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  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICASAnotaes de Jurisprudncia

    Carla Amado Gomes e Tiago Serro (coord.)

  • DIREITO DA

    RESPONSABILIDADE CIVIL

    EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    Anotaes de Jurisprudncia

    Carla Amado Gomes

    Tiago Serro (coordenadores)

  • Edio:

    www.icjp.pt

    Outubro de 2013

    ISBN: 978-989-97834-6-1

    Alameda da Universidade

    1649-014 Lisboa

    e-mail: [email protected]

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    3

    NDICE:

    Nota de apresentao

    Carla Amado Gomes e Tiago Serro

    Responsabilidade por ato da funo legislativa decorrente da Lei do

    Oramento de Estado e mbito da jurisdio administrativa

    Anotao ao Acrdo do STA de 14 de Fevereiro de 2013 (proc. 01173/12)

    Alexandra Leito

    A deciso do procedimento em prazo razovel: uma nova responsabilidade

    administrativa

    Anotao ao Acrdo do TCA-Sul, de 11 de Abril de 2013 (proc. 07084/11)

    Carla Amado Gomes

    Responsabilidade contratual de um estabelecimento integrado no Servio

    Nacional de Sade

    Anotao ao Acrdo do TCA-Norte, de 30 de Novembro de 2012

    (proc. 01425/04.8BEBRG)

    Cludia Monge

    A efetivao do direito de regresso pelo Estado e a interveno de

    terceiros: alguns tpicos de reflexo

    Anotao ao Acrdo do STA, de 28 de Maro de 2012 (proc. 01090/11)

    Diana Ettner

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    4

    Tudo ao molho e f. Na jurisdio administrativa - pluralidade de sujeitos

    pblicos e privados e competncia dos tribunais administrativos em aco

    de responsabilidade civil pblica

    Anotao ao acrdo do STA, de 3 de Maro de 2010 (proc. 0278/09)

    Francisco Paes Marques

    Diligncia Processual e RRCEEP: a quanto obrigas?

    Anotao ao Acrdo do TCA-Sul, de 14 de Dezembro de 2011

    (proc. 07175/11)

    Manuel da Silva Gomes

    Um caso de arrependimento da Administrao antes da celebrao do

    contrato

    Anotao ao Acrdo do TCA-Sul, de 18 de Outubro de 2012

    (proc. 02459/07)

    Marco Caldeira

    Presuno de culpa de autarquia local por omisso de dever de vigilncia

    Anotao ao Acrdo do STA, de 23 de Fevereiro de 2012 (proc. 01008/11)

    Mariana Melo Egdio

    Consentimento informado, causalidade e nus da prova em

    responsabilidade hospitalar

    Anotao ao Acrdo do STA, de 9 de Maio de 2012 (proc. 093/12)

    Miguel Assis Raimundo

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    5

    Do requisito da ilegalidade em matria de responsabilidade aquiliana das

    instituies da Unio Europeia - o acrdo Bergaderm

    Anotao ao Acrdo do TJUE, de 4 de Julho de 2000 (proc. C-352/98 P)

    Miguel Marques de Carvalho

    Indemnizao por facto lcito na funo jurisdicional

    Anotao ao Acrdo do TCA-Sul, de 12/06/2012 (proc. 07144/11)

    Paulo Dias Neves

    Administrao da justia morosa: la storia continua

    Anotao ao acrdo do STA, de 15 de Maio de 2013 (proc. 0144/13)

    Ricardo Pedro

    A caraterizao legal da especialidade e anormalidade dos prejuzos

    Anotao ao Acrdo do STA, de 9 de Fevereiro de 2012 (proc. 0678/11)

    Sandra Guerreiro

    Responsabilidade Civil Extracontratual de Concessionrios de Obras

    Pblicas e Jurisdio Administrativa

    Anotao ao Acrdo do Tribunal de Conflitos, de 20 de Janeiro de 2010

    (proc. 025/09)

    Tiago Serro

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    6

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    7

    Nota de apresentao

    A problemtica da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das

    demais entidades pblicas assume, nos dias de hoje, uma inegvel e

    crescente importncia terica e prtica.

    A prova inequvoca da aludida relevncia prtica encontra-se, entre ns,

    na numerosa jurisprudncia existente sobre o tema, proferida, sobretudo, no

    contexto aplicativo do Decreto-Lei 48.051, de 21 de Novembro de 1967. Ao

    abrigo do novo quadro legal, aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de

    Dezembro, os acrdos conhecidos so, para j, em muito menor nmero,

    mas expectvel que, com o decorrer do tempo, aumentem

    quantitativamente e em termos temticos.

    A presente publicao constitui um contributo para a anlise de diversos

    arestos proferidos, justamente, no domnio da responsabilidade civil

    extracontratual pblica. As anotaes dos diversos autores convidados

    para o efeito incidem, na sua esmagadora maioria, sobre decises judiciais

    que convocam directamente o regime jurdico de responsabilidade civil

    extracontratual que, a breve trecho, completar seis anos de vigncia. Foi

    preocupao primordial da equipa coordenadora assegurar a variedade

    de matrias objecto de tratamento analtico, bem como a pluralidade de

    perspectivas adoptadas, perante um leque de novas e muitas vezes

    complexas solues legais com as quais os tribunais tm sido confrontados.

    Espera-se que este projecto sirva de impulso para que, de futuro, a

    jurisprudncia em matria de responsabilidade civil extracontratual pblica

    continue a ser objecto de um dilogo aberto por parte de todos os que

    revelem interesse por este tema. Pela nossa parte, fica o compromisso de

    que no deixaremos de acompanhar, de modo atento, essa fonte de

    direito, dada a riqueza problemtica que a mesma encerra.

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    8

    A ordem de publicao das anotaes obedece ordem alfabtica do

    primeiro nome dos autores. Deu-se liberdade aos anotadores quanto

    redaco do texto, conformemente ou no ao Acordo Ortogrfico.

    Lisboa, Setembro de 2013

    Os coordenadores,

    Carla Amado Gomes

    Tiago Serro

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    9

    Responsabilidade por ato da funo legislativa

    decorrente da Lei do Oramento de Estado

    e mbito da jurisdio administrativa

    Anotao ao Acrdo do STA de 14 de fevereiro de 2013, proc. 01173/12

    Consultar o acrdo aqui*

    Alexandra Leito

    Professora auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

    1. A deciso do Supremo Tribunal Administrativo que agora se comenta,

    proferida em sede de recurso de revista, versa sobre duas questes

    fundamentais: uma, de natureza substantiva, prende-se com a delimitao

    da responsabilidade extracontratual por atos da funo legislativa, e a

    segunda, processual, tem a ver com a competncia dos tribunais

    administrativos para dirimir litgios da decorrentes.

    No caso sub judice, o Municpio da Horta interps um recurso de revista

    para o Supremo Tribunal Administrativo que este aceitou (e, a meu ver,

    bem) ao abrigo do disposto no artigo 150.1 do Cdigo de Processo nos

    *http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/23fb70b3948fc2c6

    80257b280058710c?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1 Agradeo Professora Doutora Carla Amado Gomes e ao Dr. Tiago Serro,

    organizadores da presente obra, o convite para colaborar na sua elaborao. 1 O nmero 1 deste preceito determina que [D]as decises proferidas em 2.

    instncia pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista

    para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciao de

    uma questo que, pela sua relevncia jurdica ou social, se revista de importncia

    fundamental ou quando a admisso do recurso seja claramente necessria para

    uma melhor aplicao do direito.

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    10

    Tribunais Administrativos (CPTA)2 por acrdo datado de 6 de dezembro de

    2012, proferido no mesmo Processo n. 01173/12 da deciso do Tribunal

    Central Administrativo Sul que negou provimento ao recurso jurisdicional

    interposto da sentena do Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada

    atravs da qual este Tribunal absolveu da instncia o Estado portugus.

    Estava em causa uma ao de responsabilidade civil extracontratual por

    ato da funo legislativa nos termos do artigo 15. da Lei n. 67/2007, de 31

    de dezembro3, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil

    Extracontratual do Estado (RRCEE) decorrente da no inscrio nas Leis do

    Oramento de Estado para 2009, 2010 e 2011 das despesas inerentes

    transferncia para os municpios da participao varivel de 5% do IRS

    determinada pela Lei das Finanas Locais4. Invoca o Recorrente que, por

    essa razo, a Lei do Oramento de Estado violou a Constituio e a Lei de

    Enquadramento Oramental5, preenchendo os pressupostos da

    responsabilidade extracontratual do Estado por ato da funo legislativa tal

    como est consagrada no artigo 15. do RRCEE.

    Contudo, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada absolveu a

    entidade demandada da instncia no despacho saneador por considerar

    que a competncia para dirimir o litgio no cabe jurisdio

    administrativa, luz do disposto na alnea a) do nmero 2 do artigo 4. do

    Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)6, que determina que

    2 Aprovado pela Lei n. 15/2002, de 22 de fevereiro, alterada pelas Leis n. 4-

    A/2003, de 19 de fevereiro, n. 52/2008, de 28 de agosto, e n. 63/2011, de 14 de

    dezembro. 3 Com a redao dada pela Lei n. 31/2008, de 17 de julho. 4 Aprovada pela Lei n. 2/2007, de 15 de janeiro, com as alteraes introduzidas

    pelas Leis n. 67-A/2007, de 31 de dezembro, n. 44/2008, de 27 de agosto, n. 64-

    A/2008, de 31 de dezembro, n. 3-B/2010, de 28 de abril, n. 55-A/2010, de 31 de

    dezembro, n. 64-B/2011, de 30 de dezembro, e n. 60-B/2012, de 31 de dezembro. 5 Aprovada pela Lei n. 91/2001, de 28 de agosto, com as alteraes introduzidas

    pela Lei Orgnica n. 2/2002, de 28 de agosto, e pelas Leis n. 23/2003, de 2 de julho,

    n. 48/2004, de 24 de agosto, n. 48/2012, de 19 de outubro, n. 22/2011, de 20 de

    maio, n. 52/2011, de 13 de outubro, e n. 37/2013, de 14 de junho. 6 Aprovado pela Lei n. 13/2002, de 19 de fevereiro, alterada pelas Leis n. 4-

    A/2003, de 19 de fevereiro, n. 107-D/2003, de 31 de dezembro, n. 1/2008, de 14 de

    janeiro, n. 2/2008, de 14 de janeiro, n. 26/2008, de 27 de junho, n. 52/2008, de 28

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    11

    [E]st nomeadamente excluda do mbito da jurisdio administrativa e

    fiscal a apreciao de litgios que tenham por objeto a impugnao de

    atos praticados no exerccio da funo poltica e legislativa.

