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Nathalye Nallon Machado Ribeiro
DIÁLOGOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
concepções de infância
Juiz de Fora
2006
Nathalye Nallon Machado Ribeiro
DIÁLOGOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
concepções de infância
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, na linha de pesquisa Linguagem, Conhecimento e Formação de Professores como requisito parcial à obtenção do título de mestre.
Orientadora: Profª Drª Léa Stahlschmidt Pinto Silva
Juiz de Fora
2006
TERMO DE APROVAÇÃO
NATHALYE NALLON MACHADO RIBEIRO
DIÁLOGOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, pela seguinte banca examinadora:
_______________________________________ Prof. Drª Léa Stahlschmidt Pinto Silva (Orientadora) Programa de Pós-Graduação em Educação, UFJF
_______________________________________ Prof. Drª Vera Maria Ramos de Vasconcellos Programa de Pós-Graduação em Educação, UERJ _______________________________________ Prof. Drª Sônia Maria Clareto Programa de Pós-Graduação em Educação, UFJF
Juiz de Fora, 17 de março de 2006.
Dedico este trabalho à memória de Arlindo
Ruffato e Adelina de Assis. Arlindo, com
suas palavras do senso comum e Dona
Adelina, com suas palavras literárias são
imagens presentes da minha infância que, por
admiração e amor, guardo comigo.
AGRADECIMENTOS
COM LICENÇA POÉTICA
[...] Mas o que sinto escrevo.
Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
dor não é amargura
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou. (Adélia Prado)
Meus agradecimentos desdobram-se em muitos ‘obrigada’ que devo dizer a pessoas que são
a extensão desse ‘eu sou’: mulher, filha, irmã, amiga, neta, professora, pesquisadora...
Obrigada pai e mãe, meus ‘ouro de mina’;
Obrigada Vó Vininha, por embalar minha vida com suas histórias;
Obrigada Tatiana, minha menina, por aceitar minhas incertezas e não buscar razão em mim;
Obrigada Ito, por juntos termos redescoberto a nossa palavra – amor;
Obrigada Mari, Denise, Érica, Flavinha, Andréa e Rosana, por serem amigas que o universal
destino me presenteou;
Obrigada Léa, pela serenidade com que sempre me ensinou e me ensina não apenas sobre os
temas de estudo, mas sobretudo, acerca das coisas do mundo;
Obrigada tias, tios e primos por acreditarem que minha ausência se fazia por um motivo
muito interessante;
Obrigada amigos da Escola Municipal Antônio Faustino da Silva, por me estimularem a
desenvolver essa pesquisa que surgiu no nosso cotidiano;
Obrigada Grupo de Pesquisa em Educação Infantil da Universidade Federal de Juiz de Fora,
pela solidariedade nos momentos de dúvida;
Obrigada Soninha Clareto, por me mostrar que ter ‘boas maneiras na alma’ consiste em
persistir sem desanimar;
Obrigada Professora Vera Vasconcellos por me encorajar a acreditar que meus ‘pensamentos
como pedras de dominó’ poderiam resultar em um texto de verdade;
Obrigada, professoras e crianças da escola pesquisada, por sua disponibilidade e carinho em
me receber;
Obrigada Matheus, por trazer um sorriso diário para mim;
Obrigada Amigos Orquidófilos, por responderem as minhas angústias com flores;
Obrigada a todos aqueles que de perto ou de longe, nos encontros fortuitos que perpassaram
minha vida, foram incentivo para a perseguição da realização do Mestrado;
Obrigada meu Deus, pela graça da vida com que me abençoa em todas as manhãs.
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão
Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal [...]
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
O menino me dá a mão.
MILTON NASCIMENTO & FERNANDO
BRANDT
RESUMO
O objetivo desta pesquisa foi compreender, através das interações dialógicas entre as crianças e seus pares e entre as crianças e a professora, a concepção de Educação Infantil presente em uma escola pública do município de Juiz de Fora – MG. Para tal, focou-se as crianças em seus diálogos. O desenvolvimento da investigação, teve como suporte os estudos de Mikhail Bakhtin, Lev S. Vygotsky e Paulo Freire configurando o quadro teórico-metodológico da mesma. O estudo constituiu-se numa pesquisa qualitativa cujos instrumentos de construção dos dados foram: observação, vídeo-gravação e notas de campo; as formas de análise privilegiaram os enunciados e suas minúcias em uma construção de sentido guiada pelos sistemas de significação da linguagem. Partiu-se do princípio de que a Escola Infantil é espaço de diálogo, portanto a concepção de infância e de Educação Infantil seria revelada nas enunciações, gestos e ações dos participantes. Embora se buscasse um uníssono quanto à concepção de infância e de Educação Infantil no interior da instituição pesquisada, notou-se a existência de diferentes concepções. A relevância deste estudo encontra-se na indicação de que a criança é protagonista da infância, apontando para a necessidade da escola reconhecer a infância e as crianças como interlocutores competentes e conscientes de sua posição no mundo.
PALAVRAS-CHAVE: Pesquisa com crianças – Interações dialógicas – Infâncias e Educação Infantil.
ABSTRACT
The purpose of this work is to comprehend, through the human interactions between the children and their pairs, and between the children and the teacher, the conception of present Children Education in a public school of the municipal district of Juiz de Fora, MG. We have focused on the children dialogues, and implemented the field research according the Mikhail Bakhtin's, Lev S. Vygotsky and Paulo Freire theoretical-methodological picture. The qualitative research was developed considering observation, video-recording and field notes as instruments of construction of the data set; their analysis focused privilege statement forms and details on the sense construction guided by the systems of significance of the language. From the first beginning we assumed that the early children school is a dialogue space, and that the conception of childhood and early children education is revealed in the enunciations, gestures and actions of all people directly involved. Although we searched to find a unique childhood and early children education conception in the school, we have discovered several ones. The main conclusion of this work is that the child is the central protagonist of the childhood, which indicates that the school as institution must recognize the children as the most relevant players, and to have conscience of their role in the world.
KEY WORDS: Research with kids; human interactions; childhoods and children education.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
11
1 INICIANDO O DIÁLOGO
16
2 COMPREENSÃO METODOLÓGICA DOS DIÁLOGOS 30 2.1 Considerações sobre a Pesquisa Qualitativa 33 2.2 Contexto, sujeitos da pesquisa, procedimentos metodológicos 44 2.3 Formas de análise
48
3 CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA EM DIÁLOGO COM MIKHAIL BAKHTIN E PAULO FREIRE
51
3.1 Palavras em Interação – Mikhail Bakhtin, escola e infância 52 3.2 A solidariedade do diálogo de Paulo Freire
74
4 TRANSITANDO EM UM ESPAÇO DE CONTRADIÇÕES: CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA
83
BREVÍSSIMAS CONSIDERAÇÕES OU MAIS UM ELO NA CORRENTE DIALÓGICA DAS INFÂNCIAS
105
REFERÊNCIAS
116
ANEXOS
120
INTRODUÇÃO
Sinto que não posso mais parar e me assusto. Procuro me distrair do medo. Mas há muito já parou o martelar real: estou sendo o incessante martelar em mim. Do qual tenho que me libertar. Mas não consigo: o outro lado de mim me chama. Os passos que ouço são meus.
CLARICE LISPECTOR
Tenho consciência da brevidade e incompletude de um texto. Tenho consciência,
também, de que todo conhecimento que um texto se propõe a construir é um conhecimento
partilhado. Esse texto não é somente meu. Nele há os vários ‘eus’ que me compõem.
Entretanto, ao rever a trajetória que fiz para que este trabalho estivesse concluído, estivesse
formalmente escrito, revejo parte da minha história e de como esta me trouxe até aqui.
Grande parte da questão investigada neste estudo é reveladora de algumas crenças e
escolhas minhas como pesquisadora. E, como tal, venho me constituindo ao longo da minha
história de vida, que entrelaça minha história pessoal e profissional, que é composta por
elementos muito subjetivos e também de momentos de uma prática profissional concreta,
sólida e muito desejada. Eu sempre quis ser professora.
Sempre quis ser professora e sempre gostei muito de gente, de histórias. Talvez quem
não me conheça pode estar se questionando porque relaciono essas questões com a pesquisa
científica, séria, disciplinada. Entretanto, ao rever essa minha característica de ouvir as
pessoas e ser curiosa para com suas histórias, penso que talvez seja isso que tenha me trazido
até aqui, que tenha me influenciado a optar pelas Ciências Humanas e ter essa ciência como a
minha ciência, por escolher pesquisar com pessoas, em uma investigação de cunho
qualitativo. Quanto à minha questão, devo dizer que esta possui uma relação direta com
minha história de vida, apresentando, por isso, um caráter autobiográfico. Acredito que nada
que me seja alheio toma em mim a força de uma interrogação com a intensidade que a faça se
transformar em uma questão relevante, a ponto de mover minhas aspirações, para aprofundar-
lhe o entendimento.
A minha singularidade, aliada a tantas outras que vão tecendo a trama social, é
relevante, porque em mim existem coisas que talvez não existam em meu semelhante; isso dá
forma e enriquece a história dos indivíduos, a história da sociedade. Não posso fazer história
sozinha, já que esta é socialmente construída, mas contribuo, como ser social que sou,
inserida em uma determinada realidade. Nada nas relações sociais é isento de sentido ou
passível de compreensão. Entendo que as palavras e as interações são pontos fundamentais
nas relações sociais.
Para o desenvolvimento dessa pesquisa, que objetivou compreender as concepções de
Educação Infantil que guiavam a prática pedagógica da instituição e que se revelavam na
triangulação do diálogo entre crianças, professora e crianças, embasei-me teórico-
metodologicamente nas obras de Lev S. Vygotsky, Paulo Freire e Mikhail Bakhtin.
O encontro com tais autores permitiu que meus diálogos se estabelecessem com
interlocutores que me auxiliaram na difícil tarefa que é buscar a compreensão da palavra dita
pelo outro. Outro que também faz parte de mim, outro que também me torna mais humana,
outro que permite que eu me constitua dialeticamente. Retomo o exemplo deixado pelo
educador brasileiro Paulo Freire, que fez do diálogo a forma mais autêntica de praxis
educativa1.
Além da interlocução com Freire, Bakhtin e Vygotsky, também busquei o diálogo com
autores que se dedicam ao estudo da infância, da criança.
Em Paulo Freire (2003), encontrei elementos para refletir sobre a linguagem. Para ele,
a linguagem pode ser utilizada como instrumento de dominação; o discurso eloqüente leva à
1 Paulo Freire defende que a união entre a ação e a reflexão constituem a praxis do educador
democrático, relação esta em que educador e educando aprendem pela prática do diálogo.
inibição; podemos, contudo, ampliar nossa visão, compreendendo a linguagem em seu
aspecto libertador. Paulo Freire relata que, além da tradição familiar, alguns professores foram
decisivos para abrir-lhe o caminho à beleza da linguagem, o ato amoroso para com as
palavras, o “tratamento primoroso do discurso.” (p.79).
O espaço da escola é um espaço de relações onde a aprendizagem pode acontecer em
diversos momentos e situações, porém é sabido entre os educadores que se dedicam ao estudo
do desenvolvimento e da aprendizagem que a relação entre as pessoas é fator considerável
para que o conhecimento se efetive. Nesse contexto a linguagem ocupa papel de destaque nas
interações. De acordo com Vygotsky (2001):
A linguagem origina-se em primeiro lugar como meio de comunicação entre a criança e as pessoas que a rodeiam. Só depois, convertido em linguagem interna, transforma-se em função mental interna que fornece os meios fundamentais ao pensamento da criança (VYGOTSKY, 2001, p.114).
Dessa forma, compreendo que a escola é um local de linguagem. Essa pesquisa buscou
nos indícios da linguagem - oral, gestual, escrita – e também da trama cotidiana que se
constituiu naquele espaço escolar e da qual todos os sujeitos, inclusive eu, fez parte, pude
observar se os diálogos entre as crianças, sobre as crianças e entre o adulto e a criança são
fatores a serem considerados na construção de uma proposta de educação infantil de
qualidade2.
Priorizei os diálogos nesse estudo na intenção de referendar a linguagem como
mediadora da produção do conhecimento e também reveladora de concepções, crenças e
práticas. A linguagem é conhecimento mediado e, embora seja indispensável na constituição
do sujeito e sua singularidade, só possui valor quando compartilhada de seus sentidos com
outrem. Assim nos diz Bakhtin (2000): 2 Por qualidade entendo através da definição dada por Peter Moss que se trata de um conceito subjetivo, baseado em valores, relativo e dinâmico, com a possibilidade de entendimentos diversos. O trabalho com qualidade precisa ser contextualizado, espacial e temporalmente e deve reconhecer a diversidade cultural e as outras formas importantes de diversidade. In: DAHLBERG, G.; MOSS, P.; PENCE, A .Qualidade na Educação da Primeira Infância. Porto Alegre: Artmed, 2003.
O enunciado nunca é simples reflexo ou expressão de algo que lhe preexistisse, fora dele, dado e pronto. O enunciado sempre cria algo que, antes dele, nunca existira, algo novo e irreproduzível, algo que está sempre relacionado com um valor (a verdade, o bem, a beleza, etc.). Entretanto, qualquer coisa criada se cria sempre a partir de uma coisa que é dada ( a língua, o fenômeno observado na realidade, o sentimento vivido, o próprio sujeito falante, o que é já concluído em sua visão de mundo, etc.). O dado3se transfigura no criado (BAKHTIN, 2000, p.348).
Assim, interessei-me por investigar as relações dialógicas entre os atores da Educação
Infantil, por considerá-las importantes fontes de conhecimento produzido no cotidiano.
As crianças foram meu foco e seus interlocutores, mediados pela linguagem,
completaram a triangulação para observação e análise.
Diante de todas as questões que destaco tanto em minha trajetória como cidadã quanto
em minha trajetória como cidadã educadora de Educação Infantil, entendo que, ao eleger essa
etapa da Educação Básica como objeto de estudo, focando as interações possibilitadas pela
linguagem e observadas através de uma pesquisa qualitativa, busco não só o entendimento das
interações entre as crianças de 4 e 5 anos, mas desejo trazer à discussão a questão da criança
como cidadã, detentora de direitos, que tem em seu contexto escolar sua fala respeitada.
Cobramos das autoridades a eficácia de políticas públicas destinadas aos menores de 6
anos; mas como lidamos com os direitos desses menores de 6 anos dentro do nosso contexto
escolar? Refletir sobre a Educação Infantil e suas inúmeras particularidades ainda é
necessário; entender a infância e suas características é urgente; compreender como a criança
se percebe no mundo ainda é um desafio. Desafio que busco, nas palavras, entender. Desafio
que, de imediato, considero importante para a relevância social de que a infância necessita.
Na tentativa de dar início à discussão, no primeiro capítulo, retomo um pouco da
minha trajetória de vida, já que, a meu ver, essa história exerceu influência na questão desse
estudo. Nesse capítulo, discuto a infância, tomando como referência a idéia de um espaço de
3 Destaques do autor.
relações em que estão envolvidas as ações que dizem respeito à criança – grupo social, com
características próprias - e como tais ações não são as mesmas para todas as crianças, optei
por referir-me à infância no plural - Infâncias.
No capítulo 2, abordo a metodologia remetendo-me à ligação, que percebo
fundamental, entre os objetivos de meu estudo e as possibilidades que a pesquisa qualitativa
forneceu para o seu entendimento.
Articulo, no capítulo 3, os dados do campo com a teoria de Mikhail Bakhtin e Paulo
Freire acerca da apropriação cultural e da estrutura social.
Dou continuidade à análise dos dados no capítulo seguinte – capítulo 4 – em que
utilizo as idéias de Lev S. Vygotsky no que tange à importância do diálogo e ao
desenvolvimento infantil.
Durante todo o estudo, fui percebendo a existência de concepções de educação
infantil, bem como a existência de infâncias dentro da infância. Dessa maneira, dedico o
capítulo final à escrita de brevíssimas considerações acerca da pesquisa, retomando algumas
questões políticas que influenciam na dinâmica da escola, salientando que a linguagem nem
sempre é expressa somente por palavras, mas também por ações, omissões e escolhas. Não se
trata de considerações finais, visto que não haverá palavra final para as questões que
discutimos sobre educação, sobre crianças e sobre a infância. Percebo que esse estudo e as
minhas análises consistem em um elo a mais na corrente dialógica que já existe, já discute e
milita nas questões da infância e da educação das crianças menores de seis anos.
1 INICIANDO O DIÁLOGO...
Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor [...]. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos [...].
MANOEL DE BARROS
Manoel de Barros, poeta mato-grossense, escreveu que a “a poesia tem a função de
pregar a prática da infância entre os homens”. O autor expressa nesse verso, assim como nos
versos que constam na epígrafe desse capítulo, uma forma de entender a infância como uma
fase da vida que merece ser praticada ao longo da vida. Esta é uma das possíveis
compreensões que se pode ter sobre o que é a infância, sobre o período que tem início com o
nascimento de um ser humano. Entretanto, assim como as sociedades passam por
transformações, os seres humanos e os modos de vida também se modificam, alterando as
formas de perceber não só as coisas do mundo, mas a própria existência no mundo. Com a
infância não foi e nem é diferente.
A infância, como é percebida hoje, é resultado de profundas transformações não
apenas na sociedade, como na estrutura das famílias, nos modos de produção, nas formas de
sobreviver. Perceber a infância na contemporaneidade é ter a compreensão de que se trata de
uma fase da vida que é marcada profundamente pela história e pela sociedade, é compreender
que a humanidade e seus grupos estão em permanente transformação. Compreender a infância
é também uma forma de conhecer a história da espécie humana. Observemos a reflexão feita
por Jader Janer Moreira Lopes e Tânia de Vasconcellos em seu livro Geografia da Infância -
Reflexões sobre uma área de pesquisa (2005):
Ao analisarmos o próprio sentido de infância construído a partir do século XVII, podemos afirmar que esta é uma idéia apropriada por alguns como verdadeira, mas não aplicável a todos, ou seja, a mesma noção de infância apresenta diferentes apropriações de acordo com os interesses de quem a utiliza, e a sua pretensa universalidade só existe quando necessária. Dessa forma, os feixes que definem o sentido de infância variam de acordo com os interesses destinados pela sociedade às suas diferentes camadas sociais, estabelecendo diferentes caminhos para a vida adulta (LOPES & VASCONCELLOS, 2005, p. 23).
O entendimento e a idéia de infância são, portanto, historicamente situados e datados.
As diferentes formas de ser criança se constituem no grupo social do qual fazem parte, sendo
que o grupo social encontra-se em constante processo de mudança e reestruturação. Assim,
estabelece-se um círculo dinâmico e ininterrupto de mudanças e reelaborações de conceitos,
entendimentos e formas de viver. Na contemporaneidade, há referências à infância como uma
etapa da vida, como nos mostra Walter O. Kohan em seu texto A infância da educação e
conceito devir-criança (2004):
é uma etapa da vida, a primeira, o começo, que adquire sentido em função de sua projeção no tempo: o ser humano está pensado como um ser em desenvolvimento, numa relação de continuidade entre o passado, o presente e o futuro (KOHAN, 2004, p.53).
Entretanto, Kohan enriquece a discussão sobre o entendimento da infância,
relacionando com o conceito de tempo, afirmando que a infância não é apenas uma questão
cronológica ou uma etapa da vida, mas sim uma “condição da experiência” (p.54). A infância
não é uma lógica temporal, assim como o tempo da vida também não é. Se reduzirmos a
compreensão da infância para uma etapa da vida, estamos limitando a experiência de viver o
passado e o futuro, estamos numerando a vida, “quantificando a vida” e na infância “não há
sucessão nem consecutividade, mas a intensidade da duração” (p.55).
Na contemporaneidade há, portanto, preocupação por parte de estudiosos em
compreender a infância em sua lógica e especificidade, assim como há uma intensa rede de
informação vinda da mídia com destino aos pais que buscam interminavelmente manuais para
bem educar as crianças ‘de hoje’. Muitos são os apelos comerciais para a infância, para os
pais e também para a escola e educadores. “A infância está na ordem do dia”, este é um dito
popular que se aplica com propriedade ao momento em que vivemos. Retomando o
entendimento histórico da infância, é importante destacar que, se nos dias atuais, a infância
tem sua importância reconhecida, nem sempre foi assim. De acordo com Paulo Ghirardelli,
(1997) “criança sempre existiu, mas infância não”.
O pesquisador francês Philippe Ariès (1981) pode ser considerado como alguém que
‘inaugurou’ uma forma nova de olhar a infância através da história, fazendo dela um tema de
estudo e pesquisa com o livro A história social da criança e da família. Através de
iconografias, Ariès analisou o próprio sentimento da infância, que pode ser compreendido
como a tomada de consciência de que existe a particularidade infantil. De acordo com esse
autor, para entender a criança seria necessário compreender a sociedade, ou seja, considerar a
ligação entre a representação das crianças, através das imagens, com as práticas sociais da
época. O conceito de infância está estreitamente ligado ao momento histórico em que se vive.
Esse sentimento de particularidade infantil surgiu com a Modernidade. Discutindo as
“idades da vida”, Ariès afirma ter ocorrido, nos meados do século XVII, a consolidação de
um significado moderno para o termo infância. Na Idade Média, por exemplo, o entendimento
que temos hoje de que a infância é uma fase da vida em si não era presente, a criança era
desconsiderada do nascimento até a idade em que começava a falar.
A origem etimológica da palavra infância nos leva a analisar que, ao ser constituída
pelo prefixo in, indicativo de negação, precedido de fans, relativo à fala, conduz à
interpretação de que o ser humano só era considerado a partir da idade em que iniciava a falar.
A criança não falava, não sendo, portanto, alguém a ser considerado.
A compreensão da noção de infância como fase da vida foi sendo construída
historicamente. Para o entendimento da infância em sua especificidade histórico cultural é
necessária a percepção de que ela se encontra em constante movimento; na medida em que a
sociedade não é estática, as relações se transformam, os padrões se alteram e as pessoas
passam a viver, a agir e a relacionar-se de formas cada vez mais distintas.
Somente a partir do século XVI é que as crianças tiveram, de fato, alguma relevância
social e política. Entretanto, o reconhecimento de que havia a infância e de que as crianças
exigiam olhares diferenciados voltou o foco para o que faltava na criança em relação ao
adulto, ou seja, centrou-se no que a criança não é, ao invés de tentar compreender como ela é.
Avançando na compreensão e no reconhecimento da infância como fase da vida a ser
considerada, surgem na Europa, no final do século XVIII e metade do século XIX, as
instituições destinadas à Educação Infantil, muito em função de um novo sentimento de
infância, como dizia Ariès, quando esta passa a ser campo de intervenção social. A concepção
de assistência a populações desprivilegiadas é, então, amplamente adotada como forma de
civilização.
No Brasil do século XIX, as ações em favor da educação de crianças sustentavam-
se em teses de higienização e manutenção da infância, ou seja, havia a preocupação em
defender e aprimorar a sociedade, adotando medidas de regeneração e civilização. Até os
nossos dias, pode-se notar uma lacuna nas oportunidades de as crianças experimentarem
vivências como sujeitos de direitos que são, o que denota que nosso passado ecoa em um
presente marcado pela desigualdade.
Somente após 1960 é que a Educação Infantil passa a integrar a agenda de
desenvolvimento dos países subdesenvolvidos. Mesmo que ancorada em propostas
ineficientes, baseadas em modelos nem sempre pertinentes às necessidades das nossas
crianças, a Educação da Infância encontrou ecos para se desenvolver permitindo que a criança
pudesse ser colocada como protagonista de sua infância.
Muito do que se tem como história e trajetória da Educação Infantil no mundo inteiro
fundamenta-se em um passado de assistencialismo. Conforme afirma o pesquisador português
Manoel Sarmento (2001),
A verdade é que se houve sempre crianças, não houve sempre infância. A consideração das crianças como um grupo etário próprio, com características identidárias distintas e com necessidades e direitos genuínos, é muito recente, é mesmo um projeto inacabado de modernidade (SARMENTO, 2001, p. 13-4).
A infância, portanto, é um produto histórico e, como tal, está em contínua construção.
Imagens, crenças, representações e discursos são continuamente elaborados em seu interior.
No Brasil, assegurada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9394/96, como
primeira etapa da Educação Básica, essa fase da educação nem sempre foi pensada e praticada
como tal. O binômio educar/cuidar vem sendo pauta de discussões, na tentativa, segundo José
Gonçalves Gondra (2000), de atentar para uma educação cidadã, destinada aos menores de
seis anos, considerando-os cidadãos de direito que são e não “sementes do porvir”. Não se
discute aqui a necessidade do cuidado, que é inquestionável, entretanto, as instituições de
Educação Infantil devem ir além disso, cuidando e educando de fato.
Isso põe em evidência a questão da formação do profissional para o trabalho em
instituições de Educação Infantil. É tradicional a vinculação entre a primeira infância e a
mulher, responsável pela educação das crianças menores, em função da crença de que a
mulher trabalhadora em Educação Infantil seria uma substituta da mãe. Hoje, com a
compreensão mais madura acerca do que é a infância e de suas peculiaridades, cresce a
necessidade da formação sólida dos profissionais que trabalham com a criança.
Na sociedade brasileira, não podemos negar que há escolas e creches para crianças
menores de seis anos, ainda que não seja de maneira universalizada. Temos realizado esse
trabalho, porém, a forma como as instituições têm se estruturado frente às necessidades que se
impõem para educar a criança pequena com qualidade, ainda é um desafio presente. De
acordo com Vera Maria Ramos de Vasconcellos
Apesar dos significativos avanços legais ao longo dos últimos anos, seguimos com grandes dificuldades, pelas quais a cobertura educacional para a faixa de 0 a 6 anos está distante de atingir patamares adequados às reais necessidades de nossa sociedade (VASCONCELLOS, 2005, p.119).
