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Documento sobre interdisciplinaridade da Rede Municipal de São Paulo
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SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAO
Diretoria de Orientao Tcnico-Pedaggica
DOT Ensino Fundamental e Mdio
Dilogos interdisciplinares a caminho da autoria
Elementos conceituais e metodolgicos para a construo dos
direitos de aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar
Verso de julho/2015.
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SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAO
Diretoria de Orientao Tcnico-Pedaggica
DOT Ensino Fundamental e Mdio
Dilogos interdisciplinares a caminho da autoria
Elementos conceituais e metodolgicos para a construo dos
direitos de aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar
Sombra, 2007, de Franciele Duarte Santana. Essa fotografia foi produzida durante um trabalho sobre linguagem fotogrfica e sua insero no cotidiano, a partir da questo: Qual imagem significa sua escola?
Verso de julho/2015.
7
Texto coletivo produzido pelos educadores da Rede Municipal de
So Paulo a partir de encontros e debates realizados por DOT-P/DRE
e DOT Ensino Fundamental e Mdio/SME
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Sumrio
APRESENTAO ......................................................................................................... 5
1 REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE SO PAULO: PERSPECTIVAS
HISTRICAS ................................................................................................................. 9
1.1 Subsdios para reflexes .......................................................................................... 16
2 CICLOS DE APRENDIZAGEM: ORGANIZAO DO ENSINO
FUNDAMENTAL ......................................................................................................... 19
2.1 Docncia compartilhada e projetos ......................................................................... 20
3 SUJEITOS DA INFNCIA ................................................................................... 23
3.1 As infncias presentes e o Ciclo Interdisciplinar ................................................... 27
3.2 As infncias presentes no currculo do Ciclo Interdisciplinar .............................. 30
3.3 Ciclo Interdisciplinar: infncias e territrios ......................................................... 32
4 CURRCULO: APROXIMAES CONCEITUAIS ......................................... 35
4.1 Currculo: o que temos? O que queremos? ............................................................ 38
4.2 Currculo e formao .............................................................................................. 39
5 INTERDISCIPLINARIDADE: DILOGOS ...................................................... 43
5.1 Interdisciplinaridade: histrico das reflexes no municpio de So Paulo ........... 45
5.2 Interdisciplinaridade: discutindo conceitos ............................................................ 48
6 AVALIAO NO CONTEXTO DO CICLO INTERDISCIPLINAR ............ 51
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ....................................................................... 58
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 61
EQUIPE RESPONSVEL PELO PROCESSO ESCRITA DO DOCUMENTO,
ENCONTROS REGIONAIS E SEMINRIO ........................................................... 65
5
APRESENTAO
O Programa de Reorganizao Curricular e Administrativa, Ampliao e
Fortalecimento da Rede Municipal Mais Educao So Paulo trouxe mudanas
significativas em busca da qualidade social da educao. A reorganizao curricular do
Ensino Fundamental em ciclos de aprendizagem foi uma delas, o que nos leva a
repensar questes cristalizadas na prtica pedaggica. Essa reorganizao se orienta em
trs ciclos de trs anos cada: Ciclo de Alfabetizao (1, 2 e 3 anos); Ciclo
Interdisciplinar (4, 5 e 6 anos) e Ciclo Autoral (7, 8 e 9 anos).
O currculo do Ciclo de Alfabetizao se pauta no documento Elementos
conceituais e metodolgicos para definio dos direitos de aprendizagem e
desenvolvimento do Ciclo de Alfabetizao (1o, 2
o e 3
o anos) do Ensino Fundamental,
produzido pelo Ministrio da Educao (2012), trazendo consideraes sobre o
currculo na perspectiva dos direitos de aprendizagem. Para tanto, a Prefeitura de So
Paulo aderiu ao Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa (Pnaic), que promove
a formao dos professores alfabetizadores, alm do acompanhamento pedaggico
desse ciclo.
A construo curricular com base em direitos de aprendizagem trouxe questes
pertinentes tambm aos Ciclos Interdisciplinar e Autoral, entre elas: Quais as bases para
a construo de um currculo emancipatrio? Ou seja, o que no pode faltar em um
documento sobre currculo para o Ensino Fundamental, pensando na Educao Bsica,
na realidade do municpio, nas mltiplas linguagens e interesses presentes na vida e
entre os estudantes, situados historicamente, como autores de transformao social?
Como entendemos a escola pblica municipal na sociedade contempornea? Como se
d o trabalho coletivo nos ciclos de aprendizagem? Como definimos a
interdisciplinaridade? Quem so nossos estudantes? Qual relao nossos estudantes
estabelecem com o conhecimento? Como se d o processo de acompanhamento das
aprendizagens dos estudantes pelo coletivo escolar? Como se d a avaliao no contexto
interdisciplinar ao longo do ano letivo?
Permeados por essas questes, foram realizados entre setembro e novembro de
2014, dentro da jornada de trabalho dos educadores, os Encontros Regionais para a
Construo dos Direitos de Aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar.
6
Promovidos pelas equipes de Diviso de Orientao Tcnico-Pedaggica (DOT-
P) das treze Diretorias Regionais de Educao (DREs) e envolvendo professores,1
coordenadores pedaggicos e supervisores escolares, os encontros pautaram-se na
discusso do documento-base Ciclo Interdisciplinar como direito: sua criao
coletiva.2 Classificado como texto em discusso, a leitura desse documento contou com
importantes intervenes dos participantes dos Encontros Regionais.
O I Seminrio Municipal de Educao para a Construo dos Direitos de
Aprendizagem foi organizado, em dezembro de 2014, a partir da sistematizao das
contribuies dos Encontros Regionais e marcado pela presena de dez representantes
de cada DRE, envolvendo educadores das Unidades Educacionais, das equipes de DOT-
P e superviso escolar, que haviam participado dos Encontros Regionais.
Os participantes dividiram-se em cinco grupos, de acordo com os eixos
temticos do documento-base: ciclos de aprendizagem; sujeitos da infncia; currculo;
interdisciplinaridade; avaliao. As discusses em cada eixo se deram em torno das
contribuies elaboradas ao longo dos Encontros Regionais, sobre os aspectos
conceituais do texto e sobre as necessidades de adequaes e/ou de mudanas para a
construo e a garantia dos direitos de aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar.3
A partir do seminrio, o grupo de trabalho responsvel pela finalizao do
documento reuniu-se, periodicamente, para acolher as contribuies em um processo
de reescrita, que agora se materializa como base para as aes de formao docente.
Desde a escrita do documento e a realizao dos Encontros Regionais at o
Seminrio e o momento de reescrita, esse processo, porque dialgico e coletivo,
apontou eixos e princpios fundamentais formao de todas as reas do conhecimento
e construo dos direitos de aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar e, posteriormente,
do Ciclo Autoral. So eles: culturas infantis, popular e escolar; prtica pedaggica para
a diversidade; conscincia poltica, tica e esttica no trabalho educativo; avaliao
formativa e avaliao institucional.
nesse sentido que a formao docente prioriza a composio de um currculo
integrador para a Educao Bsica, que leve em conta as culturas existentes na cidade e
1 Dois professores por perodo representavam cada uma das Unidades Educacionais de Ensino
Fundamental e Mdio e CIEJA. 2 So responsveis pela elaborao desse documento as equipes de DOT-P/DRE e a equipe da DOT
Ensino Fundamental e Mdio/SME. 3 Neste link, est disponvel uma verso do documento com as contribuies dos participantes dos
Encontros Regionais: .
7
no meio escolar, alm de um olhar para os documentos curriculares produzidos na rede,
tanto historicamente, quanto os que esto em produo. fundamental concentrar as
reflexes na constituio do currculo, pois todas as aes desencadeadas desdobram-se
no cotidiano da escola e ganham corpo na prtica educativa em todas as modalidades de
ensino. O propsito fomentar e embasar uma construo curricular qualificada sobre
as temticas importantes e que marcam a Educao Bsica.
O presente documento busca, por meio desse dilogo com a rede, com o
Conselho Municipal de Educao (CME), com o Grupo de Trabalho Intersecretarial de
Educao em Direitos Humanos (GTI EDH) e com a universidade, delinear uma
trajetria com o conjunto de educadores e educadoras, no sentido de aproximar e
aprimorar as prticas docentes, de modo a garantir o direito aprendizagem. Compem
essa trajetria reflexes e consideraes acerca do perfil dos estudantes no interior da
organizao escolar, dos ciclos de aprendizagem, das relaes interdisciplinares e da
avaliao na prtica educativa e no acompanhamento dos avanos e das dificuldades por
parte dos educandos.
Os desafios so grandes, porm, estimulantes quando se pensa na importncia
deste momento histrico e na possibilidade de proposies e de elaborao de bases
curriculares para o Ciclo Interdisciplinar e Autoral, constitudas de maneira coletiva.
Com base nessas consideraes, organizou-se este documento em torno de cinco
eixos, sistematizados em captulos, que podem ser lidos de modo independente: ciclos
de aprendizagem; sujeitos da infncia; currculo; interdisciplinaridade; avaliao.
Como fundamental para o entendimento de nosso tempo, apresentada, no
captulo 1, a contextualizao histrica da Rede Municipal de Ensino de So Paulo, em
seus aspectos polticos refletidos no currculo e nas prticas escolares.
O captulo 2 traz a reflexo sobre os ciclos de aprendizagem e as especificidades
do Ciclo Interdisciplinar, como a Docncia Compartilhada e os Projetos. No captulo
seguinte, debruamo-nos sobre o sujeito deste ciclo: a criana e as infncias presentes.
O currculo discutido, no captulo 4, a partir de aproximaes conceituais, ao par que a
interdisciplinaridade captulo 5 expe consideraes de como se expressa esse
currculo crtico e emancipatrio. No captulo 6, a hora e a vez da avaliao. So
apresentadas definies conceituais e a reflexo de como ela se insere neste contexto, de
maneira formativa, para analisar e organizar a prtica visando aprendizagem.
