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DIEGO DE ARAÚJO TAMAGNONE O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE E AS IMPLICAÇÕES ÉTICAS À LUZ DA LITERATURA MARGINAL DE FERRÉZ Porto Alegre 2010

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DIEGO DE ARAÚJO TAMAGNONE

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE E AS IMPLIC AÇÕES ÉTICAS À LUZ DA LITERATURA MARGINAL DE FERRÉZ

Porto Alegre

2010

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DIEGO DE ARAÚJO TAMAGNONE

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE E AS IMPLIC AÇÕES ÉTICAS À LUZ DA LITERATURA MARGINAL DE FERRÉZ

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, desenvolvida no Centro Universitário Ritter dos Reis, como requisito parcial do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Rejane Pivetta de Oliveira.

PORTO ALEGRE 2010

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DIEGO DE ARAÚJO TAMAGNONE

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE E AS IMPLIC AÇÕES ÉTICAS À LUZ DA LITERATURA MARGINAL DE FERRÉZ

Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial a obtenção

do título de Mestre em Letras à banca examinadora c onstituída por:

_____________________________ Prof. Dr. Rejane Pivetta de Oliveira Centro Universitário Ritter dos Reis

_____________________________ Prof. Dr. Leny da Silva Gomes

Centro Universitário Ritter dos Reis

_____________________________ Prof. Dr. Clarice Beatriz da Costa Söhngen

Pontifícia Universidade Católica

Porto Alegre

2010

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Dedico a meu pai, que, mesmo ausente, sempre esteve presente e a minha linda esposa Aline, em virtude do amor e da paciência.

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À minha douta orientadora, Prof. Rejane Pivetta de Oliveira, por me revelar a literatura como fonte de reflexão. Às Prof. Leny da Silva Gomes e Clarice da Costa Söhngen, pelas valiosas contribuições na Banca de Qualificação. Ao Prof. Aragon Dasso Junior, pela curta, mas grandiosa, experiência no Estágio de Docência. Ao Centro Universitário Ritter dos Reis, minha casa desde a graduação.

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RESUMO

A presente dissertação coloca em tela o problema ético implicado na vigência

do princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, tomando como

matéria de análise as situações de desigualdade, discriminação e indignidade

configuradas no universo ficcional da literatura marginal de Ferréz,

especialmente nas obras Capão pecado e Ninguém é inocente em São Paulo.

O objetivo é questionar o instituto científico do direito a partir da aproximação

entre direito e literatura, assumindo uma proposta transdisciplinar que realize

as interfaces entre essas duas áreas do conhecimento e que possibilite a

compreensão das dimensões da realidade social para a qual a lei é

direcionada. A racionalidade jurídica clássica acaba reforçando a lógica da

exclusão, uma vez que o pressuposto da igualdade opera o apagamento das

condições desiguais sob as quais vive a população marginalizada. O estudo

propõe uma discussão sobre uma nova hermenêutica jurídica fundamentada

em uma racionalidade dialética, rompendo com as fórmulas clássicas de

interpretação utilizadas pelo direito. A literatura, ao representar situações

humanas particulares, que remetem, no caso específico do realismo da

literatura marginal de Ferréz, ao contexto de violência e miséria social da

periferia das grandes cidades brasileiras oferece elementos para a discussão

sobre as implicações éticas que subjazem à interpretação do princípio

constitucional da igualdade. A conciliação entre a lei e a realidade é possível,

sob o ponto de vista de uma racionalidade jurídica fundamentada na ética da

alteridade.

Palavras-chave: Direito. Literatura. Ética. Igualdade.

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ABSTRACT

This thesis puts on display the ethical problem involved in the life of the

constitutional principle of equality of all before the law, taking as the analysis the

situations of inequality, discrimination and indignity set in the fictional universe

of the marginal literature of Ferréz, specially in the books Capão pecado e

Ninguém é inocente em São Paulo. The aim is to question the scientific

institute of law approaching law and literature, taking on a transdisciplinary

proposal that makes the interfaces between these two areas of knowledge and

understanding that enables the dimensions of social reality to which the law is

directed. The traditional legal rationality reinforces the logic of exclusion, since

the assumption of equality operates the deletion of unequal conditions under

which the marginalized population lives. The study proposes a discussion about

a new legal interpretation based on a more dialectical rationality, breaking with

the classical formulas used to interpret the law. The literature, while

representing particular human situations, which address, in the case of the

realism of the marginal literature of Ferréz, to the context of violence and social

misery of the periphery of large Brazilian cities offer some elements for a

discussion on the ethical implications underlying the interpretation of the

constitutional principle equality. The conciliation between law and reality is

possible, under the terms of a legal rationality based on the ethics of otherness.

Key-words: Law. Literature. Ethics. Equality.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................................................................................9 2 DIREITO E LITERATURA ..............................................................................13 2.1 Aproximações: direito, literatura e o olhar da periferia .........................13 2.1.1 Direito versus literatura.............................................................................19 2.1.2 Direito mais literatura................................................................................27 2.2 A interpretação jurídica e a interpretação lite rária .................................39 2.3 A nova hermenêutica constitucional e a literatu ra.................................43 3 O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO E O PRINCÍPIO DA IGUALDADE ......................................................................................................51 3.1 O constitucionalismo e a normatividade dos prin cípios .......................51 3.1.1 Os princípios e as regras para Dworkin....................................................56 3.1.2 Os princípios constitucionais no modelo pós-positivista...........................58 3.2 O princípio constitucional da igualdade ..................................................63 3.2.1 A evolução do princípio da igualdade.......................................................63 3.2.2 O princípio da igualdade e a sua função limitadora..................................68 3.3 A igualdade, o direito à literatura e a voz da periferia ............................75 4 A IGUALDADE E A LITERATURA MARGINAL DE FERRÉZ ......................83 4.1 Ferréz e a literatura marginal ....................................................................83 4.2 Capão pecado e Ninguém é inocente em São Paulo : ficções da realidade ...........................................................................................................90 4.3 A condição desigual da periferia ..............................................................95 4.4 Periferia: a luta pela igualdade...... .........................................................107 5 CONCLUSÃO ...............................................................................................113 REFERÊNCIAS...............................................................................................117 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .....................................................................124

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1 INTRODUÇÃO

O desapontamento com as fórmulas clássicas do direito e o

distanciamento do texto legal com relação à realidade dos seus tutelados

evidencia a dificuldade do direito em acompanhar as transformações sociais e

culturais da atualidade. Novos instrumentos de reflexão devem ser

disponibilizados à hermenêutica jurídica para lidar com o crescente desrespeito

aos princípios da igualdade e da dignidade humana, com base em uma nova

racionalidade dialética. A relação entre direito e literatura se apresenta como

uma forma diferenciada de abordagem da ciência jurídica, superando o

pensamento positivista e rompendo com a base epistemológica cartesiana,

através de formas transdisciplinares de interpretação, capazes de diminuir a

distância entre o direito e a sociedade. A ficção literária é capaz de não só se

referir ao mundo, mas provocar no leitor disposições que o levam a

problematizar questões sociais importantes com maior complexidade e alcance

humano.

Assim, a proposta deste trabalho é discutir o princípio constitucional da

igualdade à luz das obras Capão pecado e Ninguém é inocente em São Paulo,

de Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, autor paulistano e expoente da

chamada literatura marginal. A literatura marginal surgiu para dar voz à

população da periferia e atua como uma espécie de agência política, à medida

que busca afirmar-se como veículo de transformação social e cultural.

Marginal, nesse caso, não significa uma atitude de rejeição aos mecanismos de

produção e circulação dos bens culturais do sistema capitalista, mas uma

reação às forças que mantêm as comunidades periféricas reféns de sua

condição de isolamento e de exclusão social. As manifestações artísticas e

culturais produzidas pela população que vive “à margem” constituem formas de

expressão de valores, significados e modos de vida que não só afirmam a

diferença como expõem o conflito entre a realidade e as normas sociais.

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Dessa forma, a literatura periférica oferece uma possibilidade singular

ao direito de compreender dimensões da realidade social indispensáveis à

formulação e à justa aplicação da lei. Na sua qualidade de configurar a

experiência de sujeitos submetidos à condição de miséria, violência e

indignidade, a literatura periférica de Ferréz presta-se ao questionamento do

papel do direito na construção de uma sociedade ética, em que de fato a

igualdade de direitos não seja apenas um princípio abstrato sem

conseqüências na realidade.

Capão pecado, romance editado pela primeira vez em 2000, retrata o

cotidiano de violência e miserabilidade da periferia, por meio de uma narrativa

ágil e de uma linguagem crua. O autor faz denúncias sobre o uso e o tráfico de

drogas, o abuso da polícia e o descaso das autoridades representantes do

Estado. Ferréz defende a força da comunidade e utiliza o livro como uma forma

de protesto social.

Ninguém é inocente em São Paulo, livro de contos editado em 2006, dá

continuidade às manifestações da literatura de resistência, denunciando a

desigualdade, a discriminação, o tráfico e a atuação da polícia na periferia. O

estilo seco e direto dos contos de Ferréz dita o ritmo da obra, revelando o

cotidiano violento da favela. O autor vale-se de uma linguagem típica,

carregada de gírias e desprendida de formalismos lingüísticos, o que aproxima

o leitor da realidade dos personagens representados nos contos. De fato,

Ferréz tem a habilidade de traduzir em palavras esse universo de violência e

exclusão, o que faz dele um legítimo representante da cultura da periferia.

Desse modo, a literatura de Ferréz, ao dar voz à população que

sobrevive às condições de desigualdade nas periferias das grandes cidades

brasileiras, evidencia aspectos que colidem, do ponto de vista ético, com o

princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, questão central

deste trabalho. A hipótese orientadora é que a literatura de Ferréz oferece

aportes para uma reflexão ética sobre o princípio constitucional da igualdade

de todos perante a lei, dadas as condições de injustiça e desigualdade

representadas no universo ficcional criado pelo autor.

A dissertação está estruturada em três capítulos. O primeiro analisa a

relação entre direito e literatura, por meio de uma abordagem que busca

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estabelecer contrapontos ao pensamento positivista clássico. O capítulo inicia

com a apresentação das relações possíveis entre esses dois campos

disciplinares. Para tratarmos das diferenças e semelhanças entre direito e

literatura tivemos como principal fonte o olhar jurídico-filosófico de François

Ost, ao passo que, à luz da teoria política de Ronald Dworkin sobre a

interpretação, avançamos o capítulo no sentido de propor a ligação entre a

interpretação literária e a interpretação jurídica. Segundo Dworkin, esta relação

serviria de base a uma nova metodologia de análise das proposições jurídicas,

superando a hermenêutica jurídica clássica, na qual o intérprete tem uma

verdade posta (a lei) e não há interação entre eles. Nesse sentido, um

raciocínio equivalente ao da interpretação literária, no qual cada leitor se coloca

dentro da obra e, com ela, interage de diferentes formas, poderia fornecer

subsídios à hermenêutica jurídica, ao abrir espaço ao operador do direito

(juízes e advogados) para interpretar a letra fria da lei a cada nova situação.

A fim de compreendermos questões próprias envolvidas na

problematização contemporânea do conceito de literatura e suas

representações, bem como das peculiaridades do funcionamento do discurso

literário, recorremos também a alguns teóricos desse campo, sobretudo,

Jonathan Culler, Terry Eagleton e Antoine Compagnon. No mesmo sentido,

apresentamos um breve mapeamento sobre o crescimento da produção textual

marginal ao longo dos últimos 30 anos e sua emergência como forma de

manifestação cultural da população que vive à margem dos grandes centros

urbanos brasileiros.

O segundo capítulo descreve o constitucionalismo contemporâneo e a

importância dos princípios constitucionais no modelo pós-positivista. O

constitucionalismo contemporâneo, tendo em vista a incapacidade do direito de

acompanhar as constantes mudanças das atitudes morais no nosso século,

suscita a reaproximação entre ética e direito. A intenção desse novo

constitucionalismo é buscar o equilíbrio entre a lei e os valores da sociedade,

sejam eles éticos, políticos ou culturais, através da valorização dos princípios

jurídicos como base de um modelo interpretativo mais aberto em termos de

percepção da realidade das diferenças sociais. O capítulo delineia a evolução

do princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, que se

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desenvolveu inspirado pelos ideais de justiça e segurança social,

demonstrando a sua importância como princípio informador de toda a ordem

jurídico-constitucional e limitador da atuação do legislador, do intérprete e do

particular. Ao final desse capítulo, a literatura é defendida como direito

fundamental de todos e como mecanismo de aperfeiçoamento da igualdade.

Dessa forma, a literatura tem função humanizadora, conforme assinala Antonio

Candido, pois atua na construção de estruturas de pensamento e na formação

de significados, provocando no homem um exercício de reflexão sobre o seu

próprio papel na sociedade.

Finalmente, o terceiro capítulo contextualiza sumariamente as obras de

Ferréz, analisando como o autor faz da literatura um instrumento de ação e

como as condições sociais e culturais de produção dessas obras interferem na

linguagem utilizada por ele, aproximando a ficção da realidade. O capítulo

contrapõe a racionalidade da lei, insensível à realidade social, e a desigualdade

representada nas narrativas de Ferréz, problematizando o princípio

constitucional da igualdade de todos perante a lei. A descrição que o escritor

faz do ambiente desigual da periferia demonstra o seu empenho em situar o

leitor no contexto de sua produção textual, do mesmo modo que o realismo e o

humanismo de sua escrita estabelecem uma conexão com o outro excluído e

consolidam uma espécie de ética da alteridade por meio da linguagem. O final

do capítulo evidencia o comprometimento de Ferréz na transformação da

realidade de vida da periferia, o que acaba fazendo do autor um produtor, nos

termos de Walter Benjamin (2008). A resistência do escritor à exclusão gerada

pela lógica capitalista e o seu movimento de afirmação da identidade cultural

da periferia revelam a sua proposta de defesa da arte como mecanismo de

inclusão social e de promoção da igualdade.

Portanto, a presente pesquisa, além de estabelecer a conexão entre o

direito e a literatura, pretende demonstrar que a literatura, no caso específico

da literatura marginal de Ferréz, ao representar as situações humanas dentro

do contexto de violência e miséria social da periferia das grandes cidades

brasileiras, oferece-se como um campo fértil para a discussão acerca das

implicações éticas que subjazem à interpretação do princípio constitucional da

igualdade de todos perante a lei.

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2 DIREITO E LITERATURA

2.1. Aproximações: direito, literatura e o olhar da periferia

Pretendemos, neste capítulo, discutir aspectos da relação entre

literatura e direito, começando por situar historicamente esse tema, que de fato

não é novo, mas propõe uma forma diferenciada de abordagem da ciência

jurídica, ainda ousada para os dias de hoje. Tal abordagem procura superar o

pensamento positivista, vendo o direito e os fenômenos jurídico-sociais de

modo transdisciplinar. Isso talvez contribua para a superação do

distanciamento existente entre o direito e a sociedade, resgatando, quem sabe,

“o senso de um tempo em que a justiça era poética” (SCHWARTZ, 2006, p.

15).

O pensamento jurídico clássico, afastado da realidade social e

representativo da redução do concreto jurídico à pura forma lógica, precisa

evoluir no sentido de conceber o direito como um conceito mais aberto, um

produto cultural e dialético que confronte mais do que fato, valor e norma, pois

“compreender o direito não é um empreendimento que se reduz facilmente a

conceituações lógicas e racionalmente sistematizadas” (FERRAZ, 2008, p. 1).

O estudo do direito com o interesse pela técnica, conceitos e princípios legais

faz parte de um processo de estruturação dogmática importante, mas também

deve envolver a diversificação e os conflitos dialéticos do mundo

contemporâneo.

Historicamente, o direito evoluiu muito e garantiu valores sociais

essenciais, tais como a liberdade e a justiça. Ele promoveu uma maior

humanização dos regimes jurídicos através da conquista da dignidade humana.

Entretanto, este mesmo sistema jurídico não está sendo capaz de enfrentar a

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desigualdade e a escravidão social, tampouco os problemas relacionados às

minorias.

Atualmente, vários teóricos jurídicos têm denunciado uma crise do

direito relacionada a fatores epistemológicos e axiológicos, tendo em vista “o

permanente anacronismo do direito como solucionador de conflitos sociais,

bem como a lacunariedade das expressões jurídicas em relação à realidade à

qual se destina” (COELHO, 2003, p. 302). Esses mesmos teóricos defendem

uma nova postura do saber jurídico diante das dimensões da crise, como

afirma de Luiz Fernando Coelho, em seu livro Teoria Crítica do Direito (2003, p.

303):

Trata-se de recuperar o jurídico com um espaço de afirmação da dignidade humana. É o início de nova visão do direito, o qual passa a ser visto não somente como atividade voltada para a crítica social, mas como a própria crítica que pretende oferecer respostas e soluções aos magnos problemas da sociedade. Trata-se de uma irresistível vocação do direito para o humanismo, o qual se revela desde os primórdios.

Desse modo, percebe-se a tendência de uma nova teoria acerca do

direito, uma proposta teórica que indica a recuperação da produção jurídica a

partir de novos fundamentos, os quais ultrapassem a concepção legalista do

Estado e a compreensão estadista do direito, que não têm sido capazes de

resolver os problemas complexos da sociedade.

O estudo da relação existente entre direito e literatura propõe um novo

modo de contar o direito, demonstrando que a literatura pode contribuir

diretamente na elucidação das controvérsias relativas ao ordenamento jurídico

e à justiça. A intenção é, assim, oferecer ao direito um suporte do ponto de

vista da literatura e tentar restabelecer-lhe o seu recalcado papel social e

humanista.

A teoria literária contemporânea procura desenvolver avaliações que

vão além da antiga preocupação se os textos lidos são literários ou não. A

compreensão do que seja a literatura nos dias de hoje exige uma análise global

e não uma simples definição a priori do que ela venha a ser, superando a

discussão da literatura como um conjunto de textos canônicos instituídos pelo

pensamento dominante (a academia, a crítica, a escola, os meios de

comunicação), o que implica considerar na interpretação do problema critérios,

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que levem em conta a experiência de diversos grupos sociais. Com efeito, a

ponderação de aspectos tomados como característicos da literatura, só tem

sentido se feita a partir da interação com os diferentes contextos de produção,

circulação e recepção dos textos.

O questionamento a respeito das formas clássicas da literatura e dos

sistemas de representação que as instituem conduz a novas avaliações e

paradigmas de análise. O cenário literário brasileiro tem testemunhado o

crescimento de uma produção que está desafiando a crítica especializada.

Trata-se de uma manifestação cultural típica dos grupos sociais que vivem à

margem das grandes cidades brasileiras e que representa a cultura própria

dessas localidades. Os textos “marginais”, então, projetam-se como

representação da violência e da miséria da vida dessas comunidades

periféricas, por meio de uma elaboração construída na perspectiva daqueles

que vivem dentro da própria comunidade.

Assim, principalmente a partir da década de 90, a literatura marginal

passou a emergir como representante de uma minoria discriminada, que vive à

margem da cultura dita erudita. Os primeiros discursos literários

representativos da realidade de violência e exclusão do Brasil tiveram início na

década de 1950, mas adquiriram notabilidade nos anos 70.

No mapeamento feito por Karl Schollhammer (2008), esse primeiro

momento, os anos de 1960 e 1970, chamou-se o período do “malandro

revoltoso”, no qual a violência era tida como resultado negativo do milagre

econômico e do crescimento desenfreado dos centros urbanos e, ainda, como

resquício das condições políticas da “revolução de 64”. Uma das principais

obras deste período foi Cara de Cavalo, de Hélio Oiticica em 1966, com a

apresentação do malandro como um tipo marginal que vive à margem da lei.

Outra obra, A imagem da violência, de Antonio Manuel em 1968, também foi

representativa deste momento.

Segundo Karl Schollhammer (2008), os anos de 1980 e 1990

trouxeram a democracia direta, mas também revelaram o aperfeiçoamento do

tráfico de drogas, dos seqüestros, dos assaltos e o surgimento do crime

organizado. Uma das obras mais polêmicas da época foi escrita em 1992 pelo

jornalista investigativo Caco Barcellos: Rota 66 – A História da Polícia que

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Mata. Já no final dos anos 90, o escritor Paulo Lins lança o livro Cidade de

Deus, uma narrativa memorialista e uma ficção da realidade, que apresenta a

história do complexo habitacional Cidade de Deus no Rio de Janeiro. Ainda nos

últimos anos do milênio, o cinema brasileiro continuou retratando o tema da

violência e da exclusão com filmes como Guerra de Canudos, do diretor Sérgio

Rezende; Como nascem os anjos, de Murillo Salles; Central do Brasil, de

Walter Salles e Estação Carandiru, de Drauzio Varella.

O século XXI iniciou com o chocante documentário Falcão: os meninos

do tráfico, realizado pelo músico MV Bill e o produtor Celso de Athayde e

apresentado no programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão, em 2006, o

que abriu espaço para os romances Capão pecado (2000) e Manual prático do

ódio (2003), do escritor marginal Ferréz.

Este mapeamento tende a demonstrar uma crescente “demanda pela

expressão letrada como mecanismo de elaboração da experiência individual ou

coletiva das classes populares em nossos dias” (RODRIGUEZ, 2003, p. 48) e,

apesar de algumas dúvidas e críticas com relação à autenticidade, à

legitimidade e a problemas composicionais dos textos marginais, a literatura

marginal estaria abrindo espaço à reavaliação de alguns critérios literários

utilizados atualmente no Brasil:

Tal produção oferece à crítica literária uma oportunidade para reavaliar alguns dos significados e das possibilidades inscritas nas tensões entre as categorias do ético e do estético, da empiria e da virtualidade, do real e do ficcional, do poético e do pragmático, em termos menos rarefeitos do ponto de vista tanto das reflexões teóricas quanto das práticas políticas que lhes informam. (RODRIGUEZ, 2003, p. 57)

Alguns representantes da teoria literária contemporânea acreditam na

força intertextual e auto-reflexiva da literatura. Jonathan Culler (1999) defende

que uma obra literária existe por meio de sua relação com outros textos e para

quem “ler algo como literatura é considerá-lo como um evento lingüístico que

tem significado em relação a outros discursos” (CULLER, 1999, p. 40). Assim,

um texto interage com as possibilidades geradas por outros textos, de

diferentes gêneros, e tem significado no diálogo e na tensão que estabelece

com o seu tempo e a tradição.

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Para Jonathan Culler (1999), a literatura estimula a resistência aos

valores capitalistas e às práticas dos ganhos e gastos. Ela é o ruído da cultura,

ao mesmo tempo em que é sua informação. A literatura manifesta-se como

uma força entrópica e um capital cultural. É uma representação escrita que

exige uma leitura e inclui os leitores no exame dos problemas de sentido, de

forma que o contexto ficcional característico da literatura coloca a relação entre

o que entendeu o leitor e o que quis dizer o autor como uma questão

interpretativa.

Vemos, nesse aspecto, um ponto de contato da literatura com os

procedimentos utilizados pelo sistema jurídico, relativos às narrações da

história jurídica de cada caso, direcionadas a um determinado ambiente, na

ótica de observadores externos. Ou seja, o processo judicial nada mais é que

uma narrativa de atos e fatos, envolvendo as partes (autor e réu) e o juiz, na

direção de uma solução judicial em conformidade com o ordenamento jurídico.

Nesse processo, pode-se deduzir que o direito parte de si mesmo, projeta-se

sobre o ambiente no qual está inserido e, então, regressa para o seu interior.

Este sistema auto-referencial1, no sentido de simbolizar a ilimitada

recursividade interna e a capacidade de comunicação inter e intrassistêmica da

ciência jurídica, aliado às infinitas possibilidades de interpretação, permitiria a

própria continuidade do direito. Nesses termos, porém, o direito só é capaz de

traduzir a exterioridade a partir de seus próprios termos, faltando-lhe

exatamente o senso da alteridade, móvel da literatura enquanto criadora de

realidades imaginárias.

1 Neste caso, trata-se do sistema auto-referencial no enfoque dado por Niklas Luhmann na formulação da sua teoria dos sistemas sociais com base no funcionalismo autopoiético e em defesa da interpenetração entre os subsistemas sociais diferenciados. Para mais a respeito, leia-se LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. O termo “autopoiese” foi criado pelos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela, na década de 70, para expressar sua teoria acerca do sistema de autoprodução dos seres vivos (MATURANA e VARELA, 2005). Luhmann foi o responsável por introduzir o conceito de autopoiese no meio social. A teoria autopoiética passou a representar uma metodologia de observação social, na qual se examina a interação dos elementos sociais e se determina a função de cada elemento no processo comunicativo dos sistemas. Assim, sob o ponto de vista luhmaniano, uma correta descrição da sociedade e de seus componentes deve ser realizada por intermédio da teoria dos sistemas sociais, diante da insuficiência das teorias sociológicas clássicas em face dos novos questionamentos advindos dos avanços sociais. Conseqüentemente, o direito deve ser analisado sob a ótica sistêmica, a qual amplia o seu campo de atuação e o faz ser pensado como algo muito maior, mais contextual e mais complexo do que sua formulação hierárquica e sua forma de análise verticalizada (SCHWARTZ in ROCHA, 2005). A teoria autopoiética tem sido utilizada como marco teórico do estudo dos direitos fundamentais.

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A viabilidade de realização do direito dentro da sua própria lógica é

possível em um primeiro momento, mas logo consideramos a necessidade de

utilização de outros parâmetros, tais como a literatura, a fim de criar um novo

pensamento jurídico e, por que não, uma nova racionalidade jurídica, capaz de

lidar com as constantes mudanças sociais. As ficções literárias estão

mergulhadas na condição humana e proporcionam a geração de mundos

possíveis, carregados de inquestionável força de realidade.

A velha concepção do direito como fato desconexo das demais

ciências deve ser recusada, em detrimento da visão tradicional da pureza

kelseniana2 e a favor de um modelo jurídico voltado aos avanços sociais. Este

modelo, assim, significaria um sistema jurídico constantemente auto-recriável e

vinculado às redes interligadas de outros sistemas, entre eles a literatura. O

direito precisa manter-se autônomo enquanto sistema (jurídico), ao mesmo

tempo que tem de estar aberto a um contato com outros sistemas sociais e

culturais, tais como a arte.

No Brasil, Arnaldo Godoy defende a idéia de uma ciência jurídica

desapegada da letra fria da lei e aberta a um diálogo com a literatura, “local

onde a essência do ser se revela” (GODOY, 2007). Obras como Direito e

Literatura – Anatomia de um Desencanto: Desilusão Jurídica em Monteiro

Lobato (2007) e artigos de periódicos, entre eles, Direito e literatura (2003),

traçam o histórico da estreita relação do direito e da literatura, ao mesmo

tempo que evidenciam o descontentamento de juízes e advogados com a

concepção clássica do direito.

No mesmo sentido, Germano Schwartz procura compreender o

fenômeno jurídico sob um ponto de vista inovador: refletir sobre o

constitucionalismo com base na conciliação da literatura e do direito. O seu

livro A Constituição, a Literatura e o Direito (2006) sintetiza a problemática do

distanciamento entre o texto legal e a prática social moderna, propondo a 2 A respeito, leia-se KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003: “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito Positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem específica. É a teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação. Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto (...). Quando a si própria se designa ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental” (KELSEN, 1998, p. 1).

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construção de um novo sentido para o Direito através da interpretação literária.

No seu entendimento, a ficção literária seria capaz de “traduzir” o jurídico para

a realidade e aproximar o texto constitucional da expectativa de seus tutelados.

Assim, no sentido de tornar justa a proposta do presente trabalho, convém

traçarmos limites e aproximações entre os campos da literatura e do direito, de

modo a tornar mais produtivo o diálogo entre eles.

2.1.1. Direito versus Literatura

Na sua definição objetiva clássica, o direito representa um sistema de

princípios e preceitos com poder de sanção, voltados a disciplinar as relações

humanas de uma sociedade. O direito significa a norma, a decisão, o

ordenamento, a estrutura e, como nas palavras de Miguel Reale (2003, p. 1),

“aos olhos do homem comum o Direito é lei e ordem, isto é, um conjunto de

regras obrigatórias que garante a convivência social graças ao estabelecimento

de limites à ação de cada um de seus membros”.

A acepção positivista do direito é resultado da formulação filosófica que

invadiu a Europa a partir do Iluminismo e representa o auge da ideologia

presente no inconsciente coletivo da sociedade ocidental desde o início da

civilização européia. O conjunto de leis vigentes é resultado de uma sociedade

dominada pela burguesia e a prevalência do caráter dogmático do pensamento

positivista se afirmou como sistema científico. Essa concepção ressalta os

aspectos formais e exteriores do fenômeno jurídico, mas não compreende os

fatos da experiência social, pois “o direito positivo é a lei e seu estudo científico

se faz a partir da lei” (COELHO, 2003, p. 213).

O direito é criado pelo homem como forma de estabelecer condições

gerais de respeito, imperativas ao desenvolvimento da sociedade. A sua função

está voltada à convivência social harmônica, ajustando a dinâmica das

relações sociais na direção de uma sociedade justa com a rubrica do Estado.

