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GRADUAÇÃO 2013.1 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL PRODUZIDO POR CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA, RAFAEL VIOLA E DANILO DONEDA

Direito Das Obrigacoes e Responsabilidade Civil 2013-1

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GRADUAÇÃO 2013.1

DIREITO DAS OBRIGAÇÕESE RESPONSABILIDADE CIVIL

PRODU ZIDO POR CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA,

RAFAEL VIOLA E DANILO DONEDA

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SumárioDireito das Obrigações e Responsabilidade Civil

PROGRAMA DA DISCIPLINA: .................................................................................................................................. 3

PARTE I: DIREITO DAS OBRIGAÇÕES ......................................................................................................................... 4

AULA 2: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES ................................................................................ 4

AULA 3: CONTORNOS DA BOA-FÉ OBJETIVA .............................................................................................................. 10

AULA 4: A RELAÇÃO OBRIGACIONAL ....................................................................................................................... 16

AULA 5: AS OBRIGAÇÕES NATURAIS E AS OBRIGAÇÕES PROPTER REM ............................................................................ 22

AULA 6: CLASSIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES: OBRIGAÇÕES DE DAR, FAZER E NÃO-FAZER ...................................................... 28

AULA 7: CLASSIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES: OBRIGAÇÕES INDIVISÍVEIS, SOLIDÁRIAS E ALTERNATIVAS ................................... 36

AULA 8: PAGAMENTO: LUGAR, TEMPO E PROVA ........................................................................................................ 50

AULA 9: FORMAS ESPECIAIS DE PAGAMENTO ........................................................................................................... 58

AULA 10: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA E PAGAMENTO INDEVIDO ................................................................................ 80

AULA 11: INADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES ........................................................................................................ 89

AULA 12: CLÁUSULA PENAL E JUROS ...................................................................................................................... 99

AULA 13: TRANSMISSÃO DAS OBRIGAÇÕES ............................................................................................................ 106

PARTE 2 RESPONSABILIDADE CIVIL ..................................................................................................................... 113

AULA 14. ESTRUTURA E FUNÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVIL ................................................................................. 113

AULA 14. DANO MATERIAL E DANO MORAL ............................................................................................................ 121

AULA 16. CULPA E RESPONSABILIDADE SUBJETIVA ................................................................................................. 130

AULA 17. RISCO E RESPONSABILIDADE OBJETIVA .................................................................................................... 136

AULA 19. NEXO CAUSAL .................................................................................................................................... 141

AULA 20. EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE CIVIL ............................................................................................. 146

AULA 21. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO DE TERCEIRO ....................................................................................... 154

AULA 10. ABUSO DO DIREITO ............................................................................................................................. 159

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PROGRAMA DA DISCIPLINA:

Aula 1: Apresentação do curso

Parte I: Direito das ObrigaçõesAula 2: A Relação ObrigacionalAula 3 Princípios fundamentais do direito das obrigaçõesAula 4 Contornos da boa-fé objetivaAula 5: As Obrigações Naturais e as Obrigações Propter RemAula 6: Classifi cação das Obrigações: Obrigações de Dar, Fazer e Não-FazerAula 7: Classifi cação das Obrigações: Obrigações Indivisíveis, Solidárias

e AlternativasAula 8: Pagamento: Lugar, Tempo e ProvaAula 9: Formas Especiais de PagamentoAula 10: Enriquecimento sem Causa e Pagamento IndevidoAula 11: Inadimplemento das ObrigaçõesAula 12: Cláusula Penal e JurosAula 13: Transmissão das Obrigações

Parte II: Responsabilidade CivilAula 14: Estrutura e funções da responsabilidade civilAula 15 Dano material e dano moralAula 16 Culpa e Responsabilidade subjetivaAula 17 Risco e Responsabilidade objetivaAula 18 DanoAula 19 Nexo causalAula 20 Excludentes de responsabilidade civilAula 21 Responsabilidade Civil por ato de terceiroAula 22 Abuso do Direito

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PARTE I: DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

AULA 2: PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Autonomia da Vontade e Função Social das Obrigações e do Contrato

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Tepedino, Gustavo. “As relações de consumo e a nova teoria contratual”, in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 217-ss.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Martins-Costa, Judith. “Refl exões sobre o princípio da função social dos contratos”, in Revista Direito GV nº 01 (maio/2005); pp. 41/66. Salomão Filho, Calixto. “Função social do contrato: primeiras anotações”, in Revista de Direito Mercantil nº 132; pp. 07/24. Bueno de Godoy, Cláudio Luiz. Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 110/130.

1. ROTEIRO DE AULA:

Ao se iniciar o estudo da teoria e prática das obrigações, é fundamental ter-se em mente a transição pela qual atravessa esse específi co e importante campo do Direito Civil. Tradicionalmente vinculada à soberania da vontade individual (autonomia da vontade), insculpida nos preceitos que tutelam a liberdade contratual, a disciplina dos contratos atualmente vê-se permeada por uma série de interesses que ultrapassam a vontade do particular, gerando um debate sobre os limites da intervenção de dispositivos de ordem pública na regulação das relações contratuais.

Pode-se, em linhas gerais, dizer que os princípios tradicionais, que funda-mentaram a construção clássica da teoria dos contratos são os seguintes: (i) autonomia da vontade; (ii) força obrigatória; e (iii) relatividade. Esses prin-cípios encontram hoje diversas áreas de fl exibilização geradas pela ascensão de novos princípios contratuais, como (iv) a função social do contrato; (v) a boa-fé objetiva; e (vi) o equilibrio econômico-fi nanceiro da relação contratual.

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Todos os seis princípios acima mencionados serão trabalhados nas aulas a seguir. Na presente aula será conferida atenção especial aos princípios da autonomia da vontade e da chamada função social do contrato.

A autonomia privada pode ser entendida, segundo lição de Díez-Picaso e Gullón como “o poder de se auto-ditar a lei ou preceito, o poder de governar-se a si próprio.” Conforme complementam os mesmos autores:

“Poder-se-ia também defi ni-la como um poder de governo da própria es-fera jurídica, e como essa é formada por relações jurídicas, que são a causa da realização de interesses, a autonomia privada pode igualmente conceituar-se como o poder da pessoa de desregulamentar e ordenar as relações jurídicas nas quais é, ou há de ser, parte.”1

O estudo da autonomia privada assume, na seara contratual, a forma da tutela da liberdade contratual. Nesse particular é importante não confundir “liberdade de contratar” com “liberdade contratual”. A primeira relaciona-se com o momento formativo da relação contratual, isto é, com o grau de liber-dade envolvida na decisão sobre concluir ou não um contrato. Já a segunda diz respeito ao conteúdo do contrato.

Segundo Francesco Messineo, existem quatro signifi cados para liberdade contratual: (i) o fato de que nenhuma parte pode impor unilateralmente à outra o conteúdo do contrato, e que esse deve ser o resultado de livre debate entre as partes; (ii) liberdade de negociação, no sentido de que o objeto do contrato é livre, salvo bens indisponíveis e exceções previstas no ordenamen-to; (iii) o poder de derrogar as normas dispositivas ou supletivas; e (iv) o fato de que, em algumas matérias, é admitida a auto-disciplina, ou seja, a regula-ção estabelecida pelas partes interessadas.2

Os alicerces sobre os quais se funda a liberdade de contratar podem ser en-contrados nos princípios elaborados pela Escola do Direito Natural, respon-sável por conferir importância crescente à contratualidade, a partir do século XVI, sob a infl uência do conceito de autonomia da vontade desenvolvido pelo Humanismo. O primado da vontade individual é consolidado no século XVII, quando a própria existência da sociedade passa a ser fundamentada no contrato. Essa tendência é explicita por John Gilissen:

“A Idade Média não reconhecia o primado da vontade individual; esta não era respeitável senão nos limites da fé, da moral e do bem co-mum. Os interesses da comunidade familiar, religiosa ou econômica, ultrapassam os dos indivíduos que a compõem. (...) É à Escola Jusnatu-ralista que a autonomia da vontade deve a sua autoridade, o seu prima-do. Mas foi sobretudo o jurista holandês Hugo Grócio que desenvolveu a nova teoria: a vontade é soberana; o respeito da palavra dada é uma regra de direito natural; pacta sunt servanda é um princípio que deve ser aplicado não apenas entre os indivíduos, mas mesmo entre as nações”.3

1 Luis Diéz-Picaso e Antonio Gullón. Sis-

tema de derecho civil. Madrid: Editorial

Tecnos, S.A., 1994, v. 1, p. 371.

2 Francesco Messineo. Il contratto in ge-

nere. Pádua: CEDAM, 1973, pp. 43 e 44.

3 John Gilissen. Introdução histórica ao

direito. 2a ed. Lisboa: Fundação Calous-

te Gulbenkian, 1995, pp. 738 e 739.

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Após a consagração dos ideais da Revolução Francesa e a abolição dos pri-vilégios estamentais e corporativos, a promulgação do Código Napoleão em 1804 veio a positivar explicitamente o primado da autonomia da vontade, na máxima de que “o contrato faz lei entre as partes” (art. 1.134), a qual será traduzida na célebre frase de Fouillée: “quem diz contratual diz justo”.

A conseqüência imediata desse cenário é a crescente importância conferi-da pela doutrina contratualista do século XIX para a análise da manifestação da vontade e seus vícios. Com a primazia da autonomia da vontade, interpre-tar o contrato tornou-se um exercício de descobrimento das reais intenções das partes e das formas pelas quais elas foram verbalizadas. Trata-se de uma verdadeira “mística da vontade”.

As restrições à liberdade contratual começam a surgir com a mudança do cenário histórico, assegurando-se, inicialmente, maior igualdade de oportu-nidades no mercado, em termos da proibição de discriminação em razão de gênero, raça, etnia. Posteriormente, razões sociais passaram a determinar certas discriminações positivas, como o tratamento mais protetivo às partes contratualmente mais vulneráveis (tais como o consumidor, o idoso, o tra-balhador).

Portanto, razões de justiça e equidade vieram a determinar a intervenção do Estado sobre as relações contratuais, em um movimento que fi cou conhe-cido como dirigismo contratual. Trata-se da inserção, no ordenamento jurí-dico, de uma série de normas cogentes, a delimitar os assuntos sobre os quais se pode contratar, em que limites se pode dispor de determinados direitos, e que cláusulas serão consideradas intrinsecamente abusivas e, por conseguin-te, nulas.

Segundo identifi ca Eros Roberto Grau:“A mudança de perspectiva sobre a compreensão da autonomia da vonta-

de é, portanto, profunda: deixa-se de considerar o indivíduo como senhor absoluto da sua vontade, para compreendê-lo como sujeito autorizado pelo ordenamento a praticar determinados atos, nos exatos limites da autorização concedida.”4

O mesmo diagnóstico dessa fase de transição é realizado por Gustavo Te-pedino ao afi rmar que:

“Com o Estado intervencionista delineado pela Constituição de 1988 teremos, então, a presença do Poder Público interferindo nas re-lações contratuais, defi nindo limites, diminuindo os riscos do insuces-so e protegendo camadas da população que, mercê daquela igualdade aparente e formal, fi cavam à margem de todo o processo de desenvol-vimento econômico, em situação de ostensiva desvantagem”.5

4 Eros Roberto Grau. “Um novo paradig-

ma dos contratos”. In Revista Trimestral

de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma,

v. 5, jan/mar 2001, p. 78.

5 Gustavo Tepedino. Temas de Direito

Civil. 2a edição. Rio de Janeiro: Renovar,

2001, p. 204.

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Todavia, a fl exibilização da autonomia da vontade a preceitos contidos na legislação não representa uma completa anulação desse princípio nas relações contratuais. Muito ao reverso, a autonomia da vontade, e, mais especifi ca-mente, a liberdade contratual, permanecem como princípio, e sua derivação respectivamente, a reger os vínculos contratuais, agora atrelada à função so-cial do contrato, consoante o disposto no art. 421:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limi-tes da função social do contrato.

Uma constatação de que a autonomia da vontade ainda desempenha papel de destaque na formação dos contratos pode ser encontrado no art. 425 do Código Civil, o qual determina que as partes poderão elaborar contratos atí-picos, ou seja, contratos que não seguem os modelos de contrato tipifi cados na legislação:

Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as nor-mas gerais fi xadas neste Código.

A dinâmica existente entre autonomia da vontade e função social pode ser percebida em alguns exemplos retirados da prática dos contratos de locação. Nesse sentido, vale investigar os limites do direito de retomada do imóvel por parte do locador para uso próprio. A lei de locações (Lei nº 8245/91) prevê, no seu art. 52, §1º, que o locador, salvo se remunerar o locatário pelo fundo de comércio, não poderá exercer o mesmo ramo de atividade desempenhado então pelo locatário. É a redação do artigo:

“Art. 52. O locador não estará obrigado a renovar o contrato se: (...)II o imóvel vier a ser utilizado por ele próprio ou para transferência

de fundo de comércio existente há mais de um ano, sendo detentor da maioria do capital o locador, seu cônjuge, ascendente ou descendente.

§1º Na hipótese do inciso II, o imóvel não poderá ser destinado ao uso do mesmo ramo do locatário, salvo se a locação também envolvia o fundo de comércio, com as instalações e pertences”.

Ao interpretar o referido artigo, Fábio Ulhoa Coelho afi rma que, em tela, está-se diante de um confl ito entre o direito de inerência ao ponto do locatá-rio e o direito de propriedade do locador. Conforme expressa o autor:

“Quando o direito de propriedade do locador entra em confl ito com o direito de inerência a ponto do locatário, está em oposição uma sim-ples oposição de interesses privados, individuais.”6

6 Fábio Ulhoa Coelho. Curso de Direito

Comercial, v. I. São Paulo, Saraiva,

4ªed., 2000; p. 103.

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Complementa então o autor afi rmando que a restrição ao direito de reto-mada, constante do art. 52 seria inconstitucional, pois imporia restrições ao direito de propriedade.

Essa é justamente a espécie de situação em que a ampla autonomia da vontade cede espaço para mandamentos constantes da lei, impondo a pre-servação de determinados interesses. Ao afi rmar que o dispositivo que veda o restabelecimento do locador no negócio desenvolvido pelo locatário, o legis-lador não confronta o direito de propriedade, mas o funcionaliza. Nessa dire-ção, o artigo tutela não apenas a função social da propriedade, mas também a função social do contrato de locação, que se transforma em incentivo para que locatários desenvolvam cada vez melhores negócios, seguros de que não sofrerão a retomada do imóvel sob o argumento de uso próprio para que o locador venha a se aproveitar o trabalho realizado no ponto.

Cláusulas de não restabelecimento, ou cláusulas de não concorrência, atu-almente desempenham importante papel na confi guração dos limites da au-tonomia da vontade nos contratos. A cláusula de não-concorrência pode ser decorrência natural da venda de um negócio, principalmente nos casos em que seja necessário assegurar ao comprador as condições necessárias para que este usufrua integralmente dos benefícios diretos e indiretos da aquisição. A referida cláusula, todavia, deve ser razoavelmente delimitada, no tempo, no espaço e no setor relevante.

O próprio código civil estabelece que, salvo estipulação em contrário, na aquisição de estabelecimentos empresariais o alienante não poderá concorrer com o comprador pelo prazo de cinco anos. Essa é a redação do art. 1147 do Código Civil:

Art. 1147. Não havendo autorização expressa, o alienante do esta-belecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos 5 (cinco) anos subseqüentes á transferência.”

Ainda na dinâmica dos estabelecimentos empresariais, e mais especifi ca-mente nos shopping centers, as cláusulas de não concorrência assumem a feição de cláusulas de raio, sendo comum que no contrato de locação com a empresa que administra o shopping center conste uma cláusula que veda a abertura de estabelecimento idêntico ao que o lojista explora no shopping por uma certa distância especifi cada no contrato.

2. CASO GERADOR:

A administradora do Shopping Iguatemi, localizado na cidade de Porto Alegre, tem fi gurado na imprensa por conta de um litígio instaurado com a

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cadeia de farmácias Panvel. Segundo consta das notícias veiculadas, ela teria ingressado com ação de despejo contra a empresa que explora a farmácia Pan-vel localiza no shopping por conta da abertura de uma outra farmácia Panvel no shopping Bourbon Country, construído posteriormente e praticamente vizinho do terreno onde se localiza o shopping Iguatemi.

Alega a administradora do Shopping Iguatemi que a abertura de uma far-mácia Panvel no shopping vizinho representaria violação da cláusula de raio estabelecida no contrato de locação. Vale ressaltar que no shopping Bourbon Country também foram abertas lojas das redes O Boticário e McDonalds.

Se você fosse o juiz dessa ação judicial, como seria a sua decisão? Fundamente.

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AULA 3: CONTORNOS DA BOA-FÉ OBJETIVA

EMENTÁRIO DE TEMAS:

As três funções da boa-fé objetiva — Os deveres anexos de conduta

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Tepedino, Gustavo e Schreiber, Anderson. “A Boa-Fé Objetiva no Có-digo de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil”, in Gustavo Tepedino (org.) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 29/44.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Negreiros, Teresa. Teoria do Contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 115/153. Azevedo, Antonio Junqueira de. “Insufi ciências, defi ciências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 148/158.

1. ROTEIRO DE AULA:

A boa-fé tradicionalmente fi gura como elemento dos estudos jurídicos quando se deve investigar se o indivíduo possui ou não ciência sobre uma determinada condição, como, por exemplo, se o individuo conhece, ou não, um vício que macula a sua posse sobre determinado terreno. Essa perspectiva da boa-fé convencionou-se denominar boa-fé subjetiva.

Existe, todavia, uma outra forma de atuação da boa-fé no direito brasilei-ro, denominada boa-fé objetiva, a qual foge de qualquer ilação sobre um es-tado de espírito do agente para se fi xar em uma análise voltada para critérios estritamente objetivos.

As três funções da boa-fé objetivaÉ comum delimitar-se três funções típicas desempenhadas pela boa-fé ob-

jetiva no direito brasileiro. Sendo assim, pode-se defi nir a função tríplice da boa-fé objetiva da seguinte forma:

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A boa-fé objetiva desempenha inicialmente um papel de critério para a interpretação da declaração da vontade nos negócios jurídicos. Essa função é prevista no art. 113 do novo Código Civil:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

Esse dispositivo ganha relevo ao indicar que a primeira função da boa-fé objetiva é dirigir a interpretação do juiz ou árbitro relativamente ao negócio celebrado, impedindo que o contrato seja interpretado de forma a atingir fi nalidade oposta àquela que se deveria lici tamente esperar.

A boa-fé objetiva atua ainda como forma de valorar o abuso no exercício dos direitos subjetivos, conforme consta do art. 187 do Código Civil:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fi m econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

E, por fi m, a boa-fé objetiva é, ainda, norma de conduta imposta aos con-tratantes, segundo o disposto no art. 422 do Código Civil:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclu-são do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

A função desempenhada pela boa-fé objetiva a partir do dispositivo no art. 422 é, sem dúvida, a sua atuação mais comentada pela doutrina e da qual mais se vale a jurisprudência dos tribunais nacionais.

Os deveres anexos de condutaO motivo pelo qual a terceira função da boa-fé objetiva recebeu tamanho

destaque deriva justamente do seu próprio conteúdo: impor às partes contra-tantes deveres objetivos de conduta, que não necessariamente precisam cons-tar do instrumento contratual para que possam ser cobrados e cumpridos. Tratam-se dos chamados deveres secundários, ou anexos, aos quais todas as partes de um negócio devem manter estrita observância.

Essa caracterização da boa-fé objetiva como a disposição de deveres de conduta que as partes devem guardar difere frontalmente daquela concepção clássica de boa-fé subjetiva, ligada a um estado psicológico do agente.

Os deveres secundários impostos pelo art. 422 foram gradativamente sendo construídos pela doutrina e pela jurisprudência, podendo-se mesmo falar em qua-tro deveres básicos: (i) dever de informação e esclarecimento; (ii) dever de coope-ração e lealdade; (iii) deveres de proteção e cuidado; (iv) dever de segredo ou sigilo.

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Todavia, diversas derivações podem surgir desses quatro deveres básicos, como bem explicita Judith Martins-Costa, os deveres secundários podem abranger um vasto leque de condutas que deverão ser observadas pelas partes, como, por exemplo:

“a) os deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de bem acon-dicionar o objeto deixado em depósito; b) os deveres de aviso e esclare-cimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passível de escolha para a satisfação de seu desideratum, o do consultor fi nanceiro de avisar a contraparte sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer ao paciente sobre a relação custo/benefício do tratamento escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pré-contratual, o do sujeito que entra em negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da decla-ração negocial; c) os deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de consumo, seja por expressa disposi-ção legal (CDC, arts. 12, in fi ne, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os deveres de colaboração e cooperação, como o de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela ne-gativa, o de não difi cultar o pagamento, por parte do devedor; f ) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contra-parte, como, v.g., o dever do proprietário de uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prédio, a fi m de diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omis-são e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociações preliminares.”7

A imposição desses deveres se reveste de papel fundamental para a orde-nação dos contratos na prática, uma vez que se busca, com a sua afi rmação, proteger um bem que se encontra na própria essência da contratação: a con-fi ança. Por esse motivo, o enquadramento legal da boa-fé objetiva sempre se mostrará atrelada à tutela da confi ança, sobretudo no que diz respeito à aplicação desse princípio aos casos de responsabilidade pré-contratual.

Mas a redação do art. 422 não está afastada de qualquer espécie de crítica. Muito ao reverso, Antonio Junqueira de Azevedo afi rma que a redação do art. 422 se mostra insufi ciente, defi ciente e desatualizada perante às exigências da prática contratual moderna. Segundo o autor, o artigo seria insufi ciente em 7 Judith Martins-Costa. A Boa-Fé no

Direito Privado. São Paulo: RT, 1999,

p. 439.

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sua redação pois não deixa claro se os seus dispositivos constituem norma cogente ou meramente dispositiva, além de não mencionar as fases pré e pós-contratuais para fi ns de responsabilização. O artigo seria ainda defi ciente por não prever de forma explícita quais são os chamados deveres anexos. E, por fi m, o dispositivo seria desatualizado pois confere poderes desmesurados ao juiz para interferir nas relações contratuais, abrindo possibilidade para se in-crementar a sobrecarga de processos que impede o regular funcionamento do Poder Judiciário, além de não serem os juizes tradicionalmente preparados para decidir casos nos quais fi gurem contratos de extrema especialidade téc-nica. Nesse sentido, menciona o autor, a época atual estaria passando do pa-radigma do juiz para o paradigma do árbitro.8

2. CASO GERADOR:9

A Newcell Telecom S/A (“Newcell”) é uma companhia aberta, com ações negociadas em bolsa de valores, que atua no setor de telecomunicações, espe-cifi camente na prestação de serviços de telefonia móvel (SMP), Regiões I e II. Até muito recentemente, 50% de suas ações ordinárias pertenciam à acionis-ta Macroservice Ltd. (“Macroservice”), 40% à Celular do Brasil Ltda. (“Ce-lular do Brasil”) e os 10% restantes ao público investidor. A recente mudança no seu quadro acionário deu-se em razão da alienação das ações ordinárias de propriedade da Celular do Brasil (“Ações”), operação esta que permitiu a entrada da Trama Telecom S/A (“Trama”) — orginariamente prestadora da mesma modalidade de serviço apenas na Região III. A operação é hoje alvo de uma disputa judicial, iniciada pela Celular do Brasil, conforme os fatos a seguir relatados.

Desde julho de 1999, por força de um acordo de acionistas celebrado entre a Celular do Brasil e a Macroservice (“Acordo de Acionistas”), a trans-ferência das ações ordinárias de emissão da Newcell estava sujeita a procedi-mento prévio, que incluía a realização de um leilão informal e a outorga de direito de preferência entre os acionistas acima designados. Assim, dispunha o Acordo de Acionistas que o acionista remanescente teria o direito de pre-ferência, podendo adquirir a participação do acionista alienante desde que o fi zesse nos mesmos termos e condições constantes da oferta de um terceiro.

Em janeiro de 2004, desejando alienar a participação de 40% que detinha no capital votante da Newcell, a Celular do Brasil deu início à tentativa de obter a melhor oferta possível pelas suas ações.

Entre os analistas que acompanhavam as diligências que antecederam ao leilão promovido pela Celular do Brasil, não havia dúvida: todas as apostas convergiam para a Trama, cujos planos de expansão eram notórios. Median-te a aquisição de 40% das ações ordinárias de emissão da Newcell, poderia

8 Antonio Junqueira de.Azevedo. “Insu-

fi ciências, defi ciências e desatualização

do Projeto de Código Civil na questão

da boa-fé objetiva nos contratos”, in

Estudos e Pareceres de Direito Privado.

São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 148/158

9 Caso gerador extraído da Apostila

“Princípios Contratuais”, elaborada por

Teresa Negreiros para os cursos de edu-

cação continuada da Escola de Direito

da Fundação Getúlio Vargas no Rio de

Janeiro.

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a Trama aproveitar-se das consideráveis sinergias em jogo para se tornar a maior potência no mercado de telefonia celular do Brasil, operando simul-taneamente nas Regiões I, II e III. Ou seja, a Trama era a maior interessada na aquisição das Ações, e por isso estimava-se que sairia vencedora do leilão.

Não se sabia, porém, que, naquele mesmo mês de janeiro de 2004, en-quanto a Celular do Brasil organizava o leilão — disponibilizando aos po-tenciais interessados informações sobre a Newcell —, Trama e Macroservice assinavam, secretamente, uma carta de intenções (“Carta de Intenções”), que dispunha sobre o comportamento de ambas com relação ao iminente leilão.

O objetivo da Trama e da Macroservice, ao assinarem a Carta de Inten-ções, era permitir que, ao fi nal, e fosse quem fosse o vencedor do leilão, ambas — Trama e Macroservice — formassem o bloco de controle da companhia, possuindo, cada uma, 45% do capital votante da Newcell. Assim, caso fosse a Trama a vencedora do leilão, a Macroservice obrigava-se a não exercer o direito de preferência e a lhe vender 5% da sua participação. Caso, pelo con-trário, a Trama não fosse a vencedora, poderia esta, a seu exclusivo critério, e mediante a entrega dos recursos necessários, obrigar a Macroservice a exercer o direito de preferência e, ato contínuo, lhe transferir as Ações, mais os 5% relativos à sua própria participação original. Nestes termos, a Macroservice adquiriria as ações com base no seu direito de preferência mas com recursos provenientes da Trama, sendo esta a destinatária fi nal das Ações.

E foi o que de fato aconteceu.Realizado o leilão, contrariamente às estimativas do mercado, a oferta

apresentada pela Trama não foi nada agressiva, vindo a mesma a perder o certame para outra licitante, a Trim Telecom S/A (“Trim”), companhia de origem alemã recém constituída no Brasil.

Foi assim celebrado entre a Trim e a Celular do Brasil, em fevereiro de 2004, contrato de compra e venda de ações, no valor de US$ 400 milhões — contrato este sujeito à condição suspensiva do não-exercício do direito de preferência pela Macroservice. A mencionada compra e venda extinguiu-se com o exercício do direito de preferência pela Macroservice, que, tal como previsto na Carta de Intenções, transferiu ato contínuo as Ações assim adqui-ridas à Trama, mais 5% de sua participação original, de modo a que ambas se tornassem co-controladoras em absoluta igualdade de condições. Tudo con-forme havia sido estabelecido na Carta de Intenções, então tornada pública.

A operação motivou uma expressiva alta das ações de emissão das socieda-des envolvidas. Em particular, o representante dos acionistas preferenciais da Newcell fez questão de divulgar ao mercado a sua satisfação diante das novas perspectivas que se abriam para a companhia.

A Celular do Brasil, contudo, sentindo-se prejudicada, acaba de ingressar em juízo com uma ação civil de reparação de danos em face da Macroservi-ce, pleiteando o ressarcimento de lucros cessantes, no montante de US$ 50

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milhões, alegando, em resumo, que a execução da Carta de Intenções entre a Trama e a Macroservice, com o imediato repasse das Ações, violou o acordo de acionistas que até então vigorara entre ela e a Macroservice.

Como se resolve o caso acima? Quantos e quais princípios da nova teoria contratual você consegue identifi car para o deslinde da questão?

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AULA 4: A RELAÇÃO OBRIGACIONAL

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Noção geral de obrigação — Distinções entre direito das obrigações e direitos reais — Estrutura da relação obrigacional — Fontes das obrigações

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Calixto, Marcelo Junqueira. “Refl exões em torno do conceito de obrigação, seus elementos e suas fontes”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 1/15; 25/28.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 16/37. Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa Helena. Código Civil interpretado conforme a Constitui-ção da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 492/495.

1. ROTEIRO DE AULA:

Noção Geral de Obrigação

Numa lição clássica contida nas Institutas de Justiniano, pode-se encon-trar a noção de que obrigação é um vínculo jurídico que nos obriga a pagar alguma coisa. Apesar de aparentemente simplória, essa antiga lição remete com bastante propriedade à idéia essencial que circunda o direito das obri-gações — a idéia de relação jurídica entre duas ou mais pessoas, sejam elas naturais ou jurídicas.

Tendo em vista a natureza intuitiva do conceito, o legislador preferiu não defi ni-lo no atual Código Civil. Na doutrina, Caio Mário defi ne obrigação como o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra prestação economicamente apreciável.10 10 Caio Mario da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro,

Editora Forense, 2003; p. 7.

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Já Washington de Barros Monteiro, de forma menos sucinta, enuncia que obrigação é a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor, cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através do seu patrimônio”. Nessa segunda defi nição é inte-ressante observar a presença do elemento responsabilidade, uma vez que a sua presença será fundamental quando dos efeitos decorrentes do descum-primento da obrigação.

Outro elemento que merece destaque é o caráter de transitoriedade, ine-rente às obrigações. A obrigação é, em verdade, uma relação jurídica que nasce tendo por fi m a sua própria extinção, ou ainda melhor, a sua realização. É justamente a satisfação do credor, que ocorre com o regular adimplemento da obrigação, que enseja o fi m desta e, por conseguinte, o fi m do vínculo jurídico que une credor e devedor.

Na dinâmica obrigacional, os atores encontram-se subsumidos nas fi guras do credor e do devedor. A idéia de vinculação, que traduz o ponto principal do instituto, une duas ou mais pessoas que se encontrem envoltas numa re-lação de crédito e débito. O credor e o devedor correspondem aos dois lados da obrigação, aos pólos ativo e passivo respectivamente.

O vínculo aqui descrito é marcado pela pessoalidade. Essa característica remete ao fato de que numa relação obrigacional há um número determinado (ou ao menos determinável) de pessoas envolvidas. Os credores e devedores são conhecidos, ou ao menos conhecíveis. Ao credor não é dado cobrar sua dívida de um estranho à relação obrigacional, e o devedor, por sua vez, não se verá desembaraçado de sua obrigação se pagar a outro que não àquele a quem deve (ou que pelo menos tenha poder de receber representando o credor).

Outro ponto crucial para entender as obrigações é a delimitação do seu objeto. Este nada mais é do que uma atividade do devedor, em prol do credor e essa atividade recebe a designação de prestação. As formas que essa presta-ção pode assumir são bem diversas11 e ensejarão diferentes classifi cações das obrigações.

A própria experiência cotidiana mostra que as obrigações estão sujeitas ao inadimplemento, sendo que este, em certos ramos da atividade econômica, é demasiadamente grande. Nesses casos, o direito resguarda o credor de ver a sua expectativa de satisfação inteiramente frustrada defi nindo que deverá o patrimônio do devedor responder, em última análise, pelo adimplemento.

É justamente a possibilidade de procurar no patrimônio do devedor a satisfação do crédito que faz com que essas vinculações jurídicas não sejam desacreditas. Contudo, nem sempre foi assim.

Na Antiguidade Clássica, por exemplo, o devedor respondia com o pró-prio corpo em face das obrigações assumidas, podendo ser submetido inclu-sive à situação de escravidão. Contudo, o direito tal qual hoje é concebido,

11 Como será visto posteriormente, es-

sas prestações podem ser uma simples

entrega de um bem, uma conduta que

represente um agir (fazer), ou ainda

uma simples abstenção (não fazer).

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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embasado dentre outros princípios pelo da dignidade da pessoa humana, repele o uso da força física no intuito de compelir alguém a satisfazer uma obrigação assumida.

Embasando a idéia acima descrita, veja-se o exemplo acadêmico do pintor que assume a obrigação de pintar um quadro, mas depois se arrepende. Qual seria a solução para satisfazer quem o contratou? Não há como forçar o artista a pintar, pois é forte o embasamento constitucional no sentido de vedar o uso da força para consecução de tais intentos. No estudo da responsabilidade civil será observado que, nesse caso, a legislação reserva à parte prejudicada a possibilidade de recorrer ao judiciário demandando reparação por perdas e danos.

Outro elemento que deve ser destacado é o cunho pecuniário das obri-gações, visto que o seu objeto sempre será um valor de natureza econômica. É certo que o direito pode até mesmo reservar, em certos momentos, uma especial consideração às obrigações de natureza exclusivamente moral, mas não sendo as mesmas dotadas de juridicidade, não podem ser inseridas no estudo das obrigações.

Igualmente não há que se pensar que as obrigações do direito de família muitas vezes não propriamente pecuniárias — constituem forma de excep-cionar a idéia de caráter econômico acima expressa. Cumpre apenas destacar que natureza jurídica dessa espécie de obrigações não convém ao tema ora abordado, devendo ser pormenorizadas no estudo do direito de família.

Contextualizando o direito das obrigações com a realidade das relações econômicas vivenciadas hoje, percebe-se que a sua pertinência se ressalta quando são analisadas as relações de consumo. Pode-se destacar como os principais fatores para essa situação os seguintes fatos: (i) a dinâmica do con-sumo é cada vez mais marcada pela publicidade, inclusive reconhecendo para esse artifício inegável teor contratual; e (ii) o fenômeno da massifi cação dos contratos, tendência hoje já consolidada e que ocorre quando os consumido-res simplesmente aderem a contratos já previamente redigidos (como no caso dos contratos bancários).

Certo é que em todas as atividades econômicas, da produção à distribui-ção de bens e serviços, imiscui-se o direito obrigacional.

Distinção entre direito das obrigações e direitos reaisOs direitos reais (ius in re) incidem diretamente sobre uma coisa ao

passo que o direito obrigacional (jus ad rem), tem por objeto uma determi-nada prestação. Ambos têm, como se pode antever, um caráter patrimonial inerente.

No quadro esquemático a seguir pode-se visualizar algumas das principais distinções:

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DIREITOS REAIS DIREITOS OBRIGACIONAIS

Quanto ao objeto

Os direitos reais recaem sobre uma coisa, geralmente um objeto corpóreo, apesar de serem admissíveis direitos reais em relação

a bens imateriais.

O direito obrigacional recai essencialmente sobre relações

humanas.

Quanto à oponibilidade

O direito real é um direito absoluto sendo oponível perante todos (erga omnes).

O direito obrigacional é relativo na medida em que a prestação só pode ser exigida do devedor

da relação.

No que consiste o direito

Direito ao uso, gozo e fruição de bens. Direito a uma ou mais prestações

efetuadas por uma pessoa.

Extensão no tempo Caráter de permanência.Caráter essencialmente

transitório, fadado à extinção.

Existência ou não de direito de seqüela

O direito real é absoluto, oponível contra todos e por conta disso, seu titular possui o direito de seqüela, isto é, de perseguir o exercício do direito perante qualquer um

que esteja de posse da coisa.

O direito de seqüela não existe no direito obrigacional. O credor

não pode individualizar bens no patrimônio do devedor para

garantir o regular adimplemento da obrigação. A garantia

representada pelo patrimônio do devedor se manifesta de

forma abstrata.

Enumerabilidade dos direitos

São numerus clausus, isto é, são somente aqueles assim enunciados pela lei.

Apresentam-se como um número indeterminado. Isso se deve ao fato de que as relações

obrigacionais são infi nitas e dotadas de grande variabilidade.

Estrutura da Relação Obrigacional

A noção geral de obrigação foi examinada no tópico anterior. Trata-se do expediente jurídico mediante o qual surge o vínculo entre dois sujeitos um ativo e ou outro passivo. Ao sujeito passivo compete cumprir a prestação a que está adstrito e agindo nesse sentido propiciará: (i) a sua liberação face ao credor; (ii) a extinção da própria obrigação onde está imerso.

As relações obrigacionais não estão necessariamente fadadas ao sucesso, que se traduz com o cumprimento obrigação. O desejo do credor é que o devedor (sujeito passivo), satisfaça, de modo voluntário ou coativo, a presta-ção. Quando isso não se verifi ca, surge a possibilidade de se valer da sujeição do patrimônio do devedor. Contudo, devemos destacar que esta opção só vai aparecer em momento posterior, na execução coativa, com a intervenção do poder do Estado. Aqui observamos de forma clara os dois elementos essen-

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ciais da obrigação: o débito (debitum, Schuld, em alemão) e a responsabili-dade (obligatio, Haftung).

Na estrutura da obrigação, crucial é a existência de dois sujeitos. Um é o sujeito ativo, ou credor. É ativo no sentido de que titulariza o crédito. No pólo oposto está o sujeito passivo, ou devedor, obrigado ao exercício de uma determinada prestação — pela qual pode vir a responder pelo seu patrimônio no caso de inadimplemento (haftung).

A noção de determinabilidade também é outro traço das obrigações. Os sujeitos devem ser determináveis, embora possam não ser, desde o início, determinados. Não é necessário que desde a origem da obrigação haja indi-viduação precisa do credor e do devedor, mas não obstante, no momento da realização da obrigação os sujeitos devem ser conhecidos.

Um exemplo de indeterminação de sujeito na formação do vínculo obri-gacional ocorre na promessa de recompensa. Na promessa, o devedor é certo (quem fez a oferta), mas o credor é indeterminado, vindo a constitui-se aque-le que adimplir com os requisitos especifi cados.

Outro exemplo, dessa vez de indeterminação no pólo passivo, é o caso do adquirente de imóvel hipotecado que responde pelo pagamento da dívida — embora não tenha sido o devedor originário.

O objeto da relação obrigacional é a prestação que constitui uma ativida-de, uma conduta do devedor. É fundamentalmente um dar, um fazer ou um não fazer algo. A prestação é, portanto, a atividade do devedor em prol do credor, que se constitui no objeto imediato da obrigação. Há também um objeto mediato, que nada mais é do que um objeto material ou imaterial sobre o qual incide a prestação. Dessa forma, quando se refere ao objeto da prestação, está sendo enfocado o objeto imediato; quando se menciona o objeto da obrigação, a referência será o objeto mediato.

Por exemplo, na obrigação de pintar um quadro (obrigação de fazer), a prestação, ou objeto imediato, é o ato de pintar. O objeto mediato nada mais será do que a própria tela que consubstancia a ação realizada.

A prestação deve ser possível, lícita e determinável, sendo essas qualifi ca-ções incidentes seja em relação à prestação em si, objeto imediato, seja em relação ao objeto que corporifi ca a relação obrigacional, objeto mediato. A dinâmica segue a mesma observada por ocasião do estudo dos negócios jurí-dicos (art. 166, II, Código Civil).

Tradicionalmente, sempre foi muito debatida a necessidade de que as obrigações manifestassem conteúdo patrimonial, apesar da legislação civilista expressamente não determinar essa característica. Mais coerente parece man-ter o foco, não na patrimonialidade, mas sim no real interesse do credor no cumprimento da obrigação, o qual pode não necessariamente estar direciona-do à obtenção de alguma vantagem econômica.

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Certas obrigações apresentam difi culdade de mensuração do caráter eco-nômico das prestações. Nesse sentido pode ser destacada a seguinte hipótese de alguém que doa imóvel para a Municipalidade, mas estabelece que ali de-verá ser instalado um parque público, com o encargo de que o mesmo tome o nome do doador. Quem exerce tal liberalidade não aufere vantagem pecu-niária, mas não se pode dizer que o caráter de obrigação está desnaturado.

Fontes das ObrigaçõesFontes das obrigações são todos os atos jurídicos através dos quais nas-

cem as obrigações. Essa matéria é essencialmente marcada pela construção da doutrina e dessa forma, há grande variação de entendimentos acerca de que elementos constituem fontes das obrigações.

No Direito Romano, as fontes das obrigações eram identifi cadas como sen-do compostas pelos seguintes elementos: os contratos, os quase contratos, os delitos e os quase-delitos. O código francês, por sua vez, reproduziu essa enu-meração acrescentando o elemento lei. Essa classifi cação não foi reproduzida na atual sistemática do direito das obrigações no ordenamento jurídico pátrio.

No atual Código Civil, são fontes das obrigações o contrato, os atos uni-laterais e o ato ilícito. O enriquecimento sem causa e o abuso de direito tam-bém são abordados, sendo equiparados aos atos ilícitos.

Os contratos e as manifestações unilaterais de vontade são fontes das obriga-ções nas quais pode-se observar claramente a vontade humana como fonte direta.

O ato ilícito provém de situações onde estão presentes ações ou omissões marcadas pela culpa, seja culpa em sentido estrito, seja uma conduta dolo-sa. Deve-se observar a previsão no art. 186 do Código Civil ao dispor que: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, co-mete ato ilícito.

Por fi m, destaque-se o grande dissenso acerca da consideração da lei como fonte das obrigações. Em breve análise, pode-se dizer que todas as obrigações se balizam pela lei, não podendo confrontá-la, mas não necessariamente as obrigações surgiriam diretamente dela.

A necessidade da prática de certos atos que surge por força da lei não é sufi ciente para classifi cá-la como fonte, mesmo porque, em regra, esses atos são deveres jurídicos e não propriamente obrigações.

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AULA 5: AS OBRIGAÇÕES NATURAIS E AS OBRIGAÇÕES PROPTER REM

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Obrigações civis — Obrigações naturais — Obrigações propter rem — ônus reais e obrigações propter rem.

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 105/111.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Araújo, Bárbara Almeida de. “As obrigações propter rem”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 99/120. Pereira, Caio Mário da Silva. Ins-tituições de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro: Forense, 2004; p. 285/304..

1. ROTEIRO DE AULA:

Obrigações Civis

Como visto nas seções anteriores, a obrigação desdobra-se numa perspectiva dupla: por um lado o débito, caracterizado pela necessidade de realizar uma de-terminada prestação. Por outro, existe a garantia, que corresponde à prerrogativa do credor de se valer dos meios legais no intuito de compelir o devedor a pagar. As obrigações dotadas desses elementos constitutivos, são chamadas de perfeitas ou obrigações civis. Contrapõem-se às obrigações naturais — que, grosso modo, podem-se denominar de incompletas. Diferem ainda das obrigações propter rem, que congregam elementos ora de direitos reais ora de obrigações civis.

Obrigações Naturais

O estudo das obrigações naturais é dotado de certos particularismos. Se-gundo a visão de alguns autores, elas se colocam num caminho intermediário

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entre o domínio moral e o campo jurídico. Não são de modo algum exclusi-vamente morais, pois fato inconteste é que o direito as confere não só efeitos, como também certa proteção jurídica — ainda que incompleta.

De premente importância é verifi car que a juridicidade da obrigação na-tural somente se manifesta no momento de seu cumprimento. Antes que esse ocorra, a obrigação natural, não sendo dotada de coercibilidade, encontra-se em estado de latência. A exemplo dos deveres morais, não pode ninguém demandar o seu cumprimento. Paradoxalmente, é no adimplemento da obri-gação — que corresponde concomitantemente ao momento de extinção que surge a sua face jurídica.

Como já mencionado, as obrigações naturais são obrigações incompletas na medida em que apresentam como particularidade, o fato dos devedores não poderem ser judicialmente compelidos a pagar. Não obstante, se forem cumpridas espontaneamente, será tido por válido o pagamento, que não po-derá ser repetido (há retenção do pagamento, soluti retentio).

Não há que se equiparar obrigação natural com obrigação moral, que sen-do mero dever de consciência, não obtém tutela jurídica.

A distinção da obrigação natural em relação à obrigação civil está na não existência de coercibilidade por parte da primeira. Contudo, se o devedor, de forma livre e consciente, cumpre uma obrigação natural, o pagamento considera-se legal. O pagamento era devido, mas de cumprimento não coer-cível. Não há aqui que se falar em mover o Poder Judiciário para reaver o que houver sido pago porque esse pagamento era de fato devido.

A legislação não aborda em profundidade o tema das obrigações naturais, competindo à doutrina o estudo das suas características.

No estudo do tema, surge de partida uma indagação: é repetível, isto é, pode o devedor pedir de volta a quantia que tiver entregue, quando tal pa-gamento houver se operado com erro no que tange a coercibilidade dessa obrigação?

Em outras palavras: o devedor, se soubesse da não coercibilidade caracte-rística das obrigações naturais não teria pago; o fez por pensar que tratava-se de obrigação civil, que além de ser juridicamente exigível, encontra no pa-trimônio do devedor a garantia do seu cumprimento. Tendo cometido esse equívoco, pode repetir?

A espontaneidade ou não do pagamento nesse caso é irrelevante. A obri-gação natural é exigível, embora não dotada de coatividade. Dessa forma, se o devedor a adimplir, esse pagamento é válido, não havendo o que se falar em repetição.

A lei não minudencia os casos em que nos deparamos com obrigações naturais, estando os mesmos esparsos na legislação. Grosso modo, podemos citar três casos onde se pode encontrar obrigações naturais: dívida prescrita, dívida de jogo e juros não estipulados.

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Dívida Prescrita. Talvez seja a mais eloqüente das hipóteses de obrigação natural, sendo circunstância que se desenvolve desde os trabalhos do Direi-to Romano. Evitando dúvidas, o legislador manifesta expressamente o seu entendimento no art. 882 do CC, no qual opera equiparação entre dívida prescrita e obrigação natural:

Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.

Dívida de Jogo. Segundo dispõe o art. 883 do Código Civil, não terá direito a repetir aquele que deu alguma coisa para obter fi m ilícito ou não permitido pela legislação.

Percebe-se aqui a expressa aplicação do princípio de que a ninguém é dado benefi ciar-se da própria torpeza. Nesse sentido, a hipótese mais elucidativa é sem dúvida a de dívida de jogo. Não pode o devedor, nesse caso, ser obrigado ao pagamento, mas, uma vez o tendo efetuado, não pode o solvens recobrar o que voluntariamente foi pago, excepcionando-se no caso de dolo, ou se o pre-judicado for menor ou interdito. Nesse sentido, o art. 814 do Código Civil:

Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito.