As modalidades de formação tanto inicial quanto continuada ainda não são suficientes
para sustentar a prática docente que atenda às especificidades dessa fase da vida do ser
humano, proporcionando oportunidades de aprendizado e desenvolvimento. Nas instituições,
ainda há que se avançar na reflexão sobre as especificidades da infância e, também, no
conhecimento das diferenças que fazem parte da nossa sociedade que se encontram, juntas, na
escola. O reconhecimento das identidades da infância e as formas de interação entre criança-
criança e entre adulto-criança devem buscar o reconhecimento da fala desses agentes,
considerando-os na construção do processo educacional.
Todas essas são questões recorrentes quando se pensa a infância como uma etapa da
vida com uma lógica própria. Assim, trabalhar nessa perspectiva exclui a forma simplista de
conceber a escola de Educação Infantil somente como um espaço de atividades rotineiras
diárias. O espaço para as crianças deve considerar o contexto sócio-cultural no qual se
inserem, priorizando a observação, o envolvimento das crianças na tomada de decisões, a
interação, atentando para a condição da criança como alguém que produz cultura. Entretanto,
ela é alvo constante da massificação cultural que a sociedade impõe a todos, inclusive a ela.
A trajetória vivida por cada indivíduo, desde a sua infância, marca a subjetividade de
diferentes maneiras. As formas como cada pessoa vivencia suas experiências, aliadas ao
contexto histórico e cultural no qual está inserida, vão se transformando em elementos
importantes na identidade que está sendo construída e que, ao longo da vida, continuará a se
constituir.
As vivências infantis não são recortes da memória, nem páginas mortas de um diário
já guardado... O tempo de infância não se esgota na adolescência, como é corriqueiro ouvir
através das palavras ditas pelo senso comum. O tempo de infância está e é presente em cada
um, sempre. Penso que minhas experiências na infância se refletem na minha identidade de
maneira tão significativa que a opção por estudar e trabalhar com a infância e as crianças não
representou uma escolha angustiante ou hesitante, uma vez que a experiência da infância é
muito forte em mim. Talvez daí venha construindo minha identidade profissional, minha
identidade como estudante e também como pesquisadora. A infância tem sido um tema
constante e recorrente em minha vida. Assim, vejo o embrião desse estudo, que foi tomando
corpo com base nas minhas origens, na minha educação familiar e escolar, na maneira como
me relaciono com as pessoas e o mundo, como exercito a vida, enfim.
Demorei a entender que não se vive e sim que se exercita o viver; nada é estático e na
compreensão da dinâmica na qual minha experiência se enriquece fui me constituindo gente,
fui me conscientizando da minha condição humana. A particularidade da minha existência, o
ser eu no mundo, experiência única e irrepetível, entretanto cheia de possibilidades é que faz a
minha história ser o que é. E a minha história é o que é pela presença e mediação de muitas
outras histórias, muitas outras pessoas, eu sou em constante transformação. E a condição do
efêmero é que deixa tudo ainda mais belo...
Acredito que a minha condição humana, única, pode justificar certas escolhas nessa
investigação, porém, como pesquisadora, minhas escolhas acarretam responsabilidades diante
não só da comunidade acadêmica, mas também da comunidade em que pesquisei, das
crianças, das professoras, dos pais e funcionários. Sou consciente da minha singularidade
nesse trabalho, o que não isenta minha fala de ser julgada vazia ou vulgar, desinteressante até,
entretanto não posso deixar que a responsabilidade acadêmica oculte o grande prazer que tive
em pesquisar esse tema, em ocupar o meu lugar nesse texto.
Para mim foi importante reconhecer, nas palavras alheias, palavras minhas. Muito de
mim estava nas outras pessoas e as palavras têm uma força grandiosa nesse processo. A
crença no valor das palavras vem do fato de que elas não são neutras. Os diálogos são mais do
que palavras trocadas, vão além das palavras face-a-face uma vez que os diálogos não se
restringem às interlocuções verbais. Uma outra característica deve ser atribuída ao diálogo,
que é a existência de um discurso interior do qual inúmeras enunciações surgem, sendo que
essas são determinadas pela situação e pelo auditório social a quem se destinam. As
interlocuções verbais vão além da definição tradicional que liga o diálogo à comunicação,
sendo esta entendida como mera transmissão de uma mensagem de um emissor para um
receptor, de modo que ambos a entendam da mesma maneira.
Diálogos são a força das palavras, impregnadas estas de conteúdos ideológicos,
experiências pessoais, crenças, emoções... Os diálogos são plenos de vida. Isso sempre me fez
brilhar os olhos: as palavras revelam, as palavras escondem, as palavras riem e choram, as
palavras em movimento nos meus tantos diálogos... Sou, como muitos brasileiros,
descendente de imigrantes. Hoje vejo que, nessa condição, os diálogos em minha vida ora
revelavam, ora escondiam, fosse para proteger, fosse para preservar. Descendo de imigrantes
italianos que fugiam da fome e da miséria... Os diálogos confortavam, os diálogos revelavam
a desigualdade do mundo. Descendo de imigrantes italianos que fugiam da miséria e se
instalaram nas montanhas de Minas... Os diálogos planejam, os diálogos apóiam o recomeço
da vida. Descendo de imigrantes italianos que fugiam da miséria e se instalaram nas
montanhas de Minas para cultivar a terra e garantir o pão.
Alguns fragmentos, algumas afirmativas, negações ou interrogações evidenciam que
algo poderia ter sido diferente. Para contar minha história, para ilustrar meu contexto social e
familiar, escolhi o advérbio “talvez” que aponta a possibilidade de caminhos que a história
oferece.
Se meus antepassados tivessem se fixado na Colônia - Porto de Santo Antônio (hoje
Sobral Pinto e Astolfo Dutra, Zona da Mata Mineira) ou São Paulo, Paraná, ou até mesmo no
Rio Grande do Sul – “talvez” tivéssemos conosco traços mais fortes da tradição dos
imigrantes italianos. Foi diferente.
Acredito que, assim como na minha, nas muitas histórias uma vez contadas a palavra
“talvez” esteve presente.
Todas as histórias merecem ser ouvidas porque são irrepetíveis e cheias de
significados. Todas as histórias merecem ser ouvidas porque delas parte da singularidade pode
ser compreendida. Com Derrida (2003) confirmo o “talvez” como elemento importante nas
histórias:
Essa força atribuída a uma experiência do talvez guarda sem dúvida uma afinidade ou uma conivência com o “se” ou o “como se”. E, portanto, com uma certa gramática do condicional: e se isso acontecesse? Pensar talvez é pensar “se”, “e se?” ... E se ele é declinado segundo o modo verbal do condicional é também para anunciar o incondicional, o eventual ou o possível acontecimento do incondicional impossível, o totalmente diferente... (DERRIDA, 2003, p.79, 80)
Vários foram os portos: Rodeiro, Ubá, Diamante, até que finalmente Dona Euzébia,
onde meu diálogo com a vida começa, onde minhas palavras misturam-se a tantas outras:
“- Menina, comporte-se perto dos adultos!” “ – Menina, respeite os mais velhos!” “ – O
único bem que temos é a família...” “- Para bom entendedor, meia palavra basta...”.
Aprendi a dialogar com o corpo. Com os olhos principalmente. A dura trajetória dos
imigrantes reflete-se em um amor doído, por vezes mudo, em um amor que parece sempre
dizer adeus, a consciência se estabelece em não ter o amanhã como certo.
A relação com os diálogos suscitada em mim vem, em parte, dessa minha convivência
familiar, da vivência em uma comunidade pequena, onde a palavra dada tem status de
documento assinado. O contexto social é fundamental na constituição do sujeito, pois é
como membro de um grupo social numa classe e por uma classe, que o indivíduo humano atinge uma realidade histórica e uma produtividade cultural. Para entrar na história não é suficiente nascer. É necessário um segundo nascimento - um nascimento social (BAKHTIN apud JOBIM & SOUZA, 2003, p. 60).
A constituição do sujeito humano tem seu início na infância, porém ainda é possível
observar, em palavras carregadas de conteúdos ideológicos, idéias como: “criança não sabe o
que fala” revelando concepções de infância em que o ser criança não tem importância. Léa
Stahlschmidt Pinto Silva (2003), em sua tese O brincar de faz-de-conta e a imaginação
infantil: concepções e prática do professor, faz referência ao trabalho da autora italiana
Egle Becchi, que fundamenta seu trabalho sobre concepções de infância em metáforas e
outras figuras de linguagem, comumente utilizadas socialmente, como “é de pequeno que se
torce o pepino”. (p.56).
Os diálogos na Educação Infantil são importantes na minha trajetória como mulher,
professora e agora pesquisadora, porque sempre quis ouvir o outro, sempre quis estar perto e
compartilhar. A voz do outro – e por voz entendamos corpo, silêncio, sorriso... – faz a
diferença e na escola isso nem sempre é desejável. O que temos visto é um coro de várias
vozes dizendo as mesmas palavras. Dói ser diferente quando todos esperam os “iguais”. E as
crianças percebem que suas vozes podem não ter ouvidos dispostos a escutá-las e entendê-
las... Isso influencia não só na constituição da subjetividade como também no processo de
escolarização da criança pequena.
Em uma passagem do livro Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha
práxis, Paulo Freire (2003) relata a ladainha que se fazia numa escola de Jaboatão, PE, onde o
professor ensinava e todos repetiam em coro, a cantoria “Um b com a, faz ba, um b com e, faz
be, um b com i faz bi, um b com o faz bo, um b com u faz bu. Ba, be,bi, bo, bu. Ba, be, bi, bo,
bu.” (p.84). Há muitas formas de dizer, de expressar, mas a autoria nem sempre é permitida
em nossas escolas, nem às crianças e tampouco aos professores que muitas vezes se
intimidam em assumir posturas e práticas em suas salas.
O aprendizado do diálogo tem sido, para mim, construído a duras penas. Falar sempre
foi perigoso por demais. Mas, como então ser professora? A entrada na Universidade, com
todas as suas surpresas, chocou-se com características pessoais, como o receio de me expor,
de estar visível e audível aos outros que não me eram familiares, conhecidos; as apresentações
de seminários, a mudança do hábito de ficar no tempo da espera e chegar ao tempo do fazer,
do agir. Assim Juiz de Fora chega à minha vida. Tive que reconstruir minha maneira de
dialogar, encontrar outras facetas em mim nunca antes suspeitadas... Hoje, Bakhtin me
conforta, explicando:
Às vezes saio de mim mesmo no plano dos valores, vivo no outro e para o outro, e então posso participar do ritmo, mas nele sou, de um ponto de vista ético, passivo para mim mesmo. Na vida, participo do cotidiano, dos costumes, da nação, da humanidade, do mundo terreno – em toda parte, vivo aí os valores no outro e para o outro, eu revesti os valores do outro, e aí minha vida pode submeter-se a um ritmo, aí minha vivência, minha tensão interna, minha palavra, tomam lugar no coro dos outros... (BAKHTIN, 1992, p.135)
Essa pesquisa sobre os diálogos na Educação Infantil é fruto de minha trajetória
profissional na rede pública de Juiz de Fora. Em um momento, que não sei precisar, comecei a
refletir sobre minha prática, sobre a escola, as crianças. Ao aprofundar essa reflexão, veio-me
à lembrança uma frase do Prof. Dr. Roberto Alves Monteiro4 : “estranhar o olhar naquilo que
me parecia familiar”...
Percebi que, como aquele espaço escolar era extremamente rico, a observação deveria
se constituir como uma de minhas estratégias. Assim, a rotina diária, o cotidiano e as práticas
docentes das duas turmas de uma escola de Educação Básica da rede pública, localizada na
4 Prof. Dr. Roberto Alves Monteiro ministrou a disciplina Pesquisa Qualitativa no curso de Especialização em Alfabetização e Linguagem, Faculdade de Educação, UFJF.
periferia da cidade, onde atuava, passaram a ser mais do que meu espaço de atuação
profissional.
Nesse locus privilegiado de observação, fui acumulando questionamentos acerca da
infância, do desenvolvimento infantil, da cultura do adulto e da criança, tudo isso suscitado
pela mediação da linguagem. A linguagem possui um importante papel na constituição do
indivíduo, na sua relação com a cultura e a sociedade, portanto, confere ao sujeito sua
condição histórica e social. As teorias que estudam o desenvolvimento humano proporcionam
uma melhor compreensão do processo dialógico na escola infantil. Autores como Vygotsky e
Bakhtin que, embora não tenham analisado especificamente a linguagem no cotidiano de
crianças, dão subsídios para a “compreensão do papel das trocas verbais na formação das
ideologias e na constituição da subjetividade da criança.” (JOBIM & SOUZA, 2000, p.21).
Além do entendimento de que o conceito de infância passou por transformações
históricas, afetando na compreensão do modo de ser criança, considero importante perceber
que a linguagem, ou a ciência da linguagem também passou por transformações em função
das mudanças sociais e do próprio avanço do conhecimento científico. O entendimento dessa
trajetória é importante para a compreensão da visão de diálogo que adotei ao longo desse
estudo. Historicamente, a gramática normativa utilizou-se da premissa de que havia um
código lingüístico padrão, devendo tal padrão ser seguido por todos aqueles que desejassem
falar ou escrever corretamente. A ciência legitima e reconhece a tradição gramatical e, a partir
daí, a língua padrão passa a deter as regras fixas e imutáveis, constituindo-se superior às
demais variantes. A língua recebia tratamento de objeto externo ao sujeito; as línguas foram
se tornando gramaticais à medida que um grupo necessitava de prestígio, portanto sua
variante lingüística culta constituía-se sinônimo de força.
Esses são modelos culturais ou paradigmas que acompanham a humanidade na sua
trajetória histórica e cultural. Avançando até as discussões lingüísticas do século XX,
conforme Bárbara Weedwood (2002), em História Concisa da Lingüística, verifiquei a
presença de focos universalistas e particularistas da linguagem, com influências das idéias de
Saussure sobre significante e significado - langue e parole- e de Chomsky, fundado na crença
de competência e desempenho.
Ao falar sobre parte da tradição gramatical, desejo exemplificar a ampliação dos
estudos acerca da linguagem até a compreensão contemporânea do uso social da língua, para
o que a tradição russa contribuiu e contribui decisivamente. Assim, torna-se importante o
debate sobre os paradigmas da ciência, evolução e enquadramento dos processos científicos
de construção do conhecimento, como Thomas Kuhn (1978) discute em seu livro A estrutura
das revoluções científicas. O autor mostra que os modelos vigentes têm ligação estreita com
a aceitação e aprovação das comunidades científicas. Os paradigmas indicam valores que, por
sua vez, sugerem ações em determinada comunidade, em um ciclo que se repete até que haja
concordância sobre um novo olhar que se lança a respeito de determinado assunto. Com a
linguagem não foi diferente.
Pierre Bourdieu (1998) afirma que existe um embate social em função do poder
simbólico de significar o mundo social. A linguagem é uma forma de significar o mundo,
portanto é uma forma de poder. A linguagem, em todas as suas formas de expressão, é
ideológica, pois a linguagem é a prática social em funcionamento. As palavras, os gestos,
os silêncios, os diálogos, além de sua função interativa e comunicativa, podem ser também
formas de poder e opressão. Diálogos não são apenas troca de palavras... Como nos diz
Bakhtin,
[...] não são as palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial (BAKHTIN, 1992, p.21).
As referências acerca da linguagem que adotei nessa pesquisa para a compreensão dos
diálogos relacionam o papel social da linguagem como meio de interação entre os sujeitos.
Tais referências se pautam nos estudos de Paulo Freire, Mikhail Bakhtin e Lev S. Vygotsky
que permitem compreender que a língua é algo que extrapola o limite de regras, é algo que
propicia o relacionamento humano e a tomada de consciência sobre si, sobre o mundo e sobre
as coisas do/no mundo.
Entendendo a dinâmica das transformações sociais e seus reflexos sobre a vida e as
relações humanas, podemos incluir a história também como uma ciência que reflete a
intencionalidade, ou o sentido atribuído a um determinado fato. O que faz a história fascinante
é a pluralidade de possibilidades interpretativas. Os fatos ocorreram, entretanto, abrem-se a
interpretações que vêm dos olhares que se lançam sobre eles. A dinâmica histórica, com suas
interpretações diversas ocorre com o suporte das palavras, que acompanham o desenrolar dos
acontecimentos, perpetuando-os ou ignorando-os.
Desde o início dessa pesquisa, estou evidenciando minhas escolhas. Escolhas que
puderam ser minhas através dos outros e da mediação possibilitada pelos diálogos. Pela
linguagem encontro-me em constante constituição, posso compartilhar e perceber minhas
experiências. Pela linguagem pude contar minha história e compreender como esta
influenciou minha posição diante do/no mundo.
No capítulo seguinte, discuto a trajetória metodológica adotada na realização desse
trabalho; trata-se das minhas escolhas como pesquisadora, de algumas reflexões sobre a
pesquisa qualitativa e também a contextualização da investigação realizada.
2 COMPREENSÃO METODOLÓGICA DOS DIÁLOGOS Mas é preciso paciência com os retalhos, com os cacos. Pessoas hábeis fazem com eles cestas, enfeites, vitrais, que por sua vez configuram novos núcleos [...] O centro da gema é mais nucleal, mais central, mais gema que sua própria beirada? O centro tem outro centro?
ADÉLIA PRADO
A vida se apresenta de maneira repleta de fenômenos e, estes, se olhados de forma
particular, podem dar origem a importantes questões indagadoras. Tais questões, ao
receberem tratamento científico com rigor e cuidado, poderão resultar em respostas que muito
hão de contribuir para o entendimento não só das questões indagadas, mas também na
compreensão da dinâmica da própria sociedade. O constante movimento da humanidade
dinamiza o pensamento científico na medida em que nada está no mesmo lugar, tudo é uma
experiência em constante movimento, em uma dialética troca entre sujeitos e entre os
elementos da natureza.
A experiência em pesquisar um tema envolve uma paciente caminhada rumo à
formação de novas compreensões, novas interpretações sobre as questões que movem a
pesquisa e que, em particular, alavancaram esse estudo. Como compreender as experiências
que se apresentaram a mim no cotidiano da Educação Infantil que resultaram em questões
indagadoras? Poeticamente Adélia Prado indaga: “O centro tem outro centro?” Trazendo a
indagação da poeta mineira para a questão da pesquisa em Ciências Humanas, digo que
pesquisar um tema é aventurar-se na busca de outros possíveis centros. Concordo com Adélia,
“o centro tem outro centro”, mas para poder descobri-lo devo afirmar que a aprendizagem do
ver e do olhar foram fundamentais para buscar a compreensão de quais seriam os outros
centros. Aqui, tais questões constituem-se como discussões pontuais.
Em Ciências Humanas nosso desafio está em constantemente ver e rever novas
possibilidades, reconhecendo que a própria estrutura da vida social é dinâmica e que o
conhecimento que dessa estrutura se constrói é um conhecimento datado, historicamente
situado, mas nem por isso, de menos valia para o entendimento do ser humano e das suas
relações. Já nos disse Drummond que a ciência nunca se basta, está sempre à procura:
Nenhum tempo é tempo Bastante para a ciência De ver, rever. (ANDRADE, Carlos Drummond de. 1994, p.74).
Assim, essa pesquisa é a busca, na experiência narrada, de possíveis indicadores
existentes nessa experiência narrada, ou a dimensão da significação na experiência humana,
que é única. Compreendo a singularidade do momento vivido, ou seja, o mesmo evento, se
vivenciado por pessoas diferentes, terá tantas interpretações quantas forem as pessoas que
desse evento fizeram parte - cada uma delas fará a sua significação de maneira diferenciada.
De acordo com Ana Luísa B. Smolka5 (2005), para Lev S. Vygotsky, essa diferenciação na
significação que se dá ao vivido tem sustentação no argumento de que há um fundamento
orgânico aliado à trama social na qual a criança/o sujeito vive. Isso confere importância ao
sujeito nas relações sociais – há sempre um sujeito operando – e também aos diversos fatores
que compõem a vida social.
A vivência não é única, nem linear e nem uniforme, já que há uma confluência de
elementos que interagem concomitantemente na experiência que é viver: nem sempre o social
é determinante de tudo, da mesma maneira que o orgânico também não é. Dessa forma,
entendo que existe uma tensão na significação do momento vivido, porque nele estão
envolvidos fatores diversos que se configuram na singularidade, nos sentidos, experiência,
memória, história, tudo interferindo simultaneamente nos eventos.
5 Notas da 28ª Reunião Anual da ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – Caxambu, MG, outubro de 2005.
Assim é uma sala de atividades de educação infantil: um espaço de múltiplos fatores
interagindo em um mesmo momento. E é pela ausência de unidade nos discursos e ações que
optei por não buscar categorias nas quais pudesse generalizar os ditos, não ditos, gestos e
atitudes. Assim, através da singularidade busquei avançar na compreensão desse estudo e,
especificamente nesse capítulo, procurei dialogar com as possibilidades que a pesquisa
qualitativa fornece para o desenvolvimento do meu estudo sobre os diálogos na educação
infantil. Entretanto, ao longo do texto, surgiram questões e, com elas, priorizei aprofundar a
compreensão que tenho sobre esse tipo de pesquisa, salientando a especificidade dessa ter
sido realizada com crianças.
Alguns pesquisadores brasileiros como Sônia Kramer (1992), Solange Jobim & Souza
(2003), Rita M. Ribes (2002), Léa Stahlschmidt Pinto Silva (2002) e também os portugueses
Manoel Sarmento (2000) e Manoela Ferreira (2004) têm se dedicado ao estudo no qual as
crianças são realmente protagonistas da pesquisa, em que são atores sociais envolvidos
integralmente com outras crianças e também com adultos. Nessa discussão sobre a
participação ativa da criança na pesquisa, questões éticas são suscitadas no que tange à
identidade, à autorização da imagem, devolução dos resultados, passando, inevitavelmente,
pela delicada questão da divulgação dos achados da investigação. O estudo com crianças,
portanto, é uma particularidade a mais dentro da pesquisa qualitativa, que não pode ser
negligenciada.
Acredito que as questões relativas às incertezas, que são peculiares ao processo de
investigação, à minha posição como pesquisadora, bem como à participação ativa das crianças
no processo, estarão presentes e são pertinentes na dinâmica desse capítulo.
Nessa busca pela compreensão da minha questão optei pela metodologia qualitativa,
que permitiu aproximar-me de autores ligados às teorias sócio-culturais. Dessa forma, dialogo
aqui com questões da pesquisa qualitativa e remeto minhas reflexões às idéias dos autores que
sustentam a compreensão partilhada dos sentidos como uma forma de produzir conhecimento.
Tais autores são estudiosos que entendem a realidade em constante transformação e com a
necessidade de constante e interminável diálogo.
2.1 Considerações sobre a Pesquisa Qualitativa
O fazer científico traz ambigüidades, idas e vindas, incertezas que, de alguma maneira,
fazem parte do processo pelo qual passa a produção do conhecimento. O caminho para a
escolha metodológica que mais atende aos objetivos da pesquisa é, também, parte reveladora
da forma como o pesquisador busca entender o mundo. Portanto, a metodologia não se
constitui simplesmente como um conjunto de “como fazer” ou de “procedimentos” puramente
técnicos, mas é uma escolha influenciada pela maneira que o pesquisador entende as relações,
observa o mundo e situa-se na vida.
A minha maneira de conviver, de observar, de trabalhar, de estar no mundo e com ele
interagir de forma dialética, aprendendo sempre e estando atenta às diferentes maneiras de ser
e agir das pessoas, foi fundamental na decisão pelo trabalho com a pesquisa qualitativa.
Compreendi que essa abordagem forneceria possibilidades de conhecer meu problema de
pesquisa, com uma metodologia coerente com a minha filosofia de vida, com o meu
entendimento e percepção sobre as relações, as pessoas, as palavras, a vida, enfim.
A escolha por proceder a uma investigação qualitativa não foi aleatória. Tal opção tem
muito a ver com minhas origens, revelando de onde vim, para onde fui encaminhando minha
vida e qual a intencionalidade que tenho ao pesquisar os diálogos das crianças. Com esse
estudo, consegui compreender que um tema passa, inevitavelmente, por questões subjetivas.
Dessa forma, quando minhas indagações acerca da infância sempre eram recorrentes nas
questões da linguagem e das interações, percebi que minha intenção era resgatar a escuta
atenta para com os enunciados infantis.
A criança é cidadã atenta e observadora privilegiada do processo escolar, na medida
em que está iniciando suas impressões sobre o que é a escola, sobre o que é ser criança na
escola. Isso abre possibilidades para que se possa ouvir com respeito o que a criança diz, não
banalizando seus discursos, nem infantilizando o discurso do profissional, mas realizando,
assim, um encontro dialético entre a criança e o adulto que reconhece nessa criança alguém
que é cidadã de seu tempo.
A forma como a criança se expressa revela elementos de natureza cultural, social,
econômica e histórica, portanto a expressão que se manifesta na enunciação infantil é uma
maneira de entender os cidadãos dessa faixa etária. Que a criança na sociedade
contemporânea tem voz é facilmente perceptível até nas questões suscitadas pelo senso
comum; entretanto, ter voz com ouvidos atentos a escutá-la e entendê-la na sua
particularidade é o que talvez mais me instigou. Considero, como afirmei no início dessa
dissertação, que minha subjetividade se manifesta nessa escolha, já que eu fui uma menina
que aprendeu a dialogar não só com as palavras.
