Direitos Coletivos - Hermes Zanetti

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DIREITOS COLETIVOS LATO SENSU: A DEFINIO CONCEITUAL DOS DIREITOS DIFUSOS, DOS DIREITOS COLETIVOS STRICTO SENSU E DOS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGNEOS.Sumrio: Introduo: atualidade e importncia do tema; 1 - Direitos difusos, coletivos (stricto sensu) e individuais homogneos: o advento do Cdigo de Defesa do Consumidor brasileiro e sua conceituao; 2 - Direitos ou interesses; 3 - Critrios para caracterizao dos direitos coletivos lato sensu; Concluses.

Hermes Zaneti Junior Mestre e doutorando em Processo Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da graduao e ps-graduao na UFRGS, ULBRA e na FESMP/RS. Coordenador Executivo do curso de Especializao Processo e Constituio da UFRGS. Advogado.

Introduo A escolha do tema mostra-se oportuna, pois o momento atual do direito revela a necessidade de efetiva proteo de posies jurdicas que fogem a antiga frmula individual credor/devedor. O Anteprojeto de Cdigo Processual Civil Coletivo Modelo para Ibero Amrica , que nos cabe comentar, a prova desta preocupao e esperana de progresso nas legislaes nacionais. Destacamos do Cdigo Modelo o seu artigo 1 para o nosso comentrio, o que porm no nos limitar a anlise, vez que tambm em outros momentos este rico projeto traz tpicos de relevncia para o nosso objetivo: lanar luzes e questionamentos sobre o conceito de direitos e/ou interesses coletivos. Em verdade procuraremos abordar o tema explicitando o que se entende hoje no Brasil por direitos coletivos lato sensu, subdividindo este em direitos difusos, direitos coletivos stricto sensu e direitos individuais homogneos. Esta, alis, a subdiviso feita pelo artigo em comento, que traz nos seus incisos: I interesses ou direitos difusos; II - interesses ou direitos coletivos; III - interesses ou direitos individuais homogneos. Obrigatrio advertir que a Lei 8.078/90, o Cdigo Brasileiro de Defesa do Consumidor (CDC), em seu artigo 81, pargrafo nico, regulamenta a matria exatamente da mesma maneira que o Cdigo Modelo. Metodologia de abordagem. O trabalho ser desenvolvido na perspectiva da legislao brasileira (CDC) em comparao com o Cdigo Modelo (CM). No primeiro tpico abordaremos os conceitos, no segundo faremos uma breve crtica equvoca denominao interesses, que no nosso entender pode prestar desservio tutela coletiva; por ltimo, trataremos da caracterizao destes direitos na prtica, ou seja, como identificar se no caso concreto se tutela um direito difuso, coletivo stricto sensu ou individual homogneo. Ao final traremos as concluses principais para facilitar ao leitor o acesso ao nosso entendimento.

1.

DIREITOS DIFUSOS, COLETIVOS (STRICTU SENSU) E INDIVIDUAIS HOMOGNEOS: O ADVENTO DO CDIGO DO CONSUMIDOR BRASILEIRO E SUA CONCEITUAO