§ 1o Estende-se esta disposição a qualquer contrato que encubra ou envolva reconhecimento, novação ou fi ança de dívida de jogo; mas a nulidade resultante não pode ser oposta ao terceiro de boa-fé.

§ 2o O preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se tra-te de jogo não proibido, só se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos.

§ 3o Excetuam-se, igualmente, os prêmios oferecidos ou prometidos para o vencedor em competição de natureza esportiva, intelectual ou artística, desde que os interessados se submetam às prescrições legais e regulamentares.

De acordo com a redação do caput do art. 814, pouco importa que o jogo seja lícito ou ilícito, pois em qualquer uma das hipóteses se estará diante de uma obrigação natural. Contudo, há que se ressalvar que a existência de jogos que são regulamentados ou autorizados pelo próprio Estado. É o caso das loterias ofi ciais, o jogo semanal da loto e da loteria esportiva, as apostas de turfe, entre outros. Assim, pode-se verifi car a existência tanto de jogos proibidos, tolerados e autorizados.

Os jogos autorizados são aqueles caracterizados pela regulamentação ofi -cial, e não são abarcados pelo disposto no art. 814 caput. Se o próprio Estado regula a atividade, cria uma obrigação civil com toda a sua exigibilidade.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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Juros não estipulados. Sob a égide do antigo código, a obrigação de pagar juros não convencionados era inexigível, e quando realizada, poderia ser reti-da. O atual código de 2002, em seu artigo 591, alterou a regra:

Art. 591. Destinando-se o mútuo a fi ns econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.

Sendo assim, somente nos empréstimos sem fi ns econômicos o pagamen-to voluntário de juros não convencionados constituirá obrigação natural.

Obrigações propter rem

A distinção entre direitos reais e obrigacionais é um expediente que serve muito mais para fi ns teóricos do que para aplicação pratica dos profi ssionais jurídicos. Todavia, cumpre observar que essas diferentes modalidades de di-reitos constantemente se relacionam. Não são universos de todo apartados e, nesse sentido, pode-se perceber situações onde o proprietário torna-se sujeito de obrigações somente por ser proprietário.

Um exemplo de obrigação propter rem é a necessidade de arcar com as despesas condominiais de imóveis, conforme dispositivo constante do artigo art. 1315 do Código Civil.12 A obrigação se vincula àquele que detém a pro-priedade e não permanece com o mesmo no caso, por exemplo, de alienação do bem. O novo proprietário é quem arcará com as cotas vincendas, inclusi-ve com aquelas que mesmo vencidas ainda não foram pagas.

Qualquer outro indivíduo que o suceda nessa posição de proprietário ou possuidor igualmente assumirá tal obrigação. Não obstante, o proprietário poderá liberar-se da obrigação no momento em que abdicar da condição de proprietário.

Analisando a etimologia da expressão propter rem percebe-se o conteúdo dessa obrigação: propter, como preposição signifi ca “em razão de”, “em vista de”. Trata-se, pois, de uma obrigação relacionada com a coisa (rem), uma obrigação que surge em vista dessa.

A obrigação propter rem contraria a espécie regular de obrigações. Nas obrigações civis, os sucessores a título particular não substituem em regra o sucedido em seu passivo. Já nas obrigações propter rem, o sucessor a título singular assume automaticamente as obrigações do sucedido, ainda que não saiba de sua existência. É o caso do adquirente de imóvel que deve arcar com todas as taxas condominiais em mora.

12 Art. 1315 do Código Civil: O condô-

mino é obrigado, na proporção de sua

parte, a concorrer para as despesas de

conservação ou divisão da coisa, e a

suportar os ônus a que estiver sujeita.

Parágrafo único. Presumem-se iguais as

partes ideais dos condôminos.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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Ônus reais e obrigações propter rem

De forma sucinta, pode-se afi rmar que o ônus real é um gravame que recai sobre determinada coisa, restringindo o direito de um titular de um direito real. Diferentemente do dever, no ônus não há a fi gura da coatividade, po-dendo a parte interessada praticar o ato ou não, e nesse caso, sujeita-se a parte às suas conseqüências.

Outras diferenças podem ser apontadas, dentre podem ser destacadas as seguintes:

Ônus reais Obrigações propter rem

A responsabilidade pelo ônus real é limitada ao bem onerado,

ao valor deste.

Na obrigação propter rem, o obrigado responde com seu patrimônio,

sem limite.

O ônus desaparece caso seja superado o seu objeto.

Os efeitos da obrigação real podem permanecer, ainda que desaparecida

a coisa.

O ônus gera sempre uma prestação positiva.

Já a obrigação propter rem pode surgir com uma prestação negativa.

2. QUESTÃO DE CONCURSO:

Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)

40. João Carlos, proprietário de um apartamento, não efetua o pagamento das prestações condominiais há pelo menos 3 (três) anos, o que já foi inclu-sive objeto de discussão em algumas Assembléias. No entanto, antes que o condomínio praticasse qualquer ato relativo à cobrança das prestações em atraso, João alienou o imóvel a Maria Santos, sendo a escritura devidamen-te registrada no Registro Geral de Imóveis, para os devidos efeitos legais. Sabendo-se que, após um mês no apartamento, Maria foi citada em ação de cobrança proposta pelo condomínio, pode-se afi rmar que:

a) a cobrança em face de Maria não é legítima, apesar de se confi gurar obrigação propter rem, pois todos os condôminos tinham ciência dos débitos antes da negociação do imóvel;

b) a inércia do condomínio enquanto João estava no imóvel operou a remissão da dívida;

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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c) a prestação condominial é uma obrigação propter rem, sendo legí-tima a cobrança

d) João pode efetuar o pagamento extrajudicial, e entrar com ação de regresso contra Maria;

e) Maria não terá que pagar, pois o Código Civil de 2002 alterou a natureza da obrigação condominial, tornando-a obrigação intuitu personae.

Gabarito: 40 (c)

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AULA 6: CLASSIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES: OBRIGAÇÕES DE DAR, FAZER E NÃO-FAZER

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Classifi cação das obrigações quanto ao objeto Obrigação de dar e restituir coisa certa Responsabilidade pela perda ou deterioração da coisa na obrigação de dar coisa certa Obrigações de fazer e não fazer

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Birenbaum, Gustavo. “Classifi cação: Obrigações de dar, fazer e não fazer”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-consti-tucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 121/146.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 112/133. Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa Helena. Código Civil interpretado conforme a Consti-tuição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 491/523.

1. ROTEIRO DE AULA:

Classificação das obrigações quanto ao objeto

Talvez a mais usual classifi cação das obrigações seja aquela que a divide em obrigações de dar, fazer e não fazer. Trata-se de uma classifi cação que tem em foco o objeto da relação obrigacional (prestação) para determinar o enqua-dramento de cada obrigação analisada.

Na terminologia romana clássica, a prestação podia consistir num dare, num facere ou ainda num praestare. O facere, que hoje equivaleria à obri-gação de fazer, englobava em seu conceito o que atualmente se defi ne como obrigação de não fazer.

A obrigação de dar indica o dever de transferir ao credor alguma coisa ou alguma quantia. A obrigação de fazer é aquela na qual o devedor se incumbe de praticar determinado ato, sendo essa ação a prestação. O objeto da obriga-

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ção é a própria prestação, ou seja, a realização de uma atividade. Por fi m, na obrigação de não fazer, deve o devedor se abster da prática de um determi-nado ato. Essa é uma conduta omissiva, ou seja, uma abstenção de praticar determinado ato.

As obrigações de dar e fazer são obrigações positivas, ao passo que as obri-gações de não fazer, marcadas pela necessidade de abstenção, são as obriga-ções negativas.

Obrigação de dar e restituir coisa certaA noção contida na obrigação de dar pode parecer bastante simples, pois

consiste, em linhas gerais, na entrega de uma coisa. Contudo, há certos ca-racteres que devem ser ressaltados, em especial, a distinção existente entre o nosso sistema jurídico e outras opções legislativas estrangeiras.

De acordo com a opção legislativa vigente, a obrigação de dar não importa na transferência efetiva da coisa, mas apenas num comprometimento de sua entrega. Isso refl ete uma reminiscência do Direito Romano onde a obrigação de dar refl etia apenas um crédito e não um direito real.

É importante compreender que a obrigação de dar gera apenas um direito à coisa e não exatamente um direito real. No nosso sistema jurídico, para que se aperfeiçoe a propriedade quando derivada de uma obrigação, mister se faz a transcrição do título no Registro de Imóveis (quando se tratar de bem imó-vel), ou a tradição13 da coisa (quando o bem objeto da prestação for móvel).

No entanto, como lembra Silvio Venosa, as constantes reformas pelas quais passou o sistema de direito processual pátrio constituíram um verdadei-ro elenco de medidas constritivas para o adimplemento coercitivo de obriga-ções, como medidas cautelares, antecipações de tutela, multas diárias ou pe-riódicas, aproximando muito os efeitos de direito obrigacional aos efeitos de direito real.14

Em sistemas estrangeiros, como o italiano e o francês, a obrigação de dar cria por si só um direito real, isto é, importa na transferência da propriedade.

Como já pode ser constatado, o verbo “dar” deve ser entendido como o ato de entregar. Dar coisa certa é, portanto, entregar uma coisa determinada, perfeitamente caracterizada e individuada, diferente de todas as demais da mesma espécie. Esse entendimento foi expressamente enunciado no art. 313 do atual Código Civil:

Art. 313. O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa.

Tendo em vista esse enunciado, verifi camos que o credor não é obrigado a receber prestação outra que não a que lhe é devida. O fato dessa prestação, do bem oferecido ou do ato que se intenta realizar, ser ainda mais valioso, nada

13 O vocábulo tradição aqui é usado em

sentido técnico-jurídico representando

o ato de entregar a coisa, ato esse que

segundo nosso sistema jurídico, trans-

fere a propriedade de um bem móvel.

14 Silvio Venosa. Direito Civil, v. 2. São

Paulo: Atlas, 2004; p. 83.

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infl ui nessa faculdade do credor. Ainda que não estivesse expressamente previs-to, esse princípio, segundo regras gerais do direito, seria plenamente aplicável.

A obrigação de restituir se processa de forma semelhante, diferenciando-se pelo fato de que o credor receberá aquilo que já lhe pertence.

O princípio da acessoriedade é plenamente aplicável às obrigações de dar coi-sa certa (art. 233 CC) e deve ser entendido em conformidade com o artigo 237:

Art. 233. A obrigação de dar coisa certa abrange os acessórios dela embora não mencionados, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso.

Art. 237. Até a tradição pertence ao devedor a coisa, com os seus melhoramentos e acrescidos, pelos quais poderá exigir aumento no pre-ço; se o credor não anuir, poderá o devedor resolver a obrigação.

Parágrafo único. Os frutos percebidos são do devedor, cabendo ao credor os pendentes.

Nesse particular, a preocupação da lei abrange também os acessórios de natureza incorpórea. Trata-se do exemplo no qual o alienante de uma deter-minada coisa responde pela evicção da mesma.

Responsabilidade pela perda ou deterioração da coisa na obrigação de dar coisa certa

No estudo da responsabilidade pelas hipóteses de perda ou deterioração da coisa, de grande relevância é precisar-se o momento da tradição da mesma.

Perda é o desaparecimento completo da coisa para fi ns jurídicos. É o caso da destruição por incêndio ou a ocorrência de furto. Em suma, qualquer hipótese na qual se verifi ca a indisponibilidade completa do objeto na sua acepção patrimonial.

O elemento mais importante no estudo da responsabilidade é a aferição da existência ou não de culpa por parte do devedor. Em todas as hipóteses em que o mesmo agir de alguma forma que implique em culpa de sua parte surgirá a necessidade de indenização por perdas e danos.

A perda da coisa antes da tradição está regulada no art. 234 do Código Civil, o qual assim dispõe:

Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fi ca resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de cul-pa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos.

Se o bem se perde antes do momento aprazado para a entrega, como no exemplo do cavalo que morre no pasto quando vitimado por um raio, há o fi m da obrigação sem qualquer forma de ônus para as partes. Logicamente, se

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o bem destruído já tiver sido pago, ou tiver havido qualquer forma de adian-tamento de valor, o mesmo deverá ser devolvido com a atualização monetá-ria. Isso é corolário lógico do princípio que veda o enriquecimento ilícito.

A parte fi nal do art. 234 menciona que resultando a perda por culpa do devedor, responderá o mesmo pelo equivalente, mais perdas e danos. Nesse caso, deve-se ressaltar o disposto no art. 402 do CC.15

Voltando ao exemplo acima suscitado, se ao invés de vitimado por um raio o cavalo viesse a perecer por culpa do devedor, surgiria a necessidade do culpado pagar o valor do animal acrescido de eventuais perdas e danos. Essas perdas e danos abarcariam o montante de prejuízo decorrente do não recebimento de bem por parte do credor. Esse prejuízo não pode enveredar pelo campo da abstração, mas, pelo contrário, deve ater-se ao prejuízo que pode efetivamente ser comprovado. Nesse sentido, poderia o credor alegar prejuízo pela impossibilidade de utilizar o animal na função de reprodutor, na apresentação em exposições, ou na revenda do mesmo.

Obrigação de dar coisa incertaA obrigação de dar coisa incerta implica na entrega de quantidade de certo

gênero, e não na de uma coisa individualizada. O art. 243 do Código Civil, sobre o tema, esclarece que:

Art. 243. A coisa incerta será indicada, ao menos, pelo gênero e pela quantidade.

Incerteza aqui não implica em indeterminação, mas sim, como alude o art. 243, numa determinação feita de modo genérico. Como exemplo de en-trega de coisa incerta, pode-se citar: a entrega de duzentos quilos de ouro, ou ainda de trezentos livros de direito civil, de mesmo título, do mesmo autor e da mesma edição.

A obrigação de dar coisa incerta se caracteriza pela existência de um mo-mento que antecede à entrega da coisa, momento esse denominado concen-tração. Ele corresponde à escolha da coisa que vai de ser entregue, e a partir dele a obrigação será regida pelas regras da obrigação de dar coisa certa. Dessa forma podemos observar a transformação da obrigação de dar coisa incerta, de caráter marcadamente genérico, em obrigação de dar coisa certa, que é uma obrigação específi ca.

A obrigação de dar coisa incerta é, em tese, mais favorável ao devedor, uma vez que a obrigação corresponde a da entrega de uma coisa ou um conjunto delas tendo em vista o seu gênero. O objeto das obrigações de dar coisa in-certa é constituído por coisas fungíveis.

Por outro lado, nas obrigações de dar coisa incerta, a responsabilidade quanto ao perecimento da coisa também será maior para o devedor: Enquan-to na obrigação de dar coisa certa, a perda da coisa sem culpa do devedor de-

15 O art. 402, que trata das perdas e

danos, possui a seguinte redação: Art.

402. Salvo as exceções expressamente

previstas em lei, as perdas e danos

devidas ao credor abrangem, além do

que ele efetivamente perdeu, o que

razoavelmente deixou de lucrar.

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riva na resolução da obrigação, na obrigação de dar coisa incerta a prestação ainda será devida. A razão disso é a aplicação da regra genus nunquam perit (o gênero nunca perece antes da escolha). Essa regra é destacada no art. 246 do Código Civil:

Art. 246. Antes da escolha, não poderá o devedor alegar perda ou deterioração da coisa, ainda que por força maior ou caso fortuito.

Em relação à escolha, ou seja, o momento de concentração da obrigação, o art. 245 dispõe que:

Art. 245. Cientifi cado da escolha o credor, vigorará o disposto na Seção antecedente.

Em síntese: a obrigação de dar coisa incerta perdura até o momento de es-colha. Até esse momento, a obrigação tinha em vista o gênero e a quantidade da coisa objeto da prestação. Depois da escolha, esse objeto é individuado, especifi cado. A obrigação transmuda-se para uma obrigação de dar coisa certa e, como tal, deve ser pautada pelas regras da seção antecedente.

Ressalte-se que essa escolha da obrigação obedece a determinados critérios constantes dos artigos 244 e 245 do Código Civil. A faculdade de realizar a escolha deverá ser decidida pela convenção entre as partes, mas no silêncio destas, competirá ao devedor.

As obrigações de dar coisa incerta têm por objeto coisas determinadas pelo gênero e pela quantidade. Pode ocorrer, no entanto, que sendo essas coisas de existência restrita, toda a espécie dentro da qual a obrigação esteja inserida venha a se extinguir. Nesse caso, não obstante a falta de previsão legal, a dou-trina converge no sentido de dissolução da obrigação sem que o devedor seja responsabilizado por perdas e danos.

Obrigações de fazer e não fazerA obrigação de fazer importa numa atividade do devedor. O conteúdo

dessa obrigação é uma atividade, seja ela eminentemente física ou intelectual. Da mesma forma que a obrigação de dar, trata-se de uma obrigação positiva.

Essa obrigação de fazer pode ser contraída tendo em vista a fi gura do deve-dor, não se admitindo que outro a realize. Isso se daria, por exemplo, quando o devedor fosse um artista famoso e estivesse obrigado a pintar um quadro. Não prestaria o quadro de qualquer pessoa, mas sim o daquele artista que congrega características a ele inerentes.

Essa regra redunda da dicção do art. 247 do Código Civil, que determina:

Art. 247. Incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o deve-dor que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exeqüível.

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Essas são as obrigações de fazer de natureza infungível, também conhe-cidas como intuitu personae. De acordo com elas, a obrigação é assumida tendo em vista a fi gura do devedor e este não pode ser substituído. Essa impossibilidade deriva tanto da natureza da obrigação, como no exemplo do pintor do quadro, como da livre convenção das partes, quando mesmo havendo outras pessoas que poderiam executar a mesma tarefa, acertam os contratantes no sentido da impossibilidade de substituição do devedor.

Na ausência de convenção, compete analisar o caso concreto para se veri-fi car a existência ou não desse caráter intuitu personae.

Em havendo impossibilidade da execução por terceiro de obrigação fungí-vel, o art. 249 enuncia a seguinte regra:

Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível.

Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independen-temente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido.

A distinção entre as obrigações de dar e de fazer pode se mostrar, certas vezes, de difícil apreciação. O critério mais usual é verifi car se esse dar é ou não conseqüência direta da obrigação de fazer.

Se o devedor deve previamente confeccionar o bem para então entregá-lo, está-se diante de uma obrigação de fazer. Se por outro lado, o ato de constru-ção, anterior a entrega do bem, não fi ca a cargo do devedor, trata-se de uma obrigação de dar.

A questão da coatividade no caso de inadimplemento não deixa de ser ou-tro fator diferenciador. As obrigações de dar autorizam, em regra, a execução coativa, ao passo que o mesmo não ocorre nas obrigações de fazer. Por conta de uma série de valores encampados pelo ordenamento, os indivíduos não podem ser compelidos a executar atividades contrariamente a sua vontade. Não pode o Estado intervir diretamente compelindo o devedor a prestar, podendo valer-se somente de meios indiretos, como cominação de multa ou a condenação do devedor a arcar com perdas e danos.

As obrigações de fazer podem então ser descumpridas atentando-se a três situações distintas:

Quando a prestação se torna impossível, por culpa do devedor; Quando a prestação se torna impossível, sem culpa do devedor; e Quando o devedor se recusa ao cumprimento da obrigação.

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A dinâmica de cumprimento da obrigação assume novos contornos com as recentes alterações no código de processo civil, em especial as modifi cações que surgiram nos arts 273 e 461 do CPC, e que colocam à disposição do juiz uma série de instrumentos voltados à execução específi ca da obrigação assu-mida, como a cominação de multa diária em virtude do descumprimento.

As obrigações de não fazer são obrigações negativas. Segundo essas obriga-ções, o devedor se compromete a manter uma abstenção.

O devedor se compromete a não praticar determinada atividade que, sob condições normais, não encontraria qualquer restrição. Vale destacar que a necessidade de licitude, inerente a todos os negócios jurídicos, assume aqui uma dimensão particular: a obrigação de não fazer não pode atentar contra a liberdade individual. Dessa maneira, ilícita é a obrigação de não contrair ma-trimônio, de não gerar descendentes, de não professar determinada religião.

Como exemplos de obrigações de não fazer podemos destacar a obrigação do vizinho em não usar aparelhos sonoros em volume alto, de não bloquear servidão a imóvel, de não sublocar, de não revelar segredo industrial, en-tre outros. Um exemplo bem interessante é a cláusula de raio que consiste na estipulação entre vendedor e comprador, mediante a qual o alienante se compromete a não abrir negócio do mesmo ramo nas proximidades. Essa matéria será analisada na aula sobre o princípio da autonomia da vontade nos contratos.

Vale ressaltar que é justamente a abstenção da prática de uma atividade, a qual de outra forma seria plenamente admissível, que representa o cumpri-mento dessa modalidade de obrigação. O devedor cumpre a obrigação a todo momento, sempre que pode executar a ação especifi cada, mas não faz.

O art. 250 determina uma hipótese de extinção desse tipo de obrigação, defi nindo que:

Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar.

Na hipótese aqui destacada o devedor dá ensejo à prática do ato pela im-possibilidade de abster-se da conduta. Não há culpa na prática desse ato. Por outro lado, se a situação é diversa, e o devedor culposamente enseja a execução da ação a qual devia abster-se, deverá arcar com perdas e danos face ao credor.

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2. QUESTÃO DE CONCURSO:

Concurso para o cargo de Advogado da BR Distribuidora (2005) pro-va azul

30. Quando se impossibilita a abstenção do fato, sem culpa do devedor, a obrigação extingue-se. Tal hipótese ocorre nos casos de obrigação:

a) de não fazer;b) de fazer;c) de dar coisa incerta;d) extintiva;e) alternativa.

Gabarito: 30 (a)

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AULA 7: CLASSIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES: OBRIGAÇÕES INDIVISÍVEIS, SOLIDÁRIAS E ALTERNATIVAS

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Obrigações Divisíveis e Indivisíveis Pluralidade de Credores e Devedores Indivisibilidade e Solidariedade Solidariedade Ativa — Solidariedade Passiva Obrigações Cumulativas e Alternativas Concentração e cumprimento da obri-gação alternativa Obrigações Facultativas Obrigações Principais e Acessórias

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 134/166.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Sampaio da Cruz, Gisela. “Obrigações alternativas e com faculdade alter-nativa. Obrigações de meio e de resultado”, in Gustavo Tepedino (org) Obriga-ções: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 147/168. Zangerolame, Flavia Maria. “Obrigações divisíveis e indivisí-veis e obrigações solidárias”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 181/210.

1. ROTEIRO DE AULA:

Obrigações Divisíveis e Indivisíveis

Nem sempre as obrigações se apresentam de forma singularizada. Nas cha-madas obrigações complexas, por exemplo, pode-se identifi car a pluralidade de credores ou de devedores, ou ainda a pluralidade de objetos da prestação.

Ao qualifi car as relações obrigacionais quanto à divisibilidade (divisíveis ou indivisíveis) deve-se ter em mente os seguintes critérios: (i) divisíveis são as obrigações passíveis de cumprimento fracionado; (ii) indivisíveis são as obrigações que só podem ser cumpridas em sua integralidade.

A noção de indivisibilidade se encontra na própria lei, expressa através do art. 258 do Código Civil:

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Art. 258. A obrigação é indivisível quando a prestação tem por ob-jeto uma coisa ou um fato não suscetíveis de divisão, por sua natureza, por motivo de ordem econômica, ou dada a razão determinante do negócio jurídico.

Logicamente, considerado sob o aspecto material, tudo pode ser fracionado. Contudo, na acepção jurídica, a obrigação é considerada divisível quando as partes fracionadas conservam as mesmas propriedades outrora encontradas no todo, notadamente o seu valor econômico. Em certa obrigação que foi dividida, o valor da soma de cada uma das frações deve ser semelhante ao valor do todo.

Imagine-se o seguinte exemplo: um cavalo é um bem indivisível e, por-tanto, a obrigação de entregar um determinado cavalo (obrigação de dar) também não pode ser fracionada; por outro lado, a obrigação de entregar du-zentas sacas de arroz pode ser perfeitamente dividida. Nesse segundo exem-plo, a entrega de cem sacas de cada vez não implicaria diminuição do valor econômico atribuível ao todo.

O exemplo do cavalo, suscitado acima, é um caso de indivisibilidade ma-terial. Decorre da própria natureza do objeto envolvido na prestação. Em outros casos, a indivisibilidade pode resultar de força da lei, sendo jurídica ou mesmo da convenção entre os contratantes, quando será convencional.

A indivisibilidade jurídica pode se manifestar da seguinte forma: do ponto de vista fático, todo imóvel é passível de fracionamento, mas a lei pode criar restrições de zoneamento proibindo que um imóvel seja dividido de forma a se alcançar metragem inferior a um determinado parâmetro.

Em outros casos, é a vontade das partes que pode tornar o objeto de uma prestação, que de início é perfeitamente divisível como a obrigação de entre-gar uma tonelada de soja em indivisível. Nesse caso, a vontade das partes se manifestou no sentido de que a obrigação só poderá ser cumprida por inteiro. Essa possibilidade é enunciada, inclusive, através da redação do art. 314 do Código Civil, sendo decorrência lógica da noção de que o credor não é obri-gado a receber de forma diversa do estipulado.

Art. 314. Ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisí-vel, não pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por partes, se assim não se ajustou.

A par das considerações aqui já traçadas, inclusive a da enunciação expres-sa da lei acerca da noção de indivisibilidade, deve-se buscar auxílio nos artigos 87 e 88 do Código Civil para a defi nição precisa da idéia de indivisibilidade.

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Art. 87. Bens divisíveis são os que se podem fracionar sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam.

Art. 88. Os bens naturalmente divisíveis podem tornar-se indivisí-veis por determinação da lei ou por vontade das partes.

O cerne do conceito de indivisibilidade reside na possibilidade ou impos-sibilidade de fracionamento do objeto da prestação. Adicionalmente, não basta só essa consideração quanto à viabilidade da divisão, mas se requer, igualmente, a visualização de uma pluralidade de sujeitos, pois do contrário não haverá sentido em se realizar essa distinção.

Pluralidade de Credores e DevedoresA pluralidade de devedores ou de credores é matéria tratada, inicialmente,

no art. 257 do Código Civil, da seguinte forma:

Art. 257. Havendo mais de um devedor ou mais de um credor em obrigação divisível, esta presume-se dividida em tantas obrigações, iguais e distintas, quantos os credores ou devedores.

Nesse dispositivo a lei opera a presunção de que a obrigação se divide quando se dá a pluralidade de agentes em um ou em ambos os pólos da re-lação. Quando, ao contrário, verifi ca-se a existência de um só credor e um só devedor, tem-se a necessidade de que a obrigação se realize de uma só vez, excetuando-se os casos em que as partes acordaram o pagamento fracionado.

Na pluralidade de devedores, quando a prestação for indivisível, isto é, quando não puder ser fracionada sob pena de se desnaturar o seu valor econô-mico, será manejada a solução prevista pelo art. 259, caput, do Código Civil:

Art. 259. Se, havendo dois ou mais devedores, a prestação não for divisível, cada um será obrigado pela dívida toda.

Parágrafo único. O devedor, que paga a dívida, sub-roga-se no direi-to do credor em relação aos outros coobrigados.

O parágrafo único dispõe sobre situação que será pormenorizada mais adiante, no estudo dos efeitos da sub-rogação. Por ora, vale destacar que sub-rogação, nesse caso, é um expediente jurídico mediante o qual o devedor que pagou assumirá a posição de credor em relação aos demais devedores. Conforme será examinado mais adiante, a sub-rogação constitui uma das modalidades especiais de pagamento.

Nesse caso de pluralidade no pólo passivo em obrigação cuja prestação é indivisível, embora cada um dos devedores deva apenas fração da obrigação, a sua liberação está condicionada à entrega do todo.

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Na situação em que dois devedores comprometem-se a entregar um deter-minado veículo não é possível o fracionamento. Um deles entregará o veículo em sua totalidade, sub-rogando-se no direito de demandar do outro devedor o valor referente à parte desse devedor que não entregou diretamente o bem.

Os devedores podem tanto ser responsáveis pela prestação em partes iguais ou em qualquer outra proporção fi xada quando da pactuação do negócio jurídico. O negócio jurídico deve ser sempre examinado de modo a se identi-fi car que parte compete a cada indivíduo na partição da dívida. Igual raciocí-nio deve ser empregado na abordagem do art. 261 do Código Civil.

Adicionalmente, se ao contrário, a prestação indivisível for devida a uma plu-ralidade de credores, abrir-se-á a possibilidade de cada um deles demandar a inte-gralidade da dívida. Nesse sentido, dispõem os arts. 260 e 261 do Código Civil:

Art. 260. Se a pluralidade for dos credores, poderá cada um destes exi-gir a dívida inteira; mas o devedor ou devedores se desobrigarão, pagando:

I a todos conjuntamente;II a um, dando este caução de ratifi cação dos outros credores.Art. 261. Se um só dos credores receber a prestação por inteiro, a

cada um dos outros assistirá o direito de exigir dele em dinheiro a parte que lhe caiba no total.

A obrigação é una e indivisível. O devedor paga por inteiro, dado que o fracionamento implicaria no perecimento da coisa. Pagará a um credor que igualmente se obriga a repassar aos outros o quinhão respectivo. Essa é a teleologia do art. 261. Aqui também deve se examinar o negócio jurídico para saber qual a parte que incumbe a cada credor, presumindo-se a partição eqüitativa no caso de omissão.

Outra hipótese peculiar é o caso de remissão da dívida por parte de um dos credores. Ela vem regulada pelo art. 262 CC:

Art. 262. Se um dos credores remitir a dívida, a obrigação não fi cará extinta para com os outros; mas estes só a poderão exigir, descontada a quota do credor remitente.

Parágrafo único. O mesmo critério se observará no caso de transa-ção, novação, compensação ou confusão.

A remissão da dívida por parte de um credor signifi ca que o mesmo abriu mão do seu cumprimento. No entanto, quando a prestação é indivisível os demais cre-dores não podem ser prejudicados. Nesse caso, a dívida deve ser paga aos credores não remitentes, mas estes, ao exigi-la, devem descontar a quota remitida.

A conversão de uma obrigação em perdas e danos implica na perda do seu caráter de indivisível:

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Art. 263. Perde a qualidade de indivisível a obrigação que se resolver em perdas e danos.

§ 1o Se, para efeito do disposto neste artigo, houver culpa de todos os devedores, responderão todos por partes iguais.

§ 2o Se for de um só a culpa, fi carão exonerados os outros, respon-dendo só esse pelas perdas e danos.

Se a indenização tiver sido motivada por culpa imputável a todos os de-vedores, responderão eles por partes iguais (§1º). Por outro lado, se a culpa for de um só, apenas este responderá por perdas e danos (§2º). Destaque-se, evidentemente, que pelo valor da prestação responderão todos.

Outro ponto que merece destaque é a questão da prescrição. Ela aproveita a todos os devedores, mesmo que seja reconhecida a apenas um deles; da mesma forma, sua suspensão ou interrupção aproveita ou prejudica a todos. Na mesma linha, certo é afi rmar que qualquer ato defeituoso em relação a uma das partes danifi ca o ato com relação aos demais integrantes da relação obrigacional.

Indivisibilidade e Solidariedade

Há necessidade de se esclarecer as principais distinções entre os institutos da indivisibilidade e da solidariedade, uma vez que existe, na prática, certa confusão sobre a sua identifi cação e efeitos:

OBRIGAÇÕES INDIVISÍVEIS OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS

Quanto à causaA causa geralmente resulta da natureza da prestação. Pode, entretanto, resultar

da convenção das partes.

A causa reside no próprio título, no vínculo jurídico.

Quanto à parte devida

O demandado não é devedor do total, mas a natureza da prestação não admite

o cumprimento fracionado.O demandado é devedor do total.

Derivações da natureza

A indivisibilidade geralmente é objetiva na medida em que decorre na natureza

da prestação.

A regra é que a solidariedade seja sub-jetiva. É artifício jurídico para reforçar o vínculo e facilitar o adimplemento da

obrigação.

É de origem material.É de origem técnica. Decorre da lei ou

do título constitutivo (art. 265).

Conversão em perdas e danos

Quando se converte em perdas e danos, desaparece a característica de indivisibi-

lidade (art. 263).

Quando se converte em perdas e danos o atributo da solidariedade permanece.

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Obrigações Solidárias

A solidariedade é um expediente de ordem técnica que tem por escopo re-forçar o vínculo, facilitando o adimplemento da obrigação. Em linhas gerais implica na possibilidade de reclamar a totalidade da prestação. Ela pode estar em qualquer um dos pólos da obrigação e dessa forma, temos a solidariedade ativa solidariedade de credores —, e a solidariedade passiva — solidariedade de devedores.

A solidariedade não deriva da natureza das prestações, mas sim da vontade das partes ou da lei. Sendo assim, solidariedade não se presume. A sua carac-terização deriva do disposto no art. 264 do Código Civil:

Art. 264. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda.

Não se deve confundir solidariedade com certas situações em que dois ou mais agentes devem arcar integralmente com a prestação. São exemplos disso: a responsabilidade concomitante do condutor do veículo e de seu proprietário que respondem pela totalidade da indenização; os coobrigados nos títulos de crédito; a possibilidade de demandar tanto do autor do incêndio como da seguradora.

Esses são exemplos das chamadas obrigações in solidum, que possuem como características gerais: (i) a independência dos liames que unem os deve-dores ao credor — o que implica independência no que toca à prescrição; (ii) o fato de interpelar um dos devedores não implica na constituição em mora dos outros; (iii) a remissão de dívida feita não aproveita aos outros devedores; (iv) nas obrigações in solidum, os valores devidos por cada devedor podem ser diferentes (caso da seguradora que está obrigada a suportar apenas até o limite do valor segurado).

Inegavelmente, a idéia mais relevante é independência entre os motivos constitutivos do vínculo (liames). Como corolário dessa constatação, pode-se identifi car as outras características.

Conforme o observado, nas obrigações solidárias destacam-se duas carac-terísticas preponderantes: (i) unidade de prestação; (ii) pluralidade e inde-pendência do vínculo.

A prestação é uma só, é a mesma para todos os devedores. No caso da solidariedade passiva (de devedores), todos, por força de convenção ou da lei, podem ser demandados pelo todo. Como devem apenas uma cota-parte, ao arcarem com a totalidade do débito, sub-rogam-se na posição do credor.

A mesma lógica segue a solidariedade ativa (de credores). Ela é também instituí-da legalmente ou mediante acordo, podendo qualquer dos credores receber o todo, devendo, posteriormente, distribuir aos demais credores o quinhão respectivo.

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Essas são as linhas gerais da solidariedade. A prestação é única, é a mesma para todos, embora o quantum realmente devido represente apenas uma fra-ção dessa prestação. A solidariedade, que deriva da lei ou da anuência entre as partes, só é possível na medida em que haja pluralidade de vínculos e in-dependência entre os mesmos.

A pluralidade de vínculos pode ter, como conseqüências, a oposição de elementos acidentais (condição, termo ou encargo) para apenas um ou al-guns dos devedores (art. 266 do Código Civil).

Ainda, outro efeito que se pode destacar é que se um dos vínculos for marcado pela invalidade, por conta da incapacidade de um dos credores, não há que se falar que os demais vínculos estejam maculados.

O art. 265 do Código Civil afi rma que:

Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da von-tade das partes.

Esse enunciado proclama o caráter de exceção das obrigações solidárias fi cando elas restritas às previsões da lei ou do pacto entre as partes. Não exis-tindo essa previsão, manifesta de forma expressa, há de prevalecer presunção de não existência da solidariedade.

Havendo dúvidas, a interpretação deve se dar a favor dos devedores, im-plicando logicamente na inexistência de solidariedade, visto que se trata de expediente benéfi co ao credor, na medida em que maximiza as possibilidades de recebimento da prestação.

A solidariedade não pode ser resultante da sentença. Não obstante a céle-bre frase, oriunda de brocardo latino, de que a sentença faz lei entre as partes, a mesma se limita a declarar o direito das partes não podendo instituir solida-riedade — que não esteja prevista em lei ou contrato. Nada obsta, entretanto, que surja uma obrigação in solidum.

No que toca ao ônus probatório, compete a quem alega a solidariedade provar a sua existência — excetuando-se os casos de solidariedade legal.

Solidariedade AtivaÉ aquela em que se verifi ca a existência de mais de um credor, sendo facul-

tado a cada um deles cobrar a dívida por inteiro. Do pondo de vista prático, a sua importância é reduzida, limitando-se a servir de mandato para o recebi-mento de crédito comum. Os exemplos são (i) a abertura de conta corrente bancária em nome de duas ou mais pessoas, com a faculdade de operarem separadamente, ou (ii) o aluguel de cofres de segurança, contanto que o mes-mo possa ser aberto por qualquer um dos titulares.

Apesar de menos comum, essa modalidade de obrigação representa algu-mas vantagens, pois os credores solidários podem exigir, individualmente, a totalidade da dívida (art. 267); e cada um dos devedores — havendo plura-

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lidade nesse pólo da relação jurídica — desincumbe-se ao pagar a qualquer dos credores.

Há uma clara facilitação no pagamento nesse expediente (art. 269). Esse mesmo dado, sob outra perspectiva, pode representar um inconveniente, na medida em o credor que recebe a prestação libera o devedor, dando-lhe qui-tação. Os outros credores terão agora que se entender com esse devedor que recebeu o pagamento. Essa matéria encontra-se regulada nos arts 267 a 274 do Código Civil.

Quando se está diante de uma situação de solidariedade ativa, a constitui-ção em mora feita por um dos co-credores aproveita a todos os demais.

Por outro lado, quando é o credor solidário constituído em mora, todos os demais credores serão atingidos pelos efeitos dela resultantes. O devedor se apresenta portando o pagamento, nas condições estabelecidas, e o oferece ao credor que se recusa a recebê-lo. Esse credor, ao ser constituído em mora, estenderá aos demais a necessidade de arcar com juros, riscos de deterioração da coisa, bem como quaisquer outros efeitos próprios da mora.

De maneira semelhante ao que ocorre com a constituição em mora do de-vedor, a interrupção da prescrição feita por apenas um dos credores também benefi cia os outros. Essa é a regra do art. 204, § 1º do Código Civil:

Art. 204. A interrupção da prescrição por um credor não aproveita aos outros; semelhantemente, a interrupção operada contra o co-deve-dor, ou seu herdeiro, não prejudica aos demais coobrigados.

§ 1o A interrupção por um dos credores solidários aproveita aos ou-tros; assim como a interrupção efetuada contra o devedor solidário en-volve os demais e seus herdeiros.

A suspensão da prescrição, por sua vez, benefi ciará os demais credores solidários apenas no caso da obrigação ser indivisível. Essa regra encontra-se defi nida no art. 201 CC. Ainda, se um dos devedores renunciar à prescrição da obrigação em face de um dos credores, essa renúncia aproveitará a todos os demais.

No pagamento da obrigação solidária, pertinente é a regra do art. 268 CC, que defi ne que o devedor (ou devedores) no caso de solidariedade ativa, deve pagar àquele que primeiro lhe demandar. A faculdade de escolher a quem realizar o pagamento perdura até que algum dos credores cobre a dívida.

Art. 268. Enquanto alguns dos credores solidários não demandarem o devedor comum, a qualquer daqueles poderá este pagar.

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O art. 271 do Código Civil trata da conversão da obrigação em perdas e danos. Determina que a solidariedade subsista ainda que a obrigação seja convertida em perdas e danos, que é uma prestação essencialmente divisível.

Art. 271. Convertendo-se a prestação em perdas e danos, subsiste, para todos os efeitos, a solidariedade.

Logicamente, o credor que recebe o pagamento de modo integral torna-se obrigado a prestar contas aos demais, repassando-os o valor que compete a cada um deles (art. 272 do Código Civil).

Solidariedade Passiva

Como visto, solidariedade passiva é aquela que obriga todos os devedores ao pagamento total da dívida. Apresenta uma importância bem mais con-siderável do que a solidariedade ativa, em especial devido ao seu caráter de reforço ao vínculo jurídico.

O risco de insatisfação do credor é reduzido de forma signifi cativa, visto que o inadimplemento ocorreria apenas na hipótese de todos os devedores tornarem-se insolventes.

O art. 277 do Código Civil trata do pagamento parcial e da remissão de dívida:

Art. 277. O pagamento parcial feito por um dos devedores e a re-missão por ele obtida não aproveitam aos outros devedores, senão até à concorrência da quantia paga ou relevada.

Se o credor já obteve satisfação parcial da dívida, não há razão para exigir dos demais o cumprimento integral da mesma. Esse pagamento parcial foi condicionado à concordância do credor, que aceitou, defi nitiva ou momen-taneamente, receber apenas parte do que teria direito. Nesse caso, os demais devedores são apenas obrigados a pagar o saldo e não mais a obrigação em sua integralidade.

A remissão de dívida se processa da mesma forma, pois o perdão concedi-do a um dos devedores não desonera aos demais, que continuam vinculados pela obrigação. A diferença é que o montante agora devido será referente à exclusão ao valor inicial menos o quantum remitido.

Se um devedor solidário estabelece, sem a concordância dos demais, algu-ma nova obrigação desvantajosa, poderá apenas ele fi car por ela obrigado. O art. 278 dispõe expressamente acerca dessa vedação à oneração dos demais devedores sem o consentimento dos mesmos.

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No que concerne à extinção da obrigação solidária, pode-se observar as se-guintes situações: (i) na extinção da obrigação sem culpa dos devedores, a dívi-da será extinta para todos; (ii) quando algum dos devedores incorre em culpa, a regra do art. 279 determina a permanência para os demais do encargo de pagar o equivalente, sendo que as perdas e danos serão atribuição do culpado:

Art. 279. Impossibilitando-se a prestação por culpa de um dos deve-dores solidários, subsiste para todos o encargo de pagar o equivalente; mas pelas perdas e danos só responde o culpado.

Da mesma forma, se a impossibilidade de realizar essa prestação foi ve-rifi cada quando o devedor já era moroso, ele responderá pelo risco, sendo essa dicção encontrada também no art. 399 do Código Civil. Nesse sentido, pertinente ainda é examinar a regra do art. 280 do CC:

Art. 280. Todos os devedores respondem pelos juros da mora, ainda que a ação tenha sido proposta somente contra um; mas o culpado responde aos outros pela obrigação acrescida.

Destaque-se ainda a questão das exceções. O art. 281 dispõe sobre a solu-ção adotada:

Art. 281. O devedor demandado pode opor ao credor as exceções que lhe forem pessoais e as comuns a todos; não lhe aproveitando as exceções pessoais a outro co-devedor.

Tudo o que for referente à obrigação demandada poderá ser alegado por qualquer um dos devedores. Será possível que qualquer dos devedores le-vante, por exemplo, a questão da inexistência ou invalidade da obrigação, alguma vedação da lei a que ela se opere, ou mesmo a prescrição da mesma. Essas são defesas referentes a obrigação em si, e não relacionadas com algum devedor especifi cadamente considerado. Dessa maneira, as exceções gerais podem ser alegadas por qualquer dos devedores.

As exceções que forem particulares, denominadas de pessoais, próprias a um só dos devedores, não poderão ser alegadas pelos demais.

Obrigações Cumulativas e Alternativas

Nas obrigações conjuntivas ou cumulativas, como é fácil aferir pelo seu nome, mais de uma prestação é devida de forma cumulada. O credor tem o po-der de exigir o cumprimento de todas elas, na medida em que todas são devidas.

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Deve-se destacar a inexistência de um regime legal particularizado às obri-gações de objeto conjunto. As mesmas devem ser regidas pelos princípios gerais que norteiam o direito das obrigações.

Para melhor compreender a dinâmica da obrigação em questão, cum-pre ter em mente que o objeto composto que ela prevê vem destacado pela partícula aditiva e. Dessa forma, um exemplo de obrigação conjunta é a de entregar um carro e uma casa. A prestação é conjunta, congregando aqui a obrigação de dar duas coisas.

Por outro lado, nas obrigações alternativas (ou disjuntivas) ao devedor compete a entrega de uma das coisas objeto da obrigação. O objeto não é único, mas o devedor se desobriga entregando um deles.

Diferentemente das obrigações cumulativas, essa modalidade de obriga-ção é dotada de um regime especial que corresponde aos arts. 252 a 256 do Código Civil. O objeto da obrigação aqui é ligado pela partícula ou: devemos um carro ou uma casa. Apenas uma das obrigações é devida.

Concentração e cumprimento da obrigação alternativaNo cumprimento das obrigações alternativas, é importante notar que o

objeto, que é inicialmente é múltiplo, se torna individualizado num momen-to posterior. Após esse momento da individualização, a obrigação, outrora alternativa, se processa de forma semelhante a uma obrigação simples.

Adicionalmente, existe a outra dúvida: a quem compete a escolha da obri-gação devida? Ordinariamente, a escolha compete ao devedor, estando esse entendimento consubstanciado no art. 252, caput, mas nada obsta que o acordo de vontades entre as partes pode reservar essa faculdade para o credor. Aliás, o art. 252 do Código Civil baliza as regras referentes ao pagamento de obrigações alternativas.

Art. 252. Nas obrigações alternativas, a escolha cabe ao devedor, se outra coisa não se estipulou.

Caso se verifi que dúvida na defi nição de a quem compete a escolha da obrigação, a mesma deve ser solucionada no sentido de favorecer o devedor. Essa é a regra geral, e ainda nos casos de dúvida, deve-se benefi ciar o devedor.

Obrigações Facultativas

O ordenamento pátrio, seguindo o exemplo da maioria das legislações estrangeiras, não se ocupa das obrigações facultativas. A obrigação facultati-va tem por objeto apenas uma prestação principal, no entanto possibilita a liberação do devedor uma vez que ele efetue o pagamento de outra prestação prevista em caráter subsidiário.

