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RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICASAnotaes de Jurisprudncia
Carla Amado Gomes e Tiago Serro (coord.)
DIREITO DA
RESPONSABILIDADE CIVIL
EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
Anotaes de Jurisprudncia
Carla Amado Gomes
Tiago Serro (coordenadores)
Edio:
www.icjp.pt
Outubro de 2013
ISBN: 978-989-97834-6-1
Alameda da Universidade
1649-014 Lisboa
e-mail: [email protected]
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
3
NDICE:
Nota de apresentao
Carla Amado Gomes e Tiago Serro
Responsabilidade por ato da funo legislativa decorrente da Lei do
Oramento de Estado e mbito da jurisdio administrativa
Anotao ao Acrdo do STA de 14 de Fevereiro de 2013 (proc. 01173/12)
Alexandra Leito
A deciso do procedimento em prazo razovel: uma nova responsabilidade
administrativa
Anotao ao Acrdo do TCA-Sul, de 11 de Abril de 2013 (proc. 07084/11)
Carla Amado Gomes
Responsabilidade contratual de um estabelecimento integrado no Servio
Nacional de Sade
Anotao ao Acrdo do TCA-Norte, de 30 de Novembro de 2012
(proc. 01425/04.8BEBRG)
Cludia Monge
A efetivao do direito de regresso pelo Estado e a interveno de
terceiros: alguns tpicos de reflexo
Anotao ao Acrdo do STA, de 28 de Maro de 2012 (proc. 01090/11)
Diana Ettner
INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS
4
Tudo ao molho e f. Na jurisdio administrativa - pluralidade de sujeitos
pblicos e privados e competncia dos tribunais administrativos em aco
de responsabilidade civil pblica
Anotao ao acrdo do STA, de 3 de Maro de 2010 (proc. 0278/09)
Francisco Paes Marques
Diligncia Processual e RRCEEP: a quanto obrigas?
Anotao ao Acrdo do TCA-Sul, de 14 de Dezembro de 2011
(proc. 07175/11)
Manuel da Silva Gomes
Um caso de arrependimento da Administrao antes da celebrao do
contrato
Anotao ao Acrdo do TCA-Sul, de 18 de Outubro de 2012
(proc. 02459/07)
Marco Caldeira
Presuno de culpa de autarquia local por omisso de dever de vigilncia
Anotao ao Acrdo do STA, de 23 de Fevereiro de 2012 (proc. 01008/11)
Mariana Melo Egdio
Consentimento informado, causalidade e nus da prova em
responsabilidade hospitalar
Anotao ao Acrdo do STA, de 9 de Maio de 2012 (proc. 093/12)
Miguel Assis Raimundo
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
5
Do requisito da ilegalidade em matria de responsabilidade aquiliana das
instituies da Unio Europeia - o acrdo Bergaderm
Anotao ao Acrdo do TJUE, de 4 de Julho de 2000 (proc. C-352/98 P)
Miguel Marques de Carvalho
Indemnizao por facto lcito na funo jurisdicional
Anotao ao Acrdo do TCA-Sul, de 12/06/2012 (proc. 07144/11)
Paulo Dias Neves
Administrao da justia morosa: la storia continua
Anotao ao acrdo do STA, de 15 de Maio de 2013 (proc. 0144/13)
Ricardo Pedro
A caraterizao legal da especialidade e anormalidade dos prejuzos
Anotao ao Acrdo do STA, de 9 de Fevereiro de 2012 (proc. 0678/11)
Sandra Guerreiro
Responsabilidade Civil Extracontratual de Concessionrios de Obras
Pblicas e Jurisdio Administrativa
Anotao ao Acrdo do Tribunal de Conflitos, de 20 de Janeiro de 2010
(proc. 025/09)
Tiago Serro
INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS
6
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
7
Nota de apresentao
A problemtica da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das
demais entidades pblicas assume, nos dias de hoje, uma inegvel e
crescente importncia terica e prtica.
A prova inequvoca da aludida relevncia prtica encontra-se, entre ns,
na numerosa jurisprudncia existente sobre o tema, proferida, sobretudo, no
contexto aplicativo do Decreto-Lei 48.051, de 21 de Novembro de 1967. Ao
abrigo do novo quadro legal, aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de
Dezembro, os acrdos conhecidos so, para j, em muito menor nmero,
mas expectvel que, com o decorrer do tempo, aumentem
quantitativamente e em termos temticos.
A presente publicao constitui um contributo para a anlise de diversos
arestos proferidos, justamente, no domnio da responsabilidade civil
extracontratual pblica. As anotaes dos diversos autores convidados
para o efeito incidem, na sua esmagadora maioria, sobre decises judiciais
que convocam directamente o regime jurdico de responsabilidade civil
extracontratual que, a breve trecho, completar seis anos de vigncia. Foi
preocupao primordial da equipa coordenadora assegurar a variedade
de matrias objecto de tratamento analtico, bem como a pluralidade de
perspectivas adoptadas, perante um leque de novas e muitas vezes
complexas solues legais com as quais os tribunais tm sido confrontados.
Espera-se que este projecto sirva de impulso para que, de futuro, a
jurisprudncia em matria de responsabilidade civil extracontratual pblica
continue a ser objecto de um dilogo aberto por parte de todos os que
revelem interesse por este tema. Pela nossa parte, fica o compromisso de
que no deixaremos de acompanhar, de modo atento, essa fonte de
direito, dada a riqueza problemtica que a mesma encerra.
INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS
8
A ordem de publicao das anotaes obedece ordem alfabtica do
primeiro nome dos autores. Deu-se liberdade aos anotadores quanto
redaco do texto, conformemente ou no ao Acordo Ortogrfico.
Lisboa, Setembro de 2013
Os coordenadores,
Carla Amado Gomes
Tiago Serro
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
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Responsabilidade por ato da funo legislativa
decorrente da Lei do Oramento de Estado
e mbito da jurisdio administrativa
Anotao ao Acrdo do STA de 14 de fevereiro de 2013, proc. 01173/12
Consultar o acrdo aqui*
Alexandra Leito
Professora auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
1. A deciso do Supremo Tribunal Administrativo que agora se comenta,
proferida em sede de recurso de revista, versa sobre duas questes
fundamentais: uma, de natureza substantiva, prende-se com a delimitao
da responsabilidade extracontratual por atos da funo legislativa, e a
segunda, processual, tem a ver com a competncia dos tribunais
administrativos para dirimir litgios da decorrentes.
No caso sub judice, o Municpio da Horta interps um recurso de revista
para o Supremo Tribunal Administrativo que este aceitou (e, a meu ver,
bem) ao abrigo do disposto no artigo 150.1 do Cdigo de Processo nos
*http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/23fb70b3948fc2c6
80257b280058710c?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1 Agradeo Professora Doutora Carla Amado Gomes e ao Dr. Tiago Serro,
organizadores da presente obra, o convite para colaborar na sua elaborao. 1 O nmero 1 deste preceito determina que [D]as decises proferidas em 2.
instncia pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista
para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciao de
uma questo que, pela sua relevncia jurdica ou social, se revista de importncia
fundamental ou quando a admisso do recurso seja claramente necessria para
uma melhor aplicao do direito.
INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS
10
Tribunais Administrativos (CPTA)2 por acrdo datado de 6 de dezembro de
2012, proferido no mesmo Processo n. 01173/12 da deciso do Tribunal
Central Administrativo Sul que negou provimento ao recurso jurisdicional
interposto da sentena do Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada
atravs da qual este Tribunal absolveu da instncia o Estado portugus.
Estava em causa uma ao de responsabilidade civil extracontratual por
ato da funo legislativa nos termos do artigo 15. da Lei n. 67/2007, de 31
de dezembro3, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado (RRCEE) decorrente da no inscrio nas Leis do
Oramento de Estado para 2009, 2010 e 2011 das despesas inerentes
transferncia para os municpios da participao varivel de 5% do IRS
determinada pela Lei das Finanas Locais4. Invoca o Recorrente que, por
essa razo, a Lei do Oramento de Estado violou a Constituio e a Lei de
Enquadramento Oramental5, preenchendo os pressupostos da
responsabilidade extracontratual do Estado por ato da funo legislativa tal
como est consagrada no artigo 15. do RRCEE.
Contudo, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada absolveu a
entidade demandada da instncia no despacho saneador por considerar
que a competncia para dirimir o litgio no cabe jurisdio
administrativa, luz do disposto na alnea a) do nmero 2 do artigo 4. do
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)6, que determina que
2 Aprovado pela Lei n. 15/2002, de 22 de fevereiro, alterada pelas Leis n. 4-
A/2003, de 19 de fevereiro, n. 52/2008, de 28 de agosto, e n. 63/2011, de 14 de
dezembro. 3 Com a redao dada pela Lei n. 31/2008, de 17 de julho. 4 Aprovada pela Lei n. 2/2007, de 15 de janeiro, com as alteraes introduzidas
pelas Leis n. 67-A/2007, de 31 de dezembro, n. 44/2008, de 27 de agosto, n. 64-
A/2008, de 31 de dezembro, n. 3-B/2010, de 28 de abril, n. 55-A/2010, de 31 de
dezembro, n. 64-B/2011, de 30 de dezembro, e n. 60-B/2012, de 31 de dezembro. 5 Aprovada pela Lei n. 91/2001, de 28 de agosto, com as alteraes introduzidas
pela Lei Orgnica n. 2/2002, de 28 de agosto, e pelas Leis n. 23/2003, de 2 de julho,
n. 48/2004, de 24 de agosto, n. 48/2012, de 19 de outubro, n. 22/2011, de 20 de
maio, n. 52/2011, de 13 de outubro, e n. 37/2013, de 14 de junho. 6 Aprovado pela Lei n. 13/2002, de 19 de fevereiro, alterada pelas Leis n. 4-
A/2003, de 19 de fevereiro, n. 107-D/2003, de 31 de dezembro, n. 1/2008, de 14 de
janeiro, n. 2/2008, de 14 de janeiro, n. 26/2008, de 27 de junho, n. 52/2008, de 28
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
11
[E]st nomeadamente excluda do mbito da jurisdio administrativa e
fiscal a apreciao de litgios que tenham por objeto a impugnao de
atos praticados no exerccio da funo poltica e legislativa.