    Ora, como bem salienta o Recorrente, o que est em causa na presente

    ao comum no a impugnao (em via principal) da Lei do Oramento

    de Estado, cujo conhecimento est, obviamente, subtrado do mbito da

    jurisdio administrativa, mas sim a efetivao da responsabilidade civil por

    esse ato legislativo, nos termos do n. 1 do artigo 15. do RRCEE, valendo,

    para tanto, uma apreciao incidental da inconstitucionalidade ou

    ilegalidade de norma jurdica ou sobre a sua desconformidade com

    conveno internacional, tal como resulta do n. 2 do mesmo preceito.

    Sendo assim, cabe aos tribunais administrativo conhecer esta ao, ao

    abrigo do disposto na alnea g) do nmero 1 do artigo 4. do ETAF, que

    comete queles tribunais as [Q]uestes em que, nos termos da lei, haja

    lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de

    direito pblico, incluindo a resultante do exerccio da funo jurisdicional e

    da funo legislativa.

    Esta , alis, a nica soluo consentnea com o disposto no nmero 3

    do artigo 212. da Constituio que delimita o mbito da jurisdio

    administrativa em funo do conceito de relao jurdica administrativa.

    Adiantando, desde j, que acompanho a posio do Tribunal quer no

    que respeita admisso do recurso de revista, quer quanto procedncia do

    recurso, no deixaria, contudo, de tecer algumas consideraes que se

    desenvolvero em torno de trs problemas:

    (i) Natureza do ato de inscrio de verbas na Lei do Oramento de

    Estado;

    de agosto, n. 59/2008, de 11 de setembro, n. 166/2009, de 31 de julho, n. 55-

    A/2010, de 31 de dezembro, e n. 20/2012, de 14 de maio.

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    12

    (ii) Delimitao, para efeitos da determinao da competncia dos

    tribunais administrativos, entre a efetivao da responsabilidade por atos

    da funo legislativa e a apreciao da validade dos mesmos;

    (iii) Possibilidade de aplicao do regime da responsabilidade civil nas

    situaes em que o lesado uma entidade pblica e no um particular.

    2. Quanto primeira questo, coloca-se o problema de saber se, em

    concreto, o ato de inscrio de determinada(s) verba(s) na Lei do

    Oramento de Estado um ato legislativo, poltico ou administrativo.

    No se pretende voltar aqui at porque extrapolaria largamente o

    mbito da presente anotao vexata quaestio da natureza jurdica da

    lei do oramento e da sua eventual qualificao apenas como lei em

    sentido formal e no material, hoje ultrapassada7.

    Refira-se apenas que, apesar da diversidade de contedos da Lei do

    Oramento, que incluem a inscrio concreta de verbas desagregadas por

    departamentos e servios, esta no deixa de ser, formal e materialmente,

    uma lei, com carter normativo, ideia que, alis, subjaz reserva

    parlamentar de aprovao do Oramento8.

    Neste mesmo sentido milita o critrio de distino entre as funes

    poltica e legislativa e a funo administrativa, assente no facto de aquelas

    terem natureza primria e visarem a realizao de escolhas entre interesses

    essenciais da coletividade9, tenham ou no carter normativo.

    7 V. GOMES CANOTILHO, A Lei do Oramento na teoria da lei, Coimbra, 1979,

    pgs. 7 e seguintes e, mais recentemente, GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA,

    Constituio da Repblica Portuguesa anotada, volume I, Coimbra, 2007, pg.

    1120. V. ainda TIAGO DUARTE, A lei por detrs do oramento, Coimbra, 2007, pgs.

    295 e seguintes. 8 V. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, op. cit., volume I, pg. 1110. 9 V. MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDR SALGADO DE MATOS, Direito

    Administrativo Geral, Tomo I, 2. Edio, Lisboa, 2006, pg. 40.

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    13

    Como salienta MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, no caso da Lei do

    Oramento, pode mesmo prescindir-se do elemento normativo, atendendo

    ao carter sui generis do ato legislativo oramental10.

    A natureza legislativa da Lei do Oramento coloca fundadas dvidas

    quanto ao alcance da vinculao s obrigaes decorrentes de lei e de

    contrato, nos termos do nmero 2 do artigo 105. da Constituio.

    Efetivamente, se se entender que a Lei do Oramento tem de respeitar

    as obrigaes constantes de todas as leis em vigor no ordenamento jurdico

    isso cria uma relao de prevalncia entre estas ltimas e a primeira, ao

    arrepio das regras sobre relaes entre atos normativos estabelecidas no

    artigo 112. da Constituio. Esta soluo seria, aparentemente,

    contraditria com a natureza materialmente legislativa da Lei do

    Oramento, razo pela qual alguns Autores, como TIAGO DUARTE,

    consideram que a Lei do Oramento pode derrogar ou suspender as leis

    anteriores que imponham despesas, no as oramentando para

    determinado ano11.

    Mas esta posio no unnime. Pelo contrrio, pode entender-se, com

    GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, que admitir que a falta de dotao

    oramental para satisfazer obrigaes decorrentes de lei implica uma

    suspenso ou derrogao desta ltima seria uma subverso da relao de

    subordinao imposta pelo nmero 2 do artigo 105. da Constituio.

    A questo no se afigura simples.

    Por um lado, no me parece que a subordinao da Lei do Oramento

    a leis anteriores ponha em causa a sua natureza materialmente legislativa,

    porquanto existem outras relaes de preferncia e prevalncia entre atos

    legislativos sem que a natureza destes seja posta em causa.

    10 V. MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, O poltico e o normativo, in Cadernos de

    Justia Administrativa, n. 90, 2011, pg. 42. 11 V. ANTNIO LOBO XAVIER, O oramento como lei, in Boletim de Cincias

    Econmicas, volume XXXV, 1992, pgs. 75 a 77, e TIAGO DUARTE, op. cit., pg. 234.

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    14

    Mas, por outro lado, a sujeio da Lei do Oramento a diplomas

    legislativos aprovados por decreto-lei e a contratos celebrados pelo

    Governo pode pr em causa a prpria reserva parlamentar de aprovao

    do oramento, limitando para alm do aceitvel os poderes da Assembleia

    da Repblica. No pode, contudo, deixar de se salientar que este

    argumento ultrapassvel, pelo menos quanto subordinao lei, pela

    possibilidade que sempre assiste ao rgo parlamentar de, num primeiro

    momento, revogar a lei que impe obrigaes e, num segundo momento,

    aprovar a Lei do Oramento ou faz-lo at nesta mesma lei, atravs dos

    designados cavaleiros oramentais.

    Foi exatamente este o entendimento do Tribunal Constitucional, no seu

    Acrdo n. 358/9212, a propsito da Lei das Finanas Locais, quando

    concluiu que tendo-se por constitucionalmente legtimo que a Lei do

    Oramento altere a Lei das Finanas Locais (fonte legal das obrigaes a

    que alude o n 2 do art 108 da Constituio), desnecessrio se torna

    apurar se as regras atinentes frmula de clculo do FEF revestiriam

    efetivamente, no plano substantivo, a natureza de verdadeiras e prprias

    obrigaes de origem legal ( i., situaes passivas de crdito), para efeitos

    de aplicao do referido artigo da Constituio, ou seja, se as autarquias

    locais so titulares ativos de uma obrigao de pagamento do Estado

    decorrente da frmula legal do FEF (e se a contribuio financeira imposta

    ao Estado pela Lei das Finanas Locais integra o conceito constitucional de

    "obrigao decorrente de lei"), ou se, pelo contrrio, as autarquias tm

    apenas direito a uma transferncia financeira anual, sem que em tal direito

    se compreenda, ao mesmo ttulo, a observncia da concreta frmula de

    clculo contida na Lei n 1/87 e ora alterada pela Lei n 2/92, no

    declarando a inconstitucionalidade da norma com esse fundamento.

    12 Proferido em 11 de novembro de 1992, no mbito do Processo n. 120/92.

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    15

    Esta soluo pressupe, naturalmente, que a Lei das Finanas Locais no

    seja qualificada como lei de valor reforada, na linha do que o Tribunal

    Constitucional entendeu no aresto acima citado.

    Refira-se que neste Acrdo n. 358/92 o Tribunal Constitucional discutiu

    se a Lei do Oramento pode alterar a Lei das Finanas Locais no que se

    refere frmula do clculo do Fundo de Equilbrio Financeiro, tendo

    concludo positivamente, pelos argumentos acima sumariamente expostos,

    situao que se afigura bem diferente daquela em que, sem proceder a

    qualquer alterao da Lei das Finanas Locais, a Lei do Oramento pura e

    simplesmente omita a inscrio das verbas a transferir para os municpios.

    Neste caso, tambm me parece que no se trata de uma suspenso

    implcita da Lei das Finanas Locais, pelo que a Lei do Oramento de

    Estado seria inconstitucional por violao do disposto no nmero 2 do artigo

    105. da Constituio.

    Existe, contudo, um aspeto comum s duas situaes e que se prende

    com a existncia de eventual responsabilidade civil extracontratual do

    Estado por ato da funo legislativa (a Lei do Oramento), quer esta

    decorra diretamente da sua inconstitucionalidade por violao do disposto

    no nmero 2 do artigo 105. da Constituio, quer por violao do princpio

    da tutela da confiana.

    De facto, mesmo admitindo que a Lei do Oramento pode alterar ou

    revogar legislao anterior que crie obrigaes de realizao da despesa,

    haver lugar a responsabilidade civil do Estado quando da decorra uma

    violao da proteo da confiana dos potenciais beneficiados, sejam

    entidades pblicas ou particulares13.

    13 J anteriormente defendi soluo semelhante, por entender que a vinculao

    s obrigaes legais s pode ser afastada se essa legislao for revogada e sempre

    ponderando os direitos e expectativas legtimas dos sujeitos afetados. V.

    ALEXANDRA LEITO, Os poderes do Executivo em matria oramental, relatrio de

    mestrado, indito, 1997, pg. 122.