Quando a doutrina passou a enfrentar o problema das aes coletivas, viu-se inicialmente com srias dificuldades para definir conceitos para os novos direitos que lhe estariam na base, o que levou alguns juristas a afirmar que estes se tratavam de personagens misteriosos 3. Apesar de certa homogeneidade obtida com relao aos direitos difusos e coletivos, vistos sob o aspecto subjetivo como direitos transindividuais e, no aspecto objetivo como indivisveis, sua conceituao sempre foi objeto de dvida. Porm, com o advento do CDC, esta problemtica restou resolvida no direito brasileiro. O Cdigo estabeleceu, no art. 81, nico, as categorias em que se exerce a defesa dos direitos coletivos lato sensu. So elas: os direitos difusos, os direitos coletivos (stricto sensu) e os direitos individuais homogneos. A mesma soluo foi adotada pelo Cdigo Modelo (CM). Assim, tem-se por direitos difusos (art. 81, nico, I, do CDC e art. 1, I, do CM) aqueles transindividuais (metaindividuais, supraindividuais, pertencentes a vrios indivduos), de natureza indivisvel (s podem ser considerados como um todo), e cujos titulares sejam pessoas indeterminadas (ou seja, indeterminabilidade dos sujeitos, no h individuao) ligadas por circunstncias de fato, no existe um vnculo comum de natureza jurdica, v.g., a publicidade enganosa ou abusiva, veiculada atravs de imprensa falada, escrita ou televisionada, a afetar uma multido incalculvel de pessoas, sem que entre elas exista uma relao jurdica-base. J os direitos coletivos stricto sensu (art. 81, nico, II do CDC, e art. 1, II do CM) foram classificados como direitos transindividuais, de natureza indivisvel, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas (indeterminadas, mas determinveis, frise-se, enquanto grupo, categoria ou classe) ligadas entre si, ou com a parte contrria, por uma relao jurdica base. Nesse particular cabe salientar que essa relao jurdica base pode se dar entre os membros do grupo affectio societatis ou pela sua ligao com a parte contrria. No primeiro caso temos os advogados inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (ou qualquer associao de profissionais); no segundo, os contribuintes de determinado imposto. Cabe ressalvar que a relao-base necessita ser anterior leso (carter de anterioridade). No caso da publicidade enganosa, a ligao com a parte contrria tambm ocorre, s que em razo da leso e no de vnculo precedente, o que a configura como direito difuso e no coletivo stricto sensu (propriamente dito). O elemento diferenciador entre o direito difuso e o direito coletivo , portanto, a determinabilidade e a decorrente coeso como grupo, categoria ou classe anterior leso, fenmeno que se verifica nos direitos coletivos stricto sensu e no ocorre nos direitos difusos. Portanto, para fins de tutela jurisdicional, o que importa a possibilidade de identificar um grupo, categoria ou classe, vez que a tutela revela-se indivisvel, e a ao coletiva no est disponvel aos indivduos que sero beneficiados. O legislador foi alm da definio de direitos difusos e coletivos stricto sensu e criou uma nova categoria de direitos coletivos (coletivamente tratados) a qual denominou direitos individuais homogneos (art. 81, n., III, do CDC, e art. 1, III,do CM). A gnese dessa proteo/garantia coletiva tem origem nas class actions for damages norte-americanas. A importncia desta categoria cristalina. Sem sua criao pelo direito positivo nacional no existiria possibilidade de tutela coletiva de direitos com natural dimenso coletiva, decorrentes da massificao/padronizao das relaes jurdicas e das leses da decorrentes. Assim, Tal categoria de direitos representa uma fico criada pelo direito positivo brasileiro com a finalidade nica e exclusiva de possibilitar a proteo coletiva (molecular) de direitos individuais com dimenso

coletiva (em massa). Sem essa expressa previso legal, a possibilidade de defesa coletiva de direitos individuais estaria vedada. O CDC conceitua os direitos individuais homogneos como aqueles decorrentes de origem comum, ou seja, os direitos nascidos em conseqncia da prpria leso ou ameaa de leso, em que a relao jurdica entre as partes post factum (fato lesivo). Para evitar equvocos na interpretao transcreve-se a precisa lio de Watanabe: Origem comum no significa, necessariamente, uma unidade factual e temporal. As vtimas de uma publicidade enganosa veiculada por vrios rgos de imprensa e em repetidos dias ou de um produto nocivo sade adquirido por vrios consumidores em um largo espao de tempo e em vrias regies tm, como causa de seus danos, fatos com homogeneidade tal que os tornam a origem comum de todos eles., ou seja, o que tm em comum a procedncia, e a gnese na conduta comissiva ou omissiva da parte contrria. O fato de ser possvel determinar individualmente os lesados, no altera a possibilidade e pertinncia da ao coletiva. Permanece o trao distintivo: o tratamento molecular das aes coletivas em relao fragmentao da tutela (tratamento atomizado), nas aes individuais. evidente a vantagem do tratamento uno da pretenso em conjunto para obteno de um provimento genrico. Como bem anotou Antonio Gidi as aes coletivas garantem trs objetivos: proporcionar economia processual, acesso justia e a aplicao voluntria e autoritativa do direito material. No por outra razo se determinou em ambos os cdigos em comento (no CDC, art. 103, III, e no CM, art. 26, III) que a sentena ter eficcia erga omnes. Os titulares dos direitos individuais sero abstrata e genericamente beneficiados. Nessa perspectiva, o pedido nas aes coletivas ser sempre uma tese jurdica geral que beneficie, sem distino, aos substitudos. As peculiaridades dos direitos individuais, se existirem, devero ser atendidas em liquidao de sentena a ser procedida individualmente. Como corolrio desse entendimento e ainda da lio de que os direitos coletivos lato sensu tm dupla funo material e processual e foram positivados em razo da necessidade de sua tutela jurisdicional para fins de tutela os direitos individuais homogneos so indivisveis e indisponveis at o momento de sua liquidao e execuo. Como exemplo da abstrao e generalidade dos direitos individuais homogneos podese referir a ao coletiva de responsabilidade civil pelos danos individualmente causados. Nessa ao somente ocorrer a determinao dos indivduos lesados quando ingressarem como assistentes (art. 94, do CDC, e art. 19, do CM) ou no momento em que exercitarem o seu direito individual de indenizao, em decorrncia da habilitao para a liquidao da sentena (art. 97, do CDC, e art. 22, do CM). A condenao tambm poder ser executada (abrangendo as indenizaes j fixadas em sentena de liquidao) pelos legitimados processuais sem prejuzo do ajuizamento de outras execues individualmente movidas (art. 98, do CDC, e art. 23, do CM). A idia de unicidade no tratamento dos direitos individuais homogneos clara no CDC e no CM. A lei brasileira (art. 100) e o CM (art. 25) determinam expressamente que no caso de passado um ano sem a habilitao de interessados em nmero compatvel com a gravidade do dano, podero os entes legitimados propor a liquidao e execuo da indenizao devida. Nesse caso, reverte-se o produto para um fundo governamental (no Brasil criado pela Lei 7.347/85 - Lei da Ao Civil Pblica - no art. 13, denominado Fundo de Direitos Difusos; e no CM inserto no art. 6)16. Ao legislador interessa a compensao integral do prejuzo; concede-se assim primazia ao interesse pblico na regulao da conduta ilcita. Como particularidade inovadora, o Cdigo Modelo exige em seu art. 1, 1, para a tutela dos direitos individuais homogneos, a necessidade de se reconhecer tambm a necessria

