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TEORIAS DA INTERCULTURALIDADE E FRACASSOS POLÍTICOS Perguntamo-nos como encaixar em algo que pareça real, tão real como um mapa, este feixe de comunicações distantes e incertezas cotidianas, atrações e desenraizamentos, que se nomeia como globalização. Setenta canais de televisão acessados por cabo, acordos de livre comércio que nossos presidentes assinam aqui e acolá, migrantes e turistas cada vez mais interculturais que che- gam a esta cidade, milhões de argentinos, colombianos, equa- torianos e mexicanos que agora vivem nos Estados Unidos ou na Europa, programas de informação, vírus multilingues e publici- dade não pedida que aparecem no computador: onde encontrar a teoria que organize as novas diversidades? Estudar as diferenças e preocupar-se com o que nos homo- geneíza tem sido uma tendência distintiva dos antropólogos. Os sociólogos costumam deter-se na observação dos movimentos que nos igualam e dos que aumentam a disparidade. Os especialistas em comunicação costumam pensar diferenças e desigualdades em termos de inclusão e exclusão. De acordo com a ênfase de cada disciplina, os processos culturais são lidos em chaves distintas. Para_as^mrop^lo^jaLda diferença, cultura é pertejicimento comunitário e contraste com os outros. Para algumas teorias sociológicas da desigualdade, a cultura é algo que se adquire fa- zendo parte das elites ou aderindo aos seus pensamentos e gostos; as diferenças culturais procederiam da apropriação desigual-dos

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TEORIAS DA INTERCULTURALIDADE E FRACASSOS POLÍTICOS

Perguntamo-nos como encaixar em algo que pareça real, tão real como um mapa, este feixe de comunicações distantes e incertezas cotidianas, atrações e desenraizamentos, que se nomeia como globalização. Setenta canais de televisão acessados por cabo, acordos de livre comércio que nossos presidentes assinam aqui e acolá, migrantes e turistas cada vez mais interculturais que che­gam a esta cidade, milhões de argentinos, colombianos, equa­torianos e mexicanos que agora vivem nos Estados Unidos ou na Europa, programas de informação, vírus multilingues e publici­dade não pedida que aparecem no computador: onde encontrar a teoria que organize as novas diversidades?

Estudar as diferenças e preocupar-se com o que nos homo­geneíza tem sido uma tendência distintiva dos antropólogos. Os sociólogos costumam deter-se na observação dos movimentos que nos igualam e dos que aumentam a disparidade. Os especialistas em comunicação costumam pensar diferenças e desigualdades em termos de inclusão e exclusão. De acordo com a ênfase de cada disciplina, os processos culturais são lidos em chaves distintas.

Para_as^mrop^lo^jaLda diferença, cultura é pertejicimento comunitário e contraste com os outros. Para algumas teorias sociológicas da desigualdade, a cultura é algo que se adquire fa­zendo parte das elites ou aderindo aos seus pensamentos e gostos; as diferenças culturais procederiam da apropriação desigual-dos

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recursos económicos e educativos. Os estudos comunicacionais consideram, quase sempre, que ter cultura é estar conectado. Não há um processo evolucionista de substituição de algumas teorias por outras: o problema é averiguar como coexistem, chocam ou se igno­ram a cultura comunitária, a cultura como distinção e a cultura.com.

É uma questão teórica e é um dilema-chave nas políticas so­ciais e culturais. Não só como reconhecer as diferenças, como corrigir as desigualdades e como conectar as maiorias às redes globalizadas. Para definir cada um destes três termos, é necessário pensar os mo­dos pelos quais se complementam e desencontram. Nenhuma des­tas questões tem o formato de há trinta anos. Mudaram desde que a globalização tecnológica passou a interconectar simultaneamente quase todo o planeta e a criar novas diferenças e desigualdades.

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As transformações recentes fazem tremer a arquitetura da multiculturalidade. Os Estados e as legislações nacionais, as políticas educacionais e de comunicação que ordenavam a coexistência de grupos em territórios delimitados são insuficientes ante a expansão das misturas interculturais. As trocas económicas e midiáticas globais, assim como os deslocamentos de multidões aproximam zonas do mundo pouco ou mal preparadas para se encontrarem. Resultados: cidades onde se falam mais de cinquenta línguas, tráfico ilegal entre países, circuitos de comércios travados porque o Norte se entrincheira em barreiras agrícolas e culturais, enquanto se despoja o Sul. As consequências mais trágicas: guerras "preventivas" entre países, den­tro de cada nação e também no interior das megacidades. Militari-zam-se as fronteiras e os aeroportos, os meios de comunicação e os bairros.