Muito se fala sobre a criança na contemporaneidade e, de fato, a criança tem sido
protagonista de inúmeras cenas da vida cotidiana. Nessa pesquisa, em que o outro é meu
interlocutor constante, pude olhar e ver, escutar e ouvir essa criança e assim refletir sobre o
meu tema de estudo e sobre quais as formas que tenho, dentro da pesquisa qualitativa, de
compreendê-lo, de interpretá-lo. Essa abordagem metodológica busca o sentido da trama que
se forma no ambiente pesquisado, em que nada é neutro, nem estático. Nessa perspectiva, a
interpretação tem papel fundamental, pois na abordagem qualitativa não há produção isolada
de dados, mas sim uma preocupação com a construção de uma leitura dos episódios e
fenômenos que aconteceram em um determinado momento, em um determinado contexto
com os sujeitos, em um espaço de tempo.
Desse modo, nada pode ser desconsiderado. A interpretação tende a ser compartilhada,
na medida em que o pesquisador não está sozinho, conta com os sujeitos, com as leituras, com
as experiências de vida... Tudo isso contribui para a visão que determinará a interpretação. Os
significados são construídos através das interações diárias.
Em seu texto Etnografias e Pesquisas Qualitativas: crises da Modernidade e seus
impactos, Sônia Clareto (2004, no prelo) vai além da discussão – em parte superada – da
supremacia entre pesquisa qualitativa e pesquisa quantitativa, sublinhando que, nas Ciências
Humanas, as abordagens qualitativas, chamadas também de Pesquisas Interpretativas,
apóiam-se em argumentos extraídos do universo humano. Universo este impregnado de
emoções, ideologias, sensações e de outras tantas características, porque o ser humano é
ilimitado em sua maneira de ver, reagir e lidar com o mundo e os eventos que nele ocorrem.
Concordando com a expressão de Nietzsche que o conhecimento é “humano,
demasiadamente humano”, Sônia Clareto fornece subsídios para os discursos da
contemporaneidade, que apontam para “o fim de todas as certezas” (2004, p.13). Assim, a
interpretação é parte essencial na busca pelo conhecimento, que encontra subsídios na
pesquisa de cunho qualitativo, na medida em que a investigação da realidade é um importante
referencial.
A cultura humana ocupa espaço privilegiado na investigação qualitativa, uma vez que
é com ela e através dela que há a possibilidade de interpretação, compreensão de uma
realidade, de uma situação, de um problema de pesquisa, enfim. Isoladamente, não importarão
quais as técnicas e os métodos utilizados no desenvolvimento do estudo, mas sim o esforço
intelectual do pesquisador, que se expressa através da descrição da experiência interpretada de
forma profunda, evitando a explicação pura e simples. Aqui, remeto-me à questão do método
de pesquisa postulado por Lev S. Vygotsky, em A Formação Social da Mente (1994) em que
o autor russo teve a preocupação em buscar uma metodologia que fosse realmente capaz de
entender os fenômenos na sua gênese, na sua origem.
De acordo com os pressupostos vygotskyanos, nas Ciências Humanas, a descrição dos
fenômenos deve estar aliada à sua explicação. Dessa forma, ao ouvir o outro que comigo
participa da pesquisa, vou descrevendo aqueles eventos e, ao situar o contexto histórico-
cultural, inserindo os acontecimentos na sua lógica social, vou explicando sobre o fenômeno
do qual participei.
Nessa pesquisa que realizei com crianças, na escola, muito mais do que conceituar o
que foi visto e vivido, importou-me compreender os porquês do cotidiano infantil, buscando ir
além de tentar encaixar os acontecimentos da pesquisa em categorias. Assim, entendo que a
dinâmica social é repleta de manifestações, às quais vou encontrando formas de compreender.
Muito mais do que me assumir como aquela que foi à escola e que agora retorna à Academia
para ser “porta-voz” do outro com os muitos discursos dos outros incorporados, interessa-me
acolher, colocar-me perto na experiência partilhada.
Ao me aproximar das manifestações, obviamente selecionei eventos que a mim faziam
sentido, eram pertinentes às questões da pesquisa, portanto não posso me ausentar da
responsabilidade de, como participante, interferir diretamente em alguns momentos, como no
segmento a seguir, em que a professora da turma do CA 46 recolhia e colocava no varal as
atividades que as crianças estavam terminando de fazer, respondendo com um comentário
para cada trabalho, para cada criança e eu, como pesquisadora, tomo uma fala dela [hoje
faltou muita criança] como mote para mudar o assunto e falar da quantidade de crianças na
sala. 6 CA4 e CA5 são denominações para as turmas da escola de Educação Infantil da escola onde fiz a pesquisa. Trata-se de uma escola cuja organização curricular se dá por ciclos de formação, nos quais as crianças são organizadas em turmas pela idade. CA4 e CA5 são, portanto, siglas para Classe de Alfabetização de 4 e 5 anos. Cabe ressaltar que a escola utiliza tal denominação - Classe de Alfabetização- em função de sua organização em Ciclos. Ao longo do trabalho me utilizarei dessas siglas para referir-me às turmas pesquisadas.
Professora: - Oh Júlia7, vamos colorir, né Júlia? Júlia também tá demorando...
(...) Hoje faltou muita criança. Faltaram 6.
Pesquisadora: - A sua sala é cheia, né? Tem muita criança!
Professora: - São 17, aí quando vêm todos fica apertado. Ali oh [mostra] eu tenho que arredar
a mesinha pra cá pra colocar dois, mas não vêm todos... Tem dia que vêm todos.
Pesquisadora: - Nossa! 17 é muita criança...
Daniele: - Tia, tia, acabei [mostra o trabalho]!
Pesquisadora: - Olha lá!
Professora: - Que lindo! Tô gostando de ver...(...)
Pesquisadora: - Eles não vêm todos quando tá fazendo frio?
Professora: - Às vezes não... No dia que vêm todos tem que ocupar até essa mesa que você
está.
Maria Laura: - Tia, acabei!
Professora: - Olha que lindo! Deixa aí que já vou pegar.
A pesquisa qualitativa permite a intervenção, visto que, na medida em que também
sou participante da investigação, coloco questões e interfiro. Nessa perspectiva metodológica,
a ênfase na atividade do pesquisador é grande, dada a importância de seu papel, já que sua
participação dá suporte para compreender os fenômenos do lugar que ocupa. No episódio
acima, quis destacar que, em algumas situações observar e interpretar acontecem
simultaneamente para o pesquisador, de forma que a interferência ocorre imediatamente.
Assim, entendo parte da intervenção feita na situação acima, ainda que, a princípio, possa
parecer algo completamente descontextualizado das discussões até agora feitas.
7 Assim como o nome Júlia, os demais nomes utilizados nesta pesquisa são fictícios, visando preservar a identidade dos participantes.
Eu, como pesquisadora, me encontrava incomodada em um canto da sala de
atividades, sem muita (nenhuma) mobilidade para me deslocar com o vídeo, acontecimento
este que influenciava diretamente meu olhar. Quando a professora faz considerações sobre o
trabalho das crianças, comentando que, naquele dia, seis crianças tinham faltado, aquele
evento fez sentido para mim - caso todas estivessem presentes, como ficaria a sala??? - daí
começo a pensar no evento e interfiro na mediação entre as crianças e a professora, pois é
facilmente perceptível que nenhuma criança se manifesta em relação aos colegas que
faltaram, ou tentam responder ao que pergunto à professora. As crianças e também a
professora estão concentradas em terminar a atividade e organizar sua exposição no varal da
sala. No transcorrer desse movimento, venho eu, pesquisadora, com um tema
descontextualizado para eles, embora extremamente relevante para mim - que tinha ligação
direta com as crianças presentes e ausentes naquele dia e o espaço destinado à sala para a
educação infantil. Minha intencionalidade era, portanto, aprofundar a discussão sobre a
dinâmica da turma com um número de crianças grande, em um espaço físico reduzido.
Ao assumir que naquele momento tive a intenção de direcionar o diálogo, assumo
minha condição de sujeito na pesquisa, que interfere e não deixa sua subjetividade fora do
estudo que faz. Quando assumi minha subjetividade na intervenção realizada, revelei-me
ainda mais inteira na pesquisa, permitindo-me ir além e indo buscar na literatura palavras
outras para dizer sobre a experiência de estudar.
Ao final só palavras a compor, a decompor e a recompor. O estudante tem que estar à altura das palavras que lê e que o lêem, que escreve e que o escrevem. Tem que fazer com que essas palavras estraçalhem e façam estalar as palavras preexistentes, as já lidas, as já escritas. Estudar: combate das palavras ainda não lidas contra as palavras já lidas, das palavras já escritas contra as ainda não escritas. O estudante lê, e escreve, por fidelidade às palavras. Aí, nessa fidelidade, algo (se) passa (LARROSA, Jorge. 2003, p.85).
Dessa forma, voltei meu olhar ao discurso poético feito por Jorge Larrosa (2003) sobre
o estudar e o estudante e assim entendi porque Bakhtin (1992) afirmava que toda obra com
valor estético está ligada às condições reais da vida e que, ao contemplar o que foi produzido,
o olhar do contemplador é enriquecido. Ainda recorrendo ao discurso da arte, utilizado
amplamente por Bakhtin para discutir as questões das ciências humanas, digo que, ao fazer
uma opção pelo discurso, pelas palavras, não estou fugindo da cientificidade dos eventos,
porque “sei que a arte é irmã da ciência, ambas filhas de um deus fugaz. Que faz num
momento e no mesmo momento desfaz.”. Com esse trecho da música Quanta, que Gilberto
Gil compôs em 1995, relaciono a arte à ciência, da mesma forma que esta também pode estar
ligada à literatura, à música e a outros campos do conhecimento. Para aqueles que ainda não
acreditam na pesquisa qualitativa como algo científico e verdadeiro, essa afirmação pode soar
como licença poética, pois ainda restringem a produção de conhecimento a números, cálculos
e postulados imutáveis.
As escolhas feitas na vida acadêmica não reduzem minhas experiências no campo
pessoal. Minha subjetividade, minha postura diante da vida, sempre vislumbrando a mesma
como possibilidade, não ficou à margem na investigação. Realizando um estudo qualitativo,
não parti de questões derivadas de variáveis, mas sim de questões orientadoras que pudessem
auxiliar a compreensão dos acontecimentos em sua dimensão e complexidade históricas.
Como sujeito, não posso me furtar de assumir que minha forma de olhar é que vai dando
contornos aos dados e, assim, construindo as interpretações da pesquisa; digo isso, pois a
situação pesquisada é dinâmica e não artificial e, nessa condição, o olhar do pesquisador é
determinante.
Quando a opção por pesquisar na metodologia qualitativa me forneceu a possibilidade
de não estacionar naquilo que vejo, consegui enxergar além, entendendo a singularidade de
cada manifestação. E quando consigo dialogar com o acontecimento, consigo construir
significados, interpretando narrativamente as manifestações que os diálogos proporcionam.
Além disso, com a pesquisa qualitativa tenho a possibilidade de estar presente no ato
da enunciação sem fossilizá-lo, sem fazer dele um ato de fala estático, sem uma contrapalavra,
sem possibilitar o processo construtivo-interpretativo. Assim, o importante é a profundidade
da penetração e a participação do pesquisador e não a precisão de dados. Dessa forma, minha
opção por pesquisar os diálogos na educação infantil em uma perspectiva qualitativa se
justifica pela ação dos sujeitos em torno da própria questão, que é a linguagem em toda a sua
dinamicidade, reconhecendo que, ao acolher o discurso dos sujeitos, estou próxima, estou
junto nessa perspectiva, não há distanciamento.
Pesquisar qualitativamente é, antes de qualquer outra definição, respeitar o ser humano
em sua diversidade. É entender que há singularidade em cada uma das pessoas envolvidas e
que essa singularidade é construída na pluralidade; nas múltiplas etnias, nas pluri-
manifestações culturais, corporais, lingüísticas. É gostar de ser gente, como dizia Paulo
Freire: “Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas,
consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele.” (Paulo Freire, 2004, p.53).
Essa abordagem investigativa é vista como uma relação entre sujeitos, portanto dialógica, na
qual o pesquisador é uma parte integrante do processo investigativo. Assim, minha questão
que tratou dos diálogos entre os indivíduos que dividiam a sala de atividades de uma turma de
educação infantil pôde ser compreendida através dos estudos de autores que comungam da
perspectiva dialética em seus trabalhos.
Minha questão de pesquisa referiu-se aos diálogos que acontecem no espaço da sala de
atividades da Educação Infantil entre as crianças e entre a adulta e a criança, formado pela
triangulação em que o foco principal é a criança em suas interações com seus interlocutores e
a linguagem. A importância do diálogo para o ser humano é fundamental, já que homens e
mulheres são seres de linguagem, e através dela, constitui-se a consciência. Na perspectiva de
Bakhtin (apud Faraco, 1999) abrem-se possibilidades de compreensão do diálogo:
a vida é dialógica por sua natureza. Viver significa participar de um diálogo... – O homem participa deste diálogo com sua totalidade e em toda sua vida: com olhos, lábios, mãos alma, espírito, com todo o corpo e seus atos. Para uma re-elaboração... (BAKHTIN, apud FARACO, 1999, p.23).
Dentro desse panorama, pesquisar o contexto com apoio metodológico de estudiosos
ligados às pesquisas qualitativas com ênfase nos eventos histórico-culturais significou
mergulhar na rede de compreensões que tal contexto apresentou diante dos meus olhos.
Significou um encontro coerente entre a teoria e a metodologia, uma construção de um
texto composto das muitas vozes que dele ecoaram. Tudo que aconteceu durante a
investigação foi considerado, uma vez que não houve uma criação artificial de pesquisa.
Fui para a sala de atividades com meus instrumentos de observação em mãos e minha
questão em mente. Nesse processo, porém, algumas impressões foram se constituindo no
próprio campo, como, por exemplo, a questão do espaço como construção social e do
espaço como forma de linguagem, algo que não constava anteriormente em minha
pesquisa. Como tal questão se me apresentou como um dado significativo, percebi que não
podia ser negligenciado.
Nessa perspectiva, entendi que a tomada de decisão sobre aprofundar uma nova
questão no campo é também característica da pesquisa que dialoga o tempo inteiro com os
objetivos e com a dinamicidade que o campo fornece. Quando afirmo que o campo é
dinâmico, estou realmente afirmando que o campo pesquisado é como a vida, não tem uma
lógica, nem previsibilidade. Como Bakhtin afirma, viver é estar em convivência dialógica e
para a vida não há cerceamento, a vida é tudo que acontece diante de mim. Dessa maneira, se
objetivara ter uma compreensão mais aprofundada da questão que movera minha pesquisa, fui
abertamente ao encontro das experiências que o processo de investigação poderia mostrar-me.
Elegi como foco principal de investigação as crianças da educação infantil em suas
interações dialógicas e percebi em Mikhail Bakhtin e sua teoria enunciativa, em Paulo Freire e
sua crença na educação pelo diálogo e em Lev Vygotsky com seus estudos sobre a linguagem,
um encontro com o qual pude subsidiar a pesquisa teórico-metodologicamente. Nos textos de
Sônia Kramer (2002) sobre a ética na pesquisa com crianças, encontrei suporte para trazer
para a minha prática junto às crianças com as quais interagi o movimento teórico coerente
com a consideração da criança como sujeito, cidadã e participante ativa na história. Busquei,
embasada nessas questões, dialogar com as crianças acerca dos meus propósitos ali, no seu
próprio ambiente, a sala de atividades. Para isso, solicitei não apenas o consentimento dos
pais, mas também das crianças, a quem pedi autorização8 para que pudesse estar presente em
sua sala, compartilhando suas atividades e, caso necessário, as imagens e atividades realizadas
no período em que estivemos juntos.
Dessa forma, entendi mais coerentemente as questões metodológicas que me
auxiliaram na compreensão da trama, das relações dialógicas que se estabeleceram entre as
pessoas que dividiram o espaço da sala e que compuseram o corpo dessa pesquisa. Outra
experiência que se me apresentou de grande importância para a escolha de novos caminhos
foi o período em que realizei o Projeto Piloto em uma outra turma de Educação Infantil. Com
esse trabalho, que considerei minha inserção inicial no campo, fiquei frente à realidade da
pesquisa, às limitações, aos prazos, à quantidade de material produzido, tudo isso revelado no
exame de qualificação a que me submeti em fevereiro de 2005.
Considero relevante reafirmar que, para esse estudo, são fundamentais as idéias de
Bakhtin a respeito dos diálogos e sua complexidade; reafirmo também a importância de
entender as questões relativas à gênese do fenômeno propostas por Vygotsky nas
8 As autorizações às quais me refiro constam como anexo desse trabalho e foram realizadas pelas crianças através de desenhos que indicavam seu consentimento em relação à pesquisa.
investigações qualitativas. De acordo com esse autor, a presença do outro é peça chave para a
compreensão do desenvolvimento e, porque não dizer, da aprendizagem, da cultura, das
relações, enfim do conhecimento. Paulo Freire, com seu profundo envolvimento em aspectos
sociais, culturais e também com o conhecimento vivido e compartilhado na solidariedade e
respeito ao outro, é um autor dialógico por excelência.
Assim, Paulo Freire representou, nesse estudo, o meu reencontro com a leitura desse
teórico brasileiro, o que para mim foi de extrema importância para reafirmar a crença na
educação como significado da possibilidade de diálogo entre os indivíduos. A interlocução
com seus escritos contribuiu para esse meu diálogo que se pretendeu solidário e acolhedor
para com a diferença, para com o outro.
Situada em uma corrente qualitativa, que decorre dos pressupostos teóricos dos russos
Vygotsky e Bakhtin, a metodologia de pesquisa que adotei compreende o psiquismo como
sendo construído nas relações sociais; também entende a linguagem como fator indispensável
na constituição do ser humano e, por conseqüência, na interpretação dos fenômenos dos quais
participa. É um movimento dialético em que o observador vai além de ser alguém neutro,
situa-se e coloca-se como sujeito, visto que muito daquilo que deseja investigar pode estar
relacionado com sua história de vida, suas experiências.
A psicologia sócio-histórica entende que os indivíduos se constroem na relação
dialética com seus semelhantes e com o meio cultural, em que também se encontram as
relações materiais, que determinam e, concomitantemente, são determinadas pela ação de
mulheres e homens. Nesse processo de constituição, o indivíduo se apropria das significações
social e historicamente produzidas e, vivendo em um espaço, com sua história particular,
atribui sentidos pessoais às suas experiências sociais.
Para Bakhtin, o foco de estudo nas ciências humanas é o ser humano que se expressa,
que fala; com isso, entende que o diálogo é essencial, não somente face a face, mas entre
diversos produtos culturais. Sendo assim, a observação, que é tão recorrente na pesquisa
qualitativa, ganha novos contornos, já que o pesquisador, ao observar, não só participa, como
também interpreta. A observação, nessa perspectiva, é plural: vozes, gestos, imagens,
silêncios... “refletem e refratam a realidade.” (BAKHTIN, 1992, p.41).
Vygotsky (1994) aponta para a necessidade de examinar historicamente o evento:
“estudar alguma coisa historicamente significa estudá-la no processo de mudança: esse é o
requisito básico do método dialético.” (p.85-6). O autor propõe que em uma pesquisa o estudo
histórico do comportamento seja sua verdadeira base e não somente um aspecto auxiliar. Com
crianças, principalmente, o importante é o processo pelo qual observamos o desenvolvimento
de uma tarefa durante a pesquisa. Muito mais que o final da operação, conhecer os meios e
métodos que foram utilizados durante a realização da mesma fornecem dados sobre o
desenvolvimento dos processos psicológicos superiores (p.98).
Propus como suporte teórico-metodológico as idéias de Vygotsky, Bakhtin e Paulo
Freire, conforme dissertado anteriormente. A opção pela comunhão do educador brasileiro
com os autores russos veio pela familiaridade com as palavras proferidas por eles, palavras
estas que não excluem o educador brasileiro Paulo Freire da corrente que tem no diálogo e na
interação a forma primeira de contato e compreensão do semelhante. Para Paulo Freire
(2001), seu discurso é “em favor do sonho, da utopia, da liberdade, da democracia é o
discurso de quem [...] não deixa morrer em si o gosto de ser gente.” (p.86).
2.2 Contexto, sujeitos da pesquisa, procedimentos metodológicos
A pesquisa em questão foi realizada em duas etapas em uma mesma escola da Rede
Municipal de Juiz de Fora, MG, situada na periferia da cidade. Tal instituição atende a
crianças de 4 anos até adolescentes na faixa etária que varia entre 14-16 anos, englobando,
portanto a maior parte da Educação Básica – a Educação Infantil e o Ensino Fundamental. Os
sujeitos da investigação foram, na primeira imersão no campo com o Projeto Piloto, as
crianças da turma de 5 anos - CA5- e suas professoras e a coordenadora pedagógica. Nessa
etapa, fiz observações e vídeo-gravações na sala de atividades, parquinho infantil, área
externa e gravei em áudio uma reunião pedagógica.
Após o exame de qualificação, redefini algumas questões da pesquisa, em que procedi
à redução dos espaços de observação, que, na segunda fase da pesquisa, limitou-se à sala de
atividades da turma de crianças de 4 anos – CA4 – e à professora da turma. Continuei
adotando como critérios metodológicos a observação interativa, a vídeo-gravação e descrição
dos vídeos.
Pesquisei em uma escola municipal que possui educação infantil e ensino
fundamental, ou seja, as etapas da educação básica pelas quais o município tem
responsabilidade legal. Essa instituição, embora com um projeto pedagógico único e com
objetivos bastante integradores entre os segmentos da educação, demonstrou ter, na prática,
grupos de professores definidos em função da etapa, fase ou segmento em que atuavam.
Dessa forma, os professores com formação em licenciaturas específicas e que ministram aulas
para os alunos maiores - da segunda metade do ensino fundamental, ou 3º ciclo - formam um
grupo; os professores, em sua maioria pedagogos, que atuam no 2º ciclo, embora com mais
articulação com os professores do 1º ciclo, não deixam de formar, também, grupos distintos.
Entretanto esses três segmentos da escola desenvolvem entre si algum diálogo em reuniões
periódicas.
Com a Educação Infantil é diferente. As professoras que trabalham com as crianças de
4 e 5 anos estão sozinhas, na verdade são uma dupla e não um grupo. Embora houvesse a
tentativa de coletivizar as discussões em reuniões e demais momentos em conjunto, as
especificidades da educação da infância faziam com que as professoras necessitassem de um
tempo somente delas para discutir e planejar as suas ações já que sozinhas representavam a
Educação Infantil da instituição. Além disso, a diferença na formação e no tempo de exercício
profissional também se constituíam como marcas de distinção entre tais profissionais.
A professora Graça, responsável pela turma onde realizei a primeira parte da pesquisa
- CA 5 - , possui uma longa experiência profissional, com mais de 15 anos de docência. Sua
formação inicial foi em Magistério no Ensino Médio e, em 2003, Graça decidiu retornar aos
estudos, no Curso Normal Superior, através de um projeto de incentivo à formação
desenvolvido em cooperação entre a Fundação Educacional de Além Paraíba – MG e a
Prefeitura de Juiz de Fora. Simone, a professora das crianças de 4 anos, possui uma trajetória
diferente, sua formação inicial se deu na Universidade Federal de Juiz de Fora, no curso de
Pedagogia, no qual foi monitora e bolsista na área de Educação Especial. Realizou, também,
um curso de especialização no Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, na área de
deficiência visual. Sua experiência profissional como professora de Educação Infantil é de 7
anos. O diálogo entre as professoras acontecia de forma profissional e madura sem que a
diferença na formação inicial impedisse o trabalho em parceria. Considerei relevante tecer
essas breves considerações acerca dos perfis das professoras, esclareço, entretanto que elas
não foram o meu foco de análise, mas sim as crianças em suas interações com os seus pares e
com as suas professoras.
Para pesquisar com as crianças, enfocando suas interações dialógicas com os colegas e
com a professora, busquei situar-me no cotidiano da sala de atividades de uma forma que vai
além da observação. Este ir além da observação pura e simplesmente é assumir minha posição
alteritária, participando do evento e me assumindo dentro dele, reconhecendo essa posição de
que estou ali, dele faço parte, mas preciso ter o momento de voltar ao meu contexto e
resignificá-lo. Isso quer dizer que o pesquisador, ao participar do evento observado, constitui-
se parte dele e, concomitantemente, possui o que Bakhtin (1992) denomina de posição
exotópica, que é o que o inclui naquele grupo, mas que conscientemente o reconhece como
pesquisador que tem a possibilidade de não só estar no evento em si, mas ir além do mesmo,
interpretando-o.
Foi importante, nessa experiência de observação mediada, interativa, apurar o olhar
para fatos de relevância, já que, como nos diz Robert E. Stake,
a princípio parece não haver história, quer dizer, nada que tenha relação com os temas, nada que permita acrescentar profundidade ao fato. Alguns investigadores encontram histórias onde outros não sabem como fazer, e este é um motivo de preocupação... O investigador com experiência busca o momento e um lugar tranqüilo para transcrever a observação durante o processo, para conservar sua efetividade9 (STAKE, 1999, p.61).