Ora, como bem salienta o Recorrente, o que est em causa na presente
ao comum no a impugnao (em via principal) da Lei do Oramento
de Estado, cujo conhecimento est, obviamente, subtrado do mbito da
jurisdio administrativa, mas sim a efetivao da responsabilidade civil por
esse ato legislativo, nos termos do n. 1 do artigo 15. do RRCEE, valendo,
para tanto, uma apreciao incidental da inconstitucionalidade ou
ilegalidade de norma jurdica ou sobre a sua desconformidade com
conveno internacional, tal como resulta do n. 2 do mesmo preceito.
Sendo assim, cabe aos tribunais administrativo conhecer esta ao, ao
abrigo do disposto na alnea g) do nmero 1 do artigo 4. do ETAF, que
comete queles tribunais as [Q]uestes em que, nos termos da lei, haja
lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de
direito pblico, incluindo a resultante do exerccio da funo jurisdicional e
da funo legislativa.
Esta , alis, a nica soluo consentnea com o disposto no nmero 3
do artigo 212. da Constituio que delimita o mbito da jurisdio
administrativa em funo do conceito de relao jurdica administrativa.
Adiantando, desde j, que acompanho a posio do Tribunal quer no
que respeita admisso do recurso de revista, quer quanto procedncia do
recurso, no deixaria, contudo, de tecer algumas consideraes que se
desenvolvero em torno de trs problemas:
(i) Natureza do ato de inscrio de verbas na Lei do Oramento de
Estado;
de agosto, n. 59/2008, de 11 de setembro, n. 166/2009, de 31 de julho, n. 55-
A/2010, de 31 de dezembro, e n. 20/2012, de 14 de maio.
INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS
12
(ii) Delimitao, para efeitos da determinao da competncia dos
tribunais administrativos, entre a efetivao da responsabilidade por atos
da funo legislativa e a apreciao da validade dos mesmos;
(iii) Possibilidade de aplicao do regime da responsabilidade civil nas
situaes em que o lesado uma entidade pblica e no um particular.
2. Quanto primeira questo, coloca-se o problema de saber se, em
concreto, o ato de inscrio de determinada(s) verba(s) na Lei do
Oramento de Estado um ato legislativo, poltico ou administrativo.
No se pretende voltar aqui at porque extrapolaria largamente o
mbito da presente anotao vexata quaestio da natureza jurdica da
lei do oramento e da sua eventual qualificao apenas como lei em
sentido formal e no material, hoje ultrapassada7.
Refira-se apenas que, apesar da diversidade de contedos da Lei do
Oramento, que incluem a inscrio concreta de verbas desagregadas por
departamentos e servios, esta no deixa de ser, formal e materialmente,
uma lei, com carter normativo, ideia que, alis, subjaz reserva
parlamentar de aprovao do Oramento8.
Neste mesmo sentido milita o critrio de distino entre as funes
poltica e legislativa e a funo administrativa, assente no facto de aquelas
terem natureza primria e visarem a realizao de escolhas entre interesses
essenciais da coletividade9, tenham ou no carter normativo.
7 V. GOMES CANOTILHO, A Lei do Oramento na teoria da lei, Coimbra, 1979,
pgs. 7 e seguintes e, mais recentemente, GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA,
Constituio da Repblica Portuguesa anotada, volume I, Coimbra, 2007, pg.
1120. V. ainda TIAGO DUARTE, A lei por detrs do oramento, Coimbra, 2007, pgs.
295 e seguintes. 8 V. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, op. cit., volume I, pg. 1110. 9 V. MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDR SALGADO DE MATOS, Direito
Administrativo Geral, Tomo I, 2. Edio, Lisboa, 2006, pg. 40.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
13
Como salienta MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, no caso da Lei do
Oramento, pode mesmo prescindir-se do elemento normativo, atendendo
ao carter sui generis do ato legislativo oramental10.
A natureza legislativa da Lei do Oramento coloca fundadas dvidas
quanto ao alcance da vinculao s obrigaes decorrentes de lei e de
contrato, nos termos do nmero 2 do artigo 105. da Constituio.
Efetivamente, se se entender que a Lei do Oramento tem de respeitar
as obrigaes constantes de todas as leis em vigor no ordenamento jurdico
isso cria uma relao de prevalncia entre estas ltimas e a primeira, ao
arrepio das regras sobre relaes entre atos normativos estabelecidas no
artigo 112. da Constituio. Esta soluo seria, aparentemente,
contraditria com a natureza materialmente legislativa da Lei do
Oramento, razo pela qual alguns Autores, como TIAGO DUARTE,
consideram que a Lei do Oramento pode derrogar ou suspender as leis
anteriores que imponham despesas, no as oramentando para
determinado ano11.
Mas esta posio no unnime. Pelo contrrio, pode entender-se, com
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, que admitir que a falta de dotao
oramental para satisfazer obrigaes decorrentes de lei implica uma
suspenso ou derrogao desta ltima seria uma subverso da relao de
subordinao imposta pelo nmero 2 do artigo 105. da Constituio.
A questo no se afigura simples.
Por um lado, no me parece que a subordinao da Lei do Oramento
a leis anteriores ponha em causa a sua natureza materialmente legislativa,
porquanto existem outras relaes de preferncia e prevalncia entre atos
legislativos sem que a natureza destes seja posta em causa.
10 V. MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, O poltico e o normativo, in Cadernos de
Justia Administrativa, n. 90, 2011, pg. 42. 11 V. ANTNIO LOBO XAVIER, O oramento como lei, in Boletim de Cincias
Econmicas, volume XXXV, 1992, pgs. 75 a 77, e TIAGO DUARTE, op. cit., pg. 234.
INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS
14
Mas, por outro lado, a sujeio da Lei do Oramento a diplomas
legislativos aprovados por decreto-lei e a contratos celebrados pelo
Governo pode pr em causa a prpria reserva parlamentar de aprovao
do oramento, limitando para alm do aceitvel os poderes da Assembleia
da Repblica. No pode, contudo, deixar de se salientar que este
argumento ultrapassvel, pelo menos quanto subordinao lei, pela
possibilidade que sempre assiste ao rgo parlamentar de, num primeiro
momento, revogar a lei que impe obrigaes e, num segundo momento,
aprovar a Lei do Oramento ou faz-lo at nesta mesma lei, atravs dos
designados cavaleiros oramentais.
Foi exatamente este o entendimento do Tribunal Constitucional, no seu
Acrdo n. 358/9212, a propsito da Lei das Finanas Locais, quando
concluiu que tendo-se por constitucionalmente legtimo que a Lei do
Oramento altere a Lei das Finanas Locais (fonte legal das obrigaes a
que alude o n 2 do art 108 da Constituio), desnecessrio se torna
apurar se as regras atinentes frmula de clculo do FEF revestiriam
efetivamente, no plano substantivo, a natureza de verdadeiras e prprias
obrigaes de origem legal ( i., situaes passivas de crdito), para efeitos
de aplicao do referido artigo da Constituio, ou seja, se as autarquias
locais so titulares ativos de uma obrigao de pagamento do Estado
decorrente da frmula legal do FEF (e se a contribuio financeira imposta
ao Estado pela Lei das Finanas Locais integra o conceito constitucional de
"obrigao decorrente de lei"), ou se, pelo contrrio, as autarquias tm
apenas direito a uma transferncia financeira anual, sem que em tal direito
se compreenda, ao mesmo ttulo, a observncia da concreta frmula de
clculo contida na Lei n 1/87 e ora alterada pela Lei n 2/92, no
declarando a inconstitucionalidade da norma com esse fundamento.
12 Proferido em 11 de novembro de 1992, no mbito do Processo n. 120/92.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
15
Esta soluo pressupe, naturalmente, que a Lei das Finanas Locais no
seja qualificada como lei de valor reforada, na linha do que o Tribunal
Constitucional entendeu no aresto acima citado.
Refira-se que neste Acrdo n. 358/92 o Tribunal Constitucional discutiu
se a Lei do Oramento pode alterar a Lei das Finanas Locais no que se
refere frmula do clculo do Fundo de Equilbrio Financeiro, tendo
concludo positivamente, pelos argumentos acima sumariamente expostos,
situao que se afigura bem diferente daquela em que, sem proceder a
qualquer alterao da Lei das Finanas Locais, a Lei do Oramento pura e
simplesmente omita a inscrio das verbas a transferir para os municpios.
Neste caso, tambm me parece que no se trata de uma suspenso
implcita da Lei das Finanas Locais, pelo que a Lei do Oramento de
Estado seria inconstitucional por violao do disposto no nmero 2 do artigo
105. da Constituio.
Existe, contudo, um aspeto comum s duas situaes e que se prende
com a existncia de eventual responsabilidade civil extracontratual do
Estado por ato da funo legislativa (a Lei do Oramento), quer esta
decorra diretamente da sua inconstitucionalidade por violao do disposto
no nmero 2 do artigo 105. da Constituio, quer por violao do princpio
da tutela da confiana.
De facto, mesmo admitindo que a Lei do Oramento pode alterar ou
revogar legislao anterior que crie obrigaes de realizao da despesa,
haver lugar a responsabilidade civil do Estado quando da decorra uma
violao da proteo da confiana dos potenciais beneficiados, sejam
entidades pblicas ou particulares13.
13 J anteriormente defendi soluo semelhante, por entender que a vinculao
s obrigaes legais s pode ser afastada se essa legislao for revogada e sempre
ponderando os direitos e expectativas legtimas dos sujeitos afetados. V.
ALEXANDRA LEITO, Os poderes do Executivo em matria oramental, relatrio de
mestrado, indito, 1997, pg. 122.