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Como exemplo pode-se ilustrar a seguinte situação: um comerciante acor-dou na entrega de vinte caixas de laticínios, mas o contrato lhe possibilita liberar-se da obrigação mediante a entrega de cinquenta quilos de café. A obrigação principal é aquela inicialmente acordada, a primeira, qual seja, a entrega das caixas de laticínios. A prestação subsidiária tem, contudo, o con-dão de desincumbir o devedor.

Obrigações Principais e AcessóriasO artigo 92 do Código Civil enuncia a relação de acessoriedade entre os bens:

Art. 92. Principal é o bem que existe sobre si, abstrata ou concreta-mente; acessório, aquele cuja existência supõe a do principal.

Para o direito obrigacional, transporta-se essa noção relativa aos bens, ha-vendo assim, obrigações que nascem e existem de per se, mostrando abso-luta independência em relação a outras. Não obstante, há obrigações que se apresentam agregadas, em estado de vinculação a essas obrigações principais, sendo taxadas por isso de obrigações acessórias. Sua existência está ligada à própria existência das obrigações principais, ou seja, extinguindo-se uma obrigação principal, perecem consequentemente aquelas que lhe gravitam.

Em síntese, principal é aquela obrigação dotada de existência autônoma, in-dependendo de qualquer outra. Já as obrigações acessórias são aquelas que não tem existência em si, dependendo de outra a que adere ou cuja sorte depende.

A relação entre obrigações acessórias e principais pode tanto decorrer da vontade das partes como da lei. Não há necessidade de nascimento conco-mitante, podendo as obrigações acessórias serem constituídas superveniente-mente e ainda em instrumentos jurídicos distintos. As obrigações acessórias podem ser referentes ao objeto ou decorrentes de situações subjetivas, e ainda derivar da previsão legal ou da convenção entre as partes.

Como exemplos de obrigações acessórias pode-se mencionar os direitos de garantia como a fi ança, (garantia pessoal) e o penhor e a hipoteca (garantias reais). As obrigações principais subsistem com perfeição ainda que essas fi gu-ras sejam dissolvidas. Mas não existe razão numa fi ança ou numa garantia de qualquer outra natureza, se não houver uma obrigação principal que lhe dê sentido, portanto, as obrigações acessórias perecem quando da ausência de uma obrigação principal.

A relação de dependência estabelecida entre acessória e principal produz grande gama de efeitos jurídicos, sendo eles decorrência da regra geral aces-sorium sequitur principale.

Por fi m, temos que obrigações acessórias não se confundem com cláusula acessória. Nesse sentido, cumpre transcrever a lição de Caio Mário:

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“Há, contudo, distinguir “cláusula acessória” de “obrigação acessó-ria”, em que a primeira pressupõe um acréscimo, sem a criação de obri-gação diversa. Assim, se num contrato preliminar de compra e venda as partes estipulam a sua irretratabilidade, inserem uma cláusula que é acessória, por não fazer parte da natureza da promessa aquela qualida-de, mas não constitui uma obrigação acessória, porque não implica uma obligatio a mais, aderente ao contrato, à qual o devedor esteja sujeito. Ocorre uma qualifi cação da mesma obrigação do promitente-vendedor e do promitente comprador. A distinção aqui feita não é me-ramente acadêmica, pois que a toma, em outro sentido, Alfredo Col-mo, para mostrar que as cláusulas acessórias quando ilícitas carreiam a nulidade do direito principal, o que não é verdade quanto às obrigações acessórias, cuja inefi cácia deixa incólume a principal.” 16

2. CASO GERADOR:

Bernardo, Eduardo e Ricardo são três criadores de cavalos no interior de São Paulo. Embora trabalhem separadamente, o intercâmbio de cavalos entre as suas respectivas fazendas é intenso, sendo comum que dois, ou até mesmo os três, façam negócios em conjunto.

No início do ano, Luís, experiente investidor em leilões de bovinos e ca-valos, procurou os três em busca de renovação do seu plantel de cavalos. Empolgado com a qualidade apresentada pelos cavalos dos três criadores, e buscando se assegurar de que receberia um bom cavalo ao fi nal do negócio, Luis resolve propor aos três criadores o seguinte contrato de compra e venda: pelo preço de R$ 60.000,00, Bernardo, Eduardo e Ricardo deveriam entregar a Luis, até o fi nal do ano, uma das crias do cavalo Itajara, campeão de diver-sos torneios, o qual era criado na fazenda de Bernardo, mas de propriedade dos três criadores.

Com base no caso acima, responda:

Tendo algumas das crias de Itajara nascido com doença que não inviabiliza a vida cotidiana, mas veda as suas participações em cor-ridas e competições que exijam demais do animal, podem os cria-dores entregar uma dessas crias como cumprimento do pactuado? Justifi que com base na legislação pertinente.

E se todas as crias de Itajara tivessem nascido com a referida doen-ça? Poderia Luis simplesmente resolver a obrigação, desonerando assim os criadores?

16 Idem. Pg. 122

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E se apenas uma cria sobreviveu ao parto da égua reprodutora e justamente essa cria vem também a falecer por culpa de um empre-gado de Bernardo, que alimentou o animal com ração fortifi cado-ra cuja validade havia expirado? Pode Luis ingressar judicialmente contra Ricardo para cobrar o equivalente ao valor do cavalo, pago no momento da contratação? E as eventuais perdas e danos?

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AULA 8: PAGAMENTO: LUGAR, TEMPO E PROVA

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Pagamento. Extinção Normal das Obrigações — Natureza Jurídica do Pa-gamento O solvens O Accipiens Credor putativo Pagamento feito ao inibido de receber Objeto do pagamento e sua prova.

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Aleixo, Celso Quintella. “Pagamento”, in Gustavo Tepedino (org) Obriga-ções: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Reno-var, 2005; pp. 275/302.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 187/222. Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa Helena. Código Civil interpretado conforme a Consti-tuição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 589/626.

1. ROTEIRO DE AULA:

Pagamento. Extinção Normal das Obrigações

As obrigações, como visto, têm caráter de efemeridade, pois são fadadas ao seu exaurimento, ou melhor, à sua realização. Nesse sentido, o pagamento é o meio normal de sua extinção. O desfecho natural da obrigação é o seu cumprimento.

A noção de pagamento pode se traduzir em mais de um conceito: em sen-tido estrito e mais comum, a prestação de dinheiro; em senso preciso, a en-trega da res debita, qualquer que seja esta; e numa acepção mais geral, qual-quer forma de liberação do devedor, com ou sem prestação.17

Observa-se que o termo pagamento, em sentido geral, representa toda a forma de cumprimento da obrigação. Isso remete à velha noção de solutio que era prevista no Direito Romano. No Código Civil, essa é a noção enun-ciada nos arts. 304 e seguintes.

17 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro:

Forense: 2004; p. 167.

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Essa noção de pagamento deve ser transposta às obrigações de dar, fazer e não fazer. Paga-se na compra e venda, quando se entrega a coisa vendida. Paga-se na obrigação de fazer, quando se termina a obra ou atividade enco-mendada. Paga-se na obrigação de não fazer, quando o devedor se abstém de praticar o fato, por um tempo mais ou menos longo.

O pagamento pode assumir a forma de um negócio bilateral, e nesse senti-do, verifi ca-se a existência de obrigações recíprocas, havendo o dever de pagar para ambas as partes. É o examinado na compra e venda, onde simultanea-mente cabe ao devedor pagar pelo bem a quantia estipulada e ao vendedor entregar a coisa.

Conforme se observará mais adiante, há formas especiais de cumprimento das obrigações, muitas delas enveredando pela tutela jurisdicional.

Casos há, em que dada a impossibilidade de cumprir a obrigação, não existe por conseguinte a possibilidade de cumprir o pagamento. Isso pode ou não resultar de culpa do devedor. Se ocorrer sem culpa do mesmo, a obriga-ção segue o caminho da extinção; por outro lado, se o devedor concorre com culpa para a impossibilidade de pagar, deverá responder por perdas e danos. Aqui vale destacar que essa indenização pela inexecução da prestação não tem natureza de pagamento, embora o substitua.

Natureza Jurídica do PagamentoPercebe-se que o pagamento pode assumir diversas feições sendo justa-

mente por conta desse fato que surge a difi culdade na caracterização de sua natureza jurídica.

É complexo tentar instituir uma natureza única para o pagamento. Diver-gem os autores, havendo quem o qualifi que como fato jurídico, como outros que asseveram o seu teor negocial (negócio jurídico). Para essa última corren-te, o fundamento principal reside no fato de que o pagamento não é um simples acontecimento, mas é também marcado por um forte elemento psí-quico — o animus solvendi —, sem o qual, seria confundido com uma sim-ples liberalidade.18

Caio Mário da Silva Pereira se fi lia a corrente de que o pagamento seria negócio jurídico quando o direito de crédito versasse sobre uma prestação que tenha caráter negocial. Quando esse elemento fosse inexistente, estar-se-ia diante de mero fato jurídico.

A importância da defi nição da natureza jurídica do pagamento não é em verdade mera elucubração teórica. Considerar o pagamento como sendo ne-gócio jurídico, sob a perspectiva prática, signifi ca considerá-lo sob o enfoque de seus elementos constitutivos e requisitos de validade e efi cácia, isto é, o exame será mais rigoroso, podendo o mesmo ser qualifi cado como inexistente, nulo ou anulável. Corporifi ca-se no negócio jurídico um rigor muito maior do que o observado caso o pagamento seja reputado como simples fato jurídico.

18 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro:

Forense: 2004; p. 168.

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O solvens

Em regra, quem é obrigado a pagar é o devedor, mas isso não exclui a pos-sibilidade de que terceiros o façam.

No estudo do pagamento, este não deve ser visualizado somente sob a óti-ca de uma atuação por parte do devedor. Deve-se ter em mente que efetuar o pagamento em conformidade com as condições acordadas pelas partes é também um direito do devedor, na medida em que se não o faz, torna sua obrigação em regra ainda mais onerosa. E nesse sentido a lei inclusive dota o devedor de instrumentos legais que garantam o seu direito de adimplir a obrigação.

A previsão para que terceiros saldem a obrigação encontra-se no art. 304 do Código Civil. Excetuam-se, por força da lógica, as obrigações personalís-simas, isto é, aquelas obrigações onde a fi gurado devedor é primordial para o próprio cumprimento da obrigação:

Art. 304. Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor.

Parágrafo único. Igual direito cabe ao terceiro não interessado, se o fi zer em nome e à conta do devedor, salvo oposição deste.

Um exemplo de interessado é o fi ador. Interessado poderia ser concebido aqui como um termo genérico que abarca aqueles que seriam de alguma for-ma atingidos pelos efeitos jurídicos que se desdobram dessa relação jurídica em curso. Se o devedor não paga, competirá ao fi ador, por força de contrato, fazê-lo. Do inadimplemento perpetrado pelo devedor podem sobrevir novos encargos, como juros, multas contratuais diversas, entre outros que torna-riam mais gravosa a obrigação. No intuito de preservar o seu patrimônio, o fi ador se antecipa e efetua o pagamento, minorando efeitos que se estende-riam sobre a sua própria órbita.

Nessa hipótese de terceiro interessado, não pode o credor recusar o recebi-mento da prestação. O parágrafo único do art. 304 acrescenta que o terceiro não interessado tem o mesmo direito de pagar, “se o fi zer em nome e por cota do devedor”.

O caso clássico levantado em obras doutrinárias é o do pai que paga dívida do fi lho. O interesse aqui extrapola o campo jurídico e enveredada pelo cam-po moral, altruístico. Não há necessidade de anuência nem do credor, nem do devedor.19

Diferentemente dessa primeira hipótese, pode o terceiro não interessado pagar a obrigação fazendo-o não em nome do devedor, mas em seu próprio

19 Conforme será examinado mais

adiante na fi gura da Consignação em

Pagamento, modalidade especial de

pagamento, onde o devedor, diante da

recusa do credor em receber o paga-

mento, deposita o mesmo em juízo, é

possível ao terceiro não interessado se

valer dessa forma de pagamento.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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nome. Nesse caso, terá o direito de reembolsar-se do valor pago, mas não haverá sub-rogação nos direitos do credor.20

A vedação dessa sub-rogação decorre da proteção a que a lei confere ao devedor, quem inclusive pode ver a sua situação agravada pelo pagamento em tais condições. Esse adimplemento feito por terceiro não interessado pode ter fi ns especulativos, tornando mais onerosa a prestação do devedor, ou pode colocá-lo em situação de constrangimento moral.

Por outro lado, sendo o credor interessado quem paga o débito, haverá sub-rogação em todos os direitos de crédito, conforme o disposto no art. 346 do Código Civil:

Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor:I do credor que paga a dívida do devedor comum;II do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipo-

tecário, bem como do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel;

III do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte.

Surge ainda outra hipótese: o devedor possui justo motivo para não pagar a dívida, mas não obstante, o terceiro interessado não só a paga, como ainda o faz em adiantamento, isto é, antes do vencimento da mesma.

Para exemplifi car a existência desse justo motivo, pode-se destacar as se-guintes situações: uma dívida prescrita; uma obrigação oriunda de negócio jurídico anulável; a possibilidade de alegar exceção do contrato não cumpri-do. O atual Código Civil prevê a solução dessa questão no art. 306:

Art. 306. O pagamento feito por terceiro, com desconhecimento ou oposição do devedor, não obriga a reembolsar aquele que pagou, se o devedor tinha meios para ilidir a ação.

Nesse sentido, deve-se ressaltar que o motivo da oposição levantada pelo devedor deve ser justa. O terceiro que paga a obrigação (terceiro solvens), deve ter conhecimento dessa oposição, e caso decida prosseguir com o pagamento, o fará assumindo o risco expresso nesse dispositivo, qual seja, o de nada rece-ber na hipótese do devedor possuir meios para elidir a ação contra o credor.

Outra situação é quando o terceiro paga sem que o devedor tome conhe-cimento, sendo que este tinha motivo justo para não fazê-lo. Se o terceiro pagou mal, só poderá buscar o reembolso do devedor até o montante em que este pagamento o aproveitou.

Seria o caso, por exemplo, do terceiro que salda dívida onde o devedor poderia alegar, sob parte da obrigação, exceção do contrato não cumprido.

20 O termo sub-rogação já foi exa-

minado por ocasião das obrigações

solidárias e será novamente abordado

de forma mais completa adiante. Sub-

rogar-se signifi ca assumir a posição na

relação jurídica, e dessa forma, no caso

em tela, a lei veda que o terceiro não

interessado que salda a obrigação do

devedor assuma juntamente com a po-

sição do credor todas as prerrogativas

que são conferidas. Por exemplo, se o

credor original possuir alguma garantia

real (p. ex. uma hipoteca), não será a

mesma conferida ao terceiro que arca

com a dívida.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 54

Nesse caso, o terceiro deve ser ressarcido com relação à parte que aproveitou ao devedor, ou seja, em razão da parte da obrigação que seria realmente devi-da. Já quanto ao montante que pagou mal, deverá repetir do credor que, em tese, recebeu mais do que lhe era realmente devido.

O norte interpretativo nesses casos segue a idéia de que o pagamento feito por terceiro não pode agravar a situação do devedor sob nenhuma circunstância.

A lei não se ocupa da hipótese em que tanto credor como devedor se opõem ao pagamento feito por terceiro não interessado. Certo é que se deve entender pela impossibilidade do mesmo, visto que a ingerência desse tercei-ro na relação jurídica é plenamente indesejada.

O Accipiens

A regra geral em matéria da pessoa que recebe é a aquela constante do art. 308 do Código Civil. Ordinariamente, quem recebe o pagamento é o credor, mas situações podem ocorrer onde este esteja inibido de receber, quando o devedor poderá desincumbir-se pagando a quem não seja credor.

Muitas são as modalidades de pagamento e as formas pelas quais ele pode ser exercido. Muitos também são os conceitos jurídicos a ele conexos, de sorte que é impossível uma defi nição abstrata de quem pode receber (accipiens). Pode-se demonstrar essa difi culdade a partir dos seguintes exemplos:

(i) Numa compra e venda, que é negócio jurídico bilateral onde há co-respectividade no dever de prestar, ao comprador deve ser entregue o bem, e ao vendedor deve ser entregue o montante referente a essa transação;

(ii) Numa obrigação qualquer, o credor originário pode, no momento do pagamento, já ter sido substituído, como no caso da cessão de crédito ou da sucessão a título universal, quando o herdeiro assume a posição de accipiens;

(iii) nas obrigações solidárias, assim como nas indivisíveis, qualquer um dos credores pode receber a prestação; e

(iv) sendo a obrigação divisível e não solidária, o pagamento deve ser efe-tuado a cada um dos credores no montante que compete a cada um.

O art. 308 do Código Civil remete às hipóteses de representação, onde o representante atua em nome do representando, tendo entre outros poderes, a faculdade de receber, em nome deste, créditos a que faça jus.

Art. 308. O pagamento deve ser feito ao credor ou a quem de direito o represente, sob pena de só valer depois de por ele ratifi cado, ou tanto quanto reverter em seu proveito.

Tratando-se de direito dispositivo, dois contraentes podem estabelecer ainda que o accipiens de uma obrigação seja um terceiro que não tenha to-

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 55

mado parte na negociação, ou melhor, que nem mesmo saiba da existência da mesma.

Segundo regra do art. 308, o pagamento feito à pessoa não designada para recebê-lo pode ser posteriormente convalidado mediante ratifi cação do cre-dor ou de seu representante.

Outro dado relevante reside no fato de que para receber não é necessário que o indivíduo se apresente munido de instrumentos formalmente institu-ídos, como o mandato. É a situação de quem se apresenta munido do um instrumento de quitação emitido pelo credor (art. 311 do Código Civil).

Credor putativo

Pode ocorrer do devedor realizar pagamento à pessoa que tenha a aparên-cia de credor ou mesmo de pessoa autorizada. Esse é o caso do credor pu-tativo, cujo exemplo mais proeminente reside na fi gura do credor aparente. Em suma, trata-se da situação em que se efetua um pagamento a pessoa não legitimada a recebê-lo, mas que de acordo com o contexto parecia possuir tais poderes.

O Código Civil dispõe no art. 309 que:

Art. 309. O pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que não era credor.

Para que o pagamento seja reputado válido, não só se faz necessário que o accipiens tenha a aparência de credor, como também que o solvens esteja de boa-fé. O verdadeiro credor deverá retomar o pagamento do falso accipiens.

São três as situações em que o devedor pode se exonerar pagando a terceiro não intitulado:

(i) Ratifi cação pelo credor do pagamento recebido por outrem. Isto é, pago equivocadamente, mas ainda assim o credor, anuindo com o pagamen-to realizado, libera o devedor (art. 308);

(ii) Quando o pagamento, mesmo realizado a pessoa diversa, reverte em benefício do credor. Aqui incumbe o ônus da prova ao solvens. Ex.: Paga-mento efetuado ao irmão do credor (R$1000,00) que somente lhe repassou 30% do valor (R$300,00). Deve o solvens provar o repasse dos R$300,00 reais ao credor, de modo a poder arcar apenas com os outros R$ 700,00 não recebidos por aquele. Logicamente, valendo-se dos meios judiciais apropria-dos, repetirá o indevidamente pago ao irmão do credor (art. 308);

(iii) A questão acima examinada referente ao credor putativo (art. 309).

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 56

Pagamento feito ao inibido de receber

O pagamento efetuado a incapaz somente é válido se o mesmo não tinha conhecimento desse estado de incapacidade. A incapacidade inibe a prática de atos jurídicos pelo agente, conforme reforçado pelo art. 310 do Código Civil:

Art. 310. Não vale o pagamento cientemente feito ao credor incapaz de quitar, se o devedor não provar que em benefício dele efetivamente reverteu.

O art. 312 refl ete outra situação onde o credor é inibido a receber:

Art. 312. Se o devedor pagar ao credor, apesar de intimado da pe-nhora feita sobre o crédito, ou da impugnação a ele oposta por tercei-ros, o pagamento não valerá contra estes, que poderão constranger o devedor a pagar de novo, fi cando-lhe ressalvado o regresso contra o credor.

Nesse caso, deve o solvens ter conhecimento da penhora ou da oposição de terceiro. Se ainda assim resolver pagar ao credor, estará assumindo o risco de que esse pagamento não seja reportado efi caz.

Objeto do pagamento e sua prova

O objeto do pagamento é a prestação acordada pelas partes. Uma vez paga, extinguir-se-á a obrigação. Conforme já examinado, não pode o credor ser obrigado a receber coisa diversa da estabelecida no acordo de vontades, ainda que fl agrantemente mais valiosa.

As perdas e danos, no caso de inadimplemento, são substituição de paga-mento e não pagamento. Da mesma fora, não são pagamento outras formas de extingui-la, tais como a transação, a dação, a sub-rogação, entre outras.

O pagamento em dinheiro somente pode ser efetuado em moeda corrente no país, proibindo-se o uso de moeda estrangeira.

Nas obrigações de fazer o pagamento se dá pela execução da atividade de-fi nida como objeto da prestação. O mesmo ocorre na obrigação de não fazer.

Prova é a demonstração material, palpável de um fato, ato ou negócio jurí-dico. Ela corporifi ca a existência desses elementos. É a manifestação concreta de um acontecimento.

A quitação é a prova desse pagamento e é direito daquele que paga dela se munir. O recibo é o instrumento da quitação. De acordo com o art. 319, o

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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devedor pode reter o pagamento enquanto não lhe for dada a quitação. Os requisitos do recibo, por sua vez, encontram-se no art. 320.

Art. 319. O devedor que paga tem direito a quitação regular, e pode reter o pagamento, enquanto não lhe seja dada.

Art. 320. A quitação, que sempre poderá ser dada por instrumento particular, designará o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante.

Recibo é o documento idôneo para comprovar o pagamento das obriga-ções de dar e fazer. Nas obrigações de não fazer, o ônus da prova é do credor, que deve evidenciar se foi praticado o ato ou os atos.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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AULA 9: FORMAS ESPECIAIS DE PAGAMENTO

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Pagamento por consignação — Pagamento com sub-rogação Imputação de pagamento Dação em Pagamento (datio in solutum) — Novação — Compensação — Transação Compromisso — Confusão Remissão

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Soares, Alice dos Santos. “Pagamento indireto ou especial”, in Gustavo Te-pedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 399/428.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 223/259. Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa Helena. Código Civil interpretado conforme a Consti-tuição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 627/688.

1. ROTEIRO DE AULA:

Pagamento por consignação

A primeira modalidade especial de pagamento que merece tratamento em apartado é a consignação. Essa modalidade especial de extinção da obrigação centra-se no fato de que, não apenas o credor, mas também o devedor possui interesse em extinguir a obrigação. Caso não efetue o pagamento da forma devida, ou seja, no tempo, lugar e condições inicialmente estabelecidas, ob-servará o devedor uma maior oneração por conta da constituição em mora. Esse fator é decisivo no interesse do devedor em encerrar a relação obrigacio-nal através do seu regular pagamento.

Se a obrigação for de dar uma coisa, por exemplo, enquanto não se perfaz a tradição, com a regular entrega da coisa ao credor, o devedor é responsável pela guarda e conservação da mesma.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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A consignação extingue a obrigação com o depósito judicial da coisa devi-da, nos casos e formas legais. É a previsão do art. 334 do Código Civil:

Art. 334. Considera-se pagamento, e extingue a obrigação, o depó-sito judicial ou em estabelecimento bancário da coisa devida, nos casos e forma legais.

A consignação em pagamento é um meio coativo de extinção da obriga-ção que pode ser utilizado pelo devedor nos casos em que o credor obsta de alguma forma o recebimento da prestação. Pode o devedor se valer dela, por exemplo, nas hipóteses de negativa do credor em receber, ou quando este estipula condições diversas das previstas no instrumento contratual.

A consignação em pagamento é uma faculdade à disposição do devedor. Não é imperativo que o devedor a realize, encontrando-se tão somente obri-gado a realizar a prestação da forma acordada com o credor.

O devedor está obrigado ao pagamento nas condições inicialmente pre-vistas, pois foi com foco nelas que anuiu com a obrigação. Pode ocorrer, contudo, que razões de ordem prática e de absoluta conveniência instiguem o devedor se valer dessa espécie de ação.

Um exemplo pode ser observado na consignação do valor de aluguel, quando o credor se nega a receber. Não recebendo o aluguel, em tese, o cre-dor abre espaço para a propositura de ação de despejo. Consignando-se valor, o devedor afastaria essa possibilidade.

A consignação não é um expediente jurídico que se presta somente ao depósito de dinheiro. Qualquer coisa que seja objeto da obrigação pode ser consignada. Nesse sentido, vale recorrer ao art. 341 do Código Civil:

Art. 341. Se a coisa devida for imóvel ou corpo certo que deva ser entregue no mesmo lugar onde está, poderá o devedor citar o credor para vir ou mandar recebê-la, sob pena de ser depositada.

Para as hipóteses de obrigações alternativas, é necessário, como visto, que a escolha seja procedida pelo credor. Se o credor retardar o cumprimento da obrigação, essa faculdade de escolha pode ser perdida, sendo a mesma feita pelo devedor e em seguida consignada, implicando na conseqüente extinção do vínculo. Trata-se do previsto no art. 342 do Código Civil:

Art. 342. Se a escolha da coisa indeterminada competir ao credor, será ele citado para esse fi m, sob cominação de perder o direito e de ser depositada a coisa que o devedor escolher; feita a escolha pelo devedor, proceder-se-á como no artigo antecedente.

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A consignação é modalidade de pagamento, e dessa forma, o seu objeto deve ser certo. Obrigações ilíquidas, isto é, aquelas cujo valor ainda não foi apurado, não podem ser objeto de consignação. Somente após tornarem-se líquidas poderá ser realizada a consignação.

As obrigações que são puramente de fazer e de não fazer não admitem consignação. A obrigação de não fazer, em qualquer situação, será sempre incompatível com a medida. A obrigação de fazer, por sua vez, sempre que implicar na entrega da coisa, poderá haver a consignação.

Da mesma forma, o imóvel pode ser consignado na medida em que o depósito das chaves simboliza a consignação do todo.

As cinco hipóteses de consignação estão enunciadas pelo art. 335 do Có-digo Civil:

Art. 335. A consignação tem lugar:I se o credor não puder, ou, sem justa causa, recusar receber o paga-

mento, ou dar quitação na devida forma;II se o credor não for, nem mandar receber a coisa no lugar, tempo

e condição devidos;III se o credor for incapaz de receber, for desconhecido, declarado

ausente, ou residir em lugar incerto ou de acesso perigoso ou difícil;IV se ocorrer dúvida sobre quem deva legitimamente receber o ob-

jeto do pagamento;V se pender litígio sobre o objeto do pagamento.

Ao analisar cada inciso em particular, pode-se constatar o seguinte:No caso do art. 335, I, tem-se o caso da dívida portable, quando o devedor

é o portador do pagamento, devendo levá-lo até o credor. Aqui é necessário que se observe a existência ou não de justa causa no não recebimento por parte do credor. Não haverá justa causa em situações como aquela em que o credor tenta receber mais do que o que lhe é devido.

No entanto, não constitui essa falta de justa causa em não receber, ou em não dar quitação, uma condição necessária para que se proceda com a con-signação, na medida em que esse instrumento poderá ser utilizado também nos casos em que o credor está impossibilitado de receber.

No caso do art. 335, II, trata-se da chamada dívida quérable, isto é, quan-do compete ao credor ir receber a prestação. Nesse caso, o credor permanece inerte, não indo até o devedor e o mesmo, para por termo à obrigação, con-signa o valor devido.

Na hipótese do art. 335, III, vale destacar que inicialmente o credor nunca é desconhecido, mas, em certas situações, no correr da relação obrigacional, a indeterminação pode surgir, como no caso do credor que falece, abrindo-se a sucessão e desconhecendo-se os herdeiros.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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No caso do art. 335, IV, o pagamento feito de forma incorreta, àquele ilegitimado para recebê-lo, implicará na não desoneração do devedor. Um dos exemplos que poderiam ser aventados corresponde justamente ao credor que falece e cujo patrimônio é aberto a sucessão. Não se sabe quem assumirá a posição de credor e o pagamento, feito erroneamente, não propiciará a desoneração.

Por fi m, no art. 335, V, haverá espaço para consignação se existir um li-tígio entre o credor e um terceiro, onde o terceiro reivindica o pagamento. O devedor não sabe a quem pagar e desonerar-se-á depositando a coisa em juízo. O art. 344 do Código Civil especifi ca essa situação:

Art. 344. O devedor de obrigação litigiosa exonerar-se-á mediante consignação, mas, se pagar a qualquer dos pretendidos credores, tendo conhecimento do litígio, assumirá o risco do pagamento.

A consignação congrega elementos tanto de direito material como tam-bém processual (arts. 890 a 900 do Código de Processo Civil), sendo um verdadeiro procedimento judicial.

O artigo 890 do CPC admite a consignação nas hipóteses de previsão legal, qual seja, aqueles previstos no Código Civil e em toda a legislação ex-travagante.

A possibilidade de consignação nasce com o vencimento da dívida, na me-dida em que o credor não pode ser obrigado a receber antes do prazo. O valor consignado deve encampar as correções devidas, pois do contrário, ocorreria injusto enriquecimento do consignante.

Informações referentes ao foro da consignação podem ser encontradas no art. 891 CPC e 337 do Código Civil:

Art. 891. Requerer-se-á a consignação no lugar do pagamento, ces-sando para o devedor, tanto que se efetue o depósito, os juros e os riscos, salvo se for julgada improcedente.

Parágrafo único. Quando a coisa devida for corpo que deva ser en-tregue no lugar em que está, poderá o devedor requerer a consignação no foro em que ela se encontra.

Art. 337. O depósito requerer-se-á no lugar do pagamento, cessan-do, tanto que se efetue, para o depositante, os juros da dívida e os ris-cos, salvo se for julgado improcedente.

Uma vez que seja feito o depósito, a sentença que o tenha deferido apre-sentará efeitos retroativos (efeitos ex tunc). A responsabilidade do devedor termina nesse momento, mas a sua mora, no entanto, retroage à data de sua citação. Por outro lado, caso a decisão do julgamento tenha sido no sentido

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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de improcedência do pedido ou extinção sem julgamento do mérito, o depó-sito efetuado será inefi caz, como se nunca houvesse se processado.

Com o depósito, cessam as obrigações de juros e riscos com a coisa. A correção monetária e juros, a partir daí, serão responsabilidade da instituição fi nanceira depositária dos valores. As despesas com a guarda e a conservação da coisa, uma vez que o pedido de consignação seja deferido, estarão a cargo do credor.

Nas hipóteses envolvendo prestações periódicas, vale conferir o disposto no art. 892 do Código de Processo Civil:

Art. 892. Tratando-se de prestações periódicas, uma vez consignada a primeira, pode o devedor continuar a consignar, no mesmo proces-so e sem mais formalidades, as que se forem vencendo, desde que os depósitos sejam efetuados até 5 (cinco) dias, contados da data do ven-cimento.

O art. 896 do CPC, atentando aos elementos já enunciados pelo direito material, trata de alegações que podem ser apresentadas pelo réu na contes-tação à consignação.

Art. 896. Na contestação, o réu poderá alegar que:I não houve recusa ou mora em receber a quantia ou coisa devida;II foi justa a recusa;III o depósito não se efetuou no prazo ou no lugar do pagamento;IV o depósito não é integral.Parágrafo único. No caso do inciso IV, a alegação será admissível se

o réu indicar o montante que entende devido.

Pagamento com sub-rogação

A sub-rogação, que pode ser entendida através do vocábulo substituição, não é verdadeiramente uma forma de extinção da obrigação, mas sim de alte-ração da posição do credor da relação obrigacional. O instituto é tratado no Código Civil pelos arts. 346 e seguintes.

Nessa modalidade especial de pagamento, um terceiro efetua o pagamento no lugar do devedor original e, dessa forma, substitui o credor. O terceiro que paga torna-se credor em relação ao devedor, passando a dispor de todos os direitos, ações e garantias que tinha o credor substituído.

Ao devedor não importará prejuízo visto que deverá pagar exatamente aquilo que seria devido ao credor original. A dívida toda é conservada, não existindo extinção em nenhuma parte.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 63

Uma das mais pertinentes considerações acerca da natureza da sub-rogação é a de que a mesma não é, em verdade, um meio de extinção da obrigação. A obrigação subsiste, sendo apenas alterado o titular do crédito.

Adicionalmente, a sub-rogação e a cessão de crédito são institutos que possuem certas similitudes, não podendo ser confundidas.

A sub-rogação centra-se no pagamento de uma dívida efetuada por ter-ceiro fi cando necessariamente vinculada aos termos dessa dívida. O valor devido àquele que se sub-roga será necessariamente coincidente com o valor inicialmente devido ao credor original.

A cessão de crédito, por sua vez, pode ter efeito especulativo, e pode ocor-rer mediante a transferência de numerário diversa do valor da dívida em si.

Na cessão de crédito é necessário que o devedor seja notifi cado de tal negócio jurídico (art. 290 CC). Na sub-rogação, por seu turno, essa comuni-cação não se faz obrigatória.

A cessão de crédito possui a natureza de alienação de um direito, caráter esse inexistente na sub-rogação.

A sub-rogação pode se processar ainda que sem a anuência do credor. O mesmo não ocorre na cessão, onde mister se faz a manifestação de vontade do titular do crédito no sentido de negociá-lo.

O art. 346 do Código Civil determina as hipóteses de sub-rogação legal:

Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor:I do credor que paga a dívida do devedor comum;II do adquirente do imóvel hipotecado, que paga a credor hipo-

tecário, bem como do terceiro que efetiva o pagamento para não ser privado de direito sobre imóvel;

III do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte.

O art. 346, III, trata da situação mais comum e mais útil para utilização da sub-rogação. Como exemplos pode-se mencionar:

O fi ador que paga dívida do afi ançado e sub-roga-se nos direitos do credor;

O devedor solidário que paga toda a dívida e sub-roga-se e assume a posição de credor dos demais;

No primeiro exemplo, o fi ador, ao arcar com os valores referentes à dívida antes de ser acionado nesse sentido, preserva-se da necessidade de efetuar pagamento mais oneroso.

As duas formas de sub-rogação convencional são delimitadas pelo art. 347 do Código Civil:

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 64

Art. 347. A sub-rogação é convencional:I quando o credor recebe o pagamento de terceiro e expressamente

lhe transfere todos os seus direitos;II quando terceira pessoa empresta ao devedor a quantia precisa para

solver a dívida, sob a condição expressa de fi car o mutuante sub-rogado nos direitos do credor satisfeito.

Trata-se de mero acordo de vontade entre o credor e o terceiro que arca com a dívida, sem que, contudo, recorra-se a maiores formalidades.

Na primeira hipótese, não há necessidade nem mesmo do conhecimento por parte do devedor, quiçá de sua anuência em relação à sub-rogação.

No segundo caso, o devedor passa a dever ao mutuante com todos os de-veres originários daquela obrigação.

Como examinado, no pagamento com sub-rogação, o credor original é satisfeito sem que isso importe em extinção da obrigação.

Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fi adores.

A fi nalidade especulativa, conforme tratada na distinção em relação à ces-são de crédito, não pode existir. O sub-rogado não pode receber nada além do que receberia o credor originário.

Na sub-rogação convencional, as partes podem manifestar sua vontade no sentido de alteração dos valores, conforme se depreende do art. 350 do Código Civil:

Art. 350. Na sub-rogação legal o sub-rogado não poderá exercer os direitos e as ações do credor, senão até à soma que tiver desembolsado para desobrigar o devedor.

No pagamento parcial, por sua vez, o credor originário tem preferência em face daquele que o sub-roga (art. 351 do Código Civil).

Imputação de pagamento

A imputação de pagamento pode ser observada quando da existência de vários débitos de um mesmo devedor em relação a um mesmo credor. Há pluralidade de dívidas, de forma que um pagamento efetuado pode vir a ex-tinguir uma ou mais de uma delas. Dessa forma, a imputação de pagamento

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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é um expediente jurídico que confere certa lógica na defi nição de que relações obrigacionais devem ser reputadas como extintas.

Nesse sentido, é preciso que essas dívidas sejam da mesma natureza, líqui-das e já vencidas. É o que dispõe o art. 352 do Código Civil.

Art. 352. A pessoa obrigada por dois ou mais débitos da mesma natureza, a um só credor, tem o direito de indicar a qual deles oferece pagamento, se todos forem líquidos e vencidos.

A preferência na escolha da dívida a ser adimplida é do devedor. O art. 352 defi ne que compete ao obrigado fazer essa imputação. Na hipótese de silêncio por parte do devedor, não se manifestando este dentro do tempo certo, a escolha passa ao credor (art. 353). Quando nenhuma das partes se manifesta em tempo oportuno, a lei assume o papel de orientar a solução dos débitos, indicando qual deles deve ser tido como adimplido. Essa é a impu-tação legal, prevista no art. 355 do Código Civil.

Art. 353. Não tendo o devedor declarado em qual das dívidas líqui-das e vencidas quer imputar o pagamento, se aceitar a quitação de uma delas, não terá direito a reclamar contra a imputação feita pelo credor, salvo provando haver ele cometido violência ou dolo.

Art. 355. Se o devedor não fi zer a indicação do art. 352, e a quitação for omissa quanto à imputação, esta se fará nas dívidas líquidas e venci-das em primeiro lugar. Se as dívidas forem todas líquidas e vencidas ao mesmo tempo, a imputação far-se-á na mais onerosa.

Os requisitos da imputação de pagamento estão também no art. 352 do Código Civil. São eles: (i) pluralidade de débitos, sendo que os mesmos de-vem ser independentes entre si e não podendo o credor receber parcialmen-te21; (ii) a existência de um só credor e um só devedor; (iii) os débitos devem ser da mesma natureza, isto é, deve haver compatibilidade entre o objeto do pagamento; (iv) as dívidas devem ser líquidas22; (v) o pagamento ofertado pelo devedor deve ser sufi ciente para quitar ao menos uma das dívidas; e (vi) a dívida deve ser vencida.

Se o valor do pagamento exceder ao montante fi xado para a de menor valor, e não for sufi ciente para extinguir a obrigação mais onerosa, deve-se reputar como paga a dívida de menor valor, não sendo obrigado o credor a reter a diferença. Do contrário, seria ferido o princípio de que o credor não é obrigado a receber de forma diferente da estabelecida.

Não havendo acordo em contrário, a escolha na imputação é do devedor, devendo o mesmo ser tratado de forma mais benigna. Esse direito à realização da imputação não é absoluto, pois de acordo com o art. 354 do Código Civil,

21 Até mesmo por conta do artigo que

veda ser o credor obrigado a receber de

forma diversa da estipulada.

22 Obrigação líquida, de acordo com ao

art. 1533 do código de 1916, é a obri-

gação certa quanto à sua existência, e

determinada, quanto ao seu objeto.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 66

é necessário empregar o capital primeiramente nos juros vencidos. Imputar o dinheiro diretamente no capital não é uma opção válida para o devedor, a menos que tenha havido acordo entre as partes nesse sentido.

Art. 354. Havendo capital e juros, o pagamento imputar-se-á pri-meiro nos juros vencidos, e depois no capital, salvo estipulação em contrário, ou se o credor passar a quitação por conta do capital.

Se o devedor pagar uma ou mais dívidas não destacando ao credor qual a imputação, o credor terá liberdade para dar quitação na que quiser. A impor-tância dessa determinação reside no fato de que o credor, por força da lógica, dará quitação na dívida que lhe seja menos favorável. Estando, por exemplo, o devedor vinculado por duas dívidas uma quirografária e outra com garantia real é certo que o credor dará quitação na primeira, em virtude da ausência de garantia.

Se as duas partes forem omissas, a imputação será legal, observando-se os princípios que residem no código.

A imputação legal, como visto, obedece aos ditames do art. 355 do Códi-go Civil. Na aferição da dívida mais onerosa, cabe a atuação do juiz no caso concreto, não obstante a doutrina apresente alguns indicativos. Por exemplo: a orientação geral da lei é a de privilegiar o devedor, e dessa forma, a prefe-rência se manifesta na extinção de dívidas com garantia real ou fi ança, prete-rindo para outro momento as simplesmente quirografárias.

Dação em Pagamento (datio in solutum)

Dação em pagamento é uma modalidade de extinção da obrigação em que a mesma poderá ser resolvida mediante a substituição de seu objeto. O devedor entrega prestação diversa da inicialmente estabelecida, ou seja, dá-se algo distinto em pagamento. Logicamente, atentando à noção de que o cre-dor não pode ser obrigado a receber prestação diversa da estabelecida, ainda que mais valiosa, a dação em pagamento só se opera com o consentimento do credor.

Trata-se de um acordo de natureza liberatória que representa, em síntese, a substituição do objeto inicial da obrigação. A dação em pagamento pode consistir na (i) substituição de dinheiro por coisa; (ii) de uma coisa por outra; (iii) de uma coisa por uma obrigação de fazer.

A dação em pagamento é negócio jurídico bilateral, oneroso e real. Real no sentido de que corrobora na entrega de uma coisa, excepcionando-se os casos em que a prestação seja de fazer ou não fazer, pura e simples.

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Não há a necessidade de que o valor da prestação substituta seja igual ao da substituída. Deve haver tão somente a anuência do credor com o recebi-mento da coisa e com a conseqüente extinção da dívida.

A dação pode também ser parcial, como por exemplo, quando o devedor não possui capital sufi ciente para saldar a dívida e paga parte em dinheiro e parte em espécie.

O pagamento parcial também é possível. Nesse caso, o credor salda parte da dívida mediante dação em pagamento, e o restante da obrigação subsiste. Trata-se de campo amplo para o acordo de vontades entre as partes contra-tuais, imperando sempre a noção de que o credor não pode ser compelido a receber de forma que lhe seja desfavorável.

Para a aceitação da dação em pagamento, isto é, o recebimento de presta-ção diversa da devida, é necessário que o credor seja plenamente capaz. No caso deste ser incapaz, é necessária autorização judicial.

A dação em pagamento é usualmente confundida com a compra e venda. Nesse sentido, o artigo 357 do Código Civil defi ne o seguinte:

Art. 357. Determinado o preço da coisa dada em pagamento, as re-lações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda.

De acordo com a redação do artigo, para que se observe a equiparação à compra e venda, importante é que tenha ocorrido a fi xação do preço da coisa que substitui a prestação original. Caso isso não seja verifi cável, não haverá, em consonância com a dicção legal, que se falar em equiparação à compra e venda.

Equiparação aqui não traduz a idéia de identidade, de igualdade absoluta de regras aplicáveis. Como observado, o artigo 337 tem incidência tanto quando o objeto da dação for coisa móvel quando for imóvel. Se houver per-da coisa por conta da evicção, deve-se observar a repristinação da obrigação originária. É o que costa do art. 359 do Código Civil:

Art. 359. Se o credor for evicto da coisa recebida em pagamento, restabelecer-se-á a obrigação primitiva, fi cando sem efeito a quitação dada, ressalvados os direitos de terceiros.

A evicção é aplicável à dação em pagamento da mesma forma que se apre-senta para a compra e venda. A situação seria equivalente à inexistência de quitação, mantendo-se a obrigação da mesma forma que foi contraída origi-nalmente.

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Novação

A novação é uma modalidade de extinção das obrigações por meio da qual cria-se uma obrigação nova com o intento de extinguir uma obrigação antiga. O credor e o devedor, ou apenas o credor, extinguem a obrigação original e criam uma nova, que vinculará o devedor no lugar daquela. O surgimento da nova obrigação importa na necessária resolução da antiga.

A novação pode ser objetiva, quando se refere ao objeto da prestação. Trata-se da hipótese do art. 360, I, do Código Civil. A novação subjetiva, por sua vez, é tratada nos incisos II e III, havendo, em tais casos, a substituição do devedor ou do credor.

Art. 360. Dá-se a novação:I quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir

e substituir a anterior;II quando novo devedor sucede ao antigo, fi cando este quite com o

credor;III quando, em virtude de obrigação nova, outro credor é substituí-

do ao antigo, fi cando o devedor quite com este.

O instituto hoje não tem mais a mesma importância de que manifestava no direito romano, onde residem as suas raízes. Em grande parte se deve essa constatação ao advento de novas fi guras como a cessão de crédito, a assunção de dívida e a sub-rogação, que operacionalizam de forma mais racional gran-de parte das situações em que a novação poderia ser aplicada.

A novação não implica na satisfação do crédito, pois ele persiste, mas sob uma nova forma. A natureza extintiva é justifi cada, pois a obrigação primitiva desaparece, mas ainda assim não há que se falar em satisfação.

Outra consideração preliminar que se faz necessária é a anuência de ambas as partes, não se operando jamais a novação por força de lei.

No direito romano, a novação era um expediente técnico utilizado para solucionar o problema da intransmissibilidade das obrigações, fazendo com que a mesma obrigação, de certa forma, persistisse. No direito moderno, a novação tem o condão de criar uma obrigação inteiramente nova, inclusive admitindo-se a novação causal.

Novação causal é aquela que se opera pela mudança na causa debendi. Causa debendi, por sua vez, é a razão pela qual existe um determinado dé-bito, como por exemplo, a existência de um empréstimo, ou a realização de uma compra e venda. Dessa forma, as novações modernas permitem o surgi-mento de uma obrigação plenamente nova.

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Um exemplo do acima referido seria a novação de uma dívida de R$ 3.000 (três mil reais) por conta de uma compra e venda, a qual seria extinta me-diante o surgimento de um empréstimo de igual valor.

Como exemplo de uma novação meramente objetiva pode-se exemplifi car com aquela que se realiza na substituição da obrigação de dar 100 (cem) qui-los de açúcar por uma obrigação de entregar 300 (trezentos) quilos de feijão. Entregar o açúcar era a obrigação inicial, mas por conta do acordo entre as partes, o objeto da prestação foi alterado. O objeto, no caso, não só é a espé-cie de bem, como também a quantidade a ele referente.

Destaque-se que a alteração no prazo ou condição não implica em nova-ção da obrigação. Ainda, não implicam em novação o recebimento de parcela em atraso, a mudança do local de pagamento, a modifi cação simples do valor da dívida, o aumento ou diminuição de garantias, ou mesmo a substituição de um título representativo da dívida.

Apesar da lei não estabelecer maiores formalidades, a vontade de novar das partes deve se manifestar de forma expressa, clara e indubitável.