Assim, a sociedade produz suas próprias leis ao mesmo tempo em que se

submete aos seus efeitos e a justiça representa a causa final do direito, ou

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seja, é o valor a ser protegido por regras impostas pelo Estado através das

normas jurídicas.

A nova significação do direito impõe à sociedade um processo de

assimilação das regras e, ato contínuo, de adequação das atitudes sociais ao

molde vigente. Nas palavras de Paulo Nader (2008, p. 21), para quem o direito

não se efetiva pela sua simples criação,

O mundo jurídico passa a se empenhar na exegese do verdadeiro sentido e alcance das regras introduzidas no meio social. Esta fase de cognição do Direito algumas vezes é complexa. As interrogações que a lei apresenta abrem divergências na doutrina e nos tribunais, além de deixar inseguros os seus destinatários. Com a definição do espírito da lei, a sociedade passa a viver e a se articular de acordo com os novos parâmetros. Em relação aos seus interesses particulares e na gestão de seus negócios, os homens pautam o seu comportamento e se guiam em conformidade com os atuais conceitos de lícito e ilícito.

O autor ainda complementa o seu pensamento a respeito do novo

direito:

O conteúdo de justiça da lei e o sentimento de respeito ao homem pelo bem comum devem ser a motivação maior dos processos de adaptação à nova lei. Contudo, a experiência revela que o homem, não obstante a sua tendência para o bem, é fraco. Por este motivo a coercibilidade da lei atua, com intensidade, como estímulo à efetividade do Direito. (NADER, 2008, p. 21)

Desse modo, ao direito cabe o importante papel de criar a ordem e o

equilíbrio, correspondendo às expectativas da coletividade com relação à

justiça. No entanto, as necessidades ligadas à paz, à segurança e à justiça

almejadas pelo direito estão sempre a exigir procedimentos novos. Por si só, a

simples existência do direito não basta e é imprescindível um direito atualizado

e em constante adaptação (renovação) aos novos fenômenos sociais. Este

processo de adaptação do direito poderá ser uma ferramenta eficiente na

busca de um sentido mais amplo para as normas e, conseqüentemente, de

uma maior efetividade jurídica em direção ao equilíbrio social.

Da mesma forma que o direito, o conceito de literatura também sofreu

variações ao longo da história. Por muito tempo, segundo Acízelo de Souza

(2006), a palavra literatura prestou-se, no campo dos estudos literários, a um

emprego universalizante, pelo qual uma de suas acepções modernas servia

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tranqüilamente para a designação de diversas produções verbais de todas as

épocas históricas. De fato, expressões como "literatura antiga", "literatura

greco-romana”, "literatura medieval" passaram a ter uso freqüente. Mais

recentemente, entretanto, acredita-se que por volta dos anos 60, no século XX,

há uma hipótese alternativa que restringe a extensão da acepção do termo,

destacando que o início de sua utilização estaria relacionado ao próprio

"aparecimento da literatura", no sentido então designado, como obra de ficção,

considerada na sua dimensão estética. A literatura, assim concebida, teria

surgido por volta da segunda metade do século XVIII ou mesmo início do XIX,

em sintonia com o surgimento da própria palavra literatura, especialmente

então inventada para designar aquele novo tipo de discurso.

No seu sentido mais clássico, conforme nos ensina Antoine

Compagnon, em sua obra O demônio da teoria – literatura e senso comum

(1999, p. 31), a literatura é:

tudo o que é impresso (ou mesmo manuscrito), são todos os livros que a biblioteca contém (incluindo-se aí o que se chama literatura oral, doravante consignada). Essa concepção corresponde à noção clássica de ‘belas-artes’ as quais compreendiam tudo o que a retórica e a poética podiam produzir, não somente a ficção, mas também a história, a filosofia e a ciência, e, ainda, toda a eloqüência.

A fronteira entre o literário e o não literário varia de forma significativa

segundo a época e a cultura em questão. O sentido moderno da literatura

aparece no século XIX, com o declínio do tradicional sistema de gêneros

poéticos de Aristóteles, e é inseparável do romantismo. A literatura está, nesta

acepção, intimamente relacionada à nação e a sua história, uma literatura

nacional. Nessa nova tautologia, “a literatura é tudo o que os escritores

escrevem” (COMPAGNON, 1999, p. 33) mas somente a literatura culta, não a

literatura popular.

Para Acízelo de Souza (2006), o sentido contemporâneo de literatura

se delineia mediante o desdobramento de tendência à especialização dos

discursos observável pelo menos desde o século XVII e consumada ao longo

dos séculos XVIII e XIX. Com efeito, o autor procurou estabelecer, em meio a

este lento e complexo processo de especialização dos discursos, um sentido

mais claro para o vocábulo, demonstrando a evolução do conceito de literatura

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como um corpo de escritos não científicos até a concepção contemporânea,

como o conjunto de escritos líricos, narrativos e dramáticos que passam a se

especificar com as nacionalidades modernas. Portanto, o exame da trajetória

histórica do vocábulo literatura revela que “ela está longe de ser uma novidade

setecentista ou oitocentista” (SOUZA, 2006, p. 30), apenas seu significado

contemporâneo é que se manifesta como uma construção conceitual recente,

localizada no século XIX.

O século XX trouxe algumas reconquistas à literatura, tais como a força

concedida novamente ao poema em prosa e a reabilitação da autobiografia. Os

livros infantis, o romance policial e as histórias em quadrinhos são absorvidos e

então, no século XXI, a literatura “é novamente quase tão liberal quanto as

belas-letras antes da profissionalização da sociedade” (COMPAGNON, 1999,

p. 34).

Para Terry Eagleton (1994), a literatura é um discurso não-

programático e não possui nenhuma finalidade prática imediata, restringindo-se

a um estado geral de coisas. Segundo o autor, “a definição de literatura fica

dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza

daquilo que é lido” (EAGLETON, 1994, p. 9). A importância da obra literária não

está na sua origem, mas no modo como as pessoas a consideram, isto é, se

decidirem que determinado texto representa literatura, será literatura,

independentemente do que o autor tinha em mente.

A literatura, então, poderia ser considerada, segundo Eagleton (1994),

tanto uma linguagem com propriedades específicas como um produto de

convenções, mas ela vai além dessas duas perspectivas. É mais do que uma

moldura na qual se insere um tipo específico de linguagem e possui diferentes

aspectos que precisam interagir para definir a sua real natureza.

Jonathan Culler, em Teoria literária – uma introdução (1999), aponta

cinco aspectos dominantes no discurso literário: literatura como primeiro plano

da linguagem; como integração da linguagem; como ficção; como objeto

estético e, ainda, como construção intertextual ou auto-reflexão. A literatura

como colocação em primeiro plano da linguagem tem relação com o modo

como a literatura organiza seus textos e os torna distintos dos demais. O plano

do desenho lingüístico, com a utilização da repetição rítmica de sons e das

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combinações verbais incomuns, no caso da poesia, por exemplo, “deixam claro

que estamos lidando com linguagem organizada para atrair a atenção sobre as

próprias estruturas lingüísticas” (CULLER, 1999, p. 35). Isso diferencia de

modo significativo a literatura do direito e suas fórmulas retóricas. A forma na

literatura é o próprio conteúdo, que não possui fórmula, uma programação, mas

pressupõe uma interação estética.

O segundo ponto, o da literatura como integração da linguagem,

justifica-se pela maior probabilidade de se explorarem as relações entre forma

e sentido, tentando-se entender como cada elemento contribui para o todo,

seja por meio da harmonia ou da tensão. A literatura, sob este ponto de vista,

“é linguagem na qual os diversos elementos e componentes do texto entram

numa relação complexa” (CULLER, 1999, p. 36). Já a linguagem utilizada na

escrita do texto legal deve equilibrar a tensão em seu conteúdo, pois, do

contrário, isto poderia significar a supressão da lei por contradição ou

invalidade. Tecnicamente, a lei tem que ser fria, exata e não poderia, em

princípio, suscitar dúvida ou gerar ambigüidades.

Por outro lado, a literatura como ficção trabalha a relação entre o que

pensam os leitores, o que pensa o autor e o que diz a obra como uma questão

interpretativa. Nas palavras de Jonathan Culler (1999, p. 37):

Uma razão por que os leitores atentam para a literatura de modo diferente é que suas elocuções têm uma relação especial com o mundo – uma relação que chamamos ficcional. A obra literária é um evento lingüístico que projeta um mundo ficcional que inclui falante, atores, acontecimentos e um público implícito (um público que toma forma através das decisões da obra sobre o que deve ser explicitado e o que se supõe o público saiba).

A referência ao mundo é uma função dada pela interpretação, pois a

ficcionalidade da literatura destaca a sua linguagem específica e deixa a

relação entre a obra e o mundo sujeita a interpretações. A literatura como

objeto estético, segundo Culler (1999), poderia ser o resultado da união dos

aspectos anteriores. A teoria estética desenvolve discussões acerca da beleza

como propriedade objetiva ou subjetiva das obras de arte e a respeito da

relação do belo com a verdade e o bem. O fim da arte seria a própria arte, ou

seja, o prazer na obra ou o gerado pela obra. Assim, “considerar um texto

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como literatura é indagar sobre a contribuição de suas partes para o efeito do

todo, mas não considerar a obra como sendo principalmente destinada a atingir

a algum fim” (CULLER, 1999, p. 40). As histórias e suas narrações têm

relevância estética, o que não significa sejam facilmente vinculadas a um

propósito externo. Por seu turno, o direito tem a finalidade específica de manter

a ordem e o equilíbrio social através das regras de conduta. A lei é criada com

o fim específico de regrar as condutas humanas e de dispor sobre determinada

violação de preceito típico.

Por fim, a literatura como construção intertextual ou auto-reflexiva traz

consigo uma teoria muito recente a respeito do que seja literatura. Os textos

literários são criados com base em outros textos anteriores, ou seja, os textos

anteriores tornam possíveis os textos posteriores, por meio das repetições ou

contestações feitas por estes sobre aqueles. Isto quer dizer que “ler algo como

literatura é considerá-lo como um evento lingüístico que tem significado em

relação a outros discursos” (CULLER, 1999, p. 40), de modo que ler uma obra

literária é relacioná-la a outras obras literárias. No que diz respeito ao direito, o

máximo a que chega a sua intertextualidade é ao estudo do Direito

Comparado3 e à jurisprudência4, a qual, através de decisões reiteradas, poderá

vir a formar a chamada súmula vinculante5, com força obrigatória a todos os

juízes e tribunais do país. Entretanto, o sistema jurídico brasileiro ainda está

dando os “primeiros passos” no que se refere à uniformização dos julgamentos,

no sentido de estruturar uma hermenêutica jurídica mais harmônica.

A literatura, portanto, além de respeitar as convenções existentes no

momento da sua criação, deve ser capaz de revelar e criticar seus próprios

limites. Assim, para se compreender a literatura, é necessário um exercício que

3 Ramo do direito que estuda as diferenças e semelhanças entre os ordenamentos jurídicos dos diferentes Estados, destacando-se principalmente como suporte ao direito internacional privado. O estudo do direito comparado promove a uniformização das leis; serve à fiscalização da aplicação do direito já uniformizado pelos tribunais e, finalmente, abre para o jurista uma visão que transcende as fronteiras do Estado ao qual pertence (RECHSTEINER, 2008). 4 Termo utilizado no direito para designar o conjunto de decisões uniformes e interpretações jurídicas dos tribunais, resultantes da aplicação de normas a casos semelhantes, constituindo uma norma geral aplicável a todas as hipóteses similares ou idênticas (DINIZ, 2004). 5 Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004, que adicionou o artigo 103-A ao texto da Constituição Federal: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”.

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leve em consideração todas essas diferentes perspectivas apresentadas,

dependentes, sempre, dos sistemas sociais e culturais nos quais toma parte.

Um outro ponto de vista poderia entender a literatura como um tipo de

conhecimento que se expressa através da imaginação. De fato, a literatura é

espaço ilimitado de criação e imaginação, o que confere a ela um caráter

liberador. O direito, por sua vez, representa a organização e a ordem,

manifestando-se como o conjunto de normas de conduta de uma determinada

sociedade, atuando, portanto, como força cerceadora.

Na classificação apresentada por Ost, em seu livro Contar a lei: as

fontes do imaginário jurídico (2004), a primeira grande diferença entre direito e

literatura é que “enquanto a literatura libera os possíveis, o direito codifica a

realidade, a institui por uma rede de qualificações convencionadas, a encerra

num sistema de obrigações e interdições” e, diz ainda, que o trabalho da

literatura seria exatamente o de “pôr em desordem as convenções, suspender

nossas certezas, liberar possíveis – desobstruir o espaço ou liberar o tempo

das utopias criadoras” (2004, p. 13). Com efeito, a literatura exerce este papel

crítico da realidade exposta através, por exemplo, do cômico e não interrompe

sua investida contra a rigidez das codificações legais, empregando muita

imaginação neste trabalho de contestação. A literatura sugere um pouco de

desordem para flexibilizar a aplicação do direito ao pé da letra.

No que toca ao sistema legal, o legislador tem de ser preciso nas suas

proposições e, como sistema rígido, não pode ceder às paixões humanas, sob

pena de perder sua força coercitiva. Nas palavras de Platão, em A República,

“o legislador nunca ri – sua pretensa retidão não poderia se comprometer com

as contorções dessa ‘paixão fácil’” (in OST, 2004, p. 13). Assim, ao chamar a

literatura de “paixão fácil”, Platão pretendeu caracterizá-la como um sentimento

sujeito a imperfeições e imprecisões, o que a torna uma espécie de ameaça à

ordem jurídica.

O direito tem o papel de tomar a decisão nas lides e de operar

hierarquias, fazendo cumprir a lei em nome da segurança jurídica. Por seu

turno, a literatura está livre para explorar e experimentar no seu laboratório

humano, imaginando e criando. Para Ost (2004), a função social exigida do

direito lhe impõe estabilizar as expectativas e tranqüilizar as angústias,

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enquanto que a literatura, livre dessas exigências, espanta, deslumbra,

perturba, sempre desorienta. Esta seria uma segunda diferença entre direito e

literatura, pois, ao interpelar o direito e questionar a sua estrutura positiva

(saber positivo), a literatura assume uma atitude indisciplinar e abala o sistema

jurídico no sentido de forçar uma reflexão acerca do modo como atua.

A questão dos indivíduos envolvidos nesses dois cenários (o da

literatura e o do direito) é a próxima diferença apontada por Ost. O direito cria a

pessoa jurídica com seus direitos e deveres ao mesmo tempo em que a

literatura dá vida a personagens literários ambivalentes em situações

ambíguas. O estatuto dos indivíduos é diferente, pois “o direito produz pessoas,

a literatura, personagens” (BIET in OST, 2004, p. 16). A pessoa jurídica

representa o exemplo do estereótipo e da convenção (direitos e deveres). Os

personagens literários, pelo contrário, traduzem a ambivalência e a desordem.

O direito estabelece papéis jurídicos padronizados (normatizados), os quais

servirão de modelo de identidade. A literatura, por sua vez, não cessa de

questionar estes papéis sociais convencionados.

Nessa ordem de idéias, Ost (2004) oferece uma quarta diferença entre

direito e literatura: o debate a respeito do geral e do particular. O direito se volta

ao registro da generalidade e da abstração (a lei é tida como geral e abstrata) e

a literatura se desdobra no particular e no concreto. Para o autor, o direito

concebe um universo de qualificações formais e de arranjos abstratos, ao

passo que a literatura cria histórias irredutivelmente singulares.

Por outro lado, tanto a literatura como o direito não se contentam com

suas posições antagônicas. O direito representa mais do que somente a retidão

de suas posições instituídas e a conformidade com a norma. Ele também

instiga a consciência social e afronta interesses, pois “os tribunais registram

diariamente os choques das forças centrífugas que sacodem o direito ao sabor

dos interesses particulares e dos dramas pessoais” (OST, 2004, p. 20). Da

mesma forma que, sob a literatura, não pode pesar a acusação de ser estranha

à norma, visto que a ficção literária está atrelada à forma e às regras da escrita.

Ademais, apesar de ser tradutora da história singular, a literatura tem influência

universal. Ela primeiro forma o indivíduo e, depois, a coletividade.

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Podemos inferir dessas observações que há uma relação dialética

entre direito e literatura. Há uma troca de saberes, na qual o direito empresta a

codificação e a racionalidade à literatura, bem como esta confere sua rebeldia

e sua liberdade àquele.

Desse modo, apresentados os fatores distintivos entre direito e

literatura, entendemos fundamental delinear os aspectos que os aproximam,

pois “entre o ‘tudo é possível’ da ficção literária e o ‘não deves’ do imperativo

jurídico, há, pelo menos, tanto interação quanto confronto” (OST, 2004, p. 23).

Essas duas ciências estão mais relacionadas do que se imagina e podem

exercer importante papel no desenvolvimento uma da outra.

2.1.2. Direito mais Literatura

Nada mais justo para o presente estudo que uma análise da relação

entre direito e literatura através da exemplificação de algumas de suas mútuas

contribuições. A intenção é evidenciar como o direito pode estar refletido em

diversas obras literárias marcantes, propondo-se o seu exame a partir da

literatura.

Segundo Ost (2004), a literatura retrata os conflitos humanos, as

relações jurídico-sociais de direito e dever, as violações de direito, os crimes,

ou seja, as situações representativas de justiça e de injustiça. O autor cita

alguns exemplos: Antígona, de Sófocles, que apresenta um debate acerca do

direito natural e do direito positivo; As Eumênides, de Ésquilo, que trata da

questão da vingança e da justiça; O Mercador de Veneza, de Shakespeare,

que dispõe sobre a legitimidade contratual e os problemas envolvendo o abuso

de direito; Fausto, de Goethe, uma produção questionadora dos limites do

pacto contratual. Na mesma direção, Franz Kafka, por meio de sua obra O

processo, propõe ao leitor uma reflexão a respeito da atuação dos operadores

do direito e da sua postura diante da sociedade em que estão inseridos; Crime

e Castigo, de Dostoievski, questiona a validade de uma lei e o porquê de sua

obediência; Thomas More, em A Utopia, critica os advogados e prescreve um

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mundo de poucas leis; Frankenstein, de Mary Shelley, expõe os temas acerca

da bioética.

Inegavelmente, o direito, sistema social de normas de conduta, está

sempre sendo representado na literatura, instrumento de expressão dos

fenômenos sociais. No entanto, o caminho contrário não é percorrido na

mesma proporção, tendo em vista que, dificilmente, o direito recorre à

interpretação literária em suas decisões. Poucos se aventuram em tal terreno.

O movimento Law and Literature manifesta-se como um representante

dessa vertente. Esse movimento, que teve início nos Estados Unidos, na

década de 70, impulsionou os estudos da conexão interdisciplinar entre

literatura e direito, sistematizando o seu método de análise. Apesar de só ter

obtido mais reconhecimento nos anos 80, contou com nomes consagrados do

direito norte-americano, como James Boyd-White e Richard Weiberg,

conseguindo boa repercussão na Europa e em diversos países anglo-saxões.

No Brasil, o movimento ainda é obscuro e parece estar longe de ser

reconhecido pela cultura jurídica brasileira.

O Law and Literature Movement utiliza-se da singular habilidade da

literatura em proporcionar uma visão diferenciada a respeito da condição

humana, por meio dos textos com características legais, os quais regulam as

atividades humanas, para consagrar um sistema interpretativo que tenha como

finalidade o alcance de uma sociedade justa e moral. O movimento utiliza-se do

pensamento prático e da discussão em torno do uso da retórica jurídica para

compreender a aplicação do texto na definição da experiência humana. O

objetivo é dar mais clareza aos textos legais e às decisões judiciais,

proporcionando uma ferramenta eficaz de interpretação aos operadores do

direito, filósofos e até mesmo aos políticos (legisladores). Este enfoque

permitiria manter a sociedade funcionando o mais idealisticamente possível.

O movimento se estruturou com base em uma divisão tripartida: o

Direito na Literatura, o Direito como Literatura e o Direito da Literatura. A

finalidade de se estruturar o estudo desta relação está calcada na idéia de que

a literatura pode prover formas alternativas de suporte ao Direito (Constituição),

relacionadas à compreensão da lógica funcional jurídica do justo ou do injusto,

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do legal ou do ilegal. A literatura, assim, poderá influenciar os valores e as

decisões de direito, aproximando o texto legal (codificação fria) da realidade.

O Direito na Literatura é o campo que estuda as formas pelas quais o

Direito está representado na Literatura, seja através de recriações literárias de

processos judiciais, da análise do caráter dos profissionais jurídicos, da

reflexão sobre a ética profissional ou do tratamento dado pelo direito e pelo

Estado às minorias. A influência da literatura sobre o direito é tal que Wigmore

(apud GODOY, 2007) chega a afirmar que “o jurista vai até a literatura para

aprender o direito”.

O Direito como Literatura representa o ramo que vê o sistema jurídico e

o sistema da arte (literatura) como formas de comunicação. O direito só é

possível por meio da linguagem e a idéia do movimento é conceber o seu

conjunto de atos e procedimentos como elementos observáveis sob o ponto de

vista literário. A força do Direito como Literatura intensifica-se ainda pelo fato

de serem ambos ciências narrativas, formas de contar (ou recontar) uma

história com início, meio e fim, gerando expectativas e simbolismos sociais, vez

que:

o modo de percepção da sociedade em relação a um processo judicial depende, em grande escala, do modo pelo qual sua sentença e os efeitos de seu conteúdo penetram no sistema psíquico. E, nessa linha, histórias contadas por romancistas têm, como sabido, maior sensibilidade do que o rigorismo formal necessário ao ato conclusivo de uma lide. (SCHWARTZ, 2006, p. 59)

Portanto, constatando-se que o direito pode ser visto como um orbe de

histórias narradas pelas partes na busca do convencimento de um leitor, o juiz,

de que a história contada é a verdadeira, a intenção da literatura é trazer novos

parâmetros de interpretação da “realidade” jurídica.

O Direito da Literatura representa a parte do sistema que estuda as

normas jurídicas protetoras da atividade literária, ou seja, a organização de

conteúdos e textos legais concernentes à literatura. O Direito da Literatura

envolve basicamente dois aspectos: as relações jurídicas do exercício literário

e as normas jurídicas que regem tanto a criação como a divulgação de obras

literárias, além dos direitos relacionados à liberdade de expressão e à

propriedade intelectual.

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A aproximação dessas duas ciências, direito e literatura, faz com que a

tecnicidade jurídica tenha de ceder espaço à poética reveladora dos reais

motivos e interesses das partes envolvidas, dando mais ouvidos aos

sentimentos humanos. A sociedade é um sistema em permanente evolução e

necessita, pois, de mecanismos em sintonia com seu desenvolvimento. Assim,

o direito pode ser realinhado no sentido de equilibrar essas forças sociais,

deixando-se influenciar mais por fenômenos externos do conhecimento, a

exemplo da literatura.

A propósito dessa influência da literatura sobre o direito, é cabível o

exame de obras de escritores brasileiros consagrados. O objetivo principal é

compreender o direito, partindo de um ponto de vista mais distante do seu meio

puramente normativo, demonstrando a relevância da literatura na atuação dos

operadores do direito.

O direito é fato inquestionável do meio social e a literatura oferece

subsídios para a compreensão desse mesmo meio social. Não obstante a

linguagem da literatura tenha natureza artística e a do direito tenha natureza

técnica, elas não se manifestam de maneira isolada no processo de

comunicação, não sendo raro que a primeira expresse o que a sociedade

pensa a respeito da última. A estreita relação entre direito e literatura,

notadamente a brasileira, pode ser comprovada através de inúmeras obras,

desde o Brasil Colônia.

Diante da proposta de se pensar o direito a partir da literatura,

seguimos a apresentação de alguns autores e suas obras, bem como a

descrição do relacionamento desses autores com as instituições de ensino do

direito, conforme sugestões de Alfredo Bosi (1994) e Arnaldo Godoy (2007).

Com efeito, as primeiras instituições de ensino jurídico foram fundadas por

Dom Pedro I em 1827, com a autorização para a abertura das Faculdades de

Direito do Recife (PE) e de São Paulo (SP). No entanto, diversas famílias em

boas condições econômicas enviavam seus filhos à Europa, principalmente

para Portugal, na Universidade de Coimbra. Grandes escritores da história

literária brasileira estudaram em Coimbra.

Entre esses escritores está Gregório de Matos Guerra, considerado o

primeiro poeta brasileiro, que se graduou em Direito pela Universidade de

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Coimbra no ano de 1661, exercendo a advocacia e, depois, a magistratura em

Portugal até 1681, retornando ao Brasil após o falecimento de sua esposa

neste mesmo ano. Depois do exílio em Angola, morre no ano de 1696 em

Recife (BOSI, 1994).

Gregório de Matos, apelidado de Boca do Inferno, não poupou

governantes, juízes, advogados, letrados, o direito e seus procedimentos, as

testemunhas, as provas e, principalmente, a justiça na sua produção poética. O

autor, ao lançar comentários sobre os maus modos da governança da cidade

de Salvador e inclusive sobre a administração da justiça, escreveu:

Que falta nesta cidade? Verdade Que mais por sua desonra Honra Falta mais que se lhe ponha Vergonha. O demo a viver se exponha, por mais que a fama a exalta, numa cidade, onde falta Verdade, Honra, Vergonha. Quem a pôs neste socrócio? Negócio Quem causa tal perdição? Ambição E o maior desta loucura? Usura. (...) Quem faz os círios mesquinhos? Meirinhos Quem faz as farinhas tardas? Guardas Quem as tem nos aposentos? Sargentos. Os círios lá vêm aos centos, e a terra fica esfaimando, porque os vão atravessando Meirinhos, Guardas, Sargentos, E que a justiça resguarda? Bastarda É grátis distribuída? Vendida Quem tem, que a todos assusta? Injusta. Valha-nos Deus, o que custa, O que El-Rei nos dá de graça,

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Que anda a justiça na praça Bastarda, Vendida, Injusta. (GUERRA, 1992, p. 56)

O poeta baiano expõe os problemas éticos relacionados à verdade e à

honra; denuncia a corrupção e o abuso de poder por parte dos servidores

públicos; faz duras críticas à administração da cidade, vendo a justiça como

bastarda e vendida. O poeta denuncia a justiça como artigo de comércio e, ao

final, a trata como injusta. Ao atribuir essas três características à justiça,

bastarda, vendida e injusta, Gregório de Matos revelou seu descontentamento

em face do direito, ou seja, literariamente, ele demonstrou seu desencanto para

com os sistemas político e jurídico vigentes à época. Ocorre que os aspectos

críticos levantados por Gregório de Matos no século XVII poderiam muito bem

ser discutidos nos dias de hoje, em que a honra é subjugada pelo capital, a

verdade é relativizada pelas circunstâncias e a justiça só existe para alguns.

O “Século das Luzes” trouxe consigo o desenvolvimento das ciências e

das diversas formas de arte. Os fundamentos iluministas influenciaram vários

estudantes brasileiros de direito em Coimbra, que deram voz aos ideais de

liberdade da Revolução Francesa. Entre eles temos Tomás Antonio Gonzaga e

Cláudio Manoel da Costa.

Tomás Antônio Gonzaga nasceu em 1744, na cidade do Porto,

Portugal, filho de pai brasileiro e mãe portuguesa. Consagrou-se com Marília

de Dirceu e se formou em direito, escrevendo uma tese com base nos

princípios iluministas: Tratado de Direito Natural. Retorna definitivamente para

o Brasil aos 38 anos, fixando-se na cidade mineira de Vila Rica como ouvidor e

juiz de direito, mas com efetiva participação e influência nas reuniões que

preparavam a Inconfidência Mineira. Depois de preso, condenado e transferido

para o Rio de Janeiro, Gonzaga foi enviado ao exílio em Moçambique, onde

morre em 1810 (BOSI, 1994).

Tomás Antônio Gonzaga, como representante do Arcadismo, fez

críticas às instituições e solidificou a postura política do movimento contra o

Antigo Regime. Nos versos de Marília de Dirceu (1997), o autor suscita a

relevância do processo e de seus inúmeros volumes em comparação à

presença da amada de Dirceu:

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Verás em cima da espaçosa mesa Altos volumes de enredados feitos; Ver-me-ás folhear os Grandes livros, E decidir os pleitos. Enquanto resolver os Meus consultos, Tu me farás gostosa companhia, Lendo os fatos da sábia mestra História, E os cantos da poesia. Lerás em alta voz a Imagem bela, Eu vendo que lhe dás o Justo apreço, Gostoso tornarei a ler de novo O cansado processo. (GONZAGA, 1997, p. 107)

É possível perceber que Tomás Gonzaga sugere um juiz mais

preocupado com os fatos da História, a beleza da Literatura e a presença de

sua amada do que com a sua responsabilidade funcional de julgar. O processo

judicial é um amontoado de volumes de feitos e o “cansado processo”

representa a morosidade da justiça. O Dirceu de Marília, então, prefere amar a

julgar.