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    16

    Por isso mesmo, o Tribunal Constitucional declarou a

    inconstitucionalidade da Lei do Oramento por violao do princpio da

    confiana quando so postos em causa direitos que resultam de (outras)

    leis, designadamente, nos Acrdos n. 303/9014 e n. 187/201315.

    No acompanho, por isso, TIAGO DUARTE quando afirma que a tutela da

    confiana no deve operar, enquanto fundamentadora de um desvalor

    constitucional, no caso de determinada lei ter sido aprovada sem que

    tenho ocorrido ainda a aceitao oramental da mesma16.

    Alis, a ser assim, as obrigaes decorrentes da lei e

    consequentemente os direitos correlativos a essas obrigaes teriam uma

    proteo muitssimo menor do que as que resultam de contratos celebrados

    pela Administrao Pblica.

    Daqui se conclui que a natureza formal e materialmente legislativa da Lei

    do Oramento, que aqui se reafirma, no afasta a imposio de o

    oramento proceder cobertura das despesas resultantes de leis anteriores,

    apesar de, quando estas no tenham valor reforado, as poder revogar

    expressamente e sempre sem prejuzo da responsabilidade civil por ato da

    funo legislativa.

    3. A determinao do mbito da jurisdio administrativa em matria de

    responsabilidade civil do Estado por ato da funo legislativa passa pela

    distino clara entre as aes (administrativas comuns) de efetivao dessa

    responsabilidade e as aes de impugnao de atos legislativos. Do cotejo

    da alnea g) do nmero 1 e do nmero 2 do artigo 4. do ETAF resulta que os

    tribunais administrativos so competentes para conhecer das primeiras

    aes mas no das segundas.

    14 De 21de novembro de 1990, proferido no mbito do Processo n. 129/89. 15 De 5 de maio de 2013, proferido no mbito dos Processos apensados n. 2/2013,

    n. 5/2013, n. 8/2013 e n. 11/2013. 16 V. TIAGO DUARTE, op. cit., pg. 241.

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    17

    A delimitao do objeto destes dois tipos de aes nem sempre se

    afigura clara, como, alis, ficou patente no processo sub judice, atendendo

    s decises tomadas pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada

    e pelo Tribunal Central Administrativo Sul, que o Supremo Tribunal

    Administrativo revogou.

    Efetivamente, o nmero 1 do artigo 15. do RRCEE estabelece que a

    responsabilidade pelo exerccio da funo legislativa ocorre quando danos

    anormais e no especiais17 - resultem da prtica de atos desconformes

    com a Constituio, o direito internacional, o direito comunitrio ou ato

    legislativo de valor reforado, o que implica que o tribunal faa sempre um

    juzo sobre essa desconformidade quando aprecia uma ao de

    responsabilidade civil.

    No entanto, esse juzo ocorre incidentalmente para efeitos de considerar

    procedente ou improcedente o pedido indemnizatrio e no em via

    principal.

    Sendo assim, a disposio do artigo 15. do RRCEE no contraditria

    com a delimitao do mbito da jurisdio administrativa tal como

    traada pelo artigo 4. do ETAF, uma vez que o nmero 2 deste preceito

    exclui daquele mbito apenas a apreciao de litgios que tenham por

    objeto a impugnao direta e principal - de atos praticados no exerccio

    da funo poltica e legislativa.

    Se, pelo contrrio, o objeto da ao um pedido indemnizatrio

    fundado na responsabilidade civil por ato da funo legislativa como

    acontece no caso sub judice -, a competncia expressamente cometida

    aos tribunais administrativos pela alnea g) do nmero 1 do artigo 4. do

    ETAF.

    17 Como nota CARLOS CADILHA, Regime da responsabilidade civil extracontratual

    do Estado e demais entidades pblicas, Coimbra, 2008, pg. 274, a exigncia da

    especialidade do dano, que se traduz na incidncia sobre um grupo particular de

    cidados, seria contraditria com a circunstncia de as normas legais serem, por

    via de regra, gerais e abstratas.

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    18

    Alis, a apreciao incidental da constitucionalidade das normas um

    poder-dever de qualquer tribunal, em sede de fiscalizao difusa da

    constitucionalidade, nos termos do artigo 204. da Constituio. por isso

    que o nmero 2 do artigo 15. do RRCEE equipara a deciso do tribunal que

    se pronuncie sobre a inconstitucionalidade ou ilegalidade de norma jurdica

    ou sobre a sua desconformidade com conveno internacional, para

    efeitos de responsabilidade civil, deciso de recusa de aplicao ou a

    deciso de aplicao de norma cuja inconstitucionalidade, ilegalidade ou

    desconformidade com conveno internacional haja sido suscitada

    durante o processo, consoante o caso18. Assim, existe recurso para o Tribunal

    Constitucional de acordo com o disposto no artigo 280. da Constituio e

    no nmero 1 do artigo 70. da Lei Orgnica do Tribunal Constitucional.

    Por outro lado, a distino entre apreciao direta e apreciao

    incidental da validade de atos (legislativos e/ou administrativos) acolhida

    no artigo 38. do CPTA quando admite, designadamente no domnio da

    responsabilidade civil, que os tribunais conheam a ttulo incidental, da

    ilegalidade de um ato administrativo que j no possa ser impugnado

    (nmero 1), mas salientando que essa ao no pode ser utilizada para

    obter o efeito que resultaria da anulao do ato inimpugnvel (nmero 2).

    exatamente esta lgica que subjaz apreciao incidental da validade de

    atos legislativos para efeitos de efetivao da responsabilidade do Estado.

    18 Neste sentido v. CARLOS CADILHA, op. cit., pg. 275, e RUI MEDEIROS, A

    responsabilidade civil pelo ilcito legislativo no quadro da reforma do Decreto-Lei n.

    48.051, in Cadernos de Justia Administrativa, n. 27, 2001, pg. 25. Contra pronuncia-se MARIA LCIA AMARAL, Responsabilidade por danos decorrentes do exerccio da funo poltica e legislativa in Cadernos de Justia Administrativa, n. 40, 2003, pg. 45, por considerar que na ao indemnizatria o juiz efetua uma

    qualificao jurdica dos factos, enquanto a fiscalizao difusa da

    constitucionalidade envolve uma estrita questo de direito. Refira-se que, pelo

    contrrio, quando estiver em causa uma omisso legislativa, o nmero 5 do artigo

    15. exige uma prvia deciso do Tribunal Constitucional quanto verificao de

    uma omisso inconstitucional, soluo que aplaudida por CARLOS CADILHA, op.

    cit., pg. 295, e por MARIA LCIA AMARAL, op. cit., pg. 43, e criticada por RUI

    MEDEIROS, op. cit., pg. 25, que considera inconstitucional por violao do artigo

    22. da Constituio qualquer soluo que restrinja a obrigao de indemnizar aos

    casos em que tenha havido prvia declarao de inconstitucionalidade com fora

    obrigatria geral.

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    19

    No que respeita concretamente Lei do Oramento de Estado,

    defendi supra que a no inscrio de despesas que sejam impostas por lei

    viola o disposto no nmero 2 do artigo 105. da Constituio, embora a

    Assembleia da Repblica possa incluir na prpria Lei do Oramento normas

    que alterem ou revogam essa legislao anterior.

    Ora, a responsabilidade civil do Estado por ato da funo legislativa

    pode existir em qualquer uma das duas situaes.

    No primeiro caso, a Lei do Oramento viola a Constituio e a Lei de

    Enquadramento Oramental por no cumprir as obrigaes decorrentes da

    lei, preenchendo-se, assim, o pressuposto do nmero 1 do artigo 15. do

    RRCEE.

    No segundo caso, s haver responsabilidade se a alterao ou a

    revogao da legislao anterior violar o princpio da proteo da

    confiana legtima, acabando por, dessa forma, ser tambm desconforme

    com a Constituio. Esta situao implica, assim, uma ponderao

    valorativa muito mais complexa do que o caso anterior.

    Alm destas duas situaes, poder-se-ia ainda discutir se pode haver

    uma obrigao de indemnizar pelo sacrifcio, nos termos do artigo 16. do

    RRCEE, quando um ato legislativo, apesar de vlido, impe encargos ou

    causa prejuzos anormais e especiais a determinados sujeitos por razes de

    interesse pblico. A maioria da doutrina pronuncia-se negativamente

    quanto a esta possibilidade quer antes, quer depois da entrada em vigor do

    RRCEE19, que, alis, no consagrou essa soluo, embora tambm no a

    19 V. CARLOS CADILHA, op. cit., pg. 273 e MARIA LCIA AMARAL, op. cit., pg. 41.

    Apesar de no se pronunciar expressamente sobre a questo, SRVULO CORREIA,

    Da sede do regime de responsabilidade objetiva por danos causados por normas emitidas no desempenho da funo administrativa", in Revista da Ordem dos

    Advogados, Lisboa, ano 61, n. 3, 2001, pgs. 1313 e seguintes, defendeu que os

    regulamentos administrativos podem originar uma obrigao de indemnizao

    pelo sacrifcio mesmo no quadro do Decreto-Lei n. 48051, de 21 de novembro de

    1967, mas f-lo por aproximao figura do ato administrativo, acentuando o

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    20

    afaste expressamente. De facto, embora o artigo 15. seja claro quanto

    limitao da responsabilidade apenas aos danos provocados por atos

    legislativos ilcitos, o artigo 16. permitiria uma leitura mais abrangente que,

    contudo, no parece ter sido inteno do legislador consagrar.

    Em qualquer caso, a competncia para conhecer dos litgios emergentes

    da responsabilidade civil por ato legislativo est sempre cometida aos

    tribunais administrativos, nos termos da alnea g) do nmero 1 do artigo 4.

    do ETAF, implicando uma apreciao incidental da validade do ato

    legislativo que no se confunde com a impugnao direta do mesmo, esta

    sim, subtrada do mbito da jurisdio administrativa pelo disposto no

    nmero 2 do artigo 4. do mesmo diploma.

    4. Finalmente, cumpre analisar se existem algumas especificidades

    decorrentes do facto de o lesado ser um municpio, que pretende obter o

    pagamento de uma indemnizao por parte do Estado, suscitando-se,

    assim, um litgio interadministrativo.

    No Parecer do Ministrio Pblico, que propugnou pela no admisso do

    recurso de revista e pela sua improcedncia, referido, entre outros

    argumentos, que [D]e resto, para que fosse aplicvel o n 1 do art 15

    citado, ao caso vertente, invocada violao de normas constitucionais ou

    de valor reforado teria que corresponder, cumulativamente, a

    suscetibilidade de leso de posies jurdico-substantivas de interessados

    particulares. () No caso vertente, apenas foram invocados danos para o

    Municpio da Horta alis equivalentes ao montante da verba no

    recebida.