Tendo percorrido parte de um rico caminho de dilogo e construo coletiva,
entre encontros regionais, seminrio e grupo de trabalho, este documento chega agora a
8
todos os educadores e educadoras do Ciclo Interdisciplinar e Autoral. Sem o objetivo de
esgotar todas as possibilidades do fazer educativo, nem de prescrever prticas docentes,
este texto se constitui por meio de indagaes, reflexes e memria, a partir de escolhas
que reafirmam o direito educao pblica com qualidade social para todas as crianas
e jovens. pela conscincia da pluralidade de concepes que permeiam o fazer
educativo que a opo deste documento pelo encontro, pelo debate e pelo coletivo.
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1 REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE SO PAULO: PERSPECTIVAS
HISTRICAS
A construo dos direitos de aprendizagem no Ciclo Interdisciplinar dialoga
com o percurso histrico de formao social, para que se reconhea o Estado Social e
Democrtico de Direito como fundamental para pensar a educao. Assim, o principal
divisor de guas, que marca nacionalmente o Estado Social e Democrtico de Direito,
a Constituio Federal de 1988 expresso legal da superao de governos marcados
pela ausncia de liberdades e direitos.
Em seu artigo 205, a educao tratada como direito de todos e dever do
Estado e da famlia, sendo promovida e incentivada pela sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualificao
para o trabalho.
Marcado pela defesa do pluralismo de ideias e de concepes pedaggicas, tal
movimento possibilita a toda a sociedade brasileira envolver-se, democraticamente, com
os rumos da educao. A preocupao em fixar contedos mnimos para o Ensino
Fundamental, de maneira a assegurar a formao bsica comum e o respeito aos valores
culturais e artsticos, nacionais e regionais compe o artigo 210 da Constituio.
Na direo do fortalecimento dos direitos sociais e, mais especificamente, no
campo da educao, foi promulgada a Lei no 8.069, em 13 de julho de 1990, que criou o
Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA). Conforme seu artigo 57, o Poder Pblico
estimular pesquisas, experincias e novas propostas relativas a calendrio, seriao,
currculo, metodologia, didtica e avaliao, com vistas insero de crianas e
adolescentes excludos do Ensino Fundamental obrigatrio.
O desejo de acolhimento da criana e do adolescente destaca a necessidade de
um conjunto de aes de planejamento e ensino que atenda aos direitos de uma vida
plena por parte desses dois tempos da vida. O artigo 9o, inciso IV, da Lei de Diretrizes e
Bases da Educao Nacional (LDB), Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, incumbe
Unio estabelecer, em colaborao com os estados, o Distrito Federal e os municpios,
competncias e diretrizes para a Educao Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino
Mdio, que norteiem os currculos e seus contedos mnimos, de modo a assegurar
formao bsica comum. O direito a uma formao bsica, nacionalmente assegurada,
como procedimento colaborativo entre os entes federados, tem a Unio como referncia
normativa em colaborao com estados e municpios.
10
No plano internacional, ocorreu, tambm em 1990, a Conferncia Internacional
de Educao para Todos, organizada pela Unesco e realizada em Jomtien, na Tailndia.
Nela, o Brasil se constituiu signatrio, tendo em vista que o direito de se tornar adulto
alfabetizado, atravs de polticas de erradicao do analfabetismo, fora o objeto de
deliberao do encontro, assim como a identificao e a superao das necessidades
bsicas de aprendizagens. A situao brasileira no era confortvel e exigia das polticas
pblicas medidas visando ao acesso, permanncia e qualidade educacional.
Na esteira do processo de redemocratizao, ocorreu a elaborao da LDB, que
reafirmava os preceitos indicados na ltima Constituio Federal. Os princpios
norteadores da educao nacional se guiaram pela liberdade, pluralidade, gesto
democrtica, padro de qualidade, vinculao entre a educao escolar, o trabalho e as
prticas socais, entre outros. Esse conjunto reafirma as preocupaes gerais de uma
educao vista a partir do exerccio de direitos.
O Brasil, em 1997, logo aps a promulgao da LDB, participou da
Conferncia Internacional de Educao de Adultos (V Confintea), em Hamburgo, na
Alemanha, na qual houve o enfrentamento ao analfabetismo como deliberao,
estabelecendo que a educao continuada ao longo da vida, e, portanto um direito
subjetivo a ser exercido a qualquer tempo da vida.
Nesse contexto, foram elaborados os Parmetros Curriculares Nacionais
(PCNs). Decorrida mais de uma dcada de sua implementao, considerando as
mudanas polticas, sociais e culturais e partindo do pressuposto de que currculo
movimento e construo scio-histrica, entende-se a necessidade de elaborar novas e
mais precisas orientaes curriculares nacionais para o Ensino Fundamental (BRASIL,
2012, p. 10).
Assim, como um dos desdobramentos desse processo, destacamos o
documento Elementos conceituais e metodolgicos para definio dos direitos de
aprendizagem e desenvolvimento do Ciclo de Alfabetizao (1o, 2
o e 3
o anos) do Ensino
Fundamental, que aponta para o direito a uma construo curricular sempre atenta s
mudanas sociais e aos novos desafios colocados para a educao.
A organizao da Educao Bsica, considerando o disposto na LDB, no se
restringe ao modelo seriado; permite semestralidade, ciclos e outras formas que atendam
adequadamente ao direito de acesso e permanncia de crianas, jovens e adultos nas
instituies educacionais, conforme seu artigo 23. Todo o acompanhamento do
11
desenvolvimento da criana e do jovem deve destacar a prevalncia dos aspectos
qualitativos sobre os quantitativos.
Nessa disposio, procura-se garantir o direito de toda criana, jovem e adulto
de conhecer as matrizes identitrias presentes na formao do povo brasileiro, num
contexto de fortalecimento da experincia democrtica e avesso perpetuao
etnocntrica, trazendo a compreenso sobre a histria da frica e afro-brasileira, junto
com os referenciais indgenas, para que recebam o tratamento necessrio para a
reparao de dvida histrica. Reforando a cultura de promoo e proteo aos direitos,
em 2003 editado o Plano Nacional de Educao em Direitos Humanos (PNEDH),
visando promover uma cultura de direitos em todo o pas.
Esse quadro nacional e internacional retratado contribuiu para a caracterizao
e compreenso de um percurso histrico singular no municpio de So Paulo, ps-
Constituio de 1988.
As proposies para a superao de um conhecimento hiperespecializado e
fragmentado disciplinarmente comearam a ser objeto de preocupao do municpio de
So Paulo, no final dos anos 1980, porque se evidenciava como um conhecimento
distante do mundo real de nossas crianas, jovens e adultos. As consequncias dessas
proposies demandaram um processo de construo curricular mais articulado e
integrado, que melhor respondesse aos diferentes tempos da vida.
posto que educao seja processo e, para tanto, no se faz assertivo pens-la
de forma fragmentada. Para uma atuao crtico-reflexiva, educadoras e educadores tm
como premissa maior o envolvimento com os pares, a fim de poder (re)pensar a prtica
docente e delimitar os principais desafios para a atualidade e para o futuro.
Entretanto, sabe-se que a reflexo ora proposta se far mais qualificada se
houver a compreenso do histrico da Rede Municipal de So Paulo, pois cada ao
presente fruto da histria; assim, imprescindvel tratar de alguns princpios poltico-
pedaggicos das gestes municipais anteriores como subsdio para o entendimento
desses processos educativos lembrando que esse percurso se reverbera em movimentos
que ganham fora nas relaes sociais presentes no espao escolar.
Nessa perspectiva, a seguir, h um breve relato das gestes dos ltimos 25
anos, a partir de 1989, a fim de fazer uma aluso memria, entendendo o quo
importante rever o passado para entender o presente e dar sentido para o futuro.
12
Retomar-se-, ento, o percurso histrico a partir da gesto de Luiza Erundina
(1989-1992). Trata-se de um perodo de retomada da democracia, cujo mandato, da
primeira mulher a assumir a Prefeitura de So Paulo, baseou-se na participao
democrtica e na gesto popular.
Paulo Freire, primeiro secretrio da educao naquela gesto, encontrou,
grandes descompassos na constituio da carreira docente, na elaborao de uma
poltica para a Educao de Jovens e Adultos, entre outros.
Como princpios norteadores, defendia uma educao proposta como prtica da
liberdade, autnoma, criativa e emancipatria. Em documento criado pela gesto,
intitulado Aos que fazem educao conosco em So Paulo (SO PAULO, 1989), o
secretrio Paulo Freire comunicava a inteno de construir, coletivamente, uma escola
que se constitusse em:
[...] um centro irradiador de cultura popular, disposio da comunidade, no para
consumi-la, mas para recri-la. A escola tambm um espao de organizao poltica
das classes populares. A escola como um espao de ensino-aprendizagem ser ento um
centro de debate de ideias, solues, reflexes, onde a organizao popular vai
sistematizando sua prpria experincia. O filho do trabalhador deve encontrar nessa
escola os meios de autoemancipao intelectual, independente dos valores das classes
dominantes. A escola no s um espao fsico. um clima de trabalho, uma postura,
um modo de ser (SO PAULO, 1989).
As quatro linhas de trabalho estabelecidas como eixos principais naquela
gesto foram: democratizao do acesso, gesto democrtica, nova qualidade da
educao e a expanso de atendimento da Educao dos Jovens e Adultos
trabalhadores.4
Naquele perodo, encontravam-se proposies acerca do resgate do
conhecimento cientfico a servio da emancipao dos envolvidos no processo
educativo e tambm de um currculo que se constitusse coletivamente, a partir das
premissas que atendessem s especificidades da comunidade escolar. O dilogo aparecia
como mediador de etapas de elaborao desse currculo: problematizao da realidade,
reflexo e construo do conhecimento, a partir da sistematizao e anlise das
informaes com vistas criao coletiva de novas possibilidades de propostas na
definio dos Projetos Poltico-Pedaggicos.
4 No que tange ao objetivo de atendimento da demanda excluda do acesso educao, houve, durante
esse governo, um crescimento de 15% no nmero de matrculas, segundo Freitas, Sal e Silva (2002 apud
Born, 2014), com foco na Educao Bsica e na Educao de Jovens e Adultos. Esta ltima foi
particularmente privilegiada com a criao do Movimento de Alfabetizao (MOVA), que contou com a
abertura de mais de mil salas em toda a cidade.