INSTITUTO DE CINCIAS JURDICO-POLTICAS
16
Por isso mesmo, o Tribunal Constitucional declarou a
inconstitucionalidade da Lei do Oramento por violao do princpio da
confiana quando so postos em causa direitos que resultam de (outras)
leis, designadamente, nos Acrdos n. 303/9014 e n. 187/201315.
No acompanho, por isso, TIAGO DUARTE quando afirma que a tutela da
confiana no deve operar, enquanto fundamentadora de um desvalor
constitucional, no caso de determinada lei ter sido aprovada sem que
tenho ocorrido ainda a aceitao oramental da mesma16.
Alis, a ser assim, as obrigaes decorrentes da lei e
consequentemente os direitos correlativos a essas obrigaes teriam uma
proteo muitssimo menor do que as que resultam de contratos celebrados
pela Administrao Pblica.
Daqui se conclui que a natureza formal e materialmente legislativa da Lei
do Oramento, que aqui se reafirma, no afasta a imposio de o
oramento proceder cobertura das despesas resultantes de leis anteriores,
apesar de, quando estas no tenham valor reforado, as poder revogar
expressamente e sempre sem prejuzo da responsabilidade civil por ato da
funo legislativa.
3. A determinao do mbito da jurisdio administrativa em matria de
responsabilidade civil do Estado por ato da funo legislativa passa pela
distino clara entre as aes (administrativas comuns) de efetivao dessa
responsabilidade e as aes de impugnao de atos legislativos. Do cotejo
da alnea g) do nmero 1 e do nmero 2 do artigo 4. do ETAF resulta que os
tribunais administrativos so competentes para conhecer das primeiras
aes mas no das segundas.
14 De 21de novembro de 1990, proferido no mbito do Processo n. 129/89. 15 De 5 de maio de 2013, proferido no mbito dos Processos apensados n. 2/2013,
n. 5/2013, n. 8/2013 e n. 11/2013. 16 V. TIAGO DUARTE, op. cit., pg. 241.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
17
A delimitao do objeto destes dois tipos de aes nem sempre se
afigura clara, como, alis, ficou patente no processo sub judice, atendendo
s decises tomadas pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada
e pelo Tribunal Central Administrativo Sul, que o Supremo Tribunal
Administrativo revogou.
Efetivamente, o nmero 1 do artigo 15. do RRCEE estabelece que a
responsabilidade pelo exerccio da funo legislativa ocorre quando danos
anormais e no especiais17 - resultem da prtica de atos desconformes
com a Constituio, o direito internacional, o direito comunitrio ou ato
legislativo de valor reforado, o que implica que o tribunal faa sempre um
juzo sobre essa desconformidade quando aprecia uma ao de
responsabilidade civil.
No entanto, esse juzo ocorre incidentalmente para efeitos de considerar
procedente ou improcedente o pedido indemnizatrio e no em via
principal.
Sendo assim, a disposio do artigo 15. do RRCEE no contraditria
com a delimitao do mbito da jurisdio administrativa tal como
traada pelo artigo 4. do ETAF, uma vez que o nmero 2 deste preceito
exclui daquele mbito apenas a apreciao de litgios que tenham por
objeto a impugnao direta e principal - de atos praticados no exerccio
da funo poltica e legislativa.
Se, pelo contrrio, o objeto da ao um pedido indemnizatrio
fundado na responsabilidade civil por ato da funo legislativa como
acontece no caso sub judice -, a competncia expressamente cometida
aos tribunais administrativos pela alnea g) do nmero 1 do artigo 4. do
ETAF.
17 Como nota CARLOS CADILHA, Regime da responsabilidade civil extracontratual
do Estado e demais entidades pblicas, Coimbra, 2008, pg. 274, a exigncia da
especialidade do dano, que se traduz na incidncia sobre um grupo particular de
cidados, seria contraditria com a circunstncia de as normas legais serem, por
via de regra, gerais e abstratas.
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18
Alis, a apreciao incidental da constitucionalidade das normas um
poder-dever de qualquer tribunal, em sede de fiscalizao difusa da
constitucionalidade, nos termos do artigo 204. da Constituio. por isso
que o nmero 2 do artigo 15. do RRCEE equipara a deciso do tribunal que
se pronuncie sobre a inconstitucionalidade ou ilegalidade de norma jurdica
ou sobre a sua desconformidade com conveno internacional, para
efeitos de responsabilidade civil, deciso de recusa de aplicao ou a
deciso de aplicao de norma cuja inconstitucionalidade, ilegalidade ou
desconformidade com conveno internacional haja sido suscitada
durante o processo, consoante o caso18. Assim, existe recurso para o Tribunal
Constitucional de acordo com o disposto no artigo 280. da Constituio e
no nmero 1 do artigo 70. da Lei Orgnica do Tribunal Constitucional.
Por outro lado, a distino entre apreciao direta e apreciao
incidental da validade de atos (legislativos e/ou administrativos) acolhida
no artigo 38. do CPTA quando admite, designadamente no domnio da
responsabilidade civil, que os tribunais conheam a ttulo incidental, da
ilegalidade de um ato administrativo que j no possa ser impugnado
(nmero 1), mas salientando que essa ao no pode ser utilizada para
obter o efeito que resultaria da anulao do ato inimpugnvel (nmero 2).
exatamente esta lgica que subjaz apreciao incidental da validade de
atos legislativos para efeitos de efetivao da responsabilidade do Estado.
18 Neste sentido v. CARLOS CADILHA, op. cit., pg. 275, e RUI MEDEIROS, A
responsabilidade civil pelo ilcito legislativo no quadro da reforma do Decreto-Lei n.
48.051, in Cadernos de Justia Administrativa, n. 27, 2001, pg. 25. Contra pronuncia-se MARIA LCIA AMARAL, Responsabilidade por danos decorrentes do exerccio da funo poltica e legislativa in Cadernos de Justia Administrativa, n. 40, 2003, pg. 45, por considerar que na ao indemnizatria o juiz efetua uma
qualificao jurdica dos factos, enquanto a fiscalizao difusa da
constitucionalidade envolve uma estrita questo de direito. Refira-se que, pelo
contrrio, quando estiver em causa uma omisso legislativa, o nmero 5 do artigo
15. exige uma prvia deciso do Tribunal Constitucional quanto verificao de
uma omisso inconstitucional, soluo que aplaudida por CARLOS CADILHA, op.
cit., pg. 295, e por MARIA LCIA AMARAL, op. cit., pg. 43, e criticada por RUI
MEDEIROS, op. cit., pg. 25, que considera inconstitucional por violao do artigo
22. da Constituio qualquer soluo que restrinja a obrigao de indemnizar aos
casos em que tenha havido prvia declarao de inconstitucionalidade com fora
obrigatria geral.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
19
No que respeita concretamente Lei do Oramento de Estado,
defendi supra que a no inscrio de despesas que sejam impostas por lei
viola o disposto no nmero 2 do artigo 105. da Constituio, embora a
Assembleia da Repblica possa incluir na prpria Lei do Oramento normas
que alterem ou revogam essa legislao anterior.
Ora, a responsabilidade civil do Estado por ato da funo legislativa
pode existir em qualquer uma das duas situaes.
No primeiro caso, a Lei do Oramento viola a Constituio e a Lei de
Enquadramento Oramental por no cumprir as obrigaes decorrentes da
lei, preenchendo-se, assim, o pressuposto do nmero 1 do artigo 15. do
RRCEE.
No segundo caso, s haver responsabilidade se a alterao ou a
revogao da legislao anterior violar o princpio da proteo da
confiana legtima, acabando por, dessa forma, ser tambm desconforme
com a Constituio. Esta situao implica, assim, uma ponderao
valorativa muito mais complexa do que o caso anterior.
Alm destas duas situaes, poder-se-ia ainda discutir se pode haver
uma obrigao de indemnizar pelo sacrifcio, nos termos do artigo 16. do
RRCEE, quando um ato legislativo, apesar de vlido, impe encargos ou
causa prejuzos anormais e especiais a determinados sujeitos por razes de
interesse pblico. A maioria da doutrina pronuncia-se negativamente
quanto a esta possibilidade quer antes, quer depois da entrada em vigor do
RRCEE19, que, alis, no consagrou essa soluo, embora tambm no a
19 V. CARLOS CADILHA, op. cit., pg. 273 e MARIA LCIA AMARAL, op. cit., pg. 41.
Apesar de no se pronunciar expressamente sobre a questo, SRVULO CORREIA,
Da sede do regime de responsabilidade objetiva por danos causados por normas emitidas no desempenho da funo administrativa", in Revista da Ordem dos
Advogados, Lisboa, ano 61, n. 3, 2001, pgs. 1313 e seguintes, defendeu que os
regulamentos administrativos podem originar uma obrigao de indemnizao
pelo sacrifcio mesmo no quadro do Decreto-Lei n. 48051, de 21 de novembro de
1967, mas f-lo por aproximao figura do ato administrativo, acentuando o
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20
afaste expressamente. De facto, embora o artigo 15. seja claro quanto
limitao da responsabilidade apenas aos danos provocados por atos
legislativos ilcitos, o artigo 16. permitiria uma leitura mais abrangente que,
contudo, no parece ter sido inteno do legislador consagrar.
Em qualquer caso, a competncia para conhecer dos litgios emergentes
da responsabilidade civil por ato legislativo est sempre cometida aos
tribunais administrativos, nos termos da alnea g) do nmero 1 do artigo 4.
do ETAF, implicando uma apreciao incidental da validade do ato
legislativo que no se confunde com a impugnao direta do mesmo, esta
sim, subtrada do mbito da jurisdio administrativa pelo disposto no
nmero 2 do artigo 4. do mesmo diploma.
4. Finalmente, cumpre analisar se existem algumas especificidades
decorrentes do facto de o lesado ser um municpio, que pretende obter o
pagamento de uma indemnizao por parte do Estado, suscitando-se,
assim, um litgio interadministrativo.
