade de encargos segundo a capacidade contributiva de cada um e frustrar-se-á a aplicação individual do Direito44.

Ultrapassado o já rígido limite da legalidade, na estipulação de ficções

tributárias, sua possibilidade, em face da capacidade contributiva, é deveras

questionável. Se as presunções legais relativas nos parecem compatíveis com o referido

princípio, pela possibilidade de comprovação, pelo contribuinte, da incapacidade

contributiva existente no caso concreto, o que também homenageia a ampla defesa e o

42 COSTA, Praticabilidade…, p. 145. 43 COSTA, Praticabilidade..., p. 122. 44 DERZI, Direito Tributário..., p.

Page 19: Desconfiança sistêmica e praticidade

contraditório, opinião também exposta por LEONARDO SPERB DE PAOLA , a praticidade

manifestada através de ficções legais tributárias, só parece possível, em face da

capacidade contributiva, com um requisito: a opção do contribuinte45.

Nesse sentido, para MISABEL DERZI, deve ser aplicada a praticidade, mas

observada, no caso em que, por razões técnicas, não seja possível a previsão em lei, a

preeminência da declaração de vontade do contribuinte, caso a caso, que “pode e deve

ser direcionada por orientações, limites e valores administrativamente estabelecidos

que obstem as evasões ilícitas46”. Em outros casos, segundo a autora, só a

constitucionalização da técnica pode resolver o problema.

Deve-se destacar, contudo, que a mera constitucionalização da técnica,

contudo, pode não resolver o problema: a emenda constitucional pode encontrar-se em

confronto com cláusula pétrea. Afinal, tanto a legalidade quanto a capacidade

contributiva, esta última pelo viés da igualdade e da proteção à propriedade, encontram-

se no rol de direitos e garantias individuais do artigo 60, § 4º, IV da CR/88.

Ressaltando a questão da vontade do contribuinte, SACHA CALMON

NAVARRO COELHO assim se manifesta:

Não se pode satisfazer o Fisco sacrificando o contribuinte. A simplificação para propiciar a aplicação massiva das normas deve ser, sempre, opcional, salvo se benéfica. Mesmo nos dispositivos contra-elisivos e contra-evasivos deve-se sempre permitir ao contribuinte provar que os seus objetivos são legais e fidedignos, não devendo submeter-se à disciplina geral. [...]

Certas presunções são inevitáveis e visam simplificar a aplicação do Direito à vida dos contribuintes. É o caso, só para exemplificar, do pagamento de ICMS por estimativa para os pequenos contribuintes, ou ainda do pagamento do imposto de renda, a critério dos próprios contribuintes, pessoas jurídicas, investidos do direito de opção, pelo regime do lucro presumido, ao invés do lucro real, regra geral47.

Na mesma senda está o festejado PAULO DE BARROS CARVALHO , ao

tratar dos regimes especiais no ICMS, ocasião em que distingue o regime consensual e o

impositivo. Este, de cunho unilateralmente imposto pelo Estado, com caráter

sancionador. Aquele, “de iniciativa do sujeito passivo (regra geral), pressupõe o

45 PAOLA, Presunções…, p. 156. 46 DERZI, Direito Tributário..., p. 357. 47 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Teoria Geral do Tributo..., p. 167.

Page 20: Desconfiança sistêmica e praticidade

diálogo entre fisco e contribuinte, que chegam a um entendimento sobre modos mais

simples eoperativos de consignar a incidência e solver o débito.48”

MISABEL DERZI, por sua vez, nota um incremento na utilização desse

viés negocial na aplicação da norma tributária:

A formação do direito e sua aplicação – mesmo no campo tributário – parecem cada vez mais negociadas. Diferentes alternativas, para a resolução das controvérsias tributárias com participação ativa do contribuinte ou seu consenso, são adotadas em ordens jurídicas distintas, com limites mais ou menos estreitos, como a transação, os acordos prévios de valoração de bases, e arbitragem49.