13
Nesse perodo, foram produzidos inmeros documentos na Rede Municipal de
Ensino, os quais buscavam subsidiar a problematizao dessa construo curricular
dentro das escolas.5
Concomitante a esse movimento, em parceria com universidades e institutos de
educao, foram criados grupos de referncia que participaram da elaborao dos
chamados Cadernos de Viso de rea (SO PAULO, 1992), que se constituam em
orientaes curriculares apoiando o trabalho dos educadores em conjunto com as
equipes gestoras e apresentavam pressupostos gerais de cada rea do conhecimento sem
a definio de contedos especficos.
Essas orientaes curriculares produzidas coletivamente visavam proposio
de um currculo interdisciplinar e seu ponto forte aparecia com a metodologia dos temas
geradores, atendendo, assim, s especificidades de cada escola, bem como de seu
entorno. Nessa perspectiva, propunha-se que o saber se constitusse na medida em que
as reas se relacionassem interdisciplinarmente, objetivando uma leitura crtica da
sociedade.
Essa metodologia de trabalho corroborou com a proposio de um currculo
interdisciplinar, pois a essncia do tema gerador pressupunha um estudo a partir da
realidade dos envolvidos e de seus significados numa dimenso individual, social e
histrica. Esse processo era construdo por meio de uma metodologia dialgica, que
fomentava o exerccio de uma viso crtica por parte do docente e dos educandos,
tomando a realidade como mediadora das relaes que se estabelecem no coletivo, a
partir de uma inteno clara, fundamentada na democracia e na emancipao dos
sujeitos.
Tambm importante ressaltar que, nesse perodo, o Ensino Fundamental foi
reorganizado em ciclos: o Ciclo Inicial (I), que abrangia as antigas 1a, 2
a e 3
a sries; o
Ciclo Intermedirio (II), referentes s 4a, 5
a e 6
a sries; e o Ciclo Final (III), com as 7
a e
8a sries. Essa introduo dos ciclos, naquela ocasio, foi uma atitude pioneira em
relao a outras redes de educao em nvel nacional.
O perodo entre 1993 a 2000 caracterizou-se pela gesto dos prefeitos Paulo
Maluf e Celso Pitta, respectivamente. Em 1993, o ento secretrio de educao Slon
Borges do Reis, publicou o documento Implementao da Poltica Educacional (So
Paulo, 1993), com as bases para a implementao da proposta educacional,
5 Ao fim deste documento, na bibliografia, esto disponveis os principais documentos produzidos
poca.
14
apresentando critrios de gesto educacional e plano de ao para os quatro anos de
gesto.
As propostas de curso de formao continuada nesse perodo tinham como
principal objetivo apresentar aos professores da rede uma nova viso educacional,
centrada na Qualidade Total. Essa proposta foi substituda por novos documentos
intitulados Currculos e Programas organizadores de reas/ciclos.
Em 1997, a pasta de educao foi entregue ao ento vice-prefeito, Rgis
Fernandes de Oliveira. O primeiro documento pblico produzido se apresentou na
forma de um balano das aes desenvolvidas, sob o ttulo de Projeto Viso Balano
da Gesto 1o semestre de 1997. Tratava-se de uma apresentao organizacional da
Secretaria Municipal de Educao (SME) e uma referncia organizao do ensino em
ciclos.
A construo dos ciclos pautada no dilogo, que haviam sido estabelecidos em
1992, foi substituda, em 1998, quando foi publicada a Portaria no 1.971, que extinguia
o Regimento Comum das Escolas Municipais de So Paulo e disciplinava a elaborao
de regimentos individuais para cada estabelecimento de ensino. A elaborao desses
novos documentos foi orientada pelas Diretorias Regionais de Ensino Municipal
(DREMs), em reunies das quais participavam gestores escolares e supervisores, a fim
de assegurar que o documento estivesse de acordo com as alteraes propostas pela
portaria.
Ainda nessa gesto, foi revista a reestruturao curricular em dois ciclos: o que
correspondia ao Ensino Fundamental I, com os quatro primeiros anos de escolarizao
do Ensino Fundamental, e o Ensino Fundamental II, com os quatro ltimos anos.
Em seguida, no perodo entre 2001 e 2004, na gesto Marta Suplicy, foram
estabelecidas quatro metas para a educao no municpio: democratizao do
conhecimento, qualidade social da educao, democratizao da gesto e
democratizao do acesso e permanncia do estudante na escola. Destaca-se que esse
governo tinha trs linhas principais de ao: o movimento de reorientao curricular, a
formao permanente e sistemtica e a reconsiderao da avaliao e do funcionamento
da escola.6
6 O principal canal de comunicao estabelecido entre a SME-SP e as escolas eram as revistas EducAo.
Foram cinco volumes editados ao longo da gesto e eles se constituem como os principais documentos
sobre as aes do governo no perodo. No EducAo no 01 Retomando a Conversa: construo da
poltica educacional da Secretaria Municipal de Educao (SO PAULO, 2001a), o ento secretrio
Fernando Jos de Almeida apresenta rede as intenes e propostas de ao. A retomada do ttulo se refere ao resgate das propostas educacionais existentes na gesto petista de Luiza Erundina,
15
Esse movimento de reorientao curricular, que se propunha como um dos
eixos da nova gesto foi enfatizado e documentado em Currculo emancipatrio,
possvel? (SO PAULO, 2001c, p. 3-4), no qual se refletiam as possibilidades de
construo de um currculo baseado na escola e a partir dos conhecimentos dos
educandos.
Buscava-se romper com qualquer pretenso neutralidade, de modo que o
currculo que se pretendia construir fosse aquele capaz de dialogar com as necessidades
das classes excludas, assumindo uma posio de luta pela justia social. Essa posio
foi reafirmada por meio de uma concepo de currculo na qual o conjunto das aes
educativas deveria estar voltado para o desenvolvimento de conceitos e habilidades
cognitivas e relacionais que permitiam a construo de conhecimentos e de valores
visando, sobretudo, a autonomia dos educandos (SO PAULO, 2001b, p. 7).7
No perodo entre 2005 e 2012 deram-se as gestes dos prefeitos Jos Serra e
Gilberto Kassab. Nesse perodo, foi institudo o Programa Ler e Escrever prioridade
na Escola Municipal, que objetivou desenvolver as competncias, tanto leitora como
escritora, dos estudantes. Para tanto, foram elaborados materiais formativos para os
professores e didticos para os estudantes, com base em consulta a um grupo referncia
com representantes de docentes, por componente curricular e com participao de
assessoria externa, evidenciando as aes concretas para se alcanar o trabalho em sala
de aula.
Por meio da Portaria no 4.507, de 30 de agosto de 2007, foi apresentado Rede
Municipal o Programa de Orientaes Curriculares: Expectativas de Aprendizagens e
Orientaes Didticas. Essa gesto buscou priorizar em seu programa e nos
documentos propostos um currculo que teve, como princpio, uma concepo
multidisciplinar. Esses documentos so de conhecimento dos profissionais de educao
que atuam, neste momento, na Rede Municipal de Educao e tm se constitudo como
referncia para o trabalho docente nos ltimos anos.
particularmente no que tange construo de um currculo baseado nas escolas, que teriam maior
autonomia, e na ampliao da participao popular nas decises educacionais (BORN, 2014). 7 A partir de 2001, foram apresentadas Rede Municipal duas aes que se tornaram as grandes marcas
desse governo: o Projeto Vida, cujo principal objetivo era contribuir para o cumprimento do ECA, e uma
srie de subprojetos com o intuito de atender s necessidades educacionais e sociais de alunos e seus
familiares, dentre os quais: Projeto Escola Aberta, Projeto Educom-rdio, Projeto Recreio nas Frias,
alm de programas sociais como Renda Mnima e Comear de Novo. Ainda nessa gesto, houve a criao
dos Centros Educacionais Unificados (CEUs), cuja concepo atendia a trs objetivos especficos: 1)
ofertar educao de qualidade que possibilitasse o desenvolvimento integral das crianas, dos
adolescentes, dos jovens e adultos; 2) ter uma gesto compartilhada com a comunidade local; 3) servir
como polo de inovao de experincias educacionais (SO PAULO, 2003).
16
1.1 Subsdios para reflexes
A partir dessa contextualizao, a proposta pensar quais concepes e
conceitos dialogam diretamente com a questo do currculo numa perspectiva
interdisciplinar e da no fragmentao do conhecimento.
O sistema de ensino pblico brasileiro tem passado por transformaes
positivas, em que o acesso ao Ensino Fundamental foi praticamente universalizado e
com as polticas sociais apoiando o ingresso de estudantes no Ensino Superior. No
entanto, nossa dvida histrica com a educao ainda est longe de ser superada. O
acesso escola, embora essencial, no suficiente para um propsito educacional
democrtico. Alm de frequentar uma boa escola, ter um fluxo regular, que oferea aos
estudantes condies de promoo etapa seguinte e sua concluso, esse percurso
necessita ser amparado por uma concepo de educao comprometida com sua
qualidade social.
A qualidade social da educao passa pela oferta de condies de acesso e
permanncia do educando como direito, considerada a decisiva importncia dos valores
de direitos humanos permearem a formao para a vida democrtica e a convivncia
social (BRASIL, 2012). No entanto, apresenta como pilar a construo de um espao
pblico que privilegie a superao de desigualdades, reconhea as diferenas, possibilite
o desenvolvimento do pensamento crtico, mas, principalmente, seja capaz de promover
uma educao comprometida com a transformao da realidade.
dentro desse contexto de mltiplas realidades que a Secretaria Municipal de
Educao (SME) apresenta, em conjunto com as Diretorias de Orientao Tcnico-
Pedaggica (DOT-P) das treze Diretorias Regionais de Educao (DREs), um debate
comunidade escolar, a fim de que pressupostos epistemolgicos, metodolgicos e
ideolgicos a respeito do fenmeno educativo possam ser discutidos, elaborados,
ressignificados e apresentados como possibilidades de ao, considerando a prtica
educativa.