No Parecer do Ministrio Pblico, que propugnou pela no admisso do
recurso de revista e pela sua improcedncia, referido, entre outros
argumentos, que [D]e resto, para que fosse aplicvel o n 1 do art 15
citado, ao caso vertente, invocada violao de normas constitucionais ou
de valor reforado teria que corresponder, cumulativamente, a
suscetibilidade de leso de posies jurdico-substantivas de interessados
particulares. () No caso vertente, apenas foram invocados danos para o
Municpio da Horta alis equivalentes ao montante da verba no
recebida.
Esta afirmao pe em causa o direito de um municpio a ser
indemnizado por danos produzidos na sua esfera jurdica por atos legislativos
(e, eventualmente, tambm atos da funo administrativa praticados por
facto de o regulamento, apesar de ter natureza normativa, se inscrever na funo
administrativa.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
21
outras entidades pblicas) e, portanto, defende a sua ilegitimidade ativa
para intentar uma ao de responsabilidade contra o Estado.
No posso acompanhar este entendimento.
Em primeiro lugar, as relaes jurdicas interadministrativas (entre pessoas
coletivas pblicas ou entre rgos administrativos20) so relaes jurdicas
administrativas.
No cabe na economia do presente artigo analisar o conceito de
relao jurdica administrativa, mas de salientar que toda a doutrina
unnime em considerar que esta tanto pode estabelecer-se entre uma
entidade integrada na Administrao Pblica e um particular, como entre
duas entidades pblicas e at, em certos casos, entre dois particulares21.
O contedo desta relao jurdica pode ser muito diverso, incluindo
direitos e obrigaes para ambos os sujeitos, pblicos ou privados, e
constituir-se atravs de ato, de contrato (interadministrativo) ou resultar de
qualquer outro facto juridicamente relevante22.
Ora, o conhecimento dos eventuais litgios que ocorram no quadro
dessas relaes jurdicas so da competncia dos tribunais administrativos,
20 Sobre o conceito de pessoa coletiva pblica e sobre a existncia de relaes
jurdicas interorgnicas, v. ALEXANDRA LEITO, Contratos interadministrativos,
Coimbra, 2011, pgs. 29 e seguintes. 21 V., por todos, SRVULO CORREIA, As relaes jurdicas de prestao de
cuidados pelas Unidades de Sade do Servio Nacional de Sade, in Direito da Sade e da Biotica, obra coletiva, Lisboa, 1996, pg. 18, que define a relao
jurdica administrativa como o sistema complexo de situaes jurdicas ativas e passivas, interligadas em termos de reciprocidade, regidas pelo Direito
Administrativo e tituladas pela Administrao e por particulares ou apenas por
diversos plos finais de imputao pertencentes prpria Administrao. 22 Como refere VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca do Ato Administrativo Perdido,
Coimbra, 1996, pgs. 193 e 194, as relaes jurdicas administrativas so as concretas ligaes entre os privados e as autoridades administrativas (ou entre as
prprias autoridades administrativas), criadas por um qualquer facto (atuao da
Administrao Pblica ou do particular, contrato, evento natural, etc) juridicamente
relevante, e tendo por contedo direitos e deveres previstos na Constituio e nas
leis, ou decorrentes de contrato, ou de atuao unilateral da Administrao.
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22
nos termos do nmero 3 do artigo 212. da Constituio, uma vez que se
inscrevem numa relao administrativa, critrio que a Lei Fundamental
erigiu como delimitador do mbito da jurisdio administrativa e fiscal.
A constituio de relaes jurdicas interadministrativas potenciadoras de
conflitos entre entidades pblicas , alis, uma decorrncia direta e
salutar da existncia de um pluralismo de interesses pblicos que se
repercute no modelo de organizao administrativa. A referncia a
interesses pblicos (no plural) pode traduzir duas realidades distintas: por
um lado, a diversidade de fins ou objetivos dentro de um interesse pblico
nacional e, por outro, a existncia de interesses pblicos de diferentes tipos
(nacionais, locais, associativos, entre outros).
Esta diversidade particularmente visvel relativamente s autarquias
locais, que prosseguem interesses pblicos prprios de uma coletividade
(nmero 2 do artigo 235. da Constituio) que muitas vezes colidem com o
interesse nacional, como, alis, normal num Estado democrtico e plural23.
No causa, assim, qualquer estranheza que uma autarquia local intente
uma ao contra o Estado, seja qual for o objeto da mesma e a natureza
do litgio.
verdade que o nmero 1 do artigo 15. do RRCEE estabelece que o
Estado responsvel pelos danos anormais causados aos direitos ou
interesses legalmente protegidos dos cidados por atos que, no exerccio
da funo poltico-legislativa, pratiquem em desconformidade com a
Constituio, o direito internacional, o direito comunitrio ou ato legislativo
de valor reforado, o que parece limitar essa responsabilidade aos danos
provocados na esfera jurdica dos cidados.
23 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituio da Repblica Portuguesa
anotada, volume II, Coimbra, 2010, pgs. 715 a 718, salientam que as autarquias
locais so dados orgnico-sociolgicos preexistentes prpria conformao constitucional da organizao do poder poltico, e tambm um pilar da organizao democrtico-constitucional do Estado.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
23
No pode, contudo, deixar de se fazer uma interpretao extensiva
deste segmento da norma, equiparando queles no s as pessoas
coletivas privadas, como tambm as entidades pblicas que sejam lesadas
por um ato da funo legislativa. Em favor desta soluo milita o disposto
no nmero 2 do artigo 12. da Constituio, que, em matria de direitos
fundamentais, determina que as pessoas coletivas gozam dos direitos e
esto sujeitos aos deveres compatveis com a sua natureza. A doutrina tem
discutido se o preceituado nesta norma constitucional se aplica tambm s
pessoas coletivas pblicas. Na linha de GOMES CANOTILHO e VITAL
MOREIRA, parece-me que, a resposta positiva quando se trate de
defender os direitos e a autonomia das pessoas coletivas pblicas
infraestaduais, especialmente os entes exponenciais de interesses sociais
organizados, perante o Estado propriamente dito (pense-se, por exemplo,
no direito de um municpio, de uma regio autnoma ou de uma
Universidade face ao Estado)24.
Mas a verdade que mesmo Autores que recusam a possibilidade de as
entidades pblicas e, concretamente, as autarquias locais serem titulares
de direitos subjetivos, defendem que as mesmas tm legitimidade ativa
para intentar aes contra o Estado, incluindo aes de impugnao de
regulamentos e de atos administrativos e aes de efetivao da
responsabilidade civil, nos termos do artigo 22. da Constituio,
fundamentando essa legitimidade na violao de interesses legalmente
protegidos25.
24 V. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, op. cit., volume I, pg. 330. Contra
pronunciam-se JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituio Portuguesa
Anotada, Tomo I, 2. Edio, Coimbra, 2010. 25 V. ANDR FOLQUE, A tutela administrativa nas relaes entre o Estado e os
municpios (condicionalismos constitucionais), Coimbra, 2004, pg. 405. Sem prejuzo
de, obviamente, concordar com esta posio no que respeita legitimidade ativa
dos municpios, no concordo com a respetiva fundamentao, desde logo
porque acompanho as crticas de VASCO PEREIRA DA SILVA, op. cit., Coimbra, 1996,
pgs. 281 e seguintes, distino entre direitos subjetivos e interesses legtimos,
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24
Alis, este preceito, relativo responsabilidade das entidades pblicas,
no restringe o direito indemnizao por danos causados pela atuao
das entidades pblicas quando atuam no exerccio das suas funes aos
casos de violao de direitos, liberdades e garantias, antes alarga-o a todas
as situaes em que dessa atuao resultem prejuzos para outrem.
Sendo assim, no se vislumbra qualquer razo para afastar a
possibilidade de as autarquias locais intentarem aes de responsabilidade
civil por atos da funo legislativa contra o Estado, na linha do
entendimento do Supremo Tribunal Administrativo no acrdo em apreo e
noutros processos tambm relativos Lei do Oramento26.
Efetivamente, a vinculao do oramento s obrigaes legais e
contratuais um imperativo constitucional que decorre da prpria noo
de Estado de Direito democrtico, uma vez que o Estado no pode deixar
de honrar os compromissos assumidos perante os particulares ou outras
entidades pblicas27.
26 V., por exemplo, o Acrdo de 20 de junho de 2013, proferido no Processo n.
0798/12, in www.dgsi.pt. 27 Como j afirmei antes. V. ALEXANDRA LEITO, Os poderes, cit., pg. 118.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
25
A deciso do procedimento em prazo razovel:
uma nova responsabilidade administrativa
Anotao ao Acrdo do TCA-Sul, de 11 de Abril de 2013 (proc. 07084/11)
Consultar o acrdo aqui*
Carla Amado Gomes
Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
O novo regime de responsabilidade civil extracontratual das entidades
publicas, aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro1 (de ora diante,
RRCEE) veio alterar sensivelmente no que mais directamente releva nesta
nota o modelo de responsabilizao das entidades encarregadas da
prossecuo de funes materialmente administrativas. As novidades (face
ao expressamente consagrado no anterior regime, de 1967) vieram, em
parte, acolher solues jurisprudencialmente construdas como a
imputao ao funcionamento anormal do servio e, em outra parte,
aprofundar o sentido do radical constitucional do instituto da
responsabilidade dos poderes pblicos (na funo administrativa) como a
opo da responsabilizao da pessoa colectiva por falta leve. A
impresso global do novo regime (mais uma vez: no tocante funo
administrativa) a de franca abertura possibilidade de ressarcimento de
*http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/23d30c25295e194
880257b50003d57e4?OpenDocument&Highlight=0,07084%2F11 1 Alterado pela Lei 38/2008, de 17 de Julho.
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26
danos provocados pela mquina administrativa, com solues de claro
favorecimento dos lesados2.