Como é perceptível, a novação se aproxima da dação em pagamento, es-tudada no tópico anterior. De todo modo, a distinção é clara: a dação em pagamento extingue a dívida, implicando na satisfação do credor, que por seu interesse, anuiu de forma desembaraçada em receber prestação diversa. A novação não implica nessa satisfação, pois o credor nada recebe.

A novação subjetiva pode ocorrer com a alteração tanto da fi gura do cre-dor como do devedor. A novação subjetiva passiva pode ocorrer por delega-ção ou expromissão.

Delegação — Aqui se verifi ca o consentimento do devedor originá-rio. É a hipótese defi nida pelo art. 360, II, do Código Civil, caben-do ao devedor da obrigação inicial indicar o seu substituto. Dessa maneira, observa-se a novação por delegação quando um terceiro, que é o delegado, anui em tornar-se devedor perante o credor, que aqui é o delegatório, implicando assim na extinção da dívida primi-tiva. Destaque-se que na delegação (pura e simples) o credor aceita o novo devedor, mas sem renunciar às suas prerrogativas face ao antigo devedor. Trata-se da delegação imperfeita.

Expromissão Da mesma forma que a delegação, também é novação subjetiva passiva. Trata-se, em verdade, de uma forma de expulsão do devedor originário, visto que um terceiro assume a dívida dele, com a concordância do credor, mas sem que seja necessária a anuên-cia do devedor. É o que dispõe o art. 362 do Código Civil:

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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Art. 362. A novação por substituição do devedor pode ser efetuada independentemente de consentimento deste.

O art. 360, III trata da novação no pólo ativo. Trata-se da substituição da fi gura do credor.

Os requisitos essenciais, conforme observado, são: (i) uma dívida anterior que se extingue; (ii) a criação de uma obrigação nova. Outros requisitos, no entanto, podem ser inferidos da própria dinâmica da novação, como: (iii) a validade da obrigação que se quer extinguir; (iv) o aliquid novi, ou seja, a al-teração em elementos substancias da obrigação; (v) o animus de novar; e (vi) legitimidade e capacidade para o ato de novar.

A obrigação natural pode ser novada. O pagamento feito tendo em vista uma obrigação natural não pode ser repetido, visto que ele é de fato devido e, por conta desse fato, chega-se a conclusão da possibilidade de sua novação. A nova obrigação, no entanto, será civil, e plena, contando com todos os elementos assecuratórios da sua exigibilidade.

De forma oposta, as obrigações nulas ou extintas não podem ser novadas. É inclusive entendimento expresso no art. 367 do Código Civil.

Art. 367. Salvo as obrigações simplesmente anuláveis, não podem ser objeto de novação obrigações nulas ou extintas.

O ânimo de novar também é um elemento imprescindível. E a sua au-sência importa em mera confi rmação da primeira obrigação. Nesse sentido, menciona o art 361 do Código Civil:

Art. 361. Não havendo ânimo de novar, expresso ou tácito mas ine-quívoco, a segunda obrigação confi rma simplesmente a primeira.

Capacidade e legitimidade, como visto, também são requisitos daquele que procede com a novação. No que toca a legitimação, um exemplo é a no-vação feita de ascendente a descendente que necessita de do consentimento dos demais descendentes.

Caso essa nova obrigação seja inválida, continua em vigor a obrigação originária. É a mesma regra aplicada na dação em pagamento (art. 359 do Código Civil).

Afora a extinção da dívida primitiva, outros efeitos podem ser observados. Um deles é que com a criação de uma nova obrigação os acessórios e garantias insertos na dívida antiga são extintos.

Art. 364. A novação extingue os acessórios e garantias da dívida, sem-pre que não houver estipulação em contrário. Não aproveitará, contudo,

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ao credor ressalvar o penhor, a hipoteca ou a anticrese, se os bens dados em garantia pertencerem a terceiro que não foi parte na novação.

Na novação por delegação, isto é, onde há alteração no pólo passivo da obrigação, o credor assume novo devedor por sua conta e risco, exonerando o primitivo devedor. Se o novo obrigado for insolvente, não há que tentar buscar a satisfação do crédito face ao antigo, excetuando-se os casos em que se observa a atuação com má-fé.

Compensação

Compensação, no direito obrigacional, signifi ca um acerto de débito e crédito entre duas pessoas que detêm simultaneamente a condição recíproca de credor e devedor. A extinção dos débitos se opera até o montante em que se contrabalançam.

O conceito de compensação é fornecido pelo art. 368 do Código Civil:

Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.

O principal benefício é evitar-se uma dupla ação, facilitando-se o adim-plemento. A compensação, vale ressaltar, possui natureza de meio extintivo das obrigações.

No que toca à compensação, nosso sistema jurídico fi lia-se à tradição fran-cesa, determinando que a compensação se opera por força de lei, de forma independente da iniciativa dos interessados. O art. 368, já transcrito, é claro nesse sentido.

A compensação voluntária ocorre por intermédio do acordo entre as par-tes, e nesse sentido é inclusive possível compensar dívidas ilíquidas e não vencidas.

A compensação judicial, como o próprio nome já alude, é aquela que se processa em juízo, decorrendo dos princípios da compensação legal. Não é compensação legal, pois a dívida pode vir a angariar liquidez somente no correr do processo judicial.

A compensação de créditos possui requisitos de ordem tanto objetiva como subjetiva. Como requisitos de ordem objetiva pode-se mencionar: (i) a reciprocidade de créditos; (ii) a homogeneidade das prestações; (iii) a regular constituição e exigibilidade dos créditos.

A compensação somente extingue obrigações existentes entre as partes, excluindo-se as referentes a terceiros. Esse entendimento pode ser percebido na dicção do art. 376 do Código Civil:

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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Art. 376. Obrigando-se por terceiro uma pessoa, não pode compen-sar essa dívida com a que o credor dele lhe dever.

A reciprocidade é afi rmada no art. 371 e traduz a idéia de que o devedor só pode compensar com o credor o que este lhe dever. Adicionalmente, esse dispositivo prevê uma exceção, qual seja, a possibilidade do fi ador se valer da compensação contra o credor do afi ançado.

Art. 371. O devedor somente pode compensar com o credor o que este lhe dever; mas o fi ador pode compensar sua dívida com a de seu credor ao afi ançado.

O art. 377 menciona a cessão de crédito. Nesse sentido, o devedor deve ser notifi cado da cessão de crédito. Caso não haja oposição à cessão feita por par-te do devedor, não poderá futuramente opor a compensação com o crédito que tinha em face do credor originário. Quando não tiver ocorrido qualquer comunicação sobre a cessão o devedor conserva esse direito de compensar o crédito, mas dessa vez face ao terceiro (cessionário). Logicamente, esse cessio-nário deverá reaver o que houver sido pago junto ao credor originário.

A obrigação natural, como visto, é inexigível, e, dessa forma, não pode ser compensada. Contudo, no tocante às obrigações prescritas, é importante atentar para um detalhe: se a prescrição se operou após a coexistência das dí-vidas, as mesmas devem ser reputadas compensadas, visto que a compensação se opera por força de lei. Trata-se de compensação pleno iure.

O art. 370 do Código Civil trata do requisito de que as prestações se-jam homogêneas. O objeto delas deve ser fungível. Dessa forma, reputam-se como compensáveis coisas da mesma natureza, e de qualidade semelhante. Por exemplo, não se pode compensar diferentes qualidades de café.

Art. 370. Embora sejam do mesmo gênero as coisas fungíveis, obje-to das duas prestações, não se compensarão, verifi cando-se que diferem na qualidade, quando especifi cada no contrato.

Os negócios jurídicos, como já examinado em aulas anteriores, se abre à análise nos planos da existência, validade e efi cácia. Se um dos créditos compensados for inexistente, nulo ou anulado, a dívida compensada deve ser revitalizada.

O art. 373 do Código Civil defi ne as hipóteses onde não pode ser obser-vada a compensação legal:

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Art. 373. A diferença de causa nas dívidas não impede a compensa-ção, exceto:

I se provier de esbulho, furto ou roubo;II se uma se originar de comodato, depósito ou alimentos;III se uma for de coisa não suscetível de penhora.

O inciso I trata de casos de delito e, logicamente, a lei não pode transigir que eles se prestem à compensação; no inciso II, o comodato e o depósito são contratos que afastam a idéia de fungibilidade entre as prestações e os alimentos, por se des-tinarem à subsistência dos indivíduos (se fossem compensados poderiam colocar em risco a vida humana); no inciso III, a impenhorabilidade redunda na incom-pensabilidade, tendo como exemplo o salário, que não pode ser compensado.

A compensação, como visto, produz os mesmo efeitos do pagamento. As obrigações são resolvidas e os credores (e devedores) recíprocos restam satis-feitos. A compensação legal dinamiza essa satisfação entre as partes.

Transação

A transação é uma forma de extinção da obrigação que tem por escopo impedir que as partes ingressem em juízo, ou uma vez já tendo recorrido ao judiciário, que coloquem fi m à lide.

O sentido da transação como forma de extinção das obrigações é determi-nado pelo art. 840 do Código Civil. O artigo, cumpre destacar, está presente na seção do código dedicada aos contratos:

Art. 840. É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o lití-gio mediante concessões mútuas.

Dessa forma, nesse instituto de natureza marcadamente contratual, cada uma das partes abre mão de parcela de seus interesses no intuito de impedir ou por fi m uma demanda judicial. A ocorrência de transação não signifi ca que alguma das partes abriu mão de seus direitos na totalidade, mas sempre será necessário que parte de suas pretensões sejam afastadas. A idéia de con-cessões mútuas deve prevalecer.

Dessa forma, os requisitos essenciais da transação são: (i) acordo de vontades; (ii) concessões mútuas; e (iii) extinção de obrigações litigiosas ou duvidosas.

A transação, como observado, é um negócio jurídico bilateral e de caráter contratual. Um dos indicativos desse enquadramento, além de ser tratado o instituto no campo próprio dos contratos, é a possibilidade de estabelecimen-to da pena convencional para a transação. Essa possibilidade decorre do art. 847 do Código Civil:

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FGV DIREITO RIO 74

Art. 847. É admissível, na transação, a pena convencional.

A transação é indivisível, pois quando uma de suas cláusulas é nula, assim será todo o negócio (art. 848 CC). Em relação à interpretação da transação, a mesma deve ser restritiva (art. 843 CC).

Existe certa celeuma sobre ter a transação um caráter declaratório ou cons-titutivo. De acordo com o art. 843 do Código Civil, observa-se um caráter eminentemente declaratório encampado pela lei. Na maior parte das vezes certamente será esse o perfi l dominante. Contudo, por vezes, o caráter cons-titutivo se faz marcante, em especial quando a transação passa a congregar novos direitos além daqueles que são litigiosos.

Poder-se-ia afi rmar então que, sendo a transação simples, seu efeito será declaratório.

A transação pode ser ainda judicial ou extrajudicial, dependendo se ocorre dentro ou fora do processo. O art. 842 destaca que:

Art. 842. A transação far-se-á por escritura pública, nas obrigações em que a lei o exige, ou por instrumento particular, nas em que ela o admite; se recair sobre direitos contestados em juízo, será feita por es-critura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz.

A transação extrajudicial não necessita de maiores formalidades, impor-tando preponderantemente o seu conteúdo. Sendo extrajudicial, a homo-logação não é necessária, servindo essa apenas para suprimir certos trâmites processuais.

Por conta de sua natureza contratual, a desistência unilateral da transação não é admitida.

A transação não pode ter por objeto todos os direitos, somente aqueles patrimoniais de caráter privado. Essa é a regra do art. 841 do Código Civil. Direitos indisponíveis como os relativos ao estado e capacidade das pessoas, os direitos puros de família e os direitos personalíssimos não podem ser ob-jeto desse contrato.

Art. 841. Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação.

A transação pressupõe plena capacidade. Para que os incapazes possam transigir, da mesma forma que a alienação, é necessário que haja complemen-tação da vontade, providenciada pelo representante, bem como da autorização judicial para a prática do ato. A legitimação, como já examinado, também é elemento necessário para que a vontade de realizar transação seja exercitada.

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FGV DIREITO RIO 75

Em relação ao mandato, o mandatário deve ter poderes específi cos para transigir. A procuração do advogado deve prever isso.

Conforme já destacado no art. 847 do Código Civil, a cláusula penal pode ser inserida num contrato de transação. É uma cláusula de reforço ao cum-primento desse pacto entre as partes. O princípio da exceção do contrato não cumprido (art. 476 CC) tem plena aplicação, bem como as outras noções da teoria geral dos contratos.

As convenções referentes à transação operam efeito somente entre as par-tes. Essa regra da relatividade está no art. 844, caput, do Código Civil:

Art. 844. A transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervierem, ainda que diga respeito a coisa indivisível.

Da mesma forma que a novação, anteriormente estudada, considerações especiais acerca da evicção devem ser traçadas. A lei demonstra essa preocu-pação no art. 845 do Código Civil:

Art. 845. Dada a evicção da coisa renunciada por um dos transigen-tes, ou por ele transferida à outra parte, não revive a obrigação extinta pela transação; mas ao evicto cabe o direito de reclamar perdas e danos.

Parágrafo único. Se um dos transigentes adquirir, depois da transa-ção, novo direito sobre a coisa renunciada ou transferida, a transação feita não o inibirá de exercê-lo.

A perda do objeto não tem o condão de repristinar a dívida, isto é, fazer com que ela ressurja.

Deve-se, por fi m, destacar a idéia de que a transação deve ser sempre in-terpretada de modo restritivo. Esse entendimento é decorrência lógica da natureza do instituto que importa sempre na renúncia de algum direito. As renúncias não podem ser interpretadas ampliativamente.

CompromissoO compromisso é um instrumento jurídico mediante o qual atribui-se a

decisão de certos confl itos a árbitros. Pessoas plenamente capazes escolhem árbitros para solucionar suas avenças. Antes mesmo do surgimento de qual-quer confl ito, as partes prevêem quem o solucionará. Essa possibilidade en-contra assento legal na lei nº 9.307/96, a qual, em seu artigo 1º, destaca que:

Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitra-gem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

O Código Civil de 2002 trata da matéria em apenas três artigos, relegando à lei especial e ao código processual um tratamento mais pormenorizado do tema.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 76

O art. 851 do Código Civil se refere à cláusula compromissória nos con-tratos, permitindo a solução dos litígios em juízo arbitral. Ele dispõe:

Art. 851. É admitido compromisso, judicial ou extrajudicial, para resolver litígios entre pessoas que podem contratar.

O art. 852 do Código Civil dispõe sobre os casos em que não é possível a utilização de compromisso:

Art. 852. É vedado compromisso para solução de questões de es-tado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial.

De acordo com a lei nº 9307/96, a sentença arbitral é considerada título executivo judicial.23 O árbitro é juiz de fato e de direito do confl ito que lhe é levado. Ainda, os atos executórios dessa decisão arbitral devem ser procedidos pelo poder público. Dessa forma, pode-se observar que mesmo no caso de compromisso, certos atos ainda carecerão da intervenção do poder judiciário.

A arbitragem é um instrumento negocial e tende a assumir papel cada vez mais relevante nesse contexto especializado. Como motivos que incentivam o seu uso, pode-se mencionar o sigilo e a celeridade. A celeridade é razão notó-ria, visto que foge da demanda sempre crescente do poder judiciário; o sigilo por sua vez, se dá na medida em que a regra geral dos processos tramitando no Poder Judiciário é a publicidade de seus respectivos atos.

Um detalhe a destacar é o fato de que as partes podem pactuar a utilização de um juízo tecnicamente mais especializado preparado para a solução desse litígio.

A atual lei supera os principais entraves que a arbitragem enfrentava an-teriormente: (i) não havia dispositivo legal possibilitando o uso da cláusula compromissória; e (ii) havia necessidade de homologação do laudo arbitral pelo poder judiciário.

O compromisso tem um caráter contratual evidente. Através dele, não só confl itos são extintos, mas outras obrigações são criadas. Pode árbitro criar, modifi car ou extinguir direitos das partes.

Mas como entender essa natureza contratual? Através do pacto compro-missório, as partes comprometem-se, num eventual litígio, a submeterem-se ao árbitro e não ao Poder Judiciário. É uma contratação feita de modo preliminar. Alguns autores denominam essa relação sujeita à arbitragem de contrato base. O art. 4º da lei de arbitragem, nesse sentido, defi ne:

Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.

23 O art. 584, III do CPC defi ne que: Art.

584. São títulos executivos judiciais:

(...) III a sentença homologatória de

conciliação ou de transação, ainda

que verse matéria não posta em juízo;

(Redação dada pela Lei nº 10.358, de

27.12.2001).

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 77

É interessante destacar que sob a égide do Código de 1916, a negativa de uma das partes em submeter-se à arbitragem implicava nos efeitos do inadim-plemento contratual. A parte prejudicada poderia pleitear perdas e danos. A previsão de execução específi ca da avença não era ainda existente à época.

Confusão

Existe confusão quando se observa, numa determinada relação obriga-cional, a junção numa mesma pessoa das fi guras de credor e devedor. Há impossibilidade lógica de que a obrigação persista. O artigo 381 do Código Civil prevê que:

Art. 381. Extingue-se a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e devedor.

A confusão, segundo o art. 382, pode ser total ou parcial:

Art. 382. A confusão pode verifi car-se a respeito de toda a dívida, ou só de parte dela.

Quando o estado de confusão acaba, a obrigação é restabelecida, congre-gando novamente todos os seus caracteres:

Art. 384. Cessando a confusão, para logo se restabelece, com todos os seus acessórios, a obrigação anterior.

A confusão pode se operar de diversas formas. Pode ocorrer por ato inter vivos ou causa mortis, nesse caso, quando o herdeiro assume o patrimônio do credor e vê extinto o seu débito. Destaque-se que enquanto não houver partilha dos bens envolvidos na sucessão, não há que se falar em confusão. Na confusão por ato inter vivos, o mesmo pode ainda ser gratuito ou oneroso; a título singular ou universal.

O art. 383 do Código Civil trata da hipótese de confusão em obrigações solidárias. De acordo com o dispositivo, os efeitos da confusão não se comu-nicam às demais fi guras abarcadas pela solidariedade.

Art. 383. A confusão operada na pessoa do credor ou devedor soli-dário só extingue a obrigação até a concorrência da respectiva parte no crédito, ou na dívida, subsistindo quanto ao mais a solidariedade.

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FGV DIREITO RIO 78

Em breve apanhado, são seus requisitos: (i) numa só pessoa devem ser congregadas as qualidades de credor e de devedor; (ii) essa reunião de qua-lidades deve ser atinente a uma mesma relação obrigacional; e (iii) não deve haver patrimônios apartados.

Remissão

A remissão ocorre quando o credor libera do devedor do cumprimento da obrigação, no todo ou em parte, sem que tenha recebido o pagamento que lhe é devido.

Trata-se de uma modalidade de renúncia, e como já observado, renunciá-veis são os direitos disponíveis, reais, pessoais e intelectuais.

Sob uma perspectiva mais técnica, remissão e renúncia apresentam uma distinção: a remissão depende da anuência do devedor, que mesmo tendo sua dívida perdoada pelo credor, pode querer pagar, tendo em vista questões morais. A remissão é ato unilateral, mas somente se implementa com a con-cordância do obrigado. Na renúncia, essa necessidade de anuência por parte do devedor não está presente.

As partes podem livremente determinar parâmetros para essa remissão, dando-lhe uma feição contratual e, portanto, bilateral.

Remissão e doação são institutos diversos. A remissão depende da anuên-cia do devedor, apresentando um caráter sinalagmático. A doação, por sua vez, é uma liberalidade, qualidade nem sempre atribuível à remissão; Para o direito pouco importa o intuito com que a remissão é feita, não ocorrendo o mesmo para a doação.

É importante observar que a remissão pode ser expressa ou tácita. A sua for-ma tácita é especifi cada nos arts. 386 e 387 do Código Civil, ao disporem que:

Art. 386. A devolução voluntária do título da obrigação, quando por escrito particular, prova desoneração do devedor e seus co-obrigados, se o credor for capaz de alienar, e o devedor capaz de adquirir.

Art. 387. A restituição voluntária do objeto empenhado prova a re-núncia do credor à garantia real, não a extinção da dívida.

Esses artigos contemplam uma presunção de que foi feita a remissão. Essa presunção não é absoluta, pois qualquer um dos atos acima referidos pode ser inquinado de algum vício de vontade.

Ao remir a dívida principal, o credor promove a conseqüente extinção das obrigações acessórias. A recíproca, conforme já examinado, não é verdadeira, por é perfeitamente possível a extinção da obrigação acessória sem que prin-cipal seja atingida.

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Quando houver pluralidade de devedores, deve-se ter em mente que:

Art. 388. A remissão concedida a um dos co-devedores extingue a dívida na parte a ele correspondente; de modo que, ainda reservando o credor a solidariedade contra os outros, já lhes não pode cobrar o débito sem dedução da parte remitida.

No tocante à indivisibilidade, vale ainda destacar o art. 262 do Código Civil, o qual dispõe que “se um dos credores remitir a dívida, a obrigação não fi cará extinta para com os outros; mas estes só a poderão exigir, descontada a quota do credor remitente.” O mesmo critério se observará no caso de transação, novação, compensação ou confusão, conforme determinado pelo parágrafo único do mesmo artigo.

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AULA 10: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA E PAGAMENTO INDEVIDO

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Enriquecimento sem causa — Ação de in rem verso — Pagamento inde-vido — Delineamentos gerais da repetição

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Konder, Carlos Nelson. “Enriquecimento sem causa e pagamento inde-vido”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 369/388.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2004; pp. 285/304. Bevilaqua, Clovis. Direito das Obri-gações. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1940; pp. 111/120.

1. ROTEIRO DE AULA:

Enriquecimento sem causa

O Código Civil trata do pagamento indevido nos artigos 876 a 883 e o enriquecimento sem causa nos artigos 884 a 886. A partir do enquadramento conferido pelo Código aos dois institutos, pode-se classifi cá-los como fontes unilaterais de obrigações. Ao contrário do que dispõe o Código, a doutrina tende a qualifi car essas duas fi guras como fonte autônoma de obrigações.

No direito obrigacional usualmente ocorre o enriquecimento de uma par-te em detrimento de outra, enriquecimento esse que deve ser fundado numa justa causa. É o que ocorre, por exemplo, na doação.

A idéia que norteia o enriquecimento ilícito é justamente a de que esse in-cremento patrimonial se opera não fundado em justa causa, ou pelo menos, sem causa jurídica. É o exemplo daquele que paga dívida inexistente.

Dessa forma, o enriquecimento sem causa é o aumento patrimonial sem base jurídica que o legitime. È fonte autônoma de obrigação da mesma forma que os atos unilaterais.

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Interpretando a legislação vigente, pode-se concluir que o enriquecimento sem causa e o pagamento indevido constituem verdadeiras fontes de obriga-ções. O ato de realizar um pagamento importa na extinção da dívida, contu-do, o pagamento indevido opera de forma inversa, pois o mesmo não extin-gue a dívida e ainda cria para aquele que o recebe a obrigação de devolvê-lo. O solvens, isto é, aquele que efetuou o pagamento, torna-se titular de uma ação de repetição.

O princípio que veda o enriquecimento sem causa não pode ser confun-dido com a condenação em perdas e danos, na medida em que não se trata aqui do manejo da responsabilidade civil para resolver a patologia de eventu-ais relações. No tratamento do enriquecimento sem causa a noção de culpa é irrelevante.

Nesse sentido, pode-se notar a pluralidade de correntes sobre a natureza jurídica do pagamento indevido. As legislações estrangeiras igualmente per-fi lham distintos entendimentos. Em apanhado sucinto, pode-se dizer que a doutrina nacional segue a tradição francesa, que entende o enriquecimento sem causa como fonte autônoma de obrigação, isto é, um ato unilateral.

A noção geral de enriquecimento sem causa é enunciada pelo art. 884 do Código Civil, da seguinte forma:

Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de ou-trem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atuali-zação dos valores monetários.

Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determi-nada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais sub-sistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.

Cumpre observar a relação de imediatidade perceptível quanto ao enri-quecimento de uma parte e o empobrecimento de outra. Há, inclusive, seg-mentos doutrinários que preferem a denominação empobrecimento ilícito.

A positivação do enriquecimento ilícito (ou “sem causa”) foi uma das ino-vações trazidas pelo Código Civil de 2002 para o campo do direito das obriga-ções. Não que a doutrina do enriquecimento ilícito não estivesse amadurecida anteriormente, mas ela certamente ganha reforço com a atual previsão legal. Adicionalmente, esse tratamento expresso contribui para que situações mar-cadas pelo enriquecimento ilícito sejam levadas aos tribunais e debatidas não somente como aplicação de um princípio geral de Direito, enquadramento detido pelo enriquecimento sem causa anteriormente à sua atual positivação.

A restituição decorrente do enriquecimento sem causa obedece concomi-tantemente aos dois parâmetros acima referidos: por um lado, essa devolução não pode exceder o enriquecimento do agente recebedor; da mesma forma, ela não pode ultrapassar o empobrecimento sofrido pelo outro agente.

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O valor da restituição será calculado na data em que a mesma ocorrer. Ainda que mais valiosa a coisa, o valor da restituição deve versar apenas sobre o quantum relativo ao enriquecimento do agente.

Essa obrigação de restituir alcança da mesma forma os benefícios alcan-çados, como os frutos. Se equivocadamente um apartamento foi dado em dação de forma a saldar uma dívida, os aluguéis são igualmente devidos com a restituição do imóvel.

Ação de in Rem Verso

A ação de in rem verso, ou seja, a ação de que se vale quem sofreu o em-pobrecimento sem causa jurídica, deve observar os seguintes requisitos: (i) a existência de um enriquecimento; (ii) um empobrecimento correlativo; (iii) ausência de causa jurídica para sua ocorrência; e (iv) ausência de interesse pessoal do empobrecido.

O enriquecimento é o elemento central. No momento de exercício da ação, ele deve estar ainda presente. Se já não mais subsiste, essa ação carecerá de interesse processual. Outro dado importante é a aferição das circunstân-cias no caso concreto, que deve ser procedida pelo julgador, avaliando em que medida o enriquecimento efetivamente se processou.

O enriquecimento é a transferência de porção do patrimônio de alguém para a esfera jurídica de outrem sem que tenha havido o desejo dessa trans-missão, ou que esse mesmo desejo tenha se manifestado de forma equivocada. Pode se operar por intermédio de diversos institutos jurídicos, como a remis-são indesejada de uma dívida ou uma liberalidade feita à pessoa equivocada.

Nos casos de pagamento indevido, que é espécie de enriquecimento sem causa, além de alguém que enriqueça de forma indevida, é necessária a exis-tência de alguém que concomitantemente empobreça. Observa-se um nexo de causalidade entre essas duas ações, isto é, um fato jurígeno que redunda em vantagem para um e desvantagem para outro. Ainda, a vantagem aqui referida deve ser mensurável economicamente.

Conexo á idéia de enriquecimento é igualmente importante a falta de cau-sa. Causa é o ato jurídico que justifi ca a inclusão de um direito no patrimônio jurídico de alguém. O art. 885 do Código Civil defi ne:

Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido cau-sa que justifi que o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.

Como visto, o enriquecimento sem causa redunda no surgimento de obri-gações sem que para isso concorra a vontade dos agentes. Uma vez efetuado, por exemplo, um pagamento indevido, surge aquele que o recebe a necessi-

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dade de devolvê-lo. Para o surgimento dessa obrigação não é necessária ema-nação do empobrecido.

A subsidiariedade da ação de in rem verso é determinada no art. 886 do Código Civil. Essa ação deve ser usada quando o cabimento de outras medi-das não for possível, como ações fundadas em cláusulas contratuais ou ações que busquem a anulação ou reconhecimento da nulidade de negócios jurídi-cos. Na ação que busca dirimir o enriquecimento sem causa, apenas o que foi indevidamente recebido pode ser pleiteado, não se podendo aduzir pedidos como perdas e danos e pagamento de cláusula contratual.

Pagamento Indevido

Pagamento indevido é modalidade peculiar de enriquecimento sem causa e, dessa forma, segue os mesmos princípios gerais aplicados àquele24. Da mes-ma forma, a idéia que norteia o instituto é a de reequilíbrio patrimonial.

Já se observou em aulas anteriores a relevância do pagamento como forma natural de extinção das obrigações. Através do cumprimento da obrigação, seja ela de dar, fazer ou não fazer, ocorre a solução do vínculo que liga deve-dor e credor.

Nesse sentido, o instituto do pagamento é inicialmente tratado pelo art. 876 do Código Civil, o qual determina que:

Art. 876. Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fi ca obrigado a restituir; obrigação que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição.

De forma simples, têm-se que, por erro, alguém realiza pagamento referen-te à dívida inexistente (indébito objetivo) ou o faz, tendo em vista dívida de fato existente, mas em benefício de pessoa equivocada (indébito subjetivo).

Diante do equívoco surge a possibilidade de repetir, isto é, de reaver o que foi pago. A idéia inerente ao pagamento indevido é o erro, a noção equivoca-da de vinculação a uma obrigação que na realidade não existe. Trata-se de um requisito, pois se o solvens, mesmo sabendo da inexistência de débito, realiza o pagamento, não há que se pleitear repetição.

Do pagamento indevido surge uma obrigação que vincula o accipiens à devolução do indevidamente recebido. Essa obrigação tem causa na lei, no-tadamente no art. 876 do Código Civil, e não deixa de ser um fato curioso na medida em que um pagamento, meio natural de extinção de obrigações, é causa geradora de uma nova relação crédito/débito.

No que concerne aos requisitos do pagamento indevido, pode-se elencar os seguintes: (i) pagamento (aqui concebido no sentido amplo); (ii) ausência

24 Destaque-se que embora próximo

ao enriquecimento sem causa, o pa-

gamento indevido, enquanto instituto,

conserva especifi cidades próprias,

como a ação de repetição, expediente

processual diverso da actio in rem ver-

so, modalidade genérica cabível nos

casos de enriquecimento ilícito.

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de causa jurídica; e (iii) erro, sendo aqui irrelevante a espontaneidade do pa-gamento para tornar obrigatória a restituição do mesmo.

Em relação ao erro do solvens, é necessário atentar, preliminarmente, ao art. 877 do Código Civil, ao dispor que:

Art. 877. Àquele que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo feito por erro.

Conforme enuncia o dispositivo transcrito, no caso de pagamento indevi-do, há a necessidade de provar o erro. No entanto, tal artigo deve ser inter-pretado de modo restrito, como se referindo apenas ao pagamento sem causa jurídica. Não há que estender a imposição desse ônus probatório na confi gu-ração do enriquecimento ilícito.25

Caio Mário destaca ainda, no tocante ao erro, que:

“A repetição do indébito comporta ainda o erro quantitativo quando o devedor paga mais do que deve; ou quando paga por inteiro a um dos co-credores, no caso de a obrigação não ser solidária e ser divisível, ou ainda quando por erro sobre a situação real, paga a dívida já extinta”.26

Da mesma forma, observa-se a existência de pagamento indevido quando se salda dívida condicional antes do implemento da condição suspensiva. Conforme observado, antes do implemento do evento futuro e incerto, não há direito propriamente dito, mas tão somente expectativa de direito. Não há obrigação a ser solvida e, portanto, o pagamento erroneamente vinculado é repetível.

No entanto, o mesmo não ocorre com as obrigações sujeitas a termo ini-cial (suspensivo). No termo, o evento que implica a efi cácia da obrigação é futuro e certo. A obrigação já existe, apenas sua efi cácia é que se condiciona ao implemento do termo. O direito do credor de receber já existe e quando o prazo aproveitar ao devedor, este pode dele abrir mão, pagando antecipada-mente a obrigação. Não haverá, nesse caso, que se falar em repetição.27

Delineamentos gerais da repetição

Os efeitos do pagamento indevido, no que concerne à repetição, podem variar de acordo com a intenção do accipiens, na medida em que a conduta deste pode ser dar em consonância com a boa ou má-fé.

De modo sucinto, em havendo boa-fé, algumas peculiaridades da repeti-ção deverão ser observadas: (i) o accipiens deve restituir o recebido e os frutos estantes; (ii) a devolução deve ser dar, prioritariamente em espécie, mas na

25 O enriquecimento sem causa, como

visto, é gênero que compreende como

espécie o pagamento ilícito. A prova

do erro é exigência apenas quando se

intenta mostrar a ocorrência da espécie

em questão.

26 Caio Mário da Silva Pereira. Institui-

ções de Direito Civil, v. II. Rio de Janeiro:

Forense, 2004; p. 297.

27 Destaque-se que, se por outro lado, o

termo aprouver ao credor, esse poderá

enjeitar o recebimento da prestação até

o momento fi xado para o cumprimento

da obrigação.

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impossibilidade disso ocorrer, deve o accipiens restituir o valor estimado em dinheiro; (iii) o accipiens tem direito aos frutos percebidos e não é obrigado a devolver a estimação pecuniária daqueles que já consumiu; (iv) tem ele direito à restituição dos valores referentes às benfeitorias úteis e necessárias (e o conseqüente direito de retenção), bem como o de levantar as benfeitorias voluptuárias; e (v) o accipiens somente responde pela deterioração ou pereci-mento do objeto quando transigir com culpa.

Por outro lado, a lei é bem mais severa com o accipiens de má-fé, determi-nando: (i) a restituição da coisa, bem como os frutos e acessões próprios a ela; (ii) o accipiens de má-fé pode somente pleitear o valor das benfeitorias neces-sárias, sem nem mesmo o direito de retenção; (iii) quando do perecimento ou dano à coisa deve responder pela estimação pecuniária da mesma, ainda que não tenha concorrido com culpa, excepcionando-se os casos em que o dano ocorreria independentemente do pagamento indevido.

Ainda na seara dos efeitos, aquele que recebe imóvel por conta de paga-mento indevido está incumbido a auxiliar o solvens na retifi cação do registro.

Se o accipiens, procedendo de boa-fé, alienar o imóvel antes da reivindica-ção, fi ca obrigado a restituir ao solvens o valor auferido na transação. Estan-do, entretanto, de má-fé, certa é a possibilidade do solvens exigir quantum indenizatório referente a perdas e danos.

Indistintamente, no caso de doação, aquele que pagou equivocadamente pode demandar o imóvel do benefi ciado.

A primeira das hipóteses de impossibilidade de repetição está inserta no art. 881:

Art. 881. Se o pagamento indevido tiver consistido no desempe-nho de obrigação de fazer ou para eximir-se da obrigação de não fazer, aquele que recebeu a prestação fi ca na obrigação de indenizar o que a cumpriu, na medida do lucro obtido.

A prestação se esgota no ato de sua execução, no fazer, ou ainda numa omissão, nesse caso, não fazer. A regra aqui é que o accipiens fi ca obrigado a indenizar na medida do benefício auferido.

Atentando aos artigos 882 e 883 do Código Civil, pode-se perceber três casos de exclusão do direito de repetição: (i) no pagamento de dívida já pres-crita; (ii) no pagamento de obrigação natural; e (iii) quando o pagamento objetiva fi m ilícito, imoral ou proibido por lei.

A razão de ser dessa tripartição de causas é adotar a metodologia exposta pelo Código, no entanto, como já foi destacado, as obrigações naturais com-portam as obrigações prescritas.

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O art. 882 do Código Civil enuncia que a impossibilidade de repetição atinge tanto as dívidas prescritas como as obrigações juridicamente inexigí-veis (leia-se, naturais):

Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida pres-crita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.

A prescrição atinge a pretensão, mas não o direito em si, e tendo isso em vista, o pagamento de dívida prescrita, bem como de qualquer outra obriga-ção natural (inexigível), não importa para o accipiens a necessidade de repeti-ção. São obrigações incompletas, uma vez que são caracterizadas apenas pela existência de débito, sem responsabilidade:

Art. 883. Não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fi m ilícito, imoral, ou proibido por lei.

Parágrafo único. No caso deste artigo, o que se deu reverterá em favor de estabelecimento local de benefi cência, a critério do juiz.

A associação dos contratantes almejando fi m reprovado pela lei tem por efeito macular o direito de repetição. É uma aplicação do adágio de que a ninguém é dado se benefi ciar da própria torpeza. Se o solvens procede de modo torpe, dando algo e pretendo fi nalidade ilícita ou imoral, não tem ação de repetição.

Por fi m, outra hipótese de não repetição também é contemplada no art. 880 do Código Civil:

Art. 880. Fica isento de restituir pagamento indevido aquele que, recebendo-o como parte de dívida verdadeira, inutilizou o título, dei-xou prescrever a pretensão ou abriu mão das garantias que asseguravam seu direito; mas aquele que pagou dispõe de ação regressiva contra o verdadeiro devedor e seu fi ador.

Aqui a lei traça especial consideração com aquele que recebe de boa-fé pa-gamento, crendo ser este decorrente de dívida verdadeira, e por conta disso, deixa de manter o título e garantias referentes ao crédito que crê recebido. O art. 880 do Código determina uma proteção ao accipiens que procede nessas condições, sendo corolário da idéia de segurança das relações sociais e homenagem à boa-fé.

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2. CASO GERADOR:

Numa manhã de sábado, João, dirigindo de forma desatenta, acidentalmen-te colidiu com um caminhão da transportadora Cacique Transportes Ltda que retornava à garagem da empresa, onde sofreria reparos no correr da semana.

Nenhum dos dois veículos envolvidos na colisão possuía seguro, fi cando a cargo dos proprietários acordar a reparação dos prejuízos.

João, assumindo prontamente a culpa, transferiu o montante de R$ 1.200 (hum mil e duzentos reais) para conta bancária de titularidade da transporta-dora, a fi m de dar início, o quanto antes, à reparação dos prejuízos.

Na tarde do mesmo sábado, o caminhão foi levado à assistência técnica, onde o valor do serviço foi fi xado em 800 reais. Agindo de fora diligente, os funcionários da ofi cina repararam o veículo ainda no mesmo dia.

Alguns dias depois, estranhando a não existência de nenhum contato por parte da direção da transportadora no que concerne à devolução do valor excedente, João decide ir até a sede da sociedade no intuito de reaver os R$ 400 (quatrocentos reais) não gastos nos reparos.

Para sua surpresa, o diretor da empresa afi rma que não devolveria esse valor, por conta de lucros cessantes, transtornos, danos morais e toda sorte de inconvenientes que sofreu por conta da não utilização de seu veículo.

Revoltado com a postura do diretor da empresa, João busca aconselha-mento jurídico sobre como agir para reaver o valor não gasto pela empresa com os reparos. Como você aconselharia João no caso narrado acima?

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Linha geral de resposta:João agiu de forma proba, proporcionando a reparação ao dano que

causou. A indenização devida a título de perdas e danos, sob o prisma material, enfoca o prejuízo efetivamente causado e o lucro cessante. No caso em tela, o prejuízo não excede a 800 reais, valor fi xado para o reparo. Não há lucro cessante, pois o reparo do caminhão ocorreu prontamente, sem falar que o mesmo se destinava à garagem da Ltda, onde passaria por período de manutenção.

Qualquer quantia, afora a efetivamente comprovada, somente seria devida mediante expresso acordo entre as partes. Não pode o diretor da sociedade fi xar o valor de danos morais de forma arbitrária. Deve para isso se valer do Poder Judiciário.

Nesse sentido, visando à repetição do indevidamente pago, pode João se valer da ação de in rem verso.

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AULA 11: INADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Mora do devedor — Mora do credor Purgação de mora — Perdas e Danos — Culpa do devedor — Caso fortuito e força maior Considerações sobre a cláusula de não indenizar

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Savi, Sergio. “Inadimplemento das obrigações, Mora e Perdas e Danos”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-cons-titucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 457/488.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 267/302. Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa Helena. Código Civil interpretado conforme a Consti-tuição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 689/724.

1. ROTEIRO DE AULA:

Quando uma dívida deixa de ser paga, ocorre atraso, ou o pagamento é feito de forma equivocada, a lei confere ao credor mecanismos para fazer com que essa obrigação seja cumprida, ou no caso de impossibilidade, que esse credor insatisfeito encontre formas de minorar a sua insatisfação.

A crise no cumprimento da obrigação se manifesta juridicamente a partir do momento em que o pagamento se torna exigível e atentando a isso, exis-tem situações em que a própria lei antecipa o cumprimento da obrigação, como fi gura, por exemplo, no art. 333 CC.28

O inadimplemento da obrigação pode ser absoluto ou relativo. O critério que possibilita essa diferenciação, reside no parágrafo único do art. 395 do Código Civil, qual seja, a utilidade da prestação realizada fora das condições especifi cadas.

28 Art. 333. Ao credor assistirá o direito

de cobrar a dívida antes de vencido o

prazo estipulado no contrato ou marca-

do neste Código:

I no caso de falência do devedor, ou

de concurso de credores;

II se os bens, hipotecados ou empe-

nhados, forem penhorados em execu-

ção por outro credor;

III se cessarem, ou se se tornarem

insufi cientes, as garantias do débito,

fi dejussórias, ou reais, e o devedor, in-

timado, se negar a reforçá-las.

Parágrafo único. Nos casos deste

artigo, se houver, no débito, solidarie-

dade passiva, não se reputará vencido

quanto aos outros devedores solventes.

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Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices ofi ciais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos.

No inadimplemento absoluto, a obrigação não foi cumprida em confor-midade com as condições defi nidas e não mais poderá sê-lo. Essa impossi-bilidade de cumprimento é tarefa para o julgador e varia de acordo com o caso concreto. Se o juiz considerar que ainda há utilidade para a o credor no cumprimento da obrigação, estará o devedor em mora.

Não é a mera aferição da possibilidade do cumprimento da obrigação que distingue o inadimplemento relativo (mora) do inadimplemento absoluto. O enfoque correto é o aspecto da utilidade para o credor, o qual somente pode ser determinado no caso concreto.

O inadimplemento relativo, ou mora, pode ser imputada tanto ao devedor como ao credor. Quando se trata de mora do devedor (solvendi), têm-se o retardamento culposo no cumprimento da obrigação, sendo, por outro lado, a mora do credor (accipiendi) a ocorrência de um fato jurídico que se aper-feiçoa independentemente do fato de ter o credor procedido culposamente.

A lei é expressa no sentido de que deve haver culpa no caso e mora solven-di, destacando-se os arts. 396 e 399 do Código Civil:

Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.

Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isen-ção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.

Não se trata somente de alusão ao critério temporal. A mora não se liga apenas ao retardamento, mas de forma geral, a irregularidades no adimple-mento de uma obrigação. Vale lembrar que lugar do pagamento e formali-dades defi nidas também são fatores a serem considerados para a constituição em mora (art. 394 do Código Civil).

Mora do devedor

Salvo exceções, é necessário para que haja mora do devedor que a dívida já esteja vencida. Nas obrigações líquidas e certas, com prazo previsto para

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o cumprimento, o simples advento dessa data importa na mora do devedor. Trata-se, nessa hipótese, de mora ex re, que decorre da própria coisa. É a regra dies interpellat pro homine, a qual destaca, como visto, que apenas o fato do devedor se deparar com dia do pagamento já o constitui em mora. No Códi-go Civil, essa regra se encontra no art. 397, caput.

Se, pelo contrário, a obrigação possuir prazo indeterminado, haverá a ne-cessidade de interpelação (ou notifi cação ou protesto) do devedor para que o mesmo seja constituído em mora. Trata-se, então, da mora ex persona, e o seu assentamento legal está no parágrafo único do art. 397:

Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.

Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.

No caso de uma obrigação negativa, a mora se verifi ca a partir do dia de prática do ato, conforme expõe o art. 390 do Código Civil:

Art. 390. Nas obrigações negativas o devedor é havido por inadim-plente desde o dia em que executou o ato de que se devia abster.

Como já destacado, a mora do devedor possui dois elementos: um obje-tivo, que é a exigibilidade da obrigação, e outro subjetivo, que é a culpa do devedor. Se este não concorreu com culpa para o não cumprimento da obri-gação, não podem lhe ser imputados os efeitos da mora. Tendo isso em vista, o devedor, provando caso fortuito ou força maior, afasta a mora.

Afora esses elementos, necessária ainda é a constituição em mora. A mora ex re se opera com o simples advento do termo; a mora ex persona, por outro lado, requer que o credor constitua o credor em mora, o interpelando.

Em relação aos efeitos da mora, pode-se destacar os artigos 399 e 402 do CC:

Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isen-ção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada.

Aqui o devedor moroso arca com o ônus probatório de demonstrar que a solução desfavorável da obrigação independentemente da sua mora.

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Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente per-deu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

As perdas e danos, conforme demonstra o artigo, abrangem tanto mon-tante efetivamente perdido como aquilo que se deixou de perceber.

Mora do credor

A mora do credor, como já destacado, independe de culpa. Estará, inva-riavelmente em mora o credor que não quiser ou não puder receber. A noção vem defi nida pelo art. 394 do Código Civil:

Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o paga-mento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer.

O devedor deverá se valer dos instrumentos legais no intuito de caracteri-zar mora do credor e de desobrigar-se, sendo o mais relevante desses institu-tos a consignação judicial. A importância de desobrigar-se reside sobretudo no fato de que enquanto não efetua o pagamento, o devedor, em regra, assu-me os riscos pela guarda da coisa.

A aplicabilidade da consignação estáexpressa no art. 335, III, do Código Civil:

Art. 335. A consignação tem lugar:III se o credor for incapaz de receber, for desconhecido, declarado

ausente, ou residir em lugar incerto ou de acesso perigoso ou difícil;

A recusa do credor no recebimento da prestação deve ser justifi cada para que ele não seja constituído em mora. Por exemplo, se a oferta for incomple-ta, se é ofertada antes do prazo para o recebimento, ou sob condições diversas das estabelecidas, haverá justa recusa do credor.

Destaque-se que a mora do credor e a mora do devedor não podem ser concomitantes. Apenas um dos dois será constituído em mora pelo juiz.

No que toca aos efeitos da mora do credor, temos a delineação dos contor-nos gerais no art. 400 do Código Civil:

Art. 400. A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à res-ponsabilidade pela conservação da coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela es-

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timação mais favorável ao devedor, se o seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação.