Parecem esgotar-se os modelos de uma época na qual acre­ditávamos que cada nação podia combinar suas muitas culturas, e mais as que iam chegando, num só "cadinho", ser um "crisol de raças", como declaram constituições e discursos. Está por acabar-

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se a distribuição estrita de etnias e migrantes em regiões geográfi­cas, a distribuição de bairros prósperos e carentes, que nunca foi inteiramente pacífica mas era mais fácil governar, uma vez que os diferentes estavam distanciados. Todos - patrões e trabalhadores, nacionalistas e recém-chegados, proprietários, investidores e turis­tas - confrontamo-nos, diariamente, com uma interculturalida-de de poucos limites, frequentemente agressiva, que supera as insti­tuições materiais e mentais destinadas a contê-la.

De um mundo multicultural— justaposição de etnias ou gru­pos em uma cidade ou nação - passamos a outro, intercultural e globalizado. Sob concepções multiculturais, admite-se a diversidade de culturas, sublinhando sua diferença e propondo políticas relati­vistas de respeito, que frequentemente reforçam a segregação. Em contrapartida, a interculturalidade remete à confrontação e ao en­trelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em re­lações e trocas. Ambos os termos implicam dois modos de produção do social: multiculturalidade supõe aceitação do heterogéneo; inter­culturalidade implica que os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e empréstimos recíprocos.

Aos encontros episódicos de migrantes que há pouco chegaram e devem adaptar-se, às reuniões de empresários, académicos ou ar­tistas que se vêem durante uma semana, para férias, congressos ou festivais, somam-se milhares de fusões precárias, armadas, sobretudo, em cenários midiáticos. A televisão a cabo e as redes de internet falam línguas múltiplas dentro da nossa casa. Nas lojas de comida, discos e roupa, "convivemos" com bens de vários países num mesmo dia. Encontramos os melhores jogadores argentinos, brasileiros, franceses e ingleses em equipes de outros países. E as decisões sobre o que vamos ver, ou quem vai jogar onde, implicam não só misturas interculturais: tal como na televisão e na música, no esporte não jogam só Beckham, Figo, Ronaldo, Veron e Zidane, mas também as marcas de roupas e de carros que os patrocinam, os canais que entram em disputa para transmitir as partidas ou já compraram os

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clubes. O que mantém a credibilidade das identidades no futebol, das referências nacionais e locais, quando sua composição é tão hete­rogénea, projetada como co-produção internacional e com fins mer­cantis? Será que a aceitação de estrangeiros no esporte dá pistas sobre certas condições que facilitam a aceitação e a integração dos diferentes?

É difícil estudar esta vertigem de confusões com os instrumen­tos que usávamos para conhecer um mundo sem satélites nem tantas rotas interculturais. Os livros sobre estes temas, a maioria escritos em inglês e pensando nos formatos de multiculturalidade existen­tes nos Estados Unidos, Grã-Bretanha ou suas ex-colônias, concen-tram-se em relações interétnicas ou de género, mas no horizonte atual se entrecruzam outras conexões nacionais e internacionais: de níveis educativos e idades, midiáticas e urbanas.

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Este é um livro sobre teorias socioculturais e fracassos sociopo­líticos. Uma primeira consequência desta delimitação do campo de análise é que, embora os leitores aqui encontrem discussões filosófi­cas, interesso-me por elaborá-las em relação com as atuais condições sociais e midiáticas nas quais se verificam os desacertos políticos. Penso que as polémicas entre sistemas de ideias - por exemplo, so­bre universalismo e relativismo, ou sobre as vantagens do universalis­mo como justificação estratégica (Gadamer, Rorty ou Lyotard) ou como opção ética (Rorty ou Rawls) - têm o valor de situar as condi­ções teóricas modernas e pós-modernas da incomensurabilidade, in­compatibilidade e intradutibilidade das culturas. Aqui preferi traba­lhar à maneira de cientistas sociais, como Pierre Bourdieu e Clifford Geertz, ou filósofos, como Paul Ricoeur, atentos aos obstáculos so­cioeconómicos, políticos e comunicacionais postos à interculturali-dade pela efetiva desestabilização atual dos ordenamentos nacionais, étnicos, de género e geracionais, operada pela nova interdependência globalizada. Observa acertadamente Seyla Benhabib que a ênfase teoricista na "incomensurabilidade nos desvia das negociações epis-

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têmicas e morais muito sutis que ocorrem entre culturas, dentro das culturas, entre indivíduos e também dentro dos indivíduos mesmos, ao lidar com a discrepância, a ambiguidade, a discordância e o conflito" (Benhabib, 2002, p. 31).

