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DESIGN E ARTESANATO EM PERSPECTIVA: POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES ENTRE SABERES E TÉCNICAS NO SUL DE MINAS GERAIS. Douglas dos Santos Lemos Lima 1 RESUMO: Design e Artesanato são áreas do conhecimento humano que sofreram mudanças significativas na contemporaneidade, sobretudo do ponto de vista de suas práticas e tecnologias. Discuti-las sob a perspectiva dos Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia se torna além de necessário uma oportunidade, para que possíveis aproximações entre os termos aconteçam e nos ajudem a obter novas perspectivas para resolução de problemas complexos, peculiares à vida humana em sociedade. Inserido no contexto do artesanato regional no Sul do Estado de Minas Gerais, este artigo se propõe um articulador das diversas proposições, recalcitrâncias e ligações constituídas por atores em rede, onde artesão e artefato coproduzem relações sociais e determinam a aplicação de saberes e técnicas. Apresentar-se-á o resultado de uma série de entrevistas imersivas realizadas junto à associação Casa do Artesão Mariense, no município de Maria da Fé/MG, buscando diálogos entre conceitos vindos do Design, Artesanato e Sociologia, para assim formular intercâmbios epistemológicos capazes de lançar novos olhares sobre os temas em questão, para além dos ditames de mercado ou das clássicas discussões pautadas em arte e estética. PALAVRAS-CHAVE: Design, Artesanato, Tecnologia, Sociedade, Perspectiva. 1 Aluno, bolsista CAPES, no programa de mestrado em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade (DTecS), da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI). Pesquisador no Grupo de Ensino, Pesquisas e Extensão em Tecnologias e Ciência (GEPETEC). Graduado em Desenho Industrial. - [email protected] - Currículo Lattes disponível em: http://lattes.cnpq.br/2268504144774422 (acesso em 08/04/2015).

DESIGN E ARTESANATO EM PERSPECTIVA ......DESIGN E ARTESANATO EM PERSPECTIVA: POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES ENTRE SABERES E TÉCNICAS NO SUL DE MINAS GERAIS. Douglas dos Santos Lemos Lima1

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  • DESIGN E ARTESANATO EM PERSPECTIVA:

    POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES ENTRE SABERES E TÉCNICAS

    NO SUL DE MINAS GERAIS.

    Douglas dos Santos Lemos Lima1

    RESUMO: Design e Artesanato são áreas do conhecimento humano que sofreram

    mudanças significativas na contemporaneidade, sobretudo do ponto de vista de suas

    práticas e tecnologias. Discuti-las sob a perspectiva dos Estudos Sociais em Ciência e

    Tecnologia se torna além de necessário uma oportunidade, para que possíveis

    aproximações entre os termos aconteçam e nos ajudem a obter novas perspectivas para

    resolução de problemas complexos, peculiares à vida humana em sociedade. Inserido no

    contexto do artesanato regional no Sul do Estado de Minas Gerais, este artigo se propõe

    um articulador das diversas proposições, recalcitrâncias e ligações constituídas por

    atores em rede, onde artesão e artefato coproduzem relações sociais e determinam a

    aplicação de saberes e técnicas. Apresentar-se-á o resultado de uma série de entrevistas

    imersivas realizadas junto à associação Casa do Artesão Mariense, no município de

    Maria da Fé/MG, buscando diálogos entre conceitos vindos do Design, Artesanato e

    Sociologia, para assim formular intercâmbios epistemológicos capazes de lançar novos

    olhares sobre os temas em questão, para além dos ditames de mercado ou das clássicas

    discussões pautadas em arte e estética.

    PALAVRAS-CHAVE: Design, Artesanato, Tecnologia, Sociedade, Perspectiva.

    1 Aluno, bolsista CAPES, no programa de mestrado em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade

    (DTecS), da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI). Pesquisador no Grupo de Ensino, Pesquisas e

    Extensão em Tecnologias e Ciência (GEPETEC). Graduado em Desenho Industrial. -

    [email protected] - Currículo Lattes disponível em: http://lattes.cnpq.br/2268504144774422

    (acesso em 08/04/2015).

    mailto:[email protected]://lattes.cnpq.br/2268504144774422

  • PARA REFLETIR O ARTESANATO E O DESIGN

    As reflexões que serão travadas durante este texto, apresentam-se como

    resultados parciais de uma série de pesquisas desenroladas no sul de Minas Gerais entre

    os anos de 2012 e 2015. Trata particularmente sobre o escopo da sociologia das

    tecnologias no que tange as demandas advindas do artesanato e do desgin, tanto em

    quesitos da “lógica do capital atual”, quando de seus desvios durante a organização de

    “atores e projetos sociopolíticos” (MELLO, PIMENTA, 2014)2.

    A proposta vincula-se às discussões feitas pelos pesquisadores do Grupo de

    Ensino, Pesquisas e Extensão em Tecnologia e Ciência (GEPETEC), inseridos dentro

    do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade (PPG

    DTecS) da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI), onde busca-se reagregar as

    complexas redes sociotécnicas3 que conformam, objetos, pessoas, sociedades, técnicas e

    saberes, as quais estão atreladas a uma série de arranjos políticos, econômicos, e

    agendas tecnológicas e desenvolvimentistas advindas do poder público (DAGNINO,

    2008). Colocando em causa os atuais paradigmas no que diz respeito aos meios

    alternativos de geração de renda e desenvolvimento regional.

    O objetivo aqui pauta-se então nas possibilidades de se aproximar e elucidar

    temas de escopo tão heterogêneos como artesanato e design, alinhavando tais questões

    sociotécnicas ao imaginário e às práticas cotidianas vivenciadas nos lares de alguns

    artesãos no Sul de Minas, permitindo emergir suas, sociabilidades, processos criativos e,

    sobretudo, as muitas mãos e “não-mãos” construtoras de significado e identidades.

    2 Artigo seminal escrito pelos professores Adilson da Silva Mello e Carlos Alberto Máximo Pimenta,

    ambos do PPG DTecS no ano de 2013. “ENTRE DOCES, PALHAS E FIBRAS: EXPERIÊNCIAS

    POPULARES DE GERAÇÃO DE RENDA EM CIDADES DE PEQUENO PORTE NO SUL DE

    MINAS GERAIS”, publicado na Revista de Estudos de Sociologia da Universidade Federal de

    Pernambuco (UFPE) - v. 01, p. 10-21, 2014 – Trata de escopo similar dentro das discussões acerca do

    social composto em redes de afetações, circunscrevendo-se às estratégias populares de geração de renda,

    por meio de grupos de artesãos presentes nas cidades de Maria da Fé, Piranguçu e Alfenas, todos

    localizados no Sul de Minas Gerais, no sentido de capturar os modos de saber-fazer traduzidos, a partir da

    experiência popular, em existência de objetos técnicos, dimensões do humano, do não-humano, do

    material e do imaterial contidos em suas práticas.

    3 O termo “sociotécnica” é amplamente usado pelos teóricos da vertente dos Estudos Sociais da Ciência e

    da Tecnologia (ESCT) – alude a um equilíbrio de forças e ações vindas de inúmeras instâncias que

    performam o social, onde tecnologias, pessoas, objetos e a natureza colidem-se, recombinam-se,

    constroem e desconstroem situações e interesses.

  • PARTE 1 - PARA DESVELAR A TEORIA DOS ATORES EM REDE Para discutir os temas postos anteriormente, este artigo se propõe a construir

    argumentações tendo como piso teórico-metodológico a Teoria Ator-Rede (TAR), pois

    a partir dela teremos uma melhor visualidade dos possíveis vínculos gerados

    entre materiais, artesãos, artefatos, saberes e técnicas. Sendo que estes já são frutos de

    “redes ordenadas de materiais heterogêneos” (Law, 1992). Esta percepção que a TAR

    nos permite ter ante a complexidade das questões que envolvem artesanato e design,

    auxilia-nos na construção de metáforas que reagregam uma rede heterogênea de ações,

    constituída de elementos díspares, que não simbolizam ou significam nada à priori, mas

    que só tomam forma e desenham todo um contexto social quando em rede.

