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dilema de um anjo viviane de santana ([email protected])
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Viviane de Santana (Viviane de Santana Paulo - São Paulo), poeta, tradutora e
ensaísta, é autora dos livros, Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio
de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e
Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Em parceria
com Floriano Martins, Em silêncio (Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014) e Abismanto (poemas,
Sol Negro Edições, Natal/RN, 2012). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira -
Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e da Antología de poesía
brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Publicou em jornais e revistas especializadas
como Suplemento Literário de Minas Gerais, Inimigo Rumor, Jornal Rascunho, Poesia Sempre e
Coyote; e nas revistas mexicanas, Argos e Alforja. Participou do VIII Festival Internacional de
Poesia em Granada, Nicarágua, e do XX Festival Internacional “Noites de Poesia”de Curtea de
Arges, Romênia
dilema
de um
anjo
Berlim - 2012/2013
dilema de um anjo viviane de santana ([email protected])
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estar em casa em pleno dia letivo sem ter tirado férias
sem estar enfermo apenas estar em casa infenso
isento do peso sem dar satisfação não ter ido
entregar-se à rebeldia ouvir aquele cd antigo
deixar ser um templo o apartamento
a tranquilidade no altar do sofá
no almoço apenas uma pasta simples
e tomar aquele vinho caro reservado
para ocasiões especiais
enquanto os claros segmentos do dia se acomodam
em algum canto do recinto
resgatar o livro que ficou pela metade
procurar os rastros dos amigos
deixados na vala que as obrigações
e a falta de tempo cavam
reencontrar-se com algum deles restituído
em algum bar restaurante das dezenove horas
derramar as velhas novidades e recuperar planos
depois colher o latejo da noite com a morna escuridão
da brisa que se enrosca no quadricular da janela aberta
e no rumor abafado do reverso das luzes apagadas
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e quando alguém tenta tecer
a rede fina e cinza do contemporâneo
com os fios de chuva
que escorrem do vidro do automóvel?
conforme o vento as gotas agarram-se
na transparência com patas aderentes
de geconídeo com garras de águia
as gotas a chegar e a partir
no carro em movimento
gotas entumecidas de chuva e maduras
ou amassadas e desviadas pela velocidade
o que fazer quando as gotas se despregam
com a fraqueza do presente e a força do passado?
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cortei o pão e tirei o coração macio ainda morno
do miolo devorei-o com manteiga estava com a fome
das bagagens vazias dos quartos no escuro
do farol no arquipélago das malhas no guarda-roupa
quantas coisas morrem de fome! o estômago das notas
esperando o som os ruídos dos passos esperando o chão
a aproximação das minhas mãos das tuas os olhares
dos semáforos na madrugada desabitada
morrem de fome os campos de couve depois da colheita
a rosca d’água sem a correnteza
as ondas sem a areia as janelas sem as paisagens
e a liberdade morre sem o nosso coração
sem o sonho e o algodão do pão
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são trinta e dois ossos da mão para avançar na maçã
sentir o gosto dos desafios
aceitar cada mordida como nutrir-se de descobertas
não nascemos para viver no marasmo do paraíso
as lutas fazem parte de nossas artérias
inventamos nosso próprio céu e nosso próprio inferno
são vinte e seis ossos do pé para desfazer distâncias
e explorar territórios desconhecidos esconderijos
vivemos das andanças dança encontro reconstrução
de destruição e desinquieto dos migrantes ermos
da busca do longínquo para nos aproximarmos
de nós mesmos?
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não sei o que dizer se somos nós que comemos
eternamente o fígado das horas e atamos a liberdade
com nossas próprias tripas é sempre hora de ir,
ter outros afazeres que não são os que realmente buscamos
equilibramo-nos de cabeça para baixo
nas hastes do orvalho e da verdade é difícil se desfazer
dos anseios deixá-los secar como as escamas transparentes
dos peixes
tem gente
que vive de escapismo e adora
enfeitar as olheiras da claridade acho que nascemos
da testa da ilusão nossas asas são feitas de cílios
não é nunca uma realidade só que possuímos
há a perpétua vida onírica que inventamos
no oceano da nossa mente e as franjas das águas-vivas
não são amparadas vivemos imaginando o que teria sido
se não tivéssemos vivido o que foi vivemos o que foi
e o que teria sido longínquo fosco no fundo do outro lado
de nós mesmos temos duas vidas
uma de ferro outra de espuma
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ainda existem espantalhos?
ainda não criaram um robô automático
uma química uma manipulação genética
para espantar os pássaros?
há muito tempo que os espantalhos descobriram
que estavam do lado errado e passaram
a proteger os pássaros
ficam ali parados imóveis calados
com os braços abertos preparados
para abraçá-los
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do nada cresce a barba da pedra hirsuta como o sorriso de jesus
do nada formam-se as flores dispostas em numerosas umbelas
do nada o transvio das lufadas de vento nas plataformas de metrô
do nada o dessabor das mastigadas lentas na garfada de arroz
do nada o retrós perdido no fundo da gaveta
do nada a pressama no rosto da memória do outro lado da mesa
do nada o salitre na cor vermelha da carne meliante
como o brilho do sol na poeira pesada da cidade
é que o nada só é nada quando as palavras o repelem
e as formas esvoaçam no vasto o nada só é nada
quando as palavras ainda não o descobriram
e ainda não o cobriram com o pó amarelo de seus significados
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pensei que ser adulto bastava apenas crescer
que as coisas saberiam de mim e eu delas
não é assim
para entender a linguagem da vida precisamos decorar
cada sinônimo que brota diante do nosso olhar
das mãos dos pés descalços ou calçados de passos
para aprender o idioma das coisas precisamos
de muita vigília e da gramática das nascentes e das pontes
mais que tudo precisamos dos erros
e dói errar dói demais!