    Esta afirmao pe em causa o direito de um municpio a ser

    indemnizado por danos produzidos na sua esfera jurdica por atos legislativos

    (e, eventualmente, tambm atos da funo administrativa praticados por

    facto de o regulamento, apesar de ter natureza normativa, se inscrever na funo

    administrativa.

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    21

    outras entidades pblicas) e, portanto, defende a sua ilegitimidade ativa

    para intentar uma ao de responsabilidade contra o Estado.

    No posso acompanhar este entendimento.

    Em primeiro lugar, as relaes jurdicas interadministrativas (entre pessoas

    coletivas pblicas ou entre rgos administrativos20) so relaes jurdicas

    administrativas.

    No cabe na economia do presente artigo analisar o conceito de

    relao jurdica administrativa, mas de salientar que toda a doutrina

    unnime em considerar que esta tanto pode estabelecer-se entre uma

    entidade integrada na Administrao Pblica e um particular, como entre

    duas entidades pblicas e at, em certos casos, entre dois particulares21.

    O contedo desta relao jurdica pode ser muito diverso, incluindo

    direitos e obrigaes para ambos os sujeitos, pblicos ou privados, e

    constituir-se atravs de ato, de contrato (interadministrativo) ou resultar de

    qualquer outro facto juridicamente relevante22.

    Ora, o conhecimento dos eventuais litgios que ocorram no quadro

    dessas relaes jurdicas so da competncia dos tribunais administrativos,

    20 Sobre o conceito de pessoa coletiva pblica e sobre a existncia de relaes

    jurdicas interorgnicas, v. ALEXANDRA LEITO, Contratos interadministrativos,

    Coimbra, 2011, pgs. 29 e seguintes. 21 V., por todos, SRVULO CORREIA, As relaes jurdicas de prestao de

    cuidados pelas Unidades de Sade do Servio Nacional de Sade, in Direito da Sade e da Biotica, obra coletiva, Lisboa, 1996, pg. 18, que define a relao

    jurdica administrativa como o sistema complexo de situaes jurdicas ativas e passivas, interligadas em termos de reciprocidade, regidas pelo Direito

    Administrativo e tituladas pela Administrao e por particulares ou apenas por

    diversos plos finais de imputao pertencentes prpria Administrao. 22 Como refere VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca do Ato Administrativo Perdido,

    Coimbra, 1996, pgs. 193 e 194, as relaes jurdicas administrativas so as concretas ligaes entre os privados e as autoridades administrativas (ou entre as

    prprias autoridades administrativas), criadas por um qualquer facto (atuao da

    Administrao Pblica ou do particular, contrato, evento natural, etc) juridicamente

    relevante, e tendo por contedo direitos e deveres previstos na Constituio e nas

    leis, ou decorrentes de contrato, ou de atuao unilateral da Administrao.

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    22

    nos termos do nmero 3 do artigo 212. da Constituio, uma vez que se

    inscrevem numa relao administrativa, critrio que a Lei Fundamental

    erigiu como delimitador do mbito da jurisdio administrativa e fiscal.

    A constituio de relaes jurdicas interadministrativas potenciadoras de

    conflitos entre entidades pblicas , alis, uma decorrncia direta e

    salutar da existncia de um pluralismo de interesses pblicos que se

    repercute no modelo de organizao administrativa. A referncia a

    interesses pblicos (no plural) pode traduzir duas realidades distintas: por

    um lado, a diversidade de fins ou objetivos dentro de um interesse pblico

    nacional e, por outro, a existncia de interesses pblicos de diferentes tipos

    (nacionais, locais, associativos, entre outros).

    Esta diversidade particularmente visvel relativamente s autarquias

    locais, que prosseguem interesses pblicos prprios de uma coletividade

    (nmero 2 do artigo 235. da Constituio) que muitas vezes colidem com o

    interesse nacional, como, alis, normal num Estado democrtico e plural23.

    No causa, assim, qualquer estranheza que uma autarquia local intente

    uma ao contra o Estado, seja qual for o objeto da mesma e a natureza

    do litgio.

    verdade que o nmero 1 do artigo 15. do RRCEE estabelece que o

    Estado responsvel pelos danos anormais causados aos direitos ou

    interesses legalmente protegidos dos cidados por atos que, no exerccio

    da funo poltico-legislativa, pratiquem em desconformidade com a

    Constituio, o direito internacional, o direito comunitrio ou ato legislativo

    de valor reforado, o que parece limitar essa responsabilidade aos danos

    provocados na esfera jurdica dos cidados.

    23 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituio da Repblica Portuguesa

    anotada, volume II, Coimbra, 2010, pgs. 715 a 718, salientam que as autarquias

    locais so dados orgnico-sociolgicos preexistentes prpria conformao constitucional da organizao do poder poltico, e tambm um pilar da organizao democrtico-constitucional do Estado.

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    23

    No pode, contudo, deixar de se fazer uma interpretao extensiva

    deste segmento da norma, equiparando queles no s as pessoas

    coletivas privadas, como tambm as entidades pblicas que sejam lesadas

    por um ato da funo legislativa. Em favor desta soluo milita o disposto

    no nmero 2 do artigo 12. da Constituio, que, em matria de direitos

    fundamentais, determina que as pessoas coletivas gozam dos direitos e

    esto sujeitos aos deveres compatveis com a sua natureza. A doutrina tem

    discutido se o preceituado nesta norma constitucional se aplica tambm s

    pessoas coletivas pblicas. Na linha de GOMES CANOTILHO e VITAL

    MOREIRA, parece-me que, a resposta positiva quando se trate de

    defender os direitos e a autonomia das pessoas coletivas pblicas

    infraestaduais, especialmente os entes exponenciais de interesses sociais

    organizados, perante o Estado propriamente dito (pense-se, por exemplo,

    no direito de um municpio, de uma regio autnoma ou de uma

    Universidade face ao Estado)24.

    Mas a verdade que mesmo Autores que recusam a possibilidade de as

    entidades pblicas e, concretamente, as autarquias locais serem titulares

    de direitos subjetivos, defendem que as mesmas tm legitimidade ativa

    para intentar aes contra o Estado, incluindo aes de impugnao de

    regulamentos e de atos administrativos e aes de efetivao da

    responsabilidade civil, nos termos do artigo 22. da Constituio,

    fundamentando essa legitimidade na violao de interesses legalmente

    protegidos25.

    24 V. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, op. cit., volume I, pg. 330. Contra

    pronunciam-se JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituio Portuguesa

    Anotada, Tomo I, 2. Edio, Coimbra, 2010. 25 V. ANDR FOLQUE, A tutela administrativa nas relaes entre o Estado e os

    municpios (condicionalismos constitucionais), Coimbra, 2004, pg. 405. Sem prejuzo

    de, obviamente, concordar com esta posio no que respeita legitimidade ativa

    dos municpios, no concordo com a respetiva fundamentao, desde logo

    porque acompanho as crticas de VASCO PEREIRA DA SILVA, op. cit., Coimbra, 1996,

    pgs. 281 e seguintes, distino entre direitos subjetivos e interesses legtimos,

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    24

    Alis, este preceito, relativo responsabilidade das entidades pblicas,

    no restringe o direito indemnizao por danos causados pela atuao

    das entidades pblicas quando atuam no exerccio das suas funes aos

    casos de violao de direitos, liberdades e garantias, antes alarga-o a todas

    as situaes em que dessa atuao resultem prejuzos para outrem.

    Sendo assim, no se vislumbra qualquer razo para afastar a

    possibilidade de as autarquias locais intentarem aes de responsabilidade

    civil por atos da funo legislativa contra o Estado, na linha do

    entendimento do Supremo Tribunal Administrativo no acrdo em apreo e

    noutros processos tambm relativos Lei do Oramento26.

    Efetivamente, a vinculao do oramento s obrigaes legais e

    contratuais um imperativo constitucional que decorre da prpria noo

    de Estado de Direito democrtico, uma vez que o Estado no pode deixar

    de honrar os compromissos assumidos perante os particulares ou outras

    entidades pblicas27.

    26 V., por exemplo, o Acrdo de 20 de junho de 2013, proferido no Processo n.

    0798/12, in www.dgsi.pt. 27 Como j afirmei antes. V. ALEXANDRA LEITO, Os poderes, cit., pg. 118.

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    25

    A deciso do procedimento em prazo razovel:

    uma nova responsabilidade administrativa

    Anotao ao Acrdo do TCA-Sul, de 11 de Abril de 2013 (proc. 07084/11)

    Consultar o acrdo aqui*

    Carla Amado Gomes

    Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

    O novo regime de responsabilidade civil extracontratual das entidades

    publicas, aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro1 (de ora diante,

    RRCEE) veio alterar sensivelmente no que mais directamente releva nesta

    nota o modelo de responsabilizao das entidades encarregadas da

    prossecuo de funes materialmente administrativas. As novidades (face

    ao expressamente consagrado no anterior regime, de 1967) vieram, em

    parte, acolher solues jurisprudencialmente construdas como a

    imputao ao funcionamento anormal do servio e, em outra parte,

    aprofundar o sentido do radical constitucional do instituto da

    responsabilidade dos poderes pblicos (na funo administrativa) como a

    opo da responsabilizao da pessoa colectiva por falta leve. A

    impresso global do novo regime (mais uma vez: no tocante funo

    administrativa) a de franca abertura possibilidade de ressarcimento de

    *http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/23d30c25295e194

    880257b50003d57e4?OpenDocument&Highlight=0,07084%2F11 1 Alterado pela Lei 38/2008, de 17 de Julho.

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    26

    danos provocados pela mquina administrativa, com solues de claro

    favorecimento dos lesados2.

    O caso em anlise neste aresto no constitui propriamente um exemplo

    de aplicao de alguma soluo inovatria do RRCEE desde logo, o

    referencial jurdico ainda o do diploma anterior (porque os factos datam

    de 2005). Trata-se de um pedido de indemnizao por facto ilcito, que

    reside, segundo o autor, na demora excessiva de deciso de um

    procedimento concursal sediado nos artigos 2 e 6 do DL 48.051. O que

    chama a ateno neste acrdo reside na causa da leso: no se prende

    com a emisso (ou omisso) de acto ou regulamento ilcitos, nem com a

    prtica (ou omisso) de actos materiais ilegais, mas antes com o

    desenvolvimento, alegadamente moroso em demasia, de um

    procedimento administrativo, que gerou uma deciso lesiva, por tardia.