    A partir da década de 1980, um grupo de cientistas sociais passava a pensar a

    constituição da sociedade para além do determinismo social. Uma corrente tradicional

    da sociologia que prevê um mundo onde humanos governam objetos e materiais que

    seriam imparciais e desinteressados e, portanto, consideram em seu escopo de

    interações apenas os intentos que os humanos lhes impõe. Surge assim, o campo de

    estudos denominado de Sociologia das Técnicas (LATOUR, 2012).

    Este antigo aparato epistemológico não fora suficiente para explicar uma série

    de fatores e ligações que constituem nossa realidade, bem como não considerava uma

    outra série de consequências vindas deste modo de pensar a construção do mundo. O

    modo modernista de pensar o mundo considerava e entendia o fazer científico também

    como neutro, ou seja, desatava-se das produções científicas todos os complexos

    emaranhados de interesses particulares que atores diversos articulavam para

    a obtenção de resultados específicos.

    As instituições científicas não cogitavam que inclinações políticas,

    mercadológicas e econômicas estavam sendo exercidas o tempo todo, “dentro e fora dos

    laboratórios” (ANDRADE, 2011) e que estas inclinações modificavam todo o processo

    formador, conformador e deformador dos artefatos que criávamos.

    Andrade (2011, p. 75) explica que:

    A sociologia das técnicas desenvolvida principalmente por Latour e

    Callon, entende de forma semelhante a relação entre pesquisa e

    administração científica. […] os técnicos e cientistas sofrem

    ingerências constantes de setores extra científicos a partir de um sem

    número de contextos e situações específicas que desenrolam

    aleatoriamente dentro e fora dos laboratórios.

    Juntamente a Callon e Latour, descritos por Andrade (2011) como expoentes nas

    definições acerca da sociologia das técnicas, surgem vários outros autores que passam a

    mudar os rumos de tais pensamentos, cristalizando a área dos Estudos Sociais da

    Ciência e da Tecnologia (ESCT). Thomas Kuhn (1998), Isabelle Stengers (2002), Knorr

  • Cetina (2005), David Bloor (1991), John Law (1992), entre outros, derrubam o caráter

    etnocêntrico das ciências modernas, deixando de lado a estanque ideia de que

    poderíamos produzir fatos e artefatos indeléveis e separados de relações sociais. A

    exemplo de Stengers (2002) e Knorr-Cetina (2005), esta produção de fatos científicos

    ou matter of facts4, funcionam na prática como “ficções científicas bem sucedidas”

    (LIMA, MELLO, VEIGA; 2015) e portanto já não faz mas sentido nenhum conferir a

    estes processos um status de neutralidade, uma vez que eles acontecem em ambientes

    endógenos e exógenos à racionalidade científica.

    Pesquisadores, objetos de pesquisa e os resultados que ambos geram são sempre

    consequências dos vínculos e afetações que produzem entre si e seus rastros ficam

    sempre registrados nas redes que (co)formam.

    Para Andrade (2011, p. 75), “dentro dessa linha de argumentação, não é o campo

    científico somente que impõe limitações e sanções, mas um conjunto desordenado de

    procedimentos e interesses." Ora, nos fica claro que adotar uma linha pensamento onde

    se coloca o artesão ou o designer como detentores do supremo domínio e manipulação

    sobre os materiais disponíveis para seus trabalhos não é, nem de longe, a melhor

    maneira de se contextualizar suas práticas. Conforme aponta André Lemos (2013, p.14),

    já não devemos tomar a constituição de uma teoria social pelo “pressuposto epistêmico

    da independência e da supremacia do humano sobre a técnica e a natureza”. Será

    necessário então tomarmos emprestado de Bruno Latour (2012) sua filosofia dos atores

    em rede, afim de estabelecermos algum esclarecimento.

    A noção de rede vista em Latour traz consigo a ideia de elos ou ligações

    exercidas por diferentes agentes relacionados em conjunto. O interesse latouriano5 em

    tal proposição, pousa naquilo que ele chama de "processos de construção de fatos e

    artefatos” (LATOUR, 2012). Para elucidar estes processos ele busca atribuir um certo

    equilíbrio ou simetria entre ações humanas e materiais. Neste sentido é que se desloca o

    termo social, pois este já não pode aludir a um nível estabilizado das coisas, “não temos

    certeza se existem relações específicas o suficiente para serem chamadas de sociais”

    (LATOUR, 2012, p. 20).

    Somente agrupamentos de interesses múltiplos tornam-se palpáveis para serem

    chamados de sociedades. A TAR serve-nos como um novo escopo para desvelar

    relações sociais, permeadas de ações vindas de humanos e não-humanos6.

    A sociologia toma então um caráter de busca por associações, naquilo que

    4 O termo “Matters of Facts”, em tradução livre, pode significar “questões de fato”, e traduz uma

    realidade construída apenas por “verdades”, indicações que visam estabelecer uma unidade convergente

    entre o real e o seu modelo explicativo. Este seria o modelo condicionante da ciência moderna.

    5 O termo “latouriano” é um emprego livre para denotar as ideias vindas do autor Bruno Latour.

    6 Podemos dizer que “não-humanos”, à luz de Latour, são entendidos tanto como os elementos da

    natureza, quanto como os resultados das interações do homem com a natureza e estes levam o nome de

    híbridos.

  • Latour chama de “associologia” ou sociologia de associações7.

    Segundo Latour (2012):

    A cada instância precisamos reformular nossas concepções daquilo

    que estava associado, pois a definição anterior se tornou praticamente

    irrelevante. Já não sabemos o que o termo 'nós' significa; é como se

    estivéssemos atados por laços que não lembram em nada os vínculos

    sociais. (LATOUR, B. 2012, p. 20)

    A TAR então é a base para se desvelar o mundo sob novos prismas, não guiados

    pelas afirmações precisas sobre a constituição da realidade (matters of facts) e sim, para

    capturar uma realidade composta por proposições articuladas na rede de interações entre

    humanos e não-humanos (LIMA, MELLO, VEIGA, 2015).

    Desta feita, o social não é algo disposto o tempo todo para análise, é antes uma

    configuração específica de atores conectados em rede. Reagregar estes atores e desvelar

    estes vínculos é o que buscaria um cientista deste segundo momento do entendimento

    social, preconizado por Latour. Descobrir outra definição para o termo social é

    descobrir também outras definições possíveis para os termos design e artesanato e é

    neste sentido que caminharemos para estabelecer suas possíveis relações.

    PARA ARTICULAR PERSPECTIVAS Nesta proposta de uma sociedade conectada em rede, as mediações apontam um

    status de constante redefinição da realidade. Fatos tornam-se apenas momentos,

    conjecturas específicas, pontos de vista possíveis, onde já não existe maneira alguma de

    conferir uma estabilidade pré-definida para os contextos sociais.

    Todo elemento mediador é entendido, a partir de Latour (2000), como sendo um

    ser actante8, ou seja, todo elemento seja ele material ou não, humano ou não, natural ou

    não, é dotado de um caráter mediador de ações.

    Neste sentido, não existiria uma maneira sólida de aceder uma essência primária

    7 Bruno Latour em seu livro: “Reagregando o Social” (2012, p. 17-37) propõe que termo social,

    vulgarmente usado para fornecer uma explicação social das coisas, não faz o menor sentido dentro das

    novas questões experenciadas pela humanidade. Assim, os aspectos residuais de determinada área não

    podem ser explicados por uma instância social, mas o social é que deve ser compreendido por

    associações específicas fornecidas por estas determinadas áreas. A sociologia tomaria então um caráter

    de busca por associações, estas são estabelecidas não por uma matéria homogênea, mas por uma série de

    ligamentos entre elementos heterogêneos.