pensei que as coisas saberiam de mim e eu delas
como um cão latindo em minha direção
farejando meus pés
pensei que os adultos fossem enseada igapós e lezíria
na constância do aprender algo novo
sobrepondo-se ao antigo
na constância das transformações mas não é só isso
precisamos dos erros não daqueles de propósito
que não deixamos de evitar mas os genuínos
que nascem imperceptíveis das profundezas
das nossas relações do emaranhado delas
e nos arrastam na sua rede
estes que germinam asas transparentes
nas nossas escápulas
para depois do aprendizado
nos fazer voar
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em évora
era um muro em algum lugar no vilarejo
o muro adorando falar de fronteiras mas sob o seu linguajar
próprio daquilo que ele escondia do outro lado dele
dos joelhos raspados e arranhados das crianças
das pedras soltas sem obrigação de impedir nada dos buracos
por onde com um olho se descobria o terreno baldio inocente
brotando mato livre e flores silvestres dos passarinhos sem saber
de muro nenhum dos besouros gordos e de outros insetos invasores
que ovularam ali no interior mole de um pedaço de madeira largada
e umas florezinhas brancas vigorosas e atrevidas que sobrevoavam
por cima do muro espiavam algo além e regressavam
ao terreno abraçado pelas pedras brincando de ciranda
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na praça de marinha grande
por uma vagarosa caminhada sob a pérgula
de madeira forte e pedra madura sob o céu de glicínias
a chuva suspensa de lilases que só no outono
tocará o chão
não as flores negras e vigorosas das sombras
brotando do caminho onde o vento salgado
aspira o cheiro adocicado das axilas das manhãs
e dos abundantes fios negros dos cabelos soltos da noite
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berlin, U2
dentro do vagão entra um mendigo vendendo o jornal de rua
possui os olhos vermelhos e pesados murmura algo ininteligível
uma estranha oração? na próxima estação entram dois ciganos
um tocando acordeão o outro corneta e um menino com o copo
de plástico colhendo metal alguém não consegue mais falar ao celular
nas riscadas janelas transparentes passam os slides da cidade
um atrás do outro e os braços longos de aço dos gigantescos guindastes
o mendigo saiu sem ganhar nada a música barulhenta e desafinada
acaba
abrupta quando as portas de novo se abrem
uma moeda cai no chão e vai rolar no vão entre o trem e a plataforma
como um réptil fugindo de algum risco
não tão rápido mas com a certeza do caminho
os músicos partem e o menino atrás
tentando recuperar o perdido apenas com o olhar
também assim é o adeus
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sobre a pérgula no jardim abandonado
à margem da autoestrada
que segue para o Lago Maggiore
a autoestrada nada diz sabemos
além do ir e vir perpétuo dos pneus
no ventre do asfalto
mas as heras caindo dos arcos
e as pequenas flores brancas na parte esquerda
não conseguiam ocultar as mensagens
as heras não eram de se limitar sabemos
cresciam como os cabelos das árvores
e trepavam como as pedras na colina
mas as pequenas flores brancas nasceram
do silêncio e do abandono e estavam
tão habituadas a este tipo de liberdade
que o meu olhar lhes causou espanto
para se protegerem uniram-se
e mais se pareceram com algo que frágil
exibe ainda mais a sua beleza
do que as penas da asa quebrada de um anjo
caída na lateral de uma armação verde
depois destas lutas que os anjos travam
entre o amor e a indiferença
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a magra vírgula do vento pousa no intervalo
entre um assopro e outro no Poblenou
e o cinza na Plaça Plim
deste dia nevoento toma fôlego algumas janelas
têm os olhos fechados outras acenderam a pupila retangular
e os mais desconfiados carregam guarda-chuva portátil
para o caso D
o caso D é a situação que abrolha
fruto do acaso e atrapalha
se você não estiver preparado
não há quem não tenha sofrido o capricho do caso D
e se molhado e os sapatos encharcados
mas também os desconfiados com o guarda-chuva portátil
porque tem vento que enverga as varetas
e o guarda-chuva vira papoula
em barcelona
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passando pela estreita estrada no corpo da serra
viu da janela do carro o esqueleto enferrujado
de um caminhão
acidentado caído no precipício verde
rolou a relva quebrou as palmeiras e os mamoeiros
esmagou os jasmins o motorista virou
o pássaro branco invisível que voa sem voltar
após os anos
restou a sua morna ausência no dia ensolarado
e a ferrugínea carcaça do caminhão de longe
era um estranho arbusto imponente fosco e fulvo
misturado com o frescor verde inocente
agora sem tragédia sem desvio do destino
como uma flor soberana
destas que nascem inexplicáveis em lugares
inusitados e reclamam o seu território com afinco
em uma estrada na montanha em peruíbe
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hifens de água cheio de janelas viajantes a paisagem
cobrindo-se de cinza a direção arrasta os vagões
os trilhos puxam uma imagem a outra o desgaste
das montanhas no atrito do céu o balanço das árvores
no pêndulo do vento ínfimos rios finos no vidro
nervuras transparentes quando chove nos olhos do trem
entumecem as veias d’água no músculo da paisagem
viagem de trem a praga
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um homem sentado em um banco à margem do spree
porque a língua morna do sol desenrolou-se
neste ponto fixo os corvos negros abrem as asas
como pedaços alados de carvão ao vento
afinando o movimento do rio e as placas de gelo
navegam como mansas barcas manchas brancas
ágrafas e escorregadias
viajam sem destino sumindo sem vestígio
e o homem em algum momento
deixará de estar ali
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instante de cadeiras de pés para o alto
sobre as mesas do bar lá dentro um banheiro imundo
fedia na madrugada
ele foi embora sem ela sozinho e deparou-se com
a claridade fina da manhã ouviu o rasgo de sussurros
frescos viu os filetes de sombras que se entrelaçavam
sentiu o momento mudo do ainda não ter dado
tempo da parafernália despertar e o arrastar
preso em seus tentáculos era a hora vingativa
da tranquilidade falar um idioma intraduzível
refazer recomeços com restos de alguma
coisa anterior
garrafas quebradas copos vazios cheiro de álcool
o desacompanhado tonteia
por tudo quanto é canto o alvorecer recortado
acinzentado metálico cosmopolita
apareceu um táxi para resolver dilemas nas ruas
um pouco menos de drama nas buzinas as vias agora transitáveis
sentiu o cheiro de chuva – e veio-lhe um surto de saudade dela
que interrompeu as pálpebras pesadas
quase se fechando para deixar a cidade de fora
em são paulo
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onde deixar as mortes que eu vivi?