    Esta hiptese de imputao no provocaria curiosidade se se tratasse da

    prolaco de uma sentena: conhecida a jurisprudncia constante do

    Tribunal de Estrasburgo sobre atraso na administrao da justia, com base

    no direito a uma deciso em prazo razovel que se extrai do artigo 6/1 da

    Conveno Europeia dos Direitos do Homem (=CEDH). Extrapolar esta

    hiptese para um procedimento administrativo, todavia, merece referncia,

    porque o que est em causa no um produto mas um processo, no

    um acto mas um conjunto sequencial de diligncias, jurdicas e materiais

    que deve obedecer a uma certa racionalidade e celeridade; enfim,

    estamos perante um substracto dinmico sobre o qual recai um juzo de

    adequao que pode legitimar responsabilizao por facto ilcito.

    Tal como se sublinha no aresto, esta extrapolao no se faz sem rede:

    o referencial primeiro a CEDH, que foi absorvida pela jurisprudncia do

    2 Como j tivemos oportunidade de observar em textos anteriores: Carla AMADO

    GOMES, A responsabilidade civil extracontratual da Administrao por facto ilcito:

    reflexes avulsas sobre o novo regime da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, e A

    responsabilidade administrativa pelo risco na Lei 67/2007, de 31 de Dezembro: uma

    soluo arriscada? in Textos dispersos de Direitos da Responsabilidade civil

    extracontratual da entidades pblicas, Lisboa, 2010, pp. 47 segs (esp. 60-61 ) e 83

    segs (esp.103-111 ), respectivamente.

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    27

    Tribunal de Justia da Unio e, depois pela Carta dos Direitos Fundamentais

    da Unio Europeia (=CDFUE). O artigo 41 da CDFUE, sob a epgrafe Direito

    boa administrao, absorveu e alargou o direito a um processo

    equitativo, trazendo-o para o procedimento administrativo e esclarecendo

    que uma das suas dimenses o direito a uma deciso em prazo razovel.

    Conforme j tivemos oportunidade de assinalar anteriormente3, a

    jurisprudncia j apontava nesse sentido. Desde o Acrdo Technishe

    Universitt Mnchen, de 21 de Novembro de 1991 (caso C-269/90), que o

    Tribunal do Luxemburgo vem realando a necessidade de observncia de

    garantias procedimentais como a obrigao, para a instituio

    competente, de examinar, com cuidado e imparcialidade, todos os

    elementos relevantes do caso em apreo, o direito do interessado a dar a

    conhecer o seu ponto de vista, bem como o direito a uma fundamentao

    suficiente da deciso (consid. 14). Este conjunto de princpios, que a

    jurisprudncia mais tarde sintetizou sob a frmula de princpio da solicitude

    (cfr. o Acrdo do Tribunal Geral, de 18 de Setembro de 1995, caso T-

    167/94), afigura-se determinante em domnios de competncia

    predominantemente discricionria e constitui a raiz da juridicizao do

    princpio da boa administrao. A esta vertente veio depois acrescer o

    reconhecimento de uma dimenso temporal da solicitude administrativa,

    em claro paralelo com o artigo 6/1 da CEDH, numa sntese que

    corresponde ao macro-conceito de boa administrao que hoje vemos

    plasmado no artigo 41 da Carta4.

    3 Carla AMADO GOMES, A boa administrao na reviso do CPA: depressa e

    bem, in Direito & Poltica, n 4, 2012, pp. 142 segs. 4 J aplicado pelo Tribunal de Justia no Acrdo de 15 de Julho de 2004, caso C-

    501/00, onde obtemperou que incumbia Comisso, de acordo com o princpio da boa administrao, adoptar uma deciso definitiva num prazo razovel a

    contar da recepo das observaes do Estado-Membro em causa, das partes

    interessadas e eventualmente dos outros Estados-Membros. Com efeito, uma

    durao excessiva do procedimento de exame susceptvel de aumentar, para o

    Estado em causa, a dificuldade de refutar os argumentos da Comisso e de violar

    assim os seus direitos de defesa (consid. 52).

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    28

    Este referencial da CDFUE, hoje plenamente vinculante por fora da

    recepo operada pelo Tratado de Lisboa (em vigor desde Dezembro de

    2009), constitui uma ncora firme do direito deciso administrativa em

    prazo razovel, numa juridicizao que o transferiu de um plano da mera

    gesto de eficincia para um patamar de eventual fonte de

    responsabilizao por irrazoabilidade do tempo de deciso. Deve, no

    entanto, sublinhar-se que, em 2004, o STA analisou um outro caso de

    alegados danos provocados por violao do direito deciso em prazo

    (procedimental razovel), utilizando apenas o artigo 6/1 da CEDH5 alm

    dos artigos 2 e 6 do DL 48.051. O caso era mais complexo (e mais gritante:

    um particular aguardou mais de 3 anos por uma deciso de licenciamento

    de uma barragem de rega cuja construo seria apoiada por um

    financiamento comunitrio), pois envolvia, alm da violao do citado

    direito (que no foi dada por provada), alegadas afrontas ao princpio da

    confiana e ao direito informao procedimental. O STA, apesar de ter

    reconhecido haver zonas de penumbra na actuao administrativa em

    causa, no ficou convencido de que a Administrao tivesse praticado

    actos desnecessrios, com isso se desviando do padro de diligncia

    tcnica exigvel e incorrendo em ilicitude geradora de responsabilidade,

    tendo absolvido a R do pedido.

    No aresto em apreo, to pouco se admitiu a violao do direito

    deciso em prazo razovel mas a existncia deste direito no foi

    contestada. O tribunal, alm dos artigos 2 e 6 do regime de 1967, dos

    artigos 10, 57 e 58 do Cdigo do Procedimento Administrativo e de

    disposies especificamente aplicveis relativas ao procedimento em

    causa, invocou como reforo os artigos 6/1 da CEDH, 41/1 da CDFUE e 17

    do Cdigo Europeu de Boa Conduta. Para a densificao do conceito de

    prazo razovel, o TCA valeu-se da jurisprudncia do Tribunal de Estrasburgo

    sobre o direito deciso judicial em prazo razovel, analisando

    5 Acrdo do STA, I, de 2 de Maro de 2004, proc. 01531/03 (disponvel em

    http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/19d8c4d2f14f9a5b

    80256e4e004eacc2?OpenDocument&Highlight=0,01531%2F03%20)

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    29

    detidamente o tempo transcorrido em cada fase procedimental, as

    diligncias procedimentais, a complexidade do procedimento, a eficincia

    dos servios e a conduta do lesado. O Tribunal concluiu que o facto de um

    procedimento concursal para provimento de 123 tcnicos informticos de

    grau 2 na carreira de informtica ter demorado quase um ano (mais

    precisamente: 11 meses e 19 dias) a chegar ao seu termo no configura um

    caso de violao do prazo razovel.

    No tanto nossa inteno discutir aqui o acerto do juzo do TCA, mas

    sobretudo iluminar a figura do atraso na deciso do procedimento como

    possvel causa de imputao de responsabilidade Administrao por

    facto ilcito; no entanto, no podemos deixar de nos impressionar com o

    perodo de quase um ano transcorrido desde a abertura do concurso de

    provimento at publicao da lista dos nomeados. certo que houve

    reclamaes que tero atrasado a tomada de deciso em cerca de um

    ms e meio, e que cada publicao em Dirio da Repblica leva cerca de

    vinte dias (houve quatro) mas o jri ter precisado de mais de quatro meses

    para elaborar a lista dos candidatos admitidos e excludos parece-nos,

    muito francamente, um exagero. E mesmo sem olhar aos detalhes,

    cumpre reconhecer que uma estrutura administrativa que se pretende

    eficiente no se compagina com procedimentos concursais de provimento

    de pessoal que demoram quase um ano a realizar-se

    Num acrdo muito citado em tema de atraso na administrao da

    justia (o acrdo de 9 de Outubro de 2008, proc. 0310/08)6, o STA apreciou

    um caso em que a aco declarativa foi apresentada em 1995, a

    subsequente execuo foi desencadeada em 1997 e, em 2001, os

    autores/exequentes ainda no haviam logrado obter a plena execuo da

    sentena. Esse atraso provocou-lhes danos morais, que imputaram

    6 Sobre a responsabilidade do Estado por atraso na administrao da justia veja-

    se, por ltimo, Ricardo PEDRO, Contributo para o estudo da responsabilidade civil

    extracontratual do Estado por violao do direito a uma deciso em prazo razovel

    ou sem dilaes indevidas, Lisboa, 2011.

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    30

    demora excessiva do processo executivo. O STA percorreu cuidadosamente

    cada trmite processual (uma metodologia identicamente seguida pelo

    TCA, no acrdo sub judice) mas apontou a necessidade de se adoptar, na

    determinao do prazo razovel, um critrio de razoabilidade, o que nos

    remete para uma anlise global, de conjunto da situao processual dos

    autos em que o demandante se queixa do atraso e no para os seus

    pormenores e para os prazos de cada fase e momento processual.

    Utilizando esta anlise do tempo global, o STA reconheceu razo aos

    autores, sublinhando que (realados nossos):

    por organizao deficiente dos servios em que pontuam dois

    meses de demora da secretaria na abertura da concluso do

    processo ao juiz aps esgotado o prazo para realizao da prova

    pericial, e um ano em que os autos ficaram parados a aguardar

    despacho do juiz, houve um atraso injustificado sensvel e que afectou

    de modo claro o bom andamento do servio e contribuiu para um

    atraso global, que por este motivo se deve considerar excessivo e

    desrazovel, caracterizando-se assim o elemento de ilicitude.

    A culpa resulta da ilicitude e do prprio facto de o servio no

    funcionar de acordo com os standards de qualidade e eficincia que

    so esperados e constituem uma obrigao do Estado de Direito

    perante os cidados.