A garantia de direitos se relaciona busca da qualidade social da educao:
Os direitos de aprendizagem so aliados dos direitos sociais (polticos, ticos,
culturais, religiosos, entre outros) na afirmao do significado da educao no mundo
contemporneo e do papel da escola na sociedade (CASALI apud SO PAULO, 2014,
p. 16).
17
Considerando que, nesta etapa de discusso, o objeto de estudo o Ciclo
Interdisciplinar, a reflexo sobre o currculo, interdisciplinaridade, avaliao e ao
docente se mostra fundamental para o incio dos estudos e debates. Tais estudos tm
como objetivo a construo participativa e reflexiva dos direitos de aprendizagem desse
ciclo, no bojo do Programa Mais Educao So Paulo.
O currculo, nesse caso, pensado como o conjunto das experincias que
partem de aprendizagem e s quais os educandos esto expostos. Entretanto, alm delas,
ele segue na direo de uma sntese enriquecedora como produo coletiva, que traz
instrumentos e senso crtico para o enfrentamento da vida cidad. Todo esse processo
curricular extrapola os contedos selecionados para o ensino e as determinaes
previstas nestas ou naquelas orientaes curriculares, mas no prescinde delas.
Reconhecendo que a educao e o currculo so sempre um campo em disputa,
pode-se afirmar que a atual forma da organizao de parte das escolas ainda est
prxima de uma concepo com objetivos contraditrios quanto estruturao de uma
educao democrtica e emancipadora.
No entanto, a histria mostra que a percepo crtica da realidade no a altera
pelo pensamento. O olhar crtico sobre a realidade injusta condio necessria, mas
no suficiente para sua transformao.
Desse modo, quanto mais se associam as demandas do mundo contemporneo
ao papel da educao pblica, bem como s prticas pedaggicas nela inseridas, mais
haver concordncia de que ela poder ser no apenas um organismo de socializao da
economia, conforme tem se caracterizado na ideologia neoliberal, como tambm de
socializao da cultura, da poltica e das prticas sociais democrticas.
Nesse cenrio, reconhece-se que o papel da formao docente apresenta-se
redesenhado. A docncia um exerccio complexo, com ambiguidades, dificuldades e
desafios de toda ordem. necessrio refletir sobre esses dilemas e atribuir-lhes novos
sentidos. Um desses sentidos pode ser ressignificar o compromisso poltico diante da
prpria prtica. Como intelectual, o professor detm uma funo social relevante, pois ,
principalmente, a partir de sua inteno que os saberes que constituem a herana
cultural podem ser construdos, potencializados e compartilhados. Sua formao inicial
acontece com base nos currculos das universidades, mas sua continuidade exigida
pelos desafios trazidos pelas prticas escolares. As cincias, as artes e as tecnologias
oferecem continuamente novos instrumentos de interpretao do conhecimento, novas
18
linguagens e culturas. A formao ao longo da vida a plataforma de sua
profissionalizao.
Nesse contexto, fundamental a realizao de um amplo debate, tanto do
ponto de vista epistemolgico, quanto ontolgico, que venha contribuir com a busca por
uma educao significativa, democrtica e cidad.
Essa busca por uma educao mais criativa, emancipatria e responsvel s se
materializa quando a temtica passa a ser prioridade na agenda das polticas pblicas e
quando a prtica pedaggica recebe visibilidade e compreendida como espao de
autoria.
assim que a perspectiva poltica presente na ao educativa permite captar
melhor as posies de alienao ou emancipao que permeiam a prtica pedaggica.
Por esse motivo, impossvel pensar o fenmeno educativo com neutralidade, porque,
nessas condies, desconsidera-se o contexto histrico, poltico, econmico, social e
cultural em que ele se desenvolve. Nesse caso, corre-se o risco de considerar a educao
e o trabalho docente a partir de uma concepo de adaptao, e no de interveno na
realidade.
O significado da educao resultado daquilo que se define como sua
finalidade. Desse modo, compreendendo a educao como emancipao, em hiptese
alguma, ela pode ser considerada como um processo natural. preciso entender a
educao como um projeto crtico, estratgico, de resistncia e de possibilidades.
provvel que esse caminho esteja amparado na responsabilidade compartilhada, no
fortalecimento de instituies coletivas, o que inclui polticas educacionais ancoradas no
compromisso com a produo do bem comum, assim como nas relaes com as demais
Secretarias Municipais de So Paulo, tendo em vista uma poltica pblica integrada a
servio do muncipe, cidado de direitos.
nessa perspectiva que esto pautados os dilogos com a rede municipal neste
processo, no sentido de afinar a pluralidade de concepes sobre currculo,
interdisciplinaridade, avaliao e ao docente, de modo a construir, potencializar e
compartilhar os direitos de aprendizagem como um princpio das decises do sistema de
ensino pblico, bem como das prticas do cotidiano da escola.
Por isso, alm do contexto histrico da rede, so propostas, a seguir,
consideraes e reflexes a respeito dos cinco eixos elencados como fundamentais
construo curricular do Ciclo Interdisciplinar: ciclos de aprendizagem; sujeitos da
infncia; currculo; interdisciplinaridade; avaliao.
19
2 CICLOS DE APRENDIZAGEM: ORGANIZAO DO ENSINO
FUNDAMENTAL
A vida s possvel reinventada.
Ceclia Meireles
A organizao do processo educativo em ciclos de aprendizagem coerente, e
no menos desafiadora, com a perspectiva da gesto democrtica, do currculo crtico e
emancipatrio, da avaliao formativa para a aprendizagem, da concepo
interdisciplinar de saberes e de conhecimentos, bem como com a considerao dos
educandos e educadores como sujeitos sociais e protagonistas dos processos de ensino-
aprendizagem e de ser e estar no mundo contemporneo.
Segundo a Nota Tcnica no 3 do programa Mais Educao So Paulo, (...) a
organizao em ciclos de aprendizagem permite a construo/apropriao do
conhecimento em perodos em que a singularidade dos estudantes seja respeitada em
seus ritmos e considere sua condio social, cognitiva e afetiva (SO PAULO, 2014,
p. 74).
Essa organizao, que visa romper com a lgica da seriao, marcada pela
adoo de um novo articulador para os tempos e espaos da escola, baseado no
desenvolvimento social, cognitivo e afetivo dos estudantes e em suas experincias. Isso
significa fazer da escola um lcus que permite aos estudantes serem cidados ativos e
protagonistas do processo de construo da vida escolar, com a manifestao de suas
identidades e possibilitando a interveno de forma consciente nos coletivos escolares e
tambm no quadro social em que atuam e atuaro.
Os ciclos de aprendizagem possibilitam outro paradigma das prticas
pedaggicas a partir da reflexo contnua sobre o estudante e sobre a identidade
docente. Faz-se necessrio refletir e rever o lugar e o papel do educador nos processos e
prticas pedaggicas, estabelecendo outras relaes com os estudantes, os demais
docentes, as famlias, a gesto escolar, mas tambm com as cincias, as artes, as
tecnologias e as culturas. Essas relaes so efetivamente profissionais, dialgicas e
horizontais, em que o educador no ensina para os estudantes, mas ensina e aprende
com eles.
As prticas pedaggicas so revistas e ressignificadas nos momentos
compartilhados de reflexo sobre as aes (JEIF, Reunio Pedaggica, Conselho de
Classe, Conselho de Escola) e na medida em que proposto o planejamento coletivo de
cada ciclo de aprendizagem, alm do planejamento dos componentes curriculares. Ao
20
realizar o planejamento para o ciclo, necessrio repensar o percurso do estudante em
tempos flexveis, levando em considerao os diversos ritmos de aprendizagens.
A organizao em ciclos exige um arranjo da estrutura escolar para que os
sujeitos envolvidos no processo educativo (educadores docentes e no docentes,
estudantes e famlias) integrem-se, de maneira a viabilizar a educao com qualidade
social que permite a construo das aprendizagens, a interdisciplinaridade e a
continuao do aprender pela vida afora. Tal organizao implica ao e
responsabilidades coletivas, assumidas pelos diferentes sujeitos que atuam no contexto
educativo, na perspectiva da Cidade Educadora, por meio de decises e aes da equipe
escolar, da comunidade, da sociedade e da gesto pblica, visando aos direitos de
aprendizagem e s reais condies de aprendizagem dos estudantes.
2.1 Docncia compartilhada e projetos
O Ciclo Interdisciplinar composto de professores polivalentes (Professor de
Educao Infantil e Ensino Fundamental I) e professores especialistas (Professor de
Ensino Fundamental II e Mdio), que trabalham na regncia das turmas, dos
componentes curriculares, com as possibilidades da docncia compartilhada.
A docncia compartilhada no Ciclo Interdisciplinar tem como objetivo o [...]
desenvolvimento de projetos, visando integrao dos saberes docentes e discentes, a
partir da reflexo, anlise, avaliao e busca de respostas cada vez mais adequadas s
necessidades de aprendizagem dos estudantes (SO PAULO, 2014, p. 79).
O exerccio da docncia compartilhada consiste em um permanente processo
de reinveno da identidade docente, sendo um desafio o seu exerccio, pois:
A ao de compartilhar traz tenses para ambos os docentes, pois a exposio mais
ntima e detalhada de suas crenas pedaggicas, o embate da proposta planejada para
o aluno e a concretizao da mesma, assumindo riscos, realizaes e fracassos no
coletivo da turma e com cada aluno, individualmente. Nesse contexto, cada um dos
professores passa a fazer a desconstruo do seu modo de ser docente para construir
outro (TRAVERSINI et al., 2012, p. 269).
Ao compartilhar a docncia, h o compartilhamento dos saberes, dos
conhecimentos e das prticas pedaggicas, trazendo perspectivas diversas sobre e com o
estudante, de maneira mais ampla e integral. Esse processo de compartilhamento de
decises imprescindvel nos tempos possveis: estudar em conjunto, exercitar a
investigao na diversidade de formas de conhecer/aprender, identificar os objetivos dos
conhecimentos abordados e o modo como tais conhecimentos podem ser/estar
relacionados com os contextos vividos pelos estudantes.