as fissuras nos calcanhares ainda não se abriram
nada visível como as correntezas que nunca regressam
jamais se arrependem do ir e sempre seguem adiante
famintas deste existir na desembocadura
nas gavetas guardo os pregos e as chaves junto aos papéis
que me eximem do balançar na rede de espumas
não posso deixar em cima da penha na parede da montanha
como uma sagrada urna cheia do espectro das quedas
no fundo da caixa de ferramentas que destruíram a armadura
não no guarda-roupa misturadas com as roupas usadas e pequenas
as mortes que eu vivi têm gosto de ferro e frias
um escuro caroço no miolo do pão e um nó de fios azuis de sal
agora tecem as tramas das mornas brisas e servem
de filames são como a pantomima da morte maior
que virá algum dia onde deixar as mortes que eu vivi
foram lanhos tão lanhos no meu corpo tanto contorceram-me
e mudaram meu tamanho e amadureceram-me
onde deixar as mortes que eu vivi?
que já não armam mais os embustes agonizantes
agora como a descascada pele inútil do réptil
como os flancos desfeitos da minha imagem
nos eczemas dos momentos partidos
onde deixar as mortes que eu vivi?
deixarei em mim em mim assim como não se desfaz
de mim a pele que refaço
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preciso da mentira quem não precisa?
não mintas dizendo que não precisamos
não mintas dizendo que não precisas
não mintas entre a respiração das maçãs
entre os balaústres das semanas ligeiras
entre as nervuras das folhas de sereno
somente os bichos não precisam de mentiras
as taturanas caminhando ardentes na côdea do tempo seco
os cornos do veado enroscados nos arbustos de loqman
ou as plantas não precisam de mentiras
as vitórias-régias escondendo as raízes no fundo d’água
as sementes de abóbora no ovário do meio dia
o voo das sâmaras perdendo as asas duras da cor de árvore
ou a constante de arquimedes e o irracional do número pi
mas a lata de cerveja sozinha na areia gelada da praia
o ônibus atrasado sem nunca assumir a culpa
o preço do pedágio no início da estrada esburacada
a avenida cortando a reserva florestal sem avisar os pássaros
a ponte por onde ninguém passa porque não construíram
o acesso até ali muitas coisas precisam de mentiras
o sangue negro da neve esmagada nas margens
das ruas cheias de carros
uma costela quebrada do guarda-chuva aberto
transformamos muito em mentiras e o que era antes
uma brincadeira de faz de contas virou uma massa
com glutamato uma sombra com o peso da arquitrave
caída sobre o chumaço de algodão
preciso da mentira mas desta
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que flui a água furtada nos telhados
reacende a lâmpada halógena
sobre os braços finos da escultura de bronze
faz tremer menos as mãos dos idosos na hora
em que o talher é uma queda dura no piso frio
porque ando tão sincera como a mosca presa
na fita adesiva lambuzada de mel
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o dilema de um anjo II
eu contemplava a chuva de encontro à janela quando pensei:
“cerca de dois bilhões de pessoas não têm acesso à água potável”
e eu era criança e acreditava que a luz era de todos
o vento era de todos a água era de todos a terra era de todos
as estrelas eram de todos as plantas as ervas que contém sementes
as árvores frutíferas eram de todos
no princípio Deus criou os céus e a terra
ele poderia vendê-las uma vez que é o dono
das correntezas azuis onde as nuvens navegam
do coração das montanhas que pulsa alto
dos jardins de cassiopeias do punhado de terra
escura do universo onde brotam planetas redondos
do fogo cuspido pela lapela do vento
sopro das cores na boca da luz de cada semente
de chuva caída na pele dos ladrilhos
de todas as fontes que nascem do olho da terra
mas para que tais indagações se conhecemos a resposta?
“cerca de dois bilhões de pessoas não têm acesso à água potável”
e eu era criança e acreditava que os dedos das árvores
se agarravam na terra como as raízes das espumas
nas oscilantes ondas do mar
que as tranças das águas cingiriam as escamas da morte seca
hoje não sou mais criança e o parapeito da janela
carrega uma mosca inerte
lutou tanto contra o incompreensível que caiu de cansaço
está ali tão em paz como se tivesse que recomeçar
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aproximando-se não é mais uma mosca
é um minúsculo anjo com as asas quebradas
e não sei se dorme
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o dilema de um anjo III
somente há dois dias percebi o carapanã
ele se manifestava à noite quando eu estava sentada na sala
zunia alto ao meu ouvido
mas eu não me preocupava e pensava: depois o mato
a hora da morte era adiada como se adia a sombra
em cima da casca da noite
e a conversa prolongava-se ao telefone
assuntos banais do cotidiano algum comentário
sobre o fim do mundo uma vez que o ocaso
está cada vez mais avermelhado
em pleno inverno o calor mais insuportável trazendo
unhas compridas de hades
ou sobre a solidão humana extraída das raízes das mandrágoras
o carapanã grande para a sua espécie vinha e zunia
mas não me ferroava era incômodo um inseto perto dos fios
de pensamentos e o receio de ele emaranhar-se e não conseguir
mais fugir a armadilha dos pensamentos
a teia espessa de signos prendendo-o
como a um alimento vivo ele não morreria de imediato
permaneceria zoando no meio de conclusões pueris
e dos fios das sobrancelhas grossas de fórcis
ele aproximava-se como um camicase e desaparecia
mas não parecia um ataque
porque ele vinha lento como se me observasse como se pretendesse
entender meu idioma ou como se quisesse dizer-me algo
calhou de eu estar falando com alguém invisível e ele vir
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neste momento de pólens de palavras lançados no ar mas
na terceira noite eu não falava ao telefone estava lendo acomodada
como uma larva entre as almofadas e ele veio
um só golpe com o livro e ele caiu desfalecido no branco tecido
ainda não estava morto mexia as finas pernas mas incapaz de voar
os delicados risquinhos negros indefesos na fenda do contraste
o corpo de um desenho fino com as frágeis asas amassadas
movia devagar as pernas três dias e não conseguiste me ferroar
o que querias então de mim? de repente ele pareceu-me tão solitário
sem orientação sem saída por entre os móveis inanimados
e quando eu chegava
ele via ali algo que se movia e emitia som chegou perto
todas as vezes ele chegou perto para zunir ao meu ouvido
o vazio dos caracóis caídos
nas profundezas do peito
os pastos escuros dos cavalos montados pelo medo
as fontes secas das paragens desabitadas da íris
e muito se pareceu com um mosquito
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o dilema de um anjo IV
até quando continuaremos nos debatendo presos nos fios da teia?