Segundo Bosi (1994), no século 19 está o desenvolvimento das

tendências estético-literárias influenciadas pelas ideologias do momento:

Romantismo, Realismo, Simbolismo. A maioria dos escritores românticos sairá

das Faculdades de Direito e entre eles estão: Gonçalves Dias, Álvares de

Azevedo, Fagundes Varela, Castro Alves, José de Alencar e Bernardo

Guimarães.

No final do século 19 e início do 20, as Faculdades de Direito

continuavam a formar escritores e funcionavam como verdadeiros centros de

formação intelectual. José Pereira da Graça Aranha nasceu em São Luís,

Maranhão, em 1868. Cursou a Faculdade de Direito do Recife, sendo aluno de

Tobias Barreto e seu fiel discípulo. Formado, exerceu a magistratura e compôs

sua principal obra literária: "Canaã". Depois de ingressar na Academia

Brasileira de Letras, ocupando a cadeira de Tobias Barreto, Graça Aranha

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passa a ocupar importantes cargos no Itamaraty. Foi um dos mentores da

Semana de Arte Moderna de 1922 e faleceu em 1931 (BOSI, 1994).

O romance Canaã (1998) retrata a vida em uma colônia de

imigrantes europeus no Espírito Santo e revela o comportamento racista de

alguns personagens que defendem a supremacia da raça ariana sobre os

mestiços. A obra ainda apresenta diversas características da atuação da

Justiça e os vários privilégios de juízes e de advogados, atribuindo-lhes

conteúdos negativos. Isto pode ser conferido nas transcrições a seguir:

Uma manhã, o dono da casa ia partir para o cafezal próximo da habitação, quando um mulato, montado numa besta, se aproximou dele vagarosamente. - Você se chama Franz Kraus? Perguntou o mulato de cima da montaria, desdobrando uma folha de papel, que tirara do bolso. O colono disse que sim. - Pois, então, tome conhecimento disto. E desdenhoso entregou o papel ao outro. (...) - Pois fique sabendo que isto é um mandado da Justiça. É um mandado do senhor Juiz Municipal para que vosmecê dê a inventário os bens de seu pai Augusto Kraus. Não era assim o nome dele? A audiência é amanhã, aqui, ao meio-dia... A Justiça pernoita em sua casa. Prepare do que comer...e do melhor. E os quartos...São três juízes, O Escrivão e eu, que sou o Oficial do Juízo, que também se conta. O colono, ouvindo falar em justiça, tirou o chapéu submisso, e ficou como fulminado. - Ah! Prepare tudo para se arrolar. Não esconda nada, senão cadeia. Ouviu? Bom, adeus; não tenho mais conversa. Não lhe deixo contra-fé, porque de nada lhe serve...Era só que faltava...mais essa maçada. (ARANHA, 1998, p.108)

Essa passagem começa a organizar o ambiente em que se

desenrolará a atuação da Justiça. O autor apresenta críticas com relação a

diversos conceitos, tais como o processo, a autoridade, a lei, a figura do

membro da Justiça e a própria Justiça. Além do tom autoritário e ameaçador do

Oficial do Juízo, a passagem denuncia a obrigatoriedade da concessão de

privilégios e do bom tratamento aos membros do Judiciário. O colono em

questão, submisso e aterrorizado ao ouvir falar na Justiça, terá que responder

a um processo de inventário pela morte de seu pai.

Na manhã seguinte, a Justiça entra “senhorialmente” na colônia e se

instala na casa do colono Kraus:

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Estou morto! disse o Juiz Municipal, espreguiçando-se. - Uma estafa! Quatro horas de viagem...Ainda o senhor veio por obrigação, mas nós dois, eu e o colega, que nada temos com isto, e só pelo passeio! Enfim, sempre a gente se diverte...disse o Juiz de Direito, procurando fitar com o monóculo o Promotor. - Perdão, então não terei ocasião de funcionar? perguntou vivamente o Promotor, adaptando a luneta azul aos olhos. - Ah! é verdade, senhor Curador de órfãos... - Mas aqui não há disto...Todos, meu doutor, são maiores, atalhou com um riso de escárnio um mulato velho, cor de azeitona, recordando nas linhas e na expressão inquieta, a cara de gato maracajá, como era a sua alcunha. Era o Escrivão. - Mas, senhores, entremos... A casa é nossa em nome da Lei, disse o Juiz de Direito, encaminhando-se para dentro. (ARANHA, 1998, p.109)

Aqui, a Justiça se equipara a um grupo economicamente dominante. A

transcrição destaca a prepotência dos operadores do direito e o seu abuso de

autoridade, tendo em vista a absurda invasão de domicílio “em nome da Lei”.

Em seguida, todos conheceram os seus aposentos, comeram e beberam em

grande quantidade, tudo às expensas do “réu”, o colono Kraus.

Após descansarem, os “convidados” resolveram dar início à audiência:

Depois foi apregoado o dono da casa, que entrou na sala, confuso e medroso. O seu olhar não retinha da cena senão uma vaga impressão; começara por desconhecer sua própria casa transformada em tribunal, governada por aqueles homens que se tinham apoderado dela, e onde ele parecia estranho e prisioneiro. Ordenaram que se aproximasse, e fizeram-lhe perguntas a que respondia com voz apagada e trêmula. Quando declarou que o pai era morto havia quatro anos, o Escrivão resmungou: - Vejam só...Este herói aqui na posse dos bens, desfrutando-os como se já fossem dele...sem dar contas à Justiça, nem à Fazenda Nacional. Paulo Maciel, desinteressado, levantou-se e disse ao Escrivão: - Seu Pantoja, vá tomando as declarações. E passou para o quarto, onde os colegas fumavam tranqüilos e preguiçosos, estirados na cama. Tirou o paletó e deitou-se como eles. Na sala, Pantoja atormentava o colono com perguntas e de vez em quando se interrompia para ameaçá-lo: - Se você me ocultar qualquer coisa aqui da casa ou das terras, ou do cafezal, tem de se haver com a Justiça...Vocês são finos, mas eu sou macaco velho...São as penas da sonegação...Penas terríveis!. (ARANHA, 1998, p. 113)

A audiência segue com as ameaças e se desenvolve com estes dois

únicos personagens: o colono alemão e o Escrivão. O meirinho cochilava no

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canto da sala e os demais “roncavam” no quarto ao lado. Finalmente, o

Escrivão dispensa o réu e, antes de encerrar a audiência, vai literalmente

despertar o Juiz Municipal e os demais “membros da Justiça”. Os processos,

as audiências e as “excursões” são fontes de rendimentos para manter a

estrutura de privilégios e regalias da Justiça, pois os emolumentos, as custas e

as taxas arrecadados “sustentam e regalam” a Justiça. Ademais, os membros

do Judiciário são arrogantes, bufões e aproveitadores, sem mencionar o

constante abuso de poder.

De fato, Graça Aranha critica o direito, apresentando esse quadro de

acontecimentos que denunciam a atuação dos seus operadores e revelam

práticas profissionais distantes da ética. O autor classifica a Justiça como

aproveitadora e se utiliza da literatura para expor seu desencanto para com o

direito.

O reconhecido autor de O Sítio do Pica-pau Amarelo e promotor

público do Estado de São Paulo, José Bento Monteiro Lobato, também oferece

em seus textos bons exemplos do universo jurídico.

No conto Júri da Roça (in Cidades Mortas, 1995), Monteiro Lobato

expressa seu pessimismo e desapontamento com relação ao direito, sem

deixar de mencionar o claro ceticismo direcionado à prática jurídica. O autor

inicia o conto descrevendo o palco onde será feita a “encenação” do

julgamento e, a seguir, passa a descrever os personagens:

Nessa lagoa urbana rebentou com estardalhaço a notícia duma sessão do júri. O povo rejubilou. (...) Que regalo! Ia o promotor cantar a tremenda ária da Acusação; o Zezéca Esteves, solicitador, recitaria a Douda de Albano disfarçada em Defesa. Sua Excelência o Meritíssimo Juiz faria de ponto e contra-regra. Delícias da vida! Ao pé do fogo, em casebre humilde, o pai explicava ao filho: - Aquilo é que é, Manequinho. Você vai ver uma estrumela de gosto, que até parece missa cantada de Taubaté. O juiz, feito um gavião pato, senta no meio da mesa, num estrado deste porte; à mão direita fica o doutor promotor com uma maçaroca de papéis na frente. Embaixo, na sala, uma mesa comprida com os jurados em roda. E a coisa garra num falatório até noite alta: o Chico lê que lê; o promotor fala e refala; o Zezéca rebate e tal e tal. Uma lindeza! (LOBATO, 1995, p. 82)

Monteiro Lobato é irônico ao descrever o juiz, o promotor, o advogado

e até mesmo os jurados, debochando dos personagens daquela cena

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enfadonha. Já no júri, a narrativa segue com a descrição do pronunciamento do

promotor, que declamou a vida durante horas para defender sua tese e utilizou

até mesmo a história e a filosofia para sustentá-la:

O promotor, sequioso por falar, com a eloqüência ingurgitada por vinte anos de choco, atochou no auditório cinco horas maciças duma retórica do tempo da onça, que foram cinco horas de pigarros e caroços de encher balaios. Principiou historiando o Direito criminal desde o Pitecantropo Erecto, com estações em Licurgo e Vedas, Moisés e Zend-Avesta. Analisou todas as teorias filosóficas que vêm de Confúcio a Freixo Portugal; aniquilou Lombroso e mais ‘lérias’ de Garófalo (que dizia Garofálo); provou que o livre arbítrio é a maior das verdades absolutas e que os deterministas são uns cavalos, inimigos da religião de nossos pais; arrasou Comte, Spencer e Haeckel, representantes do Anti-Cristo na terra; esmoeu Ferri. (...) Provou em seguida a imaculabilidade da sua vida; releu o cabeçalho da acusação feita no julgamento-Intanha; citou períodos de Bousset – a águia de Meaux, de Rui – a águia de Haia, e de outras aves menores; leu páginas de Balmes e Donoso Cortez sobre a resignação cristã; aduziu todos os argumentos do Doutor Sutil a respeito da Santíssima Trindade; e concluiu, finalmente, pedindo a condenação da ‘fera humana que cinicamente me olha como para um palácio’ a trinta anos de prisão celular, mais a multa da lei. (LOBATO, 1995, p. 84)

Ao final dos discursos, que pareciam não ter fim, aguardava o juiz a

decisão do corpo de jurados, que estava na sala secreta há mais de uma hora,

quando foi cientificado do sumiço dos mesmos, deixando apenas um bilhete

com a condenação do réu no grau máximo. O juiz, indignado com a situação,

suspende o feito e manda recolher o réu, mas este também já havia sumido.

O conto resume o sentimento sarcástico de Monteiro Lobato com

relação ao direito e revela o seu desencanto para com ele. Os personagens

são estereotipados e simbolizam a realidade que o autor tanto criticou. Ele

procurou demonstrar a fragilidade ética dos operadores do direito através de

personagens representativos de um sistema jurídico viciado e ineficaz. Logo,

Monteiro Lobato empregou a literatura como uma ferramenta para ironizar o

direito, criticando suas instituições, seus membros e seus postulados rígidos.

Muito mais contemporâneo, sem experiência nos bancos universitários,

tampouco na Faculdade de Direito, mas legitimado por seu conhecimento

sobre o tema “periferia”, o escritor Reginaldo Ferreira da Silva, foco desta

dissertação, mais conhecido por seu pseudônimo, Ferréz, um híbrido de

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Virgulino Ferreira (Ferre) e Zumbi dos Palmares (Z) e uma homenagem a

heróis populares brasileiros, é o atual expoente da chamada “literatura

marginal”. O autor é o retrato do narrador “marginal” e se revela um crítico

voraz do Judiciário, da polícia, do Governo, do “sistema”:

Estou sendo honesto com todo mundo, e estou ganhando respeito com meu trabalho, o colchão ainda está no chão, os livros na mesma estante, mas pelo menos já consegui comprar um computador, e estou até escrevendo numa revista mensal, fiquei sabendo que muita gente estuda a vida inteira e não chega a se expressar assim, só me pergunto onde está o dinheiro de toda a correria que fiz com o livro, mas já me disseram que neste país, Pai, o que dá dinheiro é contravenção, e isso o senhor não me ensinou a fazer, e eu lhe agradeço por isso, o senhor sempre me falou que o crime começava com um palito de fósforo, e eu acredito até hoje nisso. (...) Eu estou longe de ser algum tipo de exemplo como o senhor falou da última vez que nos vimos, afinal o verdadeiro exemplo que o sistema planta está de notebook na mão sentado no avião, fazendo planos para ler o resultado do próximo painel de votação do Congresso. Sempre penso nisso, Pai, sempre penso que quando esse político desliga o notebook ele relaxa, toma uísque e não tem nenhum arrependimento, afinal para ele Deus é um empresário, o diabo é um ex-sócio fracassado, e anjos, representantes comerciais. (...) Acabei descobrindo que muita gente rouba para ter piscina maior, para ter mais um carro, para aumentar o depósito bancário. Enquanto isso, tem mano preso por tentar roubar camisa. Sabe quem ganha com o crime, Pai? Todo mundo, a começar pelo juiz, depois o delegado, depois os policiais, só quem não ganha é o contraventor, o indivíduo, o meliante. (FERRÉZ, 2006, pp. 82-84)

Por meio de uma escrita peculiar, com fortes marcas de oralidade,

característica da estética marginal, Ferréz deixa claro o seu posicionamento

diante do quadro de corrupção na polícia e no Judiciário. O autor escreve sob o

ponto de vista do favelado, daquele que vive o cotidiano miserável e desigual

da periferia. Ele atua como representante do pobre que não tem perspectiva,

que está à mercê da violência e do descaso das autoridades. Ou seja, a escrita

marginal dá voz àqueles que vivem à margem das grandes cidades e reforça a

constituição dos seus signos de identidade social. E, no caso do texto acima, o

narrador se mostra consciente da cultura criminosa do mercado de consumo e

da corrupção dos agentes públicos. O juiz, o delegado e os policiais é que

“literalmente” lucram com o crime.

Muitos outros autores poderiam ser citados para evidenciar essa

relação entre a literatura e o direito no Brasil. Os exemplos apresentados

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reforçam a tese de Machado de Assis contra a obsessão classificatória da

racionalidade jurídica, já denunciada em O Alienista no final do século XIX.

Tivemos a intenção de demonstrar que, além do estudo dos códigos, das

compilações, das teorias jurídicas, da doutrina e da jurisprudência, a leitura de

obras literárias, espelhos da natureza e condição humanas, manifesta-se como

importante ferramenta na construção do direito e no aperfeiçoamento da

interpretação jurídica, em direção a uma dogmática mais crítica.

2.2. A interpretação jurídica e a interpretação lit erária

A questão da interpretação é fator fundamental no estudo da ligação

entre direito e literatura. Tanto a literatura como o direito são textos e, nesse

sentido, são atividades que buscam investigar o significado de suas

construções. Com efeito, a interpretação literária pretende estreitar a relação

entre o escritor e o leitor da obra, assim como a interpretação jurídica deveria

ambicionar a abreviação do distanciamento entre o legislador e o tutelado pela

lei. Um estudo mais detalhado deste método de interpretação literária do direito

poderá contribuir para uma melhor distinção entre o sujeito enunciador e o

sujeito receptor da norma, aperfeiçoando a sua relação e reduzindo a distância

entre direito e literatura.

A interpretação jurídica é comparada por Dworkin a uma atividade

política:

A prática jurídica é um exercício de interpretação não apenas quando os juristas interpretam documentos ou leis específicas, mas de modo geral. O Direito, assim concebido, é profunda e inteiramente político. Juristas e juízes não podem evitar a política no sentido amplo da teoria política. (DWORKIN, 2005, p. 217)

A proposta de Dworkin (2005) é melhorar a compreensão do direito,

comparando a interpretação jurídica com a interpretação em outros campos do

conhecimento, especialmente a literatura. Ele analisa o sentido que se deve

dar às proposições de direito, os enunciados que fazem os juristas ao

descrever o direito com relação a uma certa questão. As proposições podem

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ser abstratas, gerais, relativamente concretas ou, simplesmente, concretas,

mas a dificuldade está em identificar de que tratam estas proposições jurídicas

e o que as tornam verdadeiras ou falsas.

Alguns acreditam (positivistas jurídicos) que as proposições jurídicas

são inteiramente descritíveis (descrições históricas), mas as demais correntes

doutrinárias as consideram expressões do que o falante quer que o direito seja.

Assim sendo, sob um ponto de vista valorativo, as proposições jurídicas

significariam a preferência do falante.

Todavia, numa alternativa apresentada por Dworkin, as proposições

jurídicas não seriam nem meras descrições, nem simplesmente valorativas. As

proposições de direito “são interpretativas da história jurídica, que combina

elementos tanto de descrição quanto de valoração, sendo, porém, diferente de

ambas” (DWORKIN, 2005, p. 219).

Para Kelsen (1998), a interpretação jurídica tradicional é uma ficção a

serviço da jurisprudência para constituir o ideal de segurança jurídica:

A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ‘correta’. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente. (KELSEN, 1998, p. 396)

Igualmente, muitos operadores do direito reconhecem que em várias

questões é impossível conhecer a intenção do autor da proposição ou, até

mesmo, identificar se existe alguma. A atuação dos juízes, em determinados

casos, mascara um exercício de imposição da sua própria interpretação sobre

o que a norma jurídica deveria ser, ao invés de realmente descobrir a intenção

da lei.

A interpretação literária, chamada de hipótese estética por Dworkin,

estabelece a verificação do texto literário, ou da lei, por exemplo, como o mais

próximo da melhor obra de arte, ou seja, por via da melhor interpretação,

pretende determinar para que serve uma obra literária. O interesse do autor

não reside em descobrir qual o significado de uma palavra ou expressão, mas

sim em teorias que ofereçam uma interpretação da obra como um todo.

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Já a interpretação jurídica tradicional leva em consideração outros

critérios, pois tem como objeto de investigação o texto de uma decisão política.

Daí dizer interpretação política. Este tipo de interpretação pode vir a considerar

o significado das palavras ou expressões de forma isolada, colocando em risco

a pura essência do texto legal e transformando a obra em algo diferente do

pretendido inicialmente pelo autor.

A melhor interpretação textual procura mostrar o texto como o melhor

texto (obra de arte) que ele pode ser e passa de uma simples análise

explicativa da obra (texto) a sua transformação em algo próximo da perfeição.

Portanto, segundo Dworkin (2005), a interpretação de uma obra literária tenta

mostrar qual a melhor maneira de ler um texto, com o propósito de revelar este

mesmo texto como a melhor obra de arte, estabelecendo o que faz uma obra

da literatura ser melhor que outra. A melhor interpretação jurídica, nesse

diapasão, deve ser conduzida no sentido da essência da intenção do

legislador, mas também deve estar em consonância com a realidade social.

Em reflexão acerca do propósito da literatura, Dworkin (2005, p. 225)

assevera que:

Os melhores críticos negam que a literatura tenha uma única função ou propósito. Um romance ou peça podem ser valiosos em inúmeros sentidos, alguns dos quais descobrimos lendo, olhando ou escutando, não mediante uma reflexão abstrata de como deve ser e para que deve servir a boa arte.

O autor, igualmente, contrasta o papel do artista na criação da obra de

arte com o do crítico que a interpreta posteriormente: o artista interpreta

quando cria e o crítico cria quando interpreta.

Dworkin (2005) ainda dá o exemplo de um grupo de romancistas

contratado para um projeto: escrever um romance. Um sorteio definirá a ordem

daqueles que escreverão cada capítulo. Então, segue-se uma corrente de

necessárias leituras e interpretações subseqüentes (o posterior fazendo a

interpretação do anterior) a fim de dar a continuidade ao romance. Há a

necessidade de se ler tudo que já fora escrito para estabelecer o que é o

romance até ali criado. Assim, com exceção do primeiro romancista da corrente

do projeto, os posteriores terão certa limitação na sua liberdade criativa, pois

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devem adequar sua interpretação ao que já foi escrito para que o romance seja

único e faça sentido.

Essa concepção do processo judicial, no sentido de percebê-lo como

uma obra construída da mesma forma que um romance, dividido em capítulos,

cada um narrado sucessivamente pelas partes, as quais fixam os limites da

“história”. O juiz, por sua vez, participa da cadeia de procedimentos (narração)

sem poder desviar-se das linhas traçadas, agindo como um intérprete ideal,

porquanto hábil a proferir uma decisão correta e direcionada ao caso

específico. A decisão final (sentença), seguindo este raciocínio, acaba por se

tornar a conclusão ou o capítulo final do romance.

A decisão de casos controversos no direito se assemelha a este

exercício literário. A semelhança fica ainda mais clara na análise dos casos da

Common Law6, em que a lei não ocupa espaço central nas questões jurídicas,

vez que os argumentos repousam em princípios do direito e em decisões

judiciais anteriores. O papel do magistrado se assemelha àquele do romancista

da corrente, ou seja, deve ler as decisões do passado – tudo que foi escrito

anteriormente, tornando-se seu par na formação desse novo romance.

A partir de um raciocínio equivalente na literatura, Dworkin entende que

“uma interpretação literária tem como objetivo demonstrar como a obra em

questão pode ser vista como a obra de arte mais valiosa” (DWORKIN, 2005, p.

239), desde que observadas características formais de identidade, coerência e

integridade. Com efeito, uma hermenêutica jurídica eficiente deve se ajustar a

essa prática e demonstrar sua finalidade ou valor, não no sentido artístico, mas

sim no sentido político de melhor alternativa para solucionar os conflitos sociais

ou individuais. Assim, a decisão do magistrado, como no exemplo do romance,

será inédita, mas como um capítulo novo de uma história que já havia sido

iniciada, pois “o dever de um juiz é interpretar a história jurídica que encontra,

não inventar uma melhor” (DWORKIN, 2005, p. 240). Em verdade, o

magistrado reconta a história, realizando um exercício de distinção entre a

interpretação e o ideal. Isso é o que Dworkin chama de “história doutrinal”.

6 Sistema legal do “direito comum”, que se desenvolveu através das decisões dos tribunais e não enfatiza os atos legislativos, diferentemente do sistema romano-germânico (Civil Law). O direito é basicamente criado e aperfeiçoado pelos magistrados, pois as suas decisões criam precedentes e vinculam outras decisões futuras em casos semelhantes, formando um conjunto de precedentes chamado common law.

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O autor ainda dispõe acerca da característica relativa e política das

decisões:

O direito é um empreendimento político, cuja finalidade geral, se é que tem alguma, é coordenar o esforço social e individual, ou resolver disputas sociais e individuais, ou assegurar a justiça entre os cidadãos e entre eles e seu governo, ou alguma combinação dessas alternativas. (Essa caracterização é, ela própria, uma interpretação, é claro, mas permissível agora por ser relativamente neutra). (DWORKIN, 2005, p. 239)

Os fatos jurídicos sempre encontrarão argumentações de contraponto,

sendo impossível limitar a interpretação em determinado sentido. Esta será

decidida com base na teoria política, ou seja, constituirá um ato político.

Nesse sentido, a interpretação literária poderá servir como modelo para

uma nova metodologia de análise das proposições jurídicas. O

aperfeiçoamento da hermenêutica jurídica dependerá, pois, da observação

desses diferentes contextos, considerando-se tanto a descrição histórica como

os aspectos valorativos. Deste modo, a interpretação literária servirá como

veículo de aproximação do direito e da literatura.

2.3. A nova hermenêutica constitucional e a literat ura

A nova hermenêutica constitucional baseia-se exatamente na

valorização dos princípios jurídicos como instrumentos a serem utilizados pelo

intérprete na construção de um modelo alternativo de hermenêutica jurídica, no

qual o intérprete poderia valer-se, por exemplo, de raciocínio equivalente ao

usado na interpretação literária.

A Constituição é um conjunto de normas fundamentais destinadas à

organização de um Estado, tais como a distribuição de competência, o

exercício da autoridade, forma de governo e os direitos humanos (individuais e

sociais).

Segundo a conceituação jurídica apontada por Alexandre de Moraes

(2009, p. 6),

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A Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos.

Todavia, a vitória do movimento constitucional no início do século XIX

clamou pela busca de um conceito ideal de Constituição. José Gomes

Canotilho entende que

Este conceito ideal identifica-se fundamentalmente com os postulados políticos-liberais, considerando-os como elementos materiais caracterizadores e distintivos: (a) a constituição deve consagrar um sistema de garantias da liberdade (esta essencialmente concebida no sentido do reconhecimento de direitos individuais e da participação dos cidadãos dos actos do poder legislativo através do parlamento); (b) a constituição contém o princípio da divisão de poderes, no sentido de garantia orgânica contra os abusos dos poderes estatais; (c) a constituição deve ser escrita (documento escrito). (CANOTILHO in MORAES, 2009, p. 7)

Veja-se que o conceito ideal de constituição enfatiza a posição atual de

valorização de direitos e garantias individuais, bem como destaca a

necessidade de ser escrita. Nesse momento, conforme conclui Ricardo Aronne

(2001, p. 422),

A Constituição perde o papel de meramente organizar o Estado e garantir o indivíduo contra sua atuação, constituindo um verdadeiro programa de realização social, vinculante para o Estado e a sociedade, na esteira dos direitos fundamentais. Deixa de ser carta política, para ganhar a dimensão normativa devida, bem como centralizar todo o ordenamento jurídico – local privilegiado outrora ocupado pela codificação privada –, traçando-lhe o sentido e conteúdo.

Percebemos que as normas constitucionais, ao longo dos anos,

acabaram por conquistar a posição plena com relação às normas jurídicas, o

que se pode chamar de efetividade constitucional, pois são carregadas de

imperatividade e capazes de tutelar de forma imediata todas as situações que

contemplam. Desse modo, a “Constituição passa a ser a lente através da qual

se lêem e se interpretam todas as normas infraconstitucionais” (BARROSO,

2008, p. 329). A Constituição e seus princípios deram nova direção e

abrangência aos demais ramos do direito, tais como o direito civil e o direito

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processual. É justamente esta efetividade da Constituição que serviu de apoio

para o desenvolvimento da nova hermenêutica constitucional no Brasil.

Essa fase da nova hermenêutica constitucional tem como fundamento

a aproximação da dogmática jurídica com a ética e com a efetivação dos

direitos fundamentais. A idéia é contribuir para o avanço social e para a

construção de um país com mais justiça e dignidade.

No cenário constitucional contemporâneo, o papel do intérprete é muito

maior do que a mera revelação do conteúdo da norma, sem espaço para a

criatividade. De fato, como bem assevera Luís Roberto Barroso (2008, p. 232):

As cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto, principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido unívoco e objetivo que uma certa tradição exegética lhes pretende dar. O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser desenvolvido.

Trata-se, então, de uma fase de normatividade dos princípios, de

consideração dos valores e de argumentação, mas sem que isso represente a

negação das regras e do conhecimento convencional. A nova hermenêutica

mantém os conceitos tradicionais, mas a eles agrega outros fatores cognitivos.

Nesse ponto é que se abre a possibilidade da literatura como suporte

de um modelo hermenêutico mais transdisciplinar. O exame do direito e da

literatura sob um ponto de vista textual permite conceber os seus diferentes

significados no mundo das letras, mas ambos continuam retratando valores e

expressando realidades que se comunicam de maneira semelhante e são,

enquanto textos, influenciados pelos diversos setores sociais no momento de

sua produção. Assim, tanto as obras literárias como as leis (Constituição)

“podem conservar sua relevância, mas autorizar que os intérpretes atualizem o

sentido de suas expressões conforme passem a plasmar outros valores no

contexto da mudança social” (SCHWARTZ, 2006, p. 64).

Os estudos do direito e da literatura já comoveram juristas

constitucionais consagrados, apesar das diferentes expectativas com relação

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ao direito e à literatura: do primeiro, exigimos a ordem, a racionalidade, a

decisão, a medida; da última, a beleza, o lúdico, a liberdade, a transgressão.

De fato, do direito, materializado na lei, espera-se o comando e da literatura se

quer a expressão do belo. Por conseguinte, em primeira instância, poderíamos

concluir que ambos trabalham com aspectos antagônicos, haja vista que o

direito investe no limite e a literatura defende a falta dele. Todavia, a própria

compreensão de que cada um deles tem uma função específica no mundo da

linguagem poderá ajudar o intérprete a concluir que ambos espelham valores e

expressam realidades, resultando em uma relação de mútua colaboração.

A Constituição está repleta de direitos e princípios que permitem níveis

de interpretação bastante variados. Isso dificulta a solução de casos mais

complexos, que exijam atualidade legislativa. Muitas vezes a produção

legislativa não acompanha o movimento da sociedade e o direito necessita de

um tipo de hermenêutica que dê um resultado mais satisfatório ao deslinde do

caso. A exemplo disso, as súmulas vinculantes7 têm levantado diversas

discussões e uma delas se refere ao princípio do juiz natural8, garantia

constitucional de imparcialidade do magistrado. A obrigatoriedade imposta aos

juízes e tribunais com a criação da súmula vinculante estaria violando o

princípio do juiz natural, pois tornaria desnecessária a livre convicção do

magistrado acerca do conteúdo processual. Assim sendo, a literatura pode

inovar na apreciação da Constituição enquanto fenômeno de expressão do

direito, ainda que tenham discursos aparentemente distintos, fazendo com que

a interpretação literária influencie o intérprete do direito na solução eficaz de

casos mais delicados, demandantes de uma norma jurídica atualizada.