aferio da predominncia de questes comuns sobre as individuais e da utilidade da tutela coletiva no caso concreto. Este detalhamento corresponde adequao da ao coletiva tutela de direitos individuais homogneos. No dizer de Ada Pellegrini Grinover (tambm autora do Anteprojeto), revelase imprescindvel a demonstrao da prevalncia das questes comuns (sobre as individuais) e da superioridade da tutela coletiva em termos de justia e eficcia da sentena.17 Por ltimo, cabe mencionar o entendimento de parte da doutrina de que os direitos individuais homogneos no seriam direitos coletivos, mas sim direitos coletivamente tratados (sic.).18 Esta viso mostra-se excessivamente restritiva e afastaria tal categoria do rol expressamente criado pelo CDC, referendado agora pelo Cdigo Modelo, relegando-a a personagem de segunda categoria na proteo coletiva. Em sentido contrrio, contudo, posicionou-se o pleno do Supremo Tribunal Federal brasileiro, em julgamento unnime, no RE 163231-SP, pela admisso destes direitos como subespcie de direitos coletivos. Transcrevemos trecho da ementa: 4. Direitos ou interesses homogneos so os que tm a mesma origem comum (art. 81, III,da Lei 8.078, de 11.09.1990), constituindo-se em subespcie de direitos coletivos19. Esta leitura jurisprudencial pelo principal tribunal brasileiro, somada ao que antes foi exposto, parece afastar a inadequada capitis diminutio daqueles direitos coletivos. As categorias de direito antes mencionadas (difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogneos) foram conceituadas com vistas a possibilitar a efetividade da prestao jurisdicional; so, portanto, conceitos interativos de direito material e processual, voltados para a instrumentalidade, para a adequao da teoria geral do direito realidade hodierna e, dessa forma, para a sua proteo pelo Poder Judicirio20. Assim, sua conceituao tem carter explicitamente ampliativo da tutela dos direitos.