quando virá a hora de sermos o alimento vivo da grande fome?
movem-se ágeis as patas finas da adversidade oscilando a vida
seria fácil escapar bastaria usar a nossa condição humana
a palavra em punho o reflexo de madrepérolas
nas malhas que nos vestem os filetes de memória escorrendo da pele
a couraça das nossas moradas incrustradas nos muros dos anos
as entranhas das letras o fluxo de tinta gerando assinaturas
esferográficas
a denúncia das mesas postas no almoço a calma das batatas dentro
da terra
seria fácil escapar bastaria usar a nossa condição humana
as mãos tateando teoremas suados os corpos fundindo abismos alheios
nas camadas acumuladas da noite preenchendo precipícios
no leito do olhar
nos tropeços o sumo dos pensamentos maduros
as tortas de barro das crianças cedo
a linguagem dos números no salto do gafanhoto
a pérola do placebo derretendo debaixo da língua das nuvens
mas nos transformamos em outra coisa
algo com uma pressa infindável perturbado
sem tempo para pensar no sonho dos rios profundos
algo inquieto buscando coisas inúteis cheio de coisas inúteis
remexendo gavetas alimentando a insatisfação com restos
abundantes de rosas sem perfume
e o medíocre com bagos suculentos de uvas cheias de inseticidas
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mas nos transformamos em outra coisa
algo cego espinhoso inacabado
cheio de senhas e celulares que não para de falar e raramente
diz algo
voador de um canto ao outro sempre zunindo de um canto ao outro
e quando é tarde demais fica aí entre os fios da teia
procurando uma saída em vão
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o dilema de um anjo V
head on
a ignorância arrancou o vermelho do coração dos homens
e o transformou em uma corrida de lobos
que como anjos ápteros quadrúpedes e peludos
se lançam contra o muro de vidro
transparente o muro oferece do outro lado
uma realidade vasta natural e clara
isenta da violenta concorrência não rara
e sem entender o porquê da queda
como as moscas não descobrem
a razão da janela
e voltam a bater no vidro
os lobos repetem o suicídio
do outro lado um anjo criança para salvar os corações
tenta destruir o vidro arranhando-o
com as próprias unhas de pedras brancas
e esboroa os dedos porque dependendo da consciência
a outra realidade permanece inacessível não se alcança
como o jardim do éden ou um segredo
a cai guo-qiang
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arquipélago é um aglomerado de pessoas solitárias
vivendo no mesmo bairro
o molho de chaves não tem sabor de chave e falta sal
cáfila é quando os camelos se juntam para falar mal do deserto
panapaná poderia ser o nome de um belo guerreiro tupi
se as borboletas não tivessem furtado suas asas coloridas
e o pouso nas anteras as plêiades tinham mania de ser um nebuloso
touro azul na arena negra do céu quando passaram a ser uma comédia
e deixo de mencionar aquele grupo de poetas franceses escrínio
nunca foi um ramalhete de cartas como ouvi falar
de uma nuvem de gafanhotos e a leva de chinelos jamais levou
a lugar nenhum o rebanho de ovelhas as fieiras de pérolas
guardam uma lágrima de mar em cada uma e o mar não leva
a mal conheci uma turma de poetas que andou com um cardume
de pensamentos dias a fio sempre que perambulavam pelas alamedas
ou ficavam parados nos degraus das escadas rolantes e as palavras
se multiplicaram e se tornaram uma antologia de estrelas
cadentes no mais um grupo secreto de cientistas internacionais
procura descobrir em uma região desabitada de multidão
o coletivo do alvorecer sem saber que as crianças sonhando
em seus berços há muito descobriram
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quantas frações de instantes até o felino
abater o antílope e enfiar os dentes afiados
no pescoço macio e morno do pulsar exasperado
da fuga curta
a liberdade que era de um
passa a ser do outro que se satisfaz
com o andamento prescrito das coisas
com o manejo das mandíbulas
e o rosnar faminto da Natureza dualística
tanto cruel como generosa e sempre política
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o biólogo pensava depois de ter
examinado na floresta
as diferentes espécies de fungos
que delimitavam
seu território no interior do tronco caído
na região do âmago e do cerne
depois de ter descoberto que cada território
possuía uma distinta cor
e era como se fossem um mapa de países
o biólogo queria extrair algo disso algo que
não fosse só biologia
e concluiu que as fronteiras eram então
formadas pelo encontro
de uma coloração com a outra não pela disputa
e que se o homem fosse igual a líquen
cada território se expandiria
conforme a arte e não a guerra
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as ondas diminuíram o caminhar
carregam nos ombros o sangue negro das pedras profundas
espumas de sombras sombrias e de assombros
não se dirimem com o assopro das sirenes
enegreceram os voos dos pássaros e pesados não abrem
mais as asas a morte é uma mancha amorfa pegajosa
cheia de nácar que brilha sob os raios do sol
a mancha oleosa reflete os macabros pedaços de prismas
que nada ensinam mudos
os peixes se vestem de pântanos e engolem o fundo
da noite sem luz na superfície salgada e azul
alastra-se o gorduroso breu como uma gigantesca pata
de hades esmagando o branco e o leve das espumas
e a cara azul do céu
mancha de petróleo
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33
havia um cangaceiro
que matava gente e arrancava os olhos
ele carregava no pescoço um colar de globos oculares
a princípio achei assustador mas depois fiquei pensando
seria algo muito prático os olhos cingindo o teu pescoço
mirando tudo o que não enxergas com apenas dois olhos
somos tão cegos! a nossa cegueira é imensa
que não fazemos ideia das coisas
que não vemos não sei se o colar de olhos
teriam visto essas coisas
só porque estariam em uma posição favorável
estar em uma posição favorável não garante
sabedoria nem capacidade de ver para se enxergar
às vezes não depende somente de quem quer ver
mas também se as coisas permitirão que tu as enxergues
as coisas não se desnudam fáceis só porque tu queres vê-las
não se mostrarão exibicionistas
só porque tu precisas apreendê-las não não é assim
é necessário uma anuência inerente entre tu e elas
talvez elas tenham que te enxergar primeiro para tu poderes vê-las
de qualquer forma a maioria das pessoas mesmo com a anuência
mesmo depois de vistas continuam não enxergando nada
e continuam não percebendo que não estão enxergando nada
e o que será que o cangaceiro via com aquele colar no pescoço?