Nesse sentido, no próprio direito constitucional contemporâneo, não só

a hermenêutica constitucional se aproxima da hermenêutica literária, como a

aproximação geral e substancial entre Constituição e literatura é quase um

tópico corrente na mais alta literatura jusconstitucional. A Constituição seria

7 A súmula vinculante foi instituto concebido pela Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. A criação desse instituto confere às súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, em todas as esferas. Este efeito confere às súmulas força comparável à de lei. 8 Juiz Natural é aquele que está previamente encarregado como competente para o julgamento de determinadas causas abstratamente previstas, ou seja, a designação do juiz é anterior ao conhecimento dos fatos alegados.

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uma obra aberta9, com os legisladores e juízes como seus romancistas, no

mesmo sentido que “o papel de uma Corte Constitucional se assemelharia ao

de um escritor que busca o melhor final para o seu enredo” (SCHWARTZ,

2006, p.73).

Com efeito, o ordenamento jurídico muitas vezes não consegue

acompanhar os fenômenos sociais e tampouco antecipá-los, fator que o

tornaria um modelo ideal de sistema jurídico. Entretanto, até mesmo, por não

ser uma ciência exata, o direito se vê frente a diferentes interpretações,

sobretudo no campo do direito constitucional. Os direitos e princípios inseridos

na Carta Magna acabam por fazer parte de um cenário no qual a variação

interpretativa é bastante ampla.

A Constituição Federal Brasileira e o princípio da igualdade apresentam

um quadro de possíveis interpretações conflitantes. O mesmo texto legal pode

ser campo de diferentes fenômenos de interpretação. Neste diapasão, o

princípio da igualdade inserido no caput do artigo 5° da Constituição Federal de

1988 dispõe que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer

natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade” e mais o seu inciso I: “homens e mulheres são iguais em direitos

e obrigações, nos termos desta Constituição”. Porém, a mesma Carta

Constitucional relativiza a igualdade ao estabelecer vantagens a determinado

grupo de pessoas, as mulheres, como no exemplo do artigo 7°, inciso XX,

asseverando que haverá “proteção do mercado de trabalho da mulher,

mediante incentivos específicos, nos termos da lei”.

Neste exemplo, a vontade que prevalece é a da igualdade, mas não há

conflito, pois ao determinar direitos fundamentais a um determinado grupo o

constituinte só veio a reforçá-la. O magistrado poderá interpretar o fenômeno

de forma distinta, utilizando-se de fundamentação política em sua decisão,

9 Poderíamos destacar o sentido dado à expressão obra aberta por Umberto Eco (1988), em sua teoria relacionada à “abertura” e à “informação” das obras poéticas contemporâneas. Segundo o autor: “As obras poéticas contemporâneas, ao propor estruturas artísticas que exigem do fruidor um empenho autônomo especial, freqüentemente uma reconstrução, sempre variável, do material proposto, refletem uma tendência geral da nossa cultura em direção àqueles processos em que, ao invés de uma seqüência unívoca e necessária de eventos, se estabelece como que um campo de probabilidades, uma ‘ambigüidade’ de situação, capaz de estimular escolhas operativas ou interpretativas sempre diferentes” (ECO, 1988, p. 93).

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mas, em verdade, não há uma eliminação de um princípio pelo outro e, sim,

uma análise valorativa (ponderação de valores). Estabelece-se o peso relativo

de cada um, sem que isso signifique a anulação do outro e não há, pois, uma

“superioridade formal de nenhum dos princípios em tensão, mas a simples

determinação da solução que melhor atende o ideário constitucional na

situação apreciada” (BARROSO, 2008, p. 33).

Em outro sentido, o magistrado também poderia lançar mão da

interpretação literária, seguindo a concepção da literatura como construção

intertextual, ou seja, a da criação do texto a partir de outro texto anterior, e se

espelhar em outros juízes que tenham julgado caso semelhante, questionando-

lhes acerca da sua motivação. Este processo garantiria o estabelecimento de

regras para o futuro e a continuidade da transformação do “romance”, da

Constituição, resultando em um maior equilíbrio entre o sistema jurídico e o

sistema social. A interpretação da Constituição em consonância com a

realidade social asseguraria a boa compreensão dos fenômenos jurídicos e

sociais.

Percebemos, portanto, uma idéia de integridade, na qual o magistrado

leva em consideração o processo legislativo (constituinte) no momento de

formular sua decisão. A jurisdição constitucional passa a ser um processo

infinito de contar (ou recontar) a história legislativa até chegar ao capítulo final,

sem que isto signifique definitivamente sua conclusão. A integridade defendida

por Dworkin (2005) passa a ser essencial à sobrevivência da Constituição e do

próprio discurso do Poder Constituinte Originário.

Destarte, dizer o Direito com relação a uma questão específica é árdua

tarefa de interpretação geral, tendo em vista a própria abstração das

proposições jurídicas e dos princípios gerais. Toda a norma que enuncia algo

que deve ser possui de maneira intrínseca um juízo de valor e cabe ao

operador do direito esclarecê-lo, pois a regra “é a diretriz no plano cultural, no

plano espiritual” (REALE, 2003, p. 36), representando, neste sentido, uma

medida de conduta.

A idéia da melhor conduta (ou da melhor interpretação) defendida por

Dworkin (2005) dentro da sua tese, a do direito como decisão política, também

trata da questão da igualdade. Aliás, o autor traça um paralelo entre a teoria

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estética e a teoria política, no qual teorias abrangentes da arte teriam como

base teses epistemológicas a respeito das relações válidas entre a experiência

e a formação de valores. Esta teoria confere à arte uma função de

autodescoberta acerca da identidade pessoal necessária à determinação dos

contornos da relação de um indivíduo com outros indivíduos e as

circunstâncias que os envolvem, porquanto:

Qualquer teoria política que confira um lugar importante à igualdade também exige suposições a respeito dos limites das pessoas, pois deve distinguir entre tratar as pessoas como iguais e transformá-las em pessoas diferentes. (DWORKIN, 2005, p. 248)

Percebe-se, assim, uma possibilidade de aproximação da teoria política

e da teoria estética. A proposta de uma nova base epistemológica para o direito

e a conveniência do uso da literatura no exame das proposições constitucionais

começam a aparecer de forma mais clara, vez que:

Uma das grandes vantagens do uso da Literatura no estudo da Constituição reside no fato de que ela (a Literatura) discute seus pontos na linguagem em que a vida ordinária se revela, seja ela de forma metafórica, alusiva ou narrativa. Por isso, a Literatura é, antes de tudo, um modo de pensar a vida que complementa o conhecimento prático e acadêmico, unindo o autor ao leitor. A compreensão do texto da Lei Fundamental é, assim, um dos trunfos do estudo da Constituição pela Literatura. (BRADNEY, in SCHWARTZ, 2006, p. 75)

Mas o momento é delicado e devemos atentar ao fato de que a

Constituição está perdendo sua função primordial de refletir a realidade e está

se distanciando cada vez mais do fenômeno social. Há, por assim dizer, o

Brasil da Constituição e o Brasil da realidade. De fato, em tempos de incerteza,

risco e instabilidade social, falta à Constituição (e à legislação brasileira em

geral) uma maior proximidade com o povo para o qual foi promulgada. O

sistema jurídico, representado pela Carta Magna, precisa de um meio mais

viável de comunicação entre estes dois elementos: o legislador constituinte e o

povo.

A literatura, desse modo, pode ser útil ao direito, sensibilizando o

constituinte e seu tecnicismo com o sentimento de humanidade. A literatura se

apresenta para essa tarefa de tecer a linha de comunicação entre a

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Constituição e o povo, agindo como um instrumento tradutor da ficção para a

realidade.

Admitir a conexão do direito (o comando) à literatura (o belo),

diminuindo a distância que os separa, e aperfeiçoar esta relação significa abrir

espaço a uma nova alternativa de aplicação do direito. E tornar isso possível

poderá significar o resgate da essência das normas jurídicas e a compreensão

dos fenômenos jurídicos e sociais da atualidade.

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3 O CONSTITUCIONALISMO COMTEMPORÂNEO, O PRINCÍPIO

DA IGUALDADE E A LITERATURA

3.1. O constitucionalismo e a normatividade dos pr incípios

A partir da segunda metade do século XX, o direito já não tinha mais

espaço dentro dos moldes do positivismo jurídico, como doutrina que defende

que o único direito existente é aquele empiricamente observável e autônomo

da moral. A prevalência da lei como parâmetro jurídico e o seu distanciamento

da ética não correspondiam ao nível civilizatório esperado para aquele

momento histórico. No entanto, o discurso científico que passou a dominar o

direito não teve o condão de patrocinar o retorno do jusnaturalismo10 puro e

simples, nem dos seus fundamentos abstratos da razão subjetiva. O pós-

positivismo veio em defesa da superação do saber convencional, mas sem

negá-lo, sustentando-o com o retorno dos conceitos de justiça e legitimidade.

O constitucionalismo contemporâneo, então, suscita a reaproximação

entre ética e direito, pois “o direito é uma das espécies do gênero “ética” e não

pode deixar de assumir conteúdos éticos” (ADEODATO, 2002, p. 199). Trata-

se, aqui, da ética representativa dos valores morais individuais, mas também

direcionada a algo maior do que a concepção individual, pois “a ética exige que

extrapolemos o ‘eu’ e o ‘você’ e cheguemos ao universal, ao juízo

universalizável, ao ponto de vista do espectador imparcial, ao observador ideal” 10 A Teoria do Direito Natural postula um direito inerente à natureza humana e seus fundamentos são estabelecidos pela própria natureza da realidade social. Dois são os seus postulados fundamentais: “há uma ordem jurídica além da efetiva, daquela observável empiricamente pelos órgãos dos sentidos, que é metaforicamente designada ‘natural’, entendendo-se ‘natureza’ como algo não produzido pelo ser humano; e, em caso de conflito com a ordem positiva, deve prevalecer esta ordem ‘natural’, por ser ela o critério externo de aferição daquela” (ADEODATO, 2002, p. 188). Alguns dos defensores das idéias jusnaturalistas foram Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Hobbes, Rousseau e Kant. Para Maria Helena de Diniz (2004), “O direito natural é o direito legítimo, que nasce, que tem raízes, que brota da própria vida, no seio do povo. O governo só pode declarar o direito conforme a idéia de ordem jurídica acalentada pelo grupo social que dirige”(DINIZ, 2004, p. 49). Atualmente, pode ser considerada como uma teoria superada pelos fundamentos da axiologia jurídica, pelo direito positivo.

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(SINGER, 2002, p. 20). Dessa forma, segundo Singer (2002), eticamente, a

imparcialidade é importante sob o ponto de vista coletivo. O fato de eu saber se

sou eu e não o outro o beneficiado por determinado direito é irrelevante, pois a

ética exige que, ao emitirmos juízos éticos, extrapolemos nossas preferências

pessoais em favor da coletividade. As agudas mudanças das atitudes morais

no nosso século e a incapacidade do direito de acompanhá-las por si mesmo

estão a exigir a utilização de novos parâmetros de hermenêutica jurídica.

A nova perspectiva constitucional estaria voltada para a busca do

equilíbrio entre a lei e os valores da sociedade, sejam eles éticos, políticos,

religiosos, culturais ou estéticos, de tal forma que um dos principais ideários é a

valorização dos princípios jurídicos como base de um modelo interpretativo

mais aberto. Assim sendo, a materialização dos princípios é resultado desse

movimento dos valores, partindo do mundo da filosofia para o mundo do direito.

Na sua concepção clássica, os princípios representam um conjunto de

valores fundamentais, que organiza juízos relativos e serve para definir

logicamente o sistema normativo. Miguel Reale (2002, p. 60) tratou de

conceituar os princípios da seguinte forma:

Princípios são, pois, verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos à dada porção da realidade. Às vezes também se denominam princípios certas proposições que, apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus pressupostos necessários.

No mesmo sentido, Celso Bandeira de Mello (2004A, p. 460) dispôs

acerca da importância dos princípios na organização do ordenamento jurídico:

Princípio jurídico é o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Os princípios jurídicos, portanto, não são imperativos categóricos nem

ordenações diretamente emanadas do legislador, mas exprimem motivos para

que o operador do direito decida em determinado sentido. Os princípios

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jurídicos não seriam suscetíveis de aplicação direta e imediata, contudo

atuariam como um ponto de partida sinalizador do sentido a ser seguido pelo

intérprete ou operador do direito na solução do caso normativo em análise.

Na ótica pós-positivista, os princípios constitucionais são o reflexo dos

valores acolhidos pelo ordenamento jurídico e, nas palavras de Luís Roberto

Barroso (2008, p. 29), “eles espelham a ideologia da sociedade, seus

postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao

sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas”.

Eles têm a função de condensar valores, dar unidade ao sistema e condicionar

o intérprete.

A formulação dos princípios jurídicos teria como primeiro passo uma

construção genérica e abstrata feita pelo legislador e, num segundo momento,

a sua concretização como normas do caso (ou de decisão) pelo intérprete ou

operador do direito, o que permitiria a realização da justiça em sentido material,

isto é, a utilização dos princípios jurídicos caso a caso. Logo, os princípios têm

a finalidade de organizar os juízos de valor e servir como critério de análise

legislativa, auxiliando o legislador na composição da norma e o intérprete na

formulação de seu entendimento acerca do espírito da lei. No caso do princípio

da igualdade, ele ainda possui uma finalidade limitadora, de modo a restringir a

atuação do legislador, no que diz respeito à elaboração da norma; do intérprete

ou da autoridade, quando da aplicação da lei; e do particular, no que se refere

à prática de condutas discriminatórias.

A elevação dos princípios ao status de norma jurídica trouxe uma nova

classificação para as normas em geral. A atual dogmática as dispõe em duas

categorias: a de princípios e a de regras. As regras possuem conteúdo objetivo

e específico, ao passo que os princípios são mais abstratos e têm uma

finalidade mais aberta. Porém, isto não significa que há hierarquia entre eles,

podendo ter funções distintas no ordenamento.

As regras manifestam-se como proposições normativas com produção

de efeitos imediatos, pois a aplicação de seu conteúdo é direta e instantânea.

O comando da lei é objetivo e sua aplicação não requer grandes elaborações,

exprimindo-se mediante subsunção na maioria das vezes. As leis são, por

assim dizer, simplesmente aplicadas ou violadas.

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Por sua vez, os princípios estão carregados com valores morais, que

exprimem a relação entre a necessidade do indivíduo e um objeto, e com

fundamentos éticos. Os princípios representam uma decisão política e se

apresentam como um guia que determina a direção correta a ser seguida.

Estas características serão fundamentais para a resolução de inevitáveis

conflitos interpretativos que venham a surgir numa ordem pluralista. A colisão

de princípios é parte importante da lógica dialética e, em razão disso, os

valores neles dispostos devem ser ponderados, refletindo uma questão de

peso ou de importância.

A solução para as hipóteses de conflitos normativos parte de uma

análise hierárquica (uma lei é superior a outra), passando pelo exame

cronológico (uma lei é anterior a outra) até chegar ao quesito especialidade

(uma lei é mais específica do que a outra). Entretanto, este processo não é

adequado para a solução de conflitos entre as normas constitucionais,

notadamente os princípios.

No caso dos princípios contrapostos, a técnica usada pelo intérprete é

a da ponderação de valores (ou ponderação de interesses) para estabelecer o

peso relativo de cada um, sem que isso signifique a anulação do outro, pois “o

legislador não pode, arbitrariamente, escolher um dos interesses em jogo e

anular o outro, sob pena de violar o texto constitucional” (BARROSO, 2008, p.

32). Esse processo significa um mínimo de sacrifício dos princípios e dos

direitos fundamentais envolvidos, contribuindo para o equilíbrio do

ordenamento jurídico.

Desse modo, a determinação das diferenças existentes entre regras e

princípios coopera na integração do sistema jurídico, auxiliando o intérprete na

busca da melhor decisão para o caso concreto. O intérprete terá a sua

disposição a subjetividade do princípio e o comando objetivo da lei para

formular a decisão concreta, num processo de cooperação e integração apto a

equilibrar o ordenamento jurídico.

Com efeito, na formação de uma moderna hermenêutica constitucional,

a solução do caso concreto:

Deve fundar-se em uma linha de argumentação apta a conquistar racionalmente os interlocutores, sendo certo que o processo

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interpretativo não tem como personagens apenas os juristas, mas a comunidade como um todo. (BARROSO, 2008, p. 34)

Os princípios estão carregados de valores e têm ampla abrangência,

pois trazem consigo as experiências sociais e os fundamentos éticos da

comunidade em questão. Ademais, a sua força tende a fornecer subsídios ao

operador do direito na resolução do caso concreto, tornando-se norma.

Ao tratar da força dos princípios na solução dos conflitos normativos,

Bonavides (2004A, p. 259) defende que:

Todo discurso normativo tem que colocar, portanto, em seu raio de abrangência, os princípios, aos quais as regras se vinculam. Os princípios espargem claridade sobre o entendimento das questões jurídicas, por mais complicadas que estas sejam no interior de um sistema de normas. (BONAVIDES, 2004A, p. 259)

Essa perspectiva de um novo direito constitucional no Brasil funda-se

na força normativa da Constituição, no desenvolvimento de uma interpretação

constitucional com base numa nova hermenêutica e na sistematização de

princípios peculiares de interpretação constitucional. A Constituição está no

centro do sistema jurídico devido a sua elevação política e científica, sendo

fundamental na interpretação das normas infraconstitucionais. Como nas

palavras de Luís Roberto Barroso (2008, p. 35):

O novo século se inicia fundado na percepção de que o direito é um sistema aberto de valores. A Constituição, por sua vez, é um conjunto de princípios e regras destinados a realizá-los, a despeito de se reconhecer nos valores uma dimensão suprapositiva. A idéia de abertura se comunica com a Constituição e traduz a sua permeabilidade a elementos externos e a renúncia à pretensão de disciplinar, por meio de regras específicas, o infinito conjunto de possibilidades apresentadas pelo mundo real.

Dentro desse cenário de comunicação entre o sistema de valores e o

sistema jurídico, os princípios não têm uma enumeração taxativa. No entanto,

há consenso com relação a alguns deles, tais como liberdade, igualdade,

justiça e, principalmente, no dias de hoje, o princípio da dignidade da pessoa

humana.

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3.1.1. Os princípios e as regras para Ronald Dworkin

Ronald Dworkin, em sua obra Levando os direitos a sério (2002),

defende uma teoria liberal do direito, a qual chamou de teoria dominante do

direito. O autor separa sua teoria em duas partes: a primeira sobre o que é o

direito, as condições necessárias e suficientes para a verdade de uma

proposição jurídica, e a segunda acerca do que deve ser, o modo como as

instituições jurídicas devem se comportar. A teoria geral do direito deve ser

normativa e conceitual, contendo uma teoria da legislação (perspectiva do

legislador), da decisão judicial (perspectiva do juiz) e outra da observância da

lei (perspectiva do cidadão comum).

A teoria geral do direito de Dworkin inclui assuntos que pertencem a

diferentes categorias, tais como a questão política no constitucionalismo e, até

mesmo, a filosofia. Essa teoria assenta-se no estudo da moral e da política

geral, com a dependência de teorias filosóficas sobre a natureza humana,

utilizando-se da lógica e da metafísica. De fato, o autor critica o positivismo

jurídico, mas oferece uma teoria conceitual alternativa, pretendendo mostrar

como os indivíduos podem ter outros direitos jurídicos que não os criados por

uma decisão concreta (ou lei expressa).

Deste modo, a teoria geral do direito de Dworkin admite tipos diferentes

de argumentação, representando uma teoria política que oferece os princípios

para orientar as decisões judiciais nos casos de direitos controvertidos. Há a

necessidade de se tratarem os princípios como direito, abandonando a visão

positivista e reconhecendo que tanto um princípio como uma regra podem

infligir obrigação legal.

Um dos pontos principais da original concepção de Dworkin acerca das

normas jurídicas é a distinção entre regras e princípios. Este autor foi um dos

primeiros a admitir consistentemente a normatividade dos princípios. Segundo

ele, as regras são aplicáveis no modo “tudo ou nada” e os princípios têm

dimensão de peso, importância ou valor. Ao tratar de sua teoria, Dworkin

(2002, p. 36) denomina princípio:

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Um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade.

O objetivo do autor é distinguir princípios, no sentido genérico, das

regras, tratando-os como princípios jurídicos e regras jurídicas

respectivamente. A diferença entre eles seria de natureza lógica, distinguindo-

se quanto à natureza da orientação que oferecem.

Os fatos estipulados por uma regra fazem com que ela seja válida e,

nesse caso, a sua resposta deve ser aceita, ou não é válida e, então, de nada

servirá para a decisão. Contudo, para uma análise mais completa, sempre que

se tratar de regra é necessário enumerar todas as suas exceções, pois o

conceito de validade da regra é o do tudo ou nada, o que a torna incompatível

com a dimensão de peso (ou valor) do princípio.

Essa dimensão de peso só os princípios têm, ao contrário das regras, e

esse pode ser considerado o principal critério de diferenciação entre ambos. A

escolha dos princípios funcionará de acordo com a sua relevância. Os

princípios, segundo Dworkin (2002, p. 42),

possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam, aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia.

A dimensão é, como se pode perceber, uma parte integrante do

conceito de um princípio, sendo fundamental o questionamento sobre a sua

importância (seu peso). Já as regras não têm esta dimensão e são

funcionalmente válidas ou inválidas se houver conflito aparente, em um

processo no qual uma delas será abandonada ou reformulada. Por exemplo: no

conflito aparente entre o crime de infanticídio (art. 123 do Código Penal

Brasileiro) e o de homicídio (art. 121), a espécie (infanticídio) excluirá o gênero

(homicídio) em face das características da especialidade do infanticídio, tais

como o parentesco e o estado puerperal. Assim, implicitamente, a regra do

infanticídio se torna válida, enquanto que a regra do homicídio passa a ser

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inválida. Há, no caso em tela, a cooperação do princípio da especialidade,

típico do direito penal, na solução do conflito normativo aparente, ao dispor

sobre os efeitos advindos das características específicas do infanticídio.

Deste modo, no caso de duas regras entrarem em conflito, uma delas

não poderá ser válida e a decisão para determinar qual é válida deverá levar

em consideração fatores externos às próprias regras. O ordenamento jurídico

poderá regular esses conflitos através de outras regras de hierarquia, de

antiguidade (data da promulgação) ou de especificidade, bem como por meio

dos princípios.

O princípio pode ser importante na solução de um problema jurídico

sem, no entanto, estipular uma solução em particular. Isso significa que quem

tiver de tomar a decisão levará em consideração os princípios envolvidos e

optará por um deles, sem que esse processo identifique o princípio como

válido.

Desse modo, na visão de Dworkin (2002), um exame da obrigação

jurídica deve reconhecer o importante papel desempenhado pelos princípios na

formulação de decisões judiciais em concreto. Os princípios podem ser

tratados do mesmo modo que as regras jurídicas e têm, portanto,

obrigatoriedade de lei, devendo ser utilizados pelos juízes e demais operadores

do direito na formação de suas decisões e interpretações. Essa é a idéia da

força normativa dos princípios.

3.1.2. Os princípios constitucionais no modelo pós-positivista

O processo evolutivo dos sistemas jurídicos, partindo do

jusnaturalismo, passando pelo positivismo para, então, chegar ao pós-

positivismo, resulta de um amadurecimento histórico-doutrinário, o qual revelou

a atuação normativa dos princípios. Como bem disse Paulo Bonavides

(2004A), “os princípios são normas e as normas compreendem igualmente os

princípios e as regras”. Desse modo, os princípios passam a ser mais do que

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guias do pensamento jurídico, podendo adquirir caráter normativo desde o

início. Neste cenário, Luís Roberto Barroso (2008, p. 47) lembra que:

O pós-positivismo identifica um conjunto de idéias difusas que ultrapassam o legalismo estrito do positivismo normativista, sem recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturalismo. Sua marca é a ascensão dos valores, o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos fundamentais. Com ele, a discussão ética volta ao direito. O pluralismo político e jurídico, a nova hermenêutica e a ponderação de interesses são componentes dessa reelaboração teórica, filosófica e prática que fez a travessia de um milênio para outro.

Destarte, esta perspectiva pós-positivista e principiológica do direito

estimulou o surgimento de uma moderna hermenêutica constitucional,

admitindo a Constituição (e o direito) como um sistema aberto de valores. E a

Constituição é, de fato, um conjunto de princípios e regras destinados a realizar

esses valores suprapositivos.

Daí podermos dizer que a busca da efetividade das normas

constitucionais, o desenvolvimento da interpretação constitucional através de

novos parâmetros hermenêuticos e a sistematização dos princípios

constitucionais tenham sido os aspectos responsáveis pela formação do novo

direito constitucional no Brasil, ou seja, um sistema constitucional rico em

garantias individuais e coletivas, mas baseado principalmente na força

normativa de seus princípios.

Bonavides (2004a, p. 288), ao tratar da teoria contemporânea dos

princípios, resume:

Não há distinção entre princípios e normas, os princípios são dotados de normatividade, as normas compreendem regras e princípios, a distinção relevante não é, como nos primórdios da doutrina, entre princípios e normas, mas entre regras e princípios, sendo as normas o gênero, e as regras e os princípios a espécie.

Demonstra-se, com isso, o reconhecimento da superioridade e da

hegemonia dos princípios na hierarquia normativa, a qual só é possível pelo

fato de os princípios serem equiparados aos valores, representando a mais alta

normatividade da organização do poder.

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Para compreendermos melhor a posição dos princípios constitucionais

dentro da moldura pós-positivista, precisamos examinar as suas funções.

Tradicionalmente, as funções são dispostas em: função explicativa e função

justificadora.

Conforme a elucidação prática fornecida por David Dantas (2004), a

função explicativa permite a síntese de grande quantidade de informações,

possibilitando a descrição de setores do direito de forma sintética e econômica.

Isso permitiria o entendimento do direito de forma sistêmica, autorizando o

encontro de soluções para os conflitos legais. A função justificadora, por sua

vez, também tem característica dogmática-pragmática, pois o direito propõe

critérios para a resolução dos problemas jurídicos, não se limitando a descrever

normas vigentes. Ocorre que o autor ainda dispõe acerca de uma terceira

função, a limitadora. Segundo ele, a limitação nasce da impossibilidade de se

solucionarem questões de princípio com recurso ao método da subsunção,

tendo em vista que o alcance e o sentido do princípio só serão encontrados no

jogo dos diferentes princípios em seus diferentes graus.

Nesses termos, os princípios têm função supletiva, integradora ou

corretiva das regras jurídicas. Essas características aperfeiçoariam o

ordenamento jurídico e só atuariam quando outras normas não estivessem em

condições de exercer sua função reguladora. Pode-se observar, então, que o

constituinte brasileiro atribuiu à realidade uma dimensão valorativa própria, pois

autoriza a incidência direta dos princípios sobre os fatos, sem precisar das

regras, o que não significa excluí-las. Os princípios, seguindo este raciocínio,

teriam a função de dispor critérios de valor da realidade, ou seja, teriam uma

função simbólica.

As funções dos princípios foram examinadas por Bonavides (2004a, p.

274) e este conclui que:

Partindo-se da função interpretativa e integrativa dos princípios – cristalizada no conceito de sua fecundidade – é possível chegar, numa escala de densidade normativa, ao grau mais alto a que eles já subiram na própria esfera do direito positivo: o grau constitucional.

Percebe-se que há uma elevação dos princípios a um grau superior,

pois as suas funções os carregam com uma força normativa, na chamada

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constitucionalização dos princípios. Esses passam, então, a ter alcance de

norma e se consagram no ordenamento jurídico, servindo de guia no momento

de formação da decisão.

Como ainda explica Bonavides (2004a, p. 289), ao dispor sobre a força

normativa dos princípios na atual cena constitucional:

A esta altura, os princípios se medem normativamente, ou seja, têm alcance de norma e se traduzem por uma dimensão valorativa, maior ou menor, que a doutrina reconhece e a experiência consagra. Consagração observada de perto na positividade dos textos constitucionais, donde passam à esfera decisória dos arestos, até constituírem com estes aquela jurisprudência principial.

A jurisprudência tem consagrado uma nova forma de interpretar o

direito, ao materializar os princípios e dar força a sua atuação. Os princípios já

não têm aquela função subsidiária das antigas positivações, para as quais o

direito era um mero sistema de leis, passando a atuar de forma destacada na

fundamentação da nova hermenêutica constitucional.