Do acima exposto, pode-se depreender três efeitos:(i) A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabili-

dade pela conservação da coisa Como destacado, há a necessidade de que o devedor não proceda com dolo, de modo a gerar prejuízo para o credor. Deve conservar sua atuação em consonância com os ditames da boa-fé, e nesse caso, se incorrer em gastos, devem estes ser prontamente ressarcidos pelo credor. Dessa forma, temos que é certa a necessidade de atuar com zelo na conservação da coisa sob pena de ser tachado como doloso seu comportamento.

(ii) Obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em conservá-la; Decorre do fato de que o devedor não tem mais responsabilidade sobre a coisa, não sendo razoável que assuma gastos, por exemplo, por conta de um comportamento desidioso do credor.

(iii) Sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor. Essa hipótese ocorre nos casos de oscilação do valor da coisa, quando o devedor se aproveitará do valor que lhe for mais conveniente.

Purgação de mora

Purgação de mora é o ato mediante o qual quem incorreu em mora, seja o credor ou o devedor, dirime seus efeitos.

A purgação de mora é possível nos inadimplementos relativos. Quando, de outra maneira, o inadimplemento for absoluto, ou seja, o pagamento não mais apresentar utilidade, a pendência se resolverá através de perdas e danos.

A purgação apresenta efeitos ex nunc. A partir da data em que se efetivou, não fi ca mais o agente sujeito aos ônus da mora, mas ainda assim, a oneração referente ao período em que fora constituído em mora se conserva perfeita.

A cessação da mora, por sua vez, extingue todos os seus efeitos, inclusive os pretéritos.

A purgação da mora ocorre nos termos do art. 401 do Código Civil, ou seja, quando o devedor oferece a prestação acrescida dos prejuízos até o mo-mento decorrentes. Essa oferta deve ainda obedecer às condições anterior-mente acordadas pelas partes, como local do pagamento, bem como outros detalhes.

Art. 401. Purga-se a mora:I por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importân-

cia dos prejuízos decorrentes do dia da oferta;

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II por parte do credor, oferecendo-se este a receber o pagamento e sujeitando-se aos efeitos da mora até a mesma data.

Pertinente é saber até quando pode a mora ser purgada. Nesse sentido, percebe-se pluralidade de linhas doutrinárias, como por exemplo, a possibi-lidade de purgação até o momento de propositura da ação ou até a contes-tação. Há outras hipóteses, onde a lei cuida expressamente de determinar o momento limite para a purgação da mora, mas a doutrina ainda carece de um entendimento pacifi cado acerca desse tema.

Perdas e Danos

Conforme o examinado, quando o cumprimento da obrigação não é mais possível, ocorre o seu inadimplemento absoluto.

A orientação que guia a reparação por perdas e danos começa a se delinear no art. 393 do Código Civil, o qual destaca que é crucial a existência de culpa:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifi ca-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Curioso notar que o novo diploma, no caput desse artigo 393, assume postura diferente da existente no código anterior, onde não era prevista a possibilidade de responsabilização, ainda no caso das excludentes de caso fortuito e força maior.

Arcar com perdas e danos implica, de forma sucinta, em indenizar preju-ízos tanto de natureza material como moral, perpetrados mediante um com-portamento ilícito.

A questão das perdas e danos será pormenorizada no estudo da responsabi-lidade civil. Por ora, cabe destacar os dispositivos no código civil referentes à responsabilidade contratual e extracontratual (ou aquiliana). A primeira, pos-sui previsão geral no art. 389, ao passo que a segunda encontra-se no art. 186.

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices ofi ciais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que ex-clusivamente moral, comete ato ilícito.

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A aferição do montante referente a perdas e danos é campo para atuação do magistrado, no caso concreto. Sob o aspecto material, elas se estendem desde o prejuízo efetivamente causado, até o que deixou de ser ganho — lu-cros cessantes. Essa é a dicção dos arts. 402 e 403 CC:

Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente per-deu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.

Na busca da apuração das perdas e danos deve-se ter em mente o efeti-vo prejuízo acarretado pelo inadimplemento. Devem-se afastar especulações meramente hipotéticas sobre as possibilidades de ganho.

Nem todos os danos redundam em prejuízo econômico claro e facilmente perceptível, afetando por vezes a integridade psíquica ou outros elementos abstratos, como a moral e a honra.

Culpa do devedor

A responsabilidade contratual funda-se na culpa. Culpa em sentido am-pla, congregando tanto o deliberado propósito de não arcar com a obrigação, como a sua não realização em virtude de imprudência, imperícia ou negli-gência. Esses três últimos elementos são os mesmos destacados no campo do direito penal, por ocasião do art. 18 do Código Penal. O art. 392 do Código Civil, por seu turno, destaca:

Art. 392. Nos contratos benéfi cos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei.

Da letra desse dispositivo pode-se observar a diferenciação operada pela lei. Dolo e culpa são elementos reconhecidos, mas a regra é que na teoria con-tratual, a culpa é examinada numa perspectiva ampla, não pormenorizando-se o propósito do agente quando da prática do ato ilícito.

Para os contratos benéfi cos — unilaterais, como a doação — a lei destaca a diferenciação entre dolo e culpa. Nesse mesmo exemplo, o doador somente pode responder por dolo, isto é, pelo consciente atuar no sentido de preju-

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dicar ao donatário, ao passo que esse poderá responder por culpa em sentido amplo (dolo ou culpa). Já em relação aos contratos bilaterais, segue-se a ne-cessidade de examinar a culpa no seu sentido amplo.

Mais uma vez, tem-se que afi rmar que a verifi cação da culpa e dos efeitos do inadimplemento é atribuição do julgador e são somente visualizáveis no julgamento da lide. Esse papel do juiz possui balizamentos encontrados na própria lei, mas essencialmente atende à avaliação pelo mesmo realizada às luz das circunstâncias do caso.

Destaque-se, nesse sentido, a prerrogativa que o Código Civil confere ao magistrado de diminuir eqüitativamente o valor da indenização no caso de desproporção entre culpa e extensão do dano:

Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade

da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

Trata-se aqui de uma situação excepcional, na qual o juiz não é obrigado a se ater ao montante do prejuízo quando da fi xação do valor indenizatório. No entanto, a situação oposta, qual seja, a majoração do valor da indenização por conta de culpa proeminente, não é admitida, devendo-se tão somente se ater ao valor do prejuízo.

No que se refere ao inadimplemento do credor, a lei não traça considera-ções acerca da necessidade de culpa. No entanto, a recusa por sua parte em receber também implica em prejuízos que devem ser indenizados. Aqui são aplicados os artigos 400 e 401 do Código Civil, já examinados.

Em relação ao ônus probatório, o Código Civil defi ne a seguinte partição: (i) ao credor compete provar tão somente o descumprimento do contrato, tratando-se, portanto, de prova objetiva; e (ii) ao devedor, por sua vez, para dirimir sua responsabilidade, incumbe provar que não agiu com culpa.

O credor deve apresentar prova da existência do contrato, que o mesmo foi descumprido e que esse descumprimento lhe implicou prejuízo.

A questão do ônus probatório assume perspectivas distintas em relação às obrigações de meio e de resultado. As obrigações de meio, como visto, são aquelas em que o obrigado se compromete não a um resultado, mas a execu-tar uma tarefa, empregando nela sua habilidade, destreza e reputação. Dessa forma, a culpa desse executor eclodirá da aplicação de forma indevida dos meios necessários à realização da obrigação. O advogado afamado contratado para patrocinar o cliente em determinada avença não está obrigado à vitória, mas se perde prazo processual e desse fato resulta prejuízo à parte que repre-senta, não poderá alegar a imprevisibilidade do resultado como forma de excluir sua culpa. Essa é a linha de distinção com as obrigações de resultado, quando a obrigação é descumprida na não consecução do resultado previsto.

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Caso Fortuito e Força Maior

A exclusão da responsabilidade nas hipóteses de caso fortuito e força maior tem previsão no art. 393 do Código Civil:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifi ca-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Na diferenciação desses dois institutos, não há entendimento pacifi cado entre os autores, mas, em termos gerais, pode-se afi rmar o seguinte: força maior é um fato decorrente de situações que independem do agir humano, tendo como principais exemplos fenômenos da natureza como ciclones, ter-remotos, a queda de um raio, etc; caso fortuito, por sua vez, embora igual-mente decorra de situação alheia à vontade da parte, decorre de fatos huma-nos, como uma greve ou um ato criminoso.

O Código Civil dispõe acerca desses institutos como situações invencíveis, intransponíveis, que impedem o cumprimento da obrigação, excluindo a res-ponsabilização do devedor.

O ônus de prová-los é do devedor faltoso e se opera concomitantemente sob duas perspectivas: (i) objetiva, que é a inevitabilidade do evento; (ii) subjetiva, que se manifesta na imprevisibilidade do evento. Essa perspectiva subjetiva redunda na idéia de culpa, pois se o devedor tinha condições de prever esse evento invencível ou mesmo de evitar que ele se aperfeiçoasse, deverá arcar com os prejuízos da outra parte.

Considerações sobre a cláusula de não indenizar

A princípio, nada impede que os contratantes prevejam cláusula de não indenizar, contudo, essa cláusula não pode ser oposta indistintamente.

A cláusula de não indenizar, como a própria nomenclatura já defi ne, é um artifício jurídico que pode aderir ao contrato prevendo que o dever de indenizar não exista. É a renúncia prévia ao direito de pedir reparação. A possibilidade dessa cláusula deriva do fato de estar-se diante de direito dispo-sitivo das partes.

Não obstante, o ordenamento prevê hipóteses onde a oposição dessas cláu-sulas é inválida, isto é, quando elas confrontam normas de ordem pública. Esse tema é amplamente discutido no Direito do Consumidor, em especial no que toca aos contratos de adesão, que diferentemente dos contratos pa-

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ritários, não possuem seus termos discutidos entre as partes. Nos contratos de adesão, a vontade contratual se manifesta simplesmente na adesão a um contrato pré-constituído, como é o exemplo dos contratos bancários. Como visto, a possibilidade da cláusula de não indenizar vem determinada pelo art. 393 do Código Civil.

Vale destacar que a existência dessa cláusula não autoriza o seu benefi ciário a agir de acordo com a conduta prevista, justamente para causar o dano e depois aproveitar a disposição expressa no contrato. Se o contratante, tendo em mente a sua isenção de indenizar, deliberadamente ocasiona o dano, fere os princípios de boa-fé contratual e dá ensejo a perdas e danos.

A matéria encontra um tratamento especial no Código de Defesa do Con-sumidor. A Lei nº 8.078/90 defi ne como abusiva qualquer cláusula que im-plique em desvantagem exagerada ou seja atentatória à boa-fé ou à equidade. Nesse sentido, o art. 51, IV, do CDC dispõe que “são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.”

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AULA 12: CLÁUSULA PENAL E JUROS

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Disciplina jurídica da Cláusula Penal Cláusula Penal Compensatória e Cláusula penal moratória Exigibilidade da Cláusula Penal Cláusula Penal e Institutos Afi ns.

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Florence, Tatiana Magalhães. “Aspectos pontuais da cláusula penal”, in Gustavo Tepedino (org) Obrigações: Estudos na perspectiva civil-cons-titucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; pp. 513/538.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 303/314. Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa Helena. Código Civil interpretado conforme a Consti-tuição da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 734/755.

1. ROTEIRO DE AULA:

Disciplina jurídica da Cláusula Penal

A cláusula penal é uma obrigação de natureza marcadamente acessória, e é por meio dela que se vincula a parte inadimplente ao pagamento de uma mul-ta. Existem portanto duas fi nalidades principais do instituto: (i) a fi nalidade de indenização prévia de perdas e danos, e (ii) a de penalizar do devedor moroso.

A legislação civilista não oferece conceituação do instituto. No Código de 2002, a previsão inserta nos arts. 408 a 416 do Código Civil traça a dinâmica relativa ao tema:

Art. 408. Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora.

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Como pode se observar pela letra do art. 408, as fi nalidades da cláusula penal, conforme enunciado, são reprimir o descumprimento total da obriga-ção ou o atraso no mesmo mediante a vinculação de uma multa.

Ao conceituar a natureza jurídica da cláusula penal afi rmou-se que a mes-ma tratava-se de uma obrigação acessória. De acordo com a regra geral, o acessório segue o principal, e nesses casos, a nulidade da obrigação principal, por exemplo, implicaria na necessária e conseqüente nulidade da obrigação acessória. A cláusula penal constitui exceção a essa regra.

O antigo Código de 1916, em seu art. 922, possuía uma regra que por conta da sua incorreção foi suprimida do atual diploma. O regramento ante-rior dizia que “a nulidade da obrigação importa a da cláusula penal.”

Há situações em que mesmo diante da nulidade do contrato, poderá ser verifi cada a continuação da cláusula penal. A cláusula penal pode ter sido pactuada justamente para os casos de ser tida como nula a obrigação princi-pal. Aqui, na realidade, a cláusula penal deixa de ser acessória, para torna-se obrigação autônoma.

Cláusula Penal Compensatória e Cláusula penal moratória

A cláusula penal pode abarcar: (i) a inexecução completa da obrigação (inadimplemento absoluto), (ii) o descumprimento de uma ou mais cláu-sulas do contrato ou (iii) ou a simples mora (inadimplemento parcial). O momento de estipulação pode coincidir com o da obrigação, ou ser feito em momento posterior, conforme redação do art. 409 CC:

Art. 409. A cláusula penal estipulada conjuntamente com a obri-gação, ou em ato posterior, pode referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora.

Deve-se ter em mente que a cláusula penal compensatória constitui prefi -xação de perdas e danos. Dessa forma, basta que o credor prove o inadimple-mento imputável ao devedor para que seja devida multa pactuada. Verifi can-do-se os pressupostos de exigibilidade, deve a multa ser adimplida.

Por outro lado, na hipótese de não previsão de cláusula penal, compete ao credor a necessidade de provar a ocorrência de perdas e danos, bem como o valor a elas referente.

De acordo com o art. 410 do Código Civil, “quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor.”

O credor pode pedir o valor da multa ou o cumprimento da obrigação. Jamais as duas prestações conjuntamente. O devedor, pagando a multa, se

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desincumbe por completo, visto que a cláusula penal constitui fi xação ante-cipada de indenização pelo descumprimento da obrigação.

Hipótese diferente é a da multa moratória, que devido à sua natureza, sempre se mostra útil para o credor. A multa (cláusula penal moratória) fun-ciona intimidando o devedor ao cumprimento da obrigação devida dentro do prazo inicialmente fi xado. A pena aqui é a necessidade de pagar de forma mais onerosa.

A natureza compensatória, por outro lado, não está completamente diri-mida, visto que o credor, por força do efeito de intimidação operacionalizado pela multa moratória, recebe sua prestação tardiamente. Ainda assim, não é essa a natureza basilar dessa espécie de cláusula penal.

Resta claro que na multa compensatória a opção será do credor. Suas op-ções, por via de conseqüência são:

Entendendo que os prejuízos resultantes do inadimplemento são maiores que o valor da multa, demandará perdas e danos;

Considerando, contudo, que a multa estipulada lhe cobre os preju-ízos, ou ainda, não querendo enveredar pelas questões probatórias das perdas e danos, optará pela cobrança da multa.

A questão da suplementação da indenização prevista na cláusula penal foi tratada pelo artigo 416 do Código Civil:

Art. 416. Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo.

Parágrafo único. Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da inde-nização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente.

Caso o credor conclua que o prejuízo é maior do que o valor previsto na multa, a possibilidade de cobrar o valor excedente deve vir prevista no con-trato. Há que se observar, contudo, a existência ou não de limitação ao valor dessa suplementação. Essa análise, todavia, envereda pelo campo da autono-mia contratual das partes. Em todo o caso, há de afi rmar que a demanda por valor indenizatório maior segue a regra geral das perdas e danos, competindo ao credor a prova da sua existência.

A cláusula penal moratória é instituída para o inadimplemento parcial da obrigação. Esse inadimplemento pode ser ou a simples mora (atraso no cum-primento), ou a violação de uma cláusula contratual. Deve-se destacar que não há óbice na cumulação da multa compensatória com a multa moratória. É o enunciado por força do art. 411 do CC:

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Art. 411. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em segurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação principal.

Ainda, no que toca ao Código de Defesa do Consumidor, é necessário atentar que o referido diploma fi xou o limite das multas de mora em 2% do valor da prestação nos contratos que envolvam outorga de crédito ou conces-são de fi nanciamento.29

De todo o exposto, inferem-se basicamente duas funções para a cláusula penal: (i) constitui um reforço para o cumprimento da obrigação, ou seja, uma forma de tentar garantir o seu adimplemento; (ii) fi xa antecipadamente as perdas e danos, evitando o complexo processo de apuração de prejuízos. Há, atentando-se à ambas as funções, maximização das possibilidades de cumprimento da obrigação.

Exigibilidade da Cláusula Penal

A exigibilidade não está condicionada à demonstração do prejuízo. Tanto como função punitiva, como de perdas e danos prefi xados, a exigibilidade está diretamente vinculada a fato imputável ao devedor (culpa ou dolo).

Seguindo a dinâmica estudada quando das obrigações indivisíveis, cumpre analisar o art. 415 do Código Civil. O cerne do dispositivo consiste no fato de impedir que a multa, dotada de intrínseco caráter punitivo, alcance aque-les que não lhe deram causa.

Art. 415. Quando a obrigação for divisível, só incorre na pena o devedor ou o herdeiro do devedor que a infringir, e proporcionalmente à sua parte na obrigação.

Relevante também é saber o momento a partir do qual é devida a multa moratória. Quando não houver prazo, a multa será exigível apenas após a constituição em mora do devedor. Nesse sentido, o art. 397 dispõe que:

Art. 397. O inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor.

Parágrafo único. Não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial.

A lei defi ne um limite à fi xação do valor da cláusula penal que corresponde ao valor da obrigação principal. O excesso desse valor não é exigível, fora os

29 Art. 52. No fornecimento de produtos

ou serviços que envolva outorga de cré-

dito ou concessão de fi nanciamento ao

consumidor, o fornecedor deverá, entre

outros requisitos, informá-lo prévia e

adequadamente sobre:

(...)

§ 1° As multas de mora decorrentes

do inadimplemento de obrigação no

seu termo não poderão ser superiores

a dois por cento do valor da prestação.

§ 2º É assegurada ao consumidor a

liquidação antecipada do débito, total

ou parcialmente, mediante redução

proporcional dos juros e demais acrés-

cimos.

§ 3º (Vetado).

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casos de suplementação já examinados, e cuja possibilidade deve ser previa-mente acordada pelas partes. O art. 412 do Código Civil assevera que:

Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.

Se houver cumprimento parcial da obrigação, atentando para as parti-cularidades do caso concreto, pode o juiz reduzir o valor devido a título de cláusula penal. O entendimento corrente, contudo, segue a linha de que essa redução seria um direito do devedor, no sentido de que o mesmo já adimpliu parcialmente com o devido e não seria coerente onerá-lo em porção dema-siadamente maior.

O art. 413 dispõe sobre a possibilidade de redução eqüitativa da multa:

Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o mon-tante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a fi nalidade do negócio.

Nessa redução deve o juiz considerar as condições peculiares do negócio jurídico sobre o qual a lide versa. O campo aqui é o da equidade e deve o magistrado atentar a elementos como a função social do contrato e à boa-fé objetiva.

Cláusula Penal e Institutos Afins

Devido a certas similitudes, há certos institutos jurídicos que poderiam ser confundidos com a cláusula penal. Nesse sentido:

Arras (ou sinal). Trata-se de princípio de pagamento num negócio jurídico. Nas arras há a entrega efetiva de alguma coisa, mas essa é decorrência do próprio cumprimento da prestação. É facultado o arrependimento daquele que deu arras. Para que a cláusula penal tome efeito, não há a necessidade de nenhuma prestação, mas tão somente da violação contratual, que pode ser total ou parcial;

Cláusula de Arrependimento ou multa penitencial. Também é cláu-sula acessória, e por conta dela, o devedor tem a faculdade de não cumprir a obrigação, pagando a quantia estipulada. Há aqui a auto-rização do arrependimento do obrigado, divergindo assim da cláu-sula penal, que reforça o vínculo na medida em que pune o devedor que não solve com a sua prestação.

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Obrigação alternativa. O pagamento de perdas e danos não consti-tui alternativa para o devedor, que está obrigado a cumprir a obri-gação pactuada junto ao credor. Não há aqui o direito de escolha tal qual visualizamos nas obrigações alternativas;

Condição. Se, numa obrigação condicional, a prestação se tornar impossível por caso fortuito ou força maior, desaparece a exigibili-dade de multa. Ela não é objeto da obrigação e, portanto, não pode ser exigida.

2. CASO GERADOR:

Após muita insistência, Eduardo, 14 anos, ganhou recentemente, de pre-sente dos pais, um microcomputador. Da mesma forma, sondou junto a eles a possibilidade de contratar um serviço de internet rápida. Destacou o jovem a importância desse tipo de instrumento no mundo atual, os refl exos na sua educação, bem como o desfrute de toda a família das benesses da hiperconec-tividade gerava.

Surpreendeu-se Eduardo quando ouviu a negativa dos pais. Frustrado, mas ainda assim desejando usufruir de um serviço de internet rápida, dirigiu-se ao estande de uma famosa operadora, a qual funcionava num shopping próximo à sua residência.

Ignorando as vedações legais para que pudesse ele próprio, e sem represen-tação, fi gurar como parte em um contrato, acordou a instalação e assinatura do referido serviço. Marcou a visita dos técnicos da operadora para dia em que os pais não estariam presentes, de modo que não viessem a descobrir.

No contrato, entretanto, vinha prevista cláusula penal determinando, no caso de descumprimento da obrigação por parte do assinante do serviço, o pagamento do valor de R$300,00.

Pouco após um mês de vigência do contrato, chega à residência de Eduar-do fatura cobrando o valor da cláusula penal ajustada.

Qual a linha de defesa que pode ser deduzida pelos pais de Eduardo? Num eventual litígio em âmbito jurisdicional, qual seria a linha de argumentação da operadora?

Linha geral de resposta:Os pais de Eduardo alegariam a invalidade da obrigação principal,

ou seja, o contrato de prestação de serviços, acarretando também a invalidade das cláusulas acessórias. Vale conferir o entendimento de Serpa Lopes sobre a permanência das cláusulas penais como obrigações autônomas para discussão em sala.

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3. Atividade em sala:

“O regime dos juros no Brasil”

Como os alunos estarão nesse semestre estudando os delineamentos da Ordem Econômica na disciplina Direito Constitucional Econômico (Direito Constitucional III), propõe-se que seja realizada uma discus-são com a turma, e reunindo os professores de ambas as matérias, sobre algumas questões que interessam tanto ao Direito Público como ao Direito Privado, como a interpretação do art. 192, §3º da Constitui-ção Federal, ou a possibilidade de capitalização de juros (art. 591 do Código Civil).

Cada professor poderá assumir um dos entedimentos relativos aos temas sugeridos e, assim, fomentar a discussão com a turma à luz da doutrina e da jurisprudência.

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AULA 13: TRANSMISSÃO DAS OBRIGAÇÕES

EMENTÁRIO DE TEMAS:

Cessão de Crédito — Assunção de dívida — Cessão de posição contratual

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Lôbo, Paulo Luiz Netto. Teoria Geral das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005; pp. 167/186.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Bittar, Carlos Alberto. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2004; pp. 87/93. Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa Helena. Código Civil interpretado conforme a Constitui-ção da República, vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 566/589.

1. ROTEIRO DE AULA:

O atual Código Civil positivou a disciplina da cessão de crédito nos arts. 286 a 298 e a assunção de dívida nos artigos 299 a 303. A cessão de posição contratual, de forma semelhante ao que ocorrera com o Código Civil de 1916, não foi disciplinada pelo Código em vigor.

Cessão de Crédito

A cessão é um negócio jurídico de feição contratual, através do qual ocorre a alienação de bens imateriais, mais notadamente o crédito, que a par do seu valor nominal também possui valor de mercado.

Não se considera o consentimento do devedor para a realização desse negócio jurídico, uma vez que ele é, em regra, estranho ao eventual instrumento de ces-são. Caberá ao devedor responder apenas ao adquirente dos direitos de crédito.

A cessão, vale lembrar, não é forma de extinção das obrigações, visto que a mesma se conserva, alterando-se apenas o pólo ativo. Nesse negócio jurídico,

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existem as seguintes fi guras: o cedente (quem aliena o direito); o cessionário (adquirente); e o cedido (o devedor, ou o obrigado).

Através da cessão ocorre uma transferência do crédito, verifi cando-se, tão somente, uma alteração no pólo ativo da obrigação. O devedor da obrigação permanece o mesmo, encontrando-se obrigado face ao cessionário.

Veda-se a cessão de créditos que, por sua própria natureza, não podem ser alienados, ou quando a lei, ou mesmo a vontade das partes, se manifestou no sentido da intransmissibilidade. Nesse sentido, o art. 286 do Código Civil:

Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.

Na cessão de crédito pode-se observar também a idéia de que o acessório segue o principal, isto é, os créditos de natureza acessória são transferidos juntamente com o crédito em torno do qual gravitam. Como exemplos têm-se os direitos de garantia, juros, correção monetária, a cláusula penal, entre outros. Contudo, por ser campo de direito dispositivo, a livre convenção das partes pode afastar essa regra. O art. 287, nesse sentido, defi ne:

Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios.

O Código nada alude nesse sentido, mas não há oposição à cessão par-cial do crédito, encontrando essa possibilidade, inclusive, assentamento na legislação estrangeira. Apenas parte do crédito pode ser transferido, e nesse caso, o cedido torna-se obrigado em relação a duas pessoas distintas, mas pelo mesmo valor. Nessa bipartição de crédito não há nenhuma preferência de recebimento por um ou por outro credor.

Destaque-se também a possibilidade da cessão ter fi m especulativo, po-dendo ser transferida por valor diverso daquele enunciado na relação credití-cia, embora o obrigado fi que logicamente vinculado apenas ao valor nominal da obrigação.

O devedor deve ser notifi cado da cessão, caso contrário, ao pagar ao cre-dor primitivo (cedente) estará se desobrigando. O art. 290 determina:

Art. 290. A cessão do crédito não tem efi cácia em relação ao devedor, senão quando a este notifi cada; mas por notifi cado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita.

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Não existe forma específi ca para notifi cação, mas é conveniente que seja por escrito, sobretudo, pois o art. 288 exige essa formalidade para que se es-tabeleça validade perante terceiros.

Regra importante de proteção ao devedor reside no art. 291 CC. Ao de-vedor não pode ser imposto o ônus de descobrir quem é o último cessioná-rio, e, portanto, a quem deve pagar. Deve simplesmente pagar àquele que se apresenta com o título.

Ainda, a consideração da lei em relação ao devedor se manifesta de forma bem expressiva no art. 294:

Art. 294. O devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhe-cimento da cessão, tinha contra o cedente.

O crédito é transferido com todas as suas características e dessa maneira, as defesas também são abarcadas nessa transferência. Se o negócio jurídico foi inquinado em suas constituição por erro ou dolo, será anulável, e portanto, essa mesma anulabilidade poderá ser oposta em face do cessionário. Logica-mente, o cessionário, desde que de boa-fé, não é obrigado a conformar-se com o prejuízo, valendo-se dos instrumentos legais próprios na busca de res-sarcimento perante o cessionário.

Essas defesas do cedido face ao cessionário devem ser alegadas tão logo aquele tome conhecimento da cessão.

Os créditos, em geral, podem ser cedidos. Contudo, em certas ocasiões existem óbices à cessão, que podem ser por conta da natureza do crédito, pela convenção das partes ou pela própria lei, que veda a sua alienação. Essas exceções, como já destacado, estão no art. 286.

O cedente não é responsável pelo cumprimento da obrigação por parte do cedido, nem pela solvência do mesmo. Sua responsabilidade, contudo, não pode ser ilidida no que concerne à existência de crédito quando da realização da cessão — quando a mesma tiver se operado onerosamente (art. 295 do Código Civil).

A solvência do devedor será responsabilidade do cedente apenas nos casos em que este expressamente se manifestar nesse sentido. A lei destaca somente a responsabilidade em relação à existência do crédito ao tempo da cessão.

A transmissibilidade de créditos é campo bem aberto à livre disposição en-tre as partes, e certamente o cedente poderá, caso realmente deseje, conferir garantias extras ao cessionário, como a da solvência do devedor.

Art. 296. Salvo estipulação em contrário, o cedente não responde pela solvência do devedor.

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Ainda, mesmo quando da concessão dessa modalidade de garantia, a lei determina limitações, não podendo elas, nos termos do art. 297, ultrapassar o valor recebido pelo cedente mais juros e despesas referentes ao negócio.

Art. 297. O cedente, responsável ao cessionário pela solvência do devedor, não responde por mais do que daquele recebeu, com os res-pectivos juros; mas tem de ressarcir-lhe as despesas da cessão e as que o cessionário houver feito com a cobrança.

Na cessão feita a título gratuito, em regra, nem a responsabilidade quanto à existência do crédito é devida. A exceção existe, contudo, quando o cedente tiver procedido mediante dolo.

A cessão pode se operar a título gratuito ou oneroso e pode ocorrer em qualquer instância judicial. Destacam-se ainda as modalidades de cessão pro soluto e pro solvendo. Na cessão pro soluto o cedente se responsabiliza so-mente pela existência do crédito, mas não assume junto ao cessionário a res-ponsabilidade pelo pagamento da obrigação. Diferentemente, na obrigação pro solvendo, essa garantia suplementar é ofertada, responsabilizando-se do cedente pelo adimplemento da obrigação.

Assunção de dívida

Da mesma forma que existe substituição da parte ativa, pode ocorrer subs-tituição da parte passiva da obrigação. Nesse caso, verifi ca-se a fi gura do as-suntor, isto é, um terceiro que se obriga pela dívida.

A cessão de débito não pode ocorrer sem a anuência do devedor. Trata-se de corolário lógico da idéia já examinada de que o patrimônio do devedor é garantia do cumprimento da obrigação. No caso de inadimplemento, o credor pode movimentar o aparato jurisdicional no sentido de satisfação dos seus débitos, mas irá fazê-lo, logicamente, quando souber que lá encontrará montante sufi ciente para satisfazer o seu crédito.

O credor não está obrigado a aceitar outro devedor, ainda que ele possua melhores condições de pagara dívida ou seja detentor de patrimônio maior. É o preceito contido no art. 299 do atual código:

Art. 299. É facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, com o consentimento expresso do credor, fi cando exonerado o devedor primitivo, salvo se aquele, ao tempo da assunção, era insolvente e o credor o ignorava.

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Parágrafo único. Qualquer das partes pode assinar prazo ao credor para que consinta na assunção da dívida, interpretando-se o seu silên-cio como recusa.

A obrigação se mantém alterada, mas as garantias especiais, tais como a hipoteca e a fi ança, oferecidas pelo devedor original ao credor, em regra, não se estendem ao assuntor (art. 300 do Código Civil).

Essas garantias não subsistirão com ao advento da assunção, salvo na exis-tência de menção expressa nesse sentido.

Semelhante à cessão, a assunção também tem natureza contratual, sendo também negócio bilateral. A forma, não havendo previsão legal que a defi na, é livre. Adicionalmente, tanto as dívidas presentes como as futuras admitem cessão, bem como aquelas sujeitas à condição.

A assunção de dívida pode se processar de duas formas diversas: (i) por acordo entre o terceiro e o credor (expromissão); e (ii) por acordo entre ter-ceiro e o devedor (delegação).

Na expromissão, o terceiro, de forma espontânea, assume em face do cre-dor a obrigação pela liquidação do débito. Nessa modalidade de assunção o devedor original pode ser liberado, mas pode também permanecer concomi-tante vinculado com o terceiro que assume a dívida. Verifi ca-se assim, dois obrigados pela mesma dívida (assunção de débito imperfeita).

Na delegação, o primitivo devedor transfere a terceiro a sua posição, ha-vendo a necessidade de concordância por parte do credor. Da mesma forma que ocorre com a modalidade anterior (expromissão), pode o devedor inicial continuar obrigado de forma concomitante com o terceiro que adere à rela-ção obrigacional. Essa situação irá operar um reforço à obrigação.

Os meios de defesa que seriam oponíveis ao credor pelo primitivo devedor são transmitidos ao assuntor. No entanto, por força do art. 302, excluem-se as exceções pessoais, como a compensação, por exemplo. Ainda, sendo a transmissão anulada, a dívida se restabelece tal qual existia anteriormente, excetuando-se, em regra, as garantias propiciadas por terceiros.

Cessão de posição contratual

O contrato constitui um bem jurídico possuindo valor intrínseco. A ela-boração de um contrato geralmente é uma atividade complexa, trabalhosa e envolvente de número considerável de indivíduos.

Na cessão de posição contratual, uma das partes, denominada cedente, contando com a anuência do outro contratante, o cedido, transmite sua po-sição no contrato a um terceiro, denominado cessionário.

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Na cessão de posição contratual, os direitos e deveres provenientes da po-sição de contratante são os objetos da cessão. Trata-se não da transferência de créditos ou débitos, mas de todo um complexo jurídico englobado pelo contrato, fora outros interesses que lhe sejam subjacentes. Um direito de cré-dito, por exemplo, sempre engloba mais do que o crédito em si, como outras eventuais vantagens, sejam elas patrimoniais ou morais.

Conforme examinado, na cessão de posição contratual, há a transferência de um complexo de relações jurídicas: débitos, créditos, deveres de absten-ção, entre outros. Nessa modalidade de negócio jurídico verifi ca-se a possi-bilidade de se operarem cessões de crédito e assunções de dívida. Esses são efeitos incidentais da cessão daquele complexo jurídico, mas não constituem a essência do mesmo.

Na dinâmica da cessão de posição contratual, a concordância do cedido, isto é, a parte que remanesce no contrato, é imprescindível para a formação desse negócio jurídico.

2. CASO GERADOR:

Giovanni e Michel trabalham juntos num conceituado escritório de advo-cacia no Rio de janeiro. Giovanni, apesar de possuir uma boa renda mensal, cultiva hábitos de vida muito caros, o que invariavelmente o que deixa à volta com dívidas.

Em setembro passado, Giovanni conseguiu vitória em expressivo caso ju-dicial no qual atuava como advogado, rendendo-lhe a título de honorários, o montante de 60.000 reais. Ocorre que a exeqüibilidade desse crédito não é imediata, estando o mesmo sujeito a um termo de 120 dias, prazo esse fi rma-do a pedido do patrocinado, o Sr. Alcebíades.

Vendo sua situação fi nanceira agravar-se, Giovanni procura Michel e lhe propõe uma cessão parcial de crédito. Afi rma, de forma verbal, nessa ocasião, que o cliente é solvente.

O negócio jurídico possui os seguintes contornos: Michel tornar-se-ia ti-tular de um crédito no montante de 30.000 reais. Para isso, desembolsaria a quantia de 25.000 reais. Nenhuma garantia acerca da solvabilidade do deve-dor é dada por Giovanni (cessão pro soluto).

Pouco tempo antes da data de pagamento do crédito, Giovanni recebe notifi cação informando que o Sr. Alcebíades ingressou em juízo, pleiteando a anulação do contrato de prestação de serviços advocatícios.

Alcebíades alega que foi ludibriado por Giovanni, que não tinha idéia de que o litígio iria lhe custar tanto, e que caso o patrono da causa houvesse agido com boa-fé, informando-lhe dos custos envolvidos na demanda, jamais teria sequer litigado.

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O processo de invalidação do aludido negócio corre de forma célere e, surpreendentemente, vem a dar ganho de causa a Alcebíades.

De quais recursos pode se valer Michel para não ver completamente frus-trada a sua expectativa de crédito? Qual o valor poderia o mesmo pleitear?

Linha geral de resposta:O cedente responde pela existência do crédito até o montante rece-

bido na cessão, qual seja, o valor de 25.000 reais.

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PARTE 2 RESPONSABILIDADE CIVIL

AULA 14. ESTRUTURA E FUNÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVIL

LEITURA OBRIGATÓRIA:

George Ripert. “A Responsabilidade dos Riscos”, in O Regimen Demo-crático e o Direito Civil Moderno. São Paulo: Saraiva, 1937; pp. 327/368; e Maria Celina Bodin de Moraes. “A Constitucionalização do Direito Civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil”, in Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (orgs). A Constitucionalização do Direito. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 207; pp. 435/454.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Richard Posner. Economic Analysis of Law. Nova Iorque: Aspen, 1988; pp. 179/236. Hans Hattenhauer. Conceptos Fundamentales Del Derecho Civil. Barcelona: Ariel, 1987; pp. 95/110. Carlos Alberto Bittar Filho. “A reparação de danos como medida de maior alcance”, in Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho. Tutela dos Direitos da Personalidade e dos Di-reitos Autorais nas Atividades Empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; pp. 32/39.

1. ROTEIRO DE AULA ESTRUTURA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

A responsabilidade civil é como a campainha de um alarme30. Quando diversas ações indenizatórias são propostas com a mesma fi nalidade, tendo por objeto o ressarcimento de danos provenientes de determinada atividade, percebe-se a necessidade de atuação do Direito para apaziguar essas relações sociais e evitar a perpetuação de condutas ilícitas.

A atuação do homem em sociedade pressupõe a obediência a regras jurí-dicas, nas quais estão dispostas as conseqüências atinentes às condutas ado-tadas. Na medida em que um dano é causado a terceiro, o ordenamento jurídico disponibiliza os meios para que a parte prejudicada busque o ressar-cimento pela lesão sofrida.

Atualmente, têm-se reconhecido que a responsabilidade civil não deve permanecer atrelada apenas ao binômio dano-reparação, devendo o ordena-mento jurídico prever, além de formas de ressarcimento pelo prejuízo causa-

30 a metáfora é de autoria do professor

italiano Stefano Rodotà, em entrevista

concedida à Revista Trimestral de Di-

reito Civil, no 11 (jul-set/2002); p. 288.

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do, mecanismos que permitam à pessoa impedir que o dano venha se realizar. Nessa direção, pode-se mencionar a previsão da chamada tutela inibitória, no artigo 461 do Código de Processo Civil.

De qualquer forma, o tema da responsabilidade civil remete aos estudos do momento patológico das relações jurídicas, ou seja, quando a conduta adotada por uma pessoa gera um ato ilícito.

Toda vítima de um ato ilícito tem o direito de buscar a tutela jurisdicional com vistas ao ressarcimento de seus prejuízos. Admitida essa premissa, nasce, então, o direito de indenização pelos danos sofridos, junto ao correlato dever do agente de reparar o prejuízo causado. Esse dever surge da necessidade de se devolver à vítima as mesmas condições em que se encontrava antes, bus-cando, dessa forma, restabelecer o status quo ante, de modo a minimizar o resultado do dano causado sobre a vítima.

O Código Civil, em um título reservado à responsabilidade civil (Título IX), dispõe, no seu art. 927, que “aquele que, por ato ilícito (art. 186 e 187), causar dano a outrem, fi ca obrigado a repará-lo”. Conseqüentemente, para que se compreenda o conceito de ato ilícito, faz-se necessário recorrer aos art. 186 e 187, do Código Civil, que assim dispõem:

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou im-prudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exer-cê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fi m econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

O ato ilícito pressupõe, portanto, uma conduta por parte de uma pessoa. Entende-se por conduta todo o comportamento humano adotado em vir-tude de uma determinada situação. Dentro desse conceito estão inseridas as práticas comissivas (realizadas através de uma ação) e omissivas (consubstan-ciadas pela abstenção do agente). Portanto, a realização de um ato ilícito pode ter duas modalidades distintas: comissiva ou omissiva.

Entende-se por ato ilícito comissivo aquele praticado através de uma ação humana pela qual direciona-se forças físicas ou intelectuais à realização de uma conduta. Não se deve confundir prática comissiva com prática dolosa, pois a confi guração do dolo exige a caracterização da intenção do agente.

Ocorre ato ilícito omissivo quando o agente, tendo o dever legal de agir para evitar o resultado, deixa de praticá-lo. Toda pessoa que assume a respon-sabilidade de evitar um resultado, ou que tem, por lei, obrigação de cuidado ou vigilância, ou com seu comportamento anterior criou o risco da ocorrên-cia do resultado.

A responsabilidade civil decorrente de um ato ilícito depende, em regra, da reunião de três elementos: (i) a conduta culposa do agente; (ii) o nexo cau-sal entre a conduta do agente e o dano causado; e (iii) a ocorrência de dano.

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O conceito de culpa aqui utilizado é bastante abrangente, alcançando, para fi ns de responsabilização civil, todo comportamento contrário ao Direi-to, seja intencional (dolo), ou não (culpa). Valendo-se dos conceitos lançados pelo Código Penal, é importante observar a redação do seu art. 18, que esta-belece o seguinte:

“Art. 18. Diz-se crime:I — doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de pro-

duzi-lo; II — culposo, quando o agente deu causa ao resultado por impru-dência, negligência ou imperícia”.

Assim, a conduta culposa do agente que contribui para o ato ilícito po-derá ser voluntária, no sentido de que o resultado ilícito de sua atuação era efetivamente desejado (dolo), ou involuntária, considerando-se aqui que o resultado não era desejado, mas terminou por se realizar em virtude da im-prudência, negligência, ou imperícia de seu autor.

O nexo causal, por sua vez, é a relação de causa e efeito existente entre a conduta do agente e o resultado danoso obtido. A sua importância é eviden-te, na medida em que a confi guração do nexo de causalidade permite identi-fi car a relação que se forma entre o agir do autor do ilícito e o dano decorren-te. Sem a confi rmação do nexo causal não se pode falar em responsabilidade.31

A ocorrência de um dano, por fi m, gera a responsabilização do agente de um ato ilícito. Para os fi ns de confi guração da responsabilidade civil, o dano pode ser de natureza material, ou moral.

O dano material é aquele que causa um prejuízo passível de mensuração econômica direta ao lesado. É importante ressaltar que o dano material pode atingir não apenas o patrimônio atual, como também o patrimônio futuro da vítima, dando ensejo à reparação por danos emergentes e lucros cessantes, respectivamente.

Já o dano moral apresenta conceituação mais desafi adora, pois enquanto parte da doutrina atrela o mesmo à experiências de dor, angústia e sofrimen-to, outros equivalem a sua ocorrência à lesão aos direitos da personalidade ou encontram o seu fundamento na violação da dignidade da pessoa humana,32 conforme inserida na cláusula geral de tutela da personalidade, inscrita nos seguintes artigos da Constituição Federal: (i) art. 1o, III (dignidade da pessoa humana como valor fundamental da República); (ii) art. 3o, III (igualdade substancial); e art. 5o, §2o (possibilidade de reconhecimento de novos direi-tos que não os previamente elencados na Constituição).

Por fi m, cumpre observar que a responsabilidade civil é usualmente con-cebida no direito brasileiro através de duas espécies: (i) a responsabilidade subjetiva; e a (ii) responsabilidade objetiva.

A responsabilidade subjetiva está atrelada à noção de conduta culposa do agente causador do dano, no que se aplicam todas as considerações acima so-bre os elementos que devem ser reunidos para a confi guração da responsabili-

31 sobre o nexo de causalidade, vide, por

todos, Gustavo Tepedino. “notas sobre o

nexo de causalidade”, in Revista Trimes-

tral de Direito Civil, no 06; pp. 3/20.

32 Gustavo Tepedino. “a tutela da perso-

nalidade no ordenamento civil-consti-

tucional brasileiro”, in Temas de Direito

Civil. rio, renovar, 2a ed., 2001; p. 47.

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dade. Assim, no regime da responsabilidade subjetiva, a vítima deverá provar que o agente do dano agiu com culpa, o nexo causal existente entre a conduta do agente e o dano causado, e, fi nalmente, o dano efetivamente ocorrido.

A responsabilidade civil objetiva prescinde da prova da conduta culposa do agente. Para gerar o direito à indenização, basta à vítima provar o nexo causal e o dano sofrido. Essa nova forma de responsabilização surgiu em decorrência dos avanços científi cos e tecnológicos, além da explosão demo-gráfi ca, ocorridos no século passado. Percebeu-se que, se fosse compelida a vítima a provar a culpa do agente em numerosas situações, terminar-se-ia por gerar verdadeiras injustiças, dada a difi culdade que a produção dessa prova poderia acarretar.

Embora possa ser afi rmado que o direito brasileiro adotou a responsa-bilização de natureza subjetiva como regra no Código de 1916 e, de forma mais mitigada no Código de 2002, o número de situações em que a res-ponsabilização será de natureza objetiva tem crescido exponencialmente, em especial após a publicação do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, que estabelece a responsabilidade objetiva como regra para todas as relações de consumo. A existência de uma cláusula geral de responsabilidade objetiva no artigo 927, §, comprova a tese e exigirá maiores aprofundamentos em aula dedicada ao tema.

As funções de responsabilidade civil

Mas qual seria a função ou as funções desempenhadas pela responsabilida-de civil na sociedade contemporânea? Se por um lado a maior parte dos auto-res está de acordo com a função compensatória da responsabilidade civil, ou seja, na fi nalidade de reparar os danos causados à vítima, fazendo com que a situação retorne, da forma mais adequada possível, ao status quo ante, outras funções podem ser encontradas para a disciplina da responsabilidade civil.

A função punitiva do agente do dano é uma das fi nalidades mais comu-mente encontradas na doutrina e nas decisões judiciais e cuja própria existên-cia tem gerado sucessivos debates. No cerne da discussão está a compreensão de que a responsabilidade civil não serviria apenas para reparar a vítima do dano, mas também para sancionar o agente do ilícito de forma a desestimular a prática de novas condutas danosas ou mesmo a perpetuação de uma con-duta ilícita atual.

À função punitiva geralmente se relaciona uma terceira fi nalidade, de ca-ráter sócio-educativa, apontando que a responsabilidade civil opera não ape-nas de forma a educar o autor do dano através de uma punição, mas também instrui a sociedade como todo, alertando para a não admissibilidade de um certo comportamento.

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No que diz respeito ao conhecimento da responsabilidade civil para a con-dução de atividades empresariais, pode-se dizer que a disciplina assume uma função de gestão de riscos na medida em que possibilita prever o impacto jurídico derivado das decisões administrativas sobre a condução de suas ati-vidades, especialmente no que diz respeito aos possíveis danos causados a funcionários, usuários e terceiros em geral que venham a ser afetados por essas atividades.