e o que eu vejo? eu que tateio com as palavras o contorno das coisas
para descobrir suas formas e essências para inventar sua imagem?
além de eu enxergar as coisas eu preciso tocá-las com as palavras
as palavras são furtivas e as coisas nem sempre são o que aparentam
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com isso surgem outras em nossos olhos
criadores de coisas e assim muitas se proliferam
e outras permanecem ocultas e o cangaceiro
nunca pensou em nada disso
a frances de pontes peebles
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a nogueira possui os tantos cérebros dentro das nozes
e todos pensam na dimensão do universo o maracujá
é cheio de estrelas negras dentro
e são comestíveis quem come estrelas negras
sonha com os olhos dos rios adormecidos
o coração das frutas não palpitam mas os morangos
vivem apaixonados
a canção das flores voa e cobre o solo
de pó de sol quando chove
a marca dos amantes adquiri o formato de vagem
e o pasto dos cavalos marinhos é o céu do mar onde cavalgam
com o peito buscando as tranças das águas vivas
as tartarugas carregam na carapaça dorsal
os escudos córneos do tempo
a ruazinha cresce na horta dos paralelepípedos
e o ruído das pedras pulam como gotas de chuva a propor
na borda do guarda-chuva escorre a baba das nuvens
os livros são a colmeia das letras dos favos extrai-se
a vida
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36
a pedra não nasce pedra
foi um dia melíflua
moveu-se como a raiz do sol
no solo como o fio de cabelo do rio
a pedra não nasce pedra
foi névoa viajou com o vento
sentiu a leveza e experimentou
a modorra a pedra não nasce pedra
foi montanha e nó foi perfume e pó
também sangue e lâmina
chama e acidente
com o tempo as pedras ficaram indiferentes
a tudo isso e gora simplesmente
dormem duras e imóveis
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com o bico dos dedos no teclado
do computador catava rápido as letras das palavras
que germinavam no acinzentado do monitor
escrevia uma destas mensagens breves abreviadas
cheias de gírias dizendo que seria bom se se
reencontrassem uma vez que o tempo carrega
os acontecimentos dentro da boleia que segue
em direção contrária mas naquele momento
nenhum dos dois sabia o quanto aquela frase
seria fria e o quão oco o tempo transformaria
o reencontro se algum dia se reencontrassem
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de repente me veio uma pressa de escrever tudo o que eu ainda
não tinha escrito uma inquietação aflição algo de sair correndo
e ligar o computador e me sentar à mesa e dedilhar no teclado
como em um piano a urgência de lá do fundo
dos escombros do poço do útero do estômago
e era com tanto afã insanidade
que também de repente com força precisão ininteligível
tudo terminou sem ao menos começar nenhuma palavra foi escrita
e permaneceu-se o momento inerte em frente ao monitor refletindo
a sombra da imagem quieta desamparada indefinida
como se fosse escrever algo
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no princípio foi o algarismo
a Natureza é feita de números não de cores e formas
a matemática rege tudo o que existe
tudo nasce de um algoritmo e se finda em um resultado
mesmo negativo irregular primário
mesmo que seja necessário criar uma nova fórmula
no princípio não era a palavra
o algarismo é a linguagem da existênci
e 1+2+ (3x4x5x6x7) – (8x9x10) + (11x12)
+13+14+15+16+17-18+19 igual o ano de hoje
em que nos encontramos passadas as
1+0+(4x5x6x7) – (8x5)+(11x12)
+15+16+17+19-1+2 noites = tu em mim
somados os minutos em que a minha pele
aderiu a tua + a liberdade de cair – sentir o chão
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jacurutu
I
eu morava em uma árvore obesa de galhos alçados
folhas de sol e de chuva de onde eu caçava as rosas negras
assopradas pelo vento nas horas escuras da minha saudade
e transformava os papilhos soltos em uma manada
de ovelhas minúsculas pastando no campo da meia noite branca
eu ocultava-me durante o dia no interior do olho ciclope
na testa da árvore e alimentava-me de minhocas azuis
que de manhã entravam pelo buraco do céu
e traziam o som da avenida larga nas costas do bairro
e dos trastes de uma escavadeira como se fossem
os trovões antigos de um trem
de grandes rodas de aço e viagens às vezes eu vestia no pescoço
o mosaico do violão e saía cantando algumas notas
serenas na finura fosca e fresca dos fios elétricos
o mar que tu me tinhas era pouco e imóvel
as ondas presas no rastilho ficavam lá no lambril do horizonte
à noite eu despertava e procurava a tua morada
com os meus olhos redondos e grandes
de quem aprendeu a respeitar o aleatório
do número seis e a repetir o refrão das aldravas
nas portas do não com os meus olhos redondos e grandes
com as minhas orelhas proeminentes ampliando o volume da busca
encontrava-te escondendo nuanças debaixo
das escamas da madrugada que só brilhavam depois de caídas
e ressecadas pelos traços das letras escritas à mão
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II
no cair do instante mais profundo com os meus pés nus
enroscados nos teus eu sentia os caminhos que percorreste
o medo de não ser amado o medo de amar demais
na ponta do cálamo para isso eu deitava-me ao teu lado
incubávamos o medo para que quebrasse a casca e voasse
eu esquecia-me dos camundongos roedores de treliças
perambulando livres no terreno desenternecido
alimentava-me de minhocas azuis e eles continuavam
remexendo o desdizer e descontinuando
movendo a mais ínfima denúncia de desentendimento
deixando-nos perplexos de solidão
e de distância lançada entre as nossas garras
eu só saía para beber a água da bica escrita nas rugas das pedras
assim nos recuperávamos do não entendido
e seguíamos com os pés descalços
o mar que tu me tinhas era pouco e se secava
eu precisava refazê-lo gota por gota na margem dos teus gestos
eu torcia para que as formigas desviassem a via da claridade
e eu pudesse permanecer mais tempo entrelaçada no teu corpo
mas elas dormiam torcia para que os morcegos desviassem a via
da claridade mas eles só queriam se empanturrar