A atenção a estas ambivalentes negociações tem caracterizado os estudos socioantropológicos. Talvez por isso a antropologia possa registrar melhor, empiricamente, a reestruturação culturalào mundo como chave do final de uma época política.

Até há quinze anos - para tomar como data de condensação a queda do Muro de Berlim - , havia uma divisão do planeta na qual Oriente e Ocidente pareciam hemisférios antagónicos e pouco conectados. As nações tinham culturas mais ou menos autocontidas, com eixos ideológicos definidos e duradouros, que regiam a maior parte da organização económica e dos costumes cotidianos. Acre-ditava-se saber o que significava ser francês, russo ou mexicano. Os países abriam seu comércio e, portanto, recebiam fábricas, objetos de consumo diário e mensagens audiovisuais cada vez mais variadas. Mas, na sua maior parte, estes provinham da região oriental ou ocidental a que se pertencia e eram processados numa matriz nacio­nal de significados.

Em poucos anos, as economias dos países grandes, médios e pequenos passaram a depender de um sistema transnacional no qual as fronteiras culturais e ideológicas se desvanecem. Fábricas estadunidenses, japonesas e coreanas instalaram maquiladoras em nações como México, Guatemala e El Salvador, que acreditavam aliviar assim o desemprego insolúvel com recursos internos. A inserção de estilos de trabalho e formas exógenas de organização do trabalho incrementou o estoque de automóveis, televisores e, naturalmente, culturas (Reygadas, 2002). Aqueles que não conseguiam emprego ou que aspiravam a ganhar mais enviavam alguns membros das suas famílias aos Estados Unidos, à Espanha ou a outras sociedades que ainda aceitavam pessoas sem documentos com o objetivo de bara­tear os custos internos de produção e de competir na exportação.

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Os antropólogos estudávamos a continuidade das tradições de traba­lho, línguas e hábitos de consumo, que mantinham identidades ter­ritoriais mesmo no desterro. Os sociólogos políticos discutiam se, nos países latino-americanos, devia-se permitir que votassem os mi­grantes residentes no exterior, e imaginavam os efeitos da influência latina no futuro de zonas estadunidenses onde começavam a repre­sentar um quarto da população.

Repentinamente, muitas mudanças desfiguram esta paisagem. Quando as ciências sociais lidavam com um mundo mais ordena­do, considerar-se-ia como ecletismo apressado reunir num mesmo parágrafo estes fatos: a) muitas maquiladoras saem dos países lati­no-americanos para a China, aproveitando os salários mais baixos desse país; ou seja, o regime chinês, visto até uma década atrás como o maior inimigo ideológico do capitalismo, gera desemprego e en­fraquece economias ocidentais não mediante desafios ideológicos, eficácia produtiva ou poderio militar, mas graças à maior exploração do trabalho; b) na Califórnia, leis como a 187, que privam de di­reitos à saúde e à educação as pessoas sem documentos, e a eleição de Arnold Schwarzenegger como governador efetivaram-se com boa parte do voto chicano; c) as remessas de dinheiro dos migrantes, dos Estados Unidos para a América Latina, aumentam de ano para ano, a ponto de se converterem no México, com 14 bilhões de dó­lares em 2003, numa fonte de receitas semelhante à exportação de petróleo e mais elevada do que o turismo; d) as roupas, os celulares, os aparelhos eletrodomésticos e até os adornos de Natal têm em comum etiquetas que anunciam sua fabricação no Sudeste asiático. Vimos bandeiras nacionais agitadas em celebrações da independência da Argentina e do México com a etiqueta made in Taiwan.