    8 O termo “actantes sociais” é usado por Latour (2008) em detrimento ao termo “atores sociais” para

    indicar que estes elementos só são considerados quando agem de fato. É apenas na ação destes que as

    redes de interações podem se constituir.

  • das coisas e sendo assim não pode haver equilíbrio ao descrevermos algum elemento da

    realidade. O que existe aqui é um jogo de mão dupla, elementos díspares conectam-se

    de forma similar e simétrica entre si, concebendo explicações e visões assimétricas

    sobre a realidade. Esta, portanto, seria uma construção específica dentre as tantas

    possíveis, uma perspectiva dentre muitas. Dependendo apenas do desenho de sua rede,

    num dado momento específico das interações criadas, onde estes laços heterogêneos são

    o que são e podem, ou não, constituir todo um contexto social quando estabelecem

    ligações com outras destas entidades.

    Seria como se pudéssemos separar este presente texto em todas as suas partes.

    Cada palavra, que existe, e está posta em uso, quando juntadas aqui denotam um

    sentido, uma mensagem e uma interpretação específica, que poderiam ser outras, caso

    as palavras usadas fossem outras e neste caso articulariam outras nuances para a

    mensagem, que por sua vez suscitaria outras interpretações possíveis.

    Tais concepções deslocam todo maniqueísmo e todo um complexo moral

    vigente no fazer científico, onde áreas inteiras do conhecimento humano tornaram-se

    caixas pretas, impermeáveis e blindadas, deixando a evidente sensação de que já não

    podem mais serem discutidas ou colocadas em causa. Assim outras perspectivas de

    entendimento acerca de tais áreas sempre deixam de se fazer presentes.

    Se pensarmos aqui no design e no artesanato, como tais áreas do conhecimento

    humano, temos um interessante objeto para trabalharmos controvérsias, articularmos

    perspectivas e tecermos redes. Uma vez que lhes cabem intencionalidades técnicas,

    racionais e construtivas. Relações sociais diversas se desenvolvem na órbita de ambos

    os termos, fixando-os e normatizando-os, até o ponto de terem se tornado verdadeiras

    caixas pretas de conhecimento, que necessitam agora serem (re)abertas e (re)discutidas.

    Para tanto, não se tem a intenção de afirmar nada, apenas de visualizar a

    “circulação das agências antes das estabilizações” (LEMOS, 2013, p.25), apresentando

    possíveis perspectivas advindas de uma série de associações entre elementos humanos,

    não-humanos e natureza. Trata-se de acompanhar a provisória constituição de uma rede-

    social formada por artesãos, designers e seus artefatos.

    PARTE 2 - PARA APROXIMARMOS SABERES E TÉCNICAS

    Nosso locus, do ponto de vista de campo de estudos, é em Maria da Fé. Uma pacata cidadezinha encrustada nas montanhas da Serra da Mantiqueira, ao sul do Estado

    de Minas Gerais - Brasil. Estamos aqui, não ao acaso, pois emerge de suas terras, de sua

    gente, das tecnologias em uso, uma constituição de identidade de artesanato bastante

    peculiar e sóbria, que com o passar dos tempos foi se cristalizando juntamente aos

    saberes e técnicas perpetuados por diversos atores em rede.

  • Discutir o artesanato é discutir em conjunto o cotidiano, as formas peculiares de

    se ver o mundo, e as atitudes de um povo, de uma região, de processos tecnológicos, de

    materiais e dos diversos interesses e tensões que lhe articulam um espaço no imaginário

    coletivo. O que seria, então, discutir design? Além desta questão, existe maneira de

    aproximarmos tais áreas, tão distintas e tão próximas, à priori?

    É sobre as práticas artesanais vistas em Maria da Fé que iremos tratar no

    decorrer desta segunda parte do texto, vinculando ao assunto em pauta uma rede

    afetações sociais que nos permitirão estender esta problemática sob um outro ponto de

    vista, submetendo-a a um complexo jogo entre atos e atores díspares em busca de uma

    sociologia de associações (Latour, 2012).

    Torna-se importante vincular aqui as falas e os depoimentos coletados em

    entrevistas com os artesãos em Maria da Fé, pois os artefatos que estes elaboram

    também geram controvérsias, estimulam mercados, elevam personalidades e

    (des)constroem saberes e técnicas.

    Caminhar pelas ruas de pedra de Maria da Fé, entre às suas características e

    identitárias árvores de oliva, em direção ao Centro Cultural, já nos faz perceber um

    outro ritmo de vida, bastante diferente deste visto em grandes centros urbanizados onde

    tudo escapa fugaz. Aparecem as nuances que paulatinamente nos mostram o particular

    modo de ser desta cidadezinha, de como o mundo aqui parece ser interpretado, vivido e

    compartilhado de uma maneira mais serena. É justamente este o ponto mais interessante

    em nosso locus, aqui temos a oportunidade de ainda ter contato com a organização de

    uma prática artesã tradicional (HOLANDA, 1995), passada como legado de gerações

    em gerações, pelas muitas mãos que construíram um sem número de artefatos.

    Conforme podemos endossar pelo depoimento9 da artesã “MI”:

    Foi assim, a minha mãe já fazia, sabe, aí depois, ela começou a ensinar a

    gente, mas no começo a gente não sabia muito bem [...] mas aí a gente,

    praticou, aí começou. (Registro de áudio 01. Artesã “MI” – Outubro/2014).

    Ou também pelo discurso da artesã “MF”:

    Pequisadores (P): E a senhora aprendeu sozinha?

    MF: Ah eu assim é... minha mãe ela... mexia muito cum...cum lâ, essas coisa

    sabe? Fazê paletózinho [...] É ela gostava de mexê essas coisa né? Com

    artesanato... Então é aí que fiquei vendo ela fazer tudo, então a gente... é...

    como se diz... foi meio incentivada por ela né? (Registro de áudio 01. Artesã

    “MF” – Outubro/2014).

    9 Usaremos aqui uma série de entrevistas com mulheres e homens, artesãos de Maria da Fé, realizadas ao

    longo do ano de 2014, afim de contextualizar as aproximações dos termos artesanato e design.

    Tomaremos o cuidado de lhes ocultar os nomes, pois não obtivemos até o momento uma autorização para

    o uso do conteúdo das gravações de áudio destas referidas entrevistas.

  • Segundo Pinho (2013), em meados dos anos 1990, Maria da Fé sofreu uma crise

    econômica no setor agropecuário, sobretudo nas monoculturas de batatas, que era até

    então sua maior fonte de contribuições em termos de geração de riquezas. Isso leva ao

    surgimento de movimentos alternativos para geração de renda e o artesanato entra na

    cena econômica mariense como um importante ator constituinte de espaços, liberdades e

    emancipações, endossando a orientação do município para o setor turístico e de

    economia criativa (leia-se: artesanal).

    Este movimento oportunizou outros atores surgirem no plano das ações e

    formarem assim novas redes de afetações. Tecnologias, pessoas, materiais, objetos e

    interesses múltiplos, aproximaram-se do artesanato no intuito de agrupar

    estas potencialidades numa mesma luta contra a parcimônia econômica mariense, onde

    fibras de bananeiras e aglomerados de papelão, despontaram-se como meios sólidos de

    sobrevivência.

    As atividades do setor agropecuário projetam atualmente na bananicultura a

    principal atividade agrícola do município. Esta articulação reverbera de forma

    contundente nos processos de identidade do artesanato mariense. Grande parte dos

    produtos e artefatos manuseados ali são elaborados a partir da fibra das cascas

    de bananeiras. Entre bonecas, cestos, pratos, mandalas e luminárias, podemos perceber a

    sensibilidade das mulheres e homens marienses ao (re)significarem o uso das matérias

    primas vindas de sua própria terra.

    Destaca-se, neste contexto, a gênese de tal identidade artesã mariense. Partindo

    da análise de uma série de elementos conjugados a propiciar tal demanda. Em primeira

    instância cumpre-nos olhar para a história do artesão “DT”. Nascido e criado em Maria

    da Fé, “DT” captura desde muito cedo a imanência dos elementos naturais de sua terra,

    com mimese incrivelmente particular.