    No tendo baseado a sua deciso no RRCEE (que apenas no incio do

    ano entrara em vigor), o STA parece t-lo j como pano de fundo destas

    consideraes: pense-se no artigo 12 do RRCEE7, que remete para o regime

    da responsabilidade por facto da funo administrativa a responsabilizao

    7 Sobre o artigo 12 do RRCEE, vejam-se: Carla AMADO GOMES, A

    responsabilidade civil do Estado por actos praticados no mbito da funo

    jurisdicional no quadro da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, in Textos dispersos de

    Direitos da Responsabilidade civil extracontratual das entidades pblicas, Lisboa,

    2010, pp. 217 segs; Carlos CADILHA, Regime da responsabilidade civil

    extracontratual do Estado e demais entidades pblicas, Anotado, 2 ed., Coimbra,

    2011, pp. 236 segs (anotao ao artigo 12); Lus FBRICA, in Comentrio ao Regime

    da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades pblicas,

    Lisboa, 2013, pp. 319 segs (comentrio ao artigo 12).

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    31

    do Estado-juiz em caso de violao do direito a uma deciso judicial em

    prazo razovel, bem como no disposto no artigo 7/4 do RRCEE, que define

    funcionamento anormal do servio como a violao de padres mdios

    de resultado cuja observncia deveria ter levado os servios a agir de

    forma a evitar danos. Ou seja, o atraso irrazovel e injustificado na

    prolaco de uma deciso jurisdicional hoje claramente identificado com

    um exemplo de culpa do servio judicial.

    Voltando deciso que motiva esta nota, o atraso irrazovel e

    injustificado na produo da deciso procedimental deve configurar,

    paralelamente, um exemplo de funcionamento anormal do servio salvo

    se se verificar, cristalinamente, incria manifesta de determinado(s)

    agente(s), a qual afastar o anonimato da culpa e a destacar da

    ilicitude objectiva. Por outras palavras, julgamos que os tribunais dispem

    hoje de um mecanismo responsabilizante da morosidade administrativa que

    entrelaar, em regra, o direito deciso em prazo razovel e o ttulo de

    imputao anormal funcionamento do servio, nos termos do artigo 7/3

    e 4 do RRCEE. Um prazo de deciso que, globalmente, ultrapasse os

    cnones de eficincia, os padres mdios de resultado razoavelmente

    exigveis de um servio, configura um facto ilcito e pode sustentar

    demandas de responsabilidade dos particulares lesados, uma vez realizada

    a prova do dano e do nexo de causalidade8.

    Uma ltima nota para sublinhar que a responsabilizao por atraso

    injustificado na emisso da deciso procedimental pressupe que o

    legislador no tenha previsto qualquer forma de trmino ou extino do

    8 Anote-se, por curiosidade que, em Itlia, com a adopo das carte di servizzi

    (cartas de servios), desde 1994, os servios administrativos passaram a contar com

    guias de conduta que estabelecem ndices de resultados de eficincia cuja

    violao, mesmo que no geradora de qualquer dano (na verdade, pode at

    gerar benefcio), implica a atribuio de uma quantia ao utente. Trata-se aqui, no

    de responsabilizao, mas de punio, funcionando os utentes como fiscais do

    bom cumprimento dos standards de actuao cfr. Oriol MIR PUIGPELAT, La responsabilidade patrimonial de la Administracin. Hacia un nuevo sistema, Madrid,

    2002, pp. 267-270.

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    32

    procedimento alm da deciso. O ponto que queremos ressaltar que

    figuras como o deferimento tcito permitem ultrapassar situaes de inrcia

    administrativa, colocando o destinatrio do acto a salvo de penalizaes

    por atraso embora, normalmente e em contrapartida, onerem

    excessivamente os interesses pblicos, colectivos e de terceiros, pela

    ausncia de ponderao que, em regra, acarretam. J a fixao de prazos

    de caducidade procedimental, quer relativos a procedimentos de iniciativa

    oficiosa quer externa, resolvem o problema de raiz9 embora no evitem

    pedidos indemnizatrios por violao do dever de decidir quando a

    demora na actuao implique caducidade, em procedimentos de

    iniciativa externa (maxime, se em domnios de vinculao legal prtica do

    acto).

    9 Sobre alguns problemas que a soluo da caducidade, parcialmente

    consagrada no Projecto de reviso do Cdigo do Procedimento administrativo,

    acarreta, Carla AMADO GOMES, O projecto de reviso do CPA: breves notas,

    muito tpicas, entre a satisfao e o espanto, disponvel em

    http://www.icjp.pt/sites/default/files/papers/cpa-fdul.pdf [ponto c)] e em curso

    de publicao na RMP.

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    33

    Responsabilidade contratual de um estabelecimento

    integrado no Servio Nacional de Sade

    Anotao ao Acrdo do TCA-Norte, de 30 de Novembro de 2012 (proc.

    01425/04.8BEBRG)

    Consultar o acrdo aqui *

    Cludia Monge

    Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,

    Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

    Advogada

    I. Sumrio do Acrdo; enquadramento

    o seguinte o sumrio do Acrdo do Tribunal Central Administrativo do

    Norte, de 30 de Novembro de 2012 (Processo n. 01425/04.8BEBRG),

    conforme elaborado pelo Juiz Relator e que, por simplicidade e em sede de

    enquadramento, assim se reproduz:

    1. No domnio da prestao dos servios de sade mais adequado

    realidade e conduz a solues mais justas, a aplicao do regime da

    responsabilidade contratual do que o regime da responsabilidade

    extracontratual, pois estamos perante uma situao de facto equivalente

    *http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/6346f0d05b25c15

    880257aca00629548?OpenDocument.

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    34

    de um contrato de prestao de servios art. 1154. do Cdigo Civil e, por isso, a justificar a mesma proteo legal.

    2. Aplica-se, por isso, neste domnio, a presuno de culpa a que alude

    o artigo 799., n. 1, do Cdigo Civil, no caso de deficiente prestao do

    cuidado de sade, cabendo ao hospital demandado, no caso, provar

    que os seus funcionrios usaram de toda a diligncia e que s por

    circunstncias imprevisveis, de caso fortuito ou de fora maior, uma

    criana nasceu com leses cerebrais irreversveis, num parto por cesariana

    que nenhum risco especial apresentava.

    3. Ainda que se entendesse regular o caso o regime extracontratual,

    sempre seria aplicvel a presuno de culpa estabelecida no n. 2 do

    artigo 493. do Cdigo Civil, pois que uma interveno cirrgica de parto

    por cesariana uma atividade perigosa quer por si mesma, por ser

    invasiva do corpo da me e pela manipulao de um corpo

    extremamente frgil como o da criana ao nascer, quer pelos meios

    utilizados, instrumentos e substncias com potencialidade letal.

    4. No tendo o hospital demandado feito a referida contraprova, deve

    ressarcir o autor, representado pelos seus pais, pelos danos decorrentes da

    situao de incapacidade a 100% para o trabalho e para qualquer

    atividade, decorrente da paralisia cerebral de que ficou a padecer.

    5. Dado que a vtima no manifesta sinais ou sintomas de sofrimento de

    forma consciente e no ser seguro haver uma avaliao da imagem

    personalizada, de acordo com o relatrio pericial, no se justifica atribuir

    qualquer indemnizao a ttulo de danos morais.

    6. O tribunal no est adstrito aos limites dos pedidos parciais

    formulados pelo autor a ttulo de indemnizao por danos morais e danos

    patrimoniais mas apenas ao montante global pedido, face ao disposto no

    artigo 661. do Cdigo de Processo Civil.

    7. A ttulo de danos emergentes justifica-se fixar, desde logo, nos termos

    do disposto no n. 2 do artigo 564. do Cdigo Civil, uma parcela

    indemnizatria, face necessidade de o autor ter at a fim da sua vida de

    ser acompanhado por terceira pessoa, mostrando-se equitativa a este

    ttulo, face a um perodo de vida expectvel de 70 anos e s especiais

    qualidades exigveis a uma pessoa para fazer esse acompanhamento,

    indemnizao de 200.000 (duzentos mil euros). 8. Ainda a este ttulo de danos emergentes deve ser fixada,

    autonomamente, uma parcela indemnizatria pela perda total de

    capacidade funcional.

    9. Tendo em conta que em termos econmicos este prejuzo se revela,

    por um lado, inferior ao prejuzo resultante da perda de capacidade de

    trabalho mas, por outro lado, esta incapacidade se revelar por todo o

    tempo previsvel de vida do lesado, 70 anos, entende-se equitativo fixar a

    este ttulo o valor indemnizatrio parcelar de 125.000 (cento e vinte cinco mil euros).

    A ttulo de lucros cessantes, pela incapacidade absoluta para o trabalho,

    mostra-se equitativa a parcela indemnizatria de 125.000 (cento e vinte e cinco mil euros), tendo em conta o valor do salrio mnimo vigente em

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    35

    2004, ano da propositura da ao, e um perodo provvel de vida ativa

    de 50 anos.

    Atento o Acrdo assim sumariado, so duas as questes juridicamente

    controvertidas e com efeitos prticos importantes, em particular no que se

    refere ao regime da prova, que gostaramos em especial de discutir: i) a

    natureza contratual ou extracontratual da responsabilidade civil pela

    prestao de cuidados de sade num estabelecimento pblico integrado

    no Servio Nacional de Sade; ii) a qualificao da atividade como

    perigosa para efeitos da aplicao do artigo 493. do Cdigo Civil.

    A evidncia da importncia prtica das questes jurdicas assim

    selecionadas para efeitos da presente anlise resulta do prprio acrdo e

    do voto de vencido e projeto de deciso que o acompanha, de um dos

    juzes do coletivo do Tribunal Central Administrativo do Norte. Para

    comprovar a pertinncia das questes basta compulsar que, de acordo

    com a deciso proferida: por se entender aplicvel o regime de

    responsabilidade civil contratual e aplicvel o artigo 493. do Cdigo Civil e

    consequentemente se afirmar invertido o nus da prova, se concluir que por

    no fazer o Recorrente prova em contrrio como impunham estes regimes;

    por no fazer prova de que os seus funcionrios usaram de toda a

    diligncia e rigor tcnicos e que o evento danoso s ocorreu por caso

    fortuito ou de fora maior, imprevisveis e inultrapassveis; e por entender

    apurados todos os pressupostos da responsabilidade contratual (e tambm

    extracontratual), o Tribunal nega provimento ao recurso e mantm a

    deciso de recorrida de condenao no pagamento de uma

    indemnizao no valor de 450.000 euros.