Estes processos não são facilmente agrupáveis numa mesma série socioeconómica nem cultural, porque implicam tendências di­versas de desenvolvimento, às vezes contraditórias. Mais do que ge­neralizar conclusões, mudam as perguntas sobre o local, o nacional e o transnacional, sobre as relações entre trabalho, consumo e terri-

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tório, ou seja, alteram a articulação dos cenários que davam sentido aos bens e mensagens.

A rigor, trata-se de um processo que tem mais de 15 anos. Não esqueço que, ao fazer, em fins da década de 1970, a etnografia das festas indígenas e mestiças em Michoacán, nas danças de origem purépecha ou espanhola - todas vividas como signos identificadores de tradição local - , os migrantes para os Estados Unidos, que regres­savam ao México para participar, exibiam roupas com frases em in­glês e colocavam sua contribuição em dólares no arranjo ritual da cabeça dos dançarinos. A diferença é de escala e intensidade: em Michoacán, não mais do que 10% da população emigravam naquela época; agora, em números redondos, vivem nesse estado mexicano 4 milhões de michoacanos, enquanto 2,5 milhões residem nos Estados Unidos. Uns e outros seguem interconectados não só pelo dinheiro mas também por mensagens afetivas, informação nas duas direções, frustrações e projetos mais ou menos comuns.

Podem-se avaliar as diferenças recentes em muitas sociedades latino-americanas e também nos Estados Unidos. As exportações chinesas para este país aumentaram em 40% nos últimos três anos, de modo que a sociedade estadunidense se converteu em destino de 25% do que os chineses vendem ao exterior. Nestas remessas asiáticas chegam milhares de objetos sem os quais é difícil imaginar o que distingue os estadunidenses: os troféus com que se premiam as crianças em competições esportivas, as bolas de beisebol e de bas­quete, os esquis, aparelhos de televisão e móveis early american.

Seria ingénuo pensar que tantas etiquetas com identificações asiáticas, em artigos de consumo estadunidense ou em bandeiras argentinas e mexicanas, atenuarão o nacionalismo destes povos, aproximando-os e facilitando sua compreensão. As^rela^fes_ens

tre aproximações de mercado, nacionalismos políticos e inércias cotidianas de gostos e afetos seguem dinâmicas divergentes, como se não tivessem se inteirado das redes que reúnem economia, políti­ca e cultura em escala transnacional. Esta nova situação das relações

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interculturais é o que me estimula às revisões teóricas dos trabalhos antropológicos, sociológicos e comunicacionais das décadas recentes.

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A indagação sobre as possibilidades de convivência multicultu­ral tem certa analogia com a construção de projetos interdisciplinares. Se estamos numa época pose multi, se há tempos é impossível insta-lar-se no marxismo, no estruturalismo ou outra teoria como se fosse a única, o trabalho conceituai precisa aproveitar diferentes contribui­ções teóricas, debatendo suas interseções. Depois de utilizar durante anos a concepção bourdieana - ela mesma uma teoria que articula e discute Marx, Weber e Durkheim — para realizar investigações sobre campos intelectuais, consumos culturais e o vínculo socieda-de-cultura-polít ica, avalio melhor os limites dos seus enfoques. Ajudam-me, como os leitores logo verão, as críticas de Grignon-Passeron e os raciocínios de Boltanski-Chiapello, que oferecem uma visão mais complexa das contradições atuais do capitalismo. Interes-sei-me, nesta linha, em entender por que Bourdieu reproduziu até as últimas investigações sua máquina reprodutivista e, nos anos fi­nais, quando quis acompanhar protestos contra o neoliberalismo e reencontrar um papel para sujeitos críticos, não superou a repetição mais ou menos sofisticada do anticapitalismo da primeira metade do século XX. Vejo a chave destes limites na dificuldade da sua obra para incluir as formas de industrialização-massificação da cultura e o papel não simplesmente reprodutivista dos setores po­pulares.

A atenção que dou às posições que sublinham as diferenças, do etnicismo até a posição de Clifford Geertz, me leva a valorizar criticamente as contribuições daqueles que vêem a modernidade a partir do pré ou do não-moderno. Por outro lado, as opções apresen­tadas pelo pós-modernismo na antropologia e nos estudos culturais tampouco nos permitem ignorar as incertezas da modernidade. Nem as concepções diferencialistas, que rechaçam o Ocidente, nem

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as pós-modernas oferecem alternativas teóricas ou modelos sociocul-turais que substituam os dilemas modernos.