com o vermelho das paixões secretas que também dormiam
torcia para que os camundongos desviassem a via da claridade
mas eles ruminavam outra semântica talvez eu mesmo pudesse desviar
o rumo da claridade mas eu não conseguia me desfazer de teus pés nus
e ignorar a súplica do sexo das flores
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então amanhecia e eu
tinha que partir carregando o fundo e a imensidão do mar refeito
e quase cega tropeçando nas nuvens sonolentas
enfiava-me no olho gordo da árvore descansar o corpo do entrelaço
para de novo despertar passada a meia noite branca
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na virilha entre a noite e o dia
inerte diminuído o tronco caído
descansas do meu corpo passado a limpo
do invólucro da minha mão quente
e o calor na caverna da minha boca onde amadureceste
com sabor de fruta sharon penetraste no túnel
dos meus segredos tangíveis e a rigidez da tua procura
apertada nas paredes da carne macia atingiu a intensidade
e a cadência do chegar até o suor escorrer
pelos músculos embaçados da janela fechada
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vem estar comigo nos intensos lampejos no fundo
das madrugadas na penumbra das mãos sôfregas buscando
os portos seguros ao longo das tormentas que os nossos
corpos iniciam ancorar nas orlas e explorar os interiores
úmidos sou lilith vem estar entre as minhas coxas entre a fenda
nas paredes da fuga que nos leva longe das entediantes
buscas e batalhas diárias abandone-as
os compromissos maçantes os telefonemas os emails não respondidos
as más notícias... não se preocupe com isso
vem trepar nos muros altos do prometido sentir
a redondeza do sentido os lábios calcados no ventre
do sonho e os joelhos como parte de um instrumento dobrável
vem sentir o gemer da música tremulando na pele nua
ver o ondular da noite nos olhos da cama
esqueça as senhas aqui não é
preciso senha nenhuma os segredos se revelam
em cada nó de braços e pernas entrelaçados e as velas se abrem
para receber o mastro vamos singrar as águas inquietas
do marítimo noturno
a Al Berto
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tenho tua língua dentro da minha boca
sugamos as palavras ditas no fundo
da cisterna da saliva adocicada
colhemos o amanhecer violeta
e mordemos a carne morna
do pronunciado no escuro dos olhos fechados
aqui o silêncio se faz
onde ecoa a tormenta da nossa imaginação
as bocas presas uma a outra com a força do ímpeto
da demanda do possuir tenho a tua nuca teu queixo
no molusco da minha mão o mar que deságua em nós
arrasta-nos revira-nos no interior transparente
e leva-nos à tona
onde lentamente ancoro a minha barca coralífera
na angra dos teus olhos quando se abrem
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abocanho a carne macia de teus lábios
minha língua entrelaça-se na tua
em uma trança íntima
sugo-te para que difícil nos separemos
tua boca é uma fruta suculenta
não desperdicemos o caldo
à maçã não importa o pecado
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uma vez construí a morada do teu nome
com as palhas e as estacas daquilo que eu queria
que você fosse para mim e o sopro da realidade
a destruiu com o vento forte das segundas-feiras
depois do levantar-se
outra vez construí a morada do teu nome
com a madeira do meu medo de não te agradar
e o sopro da realidade a destruiu com a perda
de mim mesmo nos espelhos das tramas nas galerias
de tinta vermelha riscando o X das respostas erradas
a última vez construí a morada do teu nome
com os tijolos da minha coragem e a argamassa
do aprendizado escrito a giz na lousa do passado
mostrando as decepções moídas servindo de rípios
e o sopro da realidade bateu as páginas das portas
e esvoaçou a pele das janelas
três vezes construí a morada do teu nome
para enfim te ver isento do envoltório
de papel de seda que embrulha os presentes caros
e me revelar sem a casca
para que o sopro da realidade somente faça
o moinho girar
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minhas pernas não sabem o que dizer no caminhar da História
talvez nunca soubessem diante dos nós da convivência
diante das guerras da exploração ou do veneno
cuspido na boca do outro diante das brigas hereditárias
da concorrência desleal das papeladas das riquezas furtadas
eu ainda não tinha nascido quando muita História aconteceu
carrego a minha própria dentro da minha cidade e casa
dentro do meu corpo e do meu pensamento no meu crescimento
mas nas vigas do passado o presente se sustenta
sei que me cansa ter que levantar as palavras na vertical
consertar as estacas na areia
sei que não se pode confiar no horizonte
na reta do fio de prumo mas na soma da violeta
nas margens das gotas de chuva carregando os limites do céu
e para não me minguar nos escuros do mundo
semeio o peso leve de tuas mãos na paz da minha pele
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um punhado de neve sobre o negro da seda noturna
para escrever com
o alfabeto de cristais das nuvens
diz silêncio engole flocos de palavras
e páginas em branco buscando os traços
do cinza que os reflexos germinam
nunca se viu um floco de neve
com quatro cinco ou oito lados não existem
possuem seis ou doze
nunca se pode juntar todas as letras da neve
e esculpir a frase
como o carinho branco da palma da mão
porque a noite não espera
com as sombras do ad meridiem é tecida a rede
de fótons no respirar da janela quando abrires a manhã
quando adiarmos as horas maiores e rápidas
após termo-nos deitado no interior da vagem do inverno
após as promessas que só os amantes mentem
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akantha
nenhum adeus é suficiente
para fazer-me esquecer-te
é da luz que nascem as sombras
e brilham lançadas em algum lugar
próximas da matriz
formas longas
que dilatam o que já existe
como a outra metade
nenhuma escuridão amedronta-me
nenhuma luz é tão forte a ponto de cegar-me
continuarei plantando
flores no jardim
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o Nada tem cor branca
ele é perfeitamente imaculado e branco