Quando se está diante de casos em que a vítima e o ofensor possuem capa-cidades econômicas bastante diferenciadas, a disciplina da responsabilidade civil ganha, não raramente, contornos bastante polêmicos no que diz respeito à quantifi cação do dano sofrido. Levar-se-ia em conta para a estimativa do dano o potencial econômico da vítima ou do ofensor? Hipóteses como essa poderiam gerar verdadeiras situações de enriquecimento sem causa, como também impor indenizações que, na verdade, pouca importância respresena-triam sobre o patrimônio de uma das partes envolvidas. Nesses casos, ques-tiona-se sobre a utilização da responsabilidade civil como um mecanismo de “justiça social” camufl ado, função essa que, de todo inapropriada, parece ser encontrada em algumas decisões nacionais e internacionais, sendo objeto de estudo por autores ligados à análise econômica do direito.

Polêmicas ou de maior aceitação, o debate sobre as funções da responsabi-lidade civil pode ser construído a partir de decisões e dos textos doutrinários sobre o tema. Para os fi ns de introdução ao debate, recomenda-se a leitura dos textos indicados no início da presente aula e dos trechos abaixo selecio-nados de julgado bastante citado do Superior Tribunal de Justiça, que servirá como caso gerador.

2. CASO GERADOR:

Leia os trechos abaixo do acórdão do Superior Tribunal de Justiça profe-rido no Recurso Especial n° 287849/SP, julgado em 17/04/2001. Trata-se de caso no qual o autor da demanda, durante a estada em hotel-fazenda no interior de São Paulo, utilizou o escorregador para mergulhar em piscina cujo nível de água estava baixo e não sinalizado, sofrendo então múltiplas lesões por conta do acidente. Constaram do pólo passivo da ação indenizatória o hotel no qual jovem hospedou e a operadora de turismo que havia vendido o pacote de viagem (no qual estava incluída a hospedagem no referido hotel).

Após a leitura, debata os fundamentos da decisão proferida, buscando delinear (i) qual seria o comportamento esperado de cada uma das partes envolvidas para evitar o evento danoso, (ii) a repercussão jurídica das condu-tas efetivamente adotadas e (iii) os regimes de responsabilidade atinentes ao hotel e à operadora de turismo.

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ementa

CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Responsabilidade do fornecedor. Culpa concorrente da vítima. Hotel. Piscina. Agência de viagens. Responsabilidade do hotel, que não sinaliza convenientemente a profundi-dade da piscina, de acesso livre aos hóspedes. Art. 14 do CDC. A culpa con-corrente da vítima permite a redução da condenação imposta ao fornecedor. Art. 12, § 2o, III, do CDC. A agência de viagens responde pelo dano pessoal que decorreu do mau serviço do hotel contratado por ela para a hospedagem durante o pacote de turismo. Recursos conhecidos e providos em parte.

decisão do tribunal de Justiça de são paulo:

“Aliás, mesmo que fosse o caso, nem de culpa concorrente poder-se-ia cogi-tar diante da ausência total de comunicação sobre a profundidade da piscina, que tinha seu acesso livre e apresentava iluminação precária. Tanto há respon-sabilidade do hotel, que uma criança, brincando pelo local e não sabendo ler, podendo penetrar livremente nas dependências da piscina, não sabendo nadar, caindo dentro d’água, morreria afogada e não se pode olvidar que o infausto acontecimento ocorreu às vésperas do Natal, quando os hotéis fi cam lotados.”

voto do min. Ruy Rosado (relator)

“Ocorre que o autor usou do escorregador e ‘deu um salto em direção à piscina’, conforme narrou na inicial, batendo com a cabeça no piso e sofren-do as lesões descritas no laudo. Esse mau uso do equipamento — instalação que em si é perigosa, mas com periculosidade que não excede ao que decorre da sua natureza, legitimamente esperada pelo usuário — concorreu causal-mente para o resultado danoso.

(...) Voltando ao caso dos autos, acredito que a defi nição da responsabili-dade jurídica da CVCTUR decorre de sua situação como agente de viagem contratante de um pacote turístico, com terceiros prestadores de serviço, mas sendo ela a organizadora da viagem e garantidora do bom êxito da sua progra-mação, inclusive no que diz com a incolumidade física dos seus contratantes.

Na espécie, foi isso reconhecido no r. acórdão, daí a conseqüência da sua responsabilização. No nosso sistema, tal responsabilidade é solidária entre ela, a organizadora do pacote e o hotel na causação do resultado, em concorrência com o hóspede, nesse mesmo limite se fi xa a responsabilidade da operadora.

Haverá difi culdade em estender a responsabilidade da operadora por da-nos decorrentes da prestação dos serviços contratados de terceiros quando

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 119

o fato acontece no âmbito do risco que razoavelmente se espera do serviço. Quando houver falta de segurança do serviço do prestatário, fora da possibi-lidade de previsão por parte da operadora de turismo, que se limita a confi ar no que normalmente acontece nessa situação, à falta de norma expressa que lhe atribua diretamente a responsabilidade total — esta somente poderia ser reconhecida se a operadora colocou os seus clientes sob risco acima do nor-malmente esperado (art. 14, §1°, II, do CDC). A restrição se explica não apenas em razão da necessidade de se dar aplicação ao disposto nessa regra, mas também porque nosso sistema legal é de reparação integral do dano, diferentemente do previsto na legislção de países da União Européia, que permitem, nesses casos, a limitação tarifada da indenização. O sistema que amplia a hipótese de responsabilidade da operadora está conformado com a possibilidade de limitação indenizatória; quando a reparação é integral, razo-ável que se restrinja a responsabilização apenas aos casos em que ‘a operadora coloca o cliente em risco acima do normalmente esperado’, cabendo-lhe a prova dessa exoneração.”

voto min. César asfor Rocha

“Mas igualmente, com o mesmo respeito, vou ousar discordar dos votos já manifestados quanto à responsabilidade da companhia de turismo, porque, por maior esforço que possa fazer, não consigo enxergar, porque o só fato de ela ter dispensado um guia para acompanhar esse ‘pacote fechado’ que foi vendido, possa importar na sua responsabilização por um fato que não diga respeito diretamente ao que leva, ao que conduz uma pessoa a procurar o serviço de uma companhia de turismo.

Quem busca uma companhia de turismo vai querer desta a indicação de um hotel nos moldes em que a pessoa paga, isto é, se é um hotel cinco estre-las, se é um hotel que presta os serviços indicados, com as refeições oferecidas, com relação ao transporte prometido mas, evidentemente, que foge da expec-tativa do consumidor que a companhia de turismo dê a ele os serviços que possam importar na sua segurança. Se assim não fosse, por exemplo, em um pacote completo que houvesse sido vendido para uma excursão pela Europa, estaria subsumido na responsabilidade da companhia de turismo qualquer assalto que a pessoa pudesse porventura sofrer em alguma dessas cidades, que foram escolhidas e sugeridas pela companhia de turismo.

Não vejo como, ainda que tendo um guia, pudesse a companhia se respon-sabilizar pela falta que foi cometida pelo hotel, decorrente do só fato de não ter feito a indicação da altura da linha d �água, da profundidade da piscina. Nem poderia se exigir, se pretender, que o guia chegasse a tanto, porque ele

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não poderia se desdobrar, não teria o dom da onipresença, porque senão teria que estar ao lado de todos os viajantes, os usuários daquele pacote de viagem.

Conhecço parcialmente do recurso da empresa hoteleria e, nessa parte, dou provimento, e conheço, na sua integralidade, do recurso da companhia de turismo para eximi-la de qualquer responsabilidade.”

voto do min. sálvio de Figueiredo texeira

“Também me ponho acorde quanto à possibilidade da atenuação da re-sonsabilidade em face de eventual culpa concorrente.

No mérito, todavia, peço vênia para divergir. Com efeito, sem embargo de lamentar profundamente o ocorrido, e de votar com o coração apertado, tenho que essa circunstância não me autoriza a transferir a responsabilidade para quem não vejo presente a culpa.

Pelos fatos expostos, não tenho por caracterizada a responsabilidade do hotel. Ia deter-me em algumas considerações sobre a posição da agência, mas me abstenho de fazê-lo porque, se não reconheço a responsabilidade de quem prestou o serviço diretamente, no caso o hotel, muito menos poderia atribuir essa responsabilidade à agência, que agiu dentro das normas legais e sequer fez má escolha, não se tratando, na espécie, de responsabilidade objetiva.”

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AULA 14. DANO MATERIAL E DANO MORAL

LEITURA OBRIGATÓRIA:

ALMEIDA COSTA, Mário Julio de. Direito das Obrigações, 10a ed. re-elaborada, Coimbra: Almedina, 2006, p. 590/599. Moraes, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civilconstitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003; p. 182/192.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Dias, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11a ed. rev., atualizada de acordo com o código civil de 2002 e aumentada por Rui Bedford Dias. Rio de janeiro: Renovar, 2006, p 969/1026. Agostinho Alvim. Da Inexecu-ção das Obrigações e Suas Conseqüências, 4a Ed. Atual., São Paulo: Saraiva, 1972, p. 169/176;

1. ROTEIRO DE AULA

Como visto, quando causado um prejuízo em razão do descumprimento de um dever jurídico, surge a obrigação de indenizar que tem por fi nalidade tornar indemne o lesado, isto é, colocar a vítima na situação em que estaria sem a ocorrência do fato danoso.

Desta feita, torna-se importante determinar o que é o prejuízo ou, em ou-tras palavras, o que é o dano. Este último é o primeiro pressuposto da respon-sabilidade civil e, sem a sua existência, inexiste qualquer dever de reparação.

Com efeito, apenas em função do dano o instituto da responsabilidade civil realiza a sua fi nalidade essencialmente reparadora ou reintegrativa. Mes-mo quando lhe caiba algum papel repressivo e preventivo, sempre se encon-tra submetido, como regra, aos limites da eliminação do dano33.

Agostinho Alvim defi ne dano como a diminuição ou subtração de um bem jurídico34. A importância deste primeiro conceito é que ele tem em vista não só a perda total de um bem jurídico, mas, também, a sua perda parcial.

Todavia, a doutrina mais moderna, atenta às transformações sociais, espe-cialmente à aparição de novos bens jurídicos merecedores de tutela — como por exemplo o dano moral —, defi ne dano como sendo a subtração ou dimi-nuição de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um integrante da própria personalida-

33 Costa, Mário Julio de almeira. Direito

das Obrigações, 10a ed. reelaborada,

Coimbra: almedina, 2006, p. 590.

34 Alvim, Agostinho. Da Inexecução

das Obrigações e Suas Conseqüências,

4a ed. atual., são Paulo: saraiva, 1972,

p. 172. neste sentido, também, Carlos

roberto Gonçalves. Responsabilidade

Civil, 8a ed. Ver. de acordo com o novo

Código Civil, são Paulo: saraiva, 2003.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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de da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade etc. Em suma, dano é a lesão de um bem jurídico, tanto patrimonial como moral, vindo daí a co-nhecida divisão do dano em patrimonial e moral35.

Sem embargo que este conceito por englobar tanto os chamados danos pa-trimoniais quanto os danos morais é mais condizente com a ordem jurídica vigente. Para encerrar a questão, parece-nos possível defi nir dano como toda ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica.

Por fi m, registre-se que para um dano ser indenizável é preciso que ele seja certo e atual. Atual é o dano que já existe ou já existiu no momento da ação de responsabilidade civil e certo é o dano fundado sobre um fato preciso e não sobre hipótese. Não havendo nem a atualidade e nem a certeza, o dano não poderá ser indenizado. Ressalte-se que o dano futuro é indenizável, como dispõe a parte fi nal do próprio art. 402 (“o que razoavelmente deixou de lucrar”). O que não se indeniza são os danos hipotéticos, isto é, aquele que pode não vir a se realizar.

danos patrimoniais

O dano patrimonial é aquele suscetível de avaliação pecuniária. Em ou-tras palavras, é aquele que incide sobre interesses de natureza material ou econômica e, portanto, refl ete-se no patrimônio do lesado. Podemos afi rmar, então, que nos danos patrimoniais, também chamados de danos materiais, o fato danoso representa a lesão de interesses de ordem material. Todavia, o dano deve ser certo, não se justifi cando a reparação do dano hipotético.

Os danos materiais geralmente são divididos em duas espécies: os danos emergentes e os lucros cessantes. Aliás, essa foi a posição do Código Civil de 2002 que contou com a aprovação da doutrina.

Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e da-nos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

O dano emergente é representado pela diminuição patrimonial, seja por-que se depreciou o ativo, seja porque aumentou o passivo36. Em outros dize-res, o dano emergente compreende a perda ou diminuição de valores já exis-tentes no patrimônio do lesado. Ele é de fácil constatação bastando confrontar a diferença do valor do patrimônio da vítima não fosse a ocorrên-cia do dano.

O lucro cessante, por sua vez, é a fustração da expectativa de ganho, ou seja, refere-se aos benefícios que o lesado deixou de obter em conseqüência da lesão, isto é, ao acréscimo patrimonial frustrado. Podemos dizer, portanto, que o lucro cessante pressupõe que o lesado tinha no momento da lesão a

35 Cavalieri Filho, Sergio. Programa de

Responsabilidade Civil, 7a ed são Paulo:

atlas, 2007, p.70.

36 Gomes, orlando. Obrigações, 16a ed.

rev. atua. e aumentada de acordo com o

código civil de 2002, por edvaldo brito.

rio de Janeiro: forense, 2006, p. 183.

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titularidade de uma situação jurídica que, mantendo-se, lhe daria direito a um ganho. Sérgio Cavalieri Filho explica com clareza:

Consiste, portanto, o lucro cessante na perda do ganho esperável, na frus-tração da expectativa de lucro, na diminuição potencial do patrimônio da vítima.

É preciso alertar, entretanto, o cuidado do juiz no momento de caracteri-zar o citado dano. Não se pode confundir lucro cessante com lucro imaginá-rio, simplesmente hipotético, odioso para o direito.

Com efeito, trata-se de um juízo de probabilidade objetiva e não de mera possibilidade, isto é, é necessário que do curso normal das coisas e circunstân-cias do caso concreto o ofendido provavelmente teria um ganho não fosse o dano causado. Dessa forma, se vê desde logo, a necessidade de levar em conta não somente o desfalque, mas aquilo que não entrou ou não entrará para esse patrimônio, em virtude de certo fato danoso.

Finalmente, é importante ressaltar os danos em ricochete ou refl exos. É aceito em doutrina e jurisprudência que na categoria do dano cabem os da-nos diretos, que são os efeitos imediatos do fato ilícito, mas também os da-nos indiretos que são as conseqüências mediatas ou remotas do dano direto. Esses danos, também chamados de danos refl exos ocorrem na hipótese dos prejuízo refl examente sofrido por terceiros, titulares de relações jurídicas que são afetadas pelo dano, não na sua substância, mas na sua consistência prá-tica (imagine-se a hipótese do ex-marido que deve pensão aos fi lhos e sofre uma lesão na sua capacidade laborativa. Os fi lhos teriam legitimidade para demandar em face do causador do dano). O dano em ricochete é reparável desde que seja certa a repercussão do dano principal.

perda da Chance

Questão que suscita muitas dúvidas é a da teoria da perda de uma chance. Inicialmente, é de ressaltar que ela guarda uma certa proximidade com o lu-cro cessante uma vez que ambos dizem respeito à uma situação futura.

Na perda da chance, entretanto, não existe um benefício futuro certo, ou seja, não existe uma certeza absoluta de que o ganho ocorreria, isto é, poderia tanto ser um resultado favorável como não. Caracterza-se, portanto, quando alguém se vê privado da oportunidade de obter determinada vantagem ou de evitar um prejuízo em virtude de uma conduta ofensiva. Em outras palavras, ela ocorre quando, em virtude da conduta de outrem, desaparece a probabi-lidade de um evento que possibilitaria uma benefício futuro para a vítima.37

A teoria, que já foi muito discutida, hodiernamente encontra ampla acei-tação na doutrina e jurisprudência pátria. O entendimento atual é o de não se indenizar o possível resultado, mas a própria perda em si. Isto é, não se inde- 37 Cavalieri Filho, Sergio. Programa de

Responsabilidade Civil, 7a ed são Paul:

atlas, 2007, p.75.

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niza o que hipoteticamente deixou de lucrar, e sim a oportunidade existente no patrimônio da vítima no momento do ato danoso. Admite-se, assim, um valor patrimonial da chance por si só considerada.

2. CASO GERADOR:

Carla, estudante de direito, estava animadíssima com a sua participação no programa de perguntas e respostas que poderiam lhe render o prêmio máximo de um milhão de reais. Após estudar e se preparar durante um mês, a partici-pante foi ao show e lá logrou êxito nas respostas às questões formuladas.

Finalmente, após ter garantido quinhentos mil reais, a participante foi submetida à última pergunta que lhe premiaria com o prêmio de um milhão. Nervosa, a participante aguardava ansiosamente a última indagação que foi feita nos seguintes moldes:

A Constituição reconhece direitos aos índios de quanto do território bra-sileiro? Resposta: 1 22%2 02%3 04%

4 10% (resposta correta)Por desconhecer a resposta, Carla preferiu salvaguardar a premiação já acu-

mulada de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), posto que, caso apontado item diverso daquele reputado como correto, perderia o valor em referência.

Posteriormente, ao chegar em casa e procurar em sua Constituição da Re-pública Federativa do Brasil de 1988 o art. 231, verifi cou que o referido dis-positivo não mencionava o percentual de território reconhecido aos índios.

Revoltada com a pergunta formulada no programa, Carla ingressou com ação judicial pleiteando indenização por danos materiais e morais ao funda-mento de inadimplemento por culpa do devedor.

Em sua defesa, o programa afi rmou que a pergunta estava de acordo com a Enciclopédia Mundo Vivo e que, caso fosse o questionamento fi nal do programa formulado dentro de parâmetros regulares, considerando o curso normal dos eventos, não seria razoável esperar que ela lograsse responder corretamente à “pergunta do milhão”. Como você, juiz da ação, decidiria?

Dano Moral

O dano moral é com certeza um dos temas mais controvertidos na respon-sabilidade civil. Não há consenso na doutrina quanto a seu conceito, seus efeitos ou seus critérios de fi xação do quantum. Nas palavras de Paulo Schon-blum não há um único aspecto aceito de forma unânime pela doutrina em matéria de dano moral38. Tentaremos nesse curto trabalho demonstrar um conceito em acordo com os ditames constitucionais.

38 Schonblum, Paulo Maximilian Wi-

lhelm. Dano moral: questões contro-

vertidas, rio de Janeiro: forense, 2000,

p.3.

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No Brasil a questão foi tão controvertida quanto na Itália, França e Portu-gal39. Nas primeiras leis brasileiras editadas nota-se certa inclinação para a reparação do dano moral: o Código Criminal de 1832 dispunha que a mes-ma sentença condenatória do réu também disporia acerca de reparações de injúrias e prejuízos apuradas no cível. Com efeito, reparações de injúrias tem um cunho não patrimonial. O Código Penal de 1890 determinava que nos defl oramentos, bem como nos estupros, o ofensor estaria obrigado a dotar a ofendida.

Entretanto, foi sem dúvida a Lei de Estradas de Ferro (Lei 2.681/12) que primeiro visualizou uma hipótese de ressarcimento por dano moral em seu art. 21. Este dizia que no caso de lesão corpórea, ou deformidade, à vista da natureza da mesma e de outras circunstâncias, além das despesas com o tratamento e lucros cessantes, deverá pelo juiz ser arbitrada uma indenização conveniente. Assim, a reparação do dano moral tinha previsão legal, mas de forma específi ca e casuística.

O Código Civil de 1916 nada mencionou acerca da reparabilidade do dano moral. Como era de se esperar surgiram duas correntes: a primeira que tinha como defensor Agostinho Alvim entendia que o dano moral não era indenizável diante do nosso ordenamento pátrio, pois:

Em face do direito constituído, entendemos não haver lugar para ressarci-bilidade do dano moral, não sendo possível inferi-la de preceitos insulados, e nada explícitos a respeito.40

O autor ainda adverte para o fato de que o legislador não havia inserido no Código nenhuma regra sobre dano moral, nenhuma norma de caráter geral. Entretanto, admitia que é “o sentimento de justiça que impulsiona no sentido de admitir-se a indenização por dano moral”41 e afi rmava que “consi-derando-o, porém, diante do direito a constituir-se não nos repugna, como a muitos, admitir o ressarcimento de danos morais.”42

Na doutrina, todavia, solidifi cou-se o entendimento pela aceitação da re-parabilidade do dano moral. O seu fundamento estava previsto no art. 76 que dispunha que para propor ou contestar uma ação é necessário ter legíti-mo interesse econômico ou moral. O interesse moral justifi caria a indeniza-ção pelo dano moral.

Entretanto, diversas foram as críticas à essa construção, pois interesse mo-ral juridicamente protegido, não se confunde com ressarcimento por via eco-nômica de valores meramente afetivos43. Ora, outra construção doutrinária se fazia necessária e não tardou. Passou-se a dizer que o art. 159 teria caráter genérico tratando de dano de forma ampla o que englobaria tanto o dano patrimonial quanto o moral. E, neste sentido, o art. 1.553 (Liquidação das Obrigações) Complementaria o art. 159, pois nos casos não previstos no ca-pítulo, fi xar-se-ia a indenização por arbitramento. Desta forma, os danos não específi cos seriam liquidados por arbitramento judicial.

39 Para um maior detalhamento acerca

da histótia do instituto, v. silVa, Wilson

melo da, O dano moral e sua reparação,

3a ed. rev. e ampl., rio de Janeiro: fo-

rense, 1983.

40 Alvim, Agostinho. Da inexecução das

obrigações e suas conseqüências, 4a ed.

atual., são Paulo: saraiva, 1972, p. 234.

41 Idem, p. 224.

42 Idem, p. 234.

43 Idem, p. 232.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 126

Certo que de forma a superar os problemas da reparação por danos morais sobrevieram diversas normas especiais das quais podemos citar duas como fundamentais. A primeira, a Lei 4.117/62 (Código Brasileiro de Telecomu-nicações), que contemplou o dano moral e sua ressarcibilidade no art. 81.

Art. 81 Independentemente da ação penal, o ofendido pela calúnia, difa-mação ou injúria cometida por meio de radiodifusão, poderá demandar, no Juízo Cível, a reparação do dano moral, respondendo por este solidariamen-te, o ofensor, a concessionária ou permissionária, quando culpada por ação ou omissão, e quem quer que, favorecido pelo crime, haja de qualquer modo contribuído para ele.

A segunda, a Lei de Imprensa (Lei 5.250/67), que em seu art. 49 regulou de forma expressa a reparabilidade do dano moral.

Art. 49. Aquêle que no exercício da liberdade de manifestação de pensa-mento e de informação, com dolo ou culpa, viola direito, ou causa prejuízo a outrem, fi ca obrigado a reparar:

I os danos morais e materiais, nos casos previstos no art. 16, números II e IV, no art. 18 e de calúnia, difamação ou injúrias;

II os danos materiais, nos demais casos.Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 pôs fi m à discussão as-

segurando em seu art. 5o, X o direito à indenização pelo dano moral. Logo após foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor que assegurou ex-pressamente a efetiva reparação dos dano morais nas relações de consumo em seu art. 6o, VI. E, fi nalmente, diante da adoção total da reparação do dano moral, o Código Civil de 2002 adotou expressamente esta teoria ao dispor no art. 186 que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamen-te moral, comete ato ilícito. E a norma é complementada pelo art. 927 que determina que aquele que por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fi ca obrigado a repará-lo.

Ainda dentro da evolução histórica, parece ser pertinente discorrermos acerca das objeções à indenização por danos morais. Podemos resumí-las em três: i) A impossibilidade da rigorosa avaliação dos danos morais e imoralidade da compensação da dor com o dinheiro; ii) impossibilidade e a difi culdade da reparação; e iii) o excessivo arbítrio dos juízes nas reparações por danos morais.

Em oposição à primeira objeção Agostinho Alvim rebate:Acham muitos que é uma grosseria querer mitigar a dor moral por meio

do dinheiro. (...) Mas, não têm razão os que assim pensam. Não é por causa desta ou daquela hipótese, mais ou menos ridícula, que havemos de rejeitar um instituto tão útil. Na realidade, não se pode admitir que o dinheiro faça cessar a dor, como faz cessar o prejuízo patrimonial. Mas, em muitos casos, o conforto que possa proporcionar, mitigará, em parte, a dor moral, pela com-pensação que oferece.44 44 Alvim, Agostinho. Da inexecução das

obrigações e suas conseqüências, 4a ed.

atual., são Paulo: saraiva, 1972, p. 235.

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FGV DIREITO RIO 127

Nesse diapasão, Maria Celina Bodin de Moraes afi rma que, nos últimos anos, passou-se a entender que “se era imoral receber alguma remuneração pela dor sofrida, não era a dor que estava sendo paga, mas sim a vítima, lesa-da em sua esfera extrapatrimonial, quem merecia ser (re)compensada pecu-niariamente, para assim desfrutar de algumas alegrias e outros estados de bem-estar pscicofísico, contrabalançando (rectius, abrandando) os efeitos que o dano causara em seu espírito”.45

Em relação à segunda objeção, ela procede. Realmente é uma tarefa árdua tentar encontrar o equivalente ao dano, talvez até impossível alcançar um valor que repare integralmente, mas deve-se tentar chegar ao mais próximo disso. Entretanto, a difi culdade de avaliação em qualquer situação não pode ser obstáculo à reparação.46

Sem embargo que a terceira e última objeção não poderia proceder. Ora, arbitramento não é sinônimo de arbitrariedade. Ao contrário, devem ser afe-ridos critérios objetivos para que o juiz estabeleça o quantum evitando-se, assim, valores aleatórios. Sem sombra de dúvida esta tarefa cabe em especial à doutrina e à jurisprudência.

Conceito

Após essa rápida evolução do instituto, devemos procurar um conceito para dano moral. Este um dos seus maiores problemas. Muitas são suas defi nições e que talvez não alcancem o instituto em sua totalidade. Inicialmente o dano mo-ral fora entendido como o dano causado a outrem que não atinja ou diminua seu patrimônio47. Trata-se de uma concepção negativista que não tem o exato alcance da amplitude do dano moral não esclarecendo suas características.48

Superando-se essa corrente negativista, surgiram vários conceitos de dano moral. Um primeiro posicionamento e, que encontra respaldo na jurispru-dência atual, entende que os danos morais são a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que fugindo à normalidade, interfi ra intensamente no compor-tamento psicológico do indivíduo, causando-lhe afl ições, angústia e desequi-líbrio em seu bem-estar.49

Essa defi nição também se mostra insufi ciente. Maria Celina critica tal concepção, pois através desses vocábulos apenas se descrevem sensações e emoções desagradáveis.250Zannoni afi rma que as dores e angústias são, na verdade, conseqüências do dano que cada pessoa vivencia de forma mais ou menos intensa, mas que o direito não indeniza o estado de espírito.51

Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves, apoiado em Zannoni afi rma que o dano moral consistiria na lesão a um interesse que visa à satisfação ou gozo de um bem jurídico extrapatrimonial contido nos direitos da personali-dade ou nos atributos da pessoa.”52

45 Moraes, Maria Celina Bodin de. Danos

à pessoa humana: uma leitura civil-

constitucional dos danos morais. rio de

Janeiro: renovar, 2003; p. 147.

46 Venosa, Silvio de Salvo. Direito civil:

responsabilidade civil, 3a ed., são Pau-

lo: atlas, 2003, p. 206. nesse sentido

também Alvim, Agostinho. Da inexecu-

ção das obrigações e suas conseqüên-

cias, 4a ed. atual., são Paulo: saraiva,

1972, p. 236 que afi rma: “Todavia, esta

objeção, ou difi culdade, não deve ser

considerada como obstáculo invencível

ao desenvolvimento da teoria, que terá

de triunfar de seus contrários, pois, lon-

ge de infringir ética, a indenização por

dano moral é da mais estrita justiça.

47 Alvim, Agostinho. Da inexecução das

obrigações e suas conseqüências, 4a ed.

atual., são Paulo: saraiva, 1972, p. 219.

48 bernardo, Wesley de oliveira louzada.

Dano moral: critérios de fi xação de va-

lor, rio de Janeiro: renovar, 2005, p. 73.

49 o próprio desembargador sérigio

Cavalieri Filho entendia dessa forma.

Cavalieri Filho, Sergio, Programa de

responsabilidade civil, rio de Janeiro:

malheiros editores, 1996, p.76.

50 Moraes, Maria Celina Bodin de. Danos

à pessoa humana: uma leitura civil-

constitucional dos danos morais. rio de

Janeiro: renovar, 2003; p. 130.

51 apud Valler, Wladimir. A reparação

do dano moral no direito brasileiro, 2a

ed., são Paulo: e.V. editora ltda., 1994,

p. 37/38.

52 Gonçalves, Carlos Roberto. Responsa-

bilidade Civil, 8a ed. rev. de acordo com

o novo Código Civil, são Paulo: saraiva,

2003, p. 549.

Page 128: Direito Das Obrigacoes e Responsabilidade Civil 2013-1

DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 128

Esse conceito, que tem sido adotado por muitos doutrinadores na atuali-dade e pelo STJ, é uma grande evolução em relação aos conceitos anteriores. A sua crítica é que as situações subjetivas não se esgotam apenas nos direitos da personalidade, mas em diversas outras hipóteses. Ora, se admitirmos essa concepção como a ideal, excluiríamos da reparação civil uma série de situa-ções, o que não se compatibiliza com nosso ordenamento que prevê no art. 1o, III da CRFB/88 o princípio da dignidade da pessoa humana.

Maria Celina Bodin de Moraes, levando em consideração a cláusula geral de tutela da pessoa humana, afi rma que:

(...) a unidade do ordenamento é dada pela tutela à pessoa humana e à sua dignidade, como já exposto; portanto, em sede de responsabilidade civil, e, mais especifi camente, de dano moral, o objetivo a ser perseguido é oferecer a máxima garantia à pessoa humana, com prioridade, em toda e qualquer situação da vida social em que algum aspecto de sua personalidade esteja sob ameaça ou tenha sido lesado.

(...)Nesse sentido, o dano moral não pode ser reduzido à ‘lesão a um direito da

personalidade’, nem tampouco ao ‘efeito extra-patrimonial da lesão a um direi-to subjetivo, patrimonial ou extrapatrimonial’. Tratar-se-á sempre de violação da cláusula geral de tutela da pessoa humana, seja causando-lhe um prejuízo material, seja violando direito (extrapatrimonial) seu, seja, enfi m, praticando, em relação à sua dignidade, qualquer ‘mal evidente’ ou ‘perturbação’, mesmo se ainda não reconhecido como parte de alguma categoria jurídica.”53

Diante da ordem constitucional vigente, parece que a melhor forma de se tutelar a pessoa em sua totalidade é se entendermos o dano moral como uma violação à dignidade da pessoa humana, valor máximo do nosso ordena-mento, não restando, a reparação, limitada a certo número de situações tipo: qualquer lesão à uma situação jurídica subjetiva existencial será sufi ciente para garantir a reparação. No entanto, é preciso muita atenção por parte dos julgadores, sob pena de banalização do instituto.

natureza da indenização por dano moral

Mais uma vez é de se registrar que não existe consenso na doutrina quan-to à natureza da reparação. Uns sustentam que o dano moral possui caráter meramente compensatório, pois o dinheiro serviria apenas como conforto, mitigando em parte a dor e o sofrimento tendo caráter unicamente de ressar-cimento do dano.

Outros, entretanto, sustentam que a natureza da reparação tem caráter eminentemente punitivo. Explica-se. Numa época em que não se admitia a reparação por danos morais, a doutrina encontrou no caráter punitivo o

53 Moraes, Maria Celina Bodin de. Danos

à pessoa humana: uma leitura civil-

constitucional dos danos morais. rio de

Janeiro: renovar, 2003; p. 182/184. nes-

se sentido também o desembargador

sergio Cavalieri, apesar de qualifi car a

dignidade da pessoa humana como

direito subjetivo. “Temos hoje o que se

pode ser chamado de direito subjetivo

constitucional à dignidade. ao assim

fazer, a Constituição deu ao dano mo-

ral uma nova feição e maior dimensão,

porque a dignidade humana nada mais

é do que a base de todos os valores

morais, a essência de todos os direitos

personalíssimos. Cavalieri Filho, Sergio.

Programa de responsabilidade civil, são

Paulo: atlas, 2007, p. 76.

Page 129: Direito Das Obrigacoes e Responsabilidade Civil 2013-1

DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 129

fundamento de validade deste tipo de reparação. Também se entendia que se tivesse caráter meramente compensatório, na hipótese de vítima rica, esta ja-mais seria indenizada. Elogiável, portanto, a construção doutrinária à época.

No entanto, o posicionamento amplamente adotado pelos tribunais bra-sileiros e pela doutrina consiste em que a indenização por dano moral possui uma dupla natureza: compensatória e punitiva.54

Dessa forma, a jurisprudência defende um caráter pedagógico-punitivo na aplicação do dano moral de sorte que no momento de sua fi xação deve ser levado em conta critérios de proporcionalidade,e razoabilidade atendidas as condições do ofensor, ofendido e do bem jurídico lesado.

prova do dano moral

Outra difi culdade a respeito do dano moral consiste na verifi cação de sua prova. Majoritariamente, a doutrina e a jurisprudência brasileiras já têm acei-to a sua confi guração independentemente de prova. O Superior Tribunal de Justiça pacifi cou a matéria ao determinar que a caracterização do dano moral é in re ipsa. Ou seja, indenpende de prova. Basta a demonstração do fato que por si só será sufi ciente para demonstrar o dano extrapatrimonial.

dano moral de pessoa jurídica

Apesar da ferrenha discussão doutrinária acerca da possibilidade de re-paração por danos morais da pessoa jurídica, o Superior Tribunal de Justiça editou a súmula 227 estabelecendo expressamente a possibilidade.

Súmula 227, STJ A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.

2. CASO GERADOR:

Dentre as hipóteses abaixo, identifi que aquelas que poderiam ser enqua-dradas como casos de dano moral:

a) Morte de cônjuge separada de fato há mais de dois anos;b) inscrição indevida no cadastro restritivo de crédito;c) extravio de bagagem em viagem ao exterior;d) inscrição indevida no cadastro retritivo de crédito de devedor contumaz;e) disparo de alarme em supermercado. 54 Conforme informa Maria Celina bo-

din de moraes, essa posição tem encon-

trado inúmeros adeptos no brasil, tanto

em doutrina como na jurisprudência.

moraes, maria Celina, bodin de, Danos

a Pessoa Humana: uma leitura civil-

constitucional dos danos morais, rio de

Janeiro: renovar, 2003, p. 218.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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AULA 16. CULPA E RESPONSABILIDADE SUBJETIVA

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Dias, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11a ed. rev., atualizada de acordo com o código civil de 2002 e aumentada por Rui Bedford Dias. Rio de janeiro: Renovar, 2006, p. 133/152.

LEITURA COMPLEMENTAR:

Schreiber, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos fi ltros à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 9/17-29/48.

1. ROTEIRO DE AULA

A Culpa tem um papel fundamental dentro da responsabilidade civil. Ela é, ao lado do dano e do nexo causal, um dos pressupostos da responsabilidade subjetiva.

A evolução da responsabilidade civil no Direito Romano culmina jus-tamente na célebre Lei Aquília. Essa última operou uma transformação na responsabilidade civil. Se não é certo que ela trouxe a culpa para dentro da responsabilidade civil, é possível afi rmar que a evolução no sentido de intro-duzir o elemento subjetivo para a reparação iniciou-se nela.

Foi, então, com base na interpretação e aplicação cada vez mais extensiva da Lex Aquilia pelos jurisconsultos que o Código Napoleônico adotou uma teoria geral de responsabilidade civil fundada na culpa. Essa teoria foi poste-riormente adotada por quase todos os ordenamentos jurídicos. No Brasil não foi diferente.

Na vigência do Código Civil de 1916, estabeleceu-se como regra a respon-sabilidade civil subjetiva. Ou seja, só era possível imputar responsabilidade a alguém caso o ato tivesse sido cometido culposamente. A responsabilidade objetiva, portanto, era exceção só admitida quando prevista em lei.

Atualmente, verifi ca-se um abandono da culpa no âmbito da responsabi-lidade civil que culminou, no Código Civil de 2002, com a positivação de uma cláusula geral de responsabilidade civil objetiva no art. 927, parágrafo único. Esse “processo de desculpabilização” está diretamente ligado com a necessidade de reparar a vítima, permitindo a ampla reparação.

Page 131: Direito Das Obrigacoes e Responsabilidade Civil 2013-1

DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 131

Todavia, apesar do alargamento das hipóteses de responsabilidade objeti-va, é importante frisar que a responsabilidade subjetiva ainda é necessária. E o Código Civil de 2002 previu uma cláusula geral de responsabilidade aqui-liana no art. 186 c/c art. 927, caput:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que ex-clusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fi ca obrigado a repará-lo.

ato ilícito

Como dito anteriormente, a responsabilidade subjetiva era a regra no Có-digo Civil de 1916 e, portanto, era imprescindível a prova da conduta culpo-sa para o surgimento do dever de indenizar oriundo do ato ilícito.

Antes de falar sobre o conceito de culpa é preciso dinstinguí-la de culpa-bilidade. Este último é a qualidade ou conjunto de qualidades do ato que permitem formular, a respeito dele, um juízo ético-jurídico de reprovação ou censura. Já a culpa exprime a voluntariedade da conduta, envolvendo apenas um juízo de fato, que se baseia no estado psíquico do autor. É o nexo de im-putação psicológica do ato ao agente.55

Para caracterização do ato ilícito são necessários dois pressupostos: a im-putabilidade do agente (elemento subjetivo) e a conduta culposa (elemento objetivo).

imputabilidade do agente

A imputabilidade é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para poder responder pelas conseqüências de uma conduta con-trária ao dever. Dessa forma, diz-se imputável a pessoa com capacidade natu-ral para prever os efeitos e medir o valor dos atos que pratica e para se deter-minar de acordo com o juízo que se faça deles.56

Aliás, é o próprio art. 186 do Código Civil que prevê o elemento imputa-bilidade para existência do ato ilícito. Nesse sentido, pode-se afi rmar que não responde pelas conseqüências do fato danoso quem, no momento em que o fato ocorreu, estava incapacitado de entender ou querer. Em outras palavras, aquele que não pode querer e entender não incorre em culpa.

Tem-se, dessa forma, que os incapazes são irresponsáveis. Essa assertiva, todavia, sofre temperamentos. O Código Civil de 2002 adotou a responsabi-

55 Pessoa JorGe, fernando de sandy

lopes. Ensaio sobre os pressupostos da

responsabilidade civil. Coimbra: alme-

dina, 1995, p. 315/321.

56 Varela, antunes, das obrigações em

Geral, Volume i, 10 a edição, revista e

actualizada, Coimbra: almedina, 2000,

p. 563.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 132

lidade mitigada e subsidiária dos incapazes. Dessarte, pelos atos dos incapazes responde primeiramente a pessoa encarregada da guarda.

Somente responderá o incapaz quando as pessoas responsáveis por ele não tiverem a obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios sufi cientes. Con-tudo, o avanço em admitir a responsabilidade do incapaz de forma subsi-diária, foi informado pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e, dessa forma, nosso ordenamento prevê uma indenização eqüi-tativa de forma a garantir o necessário à subsistência do incapaz e de quem dele depender. Esse é, também, o entendimento esposado no Enunciado 39 da Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos da Justiça Federal.

Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios sufi cientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.

Culpa

Não basta a imputabilidade do agente, é preciso que o imputável tenha agido com culpa. O segundo elemento do ato ilícito, portanto, se expressa através da conduta reprovável, ou seja, da culpa. Esta, no âmbito da respon-sabilidade civil, possui duas concepções: lato sensu e stricto sensu. A primeira concepção se desdobra em dolo e culpa propriamente dita. Registre-se que aqui o dolo não diz respeito ao vício da vontade, mas ao elemento interno que reveste o ato de causar o resultado. A segunda concepção se traduz numa determinada posição ou situação psicológica do agente para com o fato.

dolo

O dolo aparece como a modalidade mais grave da culpa lato sensu. Pode-se defi nir o dolo como a infração consciente do dever preexistente, ou o propósito de causar dano a outrem. Existem, entretanto, outras modalidades de dolo. São elas:

a) dolo direto: quando o agente atua para atingir o fi m ilícito;b) dolo necessário: quando o agente pretende atingir o fi m lícito, mas sabe

que a sua ação determinará inevitavelmente o resultado ilícito;c) dolo eventual: quando o agente atua em vista de um fi m lícito, mas

com a consciência de que pode eventualmente advir do seu ato um resultado ilícito e quer que este se produza.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 133

Culpa em sentido estrito

A culpa stricto sensu ou propriamente dita, por sua vez, diz respeito à vontade do agente que é dirigida ao fato causador da lesão, mas o resultado não é querido pelo agente. Podemos dizer, então, que é a falta de diligência na observância da norma de conduta, isto é, o desprezo, por parte do agente, do esforço necessário para observá-la, com resultado, não objetivado, mas previsível57. É a omissão da diligência exigível do agente.

A mera culpa (ou culpa em sentido estrito), portanto, pode ser defi nida como a violação de um dever jurídico por negligência, imprudência ou im-perícia. Ela pode consistir numa ação ou numa omissão.

Negligência se relaciona com a desídia. É a falta de cuidado por conduta omissiva. Imprudência está ligada à temeridade, ou seja, é a afoiteza no agir. É a falta de cautela por conduta comissiva. A imperícia, fi nalmente, é a falta de habilidade. Em outras palavras, decorre da falta de habilidade no exercício de atividade técnica.

A culpa ainda pode ser graduada em razão da gravidade da conduta. Ape-sar do Código Civil não fazer qualquer menção sobre o tema, tanto doutrina quanto jurisprudência têm se utilizado dos graus de culpa no momento da fi xação da indenização, especialmente no dano moral.

Entrementes, para analisar a conduta é preciso saber qual é o padrão por que se afere a conduta do lesante, ou seja, será a diligência que o agente costuma aplicar nos seus atos, ou será a diligência de um homem normal, medianamente sagaz, prudente, avisado e cuidadoso?

A doutrina coloca que deve se aferir através da culpa em abstrato. Isto é, determina-se pelo modelo de um homem-tipo a que no direito romano se de-signava por bonus pater familiar (bom pai de família), que é o homem médio.

Admite-se, então, três graus de culpa: grave, leve e levíssima. Culpa grave é aquela imprópria ao comum dos homens. É o erro grosseiro, descuido in-justifi cável e equiparado ao dolo.

A culpa leve, por sua vez, é a falta evitável com atenção ordinária, com o cuidado próprio do homem comum. Por fi m, a culpa levíssima caracteriza-se pela falta de atenção extraordinária, com especial habilidade ou conheci-mento singular. Não obstante os diferentes graus, aquele que age com culpa (mesmo que levíssima) está obrigado a reparar (in lege Aquilia et levissima culpa venit).

espécies de Culpa

Embora as espécies de culpa aqui referidas estejam praticamente extintas em razão do Código Civil de 2002 estabelecer a responsabilidade objetiva

57 Dias, José de Aguiar. Da responsabi-

lidade civil. 11a ed. rev., atualizada de

acordo com o código civil de 2002 e

aumentada por rui bedford dias. rio de

janeiro: renovar, 2006, p. 149.

Page 134: Direito Das Obrigacoes e Responsabilidade Civil 2013-1

DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 134

por fato de outrem ou na responsabilidade pelo fato do animal ou da coisa, é importante para fi ns didáticos explicá-las. A doutrina geralmente coloca como espécies de culpa as culpas in eligendo, in vigilando e in custodiando.

A primeira caracteriza-se pela má escolha do preposto. Nesse diapasão, foi elaborada a Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal que determinava presumida a culpa do patrão pelo ato culposo do empregado ou preposto.

A culpa in vigilando decorre da falta de atenção ou cuidado com o proce-dimento de outrem que estava sob a guarda ou responsabilidade do agente. Por fi m, a culpa in custodiando caracteriza-se pela falta de atenção em relação a animal ou coisa que estavam sob os cuidados do agente.

Culpa presumida

Se por um lado foi adotado em quase todos os ordenamentos do mundo uma teoria geral de responsabilidade civil fundada na culpa, por outro lado, essa teoria traz um grave óbice à reparação da vítima.

Com efeito, na medida em que as atividades humanas vão se expandindo e se tornando menos controláveis, os riscos vão se multiplicando. Diante dessa nova realidade, a responsabilidade civil vem exorbitando seus antigos domínios58 para tentar alcançar soluções conforme os anseios sociais. O de-senvolvimento das indústrias e dos meios de transporte veio denunciar-lhe a insufi ciência para a solução de grande número de casos.59

A verdade é que exigir da vítima uma prova que ela não pode produzir é o mesmo que negar a reparação. A prova da culpa em algumas situções é uma prova impossível de ser produzida. Nesse diapasão, em conformidade com a tendência que tem como escopo a reparação da vítima e, de acordo com o prin-cípio da ampla reparação, a doutrina e jurisprudência passaram a admitir o re-curso à inversão da prova, como fórmula de assegurar ao autor as probabilida-des de bom êxito que de outra forma lhe fugiriam totalmente em muitos casos.60

Dessa forma, surgem as hipóteses de culpa presumida. Nessa seara, ainda é imprescindível a culpa para fi ns de reparação, contudo, existe uma presunção cabendo ao autor do dano demonstrar que sua conduta não foi culposa. É, portanto, uma relativização do brocardo latino actori incumbit probatio (ao autor cabe o ônus da prova). A sua vantagem é que através da culpa presumi-da, permite-se que a vítima seja reparada em inúmeras situações.

Concepção normativa da culpa

A concepção normativa, por sua vez, baseia-se na idéia de erro de conduta. Inúmeras atividades são desempenhadas diariamente que podem provocar

58 silVa, Wilson melo da. Responsabi-

lidade sem culpa. 2a ed. são Paulo:

saraiva, 1974, p.151.