O interesse em entender, ao mesmo tempo, as teorias socio-culturais e os fracassos políticos exige analisar, ao lado daquilo que os autores declaram nos textos teóricos, as polémicas e as relações com instituições, meios de comunicação e movimentos sociais, por meio das quais constroem sua argumentação. Por isso, ocupo-me de vários livros-chave, ao lado de simpósios nos quais cientistas so­ciais e líderes indígenas discutem sobre as diferenças étnicas e os Estados. Analiso os textos de Bourdieu e também seu modo de atuar na televisão. Nas situações de enunciação e interação, escutamos o que nos textos aparece como pressuposto ou silêncio.

Quanto aos políticos, o livro pretende focar seus fracassos culturais não só como resultado de erros ou corrupção, da asfixia que a economia neoliberal impõe ao jogo democrático, mas tam­bém como frustrações teóricas. Faltam interpretações sobre o modo errático e não representativo em que deambula a política. Não encontro, sobre estes últimos anos, textos equivalentes àqueles que se escreveram sobre as grandes catástrofes do século XX: o nazismo, o autoritarismo soviético e suas sombras. De modo que, ao nos per­guntarmos pela política e pelos políticos, os fracassos de que os jor­nais falam rotineiramente aparecerão aqui como cenografia, ruído de fundo, perguntas sobre os atuais desentendimentos entre cultu­ras e posições de poder.

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Talvez estas páginas iniciais já tenham sugerido as razões da mudança de foco que prometem em relação a outros textos sobre interculturalidade. Como se sabe, os estudos anglo-saxões neste campo se concentraram na comunicação intercultural, entendida, primeiro, como relações interpessoais entre membros de uma mes­ma sociedade ou de culturas diferentes, e, depois, abrangendo tam­bém as comunicações entre sociedades distintas, facilitadas pelos

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meios de comunicação de massas (Hall, Gudykunst, Hamelink). Na França e em outros países preocupados com a integração de migrantes de outros continentes, prevalece a orientação educativa que formula os problemas da interculturalidade como adaptação à língua e à cul­tura hegemónicas (Boukons). Na América Latina, predomina a con­sideração do intercultural como relações interétnicas, limitação de que vêm escapando autores que circulam fluidamente entre antropo­logia, sociologia e comunicação (Grimson, Martin Barbero, Ortiz).

A intensificação dos cruzamentos entre culturas induz a ampliar o campo destas contribuições. Não se trata de "aplicar" os conheci­mentos gerados por estas investigações, na sua maioria restritas à dinâmica interpessoal ou condicionadas pelos objetivos pragmáticos e pedagógicos da integração de minorias, a processos de mediação tecnológica e de escala transnacional. O crescimento de tensões em todas as áreas da vida social, em interações massivas entre sociedades, nas expansões do mercado e nos fracassos da política, está incorporando as perguntas sobre a interculturalidade a disciplinas que não usavam a expressão e reclamam novos horizontes teóricos.

Adoto aqui uma perspectiva interdisciplinar, com ênfase nos trabalhos antropológicos, sociológicos e comunicacionais. Divirjo daqueles antropólogos para os quais a particularidade da sua disciplina consiste em assumir inteiramente o ponto de vista interno da cultu­ra escolhida, e penso que grandes avanços desta ciência decorrem de ter sabido situar-se na interação entre culturas. Mais ainda: como explico no primeiro capítulo, Mare Abélès, Arjun Appadurai e James ClifFord, entre outros, estão renovando a disciplina ao redefinir a noção de cultura: não mais como entidade ou pacote de caracte­rísticas que diferenciam uma sociedade de outra. Concebem o cultu­ral como sistema de relações de sentido que identifica "diferenças, contrastes e comparações" (Appadurai, 1996, p. 12-13), "veículo ou meio pelo qual a relação entre os grupos é levada a cabo" (Jame­son, 1993, p. 104).

Esta reconceituação muda o método. Em_̂ ez_-de--CQmparar culturas que operariam como sistemas^regxistentes e compactos,

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com inércias que o populismo celebra e a boa vontade etnográfica admira por causa da sua resistência, trata-se de prestar atenção.às misturas e aos mal-entendidos que vinculam os grupos. Para enten­der cada grupo, deve-se descrever como se apropria dos produtos materiais e simbólicos alheios e os reinterpreta: as fusões musicais ou futebolísticas, os programas televisivos que circulam por estilos culturais heterogéneos, os arranjos natalinos e os móveis early american fabricados no Sudeste asiático. Naturalmente, não só as misturas: também as barreiras em que se entrincheiram, a perseguição ocidental a indígenas ou muçulmanos. Não só os intentos de conjurar as dife­renças mas também os dilaceramentos que nos habitam.