como uma tinta corretor como o cal na parede
o Nada é branco silencioso inodoro e está em muitos lugares
os quais nunca imaginamos na expressão de alguém
no jasmim de um vaso na carta de um remetente
na unha do dedo na côdea de uma árvore
pendurado na gola da tua camisa
misturado com o mingau dentro do copo de leite
no lençol da cama
no interior do coco no voo da gaivota
em cima da mesa ao lado dos papéis
ao lado do mamilo na boca da noite muda
na extremidade dos cadarços na tua voz sem fome
o Nada está em muitos lugares os quais não imaginamos
pode ser uma manchinha de nada como uma linha escapada
imperceptível
vivemos sempre com o Nada fazendo parte de nós
e de nosso cotidiano
fazendo parte das pessoas a nossa volta como se fosse nada
tem aqueles que o reconhecem são raros
e assustam-se sentem o medo ameno e fundo
entrando dentro deles lento como uma raiz arrancada
aqueles que reconhecem o Nada vivem cheios de buracos
porque cada vez que o reconhecem
alguma coisa é extirpada de dentro deles
e precisam replantar são pessoas que vivem engolindo sementes
para não serem engolidas pelo Nada
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repensar os cálculos dos caules das ampolas
conforme a contabilidade da luz
e discutir o projeto de construção janelas de vidro duplo
armação de madeira aço inoxidável pedras rochosas mas há
os projetos outros que emergem dos papéis arrancando
ninhos de passarinhos em extinção passando por cima
de folhagens inclassificáveis e nascente de cultura rara
além das espécies de sapos tão ínfimos
que ainda temos medo de descobri-los
chefe! muitas coisas estão assim: prestes a deixar de ser
também as corolas das antigas palavras se foram
do latim vulgar
por exemplo
mas entenda que se as coisas que vivem forem
assim destruídas
também nós...
no meio da página virada e interrompida
no meio do salto do sapo inclassificado
seremos sombras amorfas achatadas no breu do piche
sob as rodas da tecnologia e não foi para isso que me lancei
na planície do contemporâneo foi para saber que é possível
ser feliz com sete gotas cheias de chuva
caídas na raiz e ainda criar sementes
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lenta e imperceptível é a coreografia das dunas
fazendo par com o vento mas é de se desconfiar
não existirá
mais nada com esta rapidez também a das mãos dos amantes
flutuando nas ondulações dos corpos após o orgasmo
do ruminar das conversas até a amizade brotar da saliva
e da seiva dos gestos
ou a das pálpebras dos velhos arqueadas
no sestear das tardes
nada com esta rapidez de tão lentas elas somem
como o marulhar das letras escritas à mão
em um pedaço de papel indo buscar-te
é outra a velocidade das nuvens outros os espólios
despejados sobre a mesa agora do computador
as feras das horas vagas estão amansadas
pelos novos softwares
estamos arraigados em frente à tela as raízes crescem
profundas junto ao pé de aço da cadeira giratória
estamos submersos na realidade intangível das imagens eletrônicas
inúmeras mensagens enviadas a diversos destinatários
e as fotografias digitais nos sorriem no monitor
são a essência dos contatos no mais há mar à distância
e não aprender como ser outro menos virtual
mas farei de tudo para ensinar-te a colher
os algarismos entre os fios
das manhãs e a alfazema de uma carta em papel
o caminhar da tua caligrafia
nas linhas invisíveis do tempo
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elas conversam sob a sombra de uma árvore
e tomam guaraná gelada
ao fundo o pão de açúcar
parece um ovo de dinossauro
ou de dragão esverdeado com barbas de sol quente
e hálito abafado não sei! um homem na ponta de um banco
observa qual das duas teria os lábios mais rosados
e ninguém passa vendendo
sorvete de milho verde nem pé de moleque
as duas mulheres conversam sob a sombra da árvore
e o ovo não chocou até hoje não chocou
sobre uma pintura de georgina de albuquerque
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é fácil não saber o nome das coisas
difícil é permanecer sem saber porque você precisa do nome delas
algumas coisas parecem não ter nomes de tão raras que são
outras estão incrustadas no fundo do nosso cotidiano
que esquecemos os seus nomes ou nunca
preocupamo-nos em saber relembrar
o descobridor dos nomes das coisas viaja muito sem sair do lugar
busca os nomes das coisas nos confins mais longínquos
e desabitados e traz os nomes enfileirados dentro de um livro
porque há coisas que parecem não ter nomes
surgem de repente
e logo voam mas o descobridor dos nomes das coisas
arma a tocaia no meio dos significados e pronto
é fácil não saber os nomes das coisas
difícil é permanecer sem saber
porque necessitamos dos nomes das coisas para preencher
o buraco nas paredes sem os nomes das coisas
entra vento dá frio entra bicho venenoso
agradeço o descobridor dos nomes das coisas
ele faz crescer as minhas janelas e aumentar a minha morada
quanto mais nomes das coisas eu possuo mais a vivência se alarga
sentir pode ser pensar sem os nomes das coisas mas pensar é sentir
os nomes das coisas proliferando-se aumentando o mundo
guardo os nomes das coisas dentro do meu dizer
e dentro do dizer do meu escrever
no coração já estão
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como a lâmpada piscando feito luz
sem fôlego igual peixe sem água
morrendo sem morrer vivendo sem viver
forte sem forças insistindo nos últimos instantes
acendendo e apagando
é uma questão de contato o esbarro
do ombro no ombro de passagem
da mão na mão alheia um olhar atravessando
reversos algumas palavras mesmo sem querer
uma voz suave na hora do chão
mas não é uma questão do momento
em que é tudo meio fio
um ir sem ir um ficar sem ficar
um ser triste sem ser triste
um ser feliz sem ser feliz
e dura dura o tempo de não nos assustarmos
o escuro é curto a claridade é curta
até a lâmpada ser trocada
quando chega o escuro maior
e de novo a claridade
na hora em que a inventamos
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as coisas já despertam por si só, mas dormimos e fingimos que sonhamos.