21
A reinveno tambm se d na reorganizao da escola, priorizando o trabalho
coletivo para planejamentos e avaliaes, no movimento de reflexo sobre a ao, assim
como a potencializao das documentaes pedaggicas e publicaes conjuntas sobre
as prticas escolares e projetos desenvolvidos.
Dessa maneira, a docncia compartilhada o espao de vivncias iniciais e de
aprofundamento da prtica interdisciplinar, por meio do desenvolvimento de projetos
que compem o Projeto Poltico-Pedaggico da Unidade Escolar, sob a mediao e
articulao do coordenador pedaggico, que exerce papel fundamental, pois possibilita
um olhar integrador das prticas pedaggicas e dos processos de ensino-aprendizagem.
O desenvolvimento de projetos potencializa a interdisciplinaridade, pois seu
processo permite uma articulao e integrao entre as diferentes reas de
conhecimento, para o aprofundamento das investigaes a serem realizadas a partir de
um problema. necessrio esclarecer que todo projeto tem uma intencionalidade e,
quando a inteno envolve a aprendizagem dos estudantes, imprescindvel a
participao colaborativa e protagonista deles. Todo o desenvolvimento do projeto deve
ser feito em conjunto com os estudantes, desde o levantamento das problemticas para
investigao, os objetivos, as estratgias, os resultados, as formas de avaliao e de
concluso do projeto, bem como as possveis mudanas de percursos, que devem ser
decididas conjuntamente com todos os envolvidos.
A observao sensvel e sistemtica dos educadores um mecanismo possvel
para identificar as potencialidades de aprendizagem dos estudantes. A partir dessa
observao, as intervenes docentes podem dar significado ao aprendizado dos
estudantes, tanto no sentido de buscar formas de superao das dificuldades, como
tambm, e muito importante, no intuito de mobilizar potencialidades e promover
avanos naquilo que os estudantes fazem de melhor no contexto escolar. A participao
colaborativa e o protagonismo se do a partir da funo articuladora dos educadores
diante das situaes de aprendizagem e das interaes dos estudantes com tais situaes.
A partir do olhar apurado e sensvel, o trabalho dos docentes deve se
desenvolver para redimensionar suas perspectivas diante da realidade e avanos
cognitivos dos estudantes. Quando o exerccio do planejamento, da troca, das reflexes
metacognitivas, das publicizaes dos trabalhos se do em conjunto, partilhando
perspectivas, ampliam-se as possibilidades de desenvolvimento de uma intencionalidade
educativa interdisciplinar.
22
O desenvolvimento de projetos integrados e a docncia compartilhada no
podem ser entendidos como uma metodologia a ser aplicada com um conjunto de regras
e procedimentos, mas sim como possibilidades a serem construdas a partir das
experincias de cada comunidade escolar.
Alm disso, um aspecto necessrio nesse processo considerar os sujeitos de
direitos que so as crianas, historicamente situadas em um contexto especfico e
inseridas em uma pluralidade de culturas. Nesse sentido, h a necessidade de dedicar
um tempo de nossas prticas e reflexes acerca das infncias e dessas crianas a quem
se destina o processo educativo no Ciclo Interdisciplinar.
23
3 SUJEITOS DA INFNCIA
Meninos brincando, 1958, de Portinari.
O que infncia? mais adequado identific-la como infncia ou infncias?
Quem a criana atendida pelo Ciclo Interdisciplinar? Quais seus interesses, direitos e
necessidades? Quais os cuidados necessrios ao educar uma criana no Ciclo
Interdisciplinar, pensando na indissociabilidade entre cuidar e educar:
Cuidar exige colocar-se em escuta s necessidades, aos desejos e inquietaes, supe
encorajar e conter aes no coletivo, solicita apoiar a criana em seus devaneios e
desafios, requer interpretao do sentido singular de suas conquistas no grupo, implica
tambm aceitar a lgica das crianas em suas opes e tentativas de explorar
movimentos no mundo. (BARBOSA, 2009, p.68-69)
Conceituar o perodo de vida chamado infncia no uma tarefa fcil, e s
pode ser feito com a conscincia de que ela uma categoria social e temporalmente
construda. Do latim, infans significa incapacidade de falar e, por conseguinte, um
perodo de vida em que a voz no lhe tem sido atribuda socialmente.
Por centenas de sculos, a criana no foi vista como sujeito, com
caractersticas prprias, mas sim como um adulto em miniatura. A infncia limitava-
se ao perodo mais frgil da criana, que, mal adquiria algum desembarao fsico, era
logo vista misturada aos adultos, partilhando de seus trabalhos e jogos. Naquela
perspectiva, ela era diferente do adulto apenas no tamanho e na fora. As outras
caractersticas permaneciam iguais (ARIS, 1981).8 No entanto, cabe ressaltar que as
diferentes culturas e lugares do mundo concebiam e concebem a infncia de modos
distintos.
8 H que se considerar que os estudos de Aris sobre a infncia esto centrados na Europa, entre a Idade
Mdia e o surgimento da sociedade burguesa (GLIS, 1991).
24
O infanticdio foi tolerado em muitas culturas, o trabalho infantil era explorado
e mltiplas formas de violncias eram estimuladas na famlia, nas prticas religiosas e
escolares.9
Em muitos setores do mundo ocidental, atores envolvidos em diversas reas do
saber se comprometeram a buscar proposies definidoras do ser criana e da infncia.
Esses diversos sujeitos sociais e produtores de conhecimento elaboraram discursos
diferentes, mas que se confluram e influenciaram no modo de a sociedade organizar
sua relao com a criana, legitimando aes, muitas vezes, autoritrias e violentas.
Entre as diversas representaes que foram se constituindo sobre a infncia,
algumas delas eram: criana-anjo inocente no discurso religioso; possuidores de uma
natureza viciosa ou vicivel no discurso jurdico; ser em formao no discurso
mdico e pedaggico. Foram vrias as formas encontradas para explicar a infncia. O
ser criana que se instaurou no imaginrio social parece ser uma sntese de todas essas
definies, quando comeam a surgir novas concepes sobre a infncia.10
Entendeu-se por dcadas na histria do Brasil que a criana deveria ser
moldada para ser o homem do futuro que se imaginava a partir do modelo europeu.
Investia-se, ento, na criana, reconhecida como a base da estrutura social. Pela sua
plasticidade e possibilidade de aperfeioamento fsico e moral, a infncia
representava a maneira mais eficaz de assegurar o encaminhamento do pas rumo ao
progresso e modernidade, e, enfim, tomar sua parte no conjunto das naes
civilizadas.11
A infncia tornou-se, a partir do incio do sculo XX, objeto de estudos
cientficos, com a finalidade de entender tambm os sujeitos sociais por meio da
criana, descrevendo seu comportamento e mensurando sua mente. Estudos herdeiros
do Iluminismo entendiam-na como o estgio da vida no qual o homem encontra-se mais
prximo da natureza e perfeio. Nesse estgio, sua alma ainda no teria sido
9 O quadro comeou a mudar com a interferncia da Igreja contra o abandono e o infanticdio, com a
crena de que seria pecado livrar-se da criana como ser humano dotado de alma (MARCLIO, 1998). 10
Sarmento (2007, p. 30) denomina as imagens descritas acima como imagens da criana pr-sociolgica: a criana m, a criana inocente, a criana imanente, a criana naturalmente desenvolvida, a criana inconsciente. Imagens que coexistem e sobrepem-se, por vezes de forma tensa, outras vezes de modo sincrtico no imaginrio do mundo adulto moldando prticas cotidianas. Imagens abstratas e descontextualizadas, como se pudssemos tratar da essencialidade da infncia, produzindo assim efeito de
invisibilizao de muitas infncias. 11
Pode-se notar no exemplo acima citado, o que para Sarmento (2007, p. 29) constitui-se como
princpios de reduo da complexidade, de abstracizao das realidades e de interpretao para fins normativos da criana ideal.
25
corrompida pela perverso adulta.12
O surgimento da escola enquanto instituio
educativa de massa se deu nesse contexto do aparecimento histrico das repblicas. A
criana, por muito tempo, foi considerada como ser em devir. Pensar nela a partir da
flexibilidade e do aprendizado a colocou no centro das atenes e convertida em objeto
de interveno. Nesse sentido, a partir do desenvolvimento da chamada pedagogia
cientfica, foi atribuda educao e escola, a responsabilidade de aperfeioar as
crianas, em funo de uma ideia de progresso moral e material da nao.
Embora Comenius (1592-1670), j no sculo XVII, defendesse a diversidade
de formas de saber e o direito de aprender de todas as crianas, estudos mais recentes
avanaram muito na direo do conhecimento da diversidade e das caractersticas das
infncias. Ela, a infncia, no singular, nem nica. Considerada como categoria
geracional das mais recentes, a infncia foi, somente entre os dois ltimos sculos,
reconhecida como um perodo da vida diferenciado da vida adulta e as crianas
reconhecidas como sujeitos de direitos, respeito e, enfim, cidados.
Nos ltimos anos, temos concebido as crianas como seres humanos concretos, um
corpo presente no aqui e agora em interao com outros, portanto, com direitos civis. As
infncias, temos pensado como a forma especfica de conceber, produzir e legitimar as
experincias das crianas. Assim, falamos em infncias no plural, pois elas so vividas
de modo muito diverso. Ser criana no implica em ter que vivenciar um nico tipo de
infncia. As crianas, por serem crianas, no esto condicionadas as mesmas
experincias (BRASIL, 2009, p. 22).
Por muito tempo, a ateno dada a elas nos estudos das reas de conhecimento
das cincias humanas estava sempre pautada em sua relao com a famlia ou, como
alunos, nas categorias de estudo mais centradas nas questes da famlia, da escola, do
abandono e da educao, ou seja, sempre com a predominncia do adulto, e no da
criana. Nessa perspectiva, a infncia ainda era vista, e muitas vezes ainda tratada
exclusivamente, como estgio preparatrio para o ingresso no mundo adulto.