Na pesquisa qualitativa, além do olhar atento do pesquisador e da constante reflexão
acerca dos eventos que presencia, alguns instrumentos são fundamentais para que a
investigação ocorra de maneira mais próxima à realidade, ou seja, de forma a retratar o
vivenciado o mais fidedignamente possível. Por isso, o caderno de notas e as gravações com
suas posteriores descrições foram critérios metodologicamente adotados extremamente
válidos, visto que me auxiliaram na “segunda mirada”, no olhar mais apurado ao
acontecimento, podendo retornar a ele quando considerei necessário. É muito complexa a
tarefa de olhar a realidade, uma vez que essa realidade é um enunciado vivo e para cada
enunciado sempre há uma atitude responsiva, eu nunca fico neutra diante de um fato.
Realizei as observações nessa perspectiva discursiva, o que, por vezes, gerou em mim
tensão e muitas contradições. Entretanto, percebi que o fazer do pesquisador nunca é uma
atividade individual nessa perspectiva. Dessa forma, assim que saía da sala de atividades,
registrava no caderno de notas as minhas primeiras impressões sobre o campo e, depois, com
9 Tradução livre feita pela autora do espanhol.
as descrições dos vídeos, ia produzindo os dados, enfatizando a compreensão e buscando
possíveis relações entre os eventos investigados.
Além de contar com o caderno de notas, tive como ferramenta de apoio a câmera
filmadora que se constituiu como instrumento de uso quase constante. Ressalto que, pela
exigüidade de espaço, não pude colocar a câmera em um tripé, tendo que ficar com ela em
minhas mãos, o que comprometeu a qualidade das imagens geradas.
2.3 Formas de análise
Em pesquisas qualitativas, a construção dos dados se dá no campo de investigação,
esta é uma afirmativa presente e inquietante para os pesquisadores não só no início da
pesquisa, mas durante toda a sua realização. Aproximar-me do tema de estudo sabendo que os
dados emergiriam no campo foi uma preocupação que se me apresentou. Contudo, o
entendimento de minha posição como pesquisadora, como ser social que tem em si as marcas
de sua realidade e imprime na pesquisa tais marcas, foi fundamental para dialogar com os atos
sígnicos que vivenciava e analisava.
Frente ao exposto, há de se pensar e considerar que, para que os dados sejam de fato
construídos durante a imersão do pesquisador em seu campo de estudo, a presença do
investigador no campo deve ir além de apenas ser mais um no local em que pretende estudar e
observar o transcorrer dos acontecimentos.
Optei por trabalhar teórico e metodologicamente com os autores que privilegiam o
diálogo, a interação e o desenvolvimento humano em uma perspectiva dialética. Em função de
tal escolha, a imersão no campo para construir os dados da pesquisa se constituiu como uma
imersão real e interativa. De acordo com Marília Amorim (2004, p.223), “o encontro com o
outro, em seus obstáculos e possibilidades, constitui um dos eixos da produção do saber”.
A opção pela metodologia, como já afirmei várias vezes anteriormente, é uma escolha
que ultrapassa os campos puramente técnicos de realização de uma pesquisa. Dessa forma, ao
privilegiar uma perspectiva interativa de conhecer meu problema de estudo com as crianças
da educação infantil, fui construindo e dialogando com meus dados no campo, na escrita das
notas e durante as descrições dos vídeos.
Essa característica é facilmente perceptível em todo esse trabalho. A coerência em ter
o diálogo como fio condutor dessa dissertação, quer seja com os autores que a embasam
teórico-metodologicamente, quer seja com os autores com os quais ao longo da vida fui
buscando um diálogo através da literatura, quer seja com minha própria história e, agora como
pesquisadora, quis dialogar com os dados e analisá-los ao longo de todo o trabalho.
Tal opção foi feita por trazer partes/fragmentos de minhas análises ao longo de todo o
texto, de maneira que o leitor fosse se familiarizando com a pesquisa e também com a
pesquisadora, acompanhando a trajetória, o seu desenvolvimento. Sendo assim, não há um
capítulo específico destinado à análise de dados. A pesquisa vem sendo apresentada em um
diálogo que se estende ao longo dos capítulos que escrevi. Acredito que, dessa maneira, os
dados e as análises ganham sentido imediato, na medida em que busco intermediar os dados
de campo com as interlocuções teóricas. A troca é constante, assim como foi toda a proposta
de desenvolvimento desse estudo.
Produzir os dados da pesquisa e com eles buscar a compreensão naquilo que Bakhtin
esclarece como compreensão ativa foi uma maneira de ir além dos meus horizontes,
entendendo com o outro e na perspectiva do outro. Constituiu-se como uma possibilidade de
resignificar meu olhar sobre as coisas, sobre os fatos, sobre o mundo, enfim. Bakhtin apud
Freitas (2003) esclarece o encontro entre pesquisador e os participantes da pesquisa,
Formulamos para a cultura alheia novas perguntas que ela não havia ainda se colocado, buscamos sua resposta às nossas perguntas e a cultura alheia nos responde revelando-nos seus novos aspectos, suas novas possibilidades de sentido. Sem formularmos nossas próprias perguntas não podemos compreender criativamente nada que seja outro e alheio (claro que as perguntas devem ser sérias e autênticas). Em um encontro dialógico, as duas culturas não se fundem, nem se mesclam, cada uma conserva sua unidade e sua totalidade aberta, porém ambas se enriquecem mutuamente (BAKHTIN, apud FREITAS, 2003, p.10).
A forma com que analisei os dados seguiram os pressupostos da pesquisa sócio-
histórica que, de acordo com Freitas (2002), consiste em compreender os eventos buscando
ligações entre o individual e o social,
[...] Ao se analisar o material colhido no campo, procurando compreender o que emergiu numa situação de observação ou de entrevista, ou ainda numa análise de artefatos, é que se percebem os pontos de encontro, as similaridades como também as diferenças, a particularidade dos casos (FREITAS, 2002, p. 26).
Ao aceitar a pluralidade de vozes das crianças inserindo-me no mundo da infância
naquela sala de atividades não instaurei o caos metodológico, nem infantilizei meu olhar e
minhas palavras para entender as palavras das crianças; o que fiz foi o esforço de
compreender genuinamente a infância na sua complexidade e nas muitas dimensões que essa
fase da vida possibilita investigar.
No corpo desse capítulo, procurei fazer reflexões sobre a pesquisa qualitativa que
sustentou metodologicamente esse estudo. Além de discutir acerca das particularidades dessa
investigação, fiz ligações entre a perspectiva metodológica e os aportes teóricos condizentes
com a mesma. Dessa forma, fui elaborando o texto na busca pelo encontro dos teóricos da
linha histórico-cultural com as possibilidades metodológicas coerentes com a estrutura
dialógica que objetivei desde o início desse trabalho.
Relatei a experiência metodológica, colocando-me como pesquisadora e sujeito da
investigação em uma troca contextual constante que não acabou no campo e que também não
se encerra com a escrita desse trabalho. No próximo capítulo, discuto as idéias de Mikhail
Bakhtin e Paulo Freire, procurando articulá-los com os dados empíricos da pesquisa.
3 CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA EM DIÁLOGO COM MIKHAIL BAKHTIN E PAULO FREIRE
... Entendi que as palavras daquele modo agrupadas dispensavam as coisas sobre as quais versavam.
ADÉLIA PRADO
A palavra para mim é a coisa mais sutil que existe.
ADÉLIA PRADO
A intenção desta pesquisa foi compreender a linguagem como forma de vinculação
entre homens e mulheres com tudo que é humano, social, científico e cultural, investigando
se os diálogos presentes em uma escola de educação infantil são reveladores da concepção
de educação da infância que orienta a prática pedagógica. Muito mais do que estudar a
linguagem como campo de conhecimento em si, utilizei os seus estudos para responder às
questões que guiaram essa pesquisa.
A compreensão da linguagem, do diálogo e das interações como um processo histórico
e social implicou, ao longo do texto, a abrangência de algo substancial, ou seja, a união
entre a consciência individual e o mundo cultural.
Para isso, reflito, neste capítulo, sobre aspectos da linguagem, tomando como
referência Mikhail Bakhtin e Paulo Freire, por entender que tais autores privilegiaram em
seus estudos a discussão dessa capacidade própria dos seres humanos como fundamental
na compreensão da dinâmica social que interfere diretamente nas questões individuais.
3.1 Palavras em interação – Mikhail Bakhtin, escola e infância.
A partir do reconhecimento de que a linguagem é propulsora das interações nas
experiências humanas, intensificaram-se as reflexões sobre este fenômeno essencialmente
humano que, durante muitos anos, foi considerado e estudado apenas como fator biológico. A
linguagem faz a mediação de todas as experiências produzidas sobre o mundo e no mundo.
Torna-se difícil pensarmos a construção de categorias explicativas sobre os fenômenos
sociais, dos quais a educação faz parte de maneira relevante, sem considerarmos seriamente a
necessidade de uma reflexão que inclua o complexo social da linguagem como parte
indissociável do conhecimento e da visão que temos sobre as coisas, sobre o mundo de modo
geral.
Em Ciências Sociais e especificamente em educação, a linguagem destaca-se por seu
caráter social, cultural e constitutivo. Linguagem esta que revela e desvela, que inclui
indivíduos em determinados grupos e os exclui de outros, linguagem que nivela socialmente,
linguagem que classifica, linguagem que embeleza, ou seja, traz à tona muito da vida em
sociedade.
A ciência social, na qual a linguagem está inserida, lida com realidades já nomeadas e
classificadas, portadoras de nomes próprios, nomes comuns, de títulos, signos, siglas
historicamente construídos, ou seja, é uma área de conhecimento em si e em constante
transformação. Sob o risco de valorizar, sem o saber, atos de constituição lingüística cuja
lógica e cuja necessidade ela ignora, a ciência social deve tomar como objeto as operações
sociais de nomeação e os processos de instituição através dos quais elas passaram. Todo fato
social é um fato histórico e vice-versa; todo pensamento histórico ou sociológico sofre
profundas influências sociais, daí a importância de a linguagem ser entendida em seu contexto
coletivo. Entender a significação da palavra historicamente é uma maneira de entender o
movimento da sociedade e tudo que está envolvido nesse processo.
Os diálogos, como operações sociais de amplos significados, podem ser exemplos
disso. Em um nível ainda mais profundo, a ciência social precisa estar atenta, estudando a
parte que cabe às palavras na construção das realidades sociais, quer seja em nível macro,
como nos discursos políticos, plataformas eleitorais; quer seja em nível micro, através dos
diálogos presentes na sala de atividades, conforme a proposta que caracteriza esse estudo.
A palavra é um signo social. A palavra em movimento, no diálogo, ganha contornos
que derivam das emoções, do contexto, do momento histórico. As palavras são mutáveis, uma
vez que sua existência está imbricada com as práticas sociais nas quais estão presentes. A
entonação dada conota valor ao que se quer dizer, o momento não poderá ser repetido, as
palavras uma vez ditas, para sempre ditas... A linguagem tem muitos significados que se
manifestam através do movimento do corpo, na entonação, no olhar, no silêncio.
Como atividade social que é, a linguagem pode ser entendida na concepção bakhtiniana de
uma prática social que exprime sensação de pertencimento, e sendo atividade social e
histórica será, também, ideológica. Essa plurisignificação, que é construída através das
relações sociais, vai aumentando gradualmente, à medida que o indivíduo é colocado frente a
várias experiências: enriquece-se – ou empobrece-se - no cotidiano, no contato com as
pessoas, com a comunidade, com a escola, com o mundo, enfim.
Não devemos entender a pluralidade de significados existentes nas palavras sendo
gestada autônoma e exclusivamente no âmbito da própria linguagem; vai além, ou seja, os
seus significados extrapolam os limites da lingüística como objeto de conhecimento
específico. Por estar presente na constituição dos sujeitos - que são datados, histórica e
culturalmente situados - a linguagem encontra-se em um constante mover-se. Viva que é,
habita o cotidiano dos indivíduos, fluido e heterogêneo, mudando significados e alterando
sentidos, criando e abolindo expressões.
Acredito que cabe aqui a diferenciação existente entre os conceitos de palavra, língua
e linguagem para a leitura desse texto na perspectiva dialógica a que o mesmo se propõe.
Tomando como fundamento premissas de Mikhail Bakhtin, exploradas por Ana Luísa
Bustamante Smolka10, adoto como compreensão de palavra a idéia de signo, língua como
sistema e linguagem como prática social em funcionamento. Cabe também esclarecer que
enunciação é uma produção histórica e, ao mesmo tempo, um acontecimento singular.
Portanto, ao fazer referência a tais conceitos, o significado dos mesmos são os que
anteriormente atribuí, em virtude da fundamentação adotada.
A língua é um sistema que está profundamente ligado às situações cotidianas da
sociedade, portanto manifesta as mudanças mais sutis, incorporando-as e exprimindo-as
através da linguagem, que é a atividade social, ou seja, é a língua em movimento. Tomo como
exemplo dessa relação da língua com o fazer social um episódio de uma vídeo-gravação
realizada na sala de atividades das crianças de 5 anos, onde fiz minha primeira imersão no
campo. Quero, com o destaque e análise desse fragmento, refletir sobre o caráter provisório
que algumas palavras assumem no contexto interativo – contexto este com profundas marcas
da sociedade contemporânea. Além de refletir sobre essa característica da língua, quero
também discutir sobre como as crianças se apropriam dessa fluidez da linguagem, utilizando-
se de expressões cotidianas em que a palavra proferida ganha outros contornos significativos.
No episódio a seguir, o verbo “errar” é utilizado por uma criança em um enunciado de
maneira diferente da sua usual utilização. Errar é sinônimo de fazer algo que não está correto,
no entanto, Marcos utiliza o verbo como sinônimo de deixar sossegado, esquecer, o que
exemplifica a movimentação que o enunciado pode fazer. 10 Conhecimento e produção de sentidos na escola: a linguagem em foco. In: CADERNOS CEDES, nº 35, São Paulo: Papirus, 1995, p.41-49.
Como Marcos havia faltado no dia anterior, fez a atividade de pintura depois dos
colegas. Ele ainda estava empolgado com os resultados das cores e formas, mas os colegas
não se interessaram muito pelos resultados dele, já que estavam em outra etapa da tarefa,
finalizando a atividade, cortando a moldura. Ainda assim, ele vai para a mesa onde estão
Victor, Edu e Mirela.
Marcos: - Aqui, Victor, aqui, Victor, aqui Mirela [mostra a colagem].
Edu: - Deixa eu ver!
Marcos explica: - Olha lá, Victor!
Professora: - Cuidado para não borrar.
Mirela: - Tem que cortar? Vai escorrer?
Professora: - É porque ele fez agora.
Marcos: - Mas o meu é diferente, o meu negócio é dois tubarão [sic]11.
Professora: - Toma, toma, Marcos, outra folha.
Mirela [com uma ponta de ironia]: - Tubarão aí na ponta?
Marcos [irritado]: - Ah, deixa oh! Me erra!
Mirela [retrucando]: - Não são dois tubarões e então eu falo...
A linguagem é um complexo social portador de uma legalidade própria. As várias
alternativas semânticas de um enunciado – em que coloco, como exemplo, a utilização do
verbo “errar” por Marcos e perfeitamente compreendido por Mirela no contexto enunciativo -,
somente se tornam possíveis através da interação efetiva com aquilo a que ele se refere, ou
seja, o mundo objetivo do qual ele fala. Não é possível que a linguagem produza em si
11 Advérbio latino que quer dizer assim, entretanto a utilização do termo se justifica na reprodução de uma fala, mesmo que esta contenha algum erro e concordância.
própria, isoladamente, a polissemia12; isso seria como admitir que um signo cria-se sozinho,
surge, aparece e, espontaneamente, comece a fazer parte da realidade enunciativa.
Como ensina Bakhtin (1992), todo dizer se orienta em um dizer anteriormente dito,
todo dizer quer e espera resposta. Quando Marcos se dirige a Mirela com a expressão “me
erra!”, ele se orientou em um dito anterior no qual o verbo errar significava ausência de algo
correto e então, de acordo com os novos enunciados os quais presencia no seu cotidiano,
ressignificou, mudando o sentido da expressão de maneira que mostra a sua insatisfação com
a interferência da colega.
Ao se apropriar da ação social presente na significação, Marcos e também Mirela –
que compreendeu a expressão e contra-argumentou: “Não são dois tubarões e então eu
falo...” – estão abstratamente lidando com os signos presentes na cultura e percebendo a
movimentação que os mesmos fazem, agindo no discurso, interagindo com as múltiplas vozes
que permitem que um diálogo se estabeleça.
Assim, o valor do diálogo está nas diferentes vozes que o compõem, expressando a
dinâmica dos signos, naquilo que é chamado de heteroglossia, ou as muitas vozes sociais que
se encontram em constante interanimação. Muitas são as rotas que um diálogo pode percorrer,
muitas as maneiras de ele se manifestar, muitos os caminhos, estradas e atalhos que a
linguagem em interação pode trilhar.
A essência da linguagem encontra-se no diálogo, possibilitado pela comunicação
verbal, que não se restringe apenas à fala em voz alta.
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (BAKHTIN, 1992, p.123) 13.
12 Por polissemia tomo como entendimento as variadas possibilidades de interpretação. 13 Negritos do autor
Para Bakhtin o enunciado é a unidade da comunicação verbal. A enunciação sempre
tem como destino o outro, mesmo que este outro não seja real, ou não esteja em uma situação
real de interação face-a-face. Como falantes de um mesmo código estruturado e socialmente
aceito, estamos com a linguagem em constante movimento; a língua não está petrificada,
morta na vida social.
Enunciação é produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor (BAKHTIN, 1992, p.112).
Bakhtin é um autor essencialmente dialógico. Seus estudos, compartilhados em seu
Círculo14, demonstram a coerência de sua preocupação materializada na ação de compartilhar,
de ter os pensamentos respeitados e as contradições suscitadas pelo diálogo encaradas como
processo necessário para o desenvolvimento das obras que produz. A idéia recorrente é a de
que a obra produzida não tem um único dono, pois somos todos parte das relações que
estabelecemos ao longo da nossa existência. O outro representa a possibilidade de um
processo de interlocução infinito.
Carlos Alberto Faraco (2001, p.125) sustenta que o valor agregado por Bakhtin à
palavra do outro é determinante, tanto é que ouve e escuta o que o outro tem a dizer: “...os
outros constituem dialogicamente o eu que se transforma dialogicamente num outro de novos
eus”.
A compreensão da palavra do outro nunca é unívoca, sempre gera diversidade daí a
palavra alheia ser motivo de preocupação e cuidado, uma vez que a linguagem possui caráter
constitutivo nos indivíduos. Atentando para esta característica, há a necessidade de adoção de
14 Grupo de pensadores de diversas áreas de conhecimento, importantes interlocutores de Bakhtin na construção do entendimento da linguagem como conjunto das vozes sociais portadoras de valores influenciados pelo meio cultural, espaço temporal e geográfico, que está em intensa atividade e constante transformação.
uma ética epistemológica15, uma ética para com o conhecimento que a palavra do outro tornou
possível construir. Como Bakhtin entende os diálogos? Em seu livro Estética da Criação
Verbal, Bakhtin (2000) refere-se aos diálogos reais como “a forma mais simples e mais
clássica da comunicação verbal.” (p.298). O conceito de diálogo, entretanto, pode ser melhor
entendido em Marxismo e Filosofia da Linguagem no qual Bakhtin/Voloshinov esclarece :
o diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra ‘diálogo’ num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja (BAKHTIN, 1992, p.123).
Discutir a importância da linguagem, especificamente na infância, é um ponto que a
partir de agora será tratado de forma mais próxima, buscando, na literatura especializada e nos
autores que se dedicaram ao estudo deste tema, recursos para que a compreensão seja efetiva.
Tive como objetivo nessa pesquisa o entendimento das relações dialógicas que
aconteceram entre os atores de uma instituição de Educação Infantil, cujo interlocutor
principal é a criança, ator e autor de seu desenvolvimento. É possível que o processo dialógico
desenvolvido na sala de atividades tenha promovido a integração dos múltiplos aspectos que
envolvem a cognição, colaborando para que a criança se reconheça como alguém que importa
e faz parte do mundo. Partindo desse pressuposto, tanto a humanidade quanto o saber
científico avançam à medida que a multiplicidade de vozes tem espaço para interagir. Dessa
forma, entendo que a escola é um local privilegiado de mediação, troca entre os pares,
interação, tudo isso suscitado pela linguagem, pelo diálogo.
15 Definições retiradas do Dicionário de Filosofia. RUSS, Jacqueline. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Scipione, 1994. Ética – parte da filosofia que trata do bem e do mal, das normas morais, dos juízos de valor (morais) e opera numa reflexão sobre este conjunto. Tem, igualmente, por objetivo a determinação do fim (objetivo) da vida humana assim como dos meios para atingi-lo. Epistemológica - palavra derivada de epistemologia, que é teoria do conhecimento.
De acordo com as proposições bakhtinianas, a fala existe somente porque há o
diálogo, sempre há um ir e vir, sem predominância ou superação de um pelo outro. O
enunciado é um elo imprescindível na corrente da comunicação verbal.
A fala só existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um indivíduo: do sujeito de um discurso-fala [...]. As pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras, trocam enunciados constituídos com ajuda de unidades da língua – palavras, combinações de palavras, orações (Bakhtin, 2000, p.293-7).
Assim é a dialética de Bakhtin, que nasce do diálogo e a ele retorna sempre acrescido
de algo; trata-se de uma dialética dialógica. O papel do outro, do meu semelhante, é
fundamental para a formação da minha subjetividade, logo a necessidade de entender a
importância do conceito de exotopia16 - que é o excedente de visão pelo lugar que ocupo -
desenvolvido por Bakhtin. A partir de tal conceito, compreendo a limitação da condição
humana e também a necessidade de um outro, que é aquele que permite que eu me reconheça,
tenha consciência de mim mesma, através de seu olhar a mim lançado.
As trocas interativas, a constituição da consciência e a apropriação cultural devem
fazer parte da rotina escolar, para que, na existência de cada criança, ela possa afirmar: eu
participo, ocupo um lugar, sou indivíduo e também faço parte do coletivo. É assim que
concebo a escola de educação da infância.
Tal crença pautou a escolha dos teóricos que enfatizam interação, dialogicidade,
mediação, trocas culturais - aspectos anteriormente mencionados – para subsidiar o
entendimento das questões dessa pesquisa. Encontrei nos textos de Mikhail Bakhtin e Paulo
Freire a possibilidade de entendimento de minhas inquietações, já que tais autores são
conhecidos no meio acadêmico por consolidarem, em suas obras, aspectos extremamente
pertinentes às questões de investigação que busquei entender. Grande parte do referencial
16 De acordo com as proposições bakhtinianas, o conceito de exotopia corresponde ao fato de que o meu olhar sobre o outro não coincide com o olhar que o outro tem de si mesmo, exatamente porque vejo no outro aquilo que ele não consegue ver.
teórico-metodológico dessa pesquisa teve suporte, de maneira sistemática e constante, nos
estudos feitos pelos dois teóricos. Como Paulo Freire entende os diálogos? Através da
articulação e do conflito, sempre na perspectiva de que o diálogo ocorra entre as pessoas.
A tomada de referência de autores cujos estudos são centrados nas perspectivas de
Bakhtin, Freire e, também, Lev S. Vygotsky – autor com quem dialogo no capítulo
subseqüente - forma um quadro teórico que possibilita o entendimento da dinâmica dos
processos dialógicos, das relações de interação que se estabelecem no cotidiano, na rotina
escolar das crianças menores de seis anos.
Alguns pesquisadores dedicam seus estudos à questão da linguagem e infância
mostrando que esta assume lugares diversos, nas diversas situações enunciativas como: Jobim
& Souza (2003) nas pesquisas sobre a subjetividade, infância e linguagem; Pereira Ribes
(2003) e seus estudos sobre infância e a linguagem da mídia; Saravalli (2005) com a reflexão
sobre os diálogos que as crianças de uma sala de educação infantil travavam a respeito de seus
direitos, Britto (2005) e sua pesquisa sobre competência comunicativa das crianças de uma
creche universitária e Kramer (2003) que discute desde 1999 a formação dos educadores de
infância e, mais recentemente, os discursos dos gestores da educação infantil, revelando parte
das identidades que a estas professoras são atribuídas.
As pesquisas em educação infantil, formação profissional e o lugar da criança como
protagonista da infância têm seu papel ampliado no Grupo de Trabalho 7 – GT7 - de
Educação Infantil da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação –
Anped. Trabalhos como de Alessandra Mara Rotta de Oliveira (2001), que trata da relação
entre o desenho da criança e a infância; de Heloisa Helena Azevedo e Roseli Pacheco
Schnetzel (2001), que estudam a necessidade da formação dos profissionais de Educação
Infantil; de Sílvia Helena Vieira Cruz (2004), que trata da importância de ouvir a criança
sobre sua experiência educativa, demonstram que a criança tem sido estudada na perspectiva
de alguém que deve ser considerada de maneira mais efetiva na prática educativa.
A importância da linguagem no desenvolvimento da criança é indiscutível, sendo que
a relação significativa de interação com adultos e também com os pares de sua idade é ponto
fundamental. Reafirmo a compreensão que tenho de que na escola ocorrem trocas interativas
entre crianças e entre adultos e crianças, entendendo-se que, nesse local, a linguagem ocupa
espaço em todos os momentos do cotidiano escolar das crianças.
As trocas interativas, juntamente com os discursos dos profissionais, evidenciam
algumas concepções de infância que se traduzem nas práticas pedagógicas da instituição
escolar. Isso pode ser demonstrado através de um episódio retirado de uma vídeo-gravação
realizada na sala17 de atividades de Educação Infantil18.