Tampouco se trata de passar da diferença às fusões, como se as diferenças deixassem de importar. A rigor, trata-se de tornar com­plexo o espectro. Vamos considerar, junto com diferenças e hibridis-mos, como tenta o capítulo 2, os modos pelos quais as teorias das diferenças precisam articular-se com outras concepções das relações interculturais: aquelas que entendem a interação como desigualdade, conexão/desconexão, inclusão/exclusão.

A perspectiva emic, ou seja, o sentido intrínseco que os atores dão às suas condutas, continua a ser uma contribuição maior da antropologia e um requisito ético e epistemológico indispensável para entender uma dimensão chave do social. Mas, numa época em que a investigação antropológica demonstra capacidade para captar, além daquilo que cada um toma ou rechaça dos outros, o que sucede nestas atrações e repulsões em ambos os lados, mesmo em trocas globais, não podemos reduzir esta disciplina, nas palavras de Geertz, a um saber sobre verdades domésticas.

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Adotar uma perspectiva intercultural proporciona vantagens epistemológicas e de equilíbrio descritivo e interpretativo, leva a conceber as políticas da diferença não só como necessidade de re­sistir. O multiculturalismo estadunidense e o que, na América Lati­na, chama-se mais propriamente de pluralismo deram contribuições

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para tornar visíveis os grupos discriminados. Mas seu estilo relativista bloqueou os problemas de interlocução e convivência, assim como sua política de representação - a ação afirmativa - costuma gerar mais preocupação com a resistência do que com as transformações estruturais.

O multiculturalismo chegou a funcionar em alguns países como interpretação ampliada da democracia. Fez-nos ver que esta significa algo mais do que a rotina de votar a cada dois ou quatro anos: participar de uma sociedade democrática implica ter direito a ser educado na própria língua, associar-se com os que se parecem conosco para consumir ou protestar, ter revistas e rádios próprias que nos distingam.

No entanto, deve-se também considerar as críticas dirigidas ao multiculturalismo e ao pluralismo, sobretudo na sua versão se-gregacionista. Objeta-se que a auto-estima particularista conduz a novas versões de etnocentrismo: da obrigação de conhecer uma única cultura (nacional, ocidental, branca, masculina) passa-se a absolutizar acriticamente as virtudes, só as virtudes, da minoria a que se pertence. O relativismo exacerbado da "ação afirmativa" obscurece os dilemas compartilhados com conjuntos mais amplos, seja a cidade, a nação ou o bloco económico a que o livre comércio nos associa. Cumprir as cotas - de mulheres, de afro-americanos, de indígenas — na ocupação de postos pode tornar insignificantes os requisitos específicos que fazem funcionar as instituições acadé­micas, hospitalares ou artísticas. A vigilância do politicamente corre-to às vezes asfixia a criatividade linguística e a inovação estética.

Não é fácil fazer um mapa com usos tão díspares do multicul­turalismo. Nem avaliar seus significados múltiplos, dispersos, nas sociedades. É útil, pelo menos, estabelecer a diferença entre multi­culturalidade e multiculturalismo. A multiculturalidade, ou seja, a abundância de opções simbólicas, propicia enriquecimentos e fu­sões, inovações estilísticas mediante empréstimes-temados de muitas partes. O multiculturalismo, entendido como programa que prescre-

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ve cotas de representatividade em museus, universidades e parlamen­tos, como exaltação indiferenciada das realizações e misérias daque­les que compartilham a mesma etnia ou o mesmo género, entrinchei-ra-se no local sem problematizar sua inserção em unidades sociais complexas de ampla escala.