O caso em anlise neste aresto no constitui propriamente um exemplo
de aplicao de alguma soluo inovatria do RRCEE desde logo, o
referencial jurdico ainda o do diploma anterior (porque os factos datam
de 2005). Trata-se de um pedido de indemnizao por facto ilcito, que
reside, segundo o autor, na demora excessiva de deciso de um
procedimento concursal sediado nos artigos 2 e 6 do DL 48.051. O que
chama a ateno neste acrdo reside na causa da leso: no se prende
com a emisso (ou omisso) de acto ou regulamento ilcitos, nem com a
prtica (ou omisso) de actos materiais ilegais, mas antes com o
desenvolvimento, alegadamente moroso em demasia, de um
procedimento administrativo, que gerou uma deciso lesiva, por tardia.
Esta hiptese de imputao no provocaria curiosidade se se tratasse da
prolaco de uma sentena: conhecida a jurisprudncia constante do
Tribunal de Estrasburgo sobre atraso na administrao da justia, com base
no direito a uma deciso em prazo razovel que se extrai do artigo 6/1 da
Conveno Europeia dos Direitos do Homem (=CEDH). Extrapolar esta
hiptese para um procedimento administrativo, todavia, merece referncia,
porque o que est em causa no um produto mas um processo, no
um acto mas um conjunto sequencial de diligncias, jurdicas e materiais
que deve obedecer a uma certa racionalidade e celeridade; enfim,
estamos perante um substracto dinmico sobre o qual recai um juzo de
adequao que pode legitimar responsabilizao por facto ilcito.
Tal como se sublinha no aresto, esta extrapolao no se faz sem rede:
o referencial primeiro a CEDH, que foi absorvida pela jurisprudncia do
2 Como j tivemos oportunidade de observar em textos anteriores: Carla AMADO
GOMES, A responsabilidade civil extracontratual da Administrao por facto ilcito:
reflexes avulsas sobre o novo regime da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, e A
responsabilidade administrativa pelo risco na Lei 67/2007, de 31 de Dezembro: uma
soluo arriscada? in Textos dispersos de Direitos da Responsabilidade civil
extracontratual da entidades pblicas, Lisboa, 2010, pp. 47 segs (esp. 60-61 ) e 83
segs (esp.103-111 ), respectivamente.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
27
Tribunal de Justia da Unio e, depois pela Carta dos Direitos Fundamentais
da Unio Europeia (=CDFUE). O artigo 41 da CDFUE, sob a epgrafe Direito
boa administrao, absorveu e alargou o direito a um processo
equitativo, trazendo-o para o procedimento administrativo e esclarecendo
que uma das suas dimenses o direito a uma deciso em prazo razovel.
Conforme j tivemos oportunidade de assinalar anteriormente3, a
jurisprudncia j apontava nesse sentido. Desde o Acrdo Technishe
Universitt Mnchen, de 21 de Novembro de 1991 (caso C-269/90), que o
Tribunal do Luxemburgo vem realando a necessidade de observncia de
garantias procedimentais como a obrigao, para a instituio
competente, de examinar, com cuidado e imparcialidade, todos os
elementos relevantes do caso em apreo, o direito do interessado a dar a
conhecer o seu ponto de vista, bem como o direito a uma fundamentao
suficiente da deciso (consid. 14). Este conjunto de princpios, que a
jurisprudncia mais tarde sintetizou sob a frmula de princpio da solicitude
(cfr. o Acrdo do Tribunal Geral, de 18 de Setembro de 1995, caso T-
167/94), afigura-se determinante em domnios de competncia
predominantemente discricionria e constitui a raiz da juridicizao do
princpio da boa administrao. A esta vertente veio depois acrescer o
reconhecimento de uma dimenso temporal da solicitude administrativa,
em claro paralelo com o artigo 6/1 da CEDH, numa sntese que
corresponde ao macro-conceito de boa administrao que hoje vemos
plasmado no artigo 41 da Carta4.
3 Carla AMADO GOMES, A boa administrao na reviso do CPA: depressa e
bem, in Direito & Poltica, n 4, 2012, pp. 142 segs. 4 J aplicado pelo Tribunal de Justia no Acrdo de 15 de Julho de 2004, caso C-
501/00, onde obtemperou que incumbia Comisso, de acordo com o princpio da boa administrao, adoptar uma deciso definitiva num prazo razovel a
contar da recepo das observaes do Estado-Membro em causa, das partes
interessadas e eventualmente dos outros Estados-Membros. Com efeito, uma
durao excessiva do procedimento de exame susceptvel de aumentar, para o
Estado em causa, a dificuldade de refutar os argumentos da Comisso e de violar
assim os seus direitos de defesa (consid. 52).
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28
Este referencial da CDFUE, hoje plenamente vinculante por fora da
recepo operada pelo Tratado de Lisboa (em vigor desde Dezembro de
2009), constitui uma ncora firme do direito deciso administrativa em
prazo razovel, numa juridicizao que o transferiu de um plano da mera
gesto de eficincia para um patamar de eventual fonte de
responsabilizao por irrazoabilidade do tempo de deciso. Deve, no
entanto, sublinhar-se que, em 2004, o STA analisou um outro caso de
alegados danos provocados por violao do direito deciso em prazo
(procedimental razovel), utilizando apenas o artigo 6/1 da CEDH5 alm
dos artigos 2 e 6 do DL 48.051. O caso era mais complexo (e mais gritante:
um particular aguardou mais de 3 anos por uma deciso de licenciamento
de uma barragem de rega cuja construo seria apoiada por um
financiamento comunitrio), pois envolvia, alm da violao do citado
direito (que no foi dada por provada), alegadas afrontas ao princpio da
confiana e ao direito informao procedimental. O STA, apesar de ter
reconhecido haver zonas de penumbra na actuao administrativa em
causa, no ficou convencido de que a Administrao tivesse praticado
actos desnecessrios, com isso se desviando do padro de diligncia
tcnica exigvel e incorrendo em ilicitude geradora de responsabilidade,
tendo absolvido a R do pedido.
No aresto em apreo, to pouco se admitiu a violao do direito
deciso em prazo razovel mas a existncia deste direito no foi
contestada. O tribunal, alm dos artigos 2 e 6 do regime de 1967, dos
artigos 10, 57 e 58 do Cdigo do Procedimento Administrativo e de
disposies especificamente aplicveis relativas ao procedimento em
causa, invocou como reforo os artigos 6/1 da CEDH, 41/1 da CDFUE e 17
do Cdigo Europeu de Boa Conduta. Para a densificao do conceito de
prazo razovel, o TCA valeu-se da jurisprudncia do Tribunal de Estrasburgo
sobre o direito deciso judicial em prazo razovel, analisando
5 Acrdo do STA, I, de 2 de Maro de 2004, proc. 01531/03 (disponvel em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/19d8c4d2f14f9a5b
80256e4e004eacc2?OpenDocument&Highlight=0,01531%2F03%20)
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
29
detidamente o tempo transcorrido em cada fase procedimental, as
diligncias procedimentais, a complexidade do procedimento, a eficincia
dos servios e a conduta do lesado. O Tribunal concluiu que o facto de um
procedimento concursal para provimento de 123 tcnicos informticos de
grau 2 na carreira de informtica ter demorado quase um ano (mais
precisamente: 11 meses e 19 dias) a chegar ao seu termo no configura um
caso de violao do prazo razovel.
No tanto nossa inteno discutir aqui o acerto do juzo do TCA, mas
sobretudo iluminar a figura do atraso na deciso do procedimento como
possvel causa de imputao de responsabilidade Administrao por
facto ilcito; no entanto, no podemos deixar de nos impressionar com o
perodo de quase um ano transcorrido desde a abertura do concurso de
provimento at publicao da lista dos nomeados. certo que houve
reclamaes que tero atrasado a tomada de deciso em cerca de um
ms e meio, e que cada publicao em Dirio da Repblica leva cerca de
vinte dias (houve quatro) mas o jri ter precisado de mais de quatro meses
para elaborar a lista dos candidatos admitidos e excludos parece-nos,
muito francamente, um exagero. E mesmo sem olhar aos detalhes,
cumpre reconhecer que uma estrutura administrativa que se pretende
eficiente no se compagina com procedimentos concursais de provimento
de pessoal que demoram quase um ano a realizar-se
Num acrdo muito citado em tema de atraso na administrao da
justia (o acrdo de 9 de Outubro de 2008, proc. 0310/08)6, o STA apreciou
um caso em que a aco declarativa foi apresentada em 1995, a
subsequente execuo foi desencadeada em 1997 e, em 2001, os
autores/exequentes ainda no haviam logrado obter a plena execuo da
sentena. Esse atraso provocou-lhes danos morais, que imputaram
6 Sobre a responsabilidade do Estado por atraso na administrao da justia veja-
se, por ltimo, Ricardo PEDRO, Contributo para o estudo da responsabilidade civil
extracontratual do Estado por violao do direito a uma deciso em prazo razovel
ou sem dilaes indevidas, Lisboa, 2011.
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30
demora excessiva do processo executivo. O STA percorreu cuidadosamente
cada trmite processual (uma metodologia identicamente seguida pelo
TCA, no acrdo sub judice) mas apontou a necessidade de se adoptar, na
determinao do prazo razovel, um critrio de razoabilidade, o que nos
remete para uma anlise global, de conjunto da situao processual dos
autos em que o demandante se queixa do atraso e no para os seus
pormenores e para os prazos de cada fase e momento processual.
Utilizando esta anlise do tempo global, o STA reconheceu razo aos
autores, sublinhando que (realados nossos):
por organizao deficiente dos servios em que pontuam dois
meses de demora da secretaria na abertura da concluso do
processo ao juiz aps esgotado o prazo para realizao da prova
pericial, e um ano em que os autos ficaram parados a aguardar
despacho do juiz, houve um atraso injustificado sensvel e que afectou
de modo claro o bom andamento do servio e contribuiu para um
atraso global, que por este motivo se deve considerar excessivo e
desrazovel, caracterizando-se assim o elemento de ilicitude.
A culpa resulta da ilicitude e do prprio facto de o servio no
funcionar de acordo com os standards de qualidade e eficincia que
so esperados e constituem uma obrigao do Estado de Direito
perante os cidados.