Ocultavam-se as crianas, negando-lhes seu ser no momento presente, preocupados
exclusivamente com seu vir a ser e com a perspectiva de transformar-se em. Desse
modo, a infncia era concebida como tempo de passagem.
A emergncia da chamada sociologia da infncia e o desenvolvimento de
estudos antropolgicos mais recentes sobre ela definiram novos paradigmas para os
12
Ideologia marcada pelas leituras rpidas do pensamento de Rousseau (GHIRARDELLI, 1997).
26
estudos: o reconhecimento da infncia como categoria estrutural em relao s
perspectivas geracionais.13
A partir desse novo olhar, deslocou-se a compreenso da infncia como projeto
de adulto e estgio preparatrio para a vida para a perspectiva de criana no presente,
como sujeito de mudanas scio-histricas, como categoria na estrutura social. Nesse
sentido, a perspectiva a-histrica, universal e natural de infncia est posta
definitivamente em xeque.
Em sua origem histrica, a escola pblica separava as crianas dos espaos de
convvio coletivos e as institucionalizava a servio da formao de um cidado do
futuro. Para tanto, pautava-se pela disciplinarizao das crianas, sob um regime
paternalista, que no considerava os direitos da infncia e as culturas infantis.
A compreenso de uma Pedagogia da Infncia, que contempla as meninas e os
meninos como construtores de culturas infantis em suas aes ldicas, repletas de
prazeres e de sentidos quando brincam ou jogam, entra em contradio com a
necessidade escolar da construo de produtos, como a lio.
Para respeitar os princpios da infncia numa perspectiva interdisciplinar, faz-
se necessrio um planejar competente e metodologicamente fundado sobre os espaos,
as condies e os materiais pedaggicos que sero ofertados para as vivncias dessas
infncias. Como superar a crena da perda do tempo destinado a aes que no visam
construo necessria de um produto material?
Todos os segmentos da escola devem ser convidados a repensarem suas
crenas e convices a respeito da infncia na escola. No entanto, apenas as alteraes
das crenas sobre as crianas no mudam a realidade. A criao de metodologias e
instrumentos que viabilizem o acompanhamento pedaggico, a observao sistemtica,
o registro preciso, o acompanhamento do percurso educacional de tais crianas como
sujeitos e como grupos sociais o resultado poltico-pedaggico dessa nova viso sobre
as crianas.
Alm disso, houve grandes conquistas no campo da legislao, mas nossas
crianas, infelizmente, ainda so vtimas de abusos e maus tratos. Dentro e fora das
escolas, a cultura de naturalizao das violncias e a violao a direitos vm degradando
as condies de socializao. A escola necessita estar atenta e fomentar aes que
13
A infncia , simultaneamente, uma categoria social de sujeitos activos, que interpretam e agem no
mundo. Nessa aco estruturam e estabelecem padres culturais. As culturas infantis constituem, com
efeito, o mais importante aspecto na diferenciao da infncia (SARMENTO, 2007).
27
dirimam a violncia e agresso contra crianas e adolescentes. Tarefa, alis, de toda a
sociedade.
3.1 As infncias presentes e o Ciclo Interdisciplinar
Segundo o ECA, considera-se criana pessoa at 12 anos de idade
incompletos, incluindo, portanto, as crianas da Educao Infantil, do Ciclo de
Alfabetizao e do Ciclo Interdisciplinar. A diviso do Ensino Fundamental em ciclos
de aprendizagem leva a uma primeira caracterizao dos estudantes do Ciclo
Interdisciplinar: do ponto de vista da idade cronolgica, so crianas de 8 anos
completos a 11 anos completos, em sua maioria, e, do ponto de vista do processo de
escolarizao, so estudantes a quem foram garantidos os direitos de aprendizagem
previstos para o Ciclo de Alfabetizao.
impossvel traar uma definio homognea da criana do Ciclo
Interdisciplinar, sem o risco de uma conceituao abstrata e empobrecedora, ainda que,
da perspectiva biolgica, ocorram transformaes que possam caracterizar a infncia na
especificidade da faixa etria e ainda que, com base na psicologia do desenvolvimento,
sejam apontadas determinadas caractersticas dos sujeitos e de seus processos de
aprendizagem.
A caracterizao faz sentido quando pensada do ponto de vista sociocultural e
inserida em determinados grupos em relao a gnero, etnia, territrio, condio
socioeconmica e interesses dos grupos.
As crianas tm sido vistas pelos adultos, especialmente os que so
responsveis por sua educao e tambm pelos formuladores das polticas pblicas a
partir do que lhes falta, do que precisa ser provido pelo adulto, ou a partir do que ela
apresenta de indesejvel, segundo o olhar e a perspectiva do adulto, sendo, portanto,
supostamente merecedora de limites a serem estabelecidos pelas instituies sociais.
Nos dois casos, o processo educativo gera formas de controle dos adultos sobre a
criana.
Reconhecer as potencialidades biolgicas, psicolgicas e socioculturais em
desenvolvimento nos estudantes, compreendendo-os como sujeitos sociais e admitindo
a diversidade da infncia e das culturas infantis, so premissas fundamentais ao trabalho
dos educadores em relao s crianas do Ciclo Interdisciplinar. Ao estimular na escola
o protagonismo do educando, promove-se, em toda a comunidade educativa e no
prprio estudante, o reconhecimento de suas singularidades, das potencialidades, da
28
solidariedade, da responsabilidade com o bem comum e da construo do senso crtico
autnomo.
As prticas pedaggicas devem compreender a diversidade e as diferenas
entre os sujeitos, sua singularidade, como forma de reinveno do espao escolar.
Questionar o etnocentrismo, os processos de colonizao e as relaes de poder e
dominao existentes na sociedade e nas instituies educacionais, bem como favorecer
relaes participativas e coerentes entre o ambiente escolar e os sujeitos sociais que nela
convivem, refletem opes que buscam desconstruir e desnaturalizar as desigualdades.
O mundo que habitamos formado por uma imensa diversidade. A diversidade se
manifesta tanto nas caractersticas fsicas, psquicas, sociais, culturais e biolgicas dos
seres humanos quanto na natureza, nos instrumentos e artefatos e nas organizaes
sociais. Nessa perspectiva, a diversidade traz em si uma imensa riqueza para os seres
humanos, para a cultura e para a natureza. Porm, como vivemos em uma sociedade
hierarquizada e excludente, muitas vezes as diversidades acarretam desigualdades e
engendram modos de excluso e de segregao. Ou seja, a diversidade muitas vezes
torna-se o ponto de partida das desigualdades (BRASIL, 2009, p. 59-60).
Ao considerar a organizao desse ciclo e as concepes em torno da
aprendizagem, importante reconhecer as crianas como sujeitos que vivem no mundo
em sua plenitude afetiva, cognitiva e social, mesmo se constituindo em seres
provisrios, como todos os sujeitos que pensam e que criam culturas.
por essa razo que o Ensino Fundamental de nove anos necessita de outra
configurao da cultura escolar, no sentido de rever sua organizao e as formas de
interao, assim como fortalecer as aes que valorizam as crianas.
Um dos aspectos relativos organizao interna, que reflete certas concepes
do processo educativo, diz respeito garantia de um espao fsico constitudo de
elementos acolhedores do trabalho coletivo, da imaginao e de ludicidade. Espao
fsico entendido como toda a escola, e no apenas a sala de aula.
Outro aspecto relevante para progredir em direo a uma educao com a
criana pensar, planejar e viver a educao como foro de cultura.
Cultura
Em contraposio a noo hierarquizante e universal, compreende-se cultura pelo vis do multiculturalismo. Isto , a partir da pluralidade de manifestaes e valores, de significados e sistemas simblicos, de subjetividade nas interpretaes e do conhecimento como fato poltico. Nesse mbito, emergem embates sobre as diferenas e entre os diferentes, gerando novos conhecimentos que se orientam no sentido de desconstruir o que est
29
enraizado por conta do preconceito, da discriminao e do desrespeito aos direitos conquistados.
Nesse sentido, ao tratar a educao como foro de cultura e a pedagogia como lcus da prtica de partilha, de negociao e de recriao de significados, emerge um(a) professor(a) que, nas palavras de Bruner, um acontecimento humano, e no mero dispositivo de transmisso (GOBBI; PINAZZA, 2014, p. 32).
imprescindvel olhar para as crianas respeitando e fomentando suas
manifestaes culturais e potencialidades, enquanto criadoras de cultura, com direitos
de serem falantes/ouvintes, leitoras/escritoras, autnomas e autorais (BRASIL, 2012,
p. 19). Dessa maneira, outros elementos devem ser considerados para melhor
compreendermos esse estudante no contexto escolar da Rede Municipal de Ensino.
necessrio pensar nas contribuies das diferentes reas de pesquisa e
conhecimento como a psicologia, a sociologia, a neurocincia, a histria, a geografia,
a antropologia, entre outras, que vm estudando, nas ltimas dcadas, o perodo de vida
e as caractersticas das infncias situadas na contemporaneidade. Os diferentes olhares
convergem para admitir que as mudanas histricas, sociais, polticas, econmicas e
culturais tm impacto no modo de pensar sobre a infncia, assim como no modo de as
crianas viverem experincias diversas nessa fase. de fundamental importncia que,
nos momentos de estudo e encontros entre professores, profissionais do quadro de apoio
e gestores, se aproximem essas diferentes reas a fim de refletir, formar e informar
acerca dos temas abrangentes dessa fase.14
Nesse sentido, podem ser identificadas representaes sociais sobre a infncia
e sobre o papel da escola em suas vidas, que levam necessidade de problematizao do
olhar dos adultos, especialmente dos educadores, sobre a(s) infncia(s), na busca de
desvelar as concepes que permeiam as prticas educativas, assim como das escolhas
sobre que educao tem sido defendida e que tipo de sujeitos a escola forma.