    Ao passo que o voto de vencido sustenta o provimento do recurso e a

    revogao da sentena recorrida por nele se concluir que AA, em

    representao de seu filho menor PM. , no alegaram e obviamente no

    provaram - o que era seu nus - n.1 do art. 487. do Cdigo Civil - qual a

    causa concreta dos graves danos que o PM. apresentou aquando do

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    36

    nascimento e que persistem e se entender que contrariamente, ao

    entendimento veiculado na sentena recorrida, nosso entendimento que,

    em situaes de responsabilidade extracontratual, diversamente se se

    versasse responsabilidade contratual, por alegada responsabilidade civil por

    alegada negligncia mdica em hospitais pblicos - como o caso dos

    autos - no se verifica a inverso do nus da prova, pois que tal no resulta

    de nenhuma norma jurdica, nem esta tese foi defendida em qualquer

    deciso dos tribunais superiores, v.g, STA, pelo que afirma-se no voto de

    vencido que no existindo esta inverso do nus da prova, no podemos -

    pese embora a situao objetivada nos autos - concluir pela

    responsabilidade do Hospital de S. Marcos, Ru/Recorrente nos autos,

    inexistindo, assim, qualquer razo para a sua condenao em qualquer

    montante indemnizatrio, pelo que fica prejudicado o conhecimento

    atinente contabilizao dos danos10.

    II. Da responsabilidade civil como contratual: Aplicao do regime da

    responsabilidade civil contratual; do artigo 799. do Cdigo Civil em

    especial;

    Importa, em primeiro lugar, tomar nota dos elementos que compem a

    construo feita no acrdo em anlise no sentido da aplicao do regime

    da responsabilidade contratual.

    Assim, discorre o acrdo, nos termos que de seguida se transcrevem,

    que:

    No domnio da prestao dos servios de sade, entre outros,

    entendemos, contudo, ser mais adequado realidade e conduzir a

    10 Cfr. pginas 32 e 33 do Acrdo em anotao, disponvel em

    http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/6346f0d05b25c15

    880257aca00629548?OpenDocument.

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    37

    solues mais justas, a aplicao do regime da responsabilidade

    contratual.

    Isto sendo certo que o Tribunal apenas est adstrito matria de

    facto articulada pelas partes, sendo plenamente livre no

    enquadramento jurdico desses factos art. 567., do Cdigo de

    Processo Civil.

    No presente litgio, em que se discute a responsabilidade por danos

    alegadamente causados por atos mdicos praticados num hospital

    pblico, deve ter-se por referncia a disciplina jurdica da

    responsabilidade contratual, mais concretamente da prestao de

    servios, pois estamos perante uma situao de facto equivalente

    de um contrato de prestao de servios art. 1154 do Cdigo Civil -

    , e, por isso, a justificar a mesma proteo legal (vd. Figueiredo Dias e

    Jorge Sinde Monteiro, A responsabilidade mdica em Portugal, no BMJ

    332, p. 50, onde se referem as figuras das "relaes contratuais de

    facto" e do "contrato de adeso" neste domnio). Designadamente, no

    que diz respeito s regras de repartio do nus da prova, as quais, no

    domnio da responsabilidade contratual, so mais favorveis ao credor

    (lesado), existindo neste domnio presunes de culpa que a lei no

    estabelece no domnio da responsabilidade extracontratual (vd. art.

    799, n.1, do Cd. Civil; Figueiredo Dias e Jorge Sinde Monteiro, ob.

    cit., p. 38 e segs.)

    Faz mais sentido e justo que sejam os tcnicos que prestam os

    cuidados de sade, neste caso o membros da equipa mdica que

    procedeu ao parto, a provarem que agiram com zelo, precisamente

    porque dominam ou suposto dominarem - os conhecimentos

    tcnicos na sua rea de atuao, do que fazer recair o nus da prova

    da falta de zelo sobre os pacientes que, na generalidade dos casos,

    no tm conhecimentos tcnicos na rea da sade.

    Para j no falar na natural inibio dos tcnicos da rea deporem

    de forma desfavorvel aos seus colegas de profisso.

    Alis, no estamos no caso concreto, em bom rigor, perante

    responsabilidade emergente de atos de gesto pblica, uma vez que

    na prestao de assistncia hospitalar, designadamente, no

    acompanhamento e assistncia a um parto, no existem prerrogativas

    de autoridade ou uma regulamentao de natureza pblica que

    permita distinguir, como ato de gesto pblica, a assistncia prestada

    por um hospital pblico e a assistncia prestada, como ato de gesto

    privada, por um hospital particular.

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    38

    Tratando-se de um ato de gesto privada sempre existiria

    responsabilidade pelo risco, ou seja, independente de culpa, a onerar

    o Ru, Hospital (), nos termos das disposies combinadas dos art.s

    493. e 494., do Cdigo Civil.

    De todo o modo, como se disse, estamos perante uma situao

    contratual de facto e iremos tomar, por isso, como quadro jurdico de

    referncia para o caso concreto, a responsabilidade contratual (e a

    obrigao de indemnizar dela decorrente), prevista nos artigos 798. e

    seguintes (e artigos 562. e seguintes), do Cdigo Civil.

    Em sntese, da matria de direito assim tratada resultam os seguintes

    argumentos utilizados pelo Tribunal Central Administrativo do Norte, no

    sentido da aplicao do regime da responsabilidade civil contratual ainda

    que o estabelecimento de sade seja um estabelecimento de sade

    pblico integrado no Servio Nacional de Sade (SNS): i) a situao de

    facto, de prestao de cuidados de sade num estabelecimento integrado

    no SNS, equivalente de um contrato de prestao de servios (artigo

    1154. do Cdigo Civil) e, por isso, justifica a mesma proteo legal, o

    mesmo dizer, em caso de incumprimento, a aplicao do regime previsto

    nos artigos 798. e seguintes do Cdigo Civil, em especial o da inverso do

    nus da prova fixado no artigo 799. do Cdigo Civil; ii) o regime da

    responsabilidade civil contratual mais favorvel ao lesado; iii) justifica-se a

    inverso porquanto o devedor tem mais meios, em razo dos especiais

    conhecimentos tcnicos, para afastar a culpa do que tem o credor para

    provar a culpa; iv) a prestao de assistncia hospitalar no exige

    prerrogativas de autoridade ou uma regulamentao de natureza pblica

    que permita distinguir, como acto de gesto pblica, a assistncia prestada

    por um hospital pblico e a assistncia prestada, como acto de gesto

    privada, por um hospital particular11.

    11 Vide pginas 15 e 16 do Acrdo em anotao, disponvel em

    http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/6346f0d05b25c15

    880257aca00629548?OpenDocument

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    39

    Concordamos com os trs primeiros argumentos empregues na defesa

    da aplicao do regime da responsabilidade civil contratual e duvidamos

    da necessidade, pertinncia e adequao do ltimo dos argumentos, sem

    deixar, porm, de salientar que a ao ajuizada sob a aplicao do

    Decreto-Lei n. 48051, de 21 de novembro de 1967, e no sob a aplicao

    da Lei n. 67/2007, de 31 de dezembro.

    Do ltimo dos argumentos enunciados afastamo-nos porquanto os atos

    de prestao de cuidados de sade, ainda que materialmente iguais aos

    realizados em estabelecimentos de sade privados, no deixam de ser, a

    valer tal distino, atos de gesto pblica, pois so exercidos em

    cumprimento da tarefa fundamental de servio pblico de sade, nos

    termos dos artigos 9., alnea d), e 64.. n. 2, alnea a), da Constituio da

    Repblica Portuguesa12 13.

    12 Ainda que aplicveis os artigos 798. e seguintes do Cdigo Civil, a jurisdio

    competente naturalmente a administrativa, atento o mbito do artigo 4., n. 2,

    do Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos. 13 Sobre a qualificao da atuao dos mdicos num estabelecimento pblico

    de sade, vide Diogo Freitas do Amaral, Natureza da Responsabilidade Civil dos

    Actos Mdicos Praticados em Estabelecimentos Pblicos de Sade, in Direito da

    Sade e Biotica, Lisboa, 1991, pgina 128, quando afirma que: Os mdicos que

    actuam ao servio de um estabelecimento pblico de sade no exercem uma

    actividade materialmente distinta da dos mdicos que trabalham por conta prpria

    ou para uma clnica privada; to pouco exercem poderes de autoridade pblica

    sobre os doentes ou sobre quaisquer outros particulares. Assim, pelas duas primeiras

    teorias (leia-se, a teoria da natureza material da atividade e a teoria dos poderes

    de autoridade) que analismos os actos mdicos que envolveriam exerccio de

    uma atividade de gesto privada. No entanto, luz da terceira teoria (leia-se, a

    teoria do enquadramento institucional), no pode sofrer dvida que a actividade

    mdica nos estabelecimentos pblicos de sade se insere num enquadramento

    institucional de carcter pblico: ela constitui exerccio de uma funo pblica,

    desenvolve-se sob a gide de normas de direito pblico, e condiciona os mdicos

    em funo de deveres e restries especiais de carcter pblico.

    foroso concluir que uma qualificao como ato de gesto pblica (se se quiser

    hoje manter esta ciso e discusso, que, em face da Lei n. 67/2007, de 31 de

    dezembro, no nos parece necessria ou especialmente frutuosa) no afasta a

    possibilidade de aplicao de normas do Cdigo Civil, em particular dos artigos

    798. e seguintes, em concurso, atento o concurso de ttulos de imputao, com o

    regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades

    pblicas vide, quanto a referncia neste mbito ao concurso de ttulos de imputao, Cludia Monge, A responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    40

    Vejamos, pois, com maior desenvolvimento os trs primeiros argumentos

    enunciados no acrdo sentido da aplicao do regime da

    responsabilidade civil contratual.

    No voto de vencido afirmado, quanto aplicao do regime da

    responsabilidade contratual e inverso do nus da prova professada no

    acrdo, que o certo que nenhuma norma ou diploma legal possibilita

    este entendimento14. Ora, a norma legal que possibilita este entendimento

    a integrao da situao de facto na previso do artigo 798. do Cdigo

    Civil, sendo, consequentemente, aplicvel o artigo 799..