No tendo baseado a sua deciso no RRCEE (que apenas no incio do
ano entrara em vigor), o STA parece t-lo j como pano de fundo destas
consideraes: pense-se no artigo 12 do RRCEE7, que remete para o regime
da responsabilidade por facto da funo administrativa a responsabilizao
7 Sobre o artigo 12 do RRCEE, vejam-se: Carla AMADO GOMES, A
responsabilidade civil do Estado por actos praticados no mbito da funo
jurisdicional no quadro da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, in Textos dispersos de
Direitos da Responsabilidade civil extracontratual das entidades pblicas, Lisboa,
2010, pp. 217 segs; Carlos CADILHA, Regime da responsabilidade civil
extracontratual do Estado e demais entidades pblicas, Anotado, 2 ed., Coimbra,
2011, pp. 236 segs (anotao ao artigo 12); Lus FBRICA, in Comentrio ao Regime
da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades pblicas,
Lisboa, 2013, pp. 319 segs (comentrio ao artigo 12).
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
31
do Estado-juiz em caso de violao do direito a uma deciso judicial em
prazo razovel, bem como no disposto no artigo 7/4 do RRCEE, que define
funcionamento anormal do servio como a violao de padres mdios
de resultado cuja observncia deveria ter levado os servios a agir de
forma a evitar danos. Ou seja, o atraso irrazovel e injustificado na
prolaco de uma deciso jurisdicional hoje claramente identificado com
um exemplo de culpa do servio judicial.
Voltando deciso que motiva esta nota, o atraso irrazovel e
injustificado na produo da deciso procedimental deve configurar,
paralelamente, um exemplo de funcionamento anormal do servio salvo
se se verificar, cristalinamente, incria manifesta de determinado(s)
agente(s), a qual afastar o anonimato da culpa e a destacar da
ilicitude objectiva. Por outras palavras, julgamos que os tribunais dispem
hoje de um mecanismo responsabilizante da morosidade administrativa que
entrelaar, em regra, o direito deciso em prazo razovel e o ttulo de
imputao anormal funcionamento do servio, nos termos do artigo 7/3
e 4 do RRCEE. Um prazo de deciso que, globalmente, ultrapasse os
cnones de eficincia, os padres mdios de resultado razoavelmente
exigveis de um servio, configura um facto ilcito e pode sustentar
demandas de responsabilidade dos particulares lesados, uma vez realizada
a prova do dano e do nexo de causalidade8.
Uma ltima nota para sublinhar que a responsabilizao por atraso
injustificado na emisso da deciso procedimental pressupe que o
legislador no tenha previsto qualquer forma de trmino ou extino do
8 Anote-se, por curiosidade que, em Itlia, com a adopo das carte di servizzi
(cartas de servios), desde 1994, os servios administrativos passaram a contar com
guias de conduta que estabelecem ndices de resultados de eficincia cuja
violao, mesmo que no geradora de qualquer dano (na verdade, pode at
gerar benefcio), implica a atribuio de uma quantia ao utente. Trata-se aqui, no
de responsabilizao, mas de punio, funcionando os utentes como fiscais do
bom cumprimento dos standards de actuao cfr. Oriol MIR PUIGPELAT, La responsabilidade patrimonial de la Administracin. Hacia un nuevo sistema, Madrid,
2002, pp. 267-270.
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32
procedimento alm da deciso. O ponto que queremos ressaltar que
figuras como o deferimento tcito permitem ultrapassar situaes de inrcia
administrativa, colocando o destinatrio do acto a salvo de penalizaes
por atraso embora, normalmente e em contrapartida, onerem
excessivamente os interesses pblicos, colectivos e de terceiros, pela
ausncia de ponderao que, em regra, acarretam. J a fixao de prazos
de caducidade procedimental, quer relativos a procedimentos de iniciativa
oficiosa quer externa, resolvem o problema de raiz9 embora no evitem
pedidos indemnizatrios por violao do dever de decidir quando a
demora na actuao implique caducidade, em procedimentos de
iniciativa externa (maxime, se em domnios de vinculao legal prtica do
acto).
9 Sobre alguns problemas que a soluo da caducidade, parcialmente
consagrada no Projecto de reviso do Cdigo do Procedimento administrativo,
acarreta, Carla AMADO GOMES, O projecto de reviso do CPA: breves notas,
muito tpicas, entre a satisfao e o espanto, disponvel em
http://www.icjp.pt/sites/default/files/papers/cpa-fdul.pdf [ponto c)] e em curso
de publicao na RMP.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
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Responsabilidade contratual de um estabelecimento
integrado no Servio Nacional de Sade
Anotao ao Acrdo do TCA-Norte, de 30 de Novembro de 2012 (proc.
01425/04.8BEBRG)
Consultar o acrdo aqui *
Cludia Monge
Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Advogada
I. Sumrio do Acrdo; enquadramento
o seguinte o sumrio do Acrdo do Tribunal Central Administrativo do
Norte, de 30 de Novembro de 2012 (Processo n. 01425/04.8BEBRG),
conforme elaborado pelo Juiz Relator e que, por simplicidade e em sede de
enquadramento, assim se reproduz:
1. No domnio da prestao dos servios de sade mais adequado
realidade e conduz a solues mais justas, a aplicao do regime da
responsabilidade contratual do que o regime da responsabilidade
extracontratual, pois estamos perante uma situao de facto equivalente
*http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/6346f0d05b25c15
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de um contrato de prestao de servios art. 1154. do Cdigo Civil e, por isso, a justificar a mesma proteo legal.
2. Aplica-se, por isso, neste domnio, a presuno de culpa a que alude
o artigo 799., n. 1, do Cdigo Civil, no caso de deficiente prestao do
cuidado de sade, cabendo ao hospital demandado, no caso, provar
que os seus funcionrios usaram de toda a diligncia e que s por
circunstncias imprevisveis, de caso fortuito ou de fora maior, uma
criana nasceu com leses cerebrais irreversveis, num parto por cesariana
que nenhum risco especial apresentava.
3. Ainda que se entendesse regular o caso o regime extracontratual,
sempre seria aplicvel a presuno de culpa estabelecida no n. 2 do
artigo 493. do Cdigo Civil, pois que uma interveno cirrgica de parto
por cesariana uma atividade perigosa quer por si mesma, por ser
invasiva do corpo da me e pela manipulao de um corpo
extremamente frgil como o da criana ao nascer, quer pelos meios
utilizados, instrumentos e substncias com potencialidade letal.
4. No tendo o hospital demandado feito a referida contraprova, deve
ressarcir o autor, representado pelos seus pais, pelos danos decorrentes da
situao de incapacidade a 100% para o trabalho e para qualquer
atividade, decorrente da paralisia cerebral de que ficou a padecer.
5. Dado que a vtima no manifesta sinais ou sintomas de sofrimento de
forma consciente e no ser seguro haver uma avaliao da imagem
personalizada, de acordo com o relatrio pericial, no se justifica atribuir
qualquer indemnizao a ttulo de danos morais.
6. O tribunal no est adstrito aos limites dos pedidos parciais
formulados pelo autor a ttulo de indemnizao por danos morais e danos
patrimoniais mas apenas ao montante global pedido, face ao disposto no
artigo 661. do Cdigo de Processo Civil.
7. A ttulo de danos emergentes justifica-se fixar, desde logo, nos termos
do disposto no n. 2 do artigo 564. do Cdigo Civil, uma parcela
indemnizatria, face necessidade de o autor ter at a fim da sua vida de
ser acompanhado por terceira pessoa, mostrando-se equitativa a este
ttulo, face a um perodo de vida expectvel de 70 anos e s especiais
qualidades exigveis a uma pessoa para fazer esse acompanhamento,
indemnizao de 200.000 (duzentos mil euros). 8. Ainda a este ttulo de danos emergentes deve ser fixada,
autonomamente, uma parcela indemnizatria pela perda total de
capacidade funcional.
9. Tendo em conta que em termos econmicos este prejuzo se revela,
por um lado, inferior ao prejuzo resultante da perda de capacidade de
trabalho mas, por outro lado, esta incapacidade se revelar por todo o
tempo previsvel de vida do lesado, 70 anos, entende-se equitativo fixar a
este ttulo o valor indemnizatrio parcelar de 125.000 (cento e vinte cinco mil euros).
A ttulo de lucros cessantes, pela incapacidade absoluta para o trabalho,
mostra-se equitativa a parcela indemnizatria de 125.000 (cento e vinte e cinco mil euros), tendo em conta o valor do salrio mnimo vigente em
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- Anotaes de Jurisprudncia
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2004, ano da propositura da ao, e um perodo provvel de vida ativa
de 50 anos.
Atento o Acrdo assim sumariado, so duas as questes juridicamente
controvertidas e com efeitos prticos importantes, em particular no que se
refere ao regime da prova, que gostaramos em especial de discutir: i) a
natureza contratual ou extracontratual da responsabilidade civil pela
prestao de cuidados de sade num estabelecimento pblico integrado
no Servio Nacional de Sade; ii) a qualificao da atividade como
perigosa para efeitos da aplicao do artigo 493. do Cdigo Civil.
A evidncia da importncia prtica das questes jurdicas assim
selecionadas para efeitos da presente anlise resulta do prprio acrdo e
do voto de vencido e projeto de deciso que o acompanha, de um dos
juzes do coletivo do Tribunal Central Administrativo do Norte. Para
comprovar a pertinncia das questes basta compulsar que, de acordo
com a deciso proferida: por se entender aplicvel o regime de
responsabilidade civil contratual e aplicvel o artigo 493. do Cdigo Civil e
consequentemente se afirmar invertido o nus da prova, se concluir que por
no fazer o Recorrente prova em contrrio como impunham estes regimes;
por no fazer prova de que os seus funcionrios usaram de toda a
diligncia e rigor tcnicos e que o evento danoso s ocorreu por caso
fortuito ou de fora maior, imprevisveis e inultrapassveis; e por entender
apurados todos os pressupostos da responsabilidade contratual (e tambm
extracontratual), o Tribunal nega provimento ao recurso e mantm a
deciso de recorrida de condenao no pagamento de uma
indemnizao no valor de 450.000 euros.