Por estas razões, este livro trata de escapar dos traços do pen­samento teórico pós-moderno: a exaltação indiscriminada da frag­mentação e do nomadismo. Permanecer numa versão fragmentada do mundo afasta as perspectivas macrossociais necessárias para com­preender e intervir nas contradições de um capitalismo que se trans-nacionaliza de modo cada vez mais concentrado. Quanto ao noma­dismo das décadas de 1980 e 1990, não podemos esquecer que cor­responde ao momento em que o livre comércio e a abertura de fron­teiras apareciam como recursos para recolocar-se na competição económica; agora vemos por toda parte - sobretudo no Sul - que a desregulamentação também acarreta desamparo trabalhista, des­cuido da saúde e do meio ambiente e migrações em massa. Co­nhecemos repertórios e inovações de mais culturas, mas perdemos a proteção sobre a propriedade intelectual, ou os direitos de difusão se concentram em poucas corporações, especialmente no campo musical e digital. Mercados livres? Em vez do livre jogo estético e económico entre produtores culturais, os interesses de empresas de­dicadas ao entretenimento ou às comunicações é que influem naquilo que se edita, se filma ou pode abrigar-se em museus. Por isso, dedico os dois capítulos finais a propor uma visão intercultural crítica do mercado cinematográfico e deste outro mercado absolvido das suas posições injustas sob o nome de "sociedade do conhecimento".

Não se impõe, como há anos se temia, uma única cultura homogénea. Os novos riscos são a abundância dispersa e a concen­tração asfixiante. Concordo com Jean-Pierre Warnier: o problema que as sociedades contemporâneas enfrentam é mais "de explosão e dispersão das referências culturais do que de homogeneização" (Warnier, 2002, p. 108). Mas, simultaneamente, as megacorpora-

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ções tentam controlar amplas zonas desta proliferação mediante ta­rifas preferenciais, subsídios, dumpinge acordos regionais desiguais. A multiculturalidade, reconhecida no catálogo de muitos museus, de empresas editoriais, discográficas e televisivas, é administrada com um sistema afunilado que se completa em alguns poucos cen­tros do Norte. As novas estratégias de divisão do trabalho artístico e intelectual, de acumulação de capital simbólico e económico atra­vés da cultura e da comunicação concentram nos Estados Unidos, em alguns países europeus e no Japão os lucros de quase todo o planeta e a capacidade de captar e redistribuir a diversidade. Como reinventar a crítica num mundo em que a diversidade cultural é algo que se administra nas corporações, nos Estados e nas ONGs?

Poucos autores e movimentos sociais percebem as consequên­cias desta nova paisagem. George Yúdice observa que as manifesta­ções fóbicas em relação à globalização, de Seattle e Génova até Can-cún e Porto Alegre, oferecem críticas severas à desregulamentação, às privatizações, aos programas de austeridade do Banco Mundial e do FMI , aos efeitos do neoliberalismo sobre a agricultura e o meio ambiente, mas não encaram as questões culturais e comunicacio­nais, ou, quando o fazem, continuam prisioneiras do rústico "modelo" de macdonaldização do mundo. Carecem de propostas para a circula­ção democrática ou mais equitativa dos bens simbólicos num tempo em que a multiculturalidade não desaparece, mas é administrada seletivamente segundo a lógica da transnacionalização económica (Yúdice, 2002).

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Pode-se entender que os deslizamentos interculturais exitosos tenham fomentado os elogios pós-modernos do nomadismo e da fragmentação: alguns poucos atores e diretores de cinema asiáticos, europeus e latino-americanos conseguem atuar em Hollywood, músicas do Terceiro Mundo são aplaudidas no Primeiro. É possível citar alguns migrantes populares que chegam a enriquecer.

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Mas não ajuda a distinguir as lógicas diversas da intercultu­ralidade amontoar desterros, vagabundagens, migrações, tribalismos urbanos e navegações pela internet, esquecendo seu sentido social, tal como ocorre em certos livrinhos franceses e latino-americanos. Um dos seus representantes mais traduzidos, Michel Maffesoli, que já banalizara as formas contemporâneas de desintegração, reduzin-do-as a "tribalismos", agora diz que nos uniria a todos - "hippies, freaks, índios metropolitanos", judeus da diáspora, guaranis e Rolling Stones, exilados e buscadores de viagens de iniciação - uma des­preocupação dionisíaca "pelo amanhã, o gozo do momento, a aco­modação ao mundo tal como é". É preciso esquecer o que as ciências sociais e tantos testemunhos dramáticos dizem sobre a intercultu­ralidade para escrever, em 1997, que "deixa de ser válida a contra­posição entre a errante vida elitista - a Ao jet set — e a vida caracte­rística dos pobres - a da migração em busca de trabalho ou de l i ­berdade" (Maffesoli, 2004, p. 142).