    A prestao de cuidados de sade, seja num estabelecimento de sade

    pblico ou num estabelecimento de sade privado, integra um feixe

    comum de situaes jurdicas ativas e passivas15. As situaes jurdicas que

    caraterizam a prestao de cuidados de sade enquanto tipo social e

    integrados no Servio Nacional de Sade por atos de prestao de cuidados de

    sade, in Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades

    pblicas, e-book Instituto de Cincias Jurdico-Polticas da Faculdade de Direito da

    Universidade de Lisboa, coord. Professores Doutores Carla Amado Gomes e Miguel

    Assis Raimundo, 2013, pginas 4 a 8 e 18 a 22.

    Afastamo-nos, assim, da afirmao do Ilustre Professor Freitas do Amaral quando

    assaca, como consequncia da qualificao da atuao do mdico num

    estabelecimento de sade como ato de gesto pblica, quanto determinao

    do direito aplicvel, que: dado que est em causa uma responsabilidade por

    actos de gesto pblica, o direito substantivo aplicvel no o direito civil, mas sim

    o direito pblico, sendo que a sede da matria , fundamentalmente, o Decreto-

    Lei n. 48051, de 21 de Novembro de 1967 (cfr. Diogo Freitas do Amaral, Natureza

    da Responsabilidade Civil dos Actos Mdicos Praticados em Estabelecimentos

    Pblicos de Sade, cit. , pgina 130), 14 Vide pgina 33 do Acrdo em anotao, disponvel em

    http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/6346f0d05b25c15

    880257aca00629548?OpenDocument. 15 Como temos vindo a sustentar, h um feixe comum que aplicvel a qualquer

    prestao de cuidados de sade, ainda que o seu quadrante ou a sua ambincia

    seja de direito pblico ou de direito privado (cfr. Cludia Monge, "Contributo para

    o estudo do Direito da Sade: a prestao de cuidados de sade" (Tese de

    Mestrado em Cincias Jurdico-Polticas, Faculdade de Direito da Universidade de

    Lisboa 2002). Podemos, na verdade, identificar um feixe comum de direitos

    subjetivos dos destinatrios da prestao de cuidados de sade,

    independentemente do estatuto pblico ou privado do estabelecimento onde so

    prestados os cuidados de sade, o que torna paradoxal a existncia de dois

    regimes distintos e de um contencioso de responsabilidade civil dual (ibid., pgina

    137).

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    41

    impendem sobre os prestadores de cuidados de sade, sejam o

    estabelecimento de sade pblico ou privado, so as mesmas: a prestao

    de cuidados de sade adequados, de acordo com as leges artis e em

    tempo til, o dever de informao, o dever de obter consentimento prvio

    e esclarecido, o dever de sigilo, o dever de segurana,

    Estas situaes jurdicas integram uma relao obrigacional complexa16 e

    tm fonte legal e contratual e so deveres especficos e no deveres

    genricos. Se so deveres especficos e no genricos, o regime de

    responsabilidade civil obrigacional e no aquiliana17-18, devendo, assim,

    em caso de violao dos deveres especficos, em caso de incumprimento,

    ser aplicado o artigo 798. e no o artigo 483. do Cdigo Civil ou o Decreto-

    Lei n. 48051, de 21 de novembro de 1967, ou a Lei n. 67/2007, de 31 de

    dezembro.

    Salienta-se que, como refere MENEZES LEITO, a diferena entre a

    responsabilidade delitual e a responsabilidade obrigacional que,

    enquanto a responsabilidade delitual surge como consequncia da

    violao de direitos absolutos, que aparecem assim desligados de qualquer

    relao inter-subjectiva previamente existente entre lesante e lesado, a

    16 Cfr. da Autora, A responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares integrados

    no Servio Nacional de Sade por atos de prestao de cuidados de sade, cit.,,

    pgina 2. 17 J, assim, o sustentmos, em A responsabilidade dos estabelecimentos

    hospitalares integrados no Servio Nacional de Sade por atos de prestao de

    cuidados de sade, in Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das

    entidades pblicas, e-book Instituto de Cincias Jurdico-Polticas da Faculdade de

    Direito da Universidade de Lisboa, coord. Professores Doutores Carla Amado Gomes

    e Miguel Assis Raimundo, 2013 (disponvel em http://www.icjp.pt/publicacoes),

    pgina 3, e em Le droit de la sant et la relation de soins, in Le droit de la sant et la

    justice, colec. Sminaire d'actualit de droit mdical, Bibliothque de Droit de la

    Sant et d'thique Mdicale (disponvel em http://www.bnds.fr). 18 No sentido da afirmao da responsabilidade civil por ato ou omisso do

    mdico como obrigacional em virtude da incidncia de deveres especficos, vide

    Pedro Romano Martinez, Responsabilidade Civil Por Acto ou Omisso do Mdico -

    Responsabilidade Civil Mdica e Seguro de Responsabilidade Civil Profissional, in

    Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Vol. II,

    Coimbra, 2011, pgina 479, e Direito das Obrigaes Programa 2010/2011,

    Apontamentos, 3. ed., Lisboa, 2011, pgina 103.

  • INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS

    42

    responsabilidade obrigacional pressupe a existncia de uma relao inter-

    subjectiva, que primariamente atribua ao lesado um direito a prestao,

    surgindo como consequncia da violao de um dever emergente dessa

    relao especfica19. Assim reconhecendo, afigura-se correto considerar a

    responsabilidade emergente da prestao de cuidados de sade, seja qual

    for o modelo e a natureza (pblica ou privada) de relao jurdica, como

    obrigacional.

    Como reconhece VELTEN, por referncia ao quadro jurdico alemo, o

    fundamento de pretenso no mbito da responsabilidade mdica

    contratual , segundo a opinio geral, a violao contratual positiva do

    contrato de tratamento20.

    A propsito da prevalncia da responsabilidade contratual, afirma

    PEDRO ROMANO MARTINEZ que muito frequentemente, em caso de dano

    causado por acto mdico discute-se acerca da existncia de uma relao

    contratual entre o lesado e o autor da leso ou entre o primeiro e o hospital

    onde o segundo labora e, nesse mbito, discute-se no s qual o tipo de

    contrato, como a relao entre os trs vnculos (do paciente com o

    mdico, entre este e a entidade hospitalar e entre o paciente e o

    hospital)21. Quanto ao hospital, afirma PEDRO ROMANO MARTINEZ, que

    tendo sido ajustado um contrato, a cuja formao preside a regra do

    consensualismo (art. 219.), a responsabilidade pelo incumprimento

    obrigacional, tratando-se de um contrato de prestao de servios

    atpico, que segue o regime geral do mandato (art. 1156.), pelo que, se

    durante a execuo do contrato foram causados danos ao paciente por

    facto de terceiro (mdico contratado pelo hospital para a prtica de actos

    19 Cfr. Lus Manuel Teles de Menezes Leito, Direito das Obrigaes, Volume I,

    Introduo. Da constituio das obrigaes, 9. ed., Coimbra, 2010, pgina 294. 20 Cfr. Wolfram Velten, Der medizinische Standard im Arzthaftungsproze (Ein

    Beitrag zu Umfang und Grenzen der Darlegungslast von Arzthtaftungsklgern

    bezglich der Standards medizinischer Heilbehandlung), Hamburg, 2001, pgina 14. 21 Cfr. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigaes Programa 2010/2011,

    Apontamentos, cit. , pgina 101. Cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Os Contratos Civis

    de Prestao de Servio Mdico, in Direito da Sade e Biotica, Lisboa, 1996, em

    especial pgina 90.

  • RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS

    - Anotaes de Jurisprudncia

    43

    mdicos), a responsabilidade do hospital obrigacional por facto de

    terceiro22.

    Entendemos assim que, mesmo num quadro de qualificao como o dos

    autos, relativamente a uma relao jurdica administrativa, em que a

    prestao de cuidados de sade realizada num estabelecimento pblico

    de sade integrado no Servio Nacional de Sade, correto afirmar a

    perspetiva contratual e a responsabilidade obrigacional23.

    22 Cfr. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigaes Programa 2010/2011,

    Apontamentos, cit. , pginas 101 e 102. Vide ainda Responsabilidade Civil Por Acto

    ou Omisso do Mdico - Responsabilidade Civil Mdica e Seguro de

    Responsabilidade Civil Profissional, cit. , pgina 464. 23 Cfr. Cludia Monge, A responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares

    integrados no Servio Nacional de Sade por atos de prestao de cuidados de

    sade, cit., pgina 9.

    Em sentido que favorece a afirmao do modelo contratual, atente-se que

    FIGUEIREDO DIAS e SINDE MONTEIRO analisam, de iure condendo, a

    responsabilidade contratual dos hospitais pblicos e vm concluir que o quadro do

    contrato parece-nos o mais apropriado para vazar a relao, caracterizada por

    uma ideia de confiana, entre o doente e a entidade prestadora dos servios de

    sade e aludem s relaes contratuais de facto (faktische Schuldverhltnisse) e s relaes de massas (Massenverkehr), resultantes de um comportamento social tpico (Sozialtypisches Verhalten) (cfr. Jorge Figueiredo Dias/Jorge Sinde

    Monteiro, Responsabilidade Mdica em Portugal, Boletim do Ministrio da Justia,

    n. 332, 1984, pginas 48 e 49, nos termos tambm referidos no acrdo em

    anlise).

    Veja-se ainda Joo lvaro Dias, Procriao assistida e responsabilidade mdica,

    Boletim da Faculdade de Direito, Studia Iuridica, 21, Coimbra, 1996, pginas 240 e

    241, quando afirma que: a fim de enquadrar tal responsabilidade poder fazer-se

    apelo quer ao instituto dos contratos de adeso quer figura das relaes

    contratuais de facto (faktische Schuldverhltnisse) e mais especificamente s

    relaes de massas (Massenverkehr) resultantes de um comportamento social tpico (Sozialtypisches Verhalten), sendo inegvel um fenmeno de massificao

    no acesso aos servios mdicos das instituies e servios pblicos de sade,

    qualquer das solues contrato de adeso ou relao contratual fctica tem potencialidades para retratar com fidelidade e rigor tcnico a relao que se

    estabelece entre o doente e a instituio ou servio pblico de sade e prossegue

    para afirmar que estando em causa a tutela de direitos to essenciais como o

    direito sade, integridade fsica e vida, bem se compreende que, nos limites

    do juridicamente admissvel, a qualificao das relaes contratuais poder

    contribuir para a sua personalizao e, porque no diz-lo, para um sentido de

    responsabilidade acrescida por parte dos mdicos que a desempenham funes.

    Veja-se tambm M