as coisas já despertam por si só, mas sofremos com os pesadelos que
inventamos
as coisas já despertam por si só, mas lutamos para nos mantermos
acordados cegos
os sonhos são dispersos pela ‘trápala’ e pela indelével inutilidade
das coisas
— por que somos incapazes de entender o seu verdadeiro sentido?
com testa de touro esperamos debruçados na janela
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um quintal antigo na unha do tempo
e na boca do portão cheio de ninguém passar por ele
a couraça de um fusca abandonado as patas enterradas
na terra ressecada como a tartaruga no inerte
do esquecido modelada pelas garras das tardes
acumuladas cuspindo dia e mais dias de sol e chuva
vento e silêncio ferrugem e velhice
era a iconografia de um poema em frente à casa vazia
largado no fundo da rua no canto direito
de um ínfimo deserto orgulhoso de sua solidão
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coloco o antebraço para fora
da janela do carro e arranho o vento
morno com as unhas macias o sol entra
pela janela e a estrada está livre
margeada pelas montanhas imaturas
a melodia sonolenta do verão é casual
a espinha da estrada segue reta
e com algumas curvas a mão flutua como a asa
de um pássaro ou a mão de um regente
a mão que não segura a batuta
na velocidade o vento é liso
mas não são os fios de cabelo
da correnteza sincera da água
segue-se o caminho do mar
aonde os feriados vão desembocar
fica para trás o trabalho
sorrindo o sorriso de quem sabe
que te possui em suas mãos
ostreário dentro do escritório
melhor alcançar o balneário
deitar na esteira ouvir o undíssono
nas veias azuis dos dias e ter a sorte
de não testemunhar aquelas nuvens
que chegam e ficam
como um tio em cima de um não
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pobre dos idiomas
isentos de acentos
faltam-lhes a montanha
o telhado a onda a antena
faltam-lhes as nuvens a lua o sol
as estrelas os riscos de cometas
faltam-lhes algo mais
algo que flutue sobre as letras
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escrevi um poema
e com o passar dos anos modifiquei-o
modifiquei-o tanto
que nada restou ele se desfez
com naturalidade como se nunca tivesse
sido escrito mas lembro-me de todos
os seus versos as palavras inseridas e excluídas
ele está dentro de mim inteiro e fragmentado
completo e inacabado e vive
recriando-me cada vez que me recordo
de seus vestígios
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era tarde quando o relógio tossiu a hora perdida
e a morte do sol possuiu algo de vermelho mesclado a roxo
não houve o encontro e a espera trouxe um movimento impróprio
de final de tarde... uma nesga de paixão amarrada na ponta
do céu ou foi o espelho de um edifício
e em seu interior o teu semblante de terno e gravata estampado
na transparência do aquário vertical
um plâncton errante e livre
a liberdade pode também significar ermo
quando demais indefinida e solta
atada à dependência ao contorno
de tudo existente tudo vive de sua linha fronteiriça
onde o espaço alheio começa e o celular toca
não es tu não te reencontrei
e as calçadas movimentam o dia esbarrando em mim
os passantes circulam pra lá e pra cá rapidinhos
germinando coisas a cada oito horas
carregam sacolas de compras nas mãos um aflorado de objetos
e tecidos coloridos lá dentro
nas calçadas as vozes aladas bolhas débeis de sabão
irrompem incompletas refletem frágeis imagens na cara da mesmice
na esquina a mãe segura a mão da criança
no momento da vigilância no momento da posse
no instante do risco e de um semáforo vermelho
eu regresso lento ao interior de mim
passando pelo simulado silêncio das ruas
que surge no instante exato entre o claro e o escuro
—a contraverga da tarde e da noite
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um silêncio tão inocente como culpado
que se expande ligeiro
e se finda rápido
em mim preciso do teu esbarro e do toque do mundo à minha volta
guardo os fósseis das tuas palavras nos limbos
das minhas mãos
a cada despertar dos gestos revividos renovo a promessa
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Índice
1. estar em casa, 02
2. e quando alguém tentar tecer, 03
3. o algodão do pão, 04
4. são trinta e dois, 5
5. uma de ferro outra de espuma, 06
6. ainda existem espantalhos?, 07
7. a barba da pedra, 08
8. as coisas saberiam de mim e eu delas, 09
9. em Évora, 10
10. na praça de Marinha Grande, 11
11. Berlin, U2, 12
12. flores brancas, 13
13. a magra vírgula, 14
14. flor soberana, 15
15. hifens de água, 16
16. ágrafas e escorregadias, 17
17. por tudo quanto é canto, 18
18. onde deixar as mortes que eu vivi, 19
19. preciso da mentira, 20
20. o dilema de um anjo II, 22
21. o dilema de um anjo III, 24
22. o dilema de um anjo IV, 26
23. o dilema de um anjo V, 28
24. o coletivo de auroras, 29
25. Natureza dualística, 30
26. o biólogo, 31
27. mancha de petróleo, 32
28. um cangaceiro, 33
29. a nogueira, 35
30. a pedra não nasce pedra, 36
31. com o bico, 37
32. escrever algo, 38
33. matemática, 39
34. Jacurutu, 40
35. na virilha, 43
36. . vem estar comigo, 44
37. tenho, 45
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38. à maçã não importa o pecado, 46
39. uma vez, 47
40. semeio o peso leve de tuas mãos, 48
41. o alfabeto de cristais das nuvens, 49
42. Akantha, 50
43. uma manchinha de nada, 51
44. repensar os cálculos, 52
45. lenta e, 53
46. elas, 54
47. é fácil, 55
48. sem fôlego, 56
49. testa de touro, 57
50. um fusca abandonado, 58
51. como um tio em cima de um não, 59
52. algo que flutue sobre as letras, 60
53. vestígios, 61
54. plâncton, 62
Viviane de Santana Paulo