2. DIREITOS OU INTERESSES Na legislao brasileira revela-se comum a denominao conjunta direitos e interesses referindo-se a direitos difusos e direitos coletivos (art. 129, inc. III da CF/88, 23 CDC, LACP, 21 etc.). O Cdigo Modelo seguiu a mesma orientao (art. 1). Contudo, em nosso entender, o termo interesses expresso equvoca22, seja porque no existe diferena prtica entre direitos e interesses, seja porque os direitos difusos e coletivos foram constitucionalmente garantidos (v.g., Ttulo II, Captulo I, da CF/88). Ao que parece, deu-se mera transposio da doutrina italiana, um italianismo decorrente da expresso interessi legitimi e que granjeou espao na doutrina nacional e, infelizmente, gerou tal fenmeno no desejado. Cabe, por dever de preciso, afastar a erronia. Vale lembrar, no se trata de defesa de interesses e, sim, de direitos, muitas vezes, previstos no prprio texto constitucional. Exemplo de conseqncia no pretendida pelo legislador est na limitao imposta por parte da doutrina ao mandado de segurana coletivo.24 Os primeiros textos sobre o mandado de segurana coletivo traziam uma advertncia sria a respeito da impossibilidade de serem tutelados pelo writ meros interesses. Nesse sentido manifestavam-se, por exemplo, as vozes autorizadas de Jos Cretella Junior25 e Celso Neves, como demonstra a crtica abaixo. Afirmando que interesses no so tutelveis por mandado de segurana coloca Celso Neves a noo clssica de direito subjetivo como poder da vontade vinculado a um interesse pessoal ou individual ao qual o Estado, mediante o ordenamento jurdico, confere coercibilidade como forma de atuao. Afirma, ainda, que interesses simples ou at mesmo interesses juridicamente protegidos no podem ser tutelados pelo mandado de segurana ou qualquer outra ao porque

justamente esto desprovidos da coercibilidade, no tm os seus titulares o poder de vontade para a prevalncia de seu interesse que configuraria direito subjetivo.26 Podemos opor as seguintes consideraes crticas: 1) no se trata de tutela de interesses e sim de direitos subjetivos coletivos; 2) Os titulares desses direitos subjetivos so aqueles indicados no art. 81, nico do CDC e no art. 1do CM,27 sendo sua legitimao ad causam, nas aes coletivas brasileiras, atribuda s entidades expressamente elencadas na legislao. Baseado na perspectiva de direito processual moderno conclui Celso Neves: A autonomia do direito de ao no se compadece com tal extremo, porque ineliminvel o binmio direito-processo, mormente num momento em que a instrumentalidade essencial da relao processual volta a ser proclamada, com redobrado vigor, pelos doutrinadores contemporneos.28 Aqui, tambm, devem ser feitas certas consideraes. A instrumentalidade consiste, justamente, em fornecer um instrumento hbil e eficaz para a defesa dos direitos. O processo instrumento (meio) de realizao do direito. A autonomia do direito de ao, nesse sentido, primordial para que sob a gide de preconceitos de direito material, ou interpretaes fixas no se evite a apreciao pelo Poder Judicirio da leso ou ameaa ao direito afirmado pelo autor. Assim, ocorre um abrandamento do ineliminvel binmio substncia-processo, sempre orientado pelo fim: o processo existe para a ordem jurdica justa. No sentido do at agora exposto, contra a concepo estreita e excludente de interesses, e voltados para a correo da erronia legislativa esforaram-se os juristas brasileiros. Calmon de Passos, por exemplo, chama ateno para o contedo de direitos, inclusive em sua dimenso subjetiva com que se revestem os interesses coletivos, como tambm, para a inaplicabilidade do conceito de interesses legtimos na atual realidade democrtica. Assim, Trazerse para o direito brasileiro categorias j sem funcionalidade como a dos interesses legtimos, para coloc-los ao lado dos direitos subjetivos, ou pretender excluir os interesses transindividuais da categoria dos direitos subjetivos insistir numa viso do direito, do Estado, da organizao poltica e da sociedade j ultrapassada.29 Carlos Alberto Alvaro de Oliveira assevera que o legislador teria agido com melhor tcnica no art. 6, ao mencionar apenas direitos bsicos do consumidor ao invs de interesses e direitos como fez no Tt. III.30 A lio revela-se ainda mais vantajosa por esclarecer, adiante, que a distino entre o direito subjetivo e o interesse, na doutrina nacional, assenta, justamente, na coercibilidade posta disposio da vontade autnoma do indivduo frente a um interesse seu tutelado pela norma. Comentando a distino entre interesse legtimo e direito subjetivo, na doutrina estrangeira, o mesmo autor salienta o seu carter quantitativo e acidental segundo a maior ou menor proeminncia do interesse individual objeto da tutela normativa, o que em outro ordenamento pode determinar a atribuio da cognio a rgos distintos, mas no lhes altera a categoria de direitos submetidos a jurisdio e a sua imperatividade.31 Por bvio, o que se salienta na lio acima, que mesmo nos sistemas que distinguem os direitos subjetivos e os interesses legtimos, esses no ficam desprotegidos ou submersos em subcategorias intangveis e, portanto, no tutelveis. Mas qual o escoro histrico necessrio para se afastar a erronia apontada? O ordenamento jurdico brasileiro, respeita o princpio da unidade de jurisdio e da inafastabilidade da apreciao, pelo Judicirio, da leso ou ameaa de leso a direito (rectius: afirmao). Os direitos subjetivos, no Brasil, se subdividem em direitos subjetivos privados e direitos pblicos subjetivos.32 Contudo, o mesmo no ocorre com o sistema italiano que prev uma separao de rgos jurisdicionais (dualidade de jurisdio). Assim, a doutrina italiana construiu dois conceitos distintos, um referente aos direitos subjetivos e outro, aos chamados interesses legtimos. Os primeiros so julgados pela justia civil (relaes entre particulares); os outros, perante rgos da justia administrativa (relaes entre particulares e administrao pblica ou de interesse social relevante). A nota essencial na distino, para este estudo, que enquanto o direito subjetivo se vincula diretamente ao indivduo, protegendo seu interesse individual, os interesses legtimos se