59 Alvim, Agostinho, Da Inexecução

das Obrigações e Suas Conseqüências,

4a ed. atual., são Paulo: saraiva, 1972,

p. 305.

60 Dias, José de Aguiar. Da responsabi-

lidade civil. 11a ed. rev., atualizada de

acordo com o código civil de 2002 e

aumentada por rui bedford dias. rio de

janeiro: renovar, 2006, p. 110.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 135

danos. Por essa razão, a lei estabelece uma série de deveres e cuidados que o agente deve ter quando desempenhar essas atividades (p. ex. limite de veloci-dade, uso de equipamentos especiais, etc).

Não havendo normas legais ou regulamentares específi cas, o conteúdo do dever objetivo de cuidado só pode ser determinado por intermédio de um princípio metodológico — comparação do fato concreto com o comporta-mento que teria adotado, no lugar do agente, um homem comum, capaz e prudente61. Isto é, entende-se que a culpa é a quebra do dever a que o gente está adstrito por norma específi ca (legal ou contratual) e na falta desta, pelo dever genérico de não causar dano a outrem (neminem laedere).

A diferença da concepção clássica para a concepção normativa é que nesta não se exige um dever universal de cuidado, mas um padrão de conduta (standard) a ser utilizado para cada situação específi ca, ou seja em cada caso concreto. A culpa aqui passou a representar a violação de um padrão de con-duta62, de onde conclui-se que a noção de culpa é normativa, exigindo um juízo de valor em cada caso.63

2. CASO GERADOR:

Joana era uma senhora de 40 anos. Cansada de sua aparência, resolveu matricular-se em uma academia de ginástica para emagrecer e modelar seu corpo. Todavia, após seis meses de academia, achava que não estava no pon-to ideal. Foi quando sua amiga, Cléia, sugeriu que fosse ao seu médico, Dr. Paulo, para uma lipoaspiração.

Chegando no consultório médico, o médico sugeriu que fi zesse uma ci-rurgia estética reformadora de mamas e abdômem. Realizada a cirurgia, Joa-na teve alta dois dias depois.

Ocorre que chegando em casa, a paciente começou a sentir dores insupor-táveis nas mamas, abdômen e na cabeça. Ao ligar para o médico, este infor-mou que ela deveria continuar com o tratamento anteriormente prescrito. Ao persistirem as dores, Joana se dirigiu ao hospital local onde foi informada que seu estado era gravíssimo, apresentando coloração preta nos mamilos e pontos amarelados. Foi informada, ainda, que seus mamilos foram totalmen-te comprometidos. Sofreram processo de necrose, que signifi ca a morte dos tecidos afetados, resultando cicatrizes em seu lugar.

Após a cirurgia, Joana sofreu de depressão e precisou fazer duas cirurgias corretivas. Inconformada com a situação, a paciente ingressou com ação de indenização por danos materiais e morais.

Em defesa, o médico alegou tão somente que a autora não demonstrou sua culpa. Decida com base na legislação pertinente.

61 Cavalieri Filho, Sergio. Programa de

Responsabilidade Civil, rio de Janeiro:

malheiros editores, 2003, p. 53.

62 moraes, maria Celina, bodin de. Da-

nos a Pessoa Humana: uma leitura civil-

constitucional dos danos morais, rio de

Janeiro: renovar, 2003, p. 212.

63 Cavalieri Filho, Sergio. Programa de

Responsabilidade Civil, rio de Janeiro:

malheiros editores, 2003, p. 53.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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AULA 17. RISCO E RESPONSABILIDADE OBJETIVA

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Schreiber, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos fi ltros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 18/29.

LEITURA COMPLEMENTAR:

Costa, Mário Julio de Almeida. Direito das Obrigações, 10a ed. reelabora-da, Coimbra: Almedina, 2006, p. 524/539. Cavalieri Filho, Sergio. Programa de responsabilidade civil, 7a ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 126/140. Pietro Trimarchi. Istituzioni di Diritto Privato. Milão: Giuff rè, 17a ed., 2007; pp. 126/133.

1. ROTEIRO DE AULAA RESPONSABILIDADE OBJETIVA

Como vimos, a evolução da responsabilidade civil levou a criação de uma teoria geral fundada na culpa. Isto é, dos danos que cada um sofra, só lhe será possível ressarcir-se à custa de outrem quanto àqueles que, provindo de ato ilícito, sejam imputáveis a conduta culposa de terceiros. Os restantes, quer provenham de caso fortuito ou de força maior, quer sejam causados por ter-ceiro, mas sem culpa do autor, terá de suportá-los o titular dos bens ou direi-tos lesados.64

Entretanto, se a responsabilidade fundada na culpa ainda é importante, ela é insufi ciente para reparar todos os danos sofridos na sociedade dinâmica em que vivemos. Com efeito, no mundo contemporâneo, fortemente tecno-lógico e industrializado, o desenvolvimento das possibilidades e dos modos de atuação humana também multiplicou os riscos.65

Ora, em uma sociedade desenvolvida, com tantos avanços científi cos e tecnológicos, os interesses das pessoas se entrecruzam e se interpenetram com muito mais intensidade, criam-se relações sociais complexas, surgem novos vínculos de naturezas díspares, as atividades jurídicas adentram cada vez mais na esfera jurídica dos demais66. Todas essas novas situações, entretanto, tra-zem consigo um mal: o contato incessante faz com que os interesses sofram constantes atentados Nos dizeres de Alvino Lima vivemos mais intensamente e mais perigosamente e, assim, num aumento vertiginoso, crescente e inven-cível, de momentos e de motivos para colisões de direitos67.

64 Varela, antunes, das obrigações em

Geral, Volume i, 10 a edição, revista e

actualizada, Coimbra: almedina, 2000,

p. 630.

65 Costa, Mário Julio de Almeida. Direito

das Obrigações, 10a ed. reelaborada,

Coimbra: almedina, 2006, p. 528.

66 mazeaud, Henri, mazeaud, leon y

TunC, andré. Tratado teórico y práctico

de la responsabilidad civil delictual y

contratual. Tomo primeiro, vol i, trad.

luis alcalá-zamora y Castillo. 5a ed.

buenos aires: ediciones Jurídicas euro-

pa-américa, 1961, p.11.

67 Lima, alvino, Culpa e risco, 2a edição

revista e atualizada pelo Prof. ovídio ro-

cha barros sandoval, são Paulo: editora

revista dos Tribunais: 1998, p. 16.

Page 137: Direito Das Obrigacoes e Responsabilidade Civil 2013-1

DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 137

A vida moderna, portanto, ressaltando a categoria dos danos resultantes de fatalidades, levantou a questão relativa à sua adequada reparação, a que não satisfaziam os moldes tradicionais.

É nesse contexto que surge o sistema da responsabilidade objetiva que independe da culpa. Com efeito, assiste-se a um claro movimento que busca garantir a reparação dos chamados danos anônimos, ou seja, a reparação de todo e qualquer dano, independentemente do caráter culposo ou ilícito do ato que o produziu.

O sistema objetivo, portanto, é uma evolução natural da teoria da res-ponsabilidade civil que visa à reparação da vítima, pois se percebeu que se a vítima tivesse que provar a culpa do causador do dano, em numerosíssimos casos fi caria sem indenização.

Atento às modifi cações, nosso ordenamento pátrio, na vigência do Códi-go Civil de 1916 só admitia o sistema objetivo quando previsto em lei. A pri-meira positivação da teoria se deu com a Lei das Estradas de Ferro (Decreto no. 2.681/12). Posteriormente com o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86). A adoção completa da teoria se deu com o advento da CRFB/88 que previu a responsabilidade objetiva do Estado (art. 37, § 6o) e com o Có-digo de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).

Por fi m, é preciso ressaltar que com a promulgação do Código Civil de 2002, instituiu-se uma cláusula geral de responsabilidade objetiva no art. 927, parágrafo único. Em inovação importantíssima, podemos dizer que o ordenamento brasileiro, atualmente, vive um sistema dualista de responsabi-lidade civil em que coexistem o sistema subjetivo e objetivo através de suas cláusulas gerais (art. 186 e 927, parágrafo único do CC).

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a ou-trem, fi ca obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especifi cados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

teoria do Risco

Na busca por um fundamento para a responsabilidade civil objetiva, os juristas conceberam a teoria do risco. Por essa teoria, compreende-se que se alguém exerce uma atividade criadora de perigos especiais, deve responder pelos danos que ocasione a terceiros68. A responsabilidade, portanto, surge em virtude da potencialidade de danos da atividade exercida.

Registre-se que várias são as modalidades da teoria do risco.68 Costa, Mário Julio de Almeida. Direito

das Obrigações, 10a ed. reelaborada,

Coimbra: almedina, 2006, p. 613.

Page 138: Direito Das Obrigacoes e Responsabilidade Civil 2013-1

DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 138

(i) Risco-proveito: responsável é aquele que tira proveito da atividade da-noso, com base no princípio de quem aufere o bônus, deve suportar o ônus.

(ii) Riscoprofi ssional:odeverdeindenizartemlugarsemprequeofatoprejudicial é uma decorrência da atividade ou profi ssão do lesado. Foi desenvolvida especifi camente para justifi car a reparação dos acidentes de trabalho.

(iii) Risco excepcional: a reparação é devida sempre que o dano é conse-qüência de um risco excepcional, que escapa à atividade comum da vítima, ainda que estranho ao trabalho que normalmente exerça.

(iv) Risco criado: aquele que, em razão de sua atividade ou profi ssão, cria um perigo, está sujeito à reparação do dano que causar, salvo prova de haver adotado todas as medidas idôneas a evitá-lo.

Esclareça-se que o art. 927, parágrafo único do Código Civil não faz qual-quer restrição ao tipo de risco. Em outras palavras, o referido dispositivo determina apenas a reparação quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de ou-trem.

Dessa forma, importante citar a conclusão de Anderson Schreiber:Diante do exposto, a conclusão mais razoável parece ser a de que a cláusu-

la geral de responsabilidade objetiva dirige-se simplesmente às atividades pe-rigosas, ou seja, às atividades que apresentam grau de risco elevado seja por-que se centram sobre bens intrinsecamente danosos (como material radioativo, explosivo, armas de fogo etc), seja porque empregam métodos de alto potencial lesivo (como o controle de recursos hídricos, manipulação de energia nuclear etc.). Irrelevante, para a incidência do dispositivo, que a ati-vidade de risco se organize ou não sob forma empresarial ou que se tenha revertido em proveito de qualquer espécie para o responsável.69

Risco integral

Não obstante as teorias até aqui apontadas, é importante tratar da chama-da teoria do risco integral. Essa é uma modalidade extremada da teoria do risco em que o agente fi ca obrigado a reparar o dano causado até nos casos de inexistência do nexo de causalidade. O dever de indenizar surge tão-só em face do dano, ainda que oriundo de culpa exclusiva da vítima, fato de tercei-ro, caso fortuito ou força maior.

A doutrina estabelece, geralmente, três hipóteses de risco integral em nos-so ordenamento.

(i) Dano ambiental: o art. 225, § 3o da CRFB/88 c/c art. 14, § 1o da Lei 6.938/ 81 estabelecem a obrigação de reparar o dano ambiental independen-temente de culpa. A exegese dos referidos artigos importa em uma hipótese de risco integral, pois caso fosse possível invocar o caso fortuito e a força

69 Schreiber, Anderson. Novos paradig-

mas da responsabilidade civil: da ero-

são dos fi ltros da reparação à diluição

dos danos. são Paulo: atlas, 2007, p. 25.

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maior, fi caria fora da incidência da lei a maior parte dos casos de poluição (p.ex. carga tóxica de navio avariado em razão de tempestades marítimas).

Art.225, § 3o, CRFB/88 As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os da-nos causados.

Art. 14, Lei 6.938/81 Sem prejuízo das penalidades defi nidas pela legis-lação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas neces-sárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:

(...)§ 1o Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o polui-

dor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

(ii) Seguro obrigatório DPVAT: A Lei 6.194/74, alterada pela Lei 8.441/92, estabeleceu que a indenização pelo seguro obrigatório para os proprietários de veículos automotores é devida, mesmo que o acidente tenha sido provocado por veículo desconhecido, ou não identifi cado e ainda que tenha havido culpa exclusiva da vítima. Art. 5o, Lei 6.194/74 O pagamento da indenização será efetuado mediante simples prova do acidente e do dano decorrente, indepen-dentemente da existência de culpa, haja ou não resseguro, abolida qualquer franquia de responsabilidade do segurado.

(iii) Danos nucleares: dado a enormidade dos riscos decorrentes da ex-ploração da atividade nuclear, também foi adotada a teoria do risco integral. A Constituição em seu art. 21, XXIII, “d” determina que a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa. Todavia, o art. 8o da Lei 6.453/77 exclui a responsabili-dade do operador pelo dano resultante de acidente nuclear causado diretamente por confl ito armado, hostilidades, guerra civil, insurrei-ção ou excepcional fato da natureza. Art. 21, CRFB/88 Compete à União:(...)XXIII explorar os serviços e instalações nucleares de qual-quer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princí-pios e condições: (...)d) a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa; Art. 8o, Lei 6.453/77 O operador não responde pela reparação do dano resultante de acidente nuclear causado diretamente por confl ito armado, hostilidades, guerra civil, insurreição ou excepcional fato da natureza.

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o fundamento da responsabilidade objetiva

Se, inicialmente, o sistema objetivo foi adotado com fundamento exclusi-vo na teoria do risco, atualmente, existem outras fontes legitimadoras do re-ferido sistema. Verifi ca-se uma crescente conscientização de que a responsa-bilidade objetiva consiste em uma responsabilização não pela causa, mas pelo resultado.70

2. CASO GERADOR:

Carla, uma senhora de 63 anos, dirigiu-se ao supermercado local Compre Sempre S/A para realizar as compras do mês. Enquanto atravessa o corredor de grãos para adquirir sal, escorregou em arroz espalhado no chão, sofrendo uma queda forte que veio a lhe acarretar traumatismo no joelho esquerdo.

No mesmo dia foi encaminhada ao Hospital da Ajuda, acompanhada por um preposto do Supermercado permanecendo lá internada para tratamento cirúrgico do joelho fraturado, quando, então, retornou para casa, carecendo de acompanhamento domiciliar em tempo integral.

Procurada para reparar os danos sofridos, o supermercado alegou que sempre manteve uma equipe de limpeza e, portanto, por não poderia ser imputada qualquer responsabilidade civil.

Tem razão o supermercado? Justifi que com base na legislação pertinente.

70 Schreiber, Anderson. Novos paradig-

mas da responsabilidade civil: da ero-

são dos fi ltros da reparação à diluição

dos danos. são Paulo: atlas, 2007, p. 28.

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AULA 19. NEXO CAUSAL

LEITURA OBRIGATÓRIA:

TEPEDINO, Gustavo. Notas sobre o nexo de causalidade, in Temas de direi-to civil, tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.63/82.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na responsabilida-de civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33/154. VARELA, Antunes, Das Obrigações em geral, Volume I, 10 a Edição, Revista e Actualizada, Coimbra: Almedina, 2000, p. 887/900.

1. ROTEIRO DE AULA

Inúmeros são os danos sofridos pelas pessoas no seu dia-a-dia, especial-mente no mundo moderno de massas em que vivemos atualmente. Entre-tanto, o dano só pode gerar a obrigação de indenizar quando for possível estabelecer com certeza absoluta que certa ação ou omissão, cometida por alguém, provocou o referido dano. Nas palavras de Agostinho Alvim:

“O dano só pode gerar responsabilidade quando seja possível estabelecer um nexo causal entre ele e o seu autor, ou, como diz SAVATIER, um dano só produz responsabilidade, quando ele tem por causa uma falta cometida ou um risco legalmente sancionado”71.

A doutrina defi ne nexo causal como um elemento referencial entre a con-duta e o resultado72. É o liame que une a conduta do agente ao dano. Trata-se de tarefa árdua ao aplicador do direito.

Diversas são as teorias para explicar o nexo de causalidade. No Brasil, entretanto, são citadas apenas três correntes para identifi cação da causa que efetivamente gerou o dano: i) Teoria da Equivalência das condições; ii) Teoria da Causalidade Adequada e iii) Teoria Do Dano Direto e Imediato. Parece importante, neste momento, analisar as teorias e suas subteorias para um melhor aprofundamento do tema.

71 Alvim, Agostinho, da inexecução das

obrigações e suas Conseqüências, 4a

ed. atual., são Paulo: saraiva, 1972, p.

340.

72 Cavalieri Filho, Sergio, Programa de

Responsabilidade Civil, rio de Janeiro:

malheiros editores, 2003.

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teoria da equivalência das Condições

A primeira delas, formulada em 1860 por Von Buri, considera como cau-sa do dano qualquer evento que contribui para determinado dano, por si só, capaz de gerálo. Entende-se que se não fosse a presença de cada uma das con-dições na hipótese concreta, o dano não ocorreria. Como o próprio nome diz, as condições são equiparadas às causas. Ela, portanto, aceita qualquer das causas como efi ciente73.

É bem verdade que a experiência de vida e a simples refl exão do jurista sobre a realidade das coisas ensinam que o processo causal conducente a qual-quer dano, como na verifi cação de qualquer outro fato, concorrem no geral múltiplas circunstâncias74. Logo, a crítica a essa teoria é que poderia se impu-tar responsabilidade a um sem número de pessoas.75 É o exemplo clássico de se responsabilizar o fabricante da cama pelo adultério, pois este não ocorreria se não existisse a cama.

teoria da Causalidade adequada

Essa teoria, concebida pelo fi lósofo Von Kries, procurou identifi car, na presença de uma possível causa, aquela potencialmente apta a produzir o dano. Faz-se um juízo de valor abstrato para verifi car se a causa do dano or-dinariamente é apta a produzir aquele resultado.

Em outras palavras, não basta que o fato praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição sine qua non do dano; é imprescindível ainda que, em abstrato, o fato seja causa adequada do dano. Deve-se escolher entre os antecedentes históricos do dano, aquele que, segundo o curso normal das coisas, se pode considerar apto para o produzir, afastando aquela que só por virtude de circunstâncias extraordinárias o possa ter determinado. Essa dou-trina se dividiu em duas correntes: a positiva e a negativa.

A primeira entendia que será causa adequada do dano, sempre que este constitua uma conseqüência normal ou típica daquele, ou seja, sempre que, verifi cado o fato, se possa prever o dano como uma conseqüência natural ou como efeito provável dessa verifi cação.

A segunda entendia que o fato que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verifi cação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraor-dinárias ou anômalas, que intercederam no caso concreto.

Em Portugal, a doutrina adotou a teoria da causa adequada tendo como preferência a doutrina negativista com base no art. 563 do Código Civil

73 Alvim, Agostinho, da inexecução das

obrigações e suas Conseqüências, 4a

ed. atual., são Paulo: saraiva, 1972, p.

345.

74 Antunes Varela, João de Matos, Das

Obrigações em Geral, Tomo i, 10a ed.,

Coimbra: almedina, 2000, p. 881.

75 TePedino, Gustavo, Temas de direito

Civil — Tomo ii, rio de Janeiro: renovar,

2006, p. 66.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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Português que dispõe que “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.

O problema desta teoria está no sentido de que se a causa só gerou o dano no caso devido a circunstâncias especiais, então a causa não seria adequada. A crítica reside no fato de que seria uma teoria complexa e imprecisa. Nossos tribunais têm se manifestado expressamente pela adoção da teoria da causali-dade adequada, todavia, dão à essa teoria os contornos da teoria da necessa-riedade da causa como veremos a seguir.

teoria do dano direto e imediato

Por fi m, a última teoria dispõe que o dever de reparar surge quando o evento danoso é efeito direto e imediato de certa causa. É a Teoria do Dano Direto e Imediato.

Para explicar essa teoria, surgiram algumas subteorias. A primeira, de MOSCA procurava diferenciar a causa do mundo físico da causa jurídica, pois segundo ele, só seriam causas jurídicas os fatos ilícitos. Para se determi-nar a causa direta e imediata no campo jurídico, seria necessário desconside-rar os fatos naturais, bem como os voluntários não ilícitos.

A segunda subteoria, de autoria de COVIELLO, determinava que suposta a mora do devedor, responde ele pelo caso fortuito, salvo se provar que o mes-mo sucederia, ainda que não houvesse mora. Isto é, o dano teria sido produ-zido ainda que se abstraísse o ato do devedor. A crítica aqui reside no fato de que é difícil chegar a conclusão tão exata, pois seria necessário medir a força do evento para saber se este, por si só, seria ou não capaz de produzir o dano.

Por fi m desenvolveu-se a subteoria da necessariedade. Procura se verifi car nessa teoria se aquela causa, no caso concreto, foi a causa necessária ao resul-tado produzido. Quer dizer, procede-se à um juízo de valor do caso concreto, diferenciando-se da Teoria da Causa Adequada. O devedor só responde pelos danos que são conseqüência necessária do inadimplemento, mas não pelos originados de outras conseqüências não necessárias, de mera ocasião.Nas pa-lavras de Agostinho Alvim:

“Ela é causa necessária desse dano, porque ele a ela se fi lia necessariamen-te; é causa única, porque opera por si, dispensadas outras causas”.76

A causa direta e imediata, portanto, nem sempre será a causa mais pró-xima do dano, mas aquela que necessariamente o ensejou. Como dito ante-riormente, apesar da jurisprudência brasileira constantemente fazer alusão à Teoria da Causalidade Adequada, ela dá a seu conteúdo os contornos da Teoria do Dano Direto e Imediato.

Nosso ordenamento jurídico adotou a terceira teoria acima. Afi nal, o art. 403 do Código Civil prevê que ainda que a inexecução resulte de dolo do

76 Alvim, Agostinho, da inexecução das

obrigações e suas Conseqüências, 4a

ed. atual., são Paulo: saraiva, 1972, p.

356.

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devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessan-tes por efeito dela direto e imediato. Também esse o entendimento do STF. Alerte-se que, embora o artigo se refi ra a responsabilidade contratual, o dis-positivo é aplicável, também, em matéria de responsabilidade extracontratual.

Concorrência de Causas

O problema da causalidade se torna ainda mais difícil quando várias cau-sas concorrem para a ocorrência de um dano. É o fenômeno denominado concorrência de causas.

Na produção de um dano podem participar várias causas. Essa participa-ção pode se dar de diversas formas. Elas podem ser subseqüentes, Comple-mentares, cumulativas ou alternativas.

Na primeira hipótese o fato praticado por uma pessoa é a causa do fato praticado por outra: o depositário deixa, por negligência, a coisa abandonada em local que propicia o furto cometido por outra pessoa.

A segunda ocorre quando duas ou mais causas concorrem para a produ-ção de um resultado que não seria alcançado de forma isolada por nenhuma delas. Ex. A colide com um veículo pesado em certa casa deixando-a bastante abalada, logo a seguir, B, condutor de outro veículo do mesmo tipo bate na mesma casa e deita-a abaixo.

Nas hipóteses de causalidade cumulativa os fatos praticados pelos agentes não necessitariam de somar-se um ao outro para a ocorrência do dano, visto que qualquer deles produziria o resultado isoladamente.

A última hipótese é a situação em que não se pode defi nir exatamente qual dos vários participantes causou o dano. Isto é, o agente de um grupo causou um dano, mas não é possível determinar qual agente.

Ressalte-se, por fi m, que as causas Complementares e as concorrentes po-dem ocorrer de forma simultânea ou sucessiva. A regra do art. 942 estabelece que todos os que contribuíram para o dano respondem solidariamente peran-te a vítima. Entretanto, na hipótese de causas suspensivas, “é possível cogitar-se de uma espécie de ‘causalidade parcial’ em que cada uma das causas vai dar origem a uma parcela independente do dano que, justamente por ser forma-do por partes autônomas, será imputado a diferentes autores sem a regra de solidariedade”77.

Classifi cam-se, ainda, em: (i) preexistentes; (ii) concomitantes ou (iii) su-pervenientes.

Quanto às concausas preexistentes, não são hábeis a eliminar a relação causal. Por isso é que as condições peculiares da vítima em nada reduzem a responsabilidade do agente, ainda que sirvam para agravar o resultado da conduta. No exemplo de Sérgio Cavalieri Filho, diz o autor que “será irrele- 77 Cruz, Gisela Sampaio da. O problema

do nexo causal na responsabilidade ci-

vil, rio de Janeiro: renovar, 2005, p. 30.

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vante, [...], que de uma lesão leve resulte a morte por ser a vítima hemofílica; que de um atropelamento resultem complicações por ser a vítima diabética; que da agressão física ou moral resulte a morte por ser a vítima cardíaca; que de pequeno golpe resulte fratura de crânio em razão da fragilidade congênita do osso frontal etc. Em todos esses casos, o agente responde pelo resultado mais grave, independentemente de ter ou não conhecimento da concausa antecedente que agravou o dano”.78

As concausas concomitantes são aquelas que se dão simultaneamente ao fato gerador do dano e as supervenientes são aquelas que, naturalmente, ocorrem após o evento danoso. Em ambos os casos, o tratamento a ser dado às concausas concomitante e superveniente é aquele dispensado às concausas preexistentes.

No entanto, uma observação se faz quanto às concausas supervenientes. Estas terão relevância quando inaugurarem um novo curso de acontecimento que rompa com o nexo causal anterior. Isso signifi ca que se a concausa super-veniente for sufi ciente para gerar o dano por si só, ela interromperá o nexo causal eximindo o agente de responsabilidade.

CASO:

João fumou a vida toda. Passados trinta anos, após apresentar problemas pulmonares, resolve ajuizar uma ação indenizatória em face da empresa de cigarros. Procede a indenização?

78 sergio Cavalieri. Programa de res-

ponsabilidade Civil. são Paulo: atlas,

2007; p. 58

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AULA 20. EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE CIVIL

LEITURA OBRIGATÓRIA:

Dias, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11a ed. rev., atualizada de acordo com o código civil de 2002 e aumentada por Rui Bedford Dias. Rio de janeiro: Renovar, 2006, p. 919/949.

LEITURA COMPLEMENTAR:

Alvim, Agostinho. Da Inexecução das Obrigações e Suas Conseqüências, 4a Ed. Atual., São Paulo: Saraiva, 1972, p. 325/338. FONSECA. Arnoldo Medeiros, Caso fortuito e teoria da imprevisão. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, p. 77/79-113/158. Cavalieri Filho, Sergio. Programa de res-ponsabilidade civil, 7a ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 63/65 — 291/300.

1. ROTEIRO DE AULA

Até o presente momento viemos tratando da imputação da responsabi-lidade. Contudo, é imprescindível estudar as formas de defesa do autor do dano. Isto é, é importante examinarmos as causas de isenção ou exoneração da responsabilidade.

As causas de exoneração, em regra, atuarão no nexo de causalidade. Em outras palavras, as hipóteses de exclusão de responsabilidade, normalmente, interromperão o nexo causal dirigido à produção do dano.

Dessa forma, o estudo do nexo de causalidade toma grande relevância dentro da responsabilidade civil, especialmente se considerarmos o alarga-mento das hipóteses de responsabilidade sem culpa.

Geralmente são elencadas como excludentes de responsabilidade: i) estado de necessidade e legítima defesa; ii) culpa exclusiva da vítima; iii) fato exclusi-vo de terceiro; iv) caso fortuito ou força maior; e v) cláusula de não indenizar.

estado de necessidade e legítima defesaNem sempre haverá coincidência entre dano e ilicitude. Existem situações

que exigem uma atuação danosa do agente, apesar de não serem considerados atos ilícito. Nos termos do art. 188 do Código Civil, quem pratica ato em estado de necessidade ou legítima defesa não pratica ato ilícito.

Art. 188. Não constituem atos ilícitos:

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I os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;

II a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fi m de remover perigo iminente.

Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.

A legítima defesa ocorre quando o agente, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Trata-se de uma hipótese de autotutela. Ou seja, quando não é possível esperar a atuação estatal na defesa de um direito, é concedido ao particular defendê-lo.

O estado de necessidade, por sua vez, ocorre quando alguém deteriora ou destrói coisa alheia ou causa lesão em pessoa, a fi m de remover perigo iminente. Registre-se que, conforme dispõe o parágrafo único, o ato só será legítimo quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, sen-do vedado o excesso ao indispensável para a remoção do perigo.

A questão que se coloca é: se a legítima defesa e o estado de necessidade são excludentes de ilicitude, fi ca excluída, também, o dever de indenizar? A resposta é no sentido negativo. Embora a lei declare que o ato praticado em estado de necessidade ou legítima defesa não é ato ilícito, nem por isso libera quem o pratica de reparar o prejuízo.

No caso de estado de necessidade, o autor do dano responde perante o le-sado, se este não criou a situação de perigo. Todavia, caso a situação de perigo tenha sido criada por um terceiro, terá ação regressiva em face do terceiro. É o que se extrai da conjugação dos arts. 929 e 930 do Código Civil.

Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram.

Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a im-portância que tiver ressarcido ao lesado.

Na hipótese de legítima defesa, a solução é um pouco diferente. Se o ato foi praticado contra o próprio agressor, e em legítima defesa, não pode o agente ser civilmente responsabilizado pelos danos causados. Entrementes, se o dano foi causado a terceiro, então aquele que atuou em legítima defesa será obrigado ressarcir o lesado, cabendo, é claro, ação regressiva contra o agres-sor. A solução está prevista no parágrafo único do art. 930.

Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a im-portância que tiver ressarcido ao lesado.

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Parágrafo único. A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se causou o dano (art. 188, inciso I).

A idéia que está na base destas situações reguladas no direito privado afl o-ra do mesmo modo em outras situações compreendidas no direito público, como as desapropriações, cuja disciplina cabe ao direito administrativo. A utilidade pública de certos fi ns legitima a apropriação coercitiva dos bens dos particulares por parte do Estado; mas não justifi ca que a realização do fi m de utilidade pública visado pela apropriação coercitiva da coisa se obtenha à custa discriminada de um ou alguns particulares.79

Se o ato lesivo é lícito, ao mesmo tampo não é justo (no plano da justiça comutativa ou distributiva) que ao interesse coletivo, ou ao interesse qualifi -cado da pessoa, se sacrifi que sem nenhuma compensação os direitos de um ou mais particulares.80

Culpa exclusiva da vítima e Culpa concorrente

Se é certo que só se responde perante o dano a que tenha dado causa, é certo, também, que ninguém pode ser obrigado a indenizar por um resultado a que não tenha causado.

Nesse diapasão a primeira causa de exclusão é o chamado fato exclusivo da vítima, também denominado culpa exclusiva da vítima. A conduta da vítima poderá importar ou na exclusão da responsabilidade ou na atenuação no de-ver de indenizar. Antes, porém, é preciso alertar acerca da terminologia em si.

Apesar do código e da doutrina se utilizarem da expressão culpa, em ver-dade, a questão de fundo é a causa. Em outras palavras, o problema desloca-se da culpa para o nexo causal. Com efeito, a responsabilidade será excluída em razão da conduta danosa ser oriunda da própria vítima e não da sua culpa. Sendo assim, não é o grau de culpa, mas a efetiva participação na produção do evento danoso que deve determinar o dever de indenizar.

Quando ocorrer fato exclusivo da vítima, portanto, fi ca eliminada a res-ponsabilidade do agente em razão da interrupção do nexo de causalidade. Ou seja, nesse caso deixa de existir a relação de causa e efeito entre o ato do agente e o prejuízo experimentado pela vítima.

Todavia, o ato da vítima pode não ser sufi ciente para a produção do dano, mas somente quando aliada à conduta do agente. Nesses casos, estaremos discorrendo acerca da chamda culpa concorrente. Nesse peculiar, a conduta do agente e da vítima concorrem para o resultado em grau de importân-cia e intensidade de sorte que o agente não produziria o resultado sozinho, contando, para tanto, com o efetivo auxílio da vítima. Isto é, autor e vítima contribuem para a produção de um mesmo fato danoso. 79 Antunes Varela, João de Matos, Das

Obrigações em Geral, Tomo i, 10a ed.,

Coimbra: almedina, 2000, p. 716.

80 Idem, p. 715.

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Registre-se que na culpa concorrente a conseqüência jurídica será dife-rente, pois não será excluída a responsabilidade, mas apenas atenuada, nos termos do art. 945 do Código Civil.

Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fi xada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano

Não obstante o Código fale em culpa concorrente, é pertinente a crítica referente à culpa exclusiva. Em verdade a culpa concorrente também atua no plano da causalidade, pois diz respeito à conduta da vítima.

Fato exclusivo de terceiro

Por outro lado, é possível que o dano seja produzido não em razão da con-duta do agente ou da vítima, mas da conduta de um terceiro. Nesse sentido, o fato de terceiro também pode servir como fator de isenção de responsabilidade.

Terceiro é qualquer pessoa além da vítima e o responsável, ou seja, alguém que não tem nenhuma ligação com o causador aparente do dano e nem com o lesado.

É preciso esclarecer que nem todo fato de terceiro é sufi ciente para elidir a responsabilidade do agente. Com efeito, em matéria de responsabilidade ci-vil, predomina o princípio da obrigatoriedade do causador direto em reparar o dano. O fato de terceiro não exonera o dever de indenizar, mas permite a ação de regresso em face do terceiro.

Contudo, o fato de terceiro irá exonerar o dever de indenizar quando realmen-te constitua causa estranha ao causador aparente do dano, isto é, quando elimine totalmente a relação de causalidade entre o dano e o desempenho do agente.81

Ressalte-se que se houver culpa concorrente do terceiro e do agente cau-sador direto do dano, sendo solidária a responsabilidade, a vítima poderá acionar qualquer um deles pela totalidade do prejuízo.

Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem fi cam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.

Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932.

É de se registrar duas questões de direito processual no que tange a fato de terceiro. A primeira diz respeito à defesa do réu. A sua alegação é matéria de mérito em ação indenizatória e, portanto, não pode ser suscitada em pre-liminar de ilegitimidade passiva. É necessária a instrução probatória para se alcançar qual foi, efetivamente, a causa geradora do dano.

Outra questão processual que se coloca diz respeito à denunciação da lide. O art. 70, III do CPC determina que a denunciação da lide é obrigatória

81 Dias, José de Aguiar, Da responsabi-

lidade civil, 11a revista e atualizada de

acordo com o Código Civil de 2002, e

aumentada por rui berford dias, rio de

Janeiro: renovar, 2006, p. 926.

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FGV DIREITO RIO 150

àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda.

A questão sobre a obrigatoriedade da denunciação é controvertida. Ela pode ser feita apenas para efeito de regresso. Mesmo assim, há os que inter-pretam de forma restritiva o art. 70, III do CPC, não admitindo a denuncia-ção em todos os casos em que há direito de regresso, mas somente quando se trata de garantia do resultado da demanda, ou seja, quando, resolvida a lide principal, torna-se automática a responsabilidade do denunciado, indepen-dentemente de discussão sobre sua culpa ou dolo.82

2. CASO GERADOR:

Maria, moradora de Botafogo e correntista do Banco Nossa Vida S/A, ao se dirigir a uma das agências bancária para pagar contas no caixa eletrônico, foi surpreendida com o comunicado de que não poderia utilizar o cartão eletrônico de sua titularidade para pagamento.

Inconformada com a situação, pois sempre honrou com todas as suas dívi-das, Maria se dirigiu à sua agência e lá se surpreendeu com o saldo constante do extrato bancário que lhe era favorável em R$ 3.000,00 (três mil reais), desconhecendo sua origem. Ao procurar esclarecimentos junto ao gerente da agência, lhe foi informado que aquela quantia correspondia ao saldo rema-nescente de um empréstimo de R$ 9.000,00 (nove mil reais), contra os quais foram sacados diversos valores através do cartão REDE SHOP em várias cidades do interior paulistano, tratando-se, assim, de clonagem de cartão.

Tomadas as providências cabíveis em relação ao empréstimo indevido, rece-beu um novo cartão com chip, que sequer chegou a desbloquear. Novos saques, contudo, foram efetuados, tornando negativa a conta da Autora em R$ 900,00.

Cansada da situação, Maria ingressou com ação pleiteando danos mate-riais e morais. Em defesa o Banco Nossa Vida alega que agiu licitamente e de forma devida, não confi gurando nenhum dano à Recorrida. Aduz, ainda, que o dano foi causado por quadrilhas, que cada vez mais especializadas, conseguem criar novos artifícios fraudulentos, visando ao favorecimento de criminosos e dando prejuízos de toda ordem.

Como você, juiz da demanda, decidiria?

Caso Fortuito e Força maior

Continuando o tratamento das excludentes de responsabilidade, é preciso traçar algumas linhas acerca do caso fortuito e força maior. Ambas as causas de exoneração terão o mesmo efeito: a liberação do agente.

82 Gonçalves, Carlos Roberto, responsa-

bilidade Civil, 9a ed. rev. de acordo com

o novo Código Civil, são Paulo: saraiva,

2006, p. .751/752

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 151

A doutrina tenta estabelecer distinções entre um e outro. Para Sérgio Ca-valieri Filho estaremos em face de caso fortuito quando se tratar de evento imprevisível e, por isso, inevitável; se o evento for inevitável, ainda que previ-sível, como decorre das forças da natureza, estaremos em face da força maior.

Caio Mário Pereira da Silva, por sua vez, defi ne o caso fortuito como o acontecimento natural ou o evento derivado da força da natureza (terremo-tos, inundações); enquanto a força maior seria o dano originado do fato de outrem (guerra, greves)83. Já Carlos Roberto Gonçalves entende o caso fortui-to como decorrente de fato ou ato alheio e a força maior decorrente das forças da natureza.

Apesar do grande debate doutrinário acerca das diferenças entre as duas excludentes, em verdade, esta distinção torna-se irrelevante. José de Aguiar Dias chega a afi rmar que é inútil tentar distinguílas, pois as expressões são sinônimas. A verdade é que a distinção não se faz necessária uma vez que o Código Civil em seu art. 393 do Código Civil, sem diferenciá-las, estabelece a mesma conseqüência para ambas as excludentes: exoneração do dever de indenizar.

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso for-tuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifi ca-se no fato ne-cessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Dessa forma, sempre que presente um fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir, estaremos diante de uma hipótese de caso for-tuito ou força maior apta a exonerar o agente. Não obstante o artigo se refi ra à responsabilidade contratual, a jurisprudência já se fi rmou no sentido de que ele tem aplicação, também, à responsabilidade extracontratual.

A doutrina coloca, geralmente, dois requisitos para caracterizar a força maior e o caso fortuito: i) necessariedade; e ii) a inevitabilidade. Existem alguns doutrinadores que ainda colocam um terceiro requisito: a imprevisibilidade.

O primeiro diz respeito ao fato necessário e causador do dano, ou seja, o caso fortuito ou força maior tem que ser sufi cientes para gerar o dano por si só. Em segundo lugar, é preciso que o dano seja inevitável, isto é, não existam meios hábeis de evitar ou impedir os seus efeitos.

Caio Mário critica o requisito da imprevisibilidade, pois mesmo que previ-sível o evento pode surgir com força indomável e inarredável de forma que seus efeitos são inevitáveis. Ainda assim o agente estará isento de responsabilidade.

Outro ponto que merece destaque é a distinção entre fortuito interno e ex-terno para fi ns de liberação do agente. Essa teoria está ligada a idéia de atividade exercida. Entende-se por fortuito interno o fato imprevisível e, por isso, inevi-tável que se liga à organização da atividade. O fortuito externo, por sua vez, é o fato imprevisível e inevitável, mas estranho à organização da empresa. Somente o fortuito externo tem o condão de eximir o agente de responsabilidade. 83 Pereira, Caio mário da silva. Institui-

ções de direito civil, vol. II. rio de Janei-

ro: editora forense, 2006, p. 384.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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Cláusula de não indenizar

Apesar de não ser uma causa legal de exclusão da responsabilidade, a cláu-sula de não indenizar consiste numa estipulação prévia pela qual a parte que viria a obrigarse civilmente perante outra, afasta, de acordo com esta, a apli-cação da lei comum ao seu caso.

A cláusula é vista com extrema cautela no nosso direito e aplicada com bastante restrição. Para saber da validade da cláusula de irresponsabilidade, deve-se indagar qual a sua abrangência. Nessa seara, é interessante verifi car quando ela não é admissível.

Inicialmente, a cláusula não é aceita quando o seu conteúdo é destinado a exonerar o devedor da responsabilidade em que incorreria em caso de dolo ou culpa grave. Em segundo lugar, não é admissível quando não houver violação a interesse de ordem pública.

Nesse sentido, o nosso ordenamento impede a estipulação de cláusulas em diversas situações, especialmente quando se tratar de partes hipossufi cientes ou vulneráveis. Nesse especial, o Código Civil estabelece em seu art. 424 que nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que determinam a exclusão do dever de indenizar, pois, neles, o aderente está impossibilitado de estipular seu conteúdo.

Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.

No que diz respeito aos contratos de transportes, em razão da cláusula de incolumidade, o Código Civil estipula a nulidade da cláusula de não indenizar.

Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas trans-portadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.

O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/80), norma de ordem pública e interesse social também condena a cláusula de irresponsabilidade em seus artigos 25 e 51, I em razão da vulnerabilidade do consumidor que se encontra numa posição hierarquicamente inferior.

Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exo-nere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores.

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

I impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renún-cia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justifi cáveis;

O Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86) também estabelece uma limitação à cláusula de irresponsabilidade em seu art. 247.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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Art. 247. É nula qualquer cláusula tendente a exonerar de responsabilida-de o transportador ou a estabelecer limite de indenização inferior ao previsto neste Capítulo, mas a nulidade da cláusula não acarreta a do contrato, que continuará regido por este Código (artigo 10).

Por fi m, a doutrina coloca alguns requisitos para a validade da cláusula de irresponsabilidade: i) bilateralidade do consentimento; ii) não-colisão com preceito de ordem pública; iii) igualdade de posição das partes; iv) inexistên-cia do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do estipulante; e v) ausência da intenção de afastar obrigação inerente à função.

2. CASO GERADOR:

Mariana estava animadíssima. Nunca havia viajado para fora do Brasil, mas esse ano seu pai havia pago uma viagem para Nova York em razão de sua aprovação no vestibular.

Ao chegar ao aeroporto, fez o check in e se encaminhou para a área de embarque. Às 13:00hs já estava dentro do avião, conforme estipulado em sua passagem. Todavia, para sua surpresa, o vôo que estava marcado para as 13:15hs somente ocorreu às 10:00hs do dia seguinte.

A companhia aérea, então, informou que em virtude da sucção de um pás-saro pela turbina, fi cou impedida de decolar por causa de risco de acidentes. Procurado por Mariana, para ajuizar a respectiva ação de indenização, como você fundamentaria o pedido?

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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AULA 21. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO DE TERCEIRO

LEITURA OBRIGATÓRIA:

TEPEDINO, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza, Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; p. 827/850.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

Dias, José de Aguiar, Da responsabilidade civil, 11a revista e atualizada de acordo com o Código Civil de 2002, e aumentada por Rui Berford Dias, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 578/668-741/766.

1. ROTEIRO DE AULA

Como vimos, para se estabelecer responsabilidade civil, é preciso estabe-lecer que a conduta do agente foi causa do resultado danoso. Com efeito, o dano só pode gerar a obrigação de indenizar quando for possível estabelecer com certeza absoluta quem foi o agente causador do dano. Nas palavras de Agostinho Alvim:

O dano só pode gerar responsabilidade quando seja possível estabelecer um nexo causal entre ele e o seu autor, ou, como diz SAVATIER, um dano só produz responsabilidade, quando ele tem por causa uma falta cometida ou um risco legalmente sancionado.84

O elemento constitutivo da responsabilidade civil, portanto, que permite alcançarmos essa certeza absoluta é o nexo causal. Ele é o elemento referencial entre a conduta e o resultado85; o liame que une a conduta do agente ao dano. Nesse sentido, ninguém pode responder por algo que não fez.

No entanto, excepcionalmente, existem algumas situações em que o indi-víduo responde pelo fato de terceiro. Em outras palavras, é possível a impu-tação da responsabilidade sem que aquele que foi obrigado a indenizar tenha praticado a conduta causadora do dano.

Essas situações são: (i) responsabilidade por fato de outrem; (ii) responsa-bilidade por fato dos animais; e (iii) responsabilidade por fato da coisa.

84 Alvim, Agostinho. Da inexecução das

obrigações e suas conseqüências, 4a ed.

atual. são Paulo: saraiva, 1972, p. 340.

85 Cavalieri Filho, Sergio. Programa de

responsabilidade civil. são Paulo:atlas,

2007, p. 46.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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Responsabilidade por fato de outrem

A lei institui casos em que a pessoa responde sem ter causado dano. O art. 932 do Código Civil estabelece situações em que o indivíduo responde pelos atos danosos de outra pessoa.

Esse tipo de responsabilidade, entretanto, exige a existência de um vínculo jurídico prévio entre o responsável e o autor do ato ilícito resultando, daí, um dever de guarda, vigilância ou custódia86. Nas palavras de José Aguiar Dias, citando Sourdat, “a certas pessoas incumbe o dever de velar sobre o procedi-mento de outras, cuja inexperiência ou malícia possa causar dano a terceiros. É lícito, pois, afi rmar, sob esse aspecto, que a responsabilidade por fato de outrem não representa derrogação ao princípio da personalidade da culpa, porque o responsável é legalmente considerado em culpa, pelo menos em razão da imprudência ou negligência expressa na falta de vigilância sobre o agente do dano.”87

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:I os pais, pelos fi lhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua

companhia;II o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas

mesmas condições;III o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepos-

tos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;IV os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se

albergue por dinheiro, mesmo para fi ns de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;

V os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.

Responsabilidade dos pais pelos fi lhos menores: os pais respondem pelos atos praticados por fi lhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia. A interpretação do dispositivo pela doutrina é no sentido dos pais responderem sempre que os fi lhos estiverem sob sua autoridade parental, independente da guarda. Esclareça-se que o termo companhia não implica na presença física, mas deve ser entendido no sentido de infl uência sobre a criança.

Responsabilidade dos tutores e curadores: a responsabilidade dos tutores e curadores é, em substância, equivalente à responsabilidade dos pais pelos fi lhos. No entanto, em razão da tutela e curatela serem um múnus publico impostas por lei, a jurisprudência encaminhou-se no sentido de examinar a extensão da responsabilidade com menos rigor.