Ao passo que o voto de vencido sustenta o provimento do recurso e a
revogao da sentena recorrida por nele se concluir que AA, em
representao de seu filho menor PM. , no alegaram e obviamente no
provaram - o que era seu nus - n.1 do art. 487. do Cdigo Civil - qual a
causa concreta dos graves danos que o PM. apresentou aquando do
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nascimento e que persistem e se entender que contrariamente, ao
entendimento veiculado na sentena recorrida, nosso entendimento que,
em situaes de responsabilidade extracontratual, diversamente se se
versasse responsabilidade contratual, por alegada responsabilidade civil por
alegada negligncia mdica em hospitais pblicos - como o caso dos
autos - no se verifica a inverso do nus da prova, pois que tal no resulta
de nenhuma norma jurdica, nem esta tese foi defendida em qualquer
deciso dos tribunais superiores, v.g, STA, pelo que afirma-se no voto de
vencido que no existindo esta inverso do nus da prova, no podemos -
pese embora a situao objetivada nos autos - concluir pela
responsabilidade do Hospital de S. Marcos, Ru/Recorrente nos autos,
inexistindo, assim, qualquer razo para a sua condenao em qualquer
montante indemnizatrio, pelo que fica prejudicado o conhecimento
atinente contabilizao dos danos10.
II. Da responsabilidade civil como contratual: Aplicao do regime da
responsabilidade civil contratual; do artigo 799. do Cdigo Civil em
especial;
Importa, em primeiro lugar, tomar nota dos elementos que compem a
construo feita no acrdo em anlise no sentido da aplicao do regime
da responsabilidade contratual.
Assim, discorre o acrdo, nos termos que de seguida se transcrevem,
que:
No domnio da prestao dos servios de sade, entre outros,
entendemos, contudo, ser mais adequado realidade e conduzir a
10 Cfr. pginas 32 e 33 do Acrdo em anotao, disponvel em
http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/6346f0d05b25c15
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- Anotaes de Jurisprudncia
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solues mais justas, a aplicao do regime da responsabilidade
contratual.
Isto sendo certo que o Tribunal apenas est adstrito matria de
facto articulada pelas partes, sendo plenamente livre no
enquadramento jurdico desses factos art. 567., do Cdigo de
Processo Civil.
No presente litgio, em que se discute a responsabilidade por danos
alegadamente causados por atos mdicos praticados num hospital
pblico, deve ter-se por referncia a disciplina jurdica da
responsabilidade contratual, mais concretamente da prestao de
servios, pois estamos perante uma situao de facto equivalente
de um contrato de prestao de servios art. 1154 do Cdigo Civil -
, e, por isso, a justificar a mesma proteo legal (vd. Figueiredo Dias e
Jorge Sinde Monteiro, A responsabilidade mdica em Portugal, no BMJ
332, p. 50, onde se referem as figuras das "relaes contratuais de
facto" e do "contrato de adeso" neste domnio). Designadamente, no
que diz respeito s regras de repartio do nus da prova, as quais, no
domnio da responsabilidade contratual, so mais favorveis ao credor
(lesado), existindo neste domnio presunes de culpa que a lei no
estabelece no domnio da responsabilidade extracontratual (vd. art.
799, n.1, do Cd. Civil; Figueiredo Dias e Jorge Sinde Monteiro, ob.
cit., p. 38 e segs.)
Faz mais sentido e justo que sejam os tcnicos que prestam os
cuidados de sade, neste caso o membros da equipa mdica que
procedeu ao parto, a provarem que agiram com zelo, precisamente
porque dominam ou suposto dominarem - os conhecimentos
tcnicos na sua rea de atuao, do que fazer recair o nus da prova
da falta de zelo sobre os pacientes que, na generalidade dos casos,
no tm conhecimentos tcnicos na rea da sade.
Para j no falar na natural inibio dos tcnicos da rea deporem
de forma desfavorvel aos seus colegas de profisso.
Alis, no estamos no caso concreto, em bom rigor, perante
responsabilidade emergente de atos de gesto pblica, uma vez que
na prestao de assistncia hospitalar, designadamente, no
acompanhamento e assistncia a um parto, no existem prerrogativas
de autoridade ou uma regulamentao de natureza pblica que
permita distinguir, como ato de gesto pblica, a assistncia prestada
por um hospital pblico e a assistncia prestada, como ato de gesto
privada, por um hospital particular.
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Tratando-se de um ato de gesto privada sempre existiria
responsabilidade pelo risco, ou seja, independente de culpa, a onerar
o Ru, Hospital (), nos termos das disposies combinadas dos art.s
493. e 494., do Cdigo Civil.
De todo o modo, como se disse, estamos perante uma situao
contratual de facto e iremos tomar, por isso, como quadro jurdico de
referncia para o caso concreto, a responsabilidade contratual (e a
obrigao de indemnizar dela decorrente), prevista nos artigos 798. e
seguintes (e artigos 562. e seguintes), do Cdigo Civil.
Em sntese, da matria de direito assim tratada resultam os seguintes
argumentos utilizados pelo Tribunal Central Administrativo do Norte, no
sentido da aplicao do regime da responsabilidade civil contratual ainda
que o estabelecimento de sade seja um estabelecimento de sade
pblico integrado no Servio Nacional de Sade (SNS): i) a situao de
facto, de prestao de cuidados de sade num estabelecimento integrado
no SNS, equivalente de um contrato de prestao de servios (artigo
1154. do Cdigo Civil) e, por isso, justifica a mesma proteo legal, o
mesmo dizer, em caso de incumprimento, a aplicao do regime previsto
nos artigos 798. e seguintes do Cdigo Civil, em especial o da inverso do
nus da prova fixado no artigo 799. do Cdigo Civil; ii) o regime da
responsabilidade civil contratual mais favorvel ao lesado; iii) justifica-se a
inverso porquanto o devedor tem mais meios, em razo dos especiais
conhecimentos tcnicos, para afastar a culpa do que tem o credor para
provar a culpa; iv) a prestao de assistncia hospitalar no exige
prerrogativas de autoridade ou uma regulamentao de natureza pblica
que permita distinguir, como acto de gesto pblica, a assistncia prestada
por um hospital pblico e a assistncia prestada, como acto de gesto
privada, por um hospital particular11.
11 Vide pginas 15 e 16 do Acrdo em anotao, disponvel em
http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/6346f0d05b25c15
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RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
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Concordamos com os trs primeiros argumentos empregues na defesa
da aplicao do regime da responsabilidade civil contratual e duvidamos
da necessidade, pertinncia e adequao do ltimo dos argumentos, sem
deixar, porm, de salientar que a ao ajuizada sob a aplicao do
Decreto-Lei n. 48051, de 21 de novembro de 1967, e no sob a aplicao
da Lei n. 67/2007, de 31 de dezembro.
Do ltimo dos argumentos enunciados afastamo-nos porquanto os atos
de prestao de cuidados de sade, ainda que materialmente iguais aos
realizados em estabelecimentos de sade privados, no deixam de ser, a
valer tal distino, atos de gesto pblica, pois so exercidos em
cumprimento da tarefa fundamental de servio pblico de sade, nos
termos dos artigos 9., alnea d), e 64.. n. 2, alnea a), da Constituio da
Repblica Portuguesa12 13.
12 Ainda que aplicveis os artigos 798. e seguintes do Cdigo Civil, a jurisdio
competente naturalmente a administrativa, atento o mbito do artigo 4., n. 2,
do Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos. 13 Sobre a qualificao da atuao dos mdicos num estabelecimento pblico
de sade, vide Diogo Freitas do Amaral, Natureza da Responsabilidade Civil dos
Actos Mdicos Praticados em Estabelecimentos Pblicos de Sade, in Direito da
Sade e Biotica, Lisboa, 1991, pgina 128, quando afirma que: Os mdicos que
actuam ao servio de um estabelecimento pblico de sade no exercem uma
actividade materialmente distinta da dos mdicos que trabalham por conta prpria
ou para uma clnica privada; to pouco exercem poderes de autoridade pblica
sobre os doentes ou sobre quaisquer outros particulares. Assim, pelas duas primeiras
teorias (leia-se, a teoria da natureza material da atividade e a teoria dos poderes
de autoridade) que analismos os actos mdicos que envolveriam exerccio de
uma atividade de gesto privada. No entanto, luz da terceira teoria (leia-se, a
teoria do enquadramento institucional), no pode sofrer dvida que a actividade
mdica nos estabelecimentos pblicos de sade se insere num enquadramento
institucional de carcter pblico: ela constitui exerccio de uma funo pblica,
desenvolve-se sob a gide de normas de direito pblico, e condiciona os mdicos
em funo de deveres e restries especiais de carcter pblico.
foroso concluir que uma qualificao como ato de gesto pblica (se se quiser
hoje manter esta ciso e discusso, que, em face da Lei n. 67/2007, de 31 de
dezembro, no nos parece necessria ou especialmente frutuosa) no afasta a
possibilidade de aplicao de normas do Cdigo Civil, em particular dos artigos
798. e seguintes, em concurso, atento o concurso de ttulos de imputao, com o
regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades
pblicas vide, quanto a referncia neste mbito ao concurso de ttulos de imputao, Cludia Monge, A responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares
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Vejamos, pois, com maior desenvolvimento os trs primeiros argumentos
enunciados no acrdo sentido da aplicao do regime da
responsabilidade civil contratual.
No voto de vencido afirmado, quanto aplicao do regime da
responsabilidade contratual e inverso do nus da prova professada no
acrdo, que o certo que nenhuma norma ou diploma legal possibilita
este entendimento14. Ora, a norma legal que possibilita este entendimento
a integrao da situao de facto na previso do artigo 798. do Cdigo
Civil, sendo, consequentemente, aplicvel o artigo 799..