dirigem ao interesse geral e favorecem o indivduo apenas como componente, como membro do Estado.33 Porm, diferenas parte, tanto os direitos subjetivos como os interesses legtimos (na doutrina italiana) se tornam concretos como direitos tutela jurisdicional;34 percebe-se que se trata, assim, de uma distino histrica e peculiar ao sistema italiano, que no tem qualquer aplicao ao direito brasileiro, em que os conceitos de interesse legtimo e direito subjetivo se reduzem categoria por ns conhecida como direitos subjetivos (que aqui podem ser pblicos ou privados). Tanto o direito subjetivo quanto o interesse legtimo so, portanto, direitos. A distino da doutrina italiana pode fazer sentido na Itlia, mas no se justifica no ordenamento brasileiro, que prev a unidade da jurisdio. Ocorre que o legislador brasileiro foi fortemente influenciado pelo direito italiano, porque a doutrina brasileira fortemente influenciada pela doutrina italiana, onde as categorias de direitos coletivos e direitos difusos encontram-se em territrio cinzento, a meio caminho entre o pblico e o privado, sendo constantemente referidas como interessi diffusi e interessi collettivi at mesmo pela sua aproximao, por vezes, do que se entende por interessi legitimi. Como visto, tal no pode prosperar em nosso sistema que no admite a categoria de interesses legtimos, e onde a categoria de interesses no tem a menor operacionalidade prtica. Como j havia advertido Dinamarco, verifica-se uma sutil distino entre os direitos subjetivos e interesses legtimos que, em conjunto com a discricionariedade do poder administrativo, decorre da idia fascista de liberdade poltica da administrao (Poder Executivo), e que foi usada como escudo para evitar a censura jurisdicional35 em regimes totalitrios (v.g., o de Mussolini). Na esteira do exposto supra, Antonio Gidi considera mais correto e adequado o termo direitos e no interesses para o ordenamento jurdico brasileiro. Sua viso expe a resistncia ampliao do conceito de direito subjetivo. Assim, esta lhe parece mais um rano individualista decorrente de um preconceito ainda que inconsciente em admitir a operacionalidade tcnica do conceito de direito superindividual e da dificuldade de enquadrar um direito com caractersticas de indivisibilidade quanto ao objeto e impreciso quanto titularidade no direito subjetivo, entendido como fenmeno de subjetivao do direito positivo. Portanto, o legislador chamou ...interesse essa situao de vantagem. E conclui: ...no utilizamos (e mesmo rejeitamos) a dplice terminologia adotada pelo CDC. Este trabalho se referir, indiscriminadamente, a direito difuso, direito coletivo e direito individual homogneo.36 Subjetivao, para o processo tradicional, significa individualizao, da a dificuldade. Uma ltima nota. Parte da doutrina insiste na necessidade de aceitar a denominao interesses porque esta configuraria uma maior amplitude de tutela tambm para situaes no reconhecidas como direitos subjetivos (tendo em vista a prpria novidade dos direitos coletivos lato sensu).37(sic.). Esta preocupao vlida e coerente com os valores a serem tutelados (principalmente se pensarmos no direito ao meio ambiente e nos direitos do consumidor), contudo a melhor soluo passa, no por admitir a categoria dos interesses tutelveis pelo processo, mas sim pela ampliao do conceito de direito subjetivo, para abarcar as diversas posies jurdicas judicializveis que decorrem do direito subjetivo prima facie (portanto, no expressas) e que merecem igualmente guarida pelo Judicirio.38 A superao do problema pela doutrina brasileira fica bvia nas palavras de Watanabe: Os termos interesses e direitos foram utilizados como sinnimos, certo que, a partir do momento em que passam a ser amparados pelo direito, os interesses assumem o mesmo status de direitos, desaparecendo qualquer razo prtica, e mesmo terica, para a busca de uma diferenciao ontolgica entre eles.39