O grande defensor da teoria dos princípios no direito constitucional

brasileiro é Eros Grau11, o qual, analisando os princípios e as regras jurídicas,

em sua obra A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (2001, p. 215),

expôs sua idéia a respeito dos princípios, entre estes, o da igualdade, referindo

que:

Quanto aos princípios positivos do Direito, evidentemente reproduzem a estrutura peculiar das normas jurídicas. Quem os contestasse, forçosamente teria de admitir, tomando-se a Constituição, que nela divisa enunciados que não são normas jurídicas. Assim, p. ex., quem o fizesse haveria de admitir que o art. 5°, caput, da Constituição de 1988 não enuncia norma jurídica ao afirmar que ‘todos são iguais perante a lei’ (...).

Obviamente, como então conclui Eros Grau, isso não se sustenta,

pois o artigo 5° da Constituição Federal de 1988 é uma autêntica espécie de

norma jurídica. Os princípios carregam dentro de si o pressuposto de fato (facti

species) suficiente a sua distinção como norma.

Nesse sentido, as normas constitucionais, formadas pelas regras e

pelos princípios, são normas jurídicas e, por conseqüência, sua interpretação

11 Atualmente, Eros Grau é um dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal.

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se utiliza de conceitos clássicos da interpretação em geral. Entretanto, as

normas constitucionais têm especificidades que as tornam singulares, tais

como a superioridade jurídica, o conteúdo específico e o caráter político. No

caso dos princípios fundamentais, estes expressam as principais decisões

políticas na esfera do Estado, as mesmas que vão definir a sua estrutura

central.

A tradicional hermenêutica constitucional fundamenta-se em um

modelo de regras, sobrepostas por meio da subsunção, competindo ao

intérprete revelar o sentido das normas e fazer com que elas incidam no caso

concreto. Trata-se de uma questão de fato, e não de valor, pois reflete uma

atividade de conhecimento técnico, sem lhe caber qualquer função criativa

dentro do direito. Essa técnica ainda continua válida como meio de solucionar

os conflitos jurídicos, mas já não é suficiente a suportar as questões

constitucionais, principalmente a tensão entre os próprios princípios

fundamentais.

A nova hermenêutica constitucional, conforme Barroso e Barcellos

(BARROSO, 2008, p. 376),

Assenta-se em um modelo de princípios, aplicáveis mediante ponderação, cabendo ao intérprete proceder à interpretação entre fato e norma e realizar escolhas fundamentadas, dentro das possibilidades e limites oferecidos pelo sistema jurídico, visando à solução justa para o caso concreto. Nessa perspectiva pós-positivista do Direito, são idéias essenciais a normatividade dos princípios, a ponderação de valores e a teoria da argumentação.

Uma técnica de decisão jurídica eficiente precisa contar com a

ponderação de valores, interesses, bens ou normas, mas principalmente com

os princípios, para solucionar questões contraditórias ou casos difíceis. Esse

raciocínio tem de se valer de parâmetros objetivos e, também, incluir um

processo seletivo de normas e de fatos importantes, conferindo pesos aos

elementos implicados na disputa, sempre procurando preservar os valores

contrapostos. Os princípios, portanto, servem de premissas conceituais e

metodológicas da aplicação das normas que recairão sobre a relação jurídica

de direito material.

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Assim, o pós-positivismo representa um conjunto de idéias que procura

resgatar os valores, a diferenciação (qualitativa) entre regras e princípios, a

posição central dos princípios fundamentais (entre eles o da igualdade) e,

finalmente, a reaproximação entre o Direito e a Ética. Acrescente-se a isso

elementos que permitam ao direito brasileiro a superação dos problemas

relacionados à desigualdade perante a lei, ao mesmo tempo em que se inclua,

no processo de cidadania, a grande parcela de indivíduos afastada do acesso

aos bens de consumo.

3.2. O princípio constitucional da igualdade

3.2.1. A evolução do princípio da igualdade

O princípio da igualdade está entre os temas mais controversos

discutidos nos campos da Filosofia, da Ciência Política e do Direito, fazendo

parte das reflexões desde a Antigüidade até o presente momento. Para Paulo

Bonavides (2004b, p. 112), a questão da igualdade não pode ser tratada sob

um ponto de vista unicamente jurídico, pois a igualdade é:

uma noção aberta, tanto à interferência filosófica como à inquirição política e ideológica, mas cuja ignorância faria ininteligível esse conceito nos seus próprios fundamentos, pois em verdade contém o princípio da igualdade uma certa medida essencial de valor com substrato impossível de se conter em dimensão unicamente jurídica.

Desse modo, o conceito de igualdade se desenvolveu inspirado pelos

anseios de justiça e segurança social, sobretudo ao longo da Idade Moderna.

Para cumprir esta tarefa de forma mais completa, precisaremos demonstrar a

relação entre igualdade e liberdade no seu mais alto contraste como valores

fundamentais de uma ordem jurídica baseada nos ideais de justiça, paz e

segurança.

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Historicamente, igualdade e liberdade significam a expressão dos

moldes ideológicos de organização política do Estado Ocidental nos últimos

dois séculos: o Estado Liberal e sua defesa da liberdade, de um lado; e o

Estado Social, com a sua sustentação da igualdade e da dignidade humana, do

outro.

Outrossim, impossível deixar de lado a análise filosófica da relação

entre igualdade e liberdade, porquanto omitir o aspecto histórico-filosófico

neste exame tornaria difícil a tarefa de elucidar o conceito de igualdade. Assim,

filosoficamente poderíamos questionar, como o fez Platão, em A República

(1993), nos tempos clássicos, se os homens são iguais ou desiguais por

natureza, para estabelecer uma base à especulação política. De fato, os

primeiros fundamentos sobre a igualdade foram feitos por Platão (1993), que

distinguiu dois tipos de igualdade: a absoluta, mesmas oportunidades de

acesso aos cargos públicos, e a proporcional, provimento de cargos no

governo através do mérito de cada um.

Conforme elucida Bonavides (2004b, p. 113),

Na raiz disso tudo estava a discriminação orgulhosa com que o grego se presumia superior ao bárbaro, o senhor ao escravo, o nobre ao plebeu, convicções expressivas de uma desigualdade natural convertida em desigualdade social.

Este raciocínio reflete o conservadorismo do pensamento filosófico da

época: uns comandam e outros obedecem. Os princípios da igualdade de

oportunidades e da valorização dos méritos de cada um aplicavam-se a uma

restrita parcela de pessoas que possuíam cidadania, em uma sociedade de

castas e classes sociais como a em que viveu Platão.

O pensamento de Aristóteles, em A Política (1997), tinha como

conceito de justo a igualdade dos iguais e a desigualdade dos desiguais. A

noção de injusto residiria no tratamento igual das pessoas desiguais ou no

tratamento desigual de pessoas iguais. Porém, o problema desta idéia estaria

na dificuldade de se implementar o tratamento igualitário e os critérios

diferenciadores em uma sociedade de castas e classes sociais tão definidas

como as do Mundo Antigo, na qual a mobilidade social era praticamente

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impossível. A ruptura destes fundamentos só começou a ser revelada com o

advento da Idade Moderna e a introdução da filosofia de Hobbes (1999).

Nesse sentido, Hobbes (1999), seguindo os preceitos da escola

jusnaturalista com relação ao problema da igualdade, reconheceu a igualdade

natural como pressuposto à obtenção da paz, dispondo de forma contrária às

premissas platônicas da desigualdade natural. Essa liberdade seria, para

Hobbes, o preço que o indivíduo paga ao Estado pela convivência jurídica e

pela submissão à autoridade quando sacrifica a sua liberdade no estado de

natureza.

As desigualdades entre os homens foram analisadas por diversos

estudiosos, entre eles, Rousseau, que, no século XVIII, trouxe uma análise

reflexiva acerca do rumo que a filosofia deveria seguir com relação à igualdade,

ou seja, partir da igualdade natural para a igualdade na ordem social. Em

verdade, Rousseau (2002) classificou as desigualdades de duas formas: a

desigualdade natural ou física, estabelecida pela natureza e diferenciadora de

aspectos como saúde, força física e qualidades do espírito; e a desigualdade

moral ou política, a qual depende de uma convenção instituída pelos homens.

A desigualdade política seria, ela mesma, fator contribuinte ao acirramento da

desigualdade física, por englobar a desigualdade econômica e, dessa forma,

comprometer a saúde do corpo.

O resultado desta reflexão de Rousseau está representado no princípio

da igualdade perante a lei, vinculando a Filosofia ao Direito. Essa igualdade

civil passou a ser o ponto central das investigações filosóficas, políticas e

jurídicas na modernidade. Como resumiu Bonavides (2004b, p. 115),

A igualdade civil moderna nasceu com a Revolução Francesa e a filosofia política e jurídica que a antecedeu. Dois pensadores tornaram-se clássicos no exame da implantação do princípio da igualdade: Rousseau, que teorizou a igualdade civil, e Marx, que lhe conferiu a dimensão material ou econômica, derrogando aquela por ilusória, numa crítica contundente cujas conseqüências alteraram depois, parcialmente, as bases do Estado Moderno.

Desse modo, Rousseau colocou a igualdade politicamente, como meio

de dirimir os conflitos entre a liberdade e o poder, ou seja, entre o homem e o

Estado. Essa igualdade só poderia ser alcançada através da igualdade jurídica

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dos cidadãos e estabelecida no estado de sociedade, no qual imperavam as

desigualdades provenientes das instituições.

Por sua vez, as desigualdades materiais foram tratadas por Marx em O

Capital: crítica da economia política (2006). O socialismo científico de Marx

tinha a intenção de chegar à igualdade material, entendendo ser essa a única

capaz de tornar possível a verdadeira igualdade jurídica e, conseqüentemente,

eliminar as desigualdades advindas da sociedade de classes, uma utopia de

fundo socialista.

Para Marx (2006), a miséria, o vício, a escravidão e a exploração são

conseqüências do desenvolvimento do mundo capitalista. As relações de

produção constituiriam a estrutura econômica da sociedade, na qual se baseia

a superestrutura jurídica e política. Desse modo, as relações de produção

trariam inevitáveis reflexos ao princípio da igualdade e ampliariam as formas de

desigualdade material entre os homens.

O radicalismo dessas duas correntes, a de Rousseau, com a igualdade

jurídica, e a de Marx, com a igualdade material, fez surgir o compromisso

democrático de desenvolvimento de uma igualdade relativa, a qual o direito

constitucional positivo tem recorrido. A igualdade relativa pode se

institucionalizar tanto no Estado Liberal como no Estado Social, pois o fato de o

princípio da igualdade ser relativo, segundo Bonavides (2004b), não constituiria

obstáculo à tese teórica de que ele limita necessariamente o poder do Estado.

O que é relativo é o processo de institucionalização da igualdade, não o

princípio em si, considerado como abstração, com força racional o suficiente

para colocá-lo acima da legislação ordinária emanada do próprio Estado. A

igualdade continuaria a ser absoluta na esfera axiológica, mas relativa na

realidade positiva dos ordenamentos jurídicos.

No Brasil os sinais de desigualdades materiais entre a classe

hegemônica e a classe subalterna já eram sentidos desde o período colonial.

Esse período, conforme salienta Bonavides (2004b), deu início ao longo

processo de contrastes no país, onde a estrutura dualista foi fixada de modo a

constituir uma sociedade moderna (industrial) de um lado e uma sociedade

marginalizada (miserável e violenta) do outro. Dos tempos da “República

Velha”, marcada por uma forte estratificação social, representada pelos

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grandes proprietários de terras (fazendeiros e aristocratas) e pelos

camponeses (população pobre), até o governo de Getúlio Vargas nos anos 30,

o qual fez persistir no direito brasileiro o discurso liberal e as discussões sobre

democracia, o Estado ainda se manteve distante das classes menos

favorecidas e continuou difícil a tarefa de aplicação dos ideais de igualdade.

Por outro lado, conforme levantamento histórico feito por Weyne

(2005), a primeira Constituição brasileira, a do Império, promulgada em 25 de

março de 1824, no seu artigo 179, inciso 13, já estipulava a igualdade perante

a lei: “A lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará

em proporção dos merecimentos de cada um”. As Constituições subseqüentes,

da República de 1891, 1934, 1937 (Estado Novo) e 1946, conservaram termos

semelhantes acerca da igualdade perante a lei, bem como a Constituição da

República Federativa do Brasil de 1967, que dispôs em seu artigo 153,

parágrafo primeiro, o seguinte: “Todos são iguais perante a lei, sem distinções

de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Será punido pela

lei o preconceito de raça”. Finalmente, o levantamento chega à redação da

atual Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de

outubro de 1988, que será o objeto da análise a seguir.

De fato, houve grande evolução no que diz respeito ao conceito de

igualdade perante a lei e muito se avançou com relação a sua presença no

ordenamento jurídico, mas a desigualdade material persiste substancialmente,

sustentada pelas classes hegemônicas e reforçada pela estratificação social,

que se eterniza em meio às contradições do capitalismo. Os homens já nascem

socialmente diferentes e a maioria das oportunidades não é disponibilizada

igualitariamente. Logo, a obtenção da igualdade depende da identificação da

origem dessas desigualdades e da geração de condições iguais mínimas, para

que ela possa ser garantida a todos.

Para isso, há que se garantir um Estado Democrático de Direito, no

qual o respeito à igualdade seja sinônimo de justiça. O ordenamento jurídico

necessita de bases fortes para edificar um conjunto normativo eficiente e,

nesse sentido, os princípios têm verdadeira função fundamentadora, orientando

o legislador e o intérprete do direito na solução de embates jurídicos. O

princípio constitucional da igualdade atua como informador de toda a ordem

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jurídico-constitucional, suplementando o direito com relação a sua interpretação

e as suas lacunas.

3.2.2. O princípio da igualdade e a sua função limitadora

O princípio constitucional da igualdade é reconhecido como princípio

informador de todo o ordenamento jurídico-constitucional e atua de forma a

atender a justiça social. A compreensão deste princípio passa necessariamente

pelo entendimento dos preceitos especiais de igualdade, que representa um

dos valores supremos da República Federativa do Brasil, conforme dispõe o

preâmbulo da Constituição Federal de 1988,

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica de controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. (BRASIL, 1988)

O Título I da Carta Magna de 1988, denominado de Princípios

Fundamentais, em seu artigo 3°, incisos III e IV, e lenca como alguns dos

objetivos fundamentais da República a erradicação da pobreza e da

marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; assim como

a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor,

idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O caput do seu artigo 5°, Título II, e alguns de seus inci sos, tratam da

igualdade perante a lei e de algumas vedações à discriminação:

Art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distin ção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta

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Constituição (...), XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. (BRASIL, 1988)

O princípio ainda está refletido em vários outros comandos

constitucionais, tais como o artigo 7°, incisos XXX e XXXI, os artigos 170, 196 e

206, os quais reforçam o preceito da igualdade, estipulam situações

isonômicas aos desiguais, outorgam direitos sociais ou vedam distinções

arbitrárias.

Desse modo, percebemos que o princípio da igualdade está

resguardado em mais de um momento ao longo do texto constitucional, mas a

sua concretização como regra se dá no título que trata dos direitos

fundamentais. O Título II trata dos direitos e garantias fundamentais,

subdivididos em direitos individuais e coletivos, direitos sociais, nacionalidade,

direitos políticos e partidos políticos.

Atualmente, a doutrina propõe uma classificação de direitos

fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações, conforme a ordem na

qual foram constitucionalmente reconhecidos. Os direitos fundamentais de

primeira geração compreendem, entre outros, os direitos individuais e coletivos.

Conseqüentemente, o direito à igualdade está inserido no rol dos direitos

elencados como de primeira importância e, portanto, todos os cidadãos têm

direito a um tratamento idêntico perante a lei.

Os vários sentidos dados ao vocábulo “igualdade” exigem uma

distinção entre os principais conceitos: igualdade nos direitos (ou igualdade dos

direitos), igualdade perante a lei (ou igualdade de direito) e igualdade jurídica.

O conceito de igualdade nos direitos, além da igualdade perante a lei, abrange

o igual gozo dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição. Por sua

vez, a elocução igualdade perante a lei, usada em contraponto à igualdade de

fato, significa a igualdade de tratamento pela lei, vedando qualquer

discriminação não justificada. Esta igualdade perante a lei teria força

obrigatória para o legislador e o operador do direito, não permitindo a

concessão de vantagens ou, até mesmo, ônus para uns em prejuízo de outros.

Finalmente, o conceito de igualdade jurídica está relacionado ao direito de

todos serem sujeitos dotados de capacidade jurídica.

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Norberto Bobbio, em seu livro Igualdade e Liberdade (1997, p. 32),

define a divisão do conceito de igualdade em igualdade perante a lei e

igualdade de fato com base nas diferenças sociais e econômicas:

O que se entende, genericamente, por igualdade de fato é bastante claro: entende-se a igualdade com relação aos bens materiais, ou igualdade econômica, que é assim diferenciada da igualdade formal ou jurídica e da igualdade de oportunidades ou social.

A igualdade de oportunidades, segundo Bobbio (1997), abrange tanto

as diferenças econômicas como as diferenças culturais e tem o objetivo de

colocar todos os membros da sociedade em condições de participarem da

competição da vida a partir de posições iguais. Assim, o princípio da igualdade

procura um tratamento, igual ou desigual, que admita a equiparação de todos.

Anote-se, pois, que a Carta Constitucional de 1988 adotou o princípio

da igualdade de direitos, preconizando a igualdade de aptidão, isto é, todos os

cidadãos têm direito a um tratamento igual pela lei, de acordo com os critérios

conferidos pelo ordenamento jurídico. Destarte, o constituinte quis vedar as

diferenciações arbitrárias e absurdas, tendo em vista que dar tratamento

desigual aos desiguais é reivindicação da própria idéia de justiça.

Portanto, da pretensão constitucional de se estabelecer que todos são

iguais perante a lei compreende-se que “o alcance do princípio não se restringe

a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não

pode ser editada em desconformidade com a isonomia” (MELLO, 2004b, p. 9),

ou seja, esse preceito fundamental constitui-se como norma voltada tanto para

o operador do direito como para o legislador.

Nestes termos, Bandeira de Mello (2004b, p. 10) entende que a própria

edição da lei deverá respeitar o tratamento equânime das pessoas,

A lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes.

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Além de garantir a igualdade com relação aos seus abrangidos, por

mais obviamente diferentes que sejam, o princípio da igualdade veda ao

próprio legislador disciplinar de forma diversa situações equivalentes.

Por outro lado, as desigualdades entre os seres humanos geram

efeitos nos sistemas normativos e, conforme afirma Gastão Weyne, em seu

livro Igualdade e poder econômico (2005, p. 39),

A lei deve tratar de forma eqüitativa os cidadãos desiguais e não deve ser fonte de perseguições ou privilégios, entendidos como direitos, vantagens, prerrogativas, válidos apenas para um indivíduo ou um grupo, em detrimento da maioria. O direito de igualdade perante a lei não prejudica, portanto, o reconhecimento da desigualdade relativamente à natureza singular ou especial do homem. É fundamental o entendimento de que, embora a lei defina, para todos, o tratamento igualitário perante a lei, admite a desigualdade como fato, desigualdade essa que é, em tese, irrelevante para o tratamento paritário entre os homens.

A Constituição estabelece que todos são iguais perante a lei, mas aqui

também está implícita a idéia de que os indivíduos são diferentes por natureza,

social e economicamente. O âmbito de abrangência do princípio da igualdade

perante a lei proíbe, por exemplo, o arbítrio e a discriminação, mas obriga à

diferenciação, levando em consideração a existência de desigualdades de fato.

Com efeito, uma lei que viesse a proibir tanto ricos como pobres de dormirem

embaixo de pontes não os afetaria da mesma forma e ainda estaria acirrando

as desigualdades reais.

O reconhecimento da lei como geradora de discriminações é inegável

no sentido de criar diferenciações para a efetivação do próprio princípio da

igualdade e o questionamento ficaria a par de quais discriminações seriam

juridicamente insustentáveis. Por exemplo, o artigo 7° da Constituição Federal

de 1988 elenca uma série de direitos dos trabalhadores brasileiros urbanos e

rurais, mas o seu parágrafo único restringe esse rol, estabelecendo apenas

determinados direitos ao trabalhador doméstico, tendo em vista as

características desse tipo de trabalho. A própria Constituição restringe

vantagens a um determinado grupo de pessoas (trabalhadores domésticos) e

passa a tratá-lo desigualmente com relação aos demais, o que não significa

ilegalidade, mas, pelo contrário, reforça os preceitos advindos do princípio da

igualdade perante a lei.

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A própria norma, portanto, tem a função de prestar tratamentos

desiguais, pois, ao discriminar situações, faz com que as pessoas

compreendidas em uma ou outra situação sejam tuteladas por regimes

diferentes. O resultado é que a algumas pessoas são concedidos determinados

direitos e obrigações, enquanto que a outras não, por estarem em categoria

diversa, regida por diferente conjunto de direitos e obrigações.

Alguns critérios para a identificação de discriminações em desrespeito

à igualdade foram apresentados por Bandeira de Mello (2004b, p. 21):

Tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional.

Desse modo, para que a discriminação esteja em consonância com a

isonomia é preciso que: a diferenciação não atinja um só indivíduo; as

situações ou pessoas diferenciadas pela regra de direito sejam efetivamente

distintas entre si; exista uma correlação lógica entre os fatores diferenciais

existentes e a distinção estabelecida pelo regime jurídico, bem como esteja

este vínculo de correlação de acordo com os interesses constitucionalmente

protegidos.

O simples estabelecimento racional do nexo entre a diferença e o

tratamento diferenciado não é suficiente a ensejar a legalidade, exigindo que

haja compatibilidade com a Constituição, eis que “as vantagens calçadas em

alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando situações

conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com os interesses

acolhidos no sistema constitucional” (MELLO, 2004b, p. 42).

Assim, o que o ordenamento jurídico ambiciona consolidar por meio do

princípio da igualdade é a impossibilidade de diferenciações fortuitas ou

injustificadas. Com efeito, por todas as características apresentadas até aqui,

compreende-se que o princípio constitucional da igualdade tem uma função de

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limitar tanto a própria lei, na pessoa do legislador, como o intérprete e o

operador do direito.

Neste diapasão, Alexandre de Moraes (2009, p. 37) separa o princípio

constitucional da igualdade perante a lei em dois planos distintos,

De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade do intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social.

Portanto, só haverá desigualdade na lei quando a norma distinguir de

forma arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. A diferenciação

não será discriminatória se forem justificados objetiva e razoavelmente a sua

finalidade e seus efeitos, utilizando-se de critérios e juízos valorativos

amplamente aceitos. Para isso, faz-se necessária uma relação de

proporcionalidade entre os meios empregados e os fins pretendidos, tudo em

conformidade com os direitos constitucionalmente tutelados.

O Supremo Tribunal Federal, através do Mandado de Injunção n.

58/DF (BRASIL, 1991), que teve como relator o Ministro Celso Bandeira de

Mello, apontou uma classificação tríplice para a finalidade limitadora do

princípio da igualdade: limitação ao legislador, ao intérprete ou autoridade e ao

particular.

Essa classificação foi apresentada por Alexandre de Moraes, em sua

obra Direito Constitucional (2009), e dispõe que o legislador, quando no

exercício de sua função constitucional de elaboração normativa, não poderá se

afastar do princípio da igualdade, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.

Portanto, quaisquer normas que criem diferenciações arbitrárias, mas sem

finalidade lícita, serão incompatíveis com a Constituição Federal.

A limitação com relação ao intérprete ou à autoridade pública refere

que eles não poderão aplicar as leis e os atos normativos aos casos concretos

de modo a criar ou fomentar desigualdades arbitrárias. O Poder Judiciário, ao

exercer sua função de dizer o direito, terá de utilizar os mecanismos

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constitucionais com o propósito de interpretar as normas jurídicas de forma

única e igualitária. Para isso, o legislador constituinte criou mecanismos

processuais que garantissem essa atuação do Poder Judiciário: o recurso

extraordinário (para o Supremo Tribunal Federal) e o recurso especial (para o

Superior Tribunal de Justiça), com a intenção de uniformizar a interpretação da

Constituição e da legislação federal, respectivamente. Portanto, sempre com

relação ao princípio da igualdade, a legislação processual deverá determinar a

uniformização da jurisprudência para todos os tribunais no Brasil.

A terceira limitação do princípio da igualdade apresentada por Moraes

está direcionada ao particular. Com efeito, o particular não poderá praticar

condutas discriminatórias, preconceituosas ou racistas, sob pena de responder

civil e penalmente por tais atos, nos termos da legislação em vigor.

Importante, igualmente, sobre o princípio da igualdade, é a lembrança

da lição de San Tiago Dantas (apud MORAES, 2009, p. 38):

Quanto mais progridem e se organizam as coletividades, maior é o grau de diferenciação a que atinge seu sistema legislativo. A lei raramente colhe no mesmo comando todos os indivíduos, quase sempre atende a diferenças de sexo, de profissão, de atividade, de situação econômica, de posição jurídica, de direito anterior; raramente regula do mesmo modo a situação de todos os bens, quase sempre se distingue conforme a natureza, a utilidade, a raridade, a intensidade de valia que ofereceu a todos; raramente qualifica de um modo único as múltiplas ocorrências de um mesmo fato, quase sempre os distingue conforme as circunstâncias em que se produzem, ou conforme a repercussão que têm no interesse geral. Todas essas situações, inspiradas no agrupamento natural e racional dos indivíduos e dos fatos, são essenciais ao processo legislativo, e não ferem o princípio da igualdade.

Desse modo, segundo o pensamento de San Tiago Dantas, todas

essas situações indicam a necessidade de uma elaboração teórica, na qual se

faça uma distinção clara entre as leis arbitrárias e as leis que estão de acordo

com o ordenamento jurídico, elevando a missão do Poder Judiciário.

Essa tarefa de distinção é resultado de um processo interpretativo do

qual participa o princípio da igualdade, por representar um valor fundamental,

jurídico e ético da sociedade. E, de fato, a formatação de uma nova

hermenêutica constitucional precisa basear-se em princípios carregados de

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valores e fundamentos éticos, que conduzam o operador do direito na direção

correta para decidir o caso concreto, ultrapassando os ideais positivistas.

Nesse sentido, como salienta Barroso (2008, p. 42),

O pós-positivismo é uma superação do legalismo, não com recurso a idéias metafísicas ou abstratas, mas pelo reconhecimento de valores compartilhados por toda a comunidade. Estes valores integram o sistema jurídico, mesmo que não positivados em um texto normativo específico. Os princípios expressam os valores fundamentais do sistema, dando-lhe unidade e condicionando a atividade do intérprete. Em um ordenamento jurídico pluralista e dialético, princípios podem entrar em rota de colisão. Em tais situações, o intérprete, à luz dos elementos do caso concreto, da proporcionalidade e da preservação do núcleo fundamental de cada princípio e dos direitos fundamentais, procede a uma ponderação de interesses. Sua decisão deverá levar em conta a norma e os fatos, em uma interação não formalista, apta a produzir a solução justa para o caso concreto, por fundamentos acolhidos pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral.

Assim, o princípio da igualdade, além de garantir os direitos

fundamentais individuais, tem um papel fundamental na construção de uma

nova hermenêutica constitucional. Essa é justamente a perspectiva do novo

direito constitucional, fundado na força normativa dos princípios e em um novo

modelo de interpretação.

O direito constitucional tem a chance de corrigir problemas crônicos no

Brasil, como a questão da desigualdade e a corrupção institucional. É preciso

superar mais a própria história e a política de ciclos problemáticos do que as

normas jurídicas em si. O aperfeiçoamento da democracia brasileira fica

vinculado a um retorno ético e a um projeto de inclusão social.

3.3. A igualdade, o direito à literatura e a voz da periferia

A tarefa, nesse momento, consiste em compreender a literatura como

um direito humano e como um mecanismo de aperfeiçoamento da igualdade,

entrelaçando a literatura e os direitos humanos. De fato, a pressuposição é de

que todas as pessoas têm o direito (humano e fundamental) à literatura e,

nesse sentido, o artigo 215 da Constituição Federal de 1988 dispõe que: “O

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Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às

fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das

manifestações culturais”. A proteção desses bens materiais e imateriais, entre

eles a literatura, garantiria a continuidade da produção multicultural do Brasil e,

em comparação com épocas passadas, isso demonstra um avanço em matéria

de proteção cultural.

Por outro lado, a constatação de que atingimos um nível de

capacitação técnica e um domínio sobre a natureza impressionantes nos

levaria a crer que temos plenas condições de resolver os muitos problemas

materiais da humanidade, a exemplo da fome e da falta de moradia. Entretanto,

o progresso industrial trouxe o extremo conforto e com ele mais exclusão das

massas condenadas à miséria e à violência, pois quanto mais aumentam os

níveis de riqueza, mais se dilata a péssima distribuição da renda.

Durante vários anos se acreditou que, superadas as barreiras da

ignorância e os governos despóticos, passaríamos a viver como nos sonhos

dos utopistas, rumo à felicidade coletiva, mas, segundo Antonio Candido (2004,

p. 170),

Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização. Penso que o movimento pelos direitos humanos se encontra aí, pois somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça contra a qual lutam os homens de boa vontade à busca, não mais do estado ideal sonhado pelos utopistas racionais que nos antecederam, mas do máximo viável de igualdade e justiça, em correlação a cada momento da história.