    Na época da acentuada crise agropecuária dos anos 1990, “DT”, junto de outras

    artesãs da cidade, iniciaram um trabalho de consolidação do artesanato na cidade, para

    além do hobby no ato de produzir crochês, bordados, fuxicos, etc.

    Segundo “DT”:

    “Maria da Fé não tinha nada, não tinha nada. Maria da Fé não tinha nada de

    artesanato que fosse uma coisa expressiva, entendeu? Eu comecei, e veio

    uma pessoa de Belo Horizonte pra poder ver o que a cidade tinha para

    oferecer nesse sentido. Qual artesanato que Maria da Fé tinha? E não tinha.

    Tinha era mulher, um tanto de mulher bordando ponto de cruz, fazendo tricô,

    crochê, que é uma coisa muito, muito cópia de revista, entendeu? Nada puro

    de origem, assim. Aí a gente começou a frequentar algumas reuniões, eu

    comecei a frequentar essas reuniões e numa dessas reuniões eu, depois de um

    certo tempo, vinha uma consultora de Belo Horizonte pra poder ver, pra

    poder fazer uma revitalização do artesanato de Maria da Fé. E não tinha nada.

  • Aí numa das reuniões eu falei: ‘vou criar um projeto então” (Registro de

    áudio 01. Artesão “DT” – Outubro/2014).

    Diferente da precariedade de recursos e técnicas enfrentada pela maior parte

    destas artesãs, “DT” gozava de ambiente e formação especializada para trabalhar sua

    arte. Inicia precoce seus estudos de desenho de modelos vivos e passa por uma intensa

    formação e trabalho artístico.

    “Eu toda vida fui artista, toda vida trabalhei com arte entendeu? Mas fazia

    uma arte mais conceitual, uma coisa que fica assim nessa viagem, eu tenho

    uma formação acadêmica. Eu fiz desenho de modelo vivo, fiz é, eu passei por

    essa coisa acadêmica mesmo, sabe, de arte assim. Só que eu tinha a

    necessidade de fazer um trabalho mais conceitual, onde de repente a ideia é

    mais importante do que a própria obra, entendeu? Aí você não precisa ter o

    objeto, você tem a ideia e a ideia é mais importante. Mas eu gosto de matéria,

    entendeu? Eu adoro matéria, e aí o que acontece?” (Registro de áudio 01.

    Artesão “DT” – Outubro/2014).

    Estes vínculos viriam a ser condicionantes para que se fortalecesse em Maria da

    Fé todo um aparato tecnológico no que concerne a confecção de artesanatos. “DT”

    articula então, nos idos dos anos 90, um novo composto material que lhe permitira dar

    cabo destas todas ideias e alçar assim meios para produção de seus artefatos.

    “Eu dava aula de arte para criança e aí eu falei assim: ah eu vou dar uma

    massinha de papel machê para eles trabalharem. E aí eu fiz uma massinha de

    papelão e dei pras crianças trabalharem, e eu tinha uma caixa de papelão e

    falei ah vou desmanchar essa caixa aqui, demorou a massa, porque demora

    muito pra desmanchar tudo e o que sobrou eu não joguei fora não. Sobrou um

    pouquinho de massa e eu falei: ah eu vou moldar isso aqui num pratinho.

    Moldei num pratinho. Aí quando secou aquela matéria, eu gosto de falar

    matéria porque matéria tem alma, entendeu? Quando fala material fica uma

    coisa tão corriqueira, assim, parece que material é uma coisa tão banal, né?

    Matéria tem alma, entendeu? Aí eu vi aquela matéria ai falei: gente que coisa

    impressionante, né?” (Registro de áudio 01. Artesão “DT” – Outubro/2014).

    O composto articulado por “DT”, é feito de forma similar à técnica amplamente

    conhecida do papel machê, porém com variações que lhe garantem maior resistência,

    aderência, rigidez. Um aglomerado de papelão, sacos de cimento, cola e água, que

    quando prensados e colocados ao sol para secagem transforma-se em uma matéria de

    longa vida, não gerando sobras e com custo de produção baixíssimo, já que a maior

    parte dos insumos para a produção deste vem de coletas seletivas de lixo na própria

    cidade de Maria da Fé ou de cidades vizinhas. Segundo o próprio “é como se essa

    matéria voltasse a ser madeira”. Tal articulação com a matéria abriu precedentes para

    que outros atores fossem conjugados a este jogo de relações e assegurou a “DT” um

    registro de patente junto ao INPI10 (Instituto Nacional da Propriedade Industrial),

    10 Disponível para consulta em http://www.inpi.gov.br/images/stories/downloads/pdf/Diretriz_de_MU.pdf

    - acesso em 08/04/2014.

    http://www.inpi.gov.br/images/stories/downloads/pdf/Diretriz_de_MU.pdf

  • numa qualidade de modelo de utilidade, bem como lhe abriu caminho para angariar

    apoio financeiro na construção de seu ateliê e showroom, um galpão de pé direito

    avantajado, com ares da sofisticada arquitetura modernista e apelo estético Wabi-sabi11,

    que aliás se reproduz como uma espécie de leitmotiv em quase tudo que ali se produz.

    A partir disso ele passa a ensinar a técnica de beneficiamento do aglomerado de

    papelão para uma série de artesãs e elabora com elas uma linha de produtos instituindo

    assim o primeiro grupo formalizado de artesãos na cidade, o Gente de Fibra. Este, nasce

    já com características distintas no que diz respeito a uma possível identidade de

    artesanato, alcançando rapidamente o mercado nacional. Mulheres, bem como homens,

    de Maria da Fé, puderam a partir de então emanciparem-se das limitadas tarefas

    domésticas ou das pesadas tarefas vindas da vida no campo, inserindo-se de forma

    nunca vivida antes na sociedade e na economia.

    “Eu já tinha essa história da massa, já tinha conseguido um resultado

    maravilhoso que era transformar quase em madeira mesmo, né? Um

    aglomerado. Ai eu falei assim, de repente se a gente fazer um trabalho de

    artesanato que possa agregar a fibra da bananeira, porque Maria da Fé tem

    muita bananeira e a bananeira só dá cacho uma vez, aí vai lá no pasto, corta e

    aquele tronco fica apodrecendo lá no meio do pasto. Ai eu falei, ah, vamos

    fazer o seguinte, vamos pegar, vamos processar essa bananeira, vamos tirar a

    fibra da bananeira e vamos começar a misturar a fibra da bananeira na massa,

    porque é uma maneira de ter identidade também quanto material, porque é,

    essa história da identidade é fundamental no artesanato. Eu acho que é

    importante ter a cara do lugar. O trabalho ficar com a impressão, assim, do

    lugar mesmo, né? [...] E aí eu comecei a desenvolver um trabalho com as

    mulheres, entendeu? Eu ia fazer um teste de aptidão, só que no dia que eu ia

    fazer o teste de aptidão apareceram pouquíssimas pessoas na reunião. Aí eu

    fechei com essas seis, sete mulheres que tinha, sabe? E eu sei que eu comecei

    e que nunca mais, não teve mais fim a história. Porque começou a

    movimentar, aí eu levei para Belo Horizonte os trabalhos que a gente fez Aí

    eu implantei essa técnica e aí o Gente de Fibra começou a trabalhar, eu

    comecei, eu sempre junto, junto, junto, junto, aí comecei a ensinar a criar, aí

    a gente ia na igreja, olhava os barrados decorativos da igreja, que é muito rica

    em ornamentos, pra gente pegar um detalhe, entendeu? Colocar no objeto,

    tudo isso é identidade.“ (Registro de áudio 01. Artesão “DT” –

    Outubro/2014).