14
Do ponto de vista da psicologia histrico-cultural: [...] a questo que se nos apresenta a de trabalhar na construo de teorias que partam da necessidade de compreender a organizao das etapas da vida
humana como fenmeno histrico. Pode ser que terminemos mais uma vez falando em bebs, crianas,
adolescentes, adultos e idosos. Mas ser importante dar substncia a esses ciclos da vida, atrelando-os aos
modos concretos de insero dos sujeitos no seu mundo social, em situaes histrico-culturais
especficas, nas quais limites maturacionais universais interajam com a heterogeneidade cultural, gerando
uma espcie de cultura das idades (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 2002).
30
3.2 As infncias presentes no currculo do Ciclo Interdisciplinar
Busca-se neste documento estudar formas de superar a ciso entre a Educao
Infantil e o Ensino Fundamental, atuando na construo de um currculo integrador para
a infncia. Nesse processo, ainda que existam especificidades em cada um dos ciclos de
aprendizagem do Ensino Fundamental, h uma riqueza de possibilidades de construo
de conhecimento pela criana que deve ser considerada, a saber: a imaginao, a
criatividade, o movimento, a livre expresso, as diversas situaes de interao entre os
pares, a explorao do mundo ao seu redor e as mltiplas linguagens presentes nesse
universo.
Um grande equvoco, nesse sentido, a lgica que leva o processo de
escolarizao no Ensino Fundamental a banir da escola e da sala de aula o brincar,
elemento importante e constituinte da infncia e de seu processo de construo de
conhecimento.
O brincar um direito e fundamental ao desenvolvimento integral das
crianas. No obstante, fazem-se necessrias as condies institucionais para que o
currculo contemple espaos educativos para alm da sala de aula, com condies ao
convvio de crianas, jovens e adultos no mesmo espao escolar. Por essa razo,
importante incentivar a criatividade e a autonomia, que, por vezes, no so priorizadas
nos diferentes ciclos do Ensino Fundamental. Isso demanda uma superao da
fragmentao entre os diferentes ciclos da Educao Bsica, desde a Educao Infantil:
[...] existe uma fragmentao na concepo dos tempos de infncia, ou seja, h uma
ciso da infncia pautada exclusivamente na perspectiva cronolgica, como se a criana
deixasse de o ser a partir do momento que deixasse a Educao Infantil e fosse para o
Ensino Fundamental. (SO PAULO, 2014, p. 43)
Assim, devem-se considerar atribuies docentes validando aes de
planejamento de tempo, espao e materiais voltados para o ldico, o faz de conta e as
brincadeiras na escola, sem que o professor sinta-se cobrado, como se tal escolha
pudesse ser entendida a partir de ideias como perder tempo com coisa que no sria.
Deve-se entender que o brincar livremente mobilizador de aprendizagens. Esse direito
ao brincar precisa ser problematizado, pois:
[...] existe um distanciamento entre aquilo que enunciado nos PPPs e o que praticado
no cotidiano das Unidades Educacionais. [...] O espao fsico/ambiente, por exemplo,
nem sempre condizente com a concepo de educao que coloca o brincar como
central ao processo de aprendizagem. O espao/ambiente das Unidades Educacionais
no tem permitido, muitas vezes, que se possa aprender brincando ou brincar
aprendendo... (SO PAULO, 2014, p. 41-42).
31
Assim como potencializar as relaes das crianas entre seus pares, importante
analisar as interaes intergeracionais. Nessas relaes tm havido, cada vez mais,
expresses de resistncia das crianas a processos de institucionalizao, sempre que as
relaes de poder so verticalizadas e assimtricas. Essas expresses de resistncia
podem aparecer nas formas do que costumam ser caracterizadas, pelos adultos, como
indisciplina, dificuldades de aprendizagem ou, ainda, apatia e desinteresse por parte das
crianas.
A chamada indisciplina precisa ser compreendida em suas causas, e no como
um problema relacionado qualidade ou competncia do indivduo. Ela pode ser um
indcio de que as relaes de poder precisam ser revistas e demandam reflexes por
parte do coletivo escolar para serem trabalhadas em sua complexidade, em busca de
relaes democrticas e abalizadas pelo valor do respeito, para a autonomia e
conscincia crtica nas relaes de aprendizagem.
Ao mesmo tempo em que as crianas do Ciclo Interdisciplinar esto inseridas
em uma sociedade letrada e escolarizada, e entendendo o acesso a essa sociedade como
um direito, sabido que a conquista da alfabetizao no condio suficiente para o
exerccio pleno da cidadania. A vivncia da cidadania tem seu espao na escola e num
currculo cidado, e a ampliao das vivncias cidads acontece na participao em
outras dimenses da cultura, da poltica e da economia do pas.
As crianas, muitas vezes desrespeitadas como sujeitos de direitos, so parte de
uma sociedade de consumo, que exerce o poder por meio de grandes corporaes
interessadas em imprimir uma cultura hegemnica infncia, sujeita disseminao de
valores e de esteretipos que atendem a determinados interesses, os quais levam
excluso social e violncia simblica produzida no interior das instituies.
Muitos dos estudos contemporneos tm como finalidade a definio e a
compreenso da criana como consumidor ou como mero competidor. A propaganda
muito bem elaborada e veiculada pelos meios de comunicao de massa tem um poder
que deve ser considerado e confrontado pela escola. As crianas so seduzidas pela
televiso numa relao de apatia e passividade que as sujeita valorizao do poder do
dinheiro para o consumo da felicidade a partir da aquisio dos produtos que l
aparecem. Faz-se necessrio refletir se esses meios de comunicao de massa
contribuem para o encurtamento do tempo da infncia e como a escola deve alargar esse
tempo, que nico e to necessrio criana.
32
Na escola, para que haja uma relao profcua entre todos os atores no processo
de construo de conhecimentos, a criana precisa se sentir pertencente. Essas crianas
so cidados de direitos no tempo em que o vivenciam, a cada dia em que esto na
escola. esse tempo presente e singular que tem de ser transformado e envolto de
significado.
Percebe-se, portanto, que um novo olhar para a infncia supe uma articulao
curricular entre espao fsico, tempo, recursos materiais e humanos numa viso
humanizadora e emancipatria.
3.3 Ciclo Interdisciplinar: infncias e territrios
... Eu caminhava e memorizei a vizinhana. Fiz um mapa mental e me localizava nele.
noite, na cama, eu ensaiava o esquema do meu pequeno mundo e criava desafios: achar a loja
usando apenas os quintais das casas. Imaginar uma rota da escola at a casa do meu amigo.
[] Caminhar foi o meu projeto antes de ler. O texto que eu lia era a cidade; o livro que eu escrevi era um mapa.
(DILLARD, 1987, p. 42-44 apud CHRISTENSEN, 2010)
O desafio de caracterizar os sujeitos do Ciclo Interdisciplinar exige pensar a
palavra infncia no seu plural, tanto no sentido de considerar como sujeitos todos os
envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, como no intuito de considerar a
diversidade da infncia na cidade de So Paulo, em sua histria.
So crianas pertencentes a diferentes configuraes familiares, de diferentes
classes sociais, gneros e etnias, com deficincias e com potencialidades, que criam
entre pares culturas locais, as quais precisam ser consideradas em sua integralidade e em
suas singularidades.15
Construir um currculo para a infncia na perspectiva do Ciclo Interdisciplinar
e em uma metrpole com a dimenso e o conjunto de diferenciaes como os
encontrados na cidade de So Paulo prope, escola pblica municipal e ao conjunto de
educadores que nela atuam, o exerccio de promover a leitura de mundo das infncias
que acolhe, no sentido de investigar suas condies concretas de existncia, bem como
as prticas sociais presentes em seu cotidiano.
Quem so essas crianas? De onde vm?
O que conhecem da realidade onde esto?
Quais so suas formas de ser e estar em sua moradia, na escola, no bairro, na cidade?
Com quem se relacionam em seu cotidiano?
15
Em janeiro de 2015, a Rede Municipal de Ensino de So Paulo tinha 3.200 estudantes bolivianos, 393
haitianos e um total de 4.323 crianas de pais estrangeiros, refugiados ou migrantes.
33
Costumam brincar? De que formas? Com quem?
Elas trabalham? Cuidam de irmos e outros parentes? Que responsabilidades assumem?
Assistem televiso? Quais programas demonstram ter maior interesse?
Quais mdias esto presentes na vida do estudante?
Jogam vdeo game? Com que tipos de games se identificam?
Usam celular? De que formas e durante quanto tempo fazem uso dessas mdias?
Como sua moradia? Como so suas refeies e com que frequncia se alimentam?
Como elas se constituem como meninas e meninos?
Frequentaram instituies de Educao Infantil?
Que conhecimentos/noes constituram nesse percurso/processo?
Essa investigao, que processo contnuo de todo educador e tarefa da rede,
possibilita a identificao de quem so esses sujeitos, o que pensam essas diversas
crianas, quais os interesses que as movem, como se relacionam com o conhecimento
em suas diferentes dimenses, que tipo de vnculos existe entre os pares, quais os meios
de criao e de expresso, quais seus valores, quais os modos de expresso cognitiva,
afetiva e corporal, qual o grau de autonomia presente no grupo, o que esperam aprender,
como acontecem na vida dessas crianas as experincias ticas, estticas e polticas
informaes preciosas para um trabalho pedaggico no processo de ensino-
aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar.
O conhecimento e a cultura que as crianas trazem no podem ser considerados
de ordem inferior ao conhecimento cientfico do qual so portadores os professores, os
adultos que compem a escola ou que elaboram e estruturam o currculo. Ao contrrio,
trata-se de um conhecimento autoral situado em determinada realidade, em ambientes
especficos e ricos em potencial de curiosidade epistemolgica , que precisa ser
reconhecido e explorado no processo, para que no se incorra no risco de sufocar, negar
ou tornar esse conhecimento invisvel no ambiente escolar. Trata-se de saberes
diferentes, e no inferiores. O professor, no processo de construo dos conhecimentos
no contexto escolar, deve atuar garantindo o protagonismo do educando, sem perder a
sua funo como coordenador da ao educativa, que se faz entre ele, a realidade, os
estudantes e o conhecimento, em todas as suas fontes de investigao, na lgica de uma
educao que construa uma Cidade Educadora.