Obviamente, não se está aqui a negar o progresso e os avanços

tecnológicos, pois os modernos meios materiais poderiam ser utilizados para

tornarem possível a aproximação de um estágio social melhor. O fato é que

quem acredita em igualdade procura tornar real a possibilidade teórica, levando

a teoria ao encontro da realidade.

Atualmente, percebemos uma mudança de comportamento da

sociedade com relação ao pobre e ao negro, principalmente por parte das

classes dominantes. Políticos e empresários incluem em seus discursos

questões relacionadas à miséria e à violência, o que revela um avanço com

relação à intolerância às desigualdades sociais e econômicas. No entanto,

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resta a dúvida a respeito da real intenção dessa nova postura ideológica, pois,

apesar dos avanços, precisamos ir além das atitudes “politicamente corretas” e

enfrentar o problema com iniciativas de inclusão social.

Nesse sentido, Antonio Candido (2004, p. 171) relembra que:

Hoje não se afirma com a mesma tranqüilidade do meu tempo de menino que haver pobres é a vontade de Deus, que eles não têm as mesmas necessidades dos abastados, que os empregados domésticos não precisam descansar, que só morre de fome quem for vadio, e coisas assim. Existe em relação ao pobre uma nova atitude, que vai do sentimento de culpa até o medo. Nas caricaturas dos jornais e das revistas o esfarrapado e o negro não são mais tema predileto das piadas, por que a sociedade sentiu que eles podem ser um fator de rompimento do estado de coisas, e o temor é um dos caminhos para a compreensão.

No mínimo, a injustiça social passou a constranger e a antiga

indiferença com relação à miséria tem sido bem mascarada. Isso acabou

alterando o comportamento dos administradores públicos e dos empresários,

pois poderia comprometer a sua imagem. Sem dúvida, a miserabilidade das

massas e o seu sofrimento não são mais ignorados pela maior parte da opinião

pública. O cidadão comum, por sua vez, sente diariamente os reflexos da

miséria, seja pelo crescente número de “sem-tetos” nas ruas ou pelo aumento

generalizado da criminalidade, sendo praticamente obrigado a perceber a

existência da estratificação social.

Trata-se de um problema relacionado aos direitos humanos (igualdade

de todos, por exemplo), que tem se desenvolvido lentamente no sentido de

generalizar a idéia da desigualdade como intolerável. O estágio civilizatório

atual tem condições de utilizar os recursos tecnológicos e organizacionais

disponíveis na diminuição das desigualdades, assim como no restabelecimento

do equilíbrio social e da segurança jurídica.

Ultrapassada a ignorância relacionada à miséria, reconhece-se a

necessidade de todos possuírem casa, alimento e vestuário básico, mas e

quanto à educação? E à literatura? Antonio Candido (2004) defende que, além

destes elementos vitais, o cidadão tem direito a ler Dostoievski e a ouvir os

quartetos de Beethoven. A educação é uma ferramenta de esclarecimento da

consciência e, partindo de um ponto de vista individual, coopera no

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entendimento de que os pobres têm direito aos bens materiais, sem que isso

signifique caridade, bem como às minorias deve-se garantir igualdade de

tratamento. Do ponto de vista social, surge a opinião acerca da necessidade de

leis específicas asseguradoras desses direitos materiais e imateriais, entre

eles, a literatura.

O engajamento pelos direitos humanos pressupõe não apenas o

amparo aos bens materiais, assegurando a sobrevivência física, mas também

aos bens que afiançam a integridade espiritual. A alimentação, a moradia, a

saúde, o acesso à justiça, entre outros, são direitos indiscutíveis, do mesmo

modo que o direito à opinião, à arte e à literatura.

A literatura tem expressão universal e não há homem ou cultura sem

contato com alguma forma de expressão literária, pois, segundo Antonio

Candido (2004, p. 175),

Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável deste universo, independentemente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional e poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance.

Todos estabelecem contato com a literatura no sentido amplo. Ela atua

de forma consciente e inconsciente, na proporção em que a sociedade

manifesta seus dramas e suas ficções, impelida por suas crenças, valores e

normas. De fato, a literatura, através da ficção, expressa os valores defendidos

ou combatidos pela sociedade, denunciando os problemas ou apoiando as

soluções. Os seus efeitos transcendem as normas estabelecidas.

Para Cândido (2004), a literatura tem uma função humanizadora,

atuando na construção de estruturas e na formação de significados. Ela é uma

forma de manifestação de emoções individuais e sociais, além da função

primordial de formar conhecimento. A obra literária, por mais subversiva que

seja, tem um caráter organizador, pois é o resultado de um exercício de

organização mental e sentimental utilizado para a exposição das idéias.

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Conseqüentemente, esse processo de estruturação mental torna os indivíduos

mais capazes de organizar sua visão do mundo.

A humanização produzida pela literatura revela-se como um método

que insere o homem no exercício da reflexão e na obtenção do saber; estimula

o homem a adentrar os problemas cotidianos da vida; aguça o senso de beleza

e a percepção da complexidade do mundo. Enfim, a literatura desenvolve em

nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos

e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante (CANDIDO, 2004). Ela

atende ao imperativo humano do autoconhecimento e coopera na tarefa de

cada indivíduo em se posicionar diante da sociedade.

Dessa forma, para que a literatura chegue às minorias é preciso que a

sociedade se organize de modo a garantir uma distribuição igualitária dos bens,

sejam eles materiais ou imateriais. A educação precisa ter força o suficiente

para acabar com o analfabetismo e o cidadão tem de ter um mínimo de lazer

para dedicar à leitura. Obviamente, temos que levar em consideração questões

de política e de poder, sobretudo se não houver interesse por parte dos

administradores públicos na realização de projetos inclusivos. Com efeito, por

mais utópico que isso pareça, quanto maior a igualdade social mais decisivo

será o papel da cultura como processo inclusivo.

Assim, poderíamos ponderar que o indivíduo leitor tem mais noção de

sua posição na sociedade e sabe determinar valores em consonância com os

padrões sociais de sua cultura, pois a ele são oferecidas condições de refletir

sobre sua posição social. Isso poderia significar que o cidadão com maior

acesso à educação e aos bens culturais tem mais chances de compreender o

seu papel social e, portanto, estaria em condições de viver de forma integrada

na sociedade. A consequência é lógica: o indivíduo que convive em harmonia

com os demais seres sociais respeita as regras de conduta, respeita a lei. No

entanto, isto irá depender de um tratamento igualitário que lhe proporcione os

meios básicos de convivência ou, como no caso do Brasil, de sobrevivência.

Nesses termos, estudar o direito a partir da literatura parece ser um

meio alternativo e eficiente de se compreender a desigualdade e a sua

implicação ética nos fenômenos sociais. A razão para este estudo, nas

palavras de Germano Schwartz (2006, p. 48), seria:

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O colocar-se no lugar do outro, o que motiva o estudo da Literatura aplicada ao Direito, pois ela possui essa habilidade, por intermédio de suas narrativas e de seus personagens, de enviar o leitor para a vivência de outrem, fazendo-o refletir e posicionar-se em relação ao caso posto.

As obras literárias convidam os leitores a se colocarem no lugar dos

diversos personagens e a adquirir suas experiências. Podemos alterar essa

divinização da norma jurídica e do formalismo processual, retirando o caráter

divino da figura do juiz e direcionando a atenção para elementos essenciais na

resolução dos impasses jurídicos ligados ao comportamento humano, por

exemplo.

Na literatura podemos recuperar a perspectiva integral do ser humano,

da sua natureza e das suas necessidades, valorizando e criticando as

deficiências (ou insuficiências) do direito e a sua visão muitas vezes distorcida

dos fenômenos sociais.

A literatura pode ser considerada como uma fonte alternativa do direito,

tendo em vista que aborda diferentes dimensões do mundo jurídico não

contempladas pelos métodos tradicionais do ensino dessa ciência. A literatura,

conforme disposição apresentada por Weisberg (in SCHWARTZ, 2006),

esclarece o modo como se comunicam os juristas e como executam a

estruturação dos seus discursos em seus feitos nas cortes judiciais, narrando a

construção da auto-referência do sistema jurídico ou da reconstrução mediante

o pré-construído (sistemas de regras processuais e de formalidades do direito);

oferece descrições cuidadosas da relação entre os juristas e os leigos; expõe

como os juristas organizam suas argumentações, a manipulação das palavras

pelos advogados, a relativização da ética e o elitismo.

Além desses aspectos levantados por Weisberg, uma outra razão

decisiva para se examinar a relação entre direito e literatura está na

interpretação. Direito e literatura exercem atividades que têm como base o

texto e sobre ele investigam o sentido de suas construções. Essa investigação

comprova o relacionamento entre o autor e o leitor da obra, bem como entre o

legislador e o cidadão tutelado pela norma jurídica.

No entanto, essa análise interpretativa seria “uma etapa pós-criadora”

(SCHWARTZ, 2006, p. 50) e haveria a necessidade de se aprofundar essa

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idéia de interpretação metodológico-literária do direito em direção ao ato

criador do direito e da literatura. Esse procedimento permitiria a distinção do

sujeito da enunciação do sujeito da recepção, ou seja, uma forma melhor de se

compreender o direito.

A prática jurídica manifesta-se como um exercício de interpretação de

um modo geral e não apenas quando os aplicadores do direito interpretam leis

específicas, afinal “o direito é um conceito interpretativo” (DWORKIN, 2003, p.

488). Nestes termos, autores como Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, entre

outros expoentes da chamada literatura marginal - que expressa a voz de

minorias raciais e econômicas que vivem na periferia das grandes cidades -

expõem questões cruciais acerca da dignidade humana, da igualdade e da

justiça em seus romances e contos.

Segundo Fernando Villarraga Eslava (2004, p. 47), a literatura marginal

se constitui num tipo de movimento cultural na perspectiva do sujeito

subalterno, elemento substancial de um projeto que vai além do literário, pois

mantém fortes vínculos com algumas expressões culturais de rua como o hip-

hop e a arte dos grafiteiros, buscando se consolidar como porta-voz estético e

ideológico dos que sempre foram silenciados e hoje integram o “povo da

periferia/favela/gueto”.

A questão central é a discussão em torno da interpretação dos sentidos

dessas “práticas escriturais que têm como premissa serem auto-

representações da condição e da experiência existencial de seus próprios

artífices” (ESLAVA, 2004, p. 47). As condições de vida desses sujeitos inscritos

às margens do mundo social são representadas por meio de formas textuais

com fortes marcas de oralidade e ligadas a objetos da cultura visual. As

narrativas normalmente envolvem o leitor em descrições de um mundo

miserável, violento, indigno e desigual, sob o ponto de vista de quem vive

dentro dessas condições. De fato, o narrador marginal acaba descortinando a

crua realidade da periferia e, para isso, utiliza uma linguagem seca, direta e

sem muito pudor. Essas características fazem da literatura marginal mais do

que um veículo de expressão da cultura periférica e lhe concedem um caráter

denunciativo.

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Nesse sentido, a idéia do presente estudo está calcada na redução da

distância entre direito e literatura através de uma modelo de interpretação

textual que tenha como base a interação do estético trazido pela literatura

como valor fundante das artes com o comando suscitado pelo direito.

Conseqüentemente, haveria uma redução da força positivista do direito e a sua

aproximação com a humanidade dos fenômenos sociais, restaurando a

essência das coisas, afinal as leis adquirem vida por meio das letras. Essa é a

direção da nova hermenêutica constitucional, que visa ao equilíbrio entre um

sistema normativo mais aberto aos princípios e os valores éticos da sociedade.

Os bens imateriais tais como a literatura deveriam estar ao alcance de

todos como uma espécie de direito, de modo a garantir o acesso a níveis

diferenciados de cultura. A idéia de sociedade justa também deve estar calcada

em pressupostos de natureza cultural, pois o direito de desfrutar da arte é

indiscutível.

Com relação à ética, a clássica separação entre direito e moral

defendida pelos positivistas, de forma a isolar as bases éticas comuns e servir

de apoio à autonomia do Estado por meio da instrumentalização do direito, não

tem sido eficiente no processo de interpretação da realidade dos atuais

fenômenos sociais. A separação da moral do direito só seria possível como

artifício metodológico e pragmático, incapaz de expressar a realidade

ontológica.

Assim, os claros indícios de uma crise ética do modelo social vigente,

tendo em vista o desrespeito ao princípio da igualdade e o desprezo à

dignidade humana, estão a exigir reflexões no âmbito da hermenêutica jurídica

do ponto de vista de uma crítica cultural, em que não apenas dispositivos legais

abstratos sejam considerados na interpretação da lei. Com efeito, a literatura

crua e eticamente comprometida de Ferréz pode fornecer elementos para

problematizar o processo de interpretação da norma constitucional da

igualdade de todos perante a lei como a melhor expressão do princípio da

igualdade.

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4 A IGUALDADE E A LITERATURA MARGINAL DE FERRÉZ

4.1. Ferréz e a literatura marginal

Neste capítulo final, a articulação entre direito e literatura efetiva-se na

análise da contraposição entre a lei e a desigualdade representada nos textos

marginais. Discutiremos as condições de desigualdade e discriminação

retratadas no universo ficcional da literatura periférica produzida no Brasil, com

a finalidade de problematizar o princípio constitucional da igualdade de todos

perante a lei.

O tema principal é a discussão sobre o princípio constitucional da

igualdade de todos perante a lei, face à situação de indignidade humana a que

estão submetidas as pessoas que vivem na periferia urbana, conforme

representado na literatura marginal de Ferréz. Duas obras do autor, o romance

Capão Pecado e o livro de contos Ninguém é inocente em São Paulo, servirão

de base para essa análise.

A partir da publicação do romance Cidade de Deus, do escritor Paulo

Lins, obteve visibilidade no cenário editorial um tipo de produção textual

advinda de setores sociais tradicionalmente excluídos do sistema literário

brasileiro, com sujeitos da escrita que representam sua experiência dentro da

própria comunidade. O termo literatura marginal surgiu para dar vazão ao

sentimento de exclusão e desigualdade dos membros das populações que

vivem nas periferias das grandes cidades, buscando demonstrar os aspectos

positivos destas comunidades. A principal idéia é denunciar a violência, a falta

de perspectiva e gerar o pensamento crítico. A análise dos textos produzidos

pela literatura marginal exige flexibilidade de alguns parâmetros críticos, pois

têm características diversas da convencional: gírias, léxico e sintaxe próprios.

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Como resultado dessas características peculiares, a literatura marginal

passou a sofrer alguns preconceitos de natureza teórica e estética. Entretanto,

Fernando V. Eslava (2004, p. 35) sugere uma prática de adaptação a este

inevitável tipo de escrita:

A questão inicial que se coloca para quem procura se aproximar sem preconceitos teóricos ou culturais a uma manifestação como a autodenominada literatura marginal é, fora de toda a dúvida, a de abandonar as atitudes tradicionais do homem ilustrado frente aos fenômenos que desajustam sua própria visão e valores, isso que antes, num outro contexto histórico, se expressava em termos do conflito entre civilização e barbárie, para encontrar o que aqui poderia ser definido como princípio de indagação hermenêutica, caso se queira começar a decifrar as possíveis significações e implicações de práticas escriturais que vem se projetando no âmbito nacional, para arrepios de alguns e espanto de outros.

Os primeiros encontros com a literatura marginal trouxeram (e ainda

trazem) desconfianças e suspeitas por parte de diversos setores acadêmicos e

jornalísticos, sobretudo com relação aos riscos e promiscuidades das

afirmações dos “marginais” sobre sua condição de escritores e sua

reivindicação por reconhecimento como parte da literatura nacional. Com

efeito, alguns críticos, entre eles Tânia Pellegrini, Fernando Eslava, Benito

Rodriguez e Marcos Zibordi, alertam sobre supostos riscos e confusões da

produção literária marginal, alegando que os autores periféricos estariam

ligados à lógica da indústria editorial, ao explorar a violência como estratégia

de mercado. A linguagem e a escrita deficitária utilizadas pelos autores

marginais não permitiriam que conseguissem afirmação artística, até mesmo

em função da falta de parâmetros críticos, universalistas ou canônicos, que

avaliassem o fenômeno nas suas verdadeiras dimensões.

A existência de objeções à originalidade e à legitimidade das

representações feitas pelos autores marginais, pois direcionadas ao público

massivo da violência, também gera dúvidas sobre as intenções do “movimento

marginal”. Isso provoca reações de parte dos autores marginais, como

acontece com Ferréz. De fato, a segunda edição do seu romance Capão

pecado (2005), pela Editora Objetiva, em comparação à primeira, de 2000, pela

Editora Labortexto, demonstra maior refinamento, ao aperfeiçoar a sua

apresentação visual e ao retirar os registros fotográficos do seu conteúdo,

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cumprindo, talvez, a intenção de marcar o caráter ficcional da obra para assim

legitimá-la perante a crítica literária.

Na opinião de Fernando V. Eslava (2004, p. 43), ainda,

Coloca-se em dúvida, entre outras coisas, o grau de originalidade das representações que os favelados ou ex-favelados realizam porque estariam dirigidas para o gosto massificado e espetacular da classe média, o que neutralizaria seu potencial valor simbólico e literário, além, é claro, de acordo com o mesmo raciocínio, de responder às diabólicas maquinações da indústria cultural cuja lógica impõe certos modelos bastardalizados para manter em ação as leis do mercado.

Nesse sentido, poderíamos concluir que, se livros como Cidade de

Deus ou Capão Pecado obtêm sucesso de vendas, “é porque não há dúvida de

que a temática da violência é trabalhada nessas duas obras sob a perspectiva

de uma sociedade que a converte em espetáculo, o que apagaria sua

respectiva legitimidade artística” (ESLAVA, p. 43). No entanto, o nosso

propósito foi utilizar os textos marginais como forma de compreender e

enfrentar as questões relacionadas ao fenômeno da desigualdade.

Entendemos que este tipo de manifestação cultural, própria da população

periférica, não pode ser ignorado e, de maneira oposta, é necessário

reconhecer os autores periféricos enquanto sujeitos da vida literária, mesmo

que isso venha a ferir normas de exigência estética, segundo parâmetros

tradicionais. Do contrário, estaríamos cerceando o direito de expressão

daqueles que já são social e materialmente desiguais.

A inserção social defendida pelos autores marginais está se realizando

por meio da criação de uma rede própria de símbolos, a sua própria

representação. Na verdade, segundo Costa Lima (1980), “em uma sociedade

complexa, constituída por classes com oportunidades sócio-econômicas e

culturais desiguais, não há um único mas inúmeros sistemas de

representação”. A periferia tem criado seus próprios mitos e heróis: a dona de

casa, a empregada doméstica, o padeiro, o cobrador de ônibus, os muitos

moradores que servem de paradigma de comportamento social. E, de fato,

esses paradigmas acabam por estabelecer relações de identidade social e de

interesses entre todos os membros da comunidade. Além disso, o artista

marginal reivindica o reconhecimento desses mesmos símbolos por parte da

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elite dominante e o direito de “contar a história” sob o ponto de vista dos

“dominados”.

Portanto, procuramos utilizar parâmetros de análise mais amplos,

superando a estética clássica (beleza, graça, simetria, harmonia) e buscando

aspectos que vinculam os textos às suas condições de produção, pois, num

mundo de pluralidades culturais como o que vivemos hoje, a existência de um

único sistema de representação torna-se inconcebível. Os critérios estéticos e

composicionais devem se expandir para além da concepção literária da elite,

abrindo espaço, praticamente “à força”, no caso de Ferréz, a uma escrita

carregada de realismo. As características do contexto de produção da escrita

marginal de Ferréz e as experiências reveladas por seus personagens

traduzem uma espécie de “tragédia contemporânea” e podem funcionar como

matéria para a reflexão sobre as desigualdades sociais e econômicas.

No que diz respeito à problemática em torno da fisionomia lingüística

da literatura marginal, nos permitimos uma breve observação: se a literatura

marginal renunciar as suas características lingüísticas e culturais intrínsecas,

fazendo concessões aos padrões cultos e apagando o que se entende como

deficiente, estará determinando a revogação de parte da sua própria natureza.

Ou seja, a literatura marginal deixará de atuar como sistema simbólico de

construção dos significados socialmente constituídos na periferia.

Nos contos de Ferréz, por exemplo, o narrador tem um profundo

envolvimento com os fatos e os personagens da narrativa. A relação entre o

narrador, os personagens e o próprio Ferréz, inscrito no universo ficcional com

o seu nome próprio e com várias interferências ao longo da narrativa, é bem

estreita, o que contribui para dar realismo aos acontecimentos. A empatia

criada pelo escritor que “vive dentro do tema” possibilita o reconhecimento do

outro e ultrapassa os limites da representação clássica, favorecendo o que

poderia ser chamado de “realismo da alteridade” (OLIVEIRA, 2009). As

dedicatórias feitas pelo escritor a muitos de seus amigos e familiares

confundem-se com os próprios personagens fictícios das narrativas, fazendo

com que sua escrita tenha características de alteridade. Mais do que mera

apresentação da realidade, ele procura demonstrar como cada personagem

(sujeito) interage com a realidade do contexto periférico, na perspectiva

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daqueles que “sobrevivem” às condições de miserabilidade, desigualdade e

indignidade da periferia.

De acordo com Tânia Pellegrini (2004, p. 32), haveria a probabilidade

de que a produção e o consumo dos textos marginais,

tenha brotado justamente do inominável, da irresistível atração pelo adjeto, representado pela ausência de limites para o excesso de violência (variável em cada texto), mas também da visão ‘exemplar’ dos fundamentos da experiência humana quase em estado primitivo, anterior à constituição do indivíduo como um ser apto a viver com dignidade em uma sociedade civilizada, porque justa. Algo como a ‘positividade do negativo’, que se efetua quando nos deparamos com os limites da representação; a transgressão desses limites revela a concretude do horror, podendo servir, assim, à causa de uma possível transformação.

Esta representação da violência pode ser também considerada como

uma oportunidade de ampliação do olhar crítico do leitor, fazendo com que ele

saia de sua posição meramente contemplativa e literalmente “encare de frente”

a questão da violência. A clara evidência de subjetividade na escrita de Ferréz

(2006, p. 9) - “Contos pra mim sempre foram desabafos, tá ligado?”, e a

continuidade entre ficção e realidade criam um efeito que permite o

reconhecimento de um no outro, configurando um realismo que não é reflexo

de uma realidade exterior e distante do sujeito, mas uma espécie de “espelho

da alteridade” (OLIVEIRA, 2009).

Marcos Zibordi (2004, p. 71), ao descrever o narrador marginal através

de sua trajetória de vida, dispõe que:

O narrador marginal é um sobrevivente, a testemunha imiscuída nos fatos, o transmissor do que viu e viveu. Ele emerge, por exemplo, nas trajetórias de vida constantemente ficcionalizadas. Os textos apresentam personagens oprimidos que trilham existências curtas e acidentais, geralmente tristes. Vidas interrompidas em sua possibilidade material e emocional querem dizer que a infelicidade do sujeito da periferia, segundo expressa sua literatura, é resultado da insuficiência financeira e, também, da carência de certos nutrientes subjetivos como bondade, atenção, cuidado, carinho, amizade, amor. Os narradores marginais contam o que a experiência demonstrou em exaustivas e recorrentes amostras.

Por sua vez, Ferréz é o retrato do narrador-autor marginal. Ele

começou a escrever aos 12 anos de idade, acumulando contos, versos,

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poesias e letras de música. Antes de se dedicar exclusivamente à escrita,

trabalhou como balconista, auxiliar-geral e arquivista. Atualmente, o escritor é

considerado um expoente da Literatura Marginal (FERRÉZ, 2008).

Para Ferréz, a literatura funcionou como uma saída de emergência,

uma espécie de salvação. Filho de um motorista e de uma empregada

doméstica, ele cursava o terceiro colegial e trabalhava numa padaria. Quando

ficou desempregado, vendeu camisa, vassoura, reformou bares e lixou paredes

de apartamento na Avenida Paulista. No entanto, ele nunca conseguiu se

separar dos livros, mesmo que tivesse que pegar duas conduções até a

biblioteca mais próxima, para tomar emprestadas as obras de seus autores

preferidos: Dostoiévski, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira

(FERRÉZ, 2008).

O escritor também é ligado ao movimento hip hop e foi o fundador da

1DASUL (marca de roupa totalmente feita no bairro onde mora). Ferréz ainda

atua como cronista na revista Caros Amigos e no jornal Folha de São Paulo,

além de ser conselheiro editorial do jornal Le Mond Diplomatic Brasil.

Apesar de algumas críticas com relação à maneira excessivamente

afirmativa pela qual Ferréz constrói sua auto-imagem, com audácia e confiança

capazes de servirem de exemplo aos jovens da periferia, não faremos uma

avaliação ao ponto de entendê-las como uma estratégia de mercado de

massas, ao contrário do que fez Benito Rodriguez (2004, p. 65):

Tal estratégia pode ser lida, é certo, como simples reprodução de estratégias típicas do mercado massivo de bens simbólicos: construção enganosa de uma auto-imagem cheia de poder, centrada na assimetria entre o “artista”, figura excepcional em seu contexto, e seu “público”. Por outro lado, tal estratégia poderia ser lida igualmente como procedimento em sintonia com mecanismos sistematicamente mobilizados por rappers em suas trajetórias artísticas.

No atual contexto da indústria cultural capitalista, Ferréz, ao contrário

de rejeitar seus mecanismos de ação, procura interagir com o “sistema”,

adaptando-se a ele e utilizando os meios disponíveis, tais como a mídia

eletrônica e a própria universidade, para se afirmar enquanto representante da

cultura periférica, sem perder sua essência marginal. Este processo de

inserção dos representantes da cultura de minorias em uma indústria cultural

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hegemônica foi chamado de “cosmopolitismo do pobre” por Silviano Santiago

(2004).

O fato é que Ferréz escreve com conhecimento de causa, pois como

seus personagens, o autor paulistano é morador de um dos subúrbios da maior

metrópole da América do Sul. Vive na pele a violência e a eterna (des)

esperança dos que estão à margem. Fatos ou situações que poderiam

surpreender ou assustar os habitantes do outro lado da cerca imaginária que

divide ricos e pobres, negros e brancos já virou rotina na vida de Ferréz, de

seus amigos e vizinhos – vários deles, mortos no apartheid informal que vem

instalando-se nos grandes centros urbanos (OBJETIVA, 2006).

Por meio de uma prosa ágil e seca, composta com forte sentimento de

revolta, perplexidade e esperança, Ferréz reivindica voz própria e dignidade

para os habitantes das periferias das grandes cidades brasileiras. A presença

do autor está marcada em suas obras como parte de um processo de realismo,

pois o próprio escritor, além de narrador, é personagem de muitas histórias e,

ao relatar os sentimentos e as dores dos moradores da comunidade, ele expõe

a humanidade da periferia através da escrita.

Por outro lado, Ferréz é mais do que um escritor com perfil

denunciativo, preso a descrições da desigualdade, pois a sua escrita quer atuar

de forma transformadora na vida dos moradores da periferia. A prova disso é

que o autor está envolvido em diversos trabalhos sociais no bairro da periferia

onde mora e costuma afirmar que não consegue desvincular realidade de

literatura e acha que o escritor tem de estar presente na comunidade. A atitude

de Ferréz se assemelha àquela do “autor como produtor”, na denominação

dada por Walter Benjamin (2008), pois a literatura do escritor marginal está

diretamente ligada à ação e à transformação da realidade do seu contexto

produtivo, o que lhe concede um caráter de autor-produtor, mais do que

revolucionário no plano das idéias.

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4.2. Capão pecado e Ninguém é inocente em São Paulo : ficções da

realidade

Capão Pecado conta a história do jovem Rael, que vive a dura

realidade do cotidiano do Capão Redondo, na periferia paulistana, um lugar de

violência, miséria e drogas, em que a morte faz parte do dia a dia. Mesmo

neste ambiente adverso, ele procura se manter afastado da criminalidade e das

drogas, trabalhando duro e se aproximando dos livros. Em determinado

momento, entretanto, o protagonista se envolve amorosamente com a

namorada do melhor amigo, o que é tido como a mais alta infração ao código

de ética da favela e a pena aplicável é a de morte. A partir deste ponto,

desnuda-se com mais clareza a realidade, a desesperança e os conflitos dos

personagens em meio à violência, ao desemprego, ao vício e ao tráfico de

drogas.