    Graças a esta primeira iniciativa de consolidação, novos artesãos foram surgindo

    na cidade, outras iniciativas nasceram e novos elementos e interesses conjugados em

    rede colocaram em voga a identidade artesã de Maria da Fé. Artesanatos, elaborados a

    partir de fibras de bananeira, papelão, tinturas, palhas de milho, crochê, EVA, oliveira,

    entre outros, ganharam, a partir de 2008, um espaço para serem comercializados

    ajudando a constituir a Associação Casa do Artesão Mariense, na qual artesãos e

    artefatos organizam-se cotidianamente num intuito não apenas de inserção econômica,

    11 Ramo da filosofia estética japonesa, que prega uma visão de mundo centrada na imperfeição das coisas,

    sendo este o seu padrão para o belo. (LENNOX, 1999)

  • mas de superação dos limites impostos pelo cotidiano rural. Artesãos e artefatos

    diversos, que produzem ações materiais e técnicas igualmente diversas.

    Assim como nos anos 90 o cultivo de batata deu passagem ao aglomerado de

    papelão como novo articulador econômico na cidade, pelas mãos de “DT”, nos anos

    2000 o mesmo aglomerado precisa ser visto como o condicionante que abriu caminho

    para que a hegemonia de alguns grupos de artesãos, já consolidados no cenário da

    cidade, dissolvesse em novas estruturas de produção e vendas de artesanato.

    A Casa do Artesão Mariense representa uma importante fonte em termos de

    especulação, articulação, controvérsias e recalcitrâncias, rumo a um entendimento ou

    das aproximações possíveis entre os saberes e técnicas destes artesãos no Sul de Minas

    Gerais, onde os termos design e artesanato emaranham-se, gerando novos complexos e

    novas agregações do que se pode ser dito sobre ambas áreas do conhecimento humano.

    Agora que entendemos um pouco da gênese da constituição de uma rede –

    vamos chama-la de sociotécnica artesã mariense - que ainda permanece instável e pode

    ser (re)modelada a qualquer instante, podemos prosseguir para alguns vínculos mais

    específicos entre artesãos, técnicas e artefatos.

    Para a artesã “MF” a prática artesanal se dá da seguinte forma:

    “Eu faço várias coisas, quer dizer, meu artesanato é meio diversificado, né?

    [...] deu vontade de fazer eu pego... vou fazê, vou tentá fazê... hehe [...]Então,

    nas folga minha aí eu vou fazer artesanato... é, eu dou conta da minha

    obrigação de manhã, né, cedo, na parte da tarde eu to folgada, aí eu vou e

    faço artesanato.” (Registro de áudio 01. Artesã “MF” – Outubro/2014).

    Esta noção de não-compromisso com uma produção seriada e massificada

    alinha-se estreitamente com a relação diferenciada que os artesãos em Maria da Fé

    mantém com o espaço e tempo. Lá os “laboratórios” ou oficinas de grande parte dos

    artesãos estão estabelecidos em suas próprias residências. Geralmente algum cômodo

    mais amplo da casa, ou até mesmo em uma área externa, sem preocupações excessivas

    com armazenagem de matérias primas, logística de materiais ou depósitos de

    ferramentais. Assim é que se estabelece todo um aparato processual e tecnológico para a

    confecção de seus artefatos.

    Ao ser questionada acerca dos moldes que usa para trabalhar, a artesã “M” diz o

    seguinte:

    “Muita coisa foi eu que criei. Porque o redondo, ninguém sabia fazer, daí eu,

    mexendo e mexendo em revista eu vi. Eu vi que tinha um que tinha 4 pregos,

    então, quer dizer que o redondo é dividindo com X com a mesma proporção

    né? Por exemplo, se for 10 aqui, é 10 aqui e 10 aqui... (se referindo à

    distância em cm entre os pregos), faz assim, depois faz assim, e aí arruma os

    fios.” (Registro de áudio 01. Artesã “M” – Outubro/2014).

  • A maneira que “M” usa para explicar seu processo de trabalho já deixa entrever

    a imensa carga “manual” que seu serviço carrega, bem como as recalcitrâncias que os

    materiais utilizados lhe impõe ao manuseio. O molde, que não existia a priori, precisou

    ser elaborado manualmente por ela, ao passo que o molde também ia lhe afetando,

    fazendo-lhe agir de outras formas. Esta talvez seja uma das noções mais interessantes

    vista no pensamento de Latour, a de que não é somente o elemento humano que obriga

    os materiais a serem de uma tal forma, mas os materiais e objetos também nos obrigam

    a fazer certas coisas, a tomar certas ações. Neste sentido as noções sobre processo

    criativo mudam de acordo com os vínculos que estabelecemos com determinados tipos

    de materiais, ambientes e recursos disponíveis.

    A noção de processo criativo da artesã “MF”, por exemplo, deixa bem claro

    algumas destas outras nuances de ações, onde uma intervenção de um híbrido específico

    pode até mesmo mudar a sua opinião sobre algo.

    “Ah, pra mim eu acho que artesanato, agora tem máquinas que faz... substitui

    o lugar de pontos, né, como se diz, cê faz o ponto à mão, mas tem uma

    máquina agora que substitui o ponto de mão, também. Fica legal também,

    mas tem coisa que ela não consegue fazer, né, aí tem que ser feito à mão

    também.

    P: Tá, mas se usa máquina ainda é artesanato?

    MF: É... um meio artesanato.

    P: Meio artesanato?

    (risos)

    MF: É.... um meio artesanato, porque pra mim o artesanato tem que ser feito

    tudo à mão.

    P: Todo o processo tem que ser à mão?

    MF: Todo o processo tem que começar e até o fim. Né. Cê começa desde o

    primeiro passo e vai até o último, tudo à mão. Aí o artesanato original. Tudo

    que é à máquina, as pessoa num considera mais que é artesanato, né?”

    (Registro de áudio 01. Artesã “MF” – Outubro/2014).

    Toda característica manual inerente ao artesanato, na boca dos artesãos aqui

    postos parece apartar a presença de máquinas em seus processos de criação e produção,

    gerando um sentido de que estas seriam nocivas para uma integralidade e unidade dos

    artefatos. Para isso encontramos respaldo direto vindo de Latour (1999, p.136), que

    aponta:

    Como ele poderia ser ameaçado pelas máquinas? Ele as criou, transportou-se

    nelas, repartiu nos membros das máquinas seus próprios membros, construiu

    seu próprio corpo com elas. Como poderia ser ameaçado pelos objetos?

    A UNESCO12 classifica também um certo nível de interferência mecanizada nas

    formas que os produtos são gerados em um contexto artesanal:

    12 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO.

  • Produtos artesanais são aqueles confeccionados por artesãos, seja totalmente

    a mão, com uso de ferramentas ou até mesmo por meios mecânicos, desde

    que a contribuição direta manual do artesão permaneça como o componente

    mais substancial do produto acabado. Essas peças são produzidas sem

    restrição em termos de quantidade com o uso de matérias primas de recursos

    sustentáveis. A natureza especial dos produtos artesanais deriva de suas

    características distintas, que podem ser utilitárias, estéticas, artísticas,

    criativas, de caráter cultural e simbólicas e significativas do ponto de vista

    social. (UNESCO, 1997, apud BORGES, 2011, p.21).

    Mesmo o Ministério do Desenvolvimento, Industria e Comércio Exterior do

    Brasil, dá para o termo artesanato algumas destas nuances:

    Compreende toda a produção resultante da transformação de matérias-

    primas, com predominância manual, por indivíduo que detenha o domínio

    integral de uma ou mais técnicas, aliando criatividade, habilidade e valor

    cultural (possui valor simbólico e identidade cultural), podendo no processo

    de sua atividade ocorrer o auxílio limitado de máquinas, ferramentas,

    artefatos e utensílios. (BRASIL, Programa do Artesanato Brasileiro. 2012, p.

    12)

    Em contrapartida quando “M” é questionada sobre uma definição de artesanato,

    aparece mais uma vez uma concepção integralmente voltada para a manipulação manual

    da matéria prima:

    “P: O que é artesanato pra você?