A prestao de cuidados de sade, seja num estabelecimento de sade
pblico ou num estabelecimento de sade privado, integra um feixe
comum de situaes jurdicas ativas e passivas15. As situaes jurdicas que
caraterizam a prestao de cuidados de sade enquanto tipo social e
integrados no Servio Nacional de Sade por atos de prestao de cuidados de
sade, in Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades
pblicas, e-book Instituto de Cincias Jurdico-Polticas da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, coord. Professores Doutores Carla Amado Gomes e Miguel
Assis Raimundo, 2013, pginas 4 a 8 e 18 a 22.
Afastamo-nos, assim, da afirmao do Ilustre Professor Freitas do Amaral quando
assaca, como consequncia da qualificao da atuao do mdico num
estabelecimento de sade como ato de gesto pblica, quanto determinao
do direito aplicvel, que: dado que est em causa uma responsabilidade por
actos de gesto pblica, o direito substantivo aplicvel no o direito civil, mas sim
o direito pblico, sendo que a sede da matria , fundamentalmente, o Decreto-
Lei n. 48051, de 21 de Novembro de 1967 (cfr. Diogo Freitas do Amaral, Natureza
da Responsabilidade Civil dos Actos Mdicos Praticados em Estabelecimentos
Pblicos de Sade, cit. , pgina 130), 14 Vide pgina 33 do Acrdo em anotao, disponvel em
http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/6346f0d05b25c15
880257aca00629548?OpenDocument. 15 Como temos vindo a sustentar, h um feixe comum que aplicvel a qualquer
prestao de cuidados de sade, ainda que o seu quadrante ou a sua ambincia
seja de direito pblico ou de direito privado (cfr. Cludia Monge, "Contributo para
o estudo do Direito da Sade: a prestao de cuidados de sade" (Tese de
Mestrado em Cincias Jurdico-Polticas, Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa 2002). Podemos, na verdade, identificar um feixe comum de direitos
subjetivos dos destinatrios da prestao de cuidados de sade,
independentemente do estatuto pblico ou privado do estabelecimento onde so
prestados os cuidados de sade, o que torna paradoxal a existncia de dois
regimes distintos e de um contencioso de responsabilidade civil dual (ibid., pgina
137).
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
41
impendem sobre os prestadores de cuidados de sade, sejam o
estabelecimento de sade pblico ou privado, so as mesmas: a prestao
de cuidados de sade adequados, de acordo com as leges artis e em
tempo til, o dever de informao, o dever de obter consentimento prvio
e esclarecido, o dever de sigilo, o dever de segurana,
Estas situaes jurdicas integram uma relao obrigacional complexa16 e
tm fonte legal e contratual e so deveres especficos e no deveres
genricos. Se so deveres especficos e no genricos, o regime de
responsabilidade civil obrigacional e no aquiliana17-18, devendo, assim,
em caso de violao dos deveres especficos, em caso de incumprimento,
ser aplicado o artigo 798. e no o artigo 483. do Cdigo Civil ou o Decreto-
Lei n. 48051, de 21 de novembro de 1967, ou a Lei n. 67/2007, de 31 de
dezembro.
Salienta-se que, como refere MENEZES LEITO, a diferena entre a
responsabilidade delitual e a responsabilidade obrigacional que,
enquanto a responsabilidade delitual surge como consequncia da
violao de direitos absolutos, que aparecem assim desligados de qualquer
relao inter-subjectiva previamente existente entre lesante e lesado, a
16 Cfr. da Autora, A responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares integrados
no Servio Nacional de Sade por atos de prestao de cuidados de sade, cit.,,
pgina 2. 17 J, assim, o sustentmos, em A responsabilidade dos estabelecimentos
hospitalares integrados no Servio Nacional de Sade por atos de prestao de
cuidados de sade, in Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das
entidades pblicas, e-book Instituto de Cincias Jurdico-Polticas da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, coord. Professores Doutores Carla Amado Gomes
e Miguel Assis Raimundo, 2013 (disponvel em http://www.icjp.pt/publicacoes),
pgina 3, e em Le droit de la sant et la relation de soins, in Le droit de la sant et la
justice, colec. Sminaire d'actualit de droit mdical, Bibliothque de Droit de la
Sant et d'thique Mdicale (disponvel em http://www.bnds.fr). 18 No sentido da afirmao da responsabilidade civil por ato ou omisso do
mdico como obrigacional em virtude da incidncia de deveres especficos, vide
Pedro Romano Martinez, Responsabilidade Civil Por Acto ou Omisso do Mdico -
Responsabilidade Civil Mdica e Seguro de Responsabilidade Civil Profissional, in
Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Vol. II,
Coimbra, 2011, pgina 479, e Direito das Obrigaes Programa 2010/2011,
Apontamentos, 3. ed., Lisboa, 2011, pgina 103.
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responsabilidade obrigacional pressupe a existncia de uma relao inter-
subjectiva, que primariamente atribua ao lesado um direito a prestao,
surgindo como consequncia da violao de um dever emergente dessa
relao especfica19. Assim reconhecendo, afigura-se correto considerar a
responsabilidade emergente da prestao de cuidados de sade, seja qual
for o modelo e a natureza (pblica ou privada) de relao jurdica, como
obrigacional.
Como reconhece VELTEN, por referncia ao quadro jurdico alemo, o
fundamento de pretenso no mbito da responsabilidade mdica
contratual , segundo a opinio geral, a violao contratual positiva do
contrato de tratamento20.
A propsito da prevalncia da responsabilidade contratual, afirma
PEDRO ROMANO MARTINEZ que muito frequentemente, em caso de dano
causado por acto mdico discute-se acerca da existncia de uma relao
contratual entre o lesado e o autor da leso ou entre o primeiro e o hospital
onde o segundo labora e, nesse mbito, discute-se no s qual o tipo de
contrato, como a relao entre os trs vnculos (do paciente com o
mdico, entre este e a entidade hospitalar e entre o paciente e o
hospital)21. Quanto ao hospital, afirma PEDRO ROMANO MARTINEZ, que
tendo sido ajustado um contrato, a cuja formao preside a regra do
consensualismo (art. 219.), a responsabilidade pelo incumprimento
obrigacional, tratando-se de um contrato de prestao de servios
atpico, que segue o regime geral do mandato (art. 1156.), pelo que, se
durante a execuo do contrato foram causados danos ao paciente por
facto de terceiro (mdico contratado pelo hospital para a prtica de actos
19 Cfr. Lus Manuel Teles de Menezes Leito, Direito das Obrigaes, Volume I,
Introduo. Da constituio das obrigaes, 9. ed., Coimbra, 2010, pgina 294. 20 Cfr. Wolfram Velten, Der medizinische Standard im Arzthaftungsproze (Ein
Beitrag zu Umfang und Grenzen der Darlegungslast von Arzthtaftungsklgern
bezglich der Standards medizinischer Heilbehandlung), Hamburg, 2001, pgina 14. 21 Cfr. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigaes Programa 2010/2011,
Apontamentos, cit. , pgina 101. Cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Os Contratos Civis
de Prestao de Servio Mdico, in Direito da Sade e Biotica, Lisboa, 1996, em
especial pgina 90.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DAS ENTIDADES PBLICAS
- Anotaes de Jurisprudncia
43
mdicos), a responsabilidade do hospital obrigacional por facto de
terceiro22.
Entendemos assim que, mesmo num quadro de qualificao como o dos
autos, relativamente a uma relao jurdica administrativa, em que a
prestao de cuidados de sade realizada num estabelecimento pblico
de sade integrado no Servio Nacional de Sade, correto afirmar a
perspetiva contratual e a responsabilidade obrigacional23.
22 Cfr. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigaes Programa 2010/2011,
Apontamentos, cit. , pginas 101 e 102. Vide ainda Responsabilidade Civil Por Acto
ou Omisso do Mdico - Responsabilidade Civil Mdica e Seguro de
Responsabilidade Civil Profissional, cit. , pgina 464. 23 Cfr. Cludia Monge, A responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares
integrados no Servio Nacional de Sade por atos de prestao de cuidados de
sade, cit., pgina 9.
Em sentido que favorece a afirmao do modelo contratual, atente-se que
FIGUEIREDO DIAS e SINDE MONTEIRO analisam, de iure condendo, a
responsabilidade contratual dos hospitais pblicos e vm concluir que o quadro do
contrato parece-nos o mais apropriado para vazar a relao, caracterizada por
uma ideia de confiana, entre o doente e a entidade prestadora dos servios de
sade e aludem s relaes contratuais de facto (faktische Schuldverhltnisse) e s relaes de massas (Massenverkehr), resultantes de um comportamento social tpico (Sozialtypisches Verhalten) (cfr. Jorge Figueiredo Dias/Jorge Sinde
Monteiro, Responsabilidade Mdica em Portugal, Boletim do Ministrio da Justia,
n. 332, 1984, pginas 48 e 49, nos termos tambm referidos no acrdo em
anlise).
Veja-se ainda Joo lvaro Dias, Procriao assistida e responsabilidade mdica,
Boletim da Faculdade de Direito, Studia Iuridica, 21, Coimbra, 1996, pginas 240 e
241, quando afirma que: a fim de enquadrar tal responsabilidade poder fazer-se
apelo quer ao instituto dos contratos de adeso quer figura das relaes
contratuais de facto (faktische Schuldverhltnisse) e mais especificamente s
relaes de massas (Massenverkehr) resultantes de um comportamento social tpico (Sozialtypisches Verhalten), sendo inegvel um fenmeno de massificao
no acesso aos servios mdicos das instituies e servios pblicos de sade,
qualquer das solues contrato de adeso ou relao contratual fctica tem potencialidades para retratar com fidelidade e rigor tcnico a relao que se
estabelece entre o doente e a instituio ou servio pblico de sade e prossegue
para afirmar que estando em causa a tutela de direitos to essenciais como o
direito sade, integridade fsica e vida, bem se compreende que, nos limites
do juridicamente admissvel, a qualificao das relaes contratuais poder
contribuir para a sua personalizao e, porque no diz-lo, para um sentido de
responsabilidade acrescida por parte dos mdicos que a desempenham funes.
Veja-se tambm M