3. CRITRIOS PARA CARACTERIZAO DE DIREITOS DE NATUREZA COLETIVA A natural proximidade entre os direitos de natureza coletiva pode levar a situaes (no raras) em que uma mesma leso, v.g., publicidade enganosa ou abusiva, merea tutela por ao visando direito (afirmado) difuso, coletivo ou individual homogneo. Nesse sentido j decidiu o Conselho Superior do Ministrio Pblico do Estado de So Paulo: Em caso de propaganda enganosa, o dano no somente daqueles que, induzidos a erro, adquiriram o produto, mas tambm difuso, porque abrange todos os que tiveram acesso publicidade., presentes estariam elementos para propositura de uma ao civil pblica em defesa de direitos difusos e de uma ao civil pblica em defesa de direitos individuais homogneos.40 Qual seria, ento, o critrio para distino e classificao do direito na demanda? Antonio Gidi entendeu, de modo pioneiro, que o caminho mais adequado seria identificar o direito subjetivo especfico que foi violado (rectius: afirmado). Para ele, a associao comum entre a leso decorrente de publicidade e o direito difuso da comunidade no necessria. De um mesmo fato lesivo podem nascer pretenses difusas, coletivas, individuais homogneas e, mesmo, individuais puras, ainda que nem todas sejam baseadas no mesmo ramo do direito material. Supondo a hiptese de uma publicidade enganosa, onde o anunciante pratica falsidade ideolgica ao induzir o consumidor a confundir o seu produto com outro de uma marca famosa, afirma que diversas pretenses podem surgir e diversas aes (civis e criminais; individuais e coletivas) podem ser propostas em funo desse ato ilcito. Para exemplificar aduz a ao criminal estatuda no art. 66 do CDC, as aes coletivas para defesa de direitos difusos da comunidade requerendo a retirada dos produtos, a contra-propaganda ou a indenizao devida pelo dano j causado (a reverter para o fundo de recomposio criado pela LACP). Havendo leso a direitos individuais de consumidores que j adquiriram o produto influenciados pela publicidade ilcita, seria igualmente cabvel ao para recompor esses prejuzos movida molecularmente, por um dos legitimados do art. 82 do CDC, visando a condenao genrica, art. 95 do CDC. E, ainda, no se pode esquecer da ao individual da empresa concorrente lesada.41 Concluindo, Antonio Gidi, reafirma que o critrio cientfico na identificao do direito coletivo lato sensu no a matria, o tema, o assunto abstratamente considerados, mas o direito subjetivo especfico que foi violado (rectius: que se afirma violado); e continua: Nesse ponto dissentimos ligeiramente da tese de Nelson Nery Jnior quando conclui ser o tipo de tutela jurisdicional que se pretende obter em juzo o critrio a ser adotado.42 Atribui, assim, extrema relevncia ao direito material, na sua fundamentao, Primeiro, porque o direito subjetivo material tem a sua existncia dogmtica e possvel, e por tudo recomendvel, analis-lo e classific-lo independentemente do direito processual. Segundo, porque casos haver em que o tipo de tutela jurisdicional pretendida no caracteriza o direito material em tutela. Na hiptese acima construda, por exemplo, a retirada da publicidade do ar e a imposio de contrapropaganda podem ser obtidas tanto atravs de uma ao coletiva em defesa de direitos difusos como atravs de uma ao individual proposta pela empresa concorrente, muito embora propostas uma e outra com fundamentos jurdicos de direito material diversos.43 Para Nery Junior, de outra banda, revela-se freqente o erro de metodologia da doutrina e jurisprudncia na classificao do tipo de direito coletivo: V-se, por exemplo, a afirmao de que o direito ao meio ambiente difuso, o do consumidor seria coletivo e que o de indenizao por prejuzos particulares sofridos seria individual.. Adiante complementa, A afirmao no est correta nem errada. Apenas h engano na utilizao do mtodo para a definio qualificadora do direito ou interesse posto em jogo. Nery Junior, entende ser preponderante o tipo de pretenso material e de tutela jurisdicional que se pretende.44 Assim, para o autor, Da ocorrncia de um mesmo fato, podem originar-se pretenses difusas, coletivas e individuais.45