A sinopse disponível na página eletrônica da editora descreve o

cenário da obra:

O Capão é um lugar abandonado por Deus e batizado pelo Diabo. É miséria, violência, droga e morte. É o retrato dos 'mano', das 'treta' que a moçada faz para se virar - e cada um se vira como pode. É o fim da linha. Usando a linguagem do gueto, alimentando-se daqueles personagens tão reais e sem futuro, Ferréz construiu uma narrativa original. 'Capão Pecado', seu livro de estréia, provocou o leitor ao revelar o cotidiano da periferia. Como o próprio autor disse há cinco anos atrás - Capão é um livro de mano para mano. É ácido e violento. É um grito. (OBJETIVA, 2005)

A obra é constituída por capítulos que revelam o cotidiano de violência

e miserabilidade da periferia. O autor escreve sobre histórias que viu e

situações que vivenciou como morador da favela. Essas histórias baseiam-se

em personagens retirados da vida real, amigos que cederam os nomes para

dar mais veracidade ao romance, tais como o próprio Rael (irmão de Ferréz) e

Cebola (amigo do autor). Na verdade, o protagonista da obra representa a vida

de Ferréz, morador do Capão Redondo.

Rael cresceu no Capão vendo as dificuldades da família, as bebedeiras

do pai e a morte prematura dos amigos, mas sempre foi um menino educado e

calmo. Para poder comprar roupas e material escolar, teve que trabalhar desde

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cedo numa padaria. Tinha na mãe, empregada doméstica, a figura

representativa do amor incondicional e da correção.

Os primeiros capítulos descrevem a periferia e revelam como Rael

sofre com a falta de dinheiro. Apesar disso, o menino adora ler e comprar livros

em sebos; estuda em escola pública; acorda cedo para trabalhar; faz curso de

datilografia nos finais de semana e sempre tem tempo para encontrar os

amigos nas ruas de terra da favela. Ele pode ser considerado a esperança de

sucesso daquela comunidade. A narrativa segue acompanhando o

desenvolvimento de Rael, mas passa a mudar os seus contornos quando ele

consegue emprego em uma metalúrgica e conhece a bela Paula, namorada do

melhor amigo (Matcherros).

A partir deste ponto, a obra se desdobra na agonia do protagonista,

que se envolve com a namorada do amigo e se vê frente a vários conflitos

éticos de um lado e nas situações do cotidiano violento da periferia do outro. O

verdadeiro retrato de um ambiente hostil e miserável esquecido pelo Estado.

Paralelamente aos conflitos internos do protagonista, o dia a dia da favela

revela o movimento do tráfico de drogas, das execuções, o planejamento de

assaltos a banco, o desemprego, a discriminação e a miséria da população

periférica como reflexo da desigualdade.

O relacionamento de Rael e Paula evolui. Os dois passam a morar

juntos num quarto nos fundos da metalúrgica e têm um filho. Tudo parece estar

de acordo com os planos de felicidade de Rael: casa, trabalho, esposa e filho.

No entanto, os capítulos finais definirão o insucesso do protagonista, que

sucumbe diante da própria revolta pela traição de Paula, pois “da trairagem

nem Jesus escapou” (FERRÉZ, 2005, p. 130). Seu corpo acaba sendo retirado

de uma cela diretamente para o IML.

Ao narrar os episódios diários do Capão, Ferréz traz à tona discussões

acerca do uso de entorpecentes, do tráfico de drogas e da iniciação na vida

criminosa:

Cebola o avisou que o palco já tava armado e que Burgos nunca saía na correria à toa, alguma coisa tava pegando pro lado do Will, e que desconfiava que haviam sido os manos da Paraisópolis que tinham contratado o Burgos pra fazer o serviço; afinal as bocas não podem se dar ao luxo de ficar com prejuízo, porque senão os negócios despencam: é só um nóia saber que tal mano comprou na boca, não pagou, e nada aconteceu, que tá feito o boato que os chefes da boca

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não tão com nada. O respeito tem que prevalecer. (FERRÉZ, 2005, p. 33)

O autor denuncia o descaso, critica as autoridades e, principalmente, a

polícia:

Duas horas depois a Tático Sul chegou ao local, cobriu o corpo com um lençol pedido a uma vizinha. Ficaram comendo carniça por mais de seis horas quando o IML chegou e foi logo retirando o corpo. O pessoal nem estranhou o fato de os legistas não terem examinado o corpo, todos ali já estavam acostumados com o descaso das autoridades. (FERRÉZ, 2005, p. 37) Burgos foi pego no flagrante, mas o BO não foi registrado. Os policiais, exercendo todo seu treinamento acadêmico, o levaram para o Guaraci e depois que atiraram em sua cabeça o jogaram no rio. Venderam as armas para o Turcão e fizeram uma churrascada no fim de semana com todas as famílias reunidas na casa do tenente. (FERRÉZ, 2005, p. 141)

Outra grande característica da obra é a linguagem informal, crua e

carregada de gírias, dando mais realidade aos diálogos e aproximando a

literatura da vida de cada um dos moradores da periferia. Este novo conceito

de literatura denuncia a exclusão social e a desigualdade através de narrativas

ágeis e de uma linguagem que identifica o próprio povo da periferia:

- E aé, Zeca! Quer uma cerva gelada? - Não Burgos, eu tô a pampa. Porra, o bagulho tá cheio hoje, hein, mano! - É! O bar do Polícia é o point agora, cê tá ligado? Também, o lava-rápido lá perto da igreja fechou; lá dava umas 2 mil pessoas, mano. (...) - É, pode crê, eu vim lá da Funchalense agora, tava tomando umas breja lá, com os manos da Sabin. - Ô Burgos, na moral, num fica dando rolê com esses mano não. Cê tá ligado que tá mó treta aí nas quebra, mano. (FERRÉZ, 2005, p. 30)

A obra ainda conta com alguns depoimentos de artistas da periferia,

demonstrando o seu caráter de constituição coletiva, com a colaboração dos

rappers Mano Brown e Ratão, por exemplo. Através do texto “A número 1 sem

troféu”, Mano Brown escreve que o “Capão Redondo é a pobreza, injustiça,

ruas de terra, esgoto a céu aberto, crianças descalças, distritos lotados, veiculo

de IML subindo e descendo pra lá e pra cá, tensão e cheiro de maconha o

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tempo todo”. Em sua participação com o texto “+ 1 AKIM”, Ratão vai ainda mais

longe e critica a televisão como meio de manipulação de massas:

Não me deixo levar, a Rede Globo até tenta, mas não vai me enganar. Não tô a fim de ver a merda da Sandy e o bosta do Júnior o dia inteiro na TV cantando suas músicas sem conteúdo e ganhando dinheiro com a miséria do meu povo. Me fazer de cego, não tô a fim, de aturar esta porcaria que domina a mídia fonográfica, televisa e escrita. Mas aí truta no controle remoto se faz uma nação. Meu povo tem que acordar, parar de sonhar. Preferem viver em mundo que não é deles, assistindo TV, se deixando manipular que nem piolho, indo pela cabeça da elite. (FERRÉZ, 2005, p. 41)

Nesse sentido, Capão Pecado também se constitui como um espaço

narrativo coletivo para os escritores da literatura de resistência, dando

oportunidade aos membros da comunidade para expressarem suas

reivindicações enquanto população oprimida. Benito Rodriguez (2004, p. 54),

levando em consideração esta característica coletiva, chamou a literatura

marginal de “literatura de mutirão”, tendo em vista “o seu caráter cooperativo e

de afirmação identitária”.

A literatura marginal de Ferréz dá voz às minorias (racias e

econômicas, sobretudo) que formam uma enorme fatia da população brasileira,

traduzindo em palavras o universo de violência e indignidade a que estão

submetidos. O autor defende a força da comunidade e usa o livro como uma

forma de protesto social. Ele tenta provar, seja por meio da literatura marginal

ou pelo hip hop, que a comunidade é capaz de realizar algo produtivo mesmo

diante do quadro de violência e miséria existente na periferia. Assim, Capão

Pecado manifesta-se como um modo de representação cultural da população

da periferia; o retrato de um povo à margem da sociedade e que busca o seu

espaço no mundo.

Ninguém é inocente em São Paulo é um livro composto por dezenove

contos e dá continuidade à literatura de resistência que caracterizou as obras

de Ferréz, denunciando a violência, o tráfico de drogas, os abusos da polícia e

a desigualdade presentes na periferia paulistana. O estilo seco e direto dos

contos do autor, que nascem “de uma paulada só”, segundo ele mesmo, dá

uma idéia do ritmo frenético das grandes cidades.

Além da violência e do tráfico de drogas, o autor revela os problemas

do alcoolismo dentro das famílias e, principalmente, da falta de perspectiva dos

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jovens da periferia. Com efeito, ele utiliza o trágico, o inusitado e o cômico para

representar o cotidiano dos moradores da favela. No entanto, Ferréz também

procura valorizar a força da comunidade e os seus aspectos positivos,

destacando a solidariedade, a honestidade e as diversas formas de

manifestação cultural, tais como a literatura, o hip hop e a dança.

Assim como em Capão Pecado, a linguagem utilizada nos contos é

crua e carregada de gírias oriundas da periferia paulistana. Em princípio, esta

linguagem não constitui obstáculo aos leitores de fora da periferia, mas pode

dificultar a leitura para o leitor “desavisado”, pois é formada por expressões

próprias da comunidade e não segue as normas ditas cultas da Língua

Portuguesa. Ocorre que é justamente esta linguagem típica que dá realidade

aos contos e representa a força diferenciadora da literatura de Ferréz.

No conto “O plano”, Ferréz se insurge contra a alienação social

causada pelo “sistema de espetáculos”, tais como certos programas de

televisão e o futebol, deixando claro que a literatura periférica é uma das

formas para se evitar os efeitos nocivos da cultura de massas. Percebe-se,

pois, que o escritor é personagem da sua própria ficção da realidade:

Tô no buzão ainda e um maluco me encara, vai se foder, você é meu espelho, não vou quebrar meu reflexo, mas a maioria quebra, faz o que o sistema quer. (...) Morar na periferia sempre me prejudicou, esgoto, bebedeira, tiro, e principalmente para se candidatar a algum emprego. É do Capão? Então não emprega. (...) Pego o Memórias de um Sobrevivente, isso é livro de verdade, começo a folhear, decido ir pra casa do André, vou cerrar um café por lá mesmo, um outro, o meu antigo parceiro pipocou, me decepcionou, se entregou por pouca coisa, que se foda então, ficar perto de fraco dá fraqueza, subo a rua, chamo, ele aparece e diz que tá indo pra casa do Duda, decidimos ir, chegamos lá, Dona Geni já começa a fazer o café, a gente senta no confortável sofá da sala, A Mel vem brincando, que cachorrinha da hora, a Fabiane liga a TV e o plano começa a funcionar de novo. (FERRÉZ, 2006, p. 17)

Essa circunstância de percepção do outro através de uma nova forma

de realismo possibilita maior identidade entre os sujeitos e consolida a escrita

marginal como representação empática da cultura periférica, ou seja, um modo

de ver com o outro. Ferréz, além de reivindicar espaço para a produção cultural

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periférica, praticamente força a diferença em relação a sistemas de

representação legitimados e obriga o leitor a “olhar” a realidade das minorias,

constituída de uma rede de signos com outros valores e significados.

Outro aspecto importante levantado pelo escritor é o poder do

“Código”, referindo-se ao conjunto de “leis” da favela. Certamente não se trata

do sistema de leis convencionais, promulgadas pelo Poder Legislativo, mas um

código paralelo de normas, uma lei própria, que vigora dentro da comunidade.

Nesse sentido, o conto “Pega ela” reflete a existência de tal “Código”

como uma lei própria da periferia, que tem força e poder o suficiente para

sentenciar à morte. A vida humana é relegada a um segundo plano em nome

do “código” e a norma jurídica é ignorada, em um contexto no qual o Poder

Público está ausente e o poder que prevalece é extraoficial. Do mesmo modo,

em “Pão doce”, o escritor elabora questionamentos sobre desigualdade e

discriminação, reforçando a crise relacionada à interpretação normativa e ao

princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei.

Ferréz, através de sua obra, abre espaço para os membros da

comunidade se expressarem. Em seus contos estão presentes a dona de casa,

o motorista do ônibus, o pessoal do bar e todos têm participação ativa como

personagens da narrativa. Com isso, o autor pretende dar mais realismo ao

que escreve, aproximando a literatura do cotidiano da periferia e fazendo com

que seus membros se sintam parte de algo criado pela própria comunidade. A

idéia é de inclusão e valorização dos habitantes da periferia. Assim, Ferréz

procura combater a violência, a discriminação, a exclusão, enfim as

desigualdades sociais através da literatura e utiliza os livros como uma arma

poderosa nessa “guerra da nova era”.

4.3. A condição desigual da periferia

A descrição do ambiente adverso e desigual da favela faz parte do

empenho de Ferréz em situar o leitor no contexto ne nas condições geradoras

de sua produção textual. Contudo, o autor não se satisfaz com a tarefa de

revelar a miséria e denunciar a desigualdade, pois procura dialogar com os

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membros da comunidade e estimular sua participação no movimento cultural

periférico, interferindo diretamente na alteração da realidade social com o uso

da sua “espada”, a caneta.

O romance Capão pecado, ao longo dos seus vinte e três capítulos,

apresenta diversos artistas da periferia e seus depoimentos a respeito do

cotidiano da favela, demonstrando que a obra é um espaço coletivo de

expressão cultural acima de tudo. Esses textos representam a literatura de

resistência, denunciando a miserabilidade e a indignidade a que está

submetida a população da periferia, um mundo esquecido pelo Estado. Entre

eles, destacamos o trecho “C.R. Campo de Guerra da nova era”, que introduz a

quinta parte do romance, assinada por Garrett:

Aqui no C.R. (Capão Redondo) é outro esquema, outro tipo de vida e de problema. As regras da sua sociedade num serve pra nós, se a gente for exercer, num dá outra se não falecimento. Um lugar com deveres, e sem direitos, mais para campo de extermínio do que para casa. O índice de morte é mais de 15 por mês, mas não se engane, nasce muito mais que isso por aqui. Treze, 14, 15 anos, já vi uma de 16 anos com três filhos, e o primeiro era do próprio padrasto. Desigualdade, ruas de terra, quando chove o bairro fica isolado em muitos pontos. (...) São Paulo, a terra da desigualdade, onde um carro de R$300.000 disputa espaço com o catador de papelão, onde o almoço mais caro é visto pelo menino que não come há três dias. Num tem como isso se perpetuar para sempre, e o estágio final da fita é aqui, onde o estado crítico se mostra todos os dias, corpos e mais corpos, quando não estão mortos, falta pouco, sem sinal de melhoras. (FERRÉZ, 2005, p. 133)

Na definição do artista, o Capão Redondo é um lugar à parte e é

diferente do “nosso”. As leis oficiais da “nossa sociedade” não vigoram no

Capão e o total desequilíbrio entre direitos e deveres retrata a desigualdade do

“seu” sistema legal. O autor descreve o isolamento físico da favela, as ruas de

terra e a grande quantidade de homicídios como fatores que contribuem para a

classificação do Capão Redondo em “estágio final”, no qual não há perspectiva

de melhoras.

O quadro de discriminação e desigualdade da periferia também é

representado no livro Ninguém é inocente em São Paulo. No conto “Pão doce”,

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por exemplo, Ferréz denuncia formas de tratamento baseadas no status

econômico e na desigualdade de dois grupos sociais diferentes: o dos “cheios

da grana” e o dos pobres. No episódio do furto no supermercado, sobre a lei,

que deveria ser igual para todos, pesou uma interpretação diferenciada, tendo

em vista a melhor situação econômica do infrator:

Já vi dezenas de bacanas roubando. Às vezes eles pegam queijos caros, às vezes roubam12 doces ou latinhas de patê. Uma vez, o segurança pegou um velhinho que estava roubando uns chocolates finos. Levou ele, falando alto e tudo, no meio de todo mundo, até chegar no gerente. O segurança foi mandado embora no outro dia, o velhinho era gente bacana, cheio da grana, e nessa gente a gente nossa não encosta, ele já devia saber disso. Eu mesmo preparei uma cesta cheia de coisas caras para o entregador levar à casa do velho. Era um presente do mercado, e um pedido de desculpas pelo “engano”. Só os pobres não têm o mesmo tratamento. (FERRÉZ, 2006, p. 31)

Notadamente, o autor defende a existência de dois mundos, na

representação de dois códigos diferentes: o aplicado ao “velhinho cheio da

grana” e o outro aos “pobres”. A pesada carga discriminatória reitera o

comportamento gerado à margem do código legal. O indivíduo que deveria ter

sido punido pela lei convencional pertence a um grupo tido como intocável,

enquanto o outro “mandado embora”, fazendo parte de uma categoria privada

dos mesmos direitos, foi sentenciado através do código prevalente, o código

econômico.

No episódio narrado existe uma estratificação, a qual separa os

membros de uma sociedade teoricamente regida pelas mesmas normas

jurídicas. No caso da interpretação de uma situação real, o artigo 155, caput,

do Código Penal Brasileiro (BRASIL, 2008), estabelece que a subtração, para

si ou para outrem, de coisa alheia móvel, configura furto e tem previsão de

pena de reclusão (um a quatro anos mais multa). Assim, tecnicamente, num

mundo mais justo, a solução do problema deveria ter sido dada de maneira

oposta, isto é, o personagem que subtraiu o chocolate responderia legalmente

12 A expressão mais adequada seria “furtando”.

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por seu ato criminoso (furto) e o outro estaria simplesmente cumprindo com

seu ofício. O responsável pelo estabelecimento agiu equivocadamente e,

ainda, deveria responder por discriminação e por ato atentatório aos direitos do

segurança, conforme prevê o artigo 5°, inciso XLI, da Constituição Federal

(BRASIL, 2008).

O texto legal que descreve o fato típico do furto, Art. 155 do Código

Penal (BRASIL, 2008), não prevê qualquer diferenciação de tratamento de

cunho social ou econômico em relação ao seu sujeito ativo. O crime é

relacionado a qualquer pessoa que furte, exceto o dono da coisa, pois o tipo

exige que a coisa furtada seja “alheia”. No entanto, na situação do conto, o

segurança foi “sentenciado” e despedido, apesar de não ter cometido qualquer

delito, e o velhinho, sujeito ativo do crime de furto, foi “absolvido” pelo

estabelecimento.

Agora, analisemos o seguinte trecho do mesmo conto:

Uma vez, pegaram uns meninos roubando chocolates, um tava com uma barra dentro da cintura e o outro com uma caixa. O gerente chamou todos os funcionários para presenciar, e depois o segurança começou a humilhar os meninos, fez eles comerem o chocolate de uma vez, e depois vomitar. A gente não queria ver, mas o gerente mandava olhar. Os meninos vomitaram tudo, e o mercado perdeu os chocolates de todo jeito. (FERRÉZ, 2006, p. 32)

Por que os meninos não foram “absolvidos” pelo estabelecimento da

mesma forma que o velhinho? Ao contrário, eles foram sentenciados de modo

sumário, humilhados na frente de todos e obrigados a cumprirem a pena

imediatamente: “vomitaram tudo”.

Nos dois trechos acima, temos situações idênticas, porém com

desfechos totalmente antagônicos. As interpretações acerca do furto foram

distorcidas pela própria sociedade, que altera o seu posicionamento sobre o

comando legal de acordo com a situação e os sujeitos envolvidos. Em uma

sociedade na qual a lei deve ser igual para todos, a posição do autor é clara:

“Só os pobres não têm o mesmo tratamento” (FERRÉZ, 2006, p. 31).

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No mesmo sentido, o conto “Fábrica de fazer vilão”, por meio de uma

linguagem abrupta e com um vocabulário pesado, desnuda o ambiente violento

e preconceituoso de um bar da periferia:

Acorda preto. O que...o quê... Acorda logo. Mas o quê... Vamo logo, porra. Ai, peraí, o que tá acontecendo. Levanta logo, preto, desce pro bar. Mas eu... Desce pro bar, porra. Tô indo. Tento pegar o chinelo, cutuco com o pé embaixo da cama, mas não acho. Todo mundo lá embaixo, o bar da minha mãe tá fechado, cinco homens, é a Dona Zica, a Rota. É o seguinte, por que esse bar só tem preto? Ninguém responde, vou ficar calado também, não sei por que somos pretos, não escolhi. Vamos porra, vamos falando, por que aqui só tem preto? Porque... porque... Por que o quê, macaca? Minha mãe não é macaca. Cala a boca, macaco, eu falo nesse caralho. O homem se irrita, arranca a caixa de som, joga no chão. Fala, macaca. É que todo mundo na rua é preto. (...) É o seguinte, vocês vivem de quê aqui? Do bar, moço. Moço é a vaca preta que te pariu, eu sou senhor para você. Sim, senhor. Minha mãe não merece isso, 20 anos de diarista. E você, neguinho, o que tá olhando aí, decorando minha cara para me matar, é? Você pode até tentar, mas a gente volta aqui, põe fogo em criança, queima os barracos e atira em todo mundo nessa porra. (...) É o seguinte, seus montes de bosta, vou apagar a luz, e vou atirar em alguém. (...) O tiro acontece, eu abraço minha mãe, ela é magra como eu, ela treme como eu. Todo mundo grita, depois todo mundo fica parado, o ronco da viatura fica mais distante. Alguém acende a luz. Filho-da-puta do caralho, atirou no teto, grita alguém. (FERRÉZ, 2006, p. 11)

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A narrativa é tensa e a linguagem de baixo calão - preto, macaca, vaca

preta, porra - dita o tom discriminatório da fala dos personagens, ao mesmo

tempo em que dá mais realidade à situação. A Rota (Rondas Ostensivas

Tobias Aguiar) é o 1° Batalhão de Polícia de Choque do Estado de São Paulo

e, na ficção aqui narrada, está representada por dois oficiais de polícia que

faziam a sua “ronda”. Ferréz retrata o policial como um indivíduo arrogante,

agressivo e muito preconceituoso, pois, além de abusar de sua autoridade,

ainda usa palavras racistas para se dirigir aos cidadãos daquela comunidade.

O que poderia ser uma simples ronda policial acaba tornando-se uma cena de

humilhação e uma sessão de tortura psicológica. A atitude preconceituosa e

humilhante do policial faz com que o leitor reflita sobre discriminação, racismo,

abuso de poder e desvio ético de conduta.

Com a finalidade de punir justamente práticas que violassem o modo

paritário como deveríamos reconhecer os demais membros da sociedade é que

a Constituição Federal de 1988 e a legislação infraconstitucional definem

regras em desfavor de eventos que atentem contra a dignidade humana. O

racismo é considerado crime inafiançável e imprescritível, inclusive com pena

de reclusão, conforme o disposto na Constituição Federal de 1988, no seu

artigo XLII, ao mesmo tempo em que a prática de tortura é considerada crime

inafiançável, conforme prescreve o artigo XLIII:

A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem. (BRASIL, 2008)

A definição de práticas (des) humanas condenáveis reflete mais do que

um tipo de ação indesejável socialmente, pois é o resultado de um anseio da

sociedade pelo reconhecimento da igualdade de todos diante dos danos

causados pelas diversas faces da discriminação, sejam elas raciais, sociais ou

econômicas. A lei n. 9.455, de 07 de abril de 1977 (BRASIL, 1997), por

exemplo, define os crimes de tortura e entre eles destacamos o

constrangimento de alguém com o uso de violência, causando-lhe sofrimento

mental em razão de discriminação racial. A Lei da Tortura, então, não

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considera somente a geração de sofrimento físico como crime de tortura, mas

também leva em conta, na formação do tipo criminoso, o uso da violência para

causar sofrimento psicológico. Este mesmo instituto legal ainda prevê aumento

de pena no caso de crime praticado por agente público, nesse caso, um

membro da polícia. Portanto, além da violência física, a prática da violência

mental também é considerada crime de tortura.

Em “Fábrica de fazer vilão”, Ferréz chama a atenção para a “cegueira”

do cidadão-policial. O ser humano membro da força policial não reconhece o

ser humano membro da favela, ou seja, o homem não vê o próprio homem. Na

medida em que humilha e desrespeita o outro, o cidadão-policial responde a

um impulso imediato e violento característico de um nível civilizatório primitivo,

no qual os limites do ódio e do prazer estão apagados. O policial de atuação

administrativa ou ostensiva, em qualquer parte do território da federação, é a

longa manus do Estado e deve, portanto, atuar em consonância com os

princípios da defesa da vida, da integridade física e moral, bem como da

igualdade e da dignidade humana. A perspectiva que esse cidadão periférico

passa a ter com relação ao Estado vai além do abandono e do descaso; ele

começa a ver o Governo como conivente, um órgão instável e inútil; não vê

méritos nos mandos administrativos e ignora os preceitos legais. Como

conseqüência, o poder do Estado se enfraquece, o conjunto normativo perde

funcionalidade, pois não atinge seu objetivo primordial de estabelecer justiça à

sociedade, os impulsos não são mais reprimidos e retornamos à barbárie, o

que denuncia uma espécie de crise da racionalidade.

Tânia Pellegrini (2004), ao comentar a expressão do impulso violento

nas favelas, em referência ao universo retratado em Cidade de Deus (2002), e

ao classificar o “monopólio da força” do Estado como ilegítimo (distante no

tempo e no espaço), abstrato e desfavorável aos favelados (tendo em vista a

corrupção e a violência da polícia), comparou a realidade da favela àquela das

sociedades primitivas. A vida dos moradores da periferia oscila entre dois

extremos:

Uma ampla liberdade, que inclui dar vazão a seus sentimentos e paixões, à alegria selvagem, à satisfação sem limites do prazer, do ódio, da destruição e até da tortura a todos os que lhe são hostis e a exposição a esses mesmos tormentos, em caso de derrota. Ou seja, a realidade das favelas representadas (...) é comparável àquelas das sociedades primitivas, ‘não pacificadas’ (...) em que a satisfação do

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impulso violento é autorizada apenas pela pulsão do presente imediato. (PELLEGRINI, 2004, p. 29)

A violência significa a vontade de dominar a liberdade do outro e não

somente no sentido físico, mas com a intenção de subjugá-lo moralmente, na

busca pelo reconhecimento através da submissão. Ocorre que, ao afetar a

dignidade do outro, estou comprometendo a minha própria, fato que retira todo

o valor do reconhecimento. E, como não vejo o outro, não consigo minha

afirmação enquanto ser, pois “o rosto que me olha me afirma” (LÉVINAS, 2009,

p. 61). A partir do momento em que “olho” para outro, não tenho como negá-lo

e, ao reconhecê-lo, permito minha própria afirmação.

Na narrativa de “Fábrica de fazer vilão”, a linguagem utilizada pelo

policial, o eu, tem a pretensão de submeter as pessoas da localidade, o outro,

ao seu poder. A palavra segue o sentido contrário ao de relacionar as

liberdades que deveriam se afirmar de maneira recíproca e prevalece apenas

uma liberdade em detrimento da outra. O desrespeito a essa reciprocidade faz

com que se crie uma relação de indiferença e a relação de reciprocidade “não é

o resultado, mas a condição da ética” (LÉVINAS, 2009, p. 61). O respeito,

portanto, acaba unindo os indivíduos justos no mesmo empreendimento de

justiça, tendo em vista que o homem, mais do que se sujeitar ao mandamento

legal, deve reconhecer o ser que ordena ou aplica esse comando.

No caso de “Pega ela”, Ferréz expõe a questão da existência do

“Código” e revela a sua força executória, fazendo com que nos questionemos

acerca deste código e de sua força normativa, inclusive com aplicação da pena

de morte:

Carái, Alemão, engatilhou o bagulho, você é meu irmão. Irmão eu sou, só que também dos outros, você sabe o código. Mas... Mas o que, fala? Ta bom, eu dei um beijo. Pára de palhaçada, carái, eu vou te assassinar. Faz isso comigo não, Alemão, ela que me beijou. Tu ficou lá para ser guardado, não para catar a mulher do irmão. Mas essa vadia, eu tava no banheiro e... Fala tudo, porra! Eu tava tomando banho, ela entrou, tava de espartilho e o carái, eu dei um beijo. Sinto muito, Lipo.

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Fala! É o Alemão. E aí? Matei meu melhor amigo, meu companheiro, só que sua mulher também vacilou. Eu sei, vou dar um couro nela. Não basta, eu perdi meu irmão, você vai ter que matar ela. Mas ela ta grávida. Foda-se, de repente nem é seu, cê sabe o código, se não pegar, a gente pega vocês. Tá, tá bom, carái, vou pegar. (FERRÉZ, 2006, p. 21)

O autor provoca uma reflexão sobre a dignidade humana, o papel do

Estado e da justiça, colocando em dúvida, sobretudo, a validade da lei. De fato,

a lei que vigora na periferia retratada no conto não se trata da lei convencional

e tampouco é a autoridade oficial que a aplica. Cuida-se de lei própria de uma

determinada comunidade, um código paralelo, em que a pena de morte é

claramente respeitada. O código utiliza a violência como instrumento de

coerção e preservação do poder, revelando toda sua perversidade e

assegurando uma “igualdade” sem respeito à vida humana. Assim, a relação

entre o código e aqueles que devem obedecê-lo é de dominação.