    M: Artesanato é aquilo que você cria, que você faz com as mãos, e não o que

    você compra pronto.

    P: Tá, mas e a máquina de costura? Você tá fazendo com as suas mãos, ou

    não?

    M: Essa aí é com a mão.

    P: Não, não, mas eu digo, se você costurasse na máquina, não seria mais

    artesanato?

    M: Seria artesanato.

    P: E se a gente mandar fazer um bordado no computador? É artesanato?

    M: Não.” (Registro de áudio 01. Artesã “M” – Outubro/2014).

    A questão da definição que os artesãos dão para o termo artesanato é tão delicada que

    faz surtir discussões acirradas sobre até que ponto algum item é ou não é “artesanato”,

    por exemplo, como podemos ver nesta fala de “MA”, enquanto falava da produção de

    artefatos de uma colega artesã:

    “É, a gente conversa, mas ela é teimosa. Ela fala: ‘Não mas fui eu que fiz’, aí

    ontem ela ficou tentando justificar uma caixinha lá que você sabe muito bem

    que não foi pintada a mão né? Aí ela disse lá que o marido dela é pintor e

    pintou com a pistola de pintura, mas eu não sei não...” (Registro de áudio 01.

    Artesã “MA” – Outubro/2014).

    O simples fato de um acabamento mais próximo do regular, sem as nuanças

  • ruidosas do trabalho manual, já incita dúvidas quanto à qualidade de “artesanato” que

    um artefato carrega. Mostra a existência de uma natureza distinta no que diz respeito à

    produção de artefatos, onde a questão manual evidencia-se como a característica

    simbólica mais marcante e significativa do ponto de vista produtivo e identitário.

    A atividade artesanal aqui mostra-se como sendo não apenas um modo de se

    produzir artefatos com as mãos, mas todo um processo criativo que exige do artesão um

    olhar não mecanizado e não automatizado, no momento de aplicar técnicas e

    desenvolver saberes.

    “MA” interpreta isto como sendo uma questão de “identidade artesã”:

    “Isso, de identidade. Se você começar a colocar uns produtos assim, daqui a

    pouco vai ser uma loja comum, qualquer lugar você vai encontrar o que tem

    aqui e não é isso, a gente quer que seja diferente.” (Registro de áudio 01.

    Artesã “MA” – Outubro/2014).

    A inserção do artesanato na esfera cotidiana da vida destes artesãos engendra

    técnicas e processos que são em grande parte improvisados, ajustadas aos seus

    ambientes e lares, bem como aos materiais disponíveis para seu trabalho e,

    paulatinamente, tornam-se meios de produção coerentes com o estilo de vida que

    preconizam. Estes processos ultrapassam os de produtos feitos em série, onde o

    artesanato passa a atender, em primeira instância, aos desejos, necessidades,

    prioridades, interesses e valores dos artesãos que lhes conformam. Daí a sua clareza ao

    descrever tais processos de forma tão simples, pois eles assim o são. Simples atamentos

    daquilo que pode ser feito com os materiais e conhecimentos disponíveis.

    Este ponto ganha nitidez quando “W” nos descreve um pouco de seus processos

    produtivos:

    “Então... aqui, primeiro, eu sempre começo pra esticar a cabecinha, aí eu uso

    essa bolinha aqui, e vou esquentar no ferro. (ela pega uma bolinha de isopor,

    que usa pra dar a circunferência. O ferro é utilizado pra esquentar o EVA na

    cor salmão, não a bolinha de isopor) Ele fica elástico. Aí dá pra você fazer

    bastante coisa com ele.” (Registro de áudio 01. Artesã “W” – Outubro/2014).

    Ao passo em que o artesão, o ambiente, os conceitos e os materiais disponíveis

    começam a entrelaçarem-se durante a formatação de objetos, toda uma rede de

    interações passa a ser (re)desenhada para suportar estes frames de ações. Não é só do

    contexto do artesão que conseguimos extrair visualidades da rede, suas saídas também

    denotam vínculos e mudam rumos.

    “W: Primeiro a gente passa cola de um lado, esticando né.

    P: Aí é cola de isopor?

    W: Não. É Tecbond... é cola adesiva instantânea mesmo.

    P: Tipo Super Bonder?

    W: Só que a Super Bonder no começo eu usava ela, porque não tinha dessa

  • cola. Acaba saindo mais cara, porque o vidro é muito pequenininho.

    P: Ah, tá, e essa dura mais.

    W: E o Super Bonder deixa marca. Ela resseca, fica esbranquiçada. E essa

    aqui não.

    P: Porque ela já é pra artesanato mesmo?

    W: Isso. É própria.

    P: E dá pra achar por aqui mesmo, ou cê tem que ir pra Itajubá?

    W: Não, antes tinha, só em São Paulo que tinha dela. Agora não, agora tem

    em todas as papelarias. Nossa, eu perguntava ‘mas cê num tem essa cola?

    Tem que ter essa cola...’ Que fica mais fácil né? Agora todo mundo tem.”

    (Registro de áudio 01. Artesã “W” – Outubro/2014).

    Sobre estas conjunturas, “DT” diz o seguinte:

    Então, é uma relação muito íntima, muito profunda. Você tem que ter uma

    afinidade muito grande com o material que você está trabalhando, a matéria,

    né? Porque é um dialogo. Outra vez falando sobre diálogo você começa a

    trabalhar e daqui a pouco você está direcionando a matéria, você vai

    direcionando a matéria, e daqui a pouco é ela que começa a te levar,

    entendeu? Eu acho que isso é uma coisa incrível [...] Ah, material, então é só

    material mesmo. Mas aí é o seguinte, é isso, entendeu? Eu acho que tem que

    ter uma afinidade, você tem que, né, porque se você vai fazer um trabalho

    com uma... agora o artesanato a gente tem muita, é, eu acho bacana você usar

    aquilo que você tem perto de você, né? Entendeu? Essa coisa de, na zona

    rural, por exemplo, você vai trabalhar com taquara, de repente você tem

    bastante taquara, de repente você pode até começar a plantar taquara pra

    poder sustentar aquilo, aquele trabalho que você está fazendo. É, porque o

    papelão virou máfia, foi horrível. Porque quando, infelizmente existe uma

    exploração muito grande porque quando a gente começou trabalhar, aí

    começou a dar certo, aí essas pessoas começaram a ver aquilo que estava

    dando certo, e começa e explorar muito. (Registro de áudio 01. Artesão “DT”

    – Outubro/2014).

    Certos tipos de condicionantes materiais exercem ações que podem inclusive

    influenciar na ação de outros elementos materiais, bem como nas ações dos seres

    humanos quando em contato com estes. Assim compreendemos de maneira um pouco

    mais prática aquilo que Latour resgata ao expandir o espectro das ações para além da

    separação entre sujeitos autônomos e objetos inertes (LEMOS, 2013). Estes, pelo visto,

    não são nada obedientes, mas carregados de controvérsias e recalcitrâncias.

    Percebemos também como outras entidades dotadas de ação, mas não de uma

    materialidade aparente, carregam neste jogo um conjunto enorme de nuanças e

    controvérsias, que são desenhadas a partir de perspectivas específicas. O termo

    artesanato, que também é um híbrido13, configura significados e interpretações das mais

    diversas dependendo apenas da forma como atrela-se a um emaranhado de materiais,

    processos cognitivos, ambientes, instituições e pessoas.

    13 Segundo ele, o conceito de híbridos aparece como sendo todo resultado da interação humana com a

    natureza, que pode ou não carregar em si uma materialidade tangente. Neste sentido uma lei pode ser um

    híbrido, bem como o próprio termo artesanato o é. Ver Latour, 2012.

  • Quem compra os artesanatos, já finalizados, pouco percebe das nuances de

    afetações que foram necessárias para que estes chegassem até suas mãos. Perde-se de

    vista os inúmeros desenhos de redes e articulações estabelecidas pelos materiais, pelos

    processos, pelos “laboratórios”, pelas mãos dos artesãos e seus contatos com os pares.