Professora: - Mas para ouvir é preciso fechar a boquinha, senão não dá para falar, não! Vou
dar a folha colorida e o que vai fazer? Quem quer falar o que vai fazer?
Victor [levantando da cadeira]: - Fazer o quadrinho.
Professora: Tá;[automaticamente responde a Victor, que explicou parte da atividade] mas o
quê, como é que a gente faz primeiro?
As crianças falam juntas:- Recorta, cola, dobra.
Professora: - Não, dobrar eu vou dobrar, eu vou dar a folha dobrada. Vou cortar folha por
folha e vou dar metade da folha.
Muitas crianças falam, Victor fica em pé e Mirela vai para a mesa da professora.
17 Turma de Educação Infantil composta por crianças na faixa etária de 5 anos de uma escola municipal de Juiz de Fora/MG 18 Utilizo na descrição desta vídeo-gravação a reprodução de alguns elementos próprios à linguagem oral, na tentativa de facilitar a compreensão de minha escolha por este recorte, onde há a nítida repetição da fala da professora quando, na sala de atividades, as crianças são solicitadas a explicar como será executada a tarefa proposta .
Professora:[demonstrando impaciência com a movimentação das crianças] - Ah não, assim
não! Vai assentar, Mirela.
Victor: - Tia, a gente vai .... [não diz] hoje?
Professora: - Eu quero ouvir primeiro, vocês não falaram até agora o que vai [sic] fazer
depois que entregar a folha.
Léo: - A gente dobra, dobra, depois põe palitinho...
Professora: - Não! Ahn? [ a professora expressa dúvida e volta sua atenção para a explicação
de Léo]
Léo: - Põe o palitinho, cola.
Professora: - Primeiro faz o quê com esta folha aqui?
Crianças: - Cooooola.
Professora [mostrando as folhas]: - E se esta estiver maior que esta daqui? O que faz?
Crianças: - Cooorta.
Professora: [mostrando com as mãos] - Corta a beiradinha que estiver maior, cola e depois
faz o quê?
Crianças: - Põe o palito.
Professora: - Põe o palito, muito bem. Então quem eu for entregando, já vai pegando a cola.
Na atividade relatada, pude perceber o uso da linguagem como direcionamento e
forma de poder que a adulta exerce sobre a criança. A conversa foi conduzida até que a sala
inteira em coro fosse repetindo as explicações dadas pela professora Graça para a execução de
tal atividade, que se constituiu como um monólogo em várias vozes, ou a “ladainha” que
Paulo Freire descreve de maneira tão clara. Refletindo sobre as proposições de Paulo Freire,
entendo que a educação como possibilidade de liberdade, educação que possibilita ver além
dos limites sociais não pode se prender a uma seqüência de atividades a serem executadas sob
uma única voz. O circular de opiniões e as variadas possibilidades de realização de um
trabalho podem ser considerados, também, com as crianças pequenas.
Embora haja por parte das crianças outras maneiras de interação, o que foi
predominante, naquele momento, naquela sala, foi a fala da professora. Isso, para mim, é
profundamente revelador de como a percepção dessa profissional passa por momentos nos
quais apenas a sua opinião é válida, demonstrando que a palavra da criança não é bem vinda
em qualquer momento, ou pelo menos nos momentos em que há atividade “escolarizada”.
Contudo, em outras situações, presenciei as crianças sendo de fato ouvidas e consultadas pela
professora, principalmente quando estavam fora da sala de atividades. Encontro, no episódio
de diálogo entre professora e crianças da turma em que desenvolvi meu projeto piloto de
pesquisa, suporte para tal afirmação.
Vejo que, diante de tais questões, tão presentes no cotidiano escolar, a pesquisa de
cunho qualitativo surge como alternativa para que as ciências sociais, nesse caso
especificamente a educação, possam compreender e interpretar o papel que a linguagem
assume na construção das identidades sociais, dos processos de produção de significações que
acontecem na escola destinada às crianças pequenas.
Bakhtin (1992) situa os diálogos como indissociáveis ao ser humano e à constituição
da subjetividade. Segundo o autor, a comunicação conosco mesmos só é possível por
intermédio do olhar do outro. A nossa formação como ser humano depende da relação que
estabelecemos com nosso semelhante, portanto a consciência individual é construída mediante
a palavra dos outros.
O outro para Bakhtin não é um destinatário pacífico, cuja única função se resume em
compreender o locutor; sua atitude em relação à fala do locutor é sempre responsiva, ativa e
materializa-se na sua resposta (externa ou interna). É exatamente uma resposta e não uma
compreensão passiva que o locutor espera do outro a quem o seu discurso se dirige, resposta
esta que pode se materializar sob a forma de concordância, adesão ou objeção. Nessa
perspectiva, torna-se compreensível o que Bakhtin propõe como interlocução, uma ação na
qual não há espaço para o destinatário pacífico, portanto, no episódio anteriormente destacado
a interlocução bakhtiniana não foi observada.
Tal episódio demonstra que a professora conduziu as falas e não possibilitou que
emergisse entre ela e as crianças o diálogo entendido na concepção bakhtiniana, em que não
há palavra primeira nem última, porque as palavras em interação sempre geram a
possibilidade de outras, não havendo, assim, o encerramento; a corrente dialógica se mantém
viva. Na situação relatada, o que vi foi a palavra sendo usada como princípio e fim, ficando o
outro – no caso, as crianças – sem a possibilidade da contrapalavra.
Maria Teresa Freitas19 esclarece que o diálogo é a chave para a compreensão das
idéias de Mikhail Bakhtin, visto que sem ele a língua não existiria, da mesma maneira que
também não existiria a interação. Na interação há a necessidade de direcionar o enunciado ao
auditório social, na medida em que, quando falamos, temos em mente a quem nos dirigimos.
Daí a afirmativa de que todo enunciado é ideológico, como pôde ser observado no fragmento
acima. Ao direcionar cada passo da atividade sem possibilitar o posicionamento das crianças,
a professora demonstra que, naquele espaço, há alguém que sabe e outros que não sabem,
sendo que estes últimos são as crianças. Fiz a opção por repetir trechos do diálogo já
apresentado no episódio acima da professora com as crianças, para refletir sobre as palavras
proferidas por Léo sobre a atividade e a disposição inicial da professora para ouvir e escutar.
Professora: - Eu quero ouvir primeiro, vocês não falaram até agora o que vai [sic] fazer
depois que entregar a folha.
Léo: - A gente dobra, dobra, depois põe o palitinho... 19 Notas de aula durante a disciplina Processos de Pensamento e Linguagem ministrada pela professora no curso de Mestrado em Educação/Faculdade de Educação/UFJF/2004.
Professora: - Não! Ahn? [ a professora expressa dúvida e volta sua atenção para a explicação
de Léo].
Léo: - Põe o palitinho, cola.
Aqui, podemos inferir que a priori paira a concepção de criança como alguém que não
tem nada a contribuir e, nesse caso, Léo tinha se adiantado à professora na seqüência de como
a atividade deveria ser executada. A professora primeiro nega a fala da criança e, depois,
volta-se a ela e escuta o seu discurso sendo repetido. Essa análise encontra eco nas palavras de
Lisete Regina Gomes Arelaro (2005):
[...] muito da nossa cultura pedagógica e social, ainda está presa à concepção de que a função da escola é ‘preparar a criança para’ e não admite que ela, na condição de criança, já é muitas e variadas coisas. Defendem que as escolas as preparam para a cidadania e não admitem que elas já são cidadãs (ARELARO, 2005, p. 30-1).
Partindo dos princípios acima mencionados, pude depreender que o significado das
palavras resulta de processos culturais. No caso do episódio da sala de atividades em
destaque, a cultura escolar se consolidou considerando a professora como aquela que tem o
poder da palavra. A partir de então, percebi a importância da interação na dinâmica escolar, já
que possibilita às crianças e à professora novas significações acerca do mundo, mediadas pela
linguagem. Tal fato reafirma minha crença na pesquisa com crianças em interação e nos
diálogos entre crianças e professora em um universo vivo e móvel. Através deles, a criança
confere à linguagem novas atribuições e sentidos, selecionando o contexto no qual fará seus
enunciados, aumentando a variedade comunicativa.
Dessa forma, a criança vai atribuindo sentido para as palavras dos adultos, vai
constituindo sua subjetividade a partir dos conteúdos afetivos, sociais, culturais que os adultos
e as palavras vão lhe revelando.
No episódio abaixo, as crianças discutem sobre o lugar e a situação em que devem
usar determinado tipo de roupa, demonstrando clareza e apropriação da cultura que a
sociedade adulta privilegia:
Ana: - Ele não vem de ‘liforme’ não! [Refere-se a Victor, que nem sempre vem com uniforme
para a escola].
Pesquisadora: - Ah não?
Ana [ficando de pé para responder enfaticamente]: - Não, ele vem de roupa normal.
Pesquisadora: - Vem de quê?
Ana [um pouco irritada com a pergunta da pesquisadora]: - Roupa normaaaalll! [senta-se em
seguida]
Pesquisadora: - O que é roupa normal?
Ana [levanta-se novamente]:- Roupa normal? Ai, o que eu vou explicar agora?
Mirela: - É de usar em casa.
Ana: - Isso!
Pesquisadora: - Ih, não entendi!
Diana: - É de sair também.
Mirela: - De quê?
Ana: - De saiiir!
Diana: - E pijama é de dormir.
[Crianças riem, acham engraçada a explicação de Diana].
Pesquisadora: - Pijama é de sair também?
Ana: - Não.
É grande a importância do discurso na formação individual e também nas relações
sociais, uma vez que através dele o cotidiano pode ser explicitado e os valores da sociedade
de cada época compreendidos. No diálogo acima é possível identificar, de forma clara, através
das falas das crianças, a relação que a cultura de determinada sociedade provoca diretamente
nas relações pessoais e sociais. No diálogo das crianças, identifico marcas da sociedade
contemporânea urbana, que possui, em seu interior, códigos de conduta próprios que
determinam o modo de viver dos indivíduos. Uma criança de 5 anos que já é capaz de
classificar o modo como deve se vestir, variando as situações sociais para cada tipo de roupa,
demonstra, através de seus discursos individuais, as marcas, os valores da sociedade. Ana
consegue fazer a distinção de que na escola se usa “uniforme”, fora da escola/em casa se usa
“roupa normal”, para dormir existe o “pijama” ao qual Diana se refere e Ana concorda e, além
disso, ainda há a “roupa de sair”, que entendo como uma roupa que pouco se usa, não é para
ficar em casa, mas não é para vir para a escola – que admite a “roupa normal” com a qual seu
colega Victor se veste e Ana reprova – é para ocasiões especiais. Ana, Diana e os outros
interlocutores demonstram clareza na apropriação da cultura de seu grupo social,
reproduzindo, através do diálogo, como internalizaram os elementos culturais, trazendo-os
para o cotidiano.
Retorno ao “talvez” que auxiliou o relato de minha história pessoal para dizer
novamente, aqui, que “talvez”, se esta pesquisa tivesse como locus uma escola de outra região
brasileira, com outras referências culturais, a possibilidade de ocorrer o diálogo acima
diminuiria consideravelmente. Com isso, minha opção pelos autores que dão suporte às
teorias sócio-históricas no desenvolvimento desse estudo adquire ainda mais força. Na medida
em que essas teorias consideram o contexto no qual o conhecimento surge, compreendendo
que o particular é uma instância de uma totalidade social, pude mergulhar mais fundo no
entendimento da linguagem e seus desdobramentos tanto no que se refere à subjetividade,
quanto no que se refere a discussões mais amplas como cultura e sociedade, por exemplo.
A contribuição das teorias sócio-históricas para o desenvolvimento dessa pesquisa
cujo objetivo foi a compreensão dos diálogos presentes na educação da infância,
especificamente entre crianças de 4 e 5 anos, pode ser vista como uma oportunidade de
reflexão da prática tanto de minha parte - como pesquisadora e também educadora - como dos
demais participantes da investigação.
O reconhecimento da escola como um local que oportuniza aprendizagens e
desenvolvimento significativos compromete todos os envolvidos na tarefa de educar as
crianças a educarem-se, concomitante e permanentemente, através de ações concretas de
interação, através da reflexão constante do currículo e também do projeto pedagógico, que
revelam a filosofia de trabalho da instituição. Quando afirmo a necessidade de o educador
educar-se em conjunto com a criança e também com seu grupo de trabalho, estou salientando
que aprender a ouvir as crianças pode ser uma das grandes oportunidades de chegar mais
perto de seu conhecimento e de suas experiências.
Nesse contexto, as situações nas quais ocorre o diálogo pressupõem escolhas
enunciativas que são parte da observação que se faz sobre os interlocutores, ou seja, a situação
da enunciação do local onde o diálogo está ocorrendo. Tais escolhas enunciativas demonstram
a importância do que Bakhtin denomina auditório social, que é o que define com quais
palavras devo me dirigir aos interlocutores.
O auditório social é determinante para a escolha do gênero que será usado na
enunciação; portanto, nosso discurso, além de não ser neutro, também não é constituído de
palavras soltas aleatoriamente: nosso discurso “reflete e refrata a realidade”. Aprendi com
Bakhtin que toda enunciação é ideológica, porque o falante pensa e fala considerando
definido seu auditório social. Para que o conceito de auditório social se torne claro, repito
aqui, alguns trechos da fala dos participantes da pesquisa, contextualizando o local e a quem
as enunciações foram dirigidas, nas situações reais de interação com as quais participei na
pesquisa.
No episódio a seguir, a professora vai iniciar uma atividade e, para tal, começa a falar
com as crianças sobre como elas deverão se comportar para que ela explique como a atividade
pode ser desenvolvida. O auditório social, nesse caso, é considerado explicitamente, a
professora se dirige às crianças no diminutivo, pede silêncio e pergunta como é que as
crianças devem agir, ou seja, tenta certificar-se sobre o entendimento dos passos por parte das
crianças.
Professora: - Mas para ouvir é preciso fechar a boquinha, senão não dá para falar, não! Vou
dar a folha colorida e o que vai fazer? Quem quer falar o que vai fazer?
Em contrapartida, as crianças também já conseguem eleger o enunciado de acordo
com o auditório social e, assim sendo, respondem tendo o auditório social definido – a
professora.
As crianças falam juntas: - Recorta, cola, dobra.
Os significados que resultam dessas situações nem sempre são os mesmos, já que cada
um tem uma compreensão da enunciação, considerando que a língua, assim como os falantes,
é dinâmica e se move continuamente. Bakhtin (1992) considera a língua como atividade
social da qual a enunciação é parte fundamental; o processo verbal tem como necessidade a
comunicação que, por sua vez, existe por tratar-se de um fato social.
A linguagem é um ato social de fundamental importância para a formação da
consciência. Para Bakhtin, quanto mais “eu” vivo no “nós”, quanto mais consciência,
comprometimento com o grupo, mais complexo será o meu mundo interior. Há uma relação
dialética entre linguagem e pensamento, ou seja, não há pensamento sem linguagem e, para
esse autor, é a linguagem que dá forma, que possibilita a constituição da subjetividade. Sendo
a linguagem um importante fator cultural, não podemos desconsiderar a cultura na tentativa
de compreender a infância.
A cultura com a qual a criança menor de seis anos convive em nossa sociedade
contemporânea é extremamente marcada por padrões de consumo da cultura de massa que,
por sua vez, avança rumo à cultura de sua comunidade, de sua família, da cultura da escola, da
sua cultura como criança e, também, de sua história como alguém social no mundo.
Todos esses elementos estão presentes no cotidiano escolar, como pode ser visto no
diálogo entre as crianças de 5 anos da turma de educação infantil em que realizei parte da
pesquisa.
Estão sentados, na área de lazer externa à sala de atividades, 4 meninos da turma em
que faço a pesquisa. Eles estão em uma mesa que se destina ao jogo de damas e/ou de xadrez,
entretanto, eles jogam “cards” do tipo Yu-Gi- Oh! 20
Marcos: - Meu!
Maurício: - Meu!
Edu fala com Marcos sobre a possibilidade de jogar um “card”, Victor ouve e intervém.
Victor: - Não, Edu, não! Isso não é assim! [Fazendo referência à regra do jogo].
Maurício: - O Marcos é que tem que saber qual que ele vai jogar.
Novamente Edu cochicha no ouvido de Marcos. Ele comenta sobre um “card” que foi jogado.
Victor: - Não foi! Não foi tão forte que ele jogou.
20 Yu-Gi-Oh! É um baralho de desenhos japoneses composto por 46 “cards”, que se subdividem em três categorias: Cartas de Monstros, Cartas de Magia e Cartas de Armadilha. O objetivo do jogo é vencer o oponente no desafio que é proposto no jogo. É também um desenho animado que, na ocasião da vídeo-gravação, era veiculado em uma grande emissora de TV aberta. No desenho animado, há correlação com o jogo de cartas e estratégias de jogadas.
Marcos: - Não! Eu ponho o que eu quiser, se eu quiser colocar ela...
Observo que Edu está tentando influenciar a jogada de Marcos, mais uma vez ele fala no
ouvido do colega.
Marcos: - Eu ponho essa! [Diz essa frase com um tom de voz alto e bate com o “card” na
mesa em sinal de força].
Victor: - Ah não! Foi o Edu que pediu pra pôr.[Victor lamenta e dirige claramente a
reclamação a Maurício].
Maurício: - Deixa eu ver! [Ele vai até o monte de “cards”, observa qual foi jogado por Marcos
e interfere no jogo]. Ah, essa já foi do meu baralho de mágico e fora! [Neste momento
começa a juntar todos os “cards”].
Edu: - Ah, joga fora todos!
Victor: [fala com Edu de maneira indignada] - Ahhhhhhhhh nãããão!Você não pode falar pra
ele, [Marcos] então não!
Edu: - Ah, eu sou do time dele, então eu posso falar com ele.
Victor: - Não pode nada, né, Maurício?
[Maurício está separando alguns “cards” e passa a imagem de que não está prestando atenção,
mas está atento e encerra o impasse.]
Maurício: - Amigo pode falar, mas eu posso tirar aquele...
Através do jogo que as crianças estabeleceram entre si mesmas, com o baralho de
Maurício e sem a interferência da professora, observo elementos da cultura de massa [“essa já
foi do meu baralho de mágico...”], regras de convivência que se estabelecem na linguagem
[“você não pode falar pra ele...”], parcerias [“amigo pode falar...”], estratégias pessoais para
vencer ou jogar [“eu ponho essa...”]. Com isso, percebo que o processo de constituição de
subjetividade envolve o social, mas dele também se distancia, para que o indivíduo se
constitua.
Com as crianças da Educação Infantil é possível fazer essa observação, entretanto,
nem sempre há a preocupação da escola em observar o processo de individualização das
crianças. A situação constatada no ambiente externo representou uma maior liberdade de
expressão e interação, entretanto, tais atividades não costumam ser valorizadas pela
professora como atividades relevantes para a aprendizagem e para o desenvolvimento. Ainda
retorno à ladainha à qual Paulo Freire se referia citada por mim no fragmento da atividade de
moldura realizada na sala de atividades: há uma tendência à massificação: trabalhos todos
iguais, respostas sempre iguais, ou seja, um direcionamento para um comportamento modelar,
incompatível com nossa sociedade tão plural! Ainda permanece nas ações a concepção de
infância como algo incompleto, da criança como aquele cujos saberes não precisam ser
considerados. A incompletude da infância à qual me refiro não é a incompletude de todos nós,
seres humanos em contínua transformação, construção, mas sim a idéia de incompletude
como algo inadequado, oco, à espera de um adequado preenchimento. Retomo a etimologia
da palavra infância - in- não; fans – fala- porque ainda me parece pertinente atentar para que
na escola ainda há momentos em que a criança é vista como alguém que não diz o que merece
ser escutado. Nos diálogos que presenciei no exterior da sala de atividades, pude comprovar
que os saberes das crianças são desconhecidos por parte da escola.
Fala-se muito em cidadania, mas na escola a cidadania é um porvir, a criança ainda irá
conquistá-la. Na escola a cidadania não é respeitada sob a forma de uma educação que saiba
realmente quem a criança é, quais os seus anseios, qual a sua linguagem, como é o mundo no
qual ela vive, interage e nele constrói sua subjetividade. As crianças estavam jogando Yu-Gi-
Oh! na área de lazer e a escola não compartilhou dos saberes que ali circulavam...
Aos professores da Educação Infantil faltam interlocutores. Tanto na sua formação
inicial, como em sua formação contínua e em contexto. Ouso afirmar que, nas escolas, a
Educação Infantil é o último segmento ao qual os olhares e as ações são dirigidas. Presenciei
práticas das professoras que podem ser interpretadas como conseqüência da falta de políticas
públicas que contemplem as reais necessidades das professoras e das crianças. E, como não há
interlocutor abstrato, ou seja, como sempre nos dirigimos a alguém intencionalmente, utilizo-
me desse texto para explicitar essa realidade e dizer que a educação infantil da escola que
pesquisei ainda não é contemplada com políticas que valorizem critérios mínimos, esperados
para uma educação da infância com qualidade.
Voltando às questões específicas da linguagem, faço a observação de que não há
necessidade de o interlocutor estar constantemente de corpo presente na interlocução para que
haja o auditório social. Tal afirmativa nos leva a considerar e observar o horizonte social que
determina a criação ideológica e cada auditório social a que o interlocutor se dirige. A palavra
conduz à extrapolação dos limites do texto - e, por texto, posso entender as situações de
interação verbal, o texto escrito, a obra de arte... A palavra não traz em si a compreensão; esta
também não se encontra nem na alma do falante, nem na alma do interlocutor; somente ocorre
através do fluxo existente na interação verbal que, por sua vez, tem nos acentos apreciativos21
importantes componentes para que a fala ganhe sentido.
Bakhtin (1992) afirma não haver palavra primeira ou última. Com isso
compreendemos o valor da mediação através dos signos, signos estes que, construídos na
coletividade, nasceram do diálogo, mas com ele vão-se modificando (p.41 - 4). A infância é
mais que uma fase, e, assim, entendo que as experiências que a criança vivencia em interação
devem ser de fato significativas para que, dialeticamente, sua palavra, juntamente com a
21 Por acento apreciativo entendo, dentro do referencial bakhtiniano, que é o tom dado à palavra dita e este varia de acordo com o local, situação social e momento de interação no qual o enunciado foi proferido.
palavra do outro, vá se transformando, tornando-se “palavra pessoal alheia”, para,
posteriormente, perder as aspas e ser palavra pessoal (p.405). Eu não sou eu sem o outro.
Tal idéia está intimamente ligada aos princípios de Paulo Freire, que acredita na
comunicação humana, no valor das palavras como instrumentos de libertação da sociedade.
Portanto, é impossível falar de Paulo Freire sem destacar o valor por ele conferido ao diálogo.
Essa forma de interação entre indivíduos foi mencionada enfaticamente por ele como
atividade pedagógica por excelência. A oralidade de Paulo Freire não expressa só o seu estilo
pedagógico. Revela, sobretudo, o fundamento de toda a sua praxis, baseada na convicção de
que homens e mulheres podem tornar-se sujeitos da própria história através do diálogo.
Portanto, para Paulo Freire é fundamental comunicar-se efetivamente, desde a mais tenra
idade e, no caso específico da escola, desde que a criança entra em contato com as situações
comunicativas reais, sem artificialização.
Através dessa dialética da continuidade no fluxo da fala e da descontinuidade de que
necessitamos para refletir é que a educação pode desafiar a sociedade injusta e desigual à qual
estamos expostos. Paulo Freire me instigou a esse respeito e, com ele, prossigo o diálogo.
3.2 A solidariedade do diálogo de Paulo Freire
Estar no mundo com meu semelhante e com ele aprender e ensinar, ouvir e falar, parar
e seguir, ver, olhar, trocar, silenciar, em suma, com ele relacionar-me – esse é um desafio. E
se nesse desafio me lanço, seja como cidadã, seja como cidadã educadora, espero que o
caminho escolhido permita a construção de uma sociedade menos desigual e mais aberta ao
diálogo.
Não há como pensar na relação humana sem a presença do diálogo. É pela capacidade
de dialogar que nós, seres humanos, podemos refletir sobre a espécie e sobre a
individualidade. Dialogando na perspectiva democrática, a ação de homens e mulheres é
ampliada, já que eles, como seres de linguagem que são, têm com a interação a possibilidade
de transformarem-se e transformar a realidade que os circunda.
Paulo Freire é um educador que tem no diálogo a principal característica de sua
pedagogia. Com ele entendi que, através das relações dialógicas, nas interações entre os seres
humanos, a consciência histórico-cultural se expande, as identidades são compreendidas e,
dessa maneira, as relações de poder serão questionadas, quando o desrespeito imperar sobre a
tolerância e a liberdade.
Conviver dialogicamente é uma escolha democrática que pressupõe ações em favor do
semelhante22, em voltar o olhar a quem pensa diferente de mim. Ações simples, que não
visualizam obstáculos na diferença, criam condições para que haja trocas entre diferentes
pessoas, de diferentes formações, de diferentes etnias, de diferentes experiências,
enriquecendo o cotidiano e permitindo que do diálogo surja uma sociedade na qual as
diferenças sejam entendidas como possibilidade de aprendizagem.
Antônio Nóvoa (1998) problematiza sobre a leitura da obra de Paulo Freire e as
inúmeras variações de interpretação que perpassaram e perpassam os escritos do educador
brasileiro. Tais variações de interpretação geram discrepâncias teórico-metodológicas que
alternam a compreensão de que Paulo Freire pode ser considerado como um intelectual
engajado com a de algumas leituras que vêem na obra de Freire traços de profunda
ingenuidade (p.170). Entretanto, Nóvoa (1998) aponta duas características recorrentes na
interpretação da obra do pensador brasileiro: o compromisso com o que metaforicamente é
denominado “esfarrapados do mundo” e a valorização do diálogo como condutor dos saberes
e dos contextos dos homens e mulheres que são o corpo de qualquer projeto educacional.