Em suas obras, Ferréz constantemente cita as “leis” da favela, como se

este fosse um lugar separado do mundo no qual vivemos, outro território com

suas próprias leis, costumes e formas de poder. A criatividade e a

transparência do autor, ao narrar os fatos do mundo da favela, dão destaque

ao estilo da sua escrita:

Paula do lado de Rael, encostada, sabia em seu íntimo que o que estava acontecendo era loucura. No caminho, quase nenhuma palavra; a única conversa que tiveram foi curta e sobre um acidente de ônibus ocorrido dias antes. Rael sempre se recordava das frases ditas pelos seus amigos. “Primeira lei da favela, parágrafo único: nunca cante a mina de um aliado, se não vai subir. (FERRÉZ, 2005, p. 66) Burgos segurou o cano firmemente na boca de Testa e lhe fez elogios com demasiado ar de superioridade, suas palavras não alcançavam o pequeno menino viciado em pedra e pichador nas horas vagas, pequeno devedor, muito pequeno para tão grande dívida. A lei na quebrada não é quantia, mas sim o respeito, que deve acima de tudo prevalecer. (...) Ele se entregou e aceitou a morte como se aceitasse um grande presente, em seus pensamentos as palavras finais de Burgos não contavam, ele viu lindas paisagens, ele estava viajando, mas foi ruim o ar que entrou em sua boca quando o primeiro tiro foi efetuado, Deus! (FERRÉZ, 2005, p. 85)

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Na favela a “quantia” não faz a lei, ou seja, o dinheiro não compra a

justiça e o que realmente vigora é o “respeito”, que serve para manter a ordem

e o poder. A lei da favela é severa e o medo da punição é que demonstra a sua

força coercitiva. No sistema jurídico da periferia, o réu não tem direito a

advogado, não há habeas corpus e o aplicador (executor) da lei é implacável.

O sistema se baseia na violência e na perspectiva de vigência da pena de

morte como formas de manutenção do poder.

Essa situação de imposição da “ordem” por meio da violência remonta

uma época em que o direito era a expressão da vontade do soberano.

Segundo Perelman (2000, p. 18), parafraseando Hobbes (1651), trata-se de um

direito que reina na natureza, a lei da selva, na qual se luta diariamente pela

sobrevivência:

Mas este estado de guerra de todos contra todos torna-se, com o passar do tempo, insuportável para seres humanos que, dispondo de forças mais ou menos equivalentes, jamais estarão seguros de que outro homem não será capaz de matá-los ou de escravizá-los.

O chefe do tráfico, ou da “boca”, o então “Soberano”, que dispõe de

poder quase absoluto sobre os “súditos”, faz cumprir as suas leis e impõe o

terror, o medo da morte, como a razão do pacto social constitutivo do seu

“Estado”, a periferia. Ele terá, para tal tarefa, vários encarregados impondo as

suas leis, um exército composto por crianças, jovens e adultos.

A discussão em torno da efetividade do ordenamento jurídico vigente (a

ordem) e a realidade das execuções do tráfico (a desordem) é um embate

travado entre civilização e barbárie. Nesse sentido, levando em consideração a

pena de morte no Brasil, as codificações legais que resguardam a vida humana

são uma conquista civilizatória sob o ponto de vista penal. O inciso XLVII do

artigo 5° da Constituição Federal dispõe que não ha verá pena de morte no

Brasil, com exceção dos casos de guerra declarada pelo Presidente da

República. A ação do indivíduo que executou o “amigo” em nome do código

viola a Constituição, os princípios da legalidade e, principalmente, o direito à

vida. A pena de morte, à exceção do Estado de Guerra, não existe no país e a

atuação de grupos de extermínio é explicitamente vedada pelo inciso XLIV do

artigo 5° da Constituição (BRASIL, 2008), constitui ndo crime inafiançável e

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imprescritível. Portanto, as situações narradas revelam o quanto essa

comunidade constitui-se de fato um mundo a parte, regido por leis que não

correspondem ao estado de direito, visto que a guerra – o “pecado” - parece

ser a ordem predominante. Como é possível garantir a lei em tais

circunstâncias, em que a situação de abandono e de exclusão dá margem à

prevalência de um poder extraoficial, em que a lei e o próprio sentido da vida

humana perdem o valor?

A igualdade constitucional é princípio posto como pilar de sustentação

e guia de interpretação das normas jurídicas que formam o sistema jurídico

nacional. Com efeito, graças a este princípio, temos um modo justo de viver em

sociedade, ao menos tecnicamente. A igualdade está quase sempre

relacionada à idéia de justiça e um problema de justiça, em princípio, demanda

uma análise sob o ponto de vista da justiça formal, que exige tratamento igual

daqueles que estejam em situações essencialmente equiparadas. Por outro

lado, existem diferenças essenciais que precisam ser levadas em

consideração. Chaïm Perelman (2002, pp. 227-228), ao levantar questões

sobre as diferenças de raça, de sexo, de idade e, inclusive, de fortuna, dispõe

que:

Para manter a paz social, é útil que, nas áreas socialmente importantes, a lei determine essas diferenças essenciais e indique quais são as distinções que se devem levar em conta. Nesse caso o princípio de justiça formal desaparece diante do princípio da igualdade perante a lei.

Justamente esses fundamentos é que possibilitam a tutela de pessoas

que se encontrem em posição econômica desfavorável, conforme atestou

Pontes de Miranda (1970, p. 689):

A desigualdade econômica não é, de modo nenhum, desigualdade de fato, e sim a resultante, em parte, de desigualdades artificiais, ou desigualdades de fato mais desigualdades econômicas mantidas por leis. O direito que em parte as fez, pode amparar e extinguir as desigualdades econômicas que produziu. Exatamente aí que é que se passa a grande transformação da época industrial, com a tendência a maior igualdade econômica, que há de começar, como já começou em alguns países, pela atenuação mais ou menos extensa das desigualdades.

Uma compreensão da atual crise ética que atinge nossa sociedade

exige o rompimento de fronteiras que amplie os conceitos do direito e da ética,

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pois “o princípio de que todos os seres humanos são iguais hoje faz parte da

ortodoxia ético-política predominante” (SINGER, 2002, p. 25). O desrespeito ao

princípio da igualdade não pode deixar de ser visto como resultado de fatores

políticos, econômicos e culturais característicos da lógica do capital e de suas

normas e juízos de valor dominantes.

Levando em conta que igualdade não implica homogeneidade,

exigindo, portanto, modelos de interpretação que contemplem a diferença,

parece válida a proposta de Dworkin (2005, p. 237), segundo o qual o romance

poderia ser o modelo utilizado para analisarmos a interpretação jurídica, sob

um ponto de vista literário, pois o romancista:

Deve decidir como os personagens são ‘realmente’, que motivos os orientam, qual é o tema ou propósito do romance em desenvolvimento, até que ponto algum recurso ou figura literária, consciente ou inconscientemente usado, contribui para estes, e se deve ser ampliado, refinado, aparado ou rejeitado para impelir o romance em uma direção e não em outra.

O trabalho decisório acerca de questões controversas no Direito se

assemelha a este exercício literário. O magistrado deve ler cuidadosamente os

fatos e as provas apresentados; analisar o pedido e a legislação indicada; guiar

o rumo do processo legal; para, finalmente, determinar a solução judicial à

pretensão postulada ou ao impasse criado.

Neste diapasão, a literatura marginal, produzida por escritores que não

somente falam sobre a periferia, mas que também fazem parte dela, exerce

papel fundamental no desenvolvimento de um estudo com proposta

transdisciplinar e baseado em um método dialético. A interpretação literária, no

sentido de exigir do leitor a interação com os pontos de vista construídos pelo

texto, poderá colaborar no desenvolvimento da hermenêutica jurídica através

de uma nova racionalidade.

Na sua concepção clássica, o direito faz uso da força coercitiva para

impedir condutas socialmente prejudiciais, ou seja, o emprego da força por

meio da ameaça de privação da liberdade tem por objetivo impedir que

indivíduos privem outros indivíduos da vida, liberdade ou propriedade pelo uso

da força. O direito usa a força para impedir o emprego da força arbitrária, pois

“o direito é um ordenamento para a promoção da paz, no sentido de que proíbe

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o uso da força em relações entre os membros da comunidade” (KELSEN,

2001, p. 231).

A questão do “código” levantada nos contos de Ferréz demonstra a

perda do monopólio do direito. O poder coercitivo foi incorporado por agentes

da comunidade através da violência e a lei passou a ser interpretada de modo

arbitrário, pois a desigualdade social e o enfraquecimento do sistema jurídico

abriram espaço para a atuação de organizações criminosas.

Os casos apresentados ferem o princípio da igualdade e revelam uma

inversão de preceitos éticos. As conseqüências podem ser irreversíveis do

ponto de vista da estabilidade social, pois a convivência de códigos paralelos

enfraquece a credibilidade da justiça convencional e desestabiliza o Estado

Democrático de Direito. Os indivíduos passam a acreditar na unilateralidade da

lei ou a respeitar os códigos de suas comunidades (ou seus próprios), gerando

violência e impunidade. A lei vale para alguns e não para todos, dependendo

da situação econômica de cada um, esta é a lógica do capital.

A solução não permite chegar a uma verdade única e implica visões

múltiplas sobre a pluralidade das culturas e ideologias no Brasil. Contudo,

partindo de um ponto de vista periférico, a literatura dá suporte à compreensão

de uma realidade distante dos olhos de muitos e denuncia as condições de

indignidade a que está submetida boa parcela da população brasileira. Este

processo, portanto, serve de ferramenta para a análise das conseqüências

éticas implicadas na interpretação do princípio da igualdade, conforme

prescreve a Constituição Federal do Brasil, na perspectiva de uma

racionalidade dialética com base em uma ética da alteridade.

4.4. Periferia: a luta pela igualdade

A violência e a indignidade humana representadas na literatura

marginal são como um grito de alerta sobre as conseqüências do aumento da

desigualdade social causada pela lógica do sistema capitalista. Nas narrativas

de Ferréz, a realidade torna-se ficcional no sentido de que certas situações

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desumanas absurdas que ocorrem no cotidiano da periferia são inconcebíveis.

Mas é exatamente este realismo humanista da escrita de Ferréz que dá ensejo

ao que poderíamos chamar de ética da alteridade por meio da linguagem, pois

o seu texto acaba estabelecendo uma conexão com o outro excluído.

A atuação de Ferréz como agente produtor e transformador da

realidade de vida na periferia é percebida em “Assunto de família”, uma carta

que Ferréz escreve ao pai para dar notícias sobre sua luta como escritor na

“guerra” social. Apesar do tom de revolta, o conto revela a esperança do filho-

escritor em dias melhores na favela:

Sabe Pai, tem uns caras que tão me ajudando nessa revolução que tanto quero, eles acreditam em um mundo melhor, um mundo como o senhor sempre falou pra mim, um mundo de educação e estudo, o senhor batia nessa tecla, e está funcionando, tudo que tenho devo ao estudo, aprendi que nós nascemos devendo vários dólares para os americanos, e nossos artistas não representam a revolta de um povo, que merecia melhores representantes, às vezes acordo desanimado e quase acredito no que o sistema diz, mas aí logo saio pra calçada e começo a observar a pivetada, correndo pra cima e pra baixo, sem role, com uns olhinhos assim meio desacreditados, e levanto a cabeça novamente e reafirmo pra mim mesmo que a guerra não acabou, penso em Conselheiro, penso em Tirandentes, penso em Zumbi, que morreram por estar fazendo a coisa certa, e se alguém tem que chorar, Pai, pode ser até meus familiares, pois a guerra é essa e, se depender de mim, não vai inimigo sobrar. (FERRÉZ, 2006, p. 80)

O representante da gente da periferia, Ferréz, tem muitos

companheiros na luta pela escrita e, como forma de resistência à exclusão do

sistema capitalista, o escritor, ao se deparar com a realidade das ruas da

favela, reage e reafirma sua condição de agente defensor da igualdade a partir

do reconhecimento da cultura periférica. O escritor ainda cita líderes populares

históricos de resistência ao “sistema”, representantes das minorias que exigiam

igualdade de condições de vida, reforçando sua tese de rompimento com o

status quo.

Ferréz deixa claro o seu objetivo de transformação das condições

sociais da periferia através da educação e, dando continuidade ao “desabafo”,

descreve seus métodos ao pai:

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Continuo andando Pai, e por isso nunca mais deu tempo pra gente se falar, eu continuo de escola em escola, de entidade em entidade, de show em show, tentando espalhar informação, tentando cultivar o prazer de ler e de buscar algo melhor, eu sei que o senhor também me apóia e torce para que um dia nós todos, brasileiros sofredores, lutemos com armas certas, um livro, um caderno e um lápis, saberemos um dia o que é um livro, pois é um trecho de livro que nos coloca na cadeia, que nos afasta do dinheiro e que nos jogou aqui há quinhentos anos. (FEERÉZ, 2006, p. 81)

O escritor assume que a leitura é um mecanismo de esclarecimento e

que ela é capaz de libertar o povo, pois o “livro” pode ser tanto aquele que

liberta através do conhecimento como aquele que aprisiona por meio da

ignorância. Ou seja, na visão de Ferréz, a educação é hábil a inserir o cidadão

numa sociedade dominada pela elite intelectual capitalista, que produz as

regras que vigoram para todos, mas que só beneficiam a alguns, em

detrimento da exclusão de muitos.

Na tarefa de inclusão proposta pelo escritor, os artistas-produtores

periféricos devem utilizar os meios burgueses disponíveis, como estratégia de

inserção no mercado cultural capitalista dominante. Isso também é revelado ao

seu pai:

De vez em quando, Pai, eu recebo um convite para almoçar de alguém que leu meu livro. Já almocei com gente muito famosa, e eles ficam comentando do livro, dizendo que é assim, que é assado, eu fico na minha, penso nos meus, como aquela comida estranha e me imagino de volta na área, dentro do quartinho, junto dos meus amigos comendo pizza. Não demora muito e o almoço acaba, eles geralmente dão contatos e dizem que vão fazer um movimento tal para ajudar a comunidade, eu volto para casa, e o senhor sabe que não fico esperando essas ajudas, faço minhas correrias, e parece que tá dando certo, a comunidade aqui é devagar, mas já está participando. (FERRÉZ, 2006, p. 86)

Ferréz, além dos encontros com críticos e escritores importantes,

participa de eventos em universidades e discursa para elite intelectual do país,

com a experiência de quem aprendeu com a vida e a realidade do cotidiano da

periferia. Esse cosmopolitismo de Ferréz tem colaborado na formação da

identidade cultural da periferia e, sobretudo, no processo de afirmação da

dignidade de seus membros.

O autor-produtor é representante de um movimento de resistência à

lógica do capital, a mesma lógica que estimula práticas consumistas e gera

forte desigualdade social e econômica. É isso que percebemos na seqüência

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da carta, em que o autor prevê as conseqüências sociais de uma sociedade

baseada no consumo:

Pai, deixa o filho-da-puta rir, pagar de gostoso, desfilar de relógio de ouro, quando a PT for engatilhada, o moleque não vai pedir dinheiro para comprar livro, o moleque vai querer tudo, tudo, o dinheiro, o relógio e o sangue escorrendo. (...) Quem é honesto no país da contravenção só se fode, é tudo mentira, a melhora, a volta de um salvador, eu quero ver o povo sofredor alcançar melhoras na terra e não num tão sonhado paraíso. (FERRÉZ, 2006, p. 84)

A forte característica de revolta do discurso de Ferréz está relacionada

a um conflito ético entre honestidade e corrupção, um sentimento de que a

integridade moral não tem valor diante da lógica capitalista. O escritor não

acredita que a solução será encaminhada pelo governo ou por algum político

“salvador” e julga que a periferia tem força o suficiente para se desenvolver

através de mecanismos próprios, desde que sejam concedidas oportunidades

às minorias em condições de igualdade com os demais grupos sociais

dominantes.

No final de Capão pecado, por meio de um posfácio, Ferréz resolveu

apontar para uma possibilidade de conciliação entre a teoria da sociedade ideal

e a prática da dura realidade periférica. O escritor começa comparando o

homem da periferia a uma árvore que é danificada por transeuntes:

Há uma pequena árvore na porta de um bar, todos passam e dão uma beliscada na desprotegida árvore. Alguns arrancam folhas, alguns só puxam e outros, às vezes, até arrancam um galho. O homem que vive na periferia é igual a essa pequena árvore, todos passam por ele e arrancam-lhe algo de valor. A pequena árvore é protegida pelo dono do bar, que põe em sua volta uma armação de madeira; assim, ela fica segura, mas sua beleza é escondida. O homem que vive na periferia, quando resolve buscar o que lhe roubaram, é posto atrás das grades pelo sistema. Tentam proteger a sociedade dele, mas também escondem sua beleza. (FERRÉZ, 2005, p. 147)

O homem da periferia que tenta buscar igualdade do outro lado do

“muro social”, a igualdade consubstanciada na lógica do capital exibida pelos

meios de comunicação de massa diariamente, tem sua dignidade arrancada

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pelo mesmo “sistema” que deveria garantir-lhe direitos fundamentais. Ao invés

de recepcionar o cidadão periférico, o sistema não o reconhece e acaba por

excluí-lo da sociedade. Ferréz defende que a periferia tem sua beleza, seu

“lado bom”, uma produção cultural que já está criando seu público e que

precisa ter seus símbolos reconhecidos e respeitados pela elite. O escritor

alega que a mudança tem início exatamente na comprovação do valor da

comunidade e na geração de seus próprios símbolos, seus próprios heróis.

Ferréz quer contar a história sob o ponto de vista dos dominados.

Ao final do posfácio, o escritor resume a vida no Capão Redondo, o

contexto de sua produção literária e musical. A pobreza na periferia é

perpetuada geneticamente; o amor e o carinho da família são ameaçados pela

violência das armas e das drogas; e a cultura da mídia televisiva continua

manipulando a população:

A pobreza aqui é passada de pai para filho, assim como a necessidade de se trabalhar dia e noite para comprar um pão, um saco de arroz, um saco de feijão. Mas é com amor e carinho que criamos nossos filhos, sem nos darmos conta do local, dos amigos incertos e das coisas que injetam aqui – armas e drogas. Embriagados continuaremos assim, andando no chão frio com os pés descalços, um sorriso na boca ainda seca da corrida contra a lei. Toda uma nação está olhando para uma janela eletrônica; através dela está o passado manipulado, e o que ninguém vê é a porta que fica ao lado, a porta do futuro, que está trancada pela mediocridade dos nossos governantes. (FERRÉZ, 2005, p. 149)

A arte, ou a escrita e a música, no caso de Ferréz, pode ser, segundo

ele mesmo, o antídoto para violência, desde que direcionada a uma produção e

a uma disseminação de conhecimento que permitam ao cidadão colocar seu

ponto de vista em igualdade com os demais. Assim, a tarefa do autor-produtor

nessa luta pela causa literária marginal é disseminar a cultura da periferia,

abrindo espaço para artistas marginais e interferindo diretamente na

transformação das condições de vida da periferia através da inclusão cultural e

social.

A negação da alteridade aumenta a distância entre os diferentes

grupos sociais e contribui para o isolamento simbólico, sob o ponto de vista

cultural, e físico, na perspectiva social, dentro da mesma sociedade, o que

torna ainda mais difícil a tarefa de identificar e combater as desigualdades

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sociais e econômicas. A conciliação proposta por Ferréz é a do

reconhecimento da cultura periférica e de seus símbolos como forma de

combater a violência e a desigualdade, pois reconhecer o outro significa

compreendê-lo como sujeito de direitos, sua igualdade e sua dignidade. Na

medida em que “vemos” o outro, reconhecemos a nós mesmos e somos

obrigados a frear nossos impulsos primitivos mais violentos.

Esse processo de afirmação positiva, e não impositiva, está

diretamente relacionado aos princípios da igualdade e da dignidade humana. A

noção do outro, com suas diferenças e idiossincrasias, permite a interação

entre os sujeitos e consolida a vida social. O reconhecimento do outro faz com

que o eu reflita sobre a condição humana de existência e identifique os limites

da relação social. A satisfação pulsional imediata cede ao desejo mediato,

facilitando a expansão da lógica coletiva e fazendo com que o impulso primitivo

seja substituído pela alteridade.

O descompasso existente entre a lei e a realidade apontado pela

literatura marginal, mais do que elencar diferenças sociais, denuncia a crise de

um modelo racional superado, por meio de uma escrita que desafia as

perspectivas clássicas, tanto sob o ponto de vista ético como estético. O

realismo da escrita marginal oportuniza, ao leitor e, especialmente ao público

que interessa a este trabalho – os operadores do direito - a reflexão sobre uma

realidade social que demanda novas formas de interpretação e meios de

efetivação dos princípios fundamentais, consolidando a transdisciplinaridade

inerente às formas humanas de ser, pensar e agir na sociedade.

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5 CONCLUSÃO

A crise do atual modelo de racionalidade científica ou “crise do

paradigma dominante”, segundo Boaventura Santos (2002, p. 23), está a exigir

profundas reflexões epistemológicas acerca do conhecimento científico com

base em uma racionalidade dialética, que questione os fundamentos da ciência

atual, ou do sistema normativo, no caso do presente estudo, e dialogue com

outras formas de conhecimento.

Dessa forma, propusemos o rompimento com a tese cartesiana e as

fórmulas hermenêuticas clássicas do direito, assumindo uma postura

transdisciplinar e debatendo acerca de uma nova hermenêutica jurídica,

fundada em uma nova racionalidade dialética, que seja capaz de compreender

a abrangência da lei sob um ponto de vista mais político e social. A ânsia

conceitual e classificatória da perspectiva positivista gerou o distanciamento do

direito com relação à realidade dos fatos, resultando em que a aplicação pura e

simples da lei já não é suficiente a resolver as questões de natureza jurídica.

O estudo das interfaces entre Direito e Literatura serviu de base a uma

reflexão ética sobre os princípios constitucionais e à confrontação das

perspectivas clássicas de análise jurídica fundada em uma hermenêutica dos

princípios da igualdade e da dignidade humana. A aproximação entre direito e

literatura é possível enquanto construção que une arte, ética e estética.

No atual estágio civilizatório, em que a razão está afastada da

realidade, a literatura marginal, no caso específico da escrita de Ferréz, acaba

por denunciar a crise de racionalidades, ao traduzir a desigualdade e a

indignidade humana na periferia como verdadeira “tragédia contemporânea”. O

momento é de recuperar o “trágico” e reaproximar o homem da sua

subjetividade, tendo em vista que os níveis atuais de banalização da violência

estão nos levando à brutalidade. O individualismo exacerbado e as práticas

individualistas de satisfação pelo consumo que embalam a sociedade têm

afastado o homem de sua responsabilidade social. De fato, a literatura marginal

surge como alternativa de um novo paradigma (um novo olhar) e a tragédia

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reforça a representação periférica, as práticas e os valores compatíveis com a

população que vive à margem dos grandes centros urbanos brasileiros.

A representação da literatura marginal, subversiva dos sistemas

clássicos de representação, ganha espaço como parâmetro de compreensão

cultural num mundo de diversidades culturais dos fenômenos sociais. O

sistema de representação (modo de pensar) não pode mais ser único, pois, em

meio à pluralidade de costumes, novos paradigmas estão sendo criados por

outros grupos sociais que não o da elite cultural. A linguagem direta (gírias), o

discurso e a forma típicos da literatura marginal demandam a nossa atenção,

como representação dos valores consolidados nas comunidades periféricas e

como manifestações típicas de um grupo com direito a se inserir no sistema

social, sem ser visto como algo apartado da sociedade.

As culturas oriundas das margens das grandes cidades estão

consolidando suas práticas sociais através de uma linguagem, no caso da

literatura marginal, que constitui um sistema simbólico significante e que não

pode ser ignorado. Nesse sentido, a tragédia contemporânea traduzida por

Ferréz reforça o sistema de representação e denuncia a crise de racionalidades

por que estamos passando, demandando múltiplas abordagens sob o ponto de

vista epistemológico. Com efeito, a representação da violência é mais do que

uma simples estratégia de mercado. Ela é o resultado da ambigüidade

existente entre a ordem legitimamente constituída e a desordem (a ilegalidade),

a tensão entre lei e realidade.

Os escritores marginais, consubstanciados em experiências de vida

dentro do próprio contexto de sua produção, defendem que a educação e a

arte são capazes de minimizar a desigualdade social e econômica, como fortes

mecanismos de inclusão. Diante disso, a literatura, longe de ser a solução para

todos os problemas sociais e econômicos, pode contribuir, através de suas

incertezas, para a humanização do operador do direito. O direito precisa

dialogar com a “realidade” apresentada pela literatura e, com base nessa

interação, fundamentar uma hermenêutica dialética.

No mundo culturalmente pluralista contemporâneo, em meio às fortes

tensões sociais do cotidiano, o operador do direito tem de estar preparado para

enfrentar mais do que questões classificatórias e de justificação de dicotomias.

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Ele precisa ter uma atitude mais criativa e investigativa, no sentido de

compreender os interesses contrapostos de uma forma mais ampla e de levar

em consideração os diferentes sujeitos sociais envolvidos, sem que isso

interfira na validade dos preceitos e nos limites do sistema normativo. Neste

exato ponto é que os princípios, conjunto de verdades ou juízos fundamentais,

servem de premissas conceituais e metodológicas de interpretação e aplicação

das normas que incidirão na relação jurídica de direito material.

A nova perspectiva constitucional busca o equilíbrio entre a lei e os

valores sociais (éticos, políticos, culturais ou estéticos), com a valorização dos

princípios jurídicos como base de um modelo interpretativo mais aberto. Dessa

forma, a nova hermenêutica constitucional passa a ser um conjunto de idéias

que procura resgatar os valores, diferenciar qualitativamente regras e princípios

e posicionar os princípios fundamentais (entre eles o da igualdade e da

dignidade humana) de modo central, reaproximando direito e ética.

Em verdade, não se trata de uma negação da dogmática jurídica,

mesmo porque estudar o direito “sem interesse por seu domínio técnico, seus

conceitos, seus princípios é inebriar-se numa fantasia inconseqüente”

(FERRAZ JÚNIOR, 2008, p. 1), mas a recepção da dogmática como modelo

crítico e investigativo. Cuida-se, portanto, de uma nova racionalidade jurídica

com um compromisso de dimensão política e social, fundamentada em uma

ética da igualdade e da alteridade.

Portanto, podemos acreditar na formação do direito alicerçada em

outros aspectos que não somente o técnico. O puro estudo da doutrina, a

preocupação do operador com a classificação das regras e a auto-aplicação da

dogmática jurídica, por si só, já não são suficientes a realizar o direito. A

formação mais ampla precisa da construção de uma sensibilidade

(humanidade) orientada de forma crítica à realização da justiça e é neste

sentido que a literatura se revela capaz de “sensibilizar” o operador do direito

no desenvolvimento de uma hermenêutica capaz de lidar com os fenômenos

jurídicos mais preocupantes, humanizando a letra fria da lei na direção de um

ideal de justiça.

A luta de Ferréz é, por fim, pela igualdade. A mesma igualdade

determinada pela Constituição, mas que não tem garantida a sua efetividade

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enquanto instituto jurídico fundamental, tendo em vista o alto nível de sua

abstração da realidade. O escritor é a voz de uma população afastada dos

benefícios e da proteção da Constituição na busca pela afirmação da

identidade cultural e da dignidade humana da periferia. A empatia da escrita de

Ferréz, resultado de seu realismo e humanismo, colabora no reconhecimento e

na aproximação da realidade dos sujeitos periféricos.

Uma vez cumpridos os objetivos de analisar as condições desiguais

configuradas no universo ficcional da literatura marginal de Ferréz e suas

implicações éticas na interpretação do princípio constitucional da igualdade,

resta evidenciada a hipótese de que a literatura de Ferréz oferece aportes para

uma reflexão ética sobre o princípio da igualdade. Sob o ponto de vista jurídico,

a sociedade contemporânea clama por uma ciência do direito com operadores

capazes de interpretar dialeticamente a diferença existente entre a abstração

da lei e a realidade de injustiça e desigualdade, sobretudo no Brasil, onde uma

grande parte da população vive à margem das garantias legais.

A relação entre direito e literatura coloca em tela os problemas

epistemológicos sustentados pelo pensamento jurídico clássico, que, apesar de

sua importância na estruturação da dogmática jurídica, acabou reduzindo-a à

pura forma lógica e, conseqüentemente, afastou o direito da realidade social.

Diante disso, entendemos que a literatura oferece mecanismos diferenciados

de superação do positivismo jurídico, tendo em vista que as ficções literárias

estão imersas na condição humana e, portanto, possibilitam, mais do que a

reflexão, a interação com realidades que de outra forma não poderiam ser

compreendidas. A literatura marginal de Ferréz revela a condição de vida da

periferia na perspectiva daqueles que vivem dentro da própria comunidade,

configurando uma estética e uma ética que desafiam os sistemas clássicos de

representação. A escrita de Ferréz confere lugar ao outro excluído da

sociedade, instando no leitor o senso de alteridade que falta ao direito. Nessa

medida, a principal lição de Ferréz está em explicitar a necessidade de o

pensamento e as práticas jurídicas ultrapassarem o formalismo, não se

tornando indiferentes ao sofrimento e à miséria humanas, que tendem a

persistir em uma sociedade cada vez mais dominada pela desigualdade.

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