Quando recuperamos esta função básica do pensamento, que é discernir no amálgama o que é distinto, enfrentamos ásperas frus­trações: a maioria dos migrantes são desvalorizados nas sociedades que escolheram com admiração; cineastas argentinos, espanhóis e mexicanos filmam em Hollywood, mas não os roteiros que trouxeram. Por outro lado, também encontramos frustrações que se combinam com resistências e conquistas: Pinochet e dezenas de torturadores argentinos foram absolvidos nos seus países, julgados na Espanha, detidos na Inglaterra ou no México e, finalmente, alguns foram pro­cessados nos lugares onde cometeram seus crimes.

O que é um lugar na mundialização? Quem fala e a partir de onde? O que significam estes desacordos entre jogos e atores, triunfos militares e fracassos político-culturais, difusão mundial e projetos criativos? O fascínio de estar em toda parte e o desassossego de não estar em nenhuma com segurança, de ser muitos e não ser ninguém mudam o debate sobre a possibilidade de ser sujeito: já aprendemos nos estudos sobre a configuração imaginária do social

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o quanto de construídos ou simulados os processos sociais e os sujeitos podem ter^Talvez esteja começando um tempo de recons­truções menos ingénuas de lugares e sujeitos, estejam aparecendo ocasiões para atuarmos como atores verossímeis, capazes de fazer pactos sociais confiáveis, com alguma duração, em interseções com­partilhadas. Por que a arte recente está redescobrindo o sujeito ou busca recriá-lo? Muitos artistas do passado e da atualidade convertem-se em ícones das principais exposições, de filmes europeus, chineses e estadunidenses, de interpretações musicais grandiosas. Os editores registram o aumento de vendas de biografias e autobiografias. As identidades pessoais ressuscitam como marcas para reativar os mer­cados ou há algo mais neste desejo de ser sujeito ou tê-lo como refe­rência?

O que pretende, sob os escombros da noção de sujeito, o en­contro ritual mais importante dos empresários do mundo, o Fórum Económico de Davos, em 2004, ao chamar um seminário de "Eu S.A."? A novidade não é a sugestão de que "cada qual deve levar sua vida como uma empresa", mas o paradoxo de re-consagrar o eu como sociedade anónima. O moderador do debate disse que, na realidade, há tempos Davos é "a Olimpíada do narcisismo". A me­táfora de Jacques Atali - "gerir a própria vida como se fosse uma carteira de títulos" - é pelo menos inquietante, uma vez que conhe­cemos a instabilidade dos títulos e astúcias inconfiáveis com que se manipulam os movimentos financeiros. Estes empresários e inte­lectuais, ao recolher os estilhaços da noção de sujeito, vão muito mais longe do que o pós-modernismo, quando os mostrou dispersos ou simulados. Parece urgente discernir aqueles que podem ser sujeitos nesta época de mercados canibais e aqueles que - indivíduos e coletivos (partidos, ONGs etc.) - somos intimados, ao mesmo tempo, a ser flexíveis e a ser alguém na selva das siglas.

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Diferentes, desiguais e desconectados? Formular os modos da interculturalidade em chave negativa é adotar o que sempre foi a

T E O R I A S D A I N T E R C U L T U R A L I D A D E .

perspectiva do pensamento crítico: o lugar da carência. Mas colocar-se na posição dos despossuídos (de integração, de recursos ou de lOnexões) ainda não é saber quem somos. Imaginar que se podia prescindir deste problema foi, ao longo do século XX, o ponto cego de muitos campesinistas, proletaristas, etnicistas ou indianistas, de feministas que suprimiam a questão da alteridade, de subalternis-tas e quase todos aqueles que acreditavam resolver o enigma da iden­tidade afirmando com fervor o lugar da diferença e da desigualda­de. Ao ficar deste lado do precipício, quase sempre se deixa que ou­tros - deste lado e daquele - construam as pontes. As teorias comu­nicacionais nos lembram que a conexão e a desconexão com os ou­tros são parte da nossa constituição como sujeitos individuais e coletivos. Portanto, o espaço inter é decisivo. Ao postulá-lo como centro da investigação e da reflexão, estas páginas buscam com­preender as razões dos fracassos políticos e participar da mobiliza­ção de recursos interculturais para construir alternativas.

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