22 Nesse texto, utilizo a expressão semelhante na perspectiva freireana de outro que se assemelha a mim como parte da espécie humana, entretanto com características individuais distintas que através da convivência tenho a possibilidade de respeitar, compreender e aprender.
Assim, compreendo que, sendo recorrentes as características de responsabilidade para com os
mais pobres e o diálogo como forma de interagir no mundo, Paulo Freire era um intelectual
engajado, politizado e comprometido com a educação de forma ímpar, de maneira que a
interpretação de sua obra como ingênua é reduzir a criticidade que nela é inerente.
A oralidade que traça o perfil de Paulo Freire em seus escritos indica sua disposição
para a palavra, para a história da vida em palavras, para seu compromisso com a Língua
Portuguesa. Nóvoa defende que esse perfil de escritor que enfatiza a narrativa não é um estilo,
ou melhor, um recurso estilístico, mas sim a revelação prática dessa profunda certeza de que é
pelas palavras, através das palavras, pela comunicação sem exclusão que nenhuma sabedoria
ficará submetida ao crivo de aprovação da ideologia elitista.
Na sociedade urbana e capitalista, vivenciamos cada vez mais a prevalência do
individual sobre o coletivo, caracterizado pela ausência de percepção e sensibilidade para com
o outro. Não há diálogo, dizem os mais pessimistas; ainda que eu, como educadora, acredite
no diálogo como possibilidade de transformação, ouso dizer que nem todas as vozes são bem-
vindas, são convidadas ou são ao menos respeitadas nos diálogos existentes na vida social,
familiar, profissional. Vemos freqüentemente a recusa ao direito de que todos tenham vez e
voz. Na escola, presenciamos cenas em que nem todas as vozes são bem vindas...
A estrutura contemporânea de vida propaga a superioridade de alguns, despertando um
sentimento de menos valia naqueles que a cultura dominante coloca à margem. O sentimento
de incapacidade por parte de alguns, aliado ao de superioridade cultural e social de outros,
cria uma barreira de silêncio.
“O diálogo pertence à natureza do ser humano, enquanto ser de comunicação. O
diálogo sela o ato de aprender, que nunca é individual, embora tenha uma dimensão
individual". (FREIRE, 1995). Assim, em seu livro, Medo e ousadia: o cotidiano do
professor, Paulo Freire nos fornece razões que ainda despertam a atenção para a importância
das relações dialógicas. A palavra é, em grande parte, constituidora do ser humano, e a
palavra, no diálogo legítimo, constitui a consciência, pois reconheço a mim, reconheço o
outro e reconheço parte de mim com o outro.
No diálogo temos a possibilidade de ultrapassar a emergência dos fatos. Através dele
podemos construir não apenas o significado do contexto, mas também com ele temos a
maneira mais respeitosa de relacionamento com o outro, visto que, quando dialogo, vou ao
encontro do lugar, do saber do outro. Aqui entendo porque “educar é a prática da liberdade”;
porque a liberdade é ousar pensar, é fazer e refazer o mundo, sempre com e através do meu
semelhante. Eu sou porque estou sendo. Eu educo porque estou me educando. Essa praxis
libertadora é, ao mesmo tempo, extremamente afetiva: não acontece isoladamente, reconhece
no outro o seu valor, o outro como parte de si e, com ele, busca a transformação, a
emancipação da consciência, tirando todo e qualquer resquício de incapacidade perante a
vida.
Paulo Freire (1995) quer que consideremos o valor de uma idéia perguntando o quanto
ela importa. Almeja a conscientização sobre a dialética dos fins e meios, sobre os mistérios do
desespero e da esperança. Com ele aprendemos a reconhecer nosso espaço como único, o que
se mostra relevante porque também assim somos: únicos. Essa reflexão muito me auxiliou
nessa pesquisa, sou única, assim como as crianças e professoras também o são, embora juntas
nossas vozes sejam marcadas pelas nossas individualidades. Reconhecer e assumir nosso
espaço ainda são tarefas que nos cabe realizar.
A história da qual compartilhamos necessita da coragem de não se adiar a mudança, de
não esquecer as palavras que precisam ser ditas, de ingenuamente aguardar por algum
momento propício. O meu, o nosso compromisso com a educação e o diálogo, que movem
não só as palavras, mas também as consciências, deve caminhar rumo a perguntas nunca
feitas para que delas nasçam respostas que despertem as pessoas para a capacidade de olhar o
que nunca foi visto. Ao olharem aquilo que nunca foi visto, espera-se que cada um se torne
sensível a aprender dia-a-dia, que se abram à educação, portanto, inevitavelmente, que
estejam dispostos e disponíveis à convivência com o outro.
Problematizar o que me parece óbvio foi uma maneira outra de pensar que esse óbvio
pode não ser tão óbvio quanto parece sugerir. O cotidiano é o palco da praxis do educador, é
dele e nele que a prática dialógica da libertação acontece. Educar o olhar é um desafio de
diálogo que, como educadora, entendi ser necessário realizar. Educar meu olhar para o
trabalho com as crianças em suas primeiras experiências escolares é a maneira que encontrei
para realizar a praxis que Paulo Freire incansavelmente defendeu por toda sua história como
educador e que continua viva através da sua obra.
A curiosidade que move o pesquisador deve afastá-lo, em um primeiro momento, do
conhecimento que busca compreender, visto que, ao tomar distância, aproxima-se desse
conhecimento. Assim busquei proceder ao longo dessa experiência como pesquisadora. Essa é
a relação dialética que pode ser entendida pela expressão freireana “perceber-se percebendo”
(Freire, 2001, p.46), ou estando presente e sendo professora, mulher, pesquisadora inteira que
não inibe a ação criativa nem permite a admissão de valores que aprisionam os indivíduos no
tempo. Evitar que os indivíduos sejam aprisionados em um tempo é possibilitar que o papel
de cada um possa ser assumido na sociedade. Dessa forma, a História passa a ser entendida
como possibilidade.
O que significa dizer que a História é possibilidade? Significa excluir qualquer
explicação mecanicista e determinista como forma de compreender tal História. A História
como possibilidade vê no sujeito o papel de transformar o mundo, isto é, recupera a
subjetividade ao entender que o futuro não é inabalável, evidenciando-se, assim, o problema
que cada um deverá reconhecer no futuro: que ele não é implacável, que a ação consciente
pode transformar, pode mudar o que parece estar demarcado e fadado a acontecer.
Nessa perspectiva, reconhecer a criança como sujeito de direitos consiste em
considerá-la como tal na ação que revela coerência com o discurso. Uma das premissas para
tal reconhecimento se fundamenta em entender a fala da criança como resultado de sua
interação com o mundo. Significa adotar a postura de olhar atentamente para a sua
singularidade, para a singularidade da infância no mundo adulto, ao qual a criança geralmente
está subordinada. Com meus olhos de adulta, tive que re-aprender a olhar, a rever em mim
preconceitos e estereótipos, voltar e recomeçar - principalmente quando me deparei com o
diálogo entre duas crianças:
As crianças conversam sobre o futuro. Maurício escuta o que Léo fala, dirige-se à Ana e
repete para Ana o que ouviu de Léo.
Maurício: - Ana, o Léo falou que vai ser bandido.
Ana: - Tia, oh tia, o Léo ali falou que vai ser bandido. [quando crescer]
Léo [respondendo para Ana e indiretamente à professora]: - Alguém tem culpa disso? [alguém
tem alguma coisa com isso?].
No pequeno episódio do diálogo entre as crianças, percebi a presença de alguns
aspectos da sociedade adulta. As crianças demonstram que o papel social que cada um tem ou
escolhe ter não fica imune às responsabilidades da sociedade. Ao se colocarem como sujeitos
da história, as crianças assumiram papéis que estão presentes na sociedade. Entendo que há
nas suas falas alguns componentes que são vividos no diálogo espontâneo e que representam
situações do cotidiano. Entretanto, no episódio em destaque, as crianças não estão
interpretando papéis, estão conversando sobre as possíveis escolhas futuras. Ao relatar à
professora a opção do colega, Ana demonstrou estar atenta às conseqüências que uma escolha
pode trazer, e o adulto, no caso a professora, representa a sociedade e seus valores. O
interlocutor de Ana, ao contrário, mostrou-se seguro de que é ele quem realiza as escolhas,
reafirmando com uma pergunta a sua posição [ - Alguém tem culpa disso? ], subentendendo-
se que as escolhas são dele e que ninguém tem nada com isso. O diálogo entre Ana e Léo
parece ser irrelevante para a professora, que dá pouca atenção ao que é falado, ainda que Ana
estivesse de pé e virada para ela.
A concepção de infância que orienta o trabalho pedagógico do professor deve priorizar
o entendimento de questões a respeito do desenvolvimento, das apropriações culturais, tendo
a consciência de para quê e por quê escolhe determinadas ações. Ana e Léo discutem acerca
de coisas importantes no cotidiano [ser bandido, não ser bandido?], posicionam-se
antagonicamente quanto ao destino futuro que Léo diz querer seguir e a professora, quando
não manifesta sua opinião, demonstra que aquela conversa é “coisa de criança”, “coisa
menor” como se tratasse de algo irrelevante, já que é oriundo de uma criança.
Ana tem consciência de que sua condição de criança exige, em alguns aspectos, o aval
do adulto, tanto que se vira para a professora e fala: - Tia, oh tia, o Léo ali falou que vai ser
bandido.- em um enunciado aparentemente afirmativo, mas que, na verdade, buscava
questionar a professora quanto à avaliação que esta faria sobre a opção do colega. Adultos e
crianças têm, portanto, concepções do que é ser criança na escola e também em casa, na rua.
Ana, embora consciente e reflexiva, demonstra querer que sua opinião tenha voz através da
voz da adulta, que é a voz que se ouve e que tem reconhecimento social.
É importante ressaltar que, quando escolhi compreender a concepção de infância
presente nos diálogos entre crianças e adultos, tendo como suporte as idéias de Paulo Freire,
Bakhtin e Vygotsky, fiz tal opção por acreditar em uma educação transformadora através da
relação dialógica. Pretendi, com as idéias desses autores, discutir os aspectos relativos à
educação da infância, enfatizando as questões da linguagem e do diálogo.
É preciso, porém, esclarecer que não discuti a trajetória do pensamento de Paulo Freire
ao longo de sua história que, obviamente, encontra-se refletida em sua obra. Minha principal
preocupação foi com a relação entre os indivíduos, a mediação pela linguagem e o
entendimento do lugar social que, assim como a linguagem e as práticas educativas, não são
neutros e nem desprovidos de conteúdos.
Em Pedagogia dos sonhos possíveis (2001) encontrei um texto republicado23 em que
Paulo Freire questiona a leitura que tem sido feita de suas obras e salienta que, basicamente, a
maioria dos leitores incipientes fixa a atenção na Pedagogia do Oprimido, procurando nesse
livro encontrar maneiras, métodos para o trabalho pedagógico, principalmente para a
alfabetização. Assim, entendo que, para a leitura de Paulo Freire, é necessário buscar uma
compreensão ampliada de suas idéias, que se encontram ao longo de toda a sua obra.
Precisa-se ter em mente que meu trabalho não se limita à Pedagogia do Oprimido. ...[ Parece-me que muitos escritores, que alegam serem freireanos, estão se referindo apenas a Pedagogia do Oprimido24que foi publicada quase trinta anos atrás, como se esta fosse a primeira e a última obra que escrevi (FREIRE, 2001, p.62-3).
O autor reconhece que Pedagogia do Oprimido foi e ainda é um compromisso com as
classes sociais que sofriam e, pela desigualdade social, ainda sofrem diretamente a opressão.
Paulo Freire refletiu, porém, sobre sua trajetória e mostrou a transformação em si mesmo,
entendendo que reinventar-se foi também um processo de crescimento pessoal e
amadurecimento da sua própria maneira de entender as possibilidades históricas (Pedagogia
dos sonhos possíveis). Ter a história como possibilidade significa estar em contínua
reinvenção.
O reconhecimento do semelhante que a mim se apresenta sob diversas formas me
levou ao aprendizado de não dar sempre respostas e sim de aprender a fazer as perguntas.
Meu semelhante é alguém inteiro, e se quis/quero respeitá-lo, ouvir o que tem a dizer, devo
23 Publicado originalmente com o título “A Response”, In: FREIRE, Paulo (et alii). Mentoring the Mentor- a critical dialogue with Paulo Freire. New York: Peter Lang, 1997. O texto reproduz um diálogo entre Paulo Freire, Donaldo Macedo e James Fraser ocorrido em agosto/1996 em São Paulo. Os interlocutores de Paulo Freire nesse diálogo são educadores norte-americanos. 24 Destaques do autor.
oferecer-lhe meus ouvidos para que sinta que é respeitado por ser o que é e também pela sua
história. Não quero dizer com isso que apenas conhecer a história dos indivíduos é suficiente
para a possibilidade de transformação, para assumir posições críticas em relação às
desigualdades e às múltiplas identidades. Mais que ouvir, é urgente questionar e se posicionar
eticamente na vida e na profissão.
Ter comigo a consciência da urgência de atitude fez com que me reconhecesse como
um ser humano incompleto e, com isso, refleti para poder impulsionar a ação que pode
romper limites e levar a fazer opções. Para uma educadora ou educador, tal clareza é
fundamental para evitar que as manipulações políticas, que põem os seres humanos em
condição desumanizada, a serviço do mercado, tenham sempre lugar no nosso mundo.
Dessa forma, a consciência se nos apresenta como de importância vital para confrontar
no diálogo as questões éticas suscitadas pelas relações humanas tão desiguais que
enfrentamos no cotidiano. Quando Ana questiona se a opção de Léo é aceitável aos olhos do
adulto, está se posicionando eticamente diante da situação. Quando Léo expõe uma opinião
que difere do senso comum, também mostra que os valores não são os mesmos para todos e
que, se é uma escolha dele, há que ser respeitada a opinião [ninguém tem nada com isso]. Na
escola, essas relações desiguais estão presentes e, mesmo que sutilmente escondidas, trazem à
tona relações seculares de mais ou menos valia. Nessa perspectiva, a palavra, nessas relações
de poder, assume um caráter decisivo. O diálogo permite a circulação do conhecimento, fato
este que não pode ser encarado como privilégio. “A questão não é estar livre para falar sobre
diálogo, mas para lutar pelo direito de participar de um diálogo vivo.” (FREIRE, 2001, p.70).
Na Educação Infantil, que é a porta de entrada das crianças para o mundo da
escolarização, a prática da troca dialógica é um desafio para educadores, desafio que se inicia
desde o reconhecimento da criança como cidadã e chega à sala de atividades com a criança
que tem muito a dizer sobre si e sobre o mundo.
4 TRANSITANDO EM UM ESPAÇO DE CONTRADIÇÕES: CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA.
Todo ser humano é um estranho ímpar.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
No capítulo anterior, discuti o pensamento dos teóricos Mikhail Bakhtin e Paulo Freire
focalizando nas crianças e seus diálogos as possíveis compreensões acerca das concepções de
educação infantil da instituição. Com o suporte dos estudos sobre a linguagem, quis enfatizar
a importância dessa capacidade humana enquanto fator considerável na constituição do sujeito
em sua individualidade, profundamente marcada pelas estruturas da sociedade da qual é
integrante.
A linguagem nessa pesquisa foi o canal que possibilitou focar as crianças em seus
discursos com seus interlocutores, para auxiliar na compreensão da concepção de educação
infantil da instituição onde realizei meu estudo. Neste capítulo, continuo a discussão acerca da
linguagem, e, para tal, busquei nos estudos de Lev S. Vygotsky contribuições que
possibilitaram a compreensão das interações dialógicas entre as crianças e a professora na sala
de atividades.
Homens e mulheres são seres sociais que, ao nascer, carregam elementos de natureza
biológica. Vygotsky considera esses dois aspectos: cultural e natural, em seus estudos sobre o
desenvolvimento. Com Vygotsky (1995) pude compreender que é pela linguagem que nós,
seres humanos diferenciamo-nos dos animais inferiores. O ser humano se distingue do animal
por ter a capacidade de expressar-se através de uma linguagem que extrapola os limites da
comunicação, ou seja, comunica-se mas também registra a sua história e a repassa através das
gerações, construindo costumes, agregando valores e deixando um legado cultural para
aqueles que vierem depois. Tal diferença é determinante para a humanidade, uma vez que
somente essa espécie de ser vivente é capaz de se apropriar da experiência acumulada pela sua
espécie ao longo da história. Nesse processo, a linguagem assume papel fundamental.
Diferentemente dos animais, o desenvolvimento humano conta com um outro tipo de
experiência: a experiência histórico-social, que não coincide com a experiência gerada pelo
desenvolvimento da espécie - filogênese - nem com a experiência individual adquirida ao
longo da vida. É coerente dizer que as crianças que vivem hoje na sociedade de informação
desenvolvem novas estratégias comunicativas e novas formas de relação interativa em função
do meio social. O desenvolvimento da espécie humana, da experiência adquirida pelo grupo
social é facilmente observável no comportamento das crianças. Tais manifestações são
corriqueiras também no cotidiano escolar. Vejamos este episódio:
As crianças da turma de 4 anos estão brincando na sala de atividades com blocos de
madeira e outros brinquedos e materiais, não há direcionamento na brincadeira por parte da
professora, a brincadeira é livre. Juliana brinca em uma mesa com muitos Lig-lig (pinos de
encaixar) e outros blocos; as colegas vão se aproximando, conforme ela vai falando e
brincando.
Juliana: - Aqui a gente pode brincar sentado!
Juliana pega um bloco de madeira e começa uma brincadeira de faz-de-conta que é um
celular:
- Alô. Alô‼ Oi...
Maria Laura também pega um bloco para ser seu celular.
- Alô, vou precisar de ajuda...
Júlia Barcelos: - Eu também quero um celular!
Paula: - Compra lá na loja! Faz isso!
Quando Paula diz para Júlia: - Compra lá na loja. Faz isso!, é possível, com essas
duas pequenas orações, compreender a trajetória histórico-cultural da linguagem, na qual os
aspectos cognitivos e sociais de Paula estão presentes. Ela demonstra clareza na análise que
pode ser percebida através de sua indicação do lugar onde a amiga deve adquirir o que deseja.
Entretanto, a fala de Paula nos deixa diante de uma situação corriqueira no nosso mundo
capitalista e competitivo, que é a brevidade de satisfação do desejo, aliada à sensação de
pertencimento que possuir um objeto pode traduzir diante do grupo social. No exemplo de
Paula, compreendemos o desenvolvimento ancorado nas linhas que Vygotsky aborda, o
desenvolvimento biológico e o histórico-social.
O pensamento de Vygotsky engloba, portanto, duas linhas de desenvolvimento:
natural biológica e cultural sócio-histórica. A primeira - natural biológica- está diretamente
ligada às funções mentais elementares, que são mais próximas aos instintos, são funções
menos elaboradas que nascem com o indivíduo; enquanto que o desenvolvimento cultural
liga-se às funções mentais superiores, que são características do segundo nascimento do
indivíduo, o nascimento social.
As funções mentais superiores são construídas no contato com o outro, culturalmente e
passam pelos planos interpessoal (ação entre sujeitos) e intrapessoal (ação do sujeito). Daí a
mediação assumir papel destacado na infinita rede de relações que se estabelecem,
possibilitando o desenvolvimento de mais funções mentais superiores, em que o sistema de
signos atua.
A centralidade da teoria vygotskyana está na afirmação de que a linguagem possibilita
a construção da consciência. “A relação pensamento – linguagem é a chave para a
compreensão da consciência humana.” (Freitas, 2000, p.98). A linguagem surge e se
desenvolve no processo de interação, ao mesmo tempo que a possibilita, portanto a
aprendizagem constitui-se como um elemento que não se efetiva sem a interação, visto que
depende da linguagem.
As formas de interação que são eleitas na escola compreendem outra parte para
discussão, entretanto, cabe esclarecer que se trata de um ponto que demanda reflexão e
estudo, principalmente por nós, educadores e pesquisadores da infância. A linguagem também
possibilita a formação do pensamento, dos conceitos científicos trabalhados em uma relação
de aprendizagem promotora do desenvolvimento.
Apoiada nesses princípios teóricos, busquei entender as relações estabelecidas no
diálogo entre as crianças de Educação Infantil com seus interlocutores que me revelassem as
concepções de infância presentes nas enunciações que observei na sala de atividades. Essa
pesquisa, que tem na linguagem a fonte dos dados e que se orienta pela experiência narrada
por outrem - no caso, eu, a pesquisadora - , não é a experiência vivida, nem por mim, como
pesquisadora e também participante, nem pelos demais envolvidos no estudo. Quando olho,
narro, analiso, já modifico. Interfiro. Entretanto, a linguagem possibilita um encontro
fascinante entre a empiria e a teoria, o que torna possível tratar cientificamente as questões
que discuto nesse capítulo no qual estabeleço uma interlocução com as idéias de Lev. S.
Vygotsky, tendo em vista a linguagem, para compreender o que os enunciados revelam sobre
a concepção de infância da instituição pesquisada.
Volto meu olhar ao campo de investigação. Entendo que, ao planejar um espaço para
brincadeira livre na sala de atividades, a professora Simone concebe a infância como uma
etapa da vida em si, com necessidades próprias; a criança como sujeito real que vive essa fase
da vida e a escola das crianças como um local onde o importante é o presente que se vive.
Durante as brincadeiras livres que presenciei, conclui que há esse entendimento por parte da
professora, que permitia - ao destinar um horário que constava da rotina diária - um espaço
de brincadeiras escolhidas pelas crianças. Nesse momento, da brincadeira livre, penso que
aquela sala de atividades era da criança e não para a criança. Havia a possibilidade de a
criança protagonizar sua infância. A professora não só reconhecia a brincadeira como
importante na rotina diária das crianças, como também sabia que era fundamental observar as
crianças brincando. Vejamos o episódio a seguir:
Cristiana está em pé olhando a mesa de Juliana e das outras meninas que brincam de
faz-de-conta com os blocos como se eles fossem telefones celulares. A menina observa
atentamente as outras colegas, mas não se aproxima, mantendo-se em pé, como expectadora,
olhando, sem desviar sua concentração, a brincadeira das colegas. Essa cena parece
incomodar a professora Simone.
Professora: - Cristiana, vai brincar com os amigos!
Cristiana olha para a professora Simone e nada responde.
Professora: - Não vai brincar, não? Vai ficar parada aí? Vai até ali oh [mostra a mesa onde
estão as meninas que Cristiana observa]... Quer? Ali oh os amigos!
Cristiana não vai, mas continua a olhar as brincadeiras.
A professora chama Heloísa e diz para ela:
- Heloísa, chama a Cristiana para brincar.
Heloísa vai até Cristiana e a convida para participar. Cristiana aceita e vai para a mesa das
amigas.
A professora Simone, no episódio selecionado anteriormente, foi capaz de reconhecer
sua incapacidade para interagir com Cristiana naquele momento, atentando para a necessidade
de uma terceira pessoa para intervir na mediação. Nesse caso, a terceira pessoa foi Heloísa.
Dessa mediação surgem, além de novas funções psicológicas, novas produções culturais,
novas linguagens coletivas, novos grupos. Com isso aparecem também novas formas de agir,
influenciando as singularidades que vão se constituindo, o social age transformando o coletivo
em processos de dimensão individual.
A linguagem nesse processo de internalização e transformação dos elementos culturais
é fundamental. Para compreender a constituição da consciência, há de se entender o processo
de internalização da linguagem, que é a busca pela atividade significativa, “atividade de
transformação mediada e instrumental do meio” chegando ao significado da palavra “como
uma unidade de análise (que contém as propriedades do todo), unidade esta que apresenta
como elementos constitutivos e inseparáveis o pensamento e a linguagem.” (BOCK, 2001,
p.103-4). O significado da palavra é uma unidade de análise à qual Vygotsky chegou para
compreender a relação pensamento/palavra; contém em si dois tópicos que são a comunicação
e a generalização.
Como fenômeno da comunicação verbal, a linguagem necessita do significado que é
um traço constitutivo indispensável da palavra, daí a compreensão de que o significado é,
também, um fenômeno do discurso.
Nas palavras de Vygotsky (1995), podemos entender que o sentido dado à palavra
varia o seu significado, estando tal fenômeno intimamente ligado ao pensamento e também ao
contexto em que a palavra é proferida; o significado está sempre ligado à palavra, visto que
sem ele a palavra é um som oco. Tal fato se aplica tanto à linguagem oral quanto à
generalização, que é própria ao pensamento, já que o significado é parte indissociável da
palavra:
Não é simplesmente o conteúdo de uma palavra que se altera, mas o modo pelo qual a realidade é generalizada e refletida em uma palavra. [...] Para compreender a fala de outrem não basta entender as suas palavras – temos que compreender o seu pensamento. Mas nem mesmo isso é suficiente – também é preciso que conheçamos a sua motivação[...] (VYGOTSKY, 1995, p. 105,130).
O ser humano se constitui, então, nessa relação de mediação com o meio cultural e
com os homens e mulheres que dele fazem parte, resultando em novas formas de ser e
interagir no mundo. Retomo parte de um episódio já destacado no capítulo anterior por
considerá-lo significativo para essa reflexão.
Pesquisadora: -O que é roupa normal?