O jurista traz o exemplo de um acidente ocorrido no Brasil com um navio turstico, o Bateau Mouche IV. Este acidente possibilitaria vrias aes distintas: ao de indenizao individual por uma das vtimas do evento pelos prejuzos que sofreu (direito individual), ao de obrigao de fazer movida por associao das empresas de turismo que tm interesse na manuteno da boa imagem desse setor da economia (direito coletivo), bem como ao ajuizada pelo Ministrio Pblico, em favor da vida e segurana das pessoas, para que seja interditada a embarcao a fim de se evitarem novos acidentes (direito difuso). Concluindo, Em suma, o tipo de pretenso que classifica um direito ou interesse como difuso, coletivo ou individual.46 Ora, o CDC e o CM conceituam os direitos coletivos lato sensu dentro da perspectiva processual, com o objetivo de possibilitar a sua instrumentalizao e efetiva realizao. Do ponto de vista do processo, a postura mais correta, a nosso juzo, a que permite a fuso entre o direito subjetivo (afirmado) e a tutela requerida como forma de identificar, na ao, de qual direito se trata e, assim, prover adequadamente a jurisdio. No por outro motivo reafirmamos a caracterstica hbrida ou interativa de direito material e direito processual intrnseca aos direitos coletivos, um direito a meio caminho. Nesse particular, revela-se de preponderante importncia a correta individuao, pelo advogado, do pedido imediato (tipo de tutela) e da causa de pedir, incluindo os fatos e o direito coletivo aplicvel na ao. Portanto, prope-se a fuso entre o pensamento de Antonio Gidi e Nery Junior, que em verdade se completam e complementam reciprocamente. Por exemplo, em determinada ao onde se afirma a leso cometida por veiculao de publicidade enganosa o autor da ao dever descrever os fatos que justificam a demanda e embasam sua pretenso afirmando que a publicidade foi ao ar nos dias x e y, atravs da mdia televisiva, atingindo um universo de pessoas circunscritos em determinada regio. Dever afirmar, ainda, que existe uma extenso possvel de vrias pessoas atingidas pela publicidade que adquiriram o produto em erro e que foram lesados em seus direitos individuais, e que estes direitos, pela caracterstica de origem comum, se configuram como individuais homogneos. Requerer, assim e ao final, a condenao genrica, fixando a responsabilidade do ru pelos danos causados (art. 95, do CDC, e art. 20 do CM). No exemplo acima temos, 1) fatos (causa de pedir mediata ou remota), que originam leso de direitos individuais; 2) um direito afirmado (causa de pedir imediata ou prxima), que pode ser configurado (em tese) como direito individual homogneo por ter origem comum e se estender a vrios titulares de direitos individuais hipotticamente lesados; e, 3) um pedido imediato de condenao genrica, de acordo com o direito afirmado. Assim, trata-se claramente de uma ao para tutela dos direitos individuais homogneos.

Concluses A importncia da conceituao dos direitos coletivos lato sensu relaciona-se de forma direta com a efetividade que se pretende dar sua proteo. Esclarecido o conceito, facilita-se o trabalho dos operadores do direito e diminui aquela equvoca fenda existente entre o direito material e o direito processual, tudo com vistas a que o Direito se realizecom Justia. Como o art. 21 da Lei da Ao Civil Pblica (com a redao dada pelo art. 117 do CDC) e o art. 90 do CDC estabelecem, estas idias podero ser aplicadas no ordenamento brasileiro em todas as aes coletivas. Portanto, no h que se falar, dogmaticamente, em distino: todas as aes coletivas esto sujeitas ao mesmo conceito de direito coletivos lato sensu. Roga-se que esta saudvel dogmtica se aplique no Brasil e nos pases que adotarem o CM como modelo de seu ordenamento interno em aes coletivas. Repetindo as idias j expostas ao longo do texto, mas dando-lhes congruncia e sntese, seguem as principais concluses:

1 - O Cdigo Modelo segue a mesma conceituao utilizada pelo Cdigo de Defesa do Consumidor Brasileiro. 2 - So direitos coletivos lato sensu os direitos difusos, os direitos coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogneos. 3 - Os direitos difusos caracterizam-se pela transindividualidade, indivisibilidade, indisponibilidade, indeterminabilidade dos titulares e ligao por circunstncias de fato anteriores leso. 4 - Os direitos coletivos stricto sensu se distinguem dos direitos difusos pela determinabilidade de seus titulares, que so os grupos, categorias ou classes de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrria por uma relao jurdica-base (que preexiste ao fato ilcito). 5 - Os direitos individuais homogneos so vagamente definidos pelo projeto de Cdigo Modelo, seguindo a diretriz j traada pela legislao brasileira. O que define estes direitos a origem comum ligada circunstncia danosa ou potencialmente danosa aos direitos individuais que apresentam caractersticas de homogeneidade. 6 - So caractersticas dos direitos individuais homogneos a sua coletivizao, a sua indisponibilidade, a sua indivisibilidade, a titularidade aferida atravs da afirmao de leso a direitos individuais abstrata e genericamente considerados, conseqentemente no h individuao dos titulares no processo. 7 - Sendo direitos novos, a categoria dos direitos subjetivos coletivos lato sensu implica em atribuir ao seu tratamento as seguintes caractersticas comuns: transindividualidade, indivisibilidade, indisponibilidade, titularidade e legitimidade em lei. Isso porque se tratam de direitos criados para garantir a sua efetividade atravs do processo, sua justicialidade. 8 - Os direitos coletivos lato sensu so direitos, no devendo ser adotada a denominao interesses. A erronia decorre de uma transposio de conceitos e categorias estranhas aos ordenamentos/sistemas jurdicos latino-americanos e causam desnecessria confuso. 9 - mais efetivo e acertado dogmaticamente adotar os desdobramentos do direito subjetivo coletivo prima facie (v.g., direito ambiental e direito do consumidor) em posies jurdicas judicializveis, do que pretender a tutela de interesses ainda no positivados nos ordenamentos jurdicos nacionais. 10 - Do mesmo fato podem surgir pretenses para tutela de direitos difusos, direitos coletivos stricto sensu e direitos individuais homogneos. So incorretas as afirmaes de que o direito ao meio-ambiente seria difuso e os direitos dos consumidores seriam coletivos stricto sensu. 11 - A caracterizao do direito tutelado se dar pela fuso entre o direito subjetivo coletivo afirmado e a tutela processual requerida (tipo de pretenso material e de tutela jurisdicional que se pretende). 12 - Cabe aos operadores do direito, nesse particular, identificar bem a causa de pedir e o pedido na ao coletiva. Vale advertir o papel importante que a titularidade afirmada assume como elemento caracterstico do direito coletivo lato sensu indicado. Assim, se os beneficirios forem pessoas indeterminadas (quer pela impossibilidade de determinao, quer ainda pela ausncia de interesse nesta determinao) teremos um direito difuso; se for individualizado um grupo, categoria ou classe de pessoas com vnculos entre si ou com a parte contrria que se lhes seja atribuvel como relao jurdica-base e tutelados nesta relao base como um todo, teremos um direito coletivo stricto sensu, por fim, a afirmao de titularidade abstrata e genrica de direitos individuais com

caractersticas especficas que lhes atribuam prevalncia de questes comuns e superioridade no tratamento coletivo demonstrar a existncia de um direito individual homogneo afirmado. Portanto, de lege ferenda, sugerimos a supresso no anteprojeto de Cdigo Modelo do termo interesses e pela indicao, no caput do art. 1o. do CM, de que os direitos que sero qualificados nos incisos so direitos coletivos lato sensu, portanto com caractersticas comuns. Seria de todo conveniente, ainda, a incluso de uma justificativa, a ttulo de exposio de motivos, onde questes referentes ao critrio para caracterizao dos direitos coletivos lato sensu e sua evidente criao para fins de tutela judicial (principalmente de situaes antes desconhecidas pelo Judicirio) seja aclarada, permitindo o correto entendimento do sistema de proteo coletivo que se prope. Esperamos de alguma forma, mesmo que modestamente, ter contribudo, com nossas dvidas e questionamentos, ao belo trabalho que representa este Anteprojeto de Cdigo Modelo.