    O que podemos perceber até aqui são as maneiras como um jogo de interesses

    particulares, vinculados a uma série de materiais, objetos, técnicas e saberes, pôde,

    paulatinamente, (co)formar redes de afetações, que por sua vez tem saídas maiores,

    mais densas e mais sólidas que suas entradas. “DT” representa na vida artesã de Maria

    da Fé uma engrenagem propulsora de sua vocação. Seu quinhão nesta rede de interações

    não é desprezível (PINHO 2013), bem como nenhum dos outros elementos igualmente

    dispostos a conformarem esta rede não o são. Trata-se de um equação onde todos os

    papeis tem igual valor, agem de maneira absoluta dentro de suas capacidades. Não

    existe artesanato de Maria da Fé sem os aglomerados de papelão, assim como não

    existe sem as permissões que o papelão, a cola, as instituições apoiadoras e os poderes

    locais lhe deram para trabalhar, nem mesmo sem o legado que isso engendrou. Um

    legado composto da ação de elementos díspares, que quando postos em conjunto

    propiciaram uma série de agregações sociais.

    PARTE 3 - PARA APROXIMARMOS DESIGN E ARTESANATO Podemos partir de vários caminhos para discutir os termos design e artesanato

    na contemporaneidade, bem como para situar o papel do designer e do artesão neste

    contexto. Segundo os relatos históricos vistos em Wanderley (2013), o ser humano

    haveria transitado de um produtor ferramental que visava exclusivamente a sua

    sobrevivência, para um produtor de significados através de seus artefatos. Estes passam

    a vincular-se e serem influenciados por diferentes sistemas políticos, culturais,

    econômicos, que determinavam o modo de vida humano, bem como o modo de vida dos

    próprios objetos que transitavam estes meios.

    Diversos campos de conhecimento foram emergindo ao passo em que

    emergiam-se novos artefatos e novas maneiras de se produzi-los. Percebe-se uma

    homogeneidade no que tange definições gerais sobre artesanato, conforme vimos na

    parte 2 deste artigo, onde as mãos ganham notoriedade, bem como os aspectos

    vernaculares intrínsecos a esta produção, ou seja, para que algo seja considerado

    artesanato é necessário que de certa forma esteja carregado de um simbolismo popular,

    com matérias primas não processadas na indústria, sem repetições em série. Uma

    espécie de não-arte e concomitantemente um não-produto industrial.

    Ao longo do tempo a maneira de se fazer artesanato sofreu mudanças

    significativas, nuances de afetações e conexões em rede fizeram este conceito transitar

    no campo conceitual e no campo pragmático. Até a revolução industrial o artesão

    denotava a figura de um elaborador de sistemas físicos e simbólicos que ainda

  • permanecia próximo dos usuários, de suas necessidades e dos ambientes de uso e era

    exatamente por isso que limitava-se o escopo de sua atuação, nunca perdendo de vista

    seus modos peculiares de produzir, suas técnicas, suas ferramentas e todo resultado da

    experiência artesanal que era vivida cotidianamente.

    Paulatinamente, ambientes rústicos de produção tornaram-se oficinas, locais de

    produção especializados, onde perícia e destreza aliavam-se a funcionalidades, gostos,

    tendências, numa demonstração constante dos modos de vida pertencentes às épocas em

    que vingaram. Ali também poderíamos ver os contrastes acontecendo, hierarquias

    surgindo, valores estéticos sendo formados, técnicas se consolidando. Evidências de

    uma sociedade já composta por articulações de interesses, repletas de recalcitrâncias e

    desejos vindos de humanos e não-humanos. A gênese da divisão do trabalho, por

    exemplo, resgata um olhar acuidoso para a cisão entre artesão e mestre artesão,

    conforme grifa Wanderley (2013, p. 19):

    Uma pequena divisão de trabalho é organizada com as oficinas da Idade

    Média. Com elas também o processo de ensino prático se inicia, com mestres

    transferindo seus conhecimentos aos aprendizes por meio de exercícios

    práticos. Por fim, surge ainda a ideia de associação de trabalhadores, com as

    Corporações de Ofícios, com o objetivo de estabelecer a cooperação entre

    atores da mesma atividade, regulamentação da área, manutenção de padrões,

    preços base, entre outros.

    Interessa-nos saber que com as modificações na maneira como o ser humano se

    organiza, modificam-se também todo um conjunto de processos cognitivos e que estes

    influem diretamente na forma como lidamos com ambientes, processos, ações, pessoas,

    materiais, objetos e conceitos, que por sua vez condicionam a humanidade a diferentes

    estilos de vida no cotidiano. O artesanato contemporâneo, neste sentido, deve ser visto

    como uma herança de um sistema social articulado sob outros paradigmas de tempo e

    espaço, mas que ainda mantém, paralelamente, uma busca de identificação pessoal,

    projeção de status na sociedade, valorações estéticas e inserção econômica.

    Deve-se alertar, sobretudo, para os diversos interesses e embates travados no dia

    a dia destes processos de produção de artefatos, que acontecem não somente na seara da

    técnica, mas a partir de todo um contexto relacionado aos saberes e interpretações que

    cada artesão desenvolve em seus ambientes de trabalho, bem como quando se colocam

    em conjunto, estabelecendo relações que em nada lembram as ocorridas em instalações

    industriais, nos estúdios de design ou dentro dos ateliês de artistas plásticos renomados.

    Cumpre visionar de que forma podemos aproximar estes entendimentos, acerca

    do artesanato, com aquilo que se entende por design, visto que também é uma área

    discute e concebe os processos de formatação de objetos e artefatos do cotidiano.

    O termo design surge concomitante à época da revolução industrial. Esta denota

    ao mundo sérias transformações nos modos de interação social, consumo de bens, bem

    como de produção e organização do trabalho (CARDOSO, 2004). Estas revoluções

  • acontecem no âmbito de um sistema de que visa reestruturar os processos de fabricação,

    onde aumentava-se a quantidade de artefatos produzidos ao passo que o custo desta

    produção diminuía, gerando uma enorme demanda de bens e elevando-se o consumo.

    As oficinas medievais ampliam-se, tomando um caráter mecanizado e

    hierarquizado em suas relações produtivas, onde a figura do artesão passa,

    paulatinamente, a dar lugar para a figura do especialista.

    A primeira terminologia usada para se referir à área do design é gestaltung e

    data dos idos de 1920, preconizada na escola alemã Bauhaus, no período dito

    modernista. De acordo com Cardoso (2004), este advento concebe o design como algo

    isolado nos processos de criação e produção de artefatos do cotidiano, o que

    distinguiria-o, crucialmente, dos processos de produção artesanal, criando

    inexoravelmente uma cisão entre os termos, distanciando as figuras do artesão e do

    designer, onde o primeiro estaria preocupado com o todo, no que diz respeito às

    relações de produção de artefatos e o segundo seria um especialista que visa somente

    atribuir uma camada específica de qualidades simbólicas aos objetos gerados na

    indústria. Esta separação é a base da modernidade e no contexto abordado diz respeito à

    construção de artefatos. Design estaria distante de artesanato neste caso. A diferença de

    escopo entre as duas áreas mostra-se nítida, neste sentido. Sobretudo pela abrangência

    que o termo design tomou na contemporaneidade - fazer design hoje, quer dizer fazer

    muito mais coisas que antigamente.

    Bem no sentido que explana Latour (2014, p. 01): “se províncias inteiras podem

    ser reelaboradas através do design, então o termo já não tem nenhum limite”.