Ana [levanta-se novamente]: - Roupa normal? Ai, o que eu vou explicar agora?
Mirela: - É de usar em casa.
Mirela faz a generalização do tipo de roupa que se usa em casa, ela tem claro o
significado das palavras e por isso consegue fazer relação do seu pensamento e expressá-lo
por palavras. Sem significado as palavras saem como um som vazio; são como “bolhas de
sabão soltas ao sabor do vento”, são sons ocos, como destaquei anteriormente, ou seja, não
são palavras. A criança no início de seu desenvolvimento possui, portanto, uma fala sem
pensamento e uma comunicação sem linguagem. É em função da presença da imagem mental,
que se torna possível, a partir de uma certa fase, a substituição do objeto pelo seu
representante em um sistema simbólico da linguagem.
A partir do momento em que a criança começa a entender o significado das palavras nos seus
contextos mais variados, ou seja, utilizando a linguagem de forma articulada - oportunizada
pelo encontro do pensamento com a linguagem -, as possibilidades de interação e
aprendizagens significativas crescem em uma progressão bastante acentuada.
[...] num certo momento, mais ou menos aos dois anos de idade, as curvas da evolução do pensamento e da fala, até então separadas, encontram-se e unem-se para iniciar uma nova forma de comportamento. [...] Esse instante crucial, em que a fala começa servir ao intelecto, e os pensamentos começam a ser verbalizados, é indicado por dois sintomas objetivos inconfundíveis: (1) a curiosidade ativa e repentina da criança pelas palavras, suas perguntas sobre cada coisa nova (“O que é isso?”); e (2) a conseqüente ampliação de seu vocabulário, que ocorre de forma rápida e aos saltos (VYGOTSKY, 1995, p.37).
Dessa forma, quando há na escola a compreensão de que a mediação é importante para
o desenvolvimento e aprendizagem, os momentos de trocas dialógicas são vistos como parte
do trabalho pedagógico. Essa concepção de infância que entende o espaço escolar como um
espaço de troca entre os pares contribui para a formação de indivíduos capazes de argumentar,
capazes de resistir ao poder do discurso monológico, que oprime e impede a polifonia. As
crianças desde pequenas podem ter seu discurso reconhecido e legitimado, como no exemplo
a seguir.
Pedro havia saído para tomar água. As outras crianças estavam na sala brincando com
blocos e outros brinquedos como carrinhos e bonecas. A brincadeira era livre e a professora
estava sentada à sua mesa, organizando as pastas que tinham vindo de casa. Pedro volta
contando que Isabel havia sido repreendida pela funcionária da escola.
Professora: - O quê?
Pedro não responde. Ela pergunta novamente:
- O quê, Pedro?
Maria Laura intervém: - Ôh Pedroo...
Professora: - Oh Pedro! Oh Pedro! Pedro!
Pedro: - Oi! Tava brincando aqui.
Professora: - Por que a Lúcia [funcionária] brigou com a Isabel?
Pedro: - Brigou porque ela [Isabel] tava mexendo no telefone. [telefone público que fica no
refeitório da escola].
Professora: - Cadê a Isabel?
Pedro: - Tá lá na sala dela... [Isabel é de outra turma, das crianças de 5 anos].
Professora: - Por que ela tava mexendo no telefone?
Pedro: - Eu não mexi, não...
Professora: - Sei! Mas ela, a Isabel, por que ela mexeu?
Pedro: - Ah tá! Ela queria ligar para um alguém...
Professora: - Ligar para alguém? Ligar para quem?
Pedro: - Só pode ser para a mãe dela... [continua brincando]
Quando Vygotsky afirma que o encontro do pensamento com a linguagem possibilita a
comunicação real, entendo que a linguagem então se estabelece, uma vez que a linguagem é
um complexo social que se orienta na interação e para ela se volta. Observei, nesse episódio
destacado, que Pedro já consegue comunicar-se utilizando-se de variedades lingüísticas
interessantes, como o uso dos pronomes de forma correta, por exemplo.
Ele infere sobre um alguém a quem Isabel poderia querer ligar, quando fala da colega,
utiliza o pronome pessoal para substituir o seu nome, dá significação à ação da colega de
mexer no telefone em um momento em que não seria o mais adequado e, por isso ser
repreendida pela funcionária, justificando que “alguém” importante só poderia ser a mãe de
Isabel. Com isso, quero dizer que vejo no discurso de Pedro que ele consegue se comunicar
em um complexo que extrapola a significação das palavras em si. Ele compreende que a
funcionária repreende Isabel por estar no telefone no momento de atividades em sala, entende
que há momento para se usar o telefone da escola, mas que há determinadas situações em que
a urgência poderia justificar uma ação contrária à regra estabelecida e, para isso, há que se
argumentar.
Pedro interage com a professora de forma inteligível e a convence de que Isabel fizera
algo e fora repreendida, porém haveria um motivo que a teria levado a descumprir as normas
de utilização do telefone. Nesse momento, aproximo a análise desse episódio à minha questão
da pesquisa, que busca compreender a concepção de infância que se revela nos diálogos.
Dessa forma, quando a professora busca em Pedro a compreensão para um evento no qual ela
não esteve presente, está demonstrando que vê naquela criança um interlocutor competente.
A professora Simone não foi até a funcionária da escola e tampouco até Isabel, a
garota de outra turma que estava envolvida no evento. Ela apenas conversa com Pedro. A
exemplo do que diz Paulo Freire, discute com a criança em uma perspectiva do diálogo
horizontal, ou seja, adota uma postura de respeito e reciprocidade na troca de conhecimentos e
vivências, demonstrando que para ela a criança tem opiniões a serem consideradas. A
professora Simone, nesse episódio, mostra que não é necessariamente a palavra do adulto que
confere verdade a um evento vivido. Em seu livro Geografia da Infância – Reflexões sobre
uma área de pesquisa, Jader Janer Moreira Lopes e Tânia Vasconcellos (2005) fazem uma
reflexão acerca das expressões cotidianas que se encarregam de delimitar espacialmente as
crianças, como, por exemplo, ‘lugar de criança é na escola’ ou ‘a rua não é lugar de criança’,
mostrando que os adultos, até mesmo aqueles que são atentos às demandas das crianças, são
responsáveis por “traçar territórios para as crianças”.
Expressões corriqueiras [...] delimitam espacialmente o que os adultos definem por territórios destinados ou vedados para as crianças. Essa definição tem correspondência com um lugar social prescrito à infância e às instituições capazes de concretizar a ocupação desse lugar social (LOPES & VASCONCELLOS, 2005, p.40).
Assim também é com a linguagem: expressões marcam concepções de infância e de
criança. Léa Stahlschmidt Pinto Silva (2003) cita Egle Becchi (1994) em cujo texto Retórica
de Infância procede à análise de expressões que conotam concepções de infância em que a
criança é vista como incompetente para estar no mundo e nele interagir, como nos exemplos
“é de menino que se torce o pepino”. Busco outro exemplo, outra expressão presente na
“retórica da minha infância”: “criança não tem querer!” e percebo que tais enunciações são
uma clara alusão a uma concepção que crê na ausência de expressividade e total dependência
da criança diante do mundo adulto. No episódio entre a professora Simone e o menino Pedro,
tais concepções de infância não estão presentes. Pedro reconhece sua interlocutora e a
professora Simone reconhece em Pedro a competência expressiva que é possível entre adultos
e entre adultos e crianças.
Ao se apropriar da linguagem e utilizá-la, a criança amplia o seu mundo, passando a
representar os objetos através das palavras. É através das palavras que o ser humano se
apropria da experiência deixada pelos outros seres humanos, construindo a história de sua
espécie, de seu povo, de sua região, não tendo a necessidade de vivenciar, repetir ele mesmo
as situações pelas quais seus antepassados experimentaram. As tradições orais, as festas
religiosas, o vocabulário, os regionalismos, tudo isso que é experiência sócio-cultural passa a
integrar a vivência dos indivíduos através da linguagem, entretanto cada um, na sua
singularidade, internalizará os elementos culturais de uma forma.
A importância da linguagem no desenvolvimento da criança é indiscutível, sendo que
a relação significativa de interação com adultos e também com os pares de sua idade, são
pontos fundamentais que devemos considerar no cotidiano da educação de maneira geral e, na
educação infantil, de forma bastante cuidadosa. Reafirmo a compreensão que tenho de que na
escola ocorrem trocas interativas entre crianças e entre adultos e crianças. Assim sendo, a
linguagem ocupa espaço em todos os momentos do cotidiano escolar das crianças. Até mesmo
em uma cena que talvez fosse completamente insignificante, como a que destaquei acima, em
que a criança utiliza os pronomes, argumenta e faz inferências sobre um fato junto a um
adulto, no caso a professora. Fica perceptível que a criança tem saberes e tais saberes são
considerados no espaço de relações da sala de atividades.
Vygotsky (1994) diz que o aprendizado é essencial porque possibilita a interação entre
sujeito, o ambiente sócio-cultural e o contato com o outro, evidenciando a importância da
aprendizagem sistematizada no desenvolvimento individual. Entretanto, a aprendizagem não
começa com a vida escolar, como já amplamente foi discutido em outros estudos acadêmicos.
A criança aprende na sua interação com o mundo, ou seja, muito antes de ela iniciar sua vida
escolar, trazendo para a escola sua aprendizagem.
Na escola não se ensina como usar o telefone público, porém o aparelho aparece nas
vivências das crianças no pátio e vem para a sala de atividades, ter um telefone público no
pátio interferiu no cotidiano das crianças, fez com que pensassem sua utilização naquele
ambiente específico. Embora não seja algo pensado para o trabalho infantil, os momentos em
que se poderia usar o telefone tiveram que fazer parte da pauta de discussão das crianças. É
um aprendizado do mundo que a criança traz e que, dependendo de como a escola observa
esse conhecimento, incorpora-o, reorganiza-o, ignora-o, ou busca modificá-lo. Lidar com as
coisas que estão no mundo é fazer parte do mundo como alguém que é em tempo presente. Os
autores portugueses Manuel Pinto e Manuel Jacinto Sarmento esclarecem sobre ser sujeito de
direitos:
A consideração das crianças como actores sociais de pleno direito, e não como menores ou como componentes acessórios ou meios da sociedade dos adultos, implica o reconhecimento da capacidade de produção simbólica por parte das crianças e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas (SARMENTO & PINTO,1997, p.20).
Quando considera que há na criança um conjunto de fatores que interferem na sua
individualidade, a escola reconhece essa criança como agente de sua própria vida. Ainda que
não se constitua como agente livre, fica claro que se trata de pessoas vivenciando uma etapa
fundamental da vida. Sendo assim, a escola também se reconhece como uma instituição que
faz parte da vida dessa criança, embora não seja a única nem exclusiva forma de contato da
criança com as formas de aprender. Vejamos:
Professora: - Conta aí pra mim!
Fabiana: - Um, dois, três, quatro...[mecanicamente]
Professora [interrompendo]: - Então você só quer quatro. Conta até quatro; conta aí até
quatro.
[Ela atende e devagar vai buscando os quatro palitos]
Fabiana: - Sobrou.
Professora: - E o que você vai fazer com eles?
Fabiana [em dúvida]: - Não sei...
Professora: - Esse aqui, você não vai precisar? É esse aqui que você não vai precisar?
Fabiana abaixa e cabeça e nada fala, mas levanta os ombros em um sinal de desconhecimento
da resposta que a professora quer ouvir.
Professora: - Ué, se você não precisa dele, onde você vai pôr ele?
Léo [observava a conversa da professora com Fabiana, intervém]: - No lugar.
Professora: - Pôr onde, Léo?
Léo: - Aqui, oh, Fabiana [aponta a mesa da professora].
Fabiana vai e coloca os palitos na mesa e volta para o seu lugar.
A professora propôs uma atividade que Fabiana não sabia como resolver. Como a
menina não conseguia avançar na resolução, a professora começa a intervir, mas é a
possibilidade levantada pelo colega que leva Fabiana a resolver a situação que consistia em
contar e retirar 4 palitos - de um conjunto que deveria conter mais de 20 - e colocar os que
sobrassem na mesa da professora. Quando analiso esse episódio, faço um pequeno comentário
acerca de como os professores de Educação Infantil têm construído a identidade profissional
até a atualidade. De mães substitutas a tias, e de tias a professoras que preparavam o ingresso
da criança com prontidão para a primeira série. Uma trajetória construída entre lacunas e por
formações possivelmente insuficientes. Nesse episódio posso interpretar que a professora de
Educação Infantil, que é consciente política e socialmente do seu papel, reconhece nas
crianças, na infância e na diversidade, a possibilidade de realizar um trabalho de criatividade,
de coletividade, de legitimação das plurais manifestações que existem na nossa sociedade.
Sendo assim, identifica na interação e na troca entre as crianças, as famílias e ela própria um
significativo espaço de aprendizagem. Reconhece, também, que sua intervenção pode ser
mínima em uma atividade que, porventura, as crianças estejam realizando.
Retornando ao episódio do campo, à primeira vista, em um olhar superficial, a
professora parece deixar com Leonardo a responsabilidade de ensinar Fabiana a contar os
palitos. Essa atitude, se analisada sob a ótica da concepção de infância baseada na pedagogia
do ensinar, denota a ausência da professora no cumprimento de sua tarefa que é ensinar
aquele que não sabe, no caso, a criança. Contudo, os estudos como os de Vygotsky apontam
para a importância da compreensão do processo de aprendizagem, ao invés da preocupação
com seu produto.
O conhecimento do processo que a criança realiza no desenvolvimento de uma tarefa é
atitude fundamental na atividade docente. Nem sempre o resultado correto significa que a
aprendizagem de fato se efetivou, uma vez que o produto final pode significar, apenas, uma
resposta mecânica. É importante que o professor acompanhe o processo que a criança utiliza
para chegar às suas conclusões, assim como agiu a professora no episódio em destaque.
Importante também é a consideração da criança como co-construtora do conhecimento. Isso
posto, é preciso que o professor atue tendo em vista esse processo, intervindo, provocando,
estimulando ou apoiando, quando a criança demonstra dúvida em uma determinada atividade.
A atitude da professora ao mediar, até certo ponto, a atividade indica o
reconhecimento da competência da criança na mediação, na troca entre os pares. Nessa atitude
de valorização do conhecimento como algo construído e mediado, as crianças também se
reconhecem como sujeitos, constituem-se compreendendo que sua história e sua vivência são
importantes para o seu grupo.
Pela discussão que procurei fazer até aqui, no diálogo com as idéias de Vygotsky em
articulação com meus dados de pesquisa de campo, é possível observar a importância da
presença do outro na aprendizagem e no desenvolvimento. A maioria das aprendizagens
humanas se dá através da transmissão oral ou escrita de experiências que se transformam, tais
quais os objetos, em instrumentos do pensamento. Pode ser dito que a aprendizagem é
mediada pela linguagem e seus símbolos e signos.
Ao reconhecer a mediação presente no diálogo entre Ana e Mirela [ Pesquisadora: O
que é roupa normal? Ana [levanta-se novamente]: Roupa normal? Ai, o que eu vou explicar
agora? Mirela: É de usar em casa.] e no diálogo entre a professora, Leonardo e Fabiana
[Léo: - Aqui, oh, Fabiana [aponta a mesa da professora].Fabiana vai e coloca os palitos na
mesa e volta para o seu lugar.], penso que exemplifico e reconheço a mediação como fator
fundamental na aprendizagem das crianças da sala de atividades que tive a oportunidade de
observar.
Nesse contexto, é importante salientar que a mediação entre os indivíduos é uma
forma privilegiada de aprendizagem, apropriação cultural e também de construção da
identidade. É através da interação com o outro que posso ser eu mesma, posso me situar no
mundo como ser humano singular, porém, historicamente constituído.
Assim, quando a escola possibilita as interações, os diálogos e é sensível para o fato de
que a criança é diferente do adulto – tanto física quanto psicologicamente – realiza o seu
trabalho evitando o pré-formismo, evitando a ação centrada na perspectiva quantitativa de
desenvolvimento, evitando dirigir o olhar para o que falta à criança.
De acordo com Vasconcellos (1998, p 50-1), há nas proposições de Vygotsky uma
interpretação indicativa de que a escola - e também a creche - tem seu papel ampliado, sendo,
conseqüentemente, ampliado também o papel do ensino. A escola é entendida como um
importante espaço de interação e participação colaborativa entre os pares, portanto, local onde
o diálogo e a mediação podem acontecer favorecendo a realização de atividades que
despertem a Zona de Desenvolvimento Proximal25, conceito ao qual Vygotsky dedicou parte
significativa de seus estudos.
Sendo a escola um local de aprendizagem, cabe a ela dialogar com todos que dela
fazem parte: adultos, crianças, adolescentes mediando o contexto de aprendizagem com as
possibilidades de agir autonomamente com os conteúdos historicamente construídos e que são
objeto de trabalho da escola. Sendo a escola um local de interação, a relação entre as pessoas
deve ser privilegiada na prática escolar cotidiana, visto que dela derivam os processos de
25 Zona de Desenvolvimento Proximal é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes. (VYGOTSKY, 1994, p.112).
comunicação e as funções mentais superiores que são, para Vygotsky (1994), as funções
exclusivamente humanas, fundamentais para a mediação, em que a linguagem ocupa papel
significativo.
O pensamento e linguagem, que refletem a realidade de uma forma diferente daquela da percepção, são a chave para a compreensão da natureza da consciência humana. As palavras desempenham um papel central não só no desenvolvimento do pensamento, mas também na evolução histórica da consciência como um todo (VYGOTSKY, 1995, p.132).
A escola é um lugar essencialmente dialógico. Pela perspectiva da interação, avancei
em minha compreensão sobre a infância e a educação infantil. Através dos diálogos na sala de
atividades, percebi que muitos aspectos do desenvolvimento, da cultura e da aprendizagem
fazem parte do cotidiano daquela instituição. Entretanto, faço a observação de que, nessa
mesma instituição, há momentos nos quais há a escolha, prioritariamente, da cognição como
objetivo dos trabalhos das crianças.
Outras perspectivas importantes para o desenvolvimento infantil, da cultura escolar e
da convivência são por vezes ignoradas em detrimento do trabalho com questões ligadas aos
aspectos cognitivos didatizados. Ao invés de descrever um fragmento da pesquisa, optei por
trazer a linguagem visual, que cumpre a função de exemplificar o que estou denominando
“prioridade de aspectos escolarizados” como desenhos em fotocópias, atividades todas iguais,
marcados pela ausência de autoria tanto das crianças como das professoras.
Fotografia 1: Varal de atividades da turma CA4.
Fonte: Acervo da autora.
Fotografia2: Mural de atividades da sala CA4. Fonte: Acervo da autora.
Não há dúvida de que é importante que a escola privilegie em seu currículo conteúdos
historicamente construídos, porém deve atentar para a autoria das crianças na apropriação
desses conteúdos.
Na escola de Educação Infantil o espaço de vivências, ludicidade, criatividade e
interação foi, em alguns momentos, substituído por intervenções de caráter pedagógico.
Minha observação possibilitou essa interpretação, uma vez que, na primeira imersão no
campo, com a turma de crianças de 5 anos, observei e filmei não apenas a sala de atividades,
como também os espaços externos. Embora com as crianças e professora da turma de 4 anos
não tenha realizado filmagens na área externa da sala, realizei observações que me levaram a
compreender que existe, na escola, uma concepção por parte das professoras de que a sala de
atividades é o lugar onde se ensina. Os espaços externos são utilizados de forma mais lúdica,
evidenciando a contradição na concepção de infância que guia a prática pedagógica. Utilizo
novamente a imagem como forma de linguagem exemplificando essa contradição: dentro da
sala e fora da sala.
Fotografia 3: Brincadeira livre no espaço externo. Fonte: Acervo da autora.
Embora Simone, que é a professora das crianças de 4 anos, tenha em sua prática
espaços para que a sala de atividades também se constitua como lugar de lazer e interação,
identifico momentos em que isso se mescla com atividades centralizadas no ato pedagógico
de ensinar e aprender, em que ela ensina e as crianças aprendem. Os diálogos e as ações são
indicativos de um conflito entre as concepções de educação da infância: são meus alunos da
Educação infantil ou são as crianças da Educação Infantil... A mesma professora que
reconhece nas palavras de Pedro um interlocutor competente, capaz de expressar sua opinião
e interagir com adultos, a mesma profissional que reserva na rotina um horário para
brincadeira livre e conta histórias diariamente, também enxerta objetivos claramente
pedagógicos durante a contação da história da Branca de Neve.
Especificamente neste dia, em que a professora Simone contou a história “Branca de
Neve e os Sete Anões”, essa alternância entre a concepção de infância que entende que a
criança necessita ser ensinada, preparada para o ensino fundamental e a infância concebida
como espaço de trocas e relações, ficou bastante evidente. Durante a contação da história da
Branca de Neve, foi possível identificar, na mesma professora, concepções de educação
infantil e de criança bastante distintas. O evento é muito significativo:
Professora: - Então, deixa aí. Oh, nós vamos ouvir agora a história da Branca de Neve, tá?
Olha aqui, oh, eu vou escrever o título aqui [escreve BRANCA DE NEVE no quadro]. Tem
umas letrinhas aqui que a gente já conhece, né? As crianças falam A A E... Fazem coro e
lêem:
- Branca de neeeeve!
Professora: - Quais letrinhas a gente já conhece?
Maria Laura: - B...
Crianças: -A, letra A. .
Professora: - Quantos “As” tem?
Crianças: - Dois!
Professora: - Qual a outra letrinha que a gente já aprendeu?
Crianças: - E.
Professora: - Quantas letras E?
Crianças: - Duas.
Júlia Barcelos: - Três.
A professora circula as letras E e pergunta: - Quantas?
Crianças: - Três.
Professora: - Agora vamos contar quantas letrinhas tem em Branca de Neve... Oh Pedro! Por
favor, Pedro e Clara...
Gustavo:- Tia, eu também conheço aquela dali [aponta uma letra].
As crianças contam: - ‘BRANCA’ tem seis, ‘DE’ dois e ‘NEVE’ quatro.
Professora: - Neve tem quatro, igual a idade de vocês, né?
Crianças: - Eu tenho quatro...
Professora: - Aqui, eu trouxe a Branca de Neve que tava lá no parquinho, oh!
Crianças: - É, é...
Professora: - Olha pra cá, depois eu vou dar para colorir oh, a Branca de Neve com os 7
anões... e eu trouxe a Branca de Neve que tava lá no parquinho, tava perdida lá no
parquinho, aí eu trouxe para ela participar da nossa história.
Observo que, quando a professora interage com essa linguagem, quando ela anuncia a
história dessa maneira, ela consegue a interação no sentido dialógico. Aqui, neste momento,
quando a professora altera a tônica do diálogo, considerando os interlocutores que são as
crianças, há uma mudança no tema, no sentido, que inicialmente havia se estabelecido.
A professora Simone durante essa atividade alterna a sua ação em relação às crianças.
A meu ver, tal atitude sinaliza que não há clareza na sua concepção de infância e,
conseqüentemente, de educação infantil. Ela começa anunciando o mágico, o lúdico, ela
anuncia a história dentro de uma concepção de criança que necessita da fantasia e da
imaginação no seu cotidiano. Porém, há uma abrupta interrupção nessa linguagem fantástica e
a professora começa a buscar na história possíveis ligações com conteúdos pedagógicos
[letras, quantidades...], demonstrando que, naquele momento e espaço, a criança é alguém que
precisa aprender, é aluno pré-escolar, portanto deve estar preparado para ler e escrever. As
estratégias pedagógicas são cumpridas dentro de uma formalidade a que as crianças já se
acostumaram na escola, respondem às perguntas que Simone faz mecanicamente e ela, dando
por encerrada essa parte da atividade, começa a contar a história da Branca de Neve.
Nesse momento, Simone reconhece nas crianças indivíduos que estão em uma faixa
etária específica para quem é importante ouvir histórias. A professora, ao ensinar as letras,
talvez tenha tido a convicção de que é necessário iniciar as crianças no mundo letrado.
Entretanto, ao meu ver parece que o contato com a história em si representa algo mais
significativo para o processo de letramento da criança. A prática de ler o texto com voz
emprestada do adulto é uma forma de iniciar o verdadeiro letramento, uma forma de ler com
seus próprios ouvidos. Nas palavras de Luiz Percival Leme Britto (2005):
Na educação infantil, ler com os ouvidos e escrever com a boca (situação em que a educadora se põe na função de enunciadora ou de escriba) é mais fundamental do que ler com os olhos e escrever com as próprias mãos. Ao ler com os ouvidos, a criança não apenas se experimenta na interlocução com o discurso escrito organizado, como vai compreendendo as modulações de voz que se anunciam num texto escrito. [...] Se lermos uma história com (com e não para) uma criança que ainda não conhece o sistema de escrita e pedirmos para ela recontar o que leu, ela certamente não dirá a história com as mesmas palavras do texto original, nem reproduzirá o enredo em sua exatidão, mas demonstrará que compreendeu o texto (que interagiu com ele) (BRITTO, 2005, p. 18-9).
Enquanto insistia nas questões de perguntas e respostas, a professora Simone e as
crianças não estabeleciam a dinâmica comunicativa. No momento em que há a mudança na
corrente comunicativa – o contexto passou a ser compartilhado – estabeleceu-se o que
Bakhtin (1992) denomina de “apoio coral”, ou seja, a comunicação se estabeleceu de forma
conjunta e conhecida, partilhada. Pela linguagem, a professora ultrapassou a barreira etária
que a separa das crianças e com elas foi capaz de dialogar verdadeiramente. Utilizando-se da
linguagem do mágico e do fantástico, ao trazer a boneca da Branca de Neve para a sala e
introduzi-la no contexto das crianças, Simone aproximou-se delas, sem que isso acarretasse
sua infantilização.