Sustenta-se, desse modo, que, em gênero, a praticidade tributária pode-se

coadunar com a rigidez da capacidade contributiva objetiva e subjetiva, desde que haja

meios que garantam, “a posteriori”, a comprovação, pelo contribuinte, da inexistência

de capacidade econômica tributável. Com efeito, a capacidade contributiva objetiva, por

exemplo, exige a incidência do tributo sobre fatos que revelem um conteúdo econômico,

mas não veda a presunção dessa ocorrência.

Com isso, as presunções de ocorrência do fato jurídico tributário, ou dos

valores a serem utilizados como base de cálculo, v.g., são válidas para o fim de facilitar

a aplicação das normas tributárias, se houver possibilidade de produção probatória em

sentido contrário por parte do contribuinte.

Já na hipótese das ficções legais tributárias, tal produção probatória “a

posteriori” não é possível, o que a desnaturaria como presunção legal relativa. Tal é o

motivo pelo qual seu uso na seara tributária é vedado: a existência de ofensa à

capacidade contributiva. Nesse caso, contudo, a licitude da praticidade existe, mas só se

for ela aplicada após prévia opção do contribuinte, em sistemática prevista em lei. A

própria opção é forma de utilização da praticidade tributária, como meio simplificador

de aplicação das normas constitucionais que garantem a ampla defesa do contribuinte e

a efetiva necessidade de comprovação da existência de capacidade contributiva.

Se a aplicação detalhada das referidas normas exigisse a concessão da

possibilidade de o contribuinte comprovar a inexistência de capacidade contributiva,

inexistiria vedação constitucional para sua aplicação simplificada: através de lei,

estabelece-se fictamente a existência de capacidade contributiva, em sistemática a que

48 CARVALHO, Paulo de Barros. O ICMS e os “regimes especiais”..., p. 97. 49 DERZI, Misabel. A praticidade, a substituição tributária e o direito fundamental à justiça individual...,, p. 263.

Page 21: Desconfiança sistêmica e praticidade

adere livremente o contribuinte, abrindo mão de comprovar o contrário. O mesmo efeito

poderia ocorrer numa presunção legal relativa da existência de capacidade contributiva,

em que o contribuinte renunciasse ao prazo de apresentação de impugnação.

Importa ressaltar, contudo, que a atenuação do Princípio da Capacidade

Contributiva, através da opção do contribuinte, não é cabível em todo e qualquer caso

no qual pretenda o legislador buscar uma simplificação da aplicação de normas

superiores; nem mesmo sob a mera justificativa de que a tributação será mais favorável

ao contribuinte.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Discorrer sobre a desconfiança sistêmica – e sobre a consectária

praticidade – além de definir-lhe os limites, é labor que demanda maiores e melhores

aprofundamentos. Há perigos em sua utilização desenfreada pelo Estado, havendo

lacunas no campo das reflexões, por parte da doutrina, acerca de sua compatibilidade

com os princípios constitucionais tributários. Procurou-se neste breve ensaio fixar

pontos essenciais que permitam a compreensão preliminar do tema, coadunando a

praticidade, por meio da análise de algumas das suas manifestações, com a legalidade e

capacidade contributiva e evitando, por via de consequência, um uso destrutivo das

técnicas jurígenas de praticidade.

Buscou-se, assim, uma análise sobre as condicionantes da desconfiança e

de suas técnicas, cuja aplicação vincula-se a, pelo menos três limites constitucionais,

fundados nos princípios da legalidade e da capacidade contributiva: i) a existência de

previsão em lei; ii ) a utilização de ficção tributária, em que inexista impertinência entre

o consequente e o antecedente normativo, com previsão na Constituição, ou em norma

geral em matéria tributária, ou seja, a existência de um vínculo entre o conceito jurídico

estabelecido na norma inferior e as determinações previstas nas normas de competência

tributária; e iii ) a possibilidade de opção do contribuinte pela aplicação do regime de

ficção, desde que haja autorização constitucional para tanto.

Page 22: Desconfiança sistêmica e praticidade

É imperativo que a doutrina, contudo, aprofunde o trato do tema,

desanuviando as dúvidas ainda existentes acerca de tal prática, e desenhando-lhe os

limites impostos pelo ordenamento jurídico brasileiro.

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