    A ideia de considerarmos design como uma atitude projetual, por exemplo, é

    uma herança histórica advinda da revolução industrial que podemos problematizar,

    partindo de Mizanzuk (2013, et al, p. 100), da seguinte maneira:

    Se optarmos por uma visão do design como resultante de um processo

    histórico, como uma forma de projetar ligada à produção industrial, que teve

    seu início na Europa do século XVIII, acabaremos por ignorar produções de

    tempos e lugares que fogem do nosso cânone ocidental. Afinal, podemos

    pensar em um design chinês do século XV? E um design egípcio do século II

    a.C.? Por que, afinal, devemos privilegiar este ou aquele momento (ou

    lugar)?

    Continuando a problematizar, ainda segundo Mizanzuk (2013, et al, p. 100 –

    101), temos:

    Esta definição apesar de visar uma deselitização do termo, carregando em si

    uma proposta mais democrática da questão, o que possibilitaria uma série de

    problematizações interessantes (defender o artesanato ou a sinalização de

    cidades da Europa medieval como possíveis objetos de design, por exemplo)

    carrega um problema: ao chamarmos tudo de design, nada é design.

    Perdemos os limites e referências. Pior: se levarmos em conta o “peso”

  • linguístico-histórico que a palavra design carrega consigo, estaríamos,

    inevitavelmente, reduzindo toda a dimensão simbólica dos exemplos citados

    à visão de uma forma de pensar projetos.

    Bruno Latour aparece mais uma vez como elemento balizador de uma possível

    estabilização destas discussões, uma vez que escreve, em meados de 2008, um artigo14

    propondo alguns passos ruma a uma filosofia que lhes seja pertinente. Portugal (2014),

    traduzindo este artigo para a língua portuguesa, define que o termo design, em sua

    conotação mais aceita, poderia significar em português algo próximo de “projetar”,

    conforme discutido.

    Esta é uma ideia que parte de uma proposta modernista do design, uma

    concepção dicotômica que separa a materialidade - função - daquilo que esta para além

    disto - forma - a estética, o simbólico, o subjetivo. Preconizada pela velha máxima

    funcionalista: “A forma segue a função”, de Louis Sullivan15. Neste sentido, design

    funcionaria como uma espécie de película simbólica que reveste toda materialidade,

    eficiência e neutralidade dos objetos, conferindo a estes apenas noções subjetivas,

    estéticas e simbólicas.

    Podemos perceber, pela tradução de Portugal (2014), que o termo mais coerente

    em português para a palavra design, à luz de Latour e na sugestão do próprio tradutor,

    seria: “Elaborar”. Já aqui podemos perceber um forte cuidado de Portugal, ao traduzir o

    termo deixando-o ligado, intrinsecamente, aos pressupostos da TAR. A palavra

    elaborar alude a uma maneira articulada de se projetar a realidade.

    Um ponto interessante visto em Latour, nesta conjuntura, é a forma como mostra

    que as mudanças que o termo design sofreu não mostram apenas uma “carreira”

    peculiar traçada por um ser actante que está sendo remodelado com o passar do tempo,

    mas também que essas mudanças só puderam acontecer pois a humanidade em geral

    está mudando. Nas palavras de Latour (2014, p. 03): “Um indício fascinante de uma

    mudança na forma como lidamos com objetos e ações de uma maneira geral”.

    A própria fala de “DT”, quando interpelado sobre a relação entre artesanato e

    design, mostra de forma clara este movimento:

    “Hoje não tem mais fronteira...e é isso que é bacana, eu adoro essa ideia de

    não ter mais fronteira, porque aí isso dá uma liberdade muito grande pra

    você, entendeu?...É, e não, outra coisa, design é design, lógico, design é

    indústria, e artesanato é artesanato, arte, quer dizer arte, o artesanato é cada

    coisa no seu lugar, mas não impede de que possam andar de mãos dadas,

    entendeu? O trabalho que eu faço aqui é arte e design. Você tem a emoção e

    tem a função, tem as duas coisas juntas. A emoção aliada à função, entendeu?

    14 Refere-se ao artigo: “Um Prometeu Cauteloso? Alguns passos rumo a uma filosofia do design com

    atenção especial a Peter Sloterdijk”, escrito por Latour em 2008 como resultado de uma palestra conferida

    a um congresso de história do design em Fallmouth, Cornualha. 15 Arquiteto norte-americano precursor do movimento modernista.

  • Porque só design, você faz o desenho de uma peça e põe na indústria e aquilo

    vai sair em série. E quando você tem essa coisa de fazer mesmo, do artesanal,

    o design artesanal, você tem a impressão digital de quem faz.” (Registro de

    áudio 01. Artesão “DT” – Outubro/2014).

    Para Latour (2014), já não há de se conotar o sentido de “transformação”

    inerente ao termo design, mas de articulação ou elaboração. Um objeto, assim, teria

    nuances de interesse, hora para mais, hora para menos. Os artefatos seriam concebidos

    como conjuntos complexos de questões contraditórias - a função é absorvida pela

    forma. A questão acerca daquilo que é real torna-se apenas uma questão de

    interpretação. Assim, design passa a ser uma forma de articular significado para a

    realidade. Mas oras, partindo do ponto de vista da construção de artefatos cotidianos,

    não seria artesanato, em sua base conceitual, esta mesma forma de articulação de

    significados para a realidade?

    Esta noção de aproximação entre os termos torna-se por demais importante ao

    iniciarmos discussões acerca do papel destes sujeitos-elaboradores, sobretudo no que

    diz respeito a uma suposta responsabilidade de “direcionar o mundo”, onde designer e

    artesãos diferenciam-se apenas por escopo e por suas preocupações sobre: o que

    elaborar?

    Podemos dizer que estes sujeitos lançam sempre olhares inveterados,

    sistemáticos e interpretativos sobre o mundo ao seu redor, visando diferentes modos de

    elaborá-lo. Quem se lança a elaborar o mundo está descrevendo-o e moldando-o a seu

    modo, de acordo com as possibilidades que as condições materiais e os específicos elos

    e interesses em rede lhes dão. Consequentemente as atividades do designer e do artesão

    confundem-se, emaranham-se, distinguindo-se apenas pelas redes que performam ao

    apontarem um modelo interpretativo da realidade, ou seja, a única aproximação possível

    entre os termos torna-se sociotécnica.

    Ainda nesta seara e com vistas a endossar a sentença de Latour (2008, p.43), da

    mesma forma que o artesão estaria preocupado em manipular controvérsias e articular

    artefatos para o cotidiano, o designer, conforme argumentado acima, também estaria

    preocupado. Ambos atuando como articuladores e elaboradores das relações entre os

    seres humanos, os objetos e as aparências dos seres humanos e dos objetos.

    Fica claro que não estamos nem perto de chegar a um consenso, nem mesmo

    sabemos se é possível que exista um consenso. Ficam abertas as possibilidades.

    Um dos caminhos possíveis é o que traçamos neste artigo. Pensar o design e

    artesanato como elementos que colocam a prova não somente a materialidade, mas a

    imaterialidade das coisas (CARDOSO, 2012). Cabendo questionar não os objetos em

    si, mas o porque destes objetos existirem como tais ou mesmo a rede que está por trás

    destes objetos.

  • Em última análise. cabe compreender que (a) não há maneira de aproximar

    design e artesanato sem reagregar os fragmentos históricos, técnicos e os saberes locais;

    e (b) que relacionar estes saberes e técnicas é conectar antes uma complexa rede de

    ligações heterárquicas, exercidas por atores em rede.

    Sabendo que uma rede é sempre um conjunto de posições nas quais um artefato

    adquire um significado e assim um artefato só pode se constituir dentro de uma rede de

    associações específicas. Dar voz a estes artefatos, que antes eram entendidos apenas

    como “meros condicionantes materiais”, é condição primordial para que apareçam suas

    controvérsias, recalcitrâncias e discursos, passando a assumir um status de actante,

    estabelecendo relações complexas e conflituosas com os seres humanos e a natureza,

    num ambiente em que também possuam políticas e que, portanto, deveriam ser

    reagregados no que entendíamos como “social”, ou seja, que uma democracia estendida

    aos artefatos não é somente possível como necessária, para que possamos pensar tais

    aproximações.

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