Utilizando de entoação para contar a história da Branca de Neve, foi capaz de
emocionar as crianças, de comunicar-se em uma outra perspectiva, a perspectiva da literatura,
aumentando as experiências das crianças tanto pessoais, quanto cognitivas e também afetivas.
Acredito que, no final dessa atividade, quando Simone se distancia de objetivos
especificamente escolarizados e mergulha na linguagem como forma de encantamento,
interação e ludicidade, a atividade cumpre a sua verdadeira função, que é interagir com o ser
humano no mundo, conforme a percepção de Alexis N. Leontiev (2001).
O processo interativo colabora para que a criança aprenda o que é ser humano, o que é
ser homem/mulher, para que compreenda as relações culturais e também os conhecimentos
acumulados por sua espécie ao longo da história, sendo, portanto, rico em possibilidades para
que as crianças se desenvolvam.
A sala de atividades é o local onde o desenvolvimento dos conceitos científicos pode
acontecer. Partindo desse pressuposto, tanto a humanidade quanto o saber científico avançam
à medida que a multiplicidade de vozes interage. Dessa forma, entendo que a escola é um
local privilegiado de interação, mediação, troca entre os pares, tudo isso desenvolvido pelo
diálogo, pela linguagem. Sobre a linguagem, Edwiges Morato (1991) esclarece:
[...] ao mesmo tempo em que integra os processos mentais, tendo, portanto, uma realidade cognitiva , a linguagem, como ação significativa entre interlocutores, constituída por condições sócio-históricas, tem uma realidade discursiva (MORATO, 1991, p.66). 26
Dessa forma, fica perceptível a importância do papel da escola em organizar e planejar
situações em que a aprendizagem real ocorra, privilegiando a fala das crianças, os espaços de
inter-relação, a comunicação e sua autonomia. Um começo pode ser observado no episódio a
seguir:
Professora fala para Pedro:
- Pega outra cor também, né? [eles estão fazendo uma atividade de colorir com lápis de cor].
Pedro responde:
- Eu vou colorir do meu jeito!
A professora sorri para ele.
26 Destaques da autora.
BREVÍSSIMAS CONSIDERAÇÕES
OU
MAIS UM ELO NA CORRENTE DIALÓGICA DAS INFÂNCIAS
No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
MANOEL DE BARROS
Quando Manoel de Barros afirma que a criança delira, interpreto como se o poeta
estivesse dizendo que a criança permite. Permite que suas fantasias apareçam e que seu
deslumbramento diante do mundo aguce sua curiosidade de saber o que ainda não sabe,
conhecer o que ainda não conhece. Os adultos nem sempre se permitem. Quase sempre se
esquivam em se mostrar incapazes ou sem o conhecimento sobre alguma coisa. O mundo para
os adultos nem sempre se mostra como um lugar de muitas possibilidades...
Quando me propus estudar os diálogos na educação infantil, tive como questão central
compreender a concepção de infância que guiava a prática pedagógica da instituição.
Através da empiria, do meu contato com o campo, alterei as possibilidades de resposta
à minha questão. A mim, faltava o plural em todas as dimensões. O meu mundo de adulta me
limitou em uma possibilidade: concepção, infância, instituição. Meu único plural relacionava-
se às crianças e, se me referia a elas dessa forma, era porque, na sala de atividades, elas eram
em número maior que um, o que me obrigava, pelas regras da gramática, a me reportar a elas
como “crianças”.
O objetivo deste capítulo é refletir sobre aspectos importantes que apareceram ao
longo do texto e que apontaram para a ausência de unidade de concepção de infância, de
criança, de escola e, também, apontar algumas considerações que poderão formar mais um elo
na corrente das discussões, estudos e pesquisas que têm sido feitos por diversos autores,
estudiosos da infância, tanto no Brasil, como também em outros países. Não tenho a pretensão
do inédito, visto que “não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites
para o contexto dialógico” (Bakhtin, 2000, p.413), mas tenho a intenção de ter conseguido
lançar meu olhar para os fenômenos que observei e deles ter feito minha interpretação. Assim
entendo a validade dessa pesquisa, por trazer à tona as discussões sobre a infância sob a ótica
do meu olhar, que foi compartilhado com os olhares e as palavras das crianças e professoras
com as quais interagi.
Não foi uma tarefa simples, portanto! A atividade de estudar um tema não consiste em
uma experiência trivial. É um exercício contínuo de grande envolvimento, mas de muitas
dúvidas e grandes desafios. Pesquisar a linguagem, também não é uma tarefa que se consegue
sem esforço. O caráter efêmero da linguagem oral, que foi minha maior fonte de dados,
dinamiza o processo da pesquisa, o que demanda extrema atenção e disciplina. Em uma sala
de atividades com crianças que interagem pela linguagem o tempo inteiro, há que se
considerar que nem tudo pôde ser registrado, embora tivesse contado com o suporte de uma
câmera filmadora. No entanto, ao finalizar este estudo, causa-me bastante tranqüilidade
reconhecer as vozes das crianças aqui, dando corpo a este texto, formando a estrutura
principal que me levou ao encontro de autores para explicar e compreender as suas falas em
interação com os seus pares e com a professora.
Iniciei esse estudo buscando a concepção de infância e de Educação Infantil da
instituição e me deparei com a presença de diferentes concepções, às vezes conflitantes, que
me levaram a considerar que não havia um uníssono quanto a essa concepção. Esse foi um
dado a ser considerado da maior relevância, já que modificou minha maneira de olhar para a
questão que me propus a investigar.
Em alguns momentos, os diálogos das crianças entre si e com a professora me
revelaram uma concepção de infância baseada no respeito à diversidade, com entendimento
das características próprias do que é ser criança na contemporaneidade. Em contrapartida,
com os mesmos participantes ocorriam diálogos em que pairava a concepção de infância e,
conseqüentemente, de criança como semente a ser despertada, inerte diante do mundo.
Palavras ditas no diminutivo, direcionamento de atividades para que todos fizessem a mesma
coisa ao mesmo tempo, colas e tintas sendo colocadas no papel pela professora em oposição a
uma linguagem de solidariedade, de um planejamento rico em músicas, histórias e
brincadeiras de faz-de-conta: essa foi a realidade que encontrei em minha pesquisa – ausência
de um projeto consistente para a educação da infância por parte da instituição.
Acredito que a concepção de educação guia a prática pedagógica e evidencia escolhas.
Assim, quando vejo que as crianças da educação infantil não integram plenamente o sistema
de educação – ressalto que minha pesquisa foi realizada em 2004 e parte de 2005, portanto a
Lei do FUNDEB27 ainda esse encontrava em processo de votação no Congresso Nacional –
interpreto que a concepção de infância presente é a de que a criança pequena não é
considerada como cidadã que tem direitos e saberes e sim como aquela que necessita apenas
de cuidados maternos. Por isso, a educação dos menores de seis anos e, em especial, dos
menores de 3 anos não representa preocupação para aqueles que definem as políticas para a
Educação Infantil.
Os últimos anos foram significativos para a discussão da importância da escola e da
creche no desenvolvimento infantil, através do fortalecimento legal, proporcionado pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente e também da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, lei
nº 9394/96, que reconheceu a Educação Infantil como Primeira Etapa da Educação Básica.
Embora esteja embasada em uma legislação considerada avançada, a Educação Infantil
27 FUNDEB – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
pública brasileira convive com uma realidade de escolas e creches funcionando de forma
bastante precária.
A realização de pesquisas nas universidades, a ampliação de publicações com a
temática da infância, bem como o fortalecimento de entidades como a OMEP – Organização
Mundial para Educação Pré-escolar - os Fóruns Estaduais e o Movimento Interfóruns de
Educação Infantil no Brasil – MIEIB – colaboraram para que houvesse mobilização para a
inclusão das crianças de 0 a 3 anos na Lei do FUNDEB. Através dos movimentos “Fraldas
Pintadas” e “FUNDEB pra valer – Educação começa no berço e é pra toda vida” realizados
nacionalmente, a temática da educação da infância ocupou espaço na mídia e, durante a
votação no Congresso Nacional, houve o aprimoramento da proposta do Fundo, através da
substituição da Proposta de Emenda Constitucional – PEC- incluindo os menores de 3 anos.
Aprovada pela Câmara dos Deputados, a PEC aguarda votação no Senado Federal para
fevereiro de 2006.
A ausência de políticas públicas sólidas para a educação da infância acaba por se
refletir em práticas pedagógicas carentes de uma fundamentação teórica consistente por parte
dos profissionais da Educação Infantil.
A linguagem é mais do que palavras. Sendo assim, as escolhas que se traduzem em
políticas, em gestos, em silêncios, em olhares, em espaços e lugares nos mostram a
importância, a falta de importância ou desconhecimento que se tem sobre algo. Dessa forma,
não é preciso que os dirigentes, aqueles que deliberam sobre as políticas para a educação da
infância, posicionem-se apenas quanto ao seu entendimento das necessidades infantis, uma
vez que a ação é indicativa da concepção que se pratica. É possível que, para eles, havendo
um lugar onde as crianças possam ser cuidadas, seja uma creche/escola conveniada ou uma
escola adaptada, seja o bastante. Os problemas parecem desaparecer com a simples oferta de
vagas... desconsiderando a importância da formação dos professores, do espaço físico, entre
outros fatores. É preciso que aqueles que deliberam sobre as políticas escutem a sociedade a
qual representam; estejam atentos às suas necessidades e anseios.
Outra questão que se me apresentou como das mais significativas diz respeito ao
espaço físico como forma de diálogo, já que denunciava o descaso das políticas públicas para
com a infância. Dessa maneira, a importância do espaço como enunciado não surgiu por
acaso.
As salas que pesquisei são adaptadas: a antiga sala de supervisão e parte da biblioteca
foi adaptada para o funcionamento da sala de atividades do CA5; a antiga secretaria, para as
atividades da sala do CA4. Tal espaço é extremamente pequeno e sem possibilidade de
movimentação, tanto por parte das crianças como também da professora. As mesas são muito
próximas umas das outras e, constantemente, uma criança necessita pedir licença ao colega
para levantar-se. Com isso, não estou rejeitando as normas de convivência, as convenções
sociais necessárias ao convívio harmonioso, mas sim chamando a atenção para o fato de que,
no período em que permanece em sala, a criança fica impedida de movimentar-se
independentemente. Nesse contexto, a questão da autonomia como projeto de emancipação,
de acordo com Paulo Freire, fica prejudicada. O documento preliminar sobre padrões de infra-
estrutura e qualidade para as instituições de educação infantil reconhece a importância do
espaço:
A idéia de que para se ter educação bastam apenas algumas carteiras, cadernos e quadro negro, excluindo a qualidade do espaço desse processo, deve evoluir para uma abordagem interacionista que permita a visualização das relações e trocas entre sujeito e ambiente, fundamentais para o desenvolvimento infantil (BRASIL, 2004, p.15- 6).
O espaço destinado às crianças pequenas naquela escola sinaliza que não havia sido
pensado um lugar para elas, que não havia sido planejada a inserção de crianças menores de 7
anos naquele ambiente, apesar da sua permanência ser um direito explicitado na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB nº 9394/96. Para os pequenos o improviso é
ainda uma prática recorrente. E, como a prática pedagógica é afetada por questões espaciais,
de falta de infra-estrutura, será que os professores estão atentos ou já despertaram para essa
questão crucial no cotidiano escolar? Na escola pesquisada, sim.
A observação que faço quanto ao espaço vem de encontro às recomendações do
Ministério da Educação e Cultura - MEC, no Referencial Curricular Nacional para a
Educação Infantil (1998), às quais a escola não cumpre por ser pequena, por não dispor de
outro espaço, por depender de verbas públicas, e talvez por entender que a quantidade de
alunos na escola se sobrepunha a questão da qualidade do atendimento que é dispensado à
educação das crianças.
Assim, a educação infantil pode ser realizada no improviso, desconsiderando que,
A estruturação do espaço, a forma como os materiais estão organizados, a qualidade e adequação dos mesmos são elementos essenciais de um projeto educativo. Espaço físico, materiais, brinquedos, instrumentos sonoros e mobiliários não devem ser vistos como elementos passivos, mas como componentes ativos do processo educacional que refletem a concepção de educação assumida pela instituição. Constituem-se em poderosos auxiliares da aprendizagem. Sua presença desponta como um dos indicadores importantes para a definição de práticas educativas de qualidade em instituição de educação infantil (BRASIL, 1998, p. 68, vol.1)
A ação presente na interação é bastante indicativa dos lugares sociais de quem a
pratica. E a ação é profundamente marcada pela questão do espaço como construção social,
como algo sem neutralidade, que comunica e informa e que saltou aos meus olhos sob a forma
da mensagem de que a criança pequena se adapta em qualquer espaço.
Na sala em que funciona o CA5, os brinquedos ficam em armários fixos na parede,
visto que não há lugar para que fiquem no chão; os materiais de uso constante (colas, lápis,
tesouras, cadernos, papéis, livros...) são guardados no armário da professora no fundo da sala,
mas as crianças têm acesso livre a ele. Repito: como as escolhas denunciam a importância, a
falta de importância ou desconhecimento a respeito de algo, interpreto que as escolhas para a
Educação Infantil denunciam que para os pequenos... pequena importância.
Na medida em que avançava nas discussões sobre os enunciados, as palavras, as
interações verbais, fundamentada principalmente pelo autor russo Mikhail Bakhtin, a questão
da ausência de neutralidade do espaço se confirmava, uma vez que para esse autor não são
somente as palavras que comunicam, mas estas conduzem à extrapolação dos limites do texto,
- entendendo-se por texto, as situações de interação verbal, o texto escrito, a obra de arte, o
prédio construído... De acordo com Bakhtin (1992), tudo o que é portador de significado
possui ideologia e remete para algo que vai além de si mesmo, ou seja, tudo o que é
ideológico é um signo.
As políticas públicas que não contemplam os pequenos e as pequenas revelam uma
infância desconsiderada, sem importância e subjugada a condições rudimentares de acesso à
escola e aos bens culturais. A escola pesquisada optou por fazer em seu prédio adaptações
para que pudessem funcionar as duas turmas de educação infantil. Isso significa afirmar que,
nessa escola, há o reconhecimento da importância da escola para os menores de seis anos,
entretanto, frente a impossibilidade de atender às crianças em um espaço confortável ou
deixar que essas crianças ficassem sem escola, a opção foi por trazer as crianças e improvisar
o espaço físico. O reconhecimento da importância da escola, da interação e do contato com o
outro é confirmado pela professora das crianças de 4 anos:
A professora Simone fala para mim:
- Nossa, você precisava ver a Daniele no início [do ano], ela quase não falava e nem
conversava... como a escola desenvolve!!! Eu vejo como ela chegou e como ela está!
Quando a professora Simone observa Daniele e sua desenvoltura na sala, interagindo
com os colegas, a professora está avaliando não só a criança em seu desenvolvimento, mas
também reconhecendo a importância da escola de Educação Infantil. Reconhecer-se
importante para o desenvolvimento do outro, mas impotente sem a ação do outro, assim
entendo a maneira como Simone viu a menina Daniele: em processo de desenvolvimento na
escola, com os colegas, na interação, pois antes: - ela quase não falava e nem conversava.....
Retomo algumas falas da página 100, em que as crianças estão esperando para ouvir a
história da Branca de Neve e a professora, antes de contar, faz uma série de perguntas sobre as
letras que o nome “Branca de Neve” contém. Irei repetir algumas dessas falas aqui.
Professora: - Então deixa aí. Oh, nós vamos ouvir agora a história da Branca de Neve, tá?
Olha aqui, oh, eu vou escrever o título aqui [escreve BRANCA DE NEVE no quadro]. Tem
umas letrinhas aqui que a gente já conhece, né?
As crianças falam A A E... fazem coro e ‘lêem’:
- Branca de neeeeve!
Nessa turma de crianças de 4 anos, que nunca haviam freqüentado a escola antes, sem
experiência a respeito do cotidiano escolar, já que tinham apenas a imagem social da escola
vinda da vivência em família, da comunidade, do senso comum, identifico que estão
aprendendo a como ser aluno, a como ser aluna. Já na Educação Infantil, demonstram um
comportamento bastante escolarizado, ou seja, estão imitando, vivendo, reproduzindo ou até
mesmo aprendendo padrões de comportamento bem próximos da sala de aula que
conhecemos secularmente. Cabe reafirmar aqui, que nenhuma dessas crianças já havia
freqüentado uma escola anteriormente, dado que me permite inferir que é naquele espaço
onde pesquisei que se está ‘aprendendo a ser aluno’, ao contrário do que se espera para as
crianças da Educação Infantil, que continuem a ser crianças em suas salas de atividades, com
a possibilidade de interagir com os colegas que o espaço permite. Alguns diálogos que
presenciei nos momentos dos ‘trabalhinhos’ foram bastante indicativos de que, naquele
momento específico, a professora age como alguém que concebe a educação infantil como um
espaço preparatório para o ensino fundamental.
A questão que moveu esse estudo foi possível ser respondida através da observação,
registro e análise da triangulação do diálogo entre criança↔criança↔professora, que me
revelaram sutilezas na relação pedagógica suscitada pela concepção de criança e de educação
infantil da professora.
A necessidade de um olhar mais apurado, que fizesse recortes nos eventos
entrecruzando-os com as questões teóricas foi importante para que este texto não ficasse
demasiadamente extenso. Encerrada a caminhada da pesquisa de campo, a análise dos dados
fez por confirmar algumas impressões que tivera de imediato no locus investigativo,
acrescidas de outras análises que foram construídas, com muito esforço, ao longo de dois
anos. Em um dos episódios analisados, em que Leonardo e Fabiana interagem com a ajuda da
professora até determinado ponto, minha visão inicial foi a de que a professora se mostrara
despreparada para compreender a situação em que um colega atuava na Zona De
Desenvolvimento Proximal da menina. Em minha análise preliminar, pensava que a tarefa de
professora deveria consistir em acompanhar a atividade até o seu desfecho, não percebendo
que Graça, ao eximir-se de exercer seu papel na situação, na verdade estava propiciando que
tal mediação se desse através da figura do colega, sem que fosse necessária sua intervenção
direta.
Todos os indicativos de uma ausência de consistência na concepção de criança e de
educação infantil percebidos através dos diálogos nessa escola me revelaram que, embora a
infância esteja muito presente na mídia, no mercado e na sociedade de forma generalizada, o
desconhecimento de como se dá a aprendizagem, como ocorre o desenvolvimento ainda são
consideráveis quando pensamos em uma educação infantil de qualidade. A formação
continuada é uma importante estratégia para que os conhecimentos dos professores não se
diluam no senso comum e o trabalho seja inexpressivo, sem profundidade, nem propósitos
claros que objetivem uma educação realmente transformadora. Na escola em que realizei as
minhas observações, oscila-se entre uma concepção que vê na criança algumas
particularidades e a lógica escolar do ‘trabalhinho’, do resultado, do desempenho a ser
mostrado para a família.
Família e escola em conjunto podem saber mais sobre a infância e a proposta
pedagógica pode ser dialogada entre ambas. O reconhecimento dos saberes dos pais também é
uma maneira de conceber a educação. A escola não é um templo de verdade. O diálogo é
possível.
Nessa pesquisa os diálogos me revelaram que a criança precisa ser ouvida e escutada.
Não só pela escola, mas também pela academia: um diálogo verdadeiro e consistente com
elas! Os diálogos que acontecem na escola devem ser considerados na construção de uma
proposta sólida de Educação Infantil. Para tal, é preciso deixar que a linguagem flua e que as
considerações pessoais apareçam. Como diz Elizabeth Ellsworth:
Se eu não respondo do lugar situado no interior da relação social construída e interessada chamada diálogo, à qual você falou quando se endereçou a mim, então também você não está no lugar que você pensava. E essa é a crise social, política e pedagógica provocada se eu ouso recusar-me a fazer dos interesses que subjazem à relação dialógica os meus próprios interesses (ELLSWORTH, 2001, p.67).
Saliento que, embora a conclusão da pesquisa possa, em primeira análise, parecer
óbvia, indico que na sala de atividades facilmente se pode perder o foco do principal elemento
da educação infantil -as crianças - em favor de métodos instrucionais e estratégias de ensino
que, centradas em objetivos preparatórios e mecânicos, jamais contribuirão para a real função
da educação da infância. A autoria e o diálogo são questões que sozinhas não representam a
solução final para a educação das crianças, porém devem estar presentes cotidianamente na
escola, juntamente com as políticas públicas eficientes, a formação dos professores, a
integração com a comunidade.
A convivência dialógica nos ensina sobre o outro e se aprendo sobre o outro, aprendo
sobre mim. Talvez esta não seja uma necessidade só da educação das crianças, mas
especificamente aqui, gostaria de deixar salientado que sim, que as crianças precisam ter seu
diálogo reconhecido. Ouvir não é tarefa simples. Perguntar também não. Talvez estejamos nos
permitindo muito pouco no campo das interações dialógicas com as crianças. Ousar o diálogo
verdadeiro e horizontal que Paulo Freire nos deixou como um legado, já que dialogar não é
apenas trocar palavras, é viver a linguagem, é a vida. Como nos ensina Bakhtin, “viver é
participar de um interminável diálogo”.
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ANEXOS
CONSENTIMENTO DAS CRIANÇAS PARA REALIZAÇÃO DE PESQUISA
Cada criança que faz parte da turma do CA 4 sabe que estou aqui junto de vocês e,
também, da professora para aprender um pouco mais sobre a Educação Infantil. Quando
cheguei na sala conversamos sobre a pesquisa que eu estou fazendo e então vocês conheceram
a filmadora, as baterias, a máquina fotográfica e me mostraram atividades, brinquedos e
muitas outras coisas.
Eu pedi e vocês, a professora e também os responsáveis de vocês em casa
concordaram. Acontece que a professora e os responsáveis assinaram uma cartinha que eu
pedi... e vocês não assinaram. E é isso que eu quero pedir para cada um que está aqui. Queria
que vocês colocassem nessa folha que eu trouxe, alguma coisa para eu levar para a minha
pesquisa e que mostrasse que vocês aceitaram participar junto comigo e com a professora.
Quero de novo agradecer por vocês terem deixado que eu ficasse aqui junto com vocês
esse tempo. Muito obrigada. Sem vocês eu não teria como fazer essa minha “atividade”.
Juiz de Fora, junho de 2005.
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: Júlia Barcelos__________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: Júlia Diniz_______________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: Paula____________________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4 NOME: Heloísa_________________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: Luiz André_________________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: Cristiana___________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: Juliana____________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: Pedro_____________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: Gustavo_________________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: Fernando__________________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: Bruno__________________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: André Mendes________________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4 NOME: Daniele__________________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: Clara___________________________________________________
AUTORIZAÇÃO
PESQUISA SALA CA 4
NOME: Maria Laura________________________________________________
TERMO DE CONSENTIMENTO PARA REALIZAÇÃO DE PESQUISA
A professora Nathalye Nallon Machado Ribeiro sabendo que sou responsável por
________________________________________________________________ (nome da
criança) solicitou-me consentimento para que a criança possa participar de seu projeto de
pesquisa “DIÁLOGOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA”, a
ser realizado com a turma na qual freqüenta.
Estou ciente e concordo com a utilização de instrumentos como câmera filmadora e
gravador de áudio que serão utilizados na pesquisa. Entendo que os materiais produzidos em
sala, ou fora dela, pela criança, poderão ser utilizados caso sejam pertinentes aos objetivos da
pesquisa.
Concordo voluntariamente com a participação da criança neste estudo, pois por ela sou
responsável e a identifiquei acima, sabendo que poderei retirar o meu consentimento a
qualquer momento, antes ou durante a realização do mesmo, sem que haja qualquer restrição
da pesquisadora.
É de meu pleno conhecimento que a divulgação de materiais e dos dados da pesquisa
servirão a fins puramente científicos, acadêmicos e/ou didáticos, sendo resguardada a
identidade da criança, a confidencialidade das informações e dos demais envolvidos no
estudo.
Juiz de Fora, 3 de maio de 2005.
TERMO DE CONSENTIMENTO PARA REALIZAÇÃO DE PESQUISA
A professora Nathalye Nallon Machado Ribeiro solicitou-me consentimento para
participar de seu projeto de pesquisa “DIÁLOGOS NA EDUCAÇÃO
INFANTIL:CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA”, a ser realizado com a turma na qual atuo como
Professora Regente.
Fui informada através de um encontro com a pesquisadora sobre os objetivos da
pesquisa, características e procedimentos metodológicos, em reunião realizada em 3 de maio
de 2005.
Ficou acordado que a utilização de instrumentos como câmera filmadora e gravador de
áudio serão utilizados, a menos que eu tenha objeção específica a alguma gravação.
Entendo que os materiais produzidos em sala, ou fora dela, tanto pelos alunos quanto
por mim, também poderão ser utilizados caso sejam pertinentes aos objetivos da pesquisa.
Concordo voluntariamente em participar deste estudo, sabendo que poderei retirar o
meu consentimento a qualquer momento, antes ou durante a realização do mesmo, sem que
haja qualquer restrição da pesquisadora.
É de meu pleno conhecimento que a divulgação dos dados da pesquisa servirão a fins
puramente científicos, acadêmicos e/ou didáticos, sendo resguardada minha identidade, a
confidencialidade das informações e dos demais envolvidos no estudo.
Juiz de Fora, 3 de maio de 2005.