Alm do papel da educao na transformao da sociedade, preciso
considerar o conhecimento como uma relao no hierarquizada entre cincia e arte; e
34
estas no apenas como patrimnio cultural acumulado a que todos tm direito ao acesso,
mas tambm como processo permanente de construo de conhecimentos.16
A garantia de direitos de aprendizagem aos sujeitos da infncia do Ciclo
Interdisciplinar na escola pblica municipal passa pelo reconhecimento da potncia
existente nas crianas, pelo reconhecimento do professor como intelectual reflexivo,
pelo olhar de profissional sensvel e pela escuta sistemtica, rigorosa e atenta de todos
os educadores que compem a instituio escolar. Os direitos de aprendizagem so
garantidos tambm pela promoo da autoria e do protagonismo infantil presentes nas
interaes entre adultos e crianas, entre professores e estudantes, entre todos os
profissionais da educao e entre escola e famlia.
Rigorosidade
A rigorosidade metdica, conforme a Pedagogia da autonomia, implica criar condies que possibilitem o educando a aprender criticamente.
A possibilidade de conexo do que se conhece da realidade imediata com o
conhecimento produzido na escola e pela humanidade existe medida que o estudante
se percebe como sujeito autnomo e portador de saberes. O desafio cotidiano das aes
pedaggicas desenvolvidas nas Unidades Educacionais est na busca da materializao
do encaminhamento didtico-educacional desses aspectos em seu Projeto Poltico-
Pedaggico, garantindo uma educao pblica com qualidade social.
A construo e consolidao de um currculo supe a compreenso conceitual,
as reflexes coletivas e individuais, bem como a conscincia da necessidade de,
permanentemente, problematizar nos espaos de formao os elementos do currculo em
busca de construir coletivamente as condies para um currculo autntico, que
considere os princpios ticos, polticos e estticos, traduzidos nos direitos de
aprendizagem dos sujeitos do Ciclo Interdisciplinar.
16
Quando procuramos pensar as crianas e suas manifestaes expressivas e artsticas na interseco arte-
cincia, o fsico e crtico de arte Mrio Schenberg (1987) nos oferece pistas bastante promissoras.
Observa que o conhecimento cientfico deve ser proporcionado pelo desimpedimento da imaginao
artstica e/ou pela fantasia [] O pensar criativo rompe fronteiras. Para Schenberg (1987), a imaginao fantstica pode tornar-se guia para a ao, sendo to ou mais eficaz que o simples raciocnio lgico
(GOBBI; PINAZZA, 2014, p. 35).
35
4 CURRCULO: APROXIMAES CONCEITUAIS
A palavra currculo est to presente no cotidiano escolar e nas
representaes que se constroem sobre a escola que foi naturalizada e considerada
como algo dado, imutvel e estvel. Referir-se ao currculo como algo pronto e
imutvel, na maior parte das vezes, referir-se equivocadamente a um rol de
conhecimentos selecionados que deve ser ensinado em um dado recorte temporal,
direcionado a determinado pblico (ano/ciclo) e inserido numa dada rea do
conhecimento (currculo de matemtica, currculo de lngua portuguesa, currculo de
cincias da natureza etc.).
preciso atentar para o fato de se tratar de um conceito, construdo social e
historicamente, e que abarca em seu interior uma multiplicidade de interpretaes,
concepes e relaes que no podem ser ocultadas ou naturalizadas.
A origem semntica desse conceito encontra-se na palavra latina curriculum,
que significa, em traduo livre, caminho, percurso e, em educao, assume o sentido
de constituir o percurso ou a carreira docente. Originalmente, esse termo comea a ser
utilizado para designar o plano de estudos proposto pela escola aos professores e
estudantes.17
Partindo, pois, da premissa de que se trata de um conceito e de que este se
constri histrica e socialmente, cumpre observar que no seria possvel traar uma
definio de currculo como a mais acertada ou ideal. Cada concepo carrega consigo
um projeto de escolarizao, uma viso de formao dos sujeitos envolvidos no
processo, influenciada pelas teorias e pelos modelos de nao ou polticos que se fazem
hegemnicos em um dado contexto.
A produo e a experincia de um currculo como percurso no podem ser
dissociadas de um aspecto que parece central, qual seja o da reproduo e produo do
conhecimento. Autores de diferentes correntes tericas convergem para o
conhecimento, em suas diferentes acepes, como o centro nevrlgico do currculo.
A construo social do conhecimento pressupe organizao e/ou
sistematizao dos meios para que essa construo se efetive. O currculo o mtodo
cientfico de construo coletiva do conhecimento escolar, bem como a articulao de
17
De tudo aquilo que sabemos e que, em tese, pode ser ensinado ou aprendido, o currculo a ensinar uma seleo organizada dos contedos a aprender, os quais, por sua vez, regularo a prtica didtica que
se desenvolve durante a escolaridade (SACRISTN, 2013, p. 17).
36
sua transmisso, apreenso e produo, que inclui as relaes entre os sujeitos
participantes e a definio de um suporte terico que o sustente (RIBEIRO, 1993).
No ambiente escolar, o conhecimento estaria organizado em contedos de
ensino, o que nos direciona para mais um conceito que pode estar carregado de
polissemia.18
O conceito de contedo de ensino no tem significado esttico nem
universal, sendo uma construo social. Assim, os contedos expressam funes e
valores que a escola difunde em seu contexto concreto. Essa perspectiva direciona a
abordagem do contedo a outra leitura, analisando as determinaes que recaem sobre a
escola, visto que o ensino no opera no vazio. 19
A observao do espao escolar permite identificar, alm da ideia de rol de
contedos, outros elementos de aprendizagem que revelam diferentes concepes do
currculo: dado comportamento que o educando deve ter no espao escolar, a
valorizao de determinados contedos em detrimento de outros, a postura dos
professores, a relao perante a avaliao, entre tantas outras camadas. As avaliaes, a
distribuio das carteiras na sala, a arquitetura, o mobilirio, o acesso s tecnologias so
um dos sem nmero de componentes curriculares, frequentemente omissos por haver a
reduo do currculo aos contedos, como se eles no tivessem formas.
A partir dessa observao, possvel identificar um conceito de currculo,
sempre considerado como histrica e socialmente situado, que abrange outros aspectos,
bem como nos ajudam a refletir sobre qual currculo queremos construir. No espao
escolar, o currculo se associa ao conjunto de esforos pedaggicos desenvolvidos com
intenes educativas.20
Currculo pode ser definido como um projeto seletivo de cultura, cultural,
social, poltica e administrativamente condicionado, que preenche a atividade escolar e
que se torna realidade dentro das condies da escola tal como se acha configurada
(SACRISTN, 2000, p. 34). Seria, portanto, o que as escolas desenvolveriam para os
18
Ver Sacristn (1998, p. 150). 19
O termo contedos nos apresentado carregado de uma significao antes intelectualista e culturalista,
prpria da tradio dominante das instituies escolares nas quais foi forjado e utilizado. Ao mencion-lo,
pensamos em elementos de disciplinas, matrias, informaes diversas e coisas assim. Por contedo se
entenderam os resumos de cultura acadmica que compunham os programas escolares parcelados em
matrias e disciplinas diversas. , por outro lado, um conceito que reflete a perspectiva dos que decidem
o que ensinar e dos que ensinam, por isso, quando fizemos aluso aos contedos, costumamos nos referir
ao que se pretende transmitir ou que os outros assimilem, o que na realidade muito diferente dos
contedos reais implcitos nos resultados que o/a aluno/a obtm (SACRISTN, 1998, p. 150). 20
Ver Moreira; Candau (2008, p. 18).
37
estudantes e com eles, por meio do Projeto Poltico-Pedaggico, que contm aspectos
culturais e educacionais, entendidos ou considerados mais adequados.21
possvel identificar trs conjuntos de condicionantes na estrutura desse
currculo: a seleo cultural, as condies institucionais e os fatores de cunho filosfico-
terico, ou seja, as concepes curriculares, conforme apresentado na Figura 5.
Figura 5 Estrutura do currculo: elementos determinantes Fonte: SACRISTN, 2000, p. 36.
Trata-se, portanto, do conjunto de experincias educativas s quais os
educandos esto expostos no ambiente escolar. Tal proposio implica considerar que a
composio de um currculo abarca atores diversos, foras convergentes e divergentes,
conjunturas socioculturais e econmicas, e se efetiva no interior de cada ambiente
educativo, nas trocas promovidas entre educadores e educandos, explicitando um
conjunto de variveis presentes nesse processo de construo.
21
Ver Sacristn (2013, p. 24).
CURRCULO COMO
CULTURA DA
ESCOLA
Contedos
Cdigos
Explcito
Oculto
SELEO CULTURAL
O que se seleciona
Como se organiza
CONDIES INSTITUCIONAIS Poltica curricular Estrutura do sistema educativo Organizao escolar
CONCEPES CURRICULARES
Opes polticas
Concepes psicolgicas
Concepes epistemolgicas
Concepes e valores sociais
Filosofias e modelos educativos
38
Essas relaes entre os atores e interesses diversos abarcam dimenses visveis
e dimenses ocultas, criando representaes no previstas no plano de aula, como a de
que existem conhecimentos teis e inteis, vlidos e invlidos; valores legtimos e
ilegtimos; condutas aprovveis e reprovveis um currculo, tambm, oculto.
Por essa razo, h a necessidade de observao, percepo, registro sistemtico
e analtico junto aos atores presentes na escola. Exige-se, assim, um estudo que busque
identificar o que os educandos carregam para dentro do espao educativo e que aponte
para as possibilidades de ampliao da leitura de mundo e de repertrio cultural e
cognitivo de todos os envolvidos.
4.1 Currculo: o que temos? O que queremos?
Refletir a respeito do currculo muito mais do que pensar sobre o que ensinar.
tambm compreender o que o currculo faz com as pessoas, contemplando assim a
perspectiva da construo/elaborao das aprendizagens dos estudantes e dos
educadores, considerando que ser humano se deseja formar, em um pas marcado pela