Registre-se que o pródigo não está incluído no inciso II do art. 932 do CC.Responsabilidade do empregador pelos atos do empregado: apesar da nor-

ma estabelecer a responsabilidade do empregador, a norma do art. 932, III,

86 Cavalieri Filho, Sergio, Programa de

Responsabilidade Civil, rio de Janeiro:

malheiros editores, 2003, p. 186.

87 Dias, José de Aguiar, Da responsabili-

dade civil, rio de Janeiro: forense, 2006.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 156

é subsidiária. Com efeito, em razão da positivação de uma cláusula geral de responsabilidade objetiva (parágrafo único do art. 927 do CC), da adoção da teoria do risco no art. 931 e, também, da adoção do sistema objetivo pelo CDC, a norma só será aplicável em casos especiais não enquadráveis nas de-mais, como por exemplo, empregados domésticos, motorista particular, etc.

Entende-se por empregado ou preposto o dependente, que receber or-dens, sob o poder de direção de outrem, que sobre ele exerce vigilância, a tí-tulo mais ou menos permanente.88

Exige-se, ainda, que os atos culposos dos prepostos sejam praticados no exercício do trabalho que lhes competir ou em razão dele.

Responsabilidade dos donos de hotéis e de estabelecimento de ensino: de origem romana, o dispositivo, hodiernamente, perdeu seu sentido. Silvio Rodrigues expõe com propriedade ao afi rmar que é “difícil imaginar a em-presa Hilton, por exemplo, ser responsabilizada pelo dano causado a terceiro, atropelado por seu hóspede, ou por ele ferido em uma briga ocorrida na vizinhança”. Aliás, ressalte-se que à responsabilidade dos hotéis aplicam-se as normas do CDC.

Quanto à responsabilidade dos estabelecimentos de ensino, entretanto, a norma ainda tem utilidade. Com efeito, tendo os pais transferido para certa instituição de ensino a guarda transitória de seus fi lhos, esta passa a ser res-ponsável pelos prejuízos eventualmente causados pelos educandos.

Responsabilidade dos que participaram no produto de crime: o dispositi-vo não se refere aos co-autores, porque estes estão incluídos no art 942 e res-pondem solidariamente. O artigo diz respeito as pessoas que inocentemente acabam auferindo proveito da prática de um determinado crime.

Por fi m, é importante notar a evolução do Código Civil. Se na vigência do Código de 1916 a responsabilidade por fato de outrem era baseada no siste-ma de culpa presumida, o Código vigente adotou expressamente o sistema objetivo no art. 933, determinando que as pessoas responsáveis no art. 932 respondem objetivamente, independetemente de culpa.

Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ain-da que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.

Responsabilidade pelo fato da coisa

Apesar de não prevista uma cláusula geral de responsabilidade pelo fato da coisa em nosso Código, tanto doutrina quanto jurisprudência a admitem. Registre-se a impropriedade da nomenclatura apontada por alguns autores. A razão de ser é que o dano não é causado pela coisa, mas pela sua má utilzação, uma vez que aquela não é capaz de fatos.

88 Dias, José de Aguiar, Da responsabi-

lidade civil, 11a revista e atualizada de

acordo com o Código Civil de 2002, e

aumentada por rui berford dias, rio de

Janeiro: renovar, 2006, p.759.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 157

Em suma, a responsabilidade pelo fato da coisa, fundada na teoria da guarda, estabelece que quem detém o comando (guarda), isto é, quem tem o poder de direção sobre a coisa, deve responsabilizar-se também pelos danos que o seu uso venha a provocar, pois tais danos derivam, em última análise, da falta de devida vigilância sobre a coisa.63 Para estabelecer a responsabi-lidade por fato da coisa, então, é imprescindível determinar quem tinha o poder de direção sobre ela no momento em que foi causado o dano.

O Código Civil estabelece duas situações expressas de responsabilidade pelo fato da coisa. A primeira, prevista no art. 937, determina que o dono do edifício ou construção responde pelos danos oriundos de sua ruína.

Art. 937. O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta.

Alguns autores alegam que a responsabilidade do proprietário é objetiva, entretanto, o texto da lei faz alusão expressa à falta de reparos. No entanto, conforme conclui José de Aguiar Dias, não se exige a prova da conduta cul-posa porque a negligência na conservação do imóvel é constatação que deriva ipso facto de sua própria ruína.

A segunda situação, prevista no art. 938, estabelece que aquele que habitar prédio responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem.

Art. 938. Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido.

A responsabilidade pelo eff usum et deiectum é de caráter objetivo de acordo com o Código Civil. Dessa forma, o habitante responde independentemente de culpa pelo dano causado por queda ou arremesso de coisa em local indevido.

Questão complexa acerca do dispositivo legal diz respeito a objeto lançado de condomínio edilício quando não for possível identifi car o apartamento de onde a coisa caiu. Para Caio Mário Pereira da Silva é imprescindível deter-minar qual a unidade autônoma. A crítica a essa posição é que em inúmeros casos (ou quase todos) será impossível para a vítima produzir essa prova.

Por outro lado, para José de Aguiar Dias, a solução é a responsabilidade solidária de todos os moradores. Admite, porém, a exclusão dos moradores da ala oposta àquela em que o fato ocorreu. Essa é a posição que a jurispru-dência vem adotando, fundada na idéia de causalidade alternativa.

Responsabilidade por fato de animais

A responsabilidade por fato de animais vem regulada no art. 936 do Códi-go Civil, que estabelece que o dono ou detentor do animal ressarcirá o dano por este causado.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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Art. 936. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este cau-sado, se não provar culpa da vítima ou força maior.

Com esse dispositivo, mostra-se que essa responsabilidade se fi lia à que é inspirada na obrigação de guarda89, ou seja, a responsabilidade surge em ra-zão do risco assumido pela coisa que o indivíduo tem a seu serviço ou para recreação.90 Em outras palavras, aquele que detém o poder de comando sobre certo animal tem, também, o dever de evitar que ele cause danos a terceiros.

Interessante notar que o Código adotou a responsabilidade objetiva pelo fato de animais. Atualmente, só é possível a exclusão da responsabilidade em razão da culpa exclusiva da vítima ou força maior, não sendo possível alegar isenção de culpa.

2. CASO GERADOR:

Robson, motorista particular de Marcelo, iria passar o fi m de semana em Teresópolis. Marcelo, então, sabendo do fi m de semana de folga de seu em-pregado, permitiu que ele fosse com seu veículo. Chegando em Teresópolis, Robson abalroa, com o automóvel de propriedade de Marcelo, o veículo de Nadja, moradora local.

Proposta ação indenizatória em face de Marcelo, este o procura para dar um parecer sobre o tema.

89 Dias, José de Aguiar, Da responsabi-

lidade civil, 11a revista e atualizada de

acordo com o Código Civil de 2002, e

aumentada por rui berford dias, rio de

Janeiro: renovar, 2006, p. 661.

90 Idem, p. 580.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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AULA 10. ABUSO DO DIREITO

LEITURA OBRIGATÓRIA:

CASTRO NEVES, José Roberto. Uma Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2005; pp. 113/129.

LEITURAS COMPLEMENTARES:

TEPEDINO, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 241/266. Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 553/583.

1. ROTEIRO DE AULA

O abuso do direito é uma fi gura moderna, construída a partir de decisões judiciais francesas proferidas a partir da metade do século XIX, mas apenas que ganharam corpo nas primeiras décadas do século passado. O abuso está inserido no movimento de queda do voluntarismo, ou seja, do predomínio da vontade do titular de um direito como motor absoluto de seu exercício e, por isso, tem servido para evidenciar a funcionalização de uma série de direi-tos, como a propriedade e os contratos.

A disputa doutrinária sobre a conceituação do abuso do direito é vasta, mas pode-se reduzir os seus termos ao debate atual sobre o abuso como exer-cício do direito fora da sua função, ou ainda como exercício do direito de forma a contradizer o valor que o mesmo busca tutelar. Dessa forma, o abuso do direito representaria uma infração a limites que não estão colocados na existência de direitos de terceiros, mas sim em elementos típicos do próprio direito, como a sua função ou o seu valor.

No campo da responsabilidade civil o abuso do direito ganha destaque pois essa fi gura evidenciará que, em numerosas hipóteses, seria incorreto afi rmar-se estar na existência de um ato ilícito, embora a ocorrência de dano possa ser constatada.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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origens e teorias do abuso do direito

Na coletânea de decisões proferidas pelos tribunais franceses a partir de meados do século XIX até o início do século XX não se encontra a menção a uma “teoria do abuso do direito”. Essa denominação foi cunhada por Laurent que, ao se debruçar sobre as referidas decisões enfocando os limites ao exer-cício do direito subjetivo, nelas identifi cou um padrão que poderia servir de base para a criação desse novo instituto.

Uma das decisões mais notórias nesse período histórico é aquela proferida em 1853, na qual um tribunal francês obrigava o proprietário de um terreno a destruir uma chaminé que o mesmo havia edifi cado anteriormente. Segun-do constou do processo, a construção da chaminé havia sido realizada apenas para fazer sombra sobre um terreno adjacente.

Em outra oportunidade, decidiu-se que também agia com abuso de direito o proprietário de um terreno que bombeava água para um rio com o exclusivo intuito de diminuir o reservatório de água de um prédio vizinho.

Vale destacar ainda a importância para a construção inicial da teoria do abuso do direito do caso Clement Bayard, decidido pela Corte de Amiens em 1912. A referida decisão analisou a conduta do proprietário de um terreno vizinho a um campo de pouso de dirigíveis que construiu, sem maiores justi-fi cativas, uma estrutura de torres com pontiagudas extremidades de ferro, o que colocava em risco a circulação dos dirigíveis. A Corte de Cassação reco-nheceu que o titular do terreno estaria agindo de forma abusiva ao destinar tal uso à sua propriedade e responsabilizou o réu por sua conduta.91

Em todos os casos mencionados da jurisprudência francesa pode-se per-ceber a existência de dois elementos típicos da teoria dos atos emulativos, isto é, atos que apenas visam prejudicar terceiros sem vantagem para o titu-lar do direito.

De toda forma, a jurisprudência francesa original deve ser louvada por ter afi rmado a existência de limites no exercício do direito subjetivo e, o que talvez seja mais sintomático, em casos envolvendo o direito de propriedade, direito subjetivo modelo das codifi cações oitocentistas.

Todavia, grande parte desses casos apreciados no início do século passado tratava de limitações ao exercício de um direito subjetivo para que ele não prejudicasse a atuação de outro direito subjetivo. Isto é, o fator que motivava a imposição de limites não era a percepção de que aquele exercício do direito contrariava a sua função ou o valor que o ordenamento buscava preservar através de sua concessão; muito ao reverso, as decisões acima comentadas li-mitavam um direito para preservar o exercício de outro, atendendo a deman-das de caráter eminentemente particulares. Não existia qualquer referência ainda à função social de um determinado direito.

91 Conforme sintetiza renato duarte

franco de moraes: “a base para a deci-

são então proferida foi a constatação da

intenção maliciosa decorrente da abso-

luta falta de utilidade da construção

realizada. em outras palavras, a corte

francesa concluiu que haveria dolo por

parte do responsável pelas lanças em

razão de se constatar que o único uso

que poderia advir dessas construções

seria o prejuízo ao proprietário do han-

gar de dirigíveis.” (in “a responsabilida-

de pelo abuso de direito — o exercício

abusivo de posições jurídicas, a boa-fé

objetiva e o código civil de 2002”, in

lucas abreu barroso (org) Introdução

Crítica ao Código Civil. rio de Janeiro:

forense, 206; p. 80).

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 161

De toda forma, a jurisprudência francesa possui méritos por erigir um limite ao direito subjetivo não expresso na lei. Contudo, a formulação de uma teoria mais ampla somente haveria de se realizar em momento seguinte.

O Código Civil francês não dispunha sobre o abuso do direito, e nem mesmo sobre a vedação dos atos emulativos, estando embrenhado no con-ceito absolutista do direito subjetivo e do senhorio de seu titular para decidir como melhor dele se valer. As limitações aos direitos subjetivos deveriam constar expressamente da lei.

Baseados nessa concepção restrita das limitações impostas ao exercício do direito subjetivo, ou mesmo na inexistência da própria categoria dos direitos subjetivos, sob os quais se abusaria, diversos autores combateram a auto-nomia científi ca da fi gura do abuso do direito. Dentre as várias vertentes dessas teorias negativistas, pode-se mencionar aqueles que negavam o abuso do direito como resultado lógico da própria negação do conceito de direito subjetivo, como Duguit e Kelsen, ou mesmo aqueles que negavam a exis-tência do abuso por ser o instituto uma verdadeira incongruência, conforme defendeu Planiol.

Todavia, o principal expoente das teorias negativistas foi Marcel Planiol, tendose tornando notório o seu entendimento de que a expressão “abuso do direito” seria uma logomaquia, constante na contradição existente entre os termos “abuso” e “direito”. Para o autor, os conceitos de abuso e de direito seriam excludentes, não podendo haver abuso de direito. Nesse sentido, na ocorrência de “abuso do direito” estar-se-ia na caracterizando a ausência de um direito.

Josserand, ao criticar a doutrina de Planiol, atribuiu à conclusão do autor a ocorrência de um equívoco derivado da pluralidade de acepções existentes para a palavra direito. Segundo o autor, se por um lado direito pode repre-sentar apenas um poder, um direito subjetivo, ele também pode fazer referên-cia ao “conjunto de regras sociais”, ou, melhor dizendo, ao direito objetivo. Sendo assim, a teoria negativista poderia ser refutada através da percepção de que um determinado ato pode ser conforme o direito subjetivo, mas ir contrariamente ao direito objetivo.

Embora a aceitação da teoria começasse a crescer entre os autores, alguns problemas terminológicos precisavam ser superados. Nesse particular é im-portante perceber que a teoria se denominou abuso “do” direito e não “de” direito. Isso ocorre porque o ato abusivo em si não está se valendo do direito objetivo, do ordenamento com um todo, mas apenas do direito subjetivo, “do” direito em questão.

Outras designações foram propostas, como “excesso de direito”, “desvio de direito” ou “confl ito de direitos”. Mais modernamente, Menezes Cordeiro sugeriu que a teoria fosse denominada “exercício inadmissível de posições jurídicas”, o que, inclusive, atende à necessidade de se perceber que o direito

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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subjetivo não é o único objeto de abuso por parte de seu titular, conforme será tratado mais à frente.

Uma vez consolidada a existência da doutrina do abuso do direito e a sua utilização gradativa pela jurisprudência, os autores buscaram uma fundamentação para essa teoria ora em aspectos próprios do titular do di-reito do subjetivo. Esses aspectos seriam encontrados em averiguações que extrapolavam os limites do Direito e iam buscar a sua raiz em defi nições de natureza moral.

Essa corrente subjetivista do abuso do direito termina por se assemelhar aos trabalhos desenvolvidos pelos autores que desenvolveram a teoria dos atos emulativos, uma vez que, se vai se buscar uma razão subjetiva para proibir o ato abusivo, essa razão terminará por ser o intuito de prejudicar terceiro, ferindo o mandamento segundo o qual a ninguém é lícito lesar direito de outrem no exercício do próprio direito.

A medição dos critérios de subjetividade terminou por demandar um avanço na teoria que conferisse alguma forma de avaliação da conduta pre-tensamente abusiva desempenhada pelo titular do direito subjetivo. A regra moral proposta por Ripert cumpriu inicialmente esse papel de operar como um limite ao exercício do direito subjetivo.

Ripert trabalha com a noção de ato que possui uma “aparência de direito”, mas que seria dever de seu titular assim não proceder. O intuito de prejudicar é adicionado à a aparência de direito e esses dois elementos terminam por caracterizar a teoria subjetivista do abuso do direito.

O autor menciona que “para apreciar o abuso é preciso que o juiz possa julgar o valor dos sentimentos que fazem agir uma pessoa.”92 Nessa direção, o enfoque subjetivo na motivação de agir do titular do direito subjetivo, ao invés de criar um mecanismo para avaliar o abuso, criou verdadeiros obstácu-los para a afi rmação da teoria em tais bases.

A teoria que suplantou os questionamentos colocados por Ripert, cha-mada de teoria fi nalista, possui como grande diferencial a construção do abuso do direito não como um elemento externo ao conceito de direito subjetivo, como algo presente na ordem moral e que somente é acionado quando o titular atua de forma reprovável, mas sim como um limite inter-no ao próprio direito.

A teoria fi nalista encontrou o seu fundamento no embate doutrinário re-alizado entre Jhering e autores da escola psicológica, dentre os quais pode-se citar Savigny. Para Jhering, direito subjetivo seria o “interesse juridicamente protegido”, contrariando assim a vertente que sustentava ser o direito subje-tivo caracterizado, fundamentalmente, pela vontade que o anima.

Essa contraposição entre o predomínio da vontade e o reconhecimento de que o direito subjetivo apenas é uma reunião de poderes jurídicos conferidos ao seu titular pelo ordenamento, gerou a percepção sobre a existência de uma 92 George ripert. A Regra Moral nas

Obrigações. Campinas: bookseller,

2000; p. 176.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 163

fi nalidade pertinente a cada direito. Finalidade essa que terminaria por legi-timar a própria existência do direito.

A teoria fi nalista traz para si ainda a percepção de que os direitos subje-tivos não devem ser tratados de forma absoluta, com o império da vontade determinando os seus contornos, mas sim de modo relativo. A vontade cede espaço à verifi cação de que o direito nasce no seio de uma dada sociedade, cujas crenças, valores e percepções estão refl etidas no ordenamento jurídico, o qual, por seu turno, confere às pessoas determinadas faculdades. Tudo de modo a tutelar certos interesses.

Segundo Josserand, um dos principais autores da teoria fi nalista, todo di-reito possui um espírito, reconhecido em sua fi nalidade social. Se o exercício de um direito não obedece ao seu espírito ou fi nalidade, não haverá exercício regular de um direito, mas apenas o seu abuso. Agir em contradição com o interesse tutelado pelo ordenamento na forma de direito subjetivo seria, por-tanto, exercê-lo de forma abusiva.

A teoria de Josserand, contudo, ainda não havia se desprendido de todo de refl exões de natureza subjetiva, uma vez que, para averiguar se o exercício do direito havia se desvirtuado de sua fi nalidade social, ou interesse, o autor lembrava da importância de procurar o espírito do direito na vontade que animou aquele ato. Diz o autor que o afastamento da fi nalidade social ocorre quando as razões que levaram o titular do direito a agir não se adequam aos seus fi ns. Sendo assim, o emprego dos motivos do ato ainda representa um papel relevante na teoria fi nalista conforme proposta por Josserand.

A contribuição de Saleilles ao trabalho de Josserand procurou extirpar do conceito de abuso do direito o fator subjetivo. Segundo o autor, o abuso seria o desvio da destinação econômica e social do direito. Essa verbalização conceitual permanece até hoje como uma das formas mais comuns de com-preensão do instituto e pode ser encontrada em textos legais de vários países.

Nesse particular, contribuindo para a análise axiológica do exercício do di-reito subjetivo, cumpre importante papel o reconhecimento da constitucionali-zação do Direito Civil e o emprego de cláusulas gerais. O texto constitucional, cuja linguagem é naturalmente mais aberta do que a maior parte dos disposi-tivos infra-constitucionais, e a utilização de cláusulas gerais em diplomas legais como o Código Civil apresentam limites ao exercício dos direitos subjetivos que, por vezes, não se percebem de imediato. Nesse sentido, o princípio da solidariedade social, presente na Constituição, e a cláusula geral sobre boa-fé objetiva inserida no Código Civil, atuam como limites internos ao desenvol-vimento de um uso abusivo do direito. Conforme sintetiza Vladimir Cardoso:

“Numa perspectiva civil-constitucional, limitam o exercício do direito to-dos os interesses merecedores de tutela em jogo numa determinada situação jurídica, na qual o direito se insere, conforme a estipulação valorativa do le-gislador, máxime do constituinte.”93

93 Vladimir Cardoso. “o abuso do direito

no ordenamento Jurídico brasileiro”, in

maria Celina bodin de moraes (org).

Princípios do Direito Civil Contemporâ-

neo. rio de Janeiro: renovar, 2006; p. 87.

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O interesse meramente egoístico do titular do direito subjetivo, nessa compreensão, não pode ser exercido em detrimento de um interesse de natu-reza social. Nesse cenário, vale dizer, ganham relevo os exercícios de direitos que busquem a afi rmação de valores extra-patrimoniais quando em colisão com o exercício de direitos que tenham por fundamento a afi rmação de va-lores patrimoniais.

Essa valoração não raramente é complexa e demanda do aplicador do di-reito uma sensibilidade que inova na tradição dogmática de compreensão do instituto do direito subjetivo. De qualquer forma, é importante perceber que o direito subjetivo, no Direito Civil contemporâneo, não pode ser to-mado como o mecanismo de afi rmação do império da vontade individual em detrimento de interesses juridicamente protegidos de uma coletividade, ou mesmo de outro indivíduo, quando diante de uma eventual violação de direito extra-patrimonial.

Adicionalmente à percepção de que a adoção de cláusulas gerais e o re-conhecimento do Direito Civil Constitucional criam um campo fértil para o crescimento da teoria do abuso do direito, cumpre mencionar que a pers-pectiva valorativa do exercício dos direitos encontra-se ainda alinhado com a mudança do pensamento jurídico sobre a noção fundamental sobre a com-pletude do ordenamento jurídico.

Ao se basear a limitação ao exercício dos direitos não apenas nos disposi-tivos previstos no ordenamento, mas na análise dos valores que o informam, a teoria do abuso do direito se conecta com a compreensão de que o dogma da completude, símbolo do positivismo jurídico, deve ceder espaço na con-temporaneidade à percepção de que o ordenamento jurídico opera través de princípios fundamentais constantes na Constituição Federal.

A análise das relações jurídicas de direito privado à luz da Constituição leva ao entendimento de que é o texto constitucional que harmoniza e con-fere juridicidade aos direitos concedidos aos particulares. Esse fenômeno, por outro lado, não implica em completude formal do ordenamento, mas sim em coerência com respeito aos valores trazidos pela Constituição e plasmados na legislação infra-constitucional.

Nesse cenário, o magistrado é chamado ao papel ativo de reconhecedor dos limites do direito não apenas através do conhecimento extensivo dos dispositivos legais, mas principalmente através da compreensão valorativa das normas e de sua sempre mutável aplicação.

È justamente nesse enquadramento que a teoria do abuso do direito se desenvolve, privilegiando a análise dos valores, a importância do texto cons-titucional, e o papel destacado do juiz na análise do caso concreto.

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o abuso do direito no brasil

O instituto do abuso do direito foi inicialmente desenvolvido no Brasil a através de estudos e aplicações práticas no campo do direito processual. Pa-radoxalmente, contudo, o Código de Processo Civil não possuía dispositivo que legitimasse a aplicação da teoria para os casos de abuso do direito de ação ou abuso na defesa realizada em processo. Dessa forma, os processualistas se valeram da disposição do artigo 160, do Código Civil de 1916, para sustentar a sua aplicação.

Essa aplicação do conceito de abuso na seara processual deu-se, inicial-mente, em casos em que o autor de uma ação a promovia com o deliberado intuito de prejudicar terceiro, ou, mais comumente, nos casos em que o réu, quando da apresentação de sua defesa, excedia os limites de argumentação plausíveis, negando evidências e contestando situações já comprovadas cabal-mente nos autos.

O Código Civil de 1916, por sua vez, também não possuía um dispositivo expresso que consagrasse a vedação ao uso abusivo do direito. A contrario sensu, interpretava-se o artigo 160 quando essa dispunha que “não consti-tuem atos ilícitos: Ios praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido.” Se não é ilícito o exercício regular, o seu exercício irregular, conseqüentemente, ilícito seria.

Ao comentar o artigo 160 do Código Civil de 1916, Clóvis Beviláqua afi rma que o mesmo trouxe para o direito civil brasileiro a previsão de três fi guras: a legítima defesa e o direito de necessidade, “que, embora possam parecer violações de direitos, não são atos ilícitos”, e o abuso do direito, o qual “tendo aparência legítima, importa num desvio da ordem jurídica.”94

É interessante notar que, como o Código não faz qualquer menção sobre motivações ou outros aspectos subjetivos para a qualifi cação do ato, a doutri-na brasileira terminou por se alinhar à concepção fi nalista do abuso do direi-to.95 Nesse particular, ganham relevo na doutrina considerações sobre a fun-ção dos direitos e o seu desvio quando do exercício irregular ou abusivo.96

De outro lado, deve ser destacado que, se o Código Civil de 1916 não pre-viu expressamente o abuso do direito, a sua interpretação a contrario sensu do art. 160, I, não escapa do fato de que, aplicando-se a regra geral de responsa-bilidade subjetiva presente no art. 159 daquele Código, seria necessária a pro-va da culpa do ofensor para fi ns de responsabilização por abuso do direito.97

Pedro Baptista Martins, ao tratar da aceitação da teoria do abuso do direito na doutrina brasileira, ressalta que a superação da concepção absoluta dos direitos subjetivos se corporifi ca na idéia de abuso, sendo a teoria, dadas a evolução dos tra-balhos doutrinários, indestronável. Ao se fi liar à teoria fi nalista do abuso do direi-to, o autor afi rma que a busca pela fi nalidade do direito e o seu exercício conforme termina por garantir o equilíbrio das atividades desempenhadas individualmente.

94 Clóvis beviláqua. Código Civil dos

Estados Unidos do Brasil, v. ii. rio de

Janeiro: editora rio, 6a ed., 1975; p. 426.

95 Clóvis beviláqua menciona, ao co-

mentar o artigo 160, i, do Código Civil

de 1916, que o mesmo “é a doutrina de

saleilles” (in Código Civil dos Estados

Unidos do Brasil, v. ii. rio de Janeiro:

editora rio, 6a ed., 1975; p. 433).

96 segundo Clóvis beviláqua: “se a fun-

ção do direito é manter em equilíbrio

os elementos sociais colidentes, des-

virtuar-se-á, mentirá ao seu destino,

quando se exagerar, no seu exercício,

a ponto de se tornar um princípio de

desarmonia.” (in Código Civil dos Esta-

dos Unidos do Brasil, v. ii. rio de Janeiro:

editora rio, 6a ed., 1975; p. 432).

97 renato duarte franco de moraes. “a

responsabilidade pelo abuso de direito

— o exercício abusivo de posições jurí-

dicas, a boa-fé objetiva e o código civil

de 2002”, in lucas abreu barroso (org)

Introdução Crítica ao Código Civil. rio de

Janeiro: forense, 206; p. 90.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

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O abuso é o exercício anti-social do direito. Assim defi niu o abuso do di-reito San Tiago Dantas ao confi rmar a sua fi liação à teoria de Saleilles, segun-da a qual o exercício abusivo é aquele que não observa a fi nalidade econômica e social do mesmo direito.

A superação da teoria absolutista dos direitos subjetivos fi ca clara no dizer de San Tiago Dantas, que ressalta a importância de se atender à fi nalidade da norma prevista no direito objetivo, fonte do direito subjetivo concedido ao seu titular. Segundo o autor, no caso do abuso do direito tem-se uma ativida-de que “está sendo exercida com um fi m que não é aquele que a norma jurí-dica tinha em vista quando protegeu aquela atividade.”798

O Código Civil de 2002 manteve em seus dispositivos uma norma sobre o exercício regular do direito para fi ns de exclusão da ilicitude do ato, tal qual havia no Código Civil de 1916. O artigo 188, I, dispõe então que “não cons-tituem atos ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido.”

Todavia, a principal inovação do Código Civil de 2002 no que diz res-peito à tutela do abuso do direito é o tratamento da matéria em dispositivo autônomo (art. 187), sobre o qual versa o tópico seguinte do presente estudo.

Adicionalmente, e mais ligada à teoria fi nalista do abuso do direito, o Có-digo Civil inovou ao dispor expressamente sobre o tema em seu artigo 187. O referido artigo dispõe que comete também ato ilícito “o titular de um di-reito que, ao exercêlo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fi m econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”99

José Carlos Moreira Alves, autor do anteprojeto do Código Civil de 2002 no que se refere à sua Parte Geral, onde está inserido o dispositivo menciona-do, comenta que a inserção do mesmo se deu com o ânimo de realizar mu-danças fundamentais, que refl etissem a concepção fi losófi ca da nova codifi ca-ção, sem que fosse preciso acrescentar diversas normas novas.100 Nesse sentido, o autor revela-se inspirado pela utilização das cláusulas gerais dada a cabo pelo Código Civil português de 1966, podendo-se notar grande semelhança na redação do atual Código Civil com aquela apresentada pelo Código por-tuguês para o tratamento do abuso do direito.101

De toda forma, o Código Civil brasileiro, ao positivar o abuso do direito no artigo 187 parece não reconhecer a autonomia do instituto, vinculando o ato abusivo ao conceito de ato ilícito, previsto no dispositivo legal preceden-te. Essa opção não apenas contraria a doutrina mais recente sobre o instituto, como ainda vincularia a aplicação da teoria do abuso do direito à prova do elemento culpa na atuação do agente.

A prova da culpa é uma questão praticamente inerente ao conceito de ilicitude. Essa comprovação de culpa poderia se tornar um obstáculo para a verifi cação de práticas abusivas. A caracterização de um agir como abusivo deveria ser independente de tergiversações sobre a culpa do agente, sendo

98

99 É curioso notar que, mesmo não

dispondo de um artigo específi co e

expresso para o abuso do direito, ao co-

mentar o artigo 160, i, do Código Civil

de 1916, Clóvis beviláqua terminou por

defi nir o abuso do direito de forma bas-

tante próxima àquela adotada pelo Có-

digo Civil de 2002, pelo menos no que

tange à natureza dos limites impostos

ao exercício dos direitos. segundo o

autor: “o exercício anormal do direito é

abusivo. a consciência pública reprova o

exercício do direito do indivíduo, quan-

do contrário ao destino econômico e

social do direito, em geral.” (in Código

Civil dos Estados Unidos do Brasil, v. ii.

rio de Janeiro: editora rio, 6a ed., 1975;

pp. 433/434).

100 José Carlos moreira alves. A Parte

Geral do Projeto de Código Civil Brasi-

leiro. são Paulo: saraiva, 2a ed., 2003;

pp. 28/29.

101 assim dispõe o art. 334 do Código

Civil português, de 1966: “É ilegítimo

o exercício de um direito quando o ti-

tular exceda manifestamente os limites

impostos pela boa-fé, pelos bons cos-

tumes, ou pelo fi m social ou econômico

desse direito.”

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 167

apreciada de forma objetiva, isto é, dependendo apenas da verifi cação de desconformidade entre o modo de atuação do agente na situação jurídica e os valores perseguidos pelo ordenamento jurídico.

Soma-se a essa crítica o fato de que, ao vincular as hipóteses de abuso aos atos ilícitos, o Código prescinde da aplicação possível da teoria à uma diver-sidade de hipóteses em que se tem uma atuação lícita, mas que na valoração funcional de seu exercício poder-se-ia perceber a abusividade.

Existe em sede doutrinária uma nítida separação entre os atos considera-dos como ilícitos e aqueles que se enquadram na defi nição de atos abusivos. Conforme explicita Guilherme Calmon, a diferença entre o ato ilícito e o abusivo reside na constatação de que enquanto “no ato ilícito o agente viola frontal e diretamente o comando legal que previa a conduta que deveria ser tomada, no ato abusivo há o exercício de direito aparentemente pelo titular com violação dos valores que justifi cam o reconhecimento e proteção desse direito pelo ordenamento jurídico em vigor.”102

Dessa forma pode-se perceber que no ato ilícito a violação do comando legal implica na superação dos limites lógico-formais do direito, ao passo que no ato abusivo têm-se a infração não à estrutura formal do direito, mas sim aos valores que o ordenamento jurídico busca alcançar com aquele determi-nado direito, poder ou liberdade concedida ao agente. A violação aqui atinge portanto a função destinada àquele instituto, sendo essa a razão pela qual pode-se falar em “inobservância dos limites axiológicos-materiais.”103

Vale ressaltar, contudo, que a doutrina brasileira não é unânime no senti-do de separar os conceitos de ilicitude e abusividade, embora os autores mais modernos tenham enveredado por esse posicionamento, mesmo, a princípio, contrariando o expresso dispositivo do Código.

Para Pontes de Miranda, o “abuso de direito é ato ilícito, porque exercício irregular.”104 Essa verbalização, que liga os dois conceitos por causa do exercí-cio, termina por igualar ilicitude e abusividade também por conta dos efeitos derivados desse exercício. Nesse sentido, o efeito tanto do ato ilícito como do ato abusivo é a responsabilidade civil do agente, existindo assim uma identi-dade no sancionamento previsto para o sujeito.

Contudo, importa perceber diferenças no enquadramento da responsa-bilidade civil derivada de atos ilícitos e de atos abusivos. Quando se trata de atos ilícitos, o ordenamento jurídico pode prever hipóteses expressas em que da sua ocorrência não decorre o dever de indenizar. Existe dano sem dever de indenizar nos casos, por exemplo, de atos praticados em legítima defesa ou através do exercício regular de um direito. O dano somente será reparável quando decorrer de um ato ilícito ou injusto e, nessas hipóteses, o ordena-mento jurídico expressamente retira o componente de ilicitude, impedindo a reparação.

102 Guilherme Calmon nogueira da

Gama. Direito Civil — Parte Geral. são

Paulo; atlas, 2006; p. 197.

103 Heloisa Carpena. “abuso do direito

no Código Civil de 2002”, in Gustavo

Tepedino (org) Parte Geral do novo

Código Civil. rio de Janeiro: renovar,

2002; p. 371.

104 f. Pontes de miranda. Tratado de Di-

reito Privado, vol. ii. são Paulo: revista

dos Tribunais, 1977; p. 311.

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Dessa forma, a ilicitude depende de uma violação de limites formais im-postos pelo ordenamento. Já no abuso do direito, não existe essa defi nição prévia de limites que poderão ser rompidos, confi gurando assim a abusivida-de. Os limites que importam na abusividade são os próprios fundamentos do direito, os quais serão violados apenas quando do exercício empreendido pelo agente do direito concedido. Conforme explicita Heloisa Carpena, “[p]or este mesmo motivo pode-se afi rmar que o abuso supõe um direito subjetivo lícito atribuído ao seu titular, que, ao exercê-lo, o torna antijurídico. Já o ilí-cito, por ser contrário à disposição legal, mostra-se previamente reprovado pelo ordenamento, não comportando controle de abusividade.”105

A verifi cação da ilicitude decorre de uma análise formal do ordenamento jurídico em busca de limitações ao determinado exercício do direito, o que torna a sua percepção mais direta e, de alguma medida, facilitada. No caso do abuso do direito não existe um limite expresso, colocado previamente pelo ordenamento, o que difi culta a sua percepção e análise, tornando mais complexas as hipóteses de abuso.

Como conclusão de todo o exposto, pode-se perceber que embora cons-tantes do conjunto de atos que podem ser remetidos ao conceito de antijuri-cidade, o ato ilícito e o ato abusivo não se confundem; muito ao contrário, eles se excluem.106

Em síntese, quando o artigo 187 defi ne o ato abusivo como ilícito, essa redação deve ser interpretada como “uma referência a uma ilicitude lato sen-su, no sentido de contrariedade ao direito como um todo, e não como uma identifi cação entre a etiologia do ato ilícito e a do ato abusivo, que são clara-mente diversas.”107

Uma outra crítica que pode ser acrescentada ao dispositivo do art. 187 é a utilização do termo “manifestamente” para qualifi car o excesso cometido pelo sujeito que abusa do direito. A difi culdade colocada por essa expressão reside na dúvida sobre a compreensão do termo como referência a exagero (quantidade) ou à notoriedade (qualidade) do abuso.

Explica-se: caso o termo manifestante diga respeito à quantidade do abu-so, a preocupação do intérprete deverá recair sobre o grau de desproporção existente entre o uso regular e o uso abusivo. Nessa hipótese, para que a ve-dação do exercício do direito seja manejado, é preciso verifi car se a conduta impugnada diverge muito ou pouco do agir esperado pelo agente que atua de forma devida. Se pouco, não haveria abuso do direito, hipótese apenas reservada para os casos em que o descompasso entre as condutas é sensível.

Por outro lado, caso termo “manifestamente” diga respeito à qualidade do ato, as atenções se voltam não necessariamente sobre a distância que separa o agir regular do abusivo, mas sim à visibilidade, à evidência da abusividade do comportamento. Nesse sentido, manifestamente signifi ca o adjetivo daquilo que pode ser facilmente distinguível. Essa facilidade de distinção e identifi ca-

105 Heloisa Carpena. “abuso do direito

no Código Civil de 2002”, in Gustavo

Tepedino (org) Parte Geral do novo

Código Civil. rio de Janeiro: renovar,

2002; p. 372.

106 Cunha de sá ilustra esse entendi-

mento com a hipótese de uma pessoa

que transita pelas ruas de uma cidade.

esse ato pode tanto ser o exercício de

sua liberdade de ação ou pode estar di-

retamente contrária ao exercício regu-

lar dessa faculdade. se o personagem

encontra-se na via pública, passeando

livremente, mas o mesmo é foragido

de uma prisão, na qual deveria estar

detido pela prática de crimes, o seu

agir é ilícito. de outro lado, se a pessoa

enfocada caminha pelas ruas de forma

a se chocar com as pessoas que cami-

nham na direção oposta, com o único

propósito de incomodar, afi rma o autor

que estar-se-ia perante um caso de

abuso da liberdade. ainda que o sujeito

goze da liberdade disponibilizada pelo

ordenamento jurídico de ir e vir, o seu

comportamento, o seu exercício, é con-

trário aos valores que lhe servem como

fundamento, tornando-se, portanto,

um ato abusivo (in Abuso do Direito.

Coimbra: almedina, 1997; p. 618).

107 Gustavo Tepedino, maria Celina

bodin de moraes e Heloisa Helena bar-

boza (orgs). Código Civil Interpretado

Conforme a Constituição da República.

rio de Janeiro: renovar, 2004; p. 342.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 169

ção do ato abusivo pode ocorrer pela própria quantidade de abuso verifi cada no caso (exagero), mas não necessariamente. A maior visibilidade de um ato pode se dar pelo acesso mais difundido ao seu conhecimento, como ocorre nos casos veiculados pela imprensa ou que, de tão costumeiros, passam a ser conhecidos mais amplamente.

Vale lembrar que, independentemente da resposta, o que se deve procurar no ato abusivo é a desconformidade com os valores que informam aquele direito. Os indicadores sobre quantidade e qualidade do abuso poderão ser úteis para investigar a conduta pretensamente abusiva, mas não devem ser tomados como os únicos compassos disponíveis para traçar a linha entre o exercício regular e o abusivo.

Outros termos inseridos pelo art. 187 podem ser criticados por conduzir a interpretações equivocadas sobre o seu espectro de aplicação. O primeiro diz respeito ao termo “exercê-lo”, o que poderia levar o intérprete a se questionar sobre a possibilidade do ato abusivo ocorrer em condutas omissivas. Ao se referir ao exercício do direito, deve-se compreender aplicáveis ao caso tanto a conduta comissiva como a conduta omissiva para a identifi cação do abuso.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao termo “direito”, também constante do artigo 187, que poderia levar à conclusão de que o abuso apenas se aplica ao exercício dos direitos, não alcançando as liberdades, faculdades e demais prerro-gativas. Conforme já visto, deve-se estender a aplicação da teoria para além dos limites do direito subjetivo e, dessa forma, sugere-se que a leitura do art. 187 seja feita da mesma forma pela qual decidiu-se redigir o presente trabalho, tomando-se o “abuso do direito” como expressão consagrada pela prática que denota o grande número de ocorrências de práticas abusivas quando se está diante de direi-tos subjetivos, mas sem jamais excluir a sua aplicação em outras situações, princi-palmente quando se tratar do exercício de liberdades, faculdades e prerrogativas.

Por outro lado, ao adicionar à fi nalidade econômico ou social o respeito ao princípio da boa-fé objetiva, o Código se aproveita de um arcabouço doutri-nário e jurisprudencial que se formou no direito brasileiro na última década sobre o tema. O conceito de boa-fé objetiva, com as diversas funções desem-penhadas pelo princípio no ordenamento jurídico pátrio, representa um solo ao mesmo tempo seguro e promissor para o surgimento de novas aplicações do abuso do direito e de institutos correlatos.

Ao vincular a disciplina do abuso do direito ao princípio da boa-fé, o ordenamento jurídico nacional legitimou um substancial alargamento nas hipóteses de aplicação da teoria do abuso do direito. Ao se afi rmar simples-mente que a boa-fé constitui um dos principais parâmetros para medir a abusividade de um ato não se oferece detalhamentos sufi cientes para que se possa concretizar uma maior, e mais efetiva, atuação da fi gura do abuso.

Contudo, ao redor da noção de boa-fé, especialmente no que diz respeito ao princípio da boa-fé objetiva, a doutrina e a jurisprudência têm feito cons-

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tar uma série de institutos periféricos que, uma vez concebidos em conjunto, propiciam um vasto cenário para atuação do princípio. É o caso do venire contra factum proprium, das inalegabilidades formais, da supressio, do tu quoque, entre outros. Esses institutos foram submetidos à prova do tempo e, em maior ou em menor grau, são reconhecidos pela jurisprudência nacional e internacional. Ao se afi rmar que a boafé direciona a interpretação e a apli-cação do abuso do direito, conforme consta do artigo 187 do Código Civil, a lei termina por inserir o abuso do direito nessa seara de institutos jurídicos que operam o princípio da boa-fé.

O abuso do direito, todavia, apresenta uma característica crucial na sua relação com os demais institutos acima referidos: por ser uma construção eminentemente jurisprudencial, surgida dos problemas de natureza prática, o abuso do direito é dotado de grande maleabilidade. A sua formação não se deu por raciocínios e teoremas abstratos, mas sim pela necessidade de se criar respostas que dessem conta de problemas reais. Por isso, afi rmar que ele se perfi la ao lado dos demais institutos derivados da boa-fé seria uma pers-pectiva reducionista de seu efetivo campo de aplicação. Muito ao contrário, o atomismo dos institutos jurídicos derivados da boa-fé aqui cede espaço para um alargamento natural das hipóteses submetidas ao crivo do abuso do direito pela jurisprudência. Não raramente os tribunais dirão que uma certa circunstância leva à aplicação do venire contra factum proprium justamente por ser reputada como abusiva a conduta desempenhada pela parte.

Em outras palavras, o abuso do direito termina por se ocupar do espaço dos demais institutos derivados inicialmente do princípio da boa-fé, fazendo com que os mesmos sejam comumente associados à análise de regularidade ou abusividade de um certo comportamento. E não há, a princípio, nada de errado com essa sobreposição de institutos, pois, conforme afi rma Menezes Cordeiro, “[o] abuso do direito, é, por defi nição, um espaço aberto, apto à expansão para novas áreas.”108

Sendo assim, para que melhor possa se compreender o alcance do abuso do direito, a seguir são comentadas as suas interfaces com institutos correlatos, todos derivados de sua aproximação com o princípio da boa-fé, conferindo-se especial destaque, nesse particular para o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e o tu quoque. Todos esses institutos compõem, em conjunto, um retrato das mais diversas facetas de aplicação da teoria do abuso do direito.

2. CASO GERADOR:

O abuso do direito vem sendo amplamente utilizado pela jurisprudência para impor indenizações ou a suspensão de uma determinada conduta dano- 108 Antonio Menezes Cordeiro. Tratado

de Direito Civil Português, v. i, t. iV.

Coimbra: almedina, 2005; p. 297.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 171

sa a terceiro. Dentre as hipóteses abaixo, identifi que aquelas que poderiam ser enquadradas como casos de abuso do direito:

a) Um banco que, sendo credor de seu correntista, pode obter o paga-mento da dívida através da apropriação de valores que são deposita-dos na conta do devedor.

b) O proprietário de um terreno no qual se encontra uma fonte de água que abastece tanto o terreno de sua propriedade como os de seus vizinhos, que desvia o curso d’água ou a desperdiça com o úni-co propósito de prejudicá-los.

c) Um veículo de imprensa que publica matérias de caráter ofensivo ou deturpado.

d) A instituição de ensino que retém os documentos comprobatórios de conclusão do segundo grau, em decorrência da existência de dí-vidas no pagamento da mensalidade escolar.

e) A empresa que inscreve o nome do devedor em sistema de proteção ao crédito enquanto a dívida está sub judice.

Resposta: Todas as hipóteses acima já foram consideradas como abuso do direito pelos tribunais brasileiros: a) STJ, Resp 250523, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. em 19.10.2000; b) TJRJ, Ap. Civ. 200000117177, rel. Des. Jor-ge Luiz Haibib, j. em 05.12.2000; c) TJRJ, Ap. Civ 20010012596, rel. Des. Binato de Castro, j. em 18.12.2001; d) TJRJ, Ap. Civ. 200000108132, rel. Des. Mauricio Oliveira, j. em 05.04.2001; e) TJRS, AP. Civ. 70002257715, rel. Des. Paulo Kretzmann, j. em 13.12.2001.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 172

DANILO DONEDABacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1995), Mes-tre (1999) e Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2004). Professor na Faculdade de Direito da FGV-Rio. Coorde-nador-Geral de Supervisão e Controle no Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça.Foi pesquisador visitan-te na Università degli Studi di Camerino e na Autorità Garante per la Protezione dei Dati Personali, ambas na Itália.

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DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADE CIVIL

FGV DIREITO RIO 173

FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

FGV DIREITO RIO

Joaquim FalcãoDIRETOR

Sérgio GuerraVICE-DIRETOR DE ENSINO, PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

Rodrigo ViannaVICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO

Thiago Bottino do AmaralCOORDENADOR DA GRADUAÇÃO

Marília AraújoCOORDENADORA EXECUTIVA DA GRADUAÇÃO

Cristina Nacif AlvesCOORDENADORA DE ENSINO

Andre Pacheco MendesCOORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA – CLÍNICAS

Paula SpielerCOORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES E DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

Thaís Maria L. Saporetti AzevedoCOORDENADORA DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Márcia BarrosoNÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA – PLACEMENT