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Discutindo o Conceito de Relativismo Cultural Abrangências e Limites
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DISCUTINDO O CONCEITO DE RELATIVISMO CULTURAL: ABRANGNCIAS E LIMITES DISCUTER LE CONCEPT DU RELATIVISME CULTUREL:
LES PORTEES ET LES LIMITES
Ldia Maria Pires Soares Cardel1
Universidade Federal da Bahia - UFBA
RESUMO: Neste artigo, propomos discutir a instrumentalizao conceitual do relativismo cultural no mbito do pensamento antropolgico contemporneo. No sentido epistemolgico, objetivamos estabelecer as balizas e as abrangncias deste instrumento terico-analtico na produo etnogrfica, tendo como questo de fundo o papel tico do trabalho do campo e da escrita etnogrfica enquanto produes cientficas. Palavras-chave: relativismo cultural; tica; etnografia. RSUM: Dans cet article, nous nous proposons de discuter l'instrumentalisation conceptuelle du relativisme culturel au sein de la pense contemporaine anthropologique. Dans le sens pistmologique, le but principal c'est tablir les objectifs et les champs de cet instrument thorique et analytique dans la production ethnographique ayant comme toile de fond la question du rle thique du travail de terrain et de l'criture ethnographique alors que une production scientifique. Mots-cls: relativisme culturel, thique, ethnographie.
1. Professora Associada do departamento de Sociologia (UFBA), membro permanente da Ps-Graduao em Cincias Sociais
(UFBA) e da Ps-Graduao Multidisciplinar em Cultura e Sociedade (UFBA), pesquisadora convidada da Universit de
Strasbourg (Frana) e Coordenadora do Ncleo de Estudos Ambientais e Rurais (NUCLEAR-UFBA). E-mail:
79 Discutindo o Conceito de Relativismo Cultural: abrangncias e limites
Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.
At meados da dcada de 90 do sculo
XX, convencionou-se que a Antropologia, em
contraposio s Cincias Sociais como um
todo, vinha passando por um perodo de
calmaria e sem grandes crises que abalassem
suas estruturas empricas e tericas, nas quais
estava solidamente alicerada: as teorias
clssicas e o trabalho etnogrfico, mitificados e
personalizados nos nomes fundadores que
compunham, e ainda compem, a histria
desta modalidade de pensamento cientfico.
Sendo considerada ainda uma cincia do
extico no mbito das cincias sociais, a
Antropologia, mesmo passando por diversas
crticas internas, advindas principalmente da
linhagem dos antroplogos considerados ps-
modernos, no conseguiu at o presente
momento construir uma reflexo tica2
aprofundada sobre um dos paradigmas mais
centrais que lhe servem de alicerce para a
compreenso da alteridade.
Ao identificarmos as estruturas tericas
da cincia antropolgica, observamos que esta
permanece com a sua epistemologia
considerada clssica e, portanto, quase
inaltervel, calcada numa discusso inequvoca
da unidade biolgica e da diversidade cultural
da humanidade. Estamos em pleno sculo XXI,
e nossa cincia ainda se baseia totalmente nas
descobertas feitas pelos nossos antepassados.
Impossvel negar a importncia de
Durkheim, Mauss, Boas, Weber, Marx,
Malinowski e tantos outros clssicos para a
2. Seguirei aqui a concepo Kantiana sobre a concepo
de tica. Segundo Kant, ns somos seres naturais e
morais ao mesmo tempo, e a nossa verdadeira liberdade
s poder ser construda por meio do dever intrassocial.
Nesta concepo, Kant afirma que, no reino da natureza,
impera a razo terica ou especulativa e, no reino
sociocultural (do humano), prevalece a razo prtica,
onde a liberdade construda tendo como parmetro, no
a volio individual, mas a liberdade coletiva
estabelecida por normas e fins morais. (Ver Chau, 2000)
consolidao do que eles mesmos chamaram
de uma nova rea de conhecimento. As
Cincias Sociais nasceram jovens pelas mos
destes grandes pensadores, e agora
envelhecem nas nossas, sem que possamos
acelerar a contento o seu processo de
transformao e amadurecimento. Parece-nos
que esquecemos o recado dado pelos criadores.
Eles esperavam que seus seguidores ajudassem
a consolidar uma Cincia com o mesmo mpeto
criativo e inovador com que eles a criaram; e
ns, ao l-los e interpret-los, ainda nos
debatemos com reas obscuras,
principalmente no que concerne s questes
terico-metodolgicas e suas aplicabilidades
em uma prxis cientfica.
No h dvida de que os clssicos
pensadores e fundadores das Cincias Sociais
permanecero no nosso imaginrio e nas
nossas produes cientficas, pois suas obras
so fonte permanente de dilogo
epistemolgico. Penso que esta realidade a
distintividade das Cincias Humanas, mas, por
outro lado, o que devemos mudar, inovar,
transformar, ou melhor, quais paradigmas
podem ser abandonados ou transformados sem
causar prejuzo nossa identidade cientfica?
Entendo que esta busca est intrinsecamente
ligada ao processo histrico das Cincias
Sociais, que, no momento da sua consolidao
enquanto um campo acadmico, dividiu-se em
subreas disciplinares, como a Sociologia, a
Antropologia e as Cincias Polticas. E, dentro
dessa subdiviso, a Antropologia aferrou-se na
busca pela compreenso do outro, ou seja, na
investigao das culturas distantes, no apenas
e necessariamente sob a tica espacial, mas
principalmente sob o ponto de vista
cosmolgico. E, ao pensar este outro, forjou
um paradigma que lhe permitiria compreender
80 Ldia Maria Pires Soares Cardel
Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.
a lgica simblica deste diferente sem encaix-
lo em estruturas sociais preexistentes e
preconcebidas. Todavia, esse movimento s foi
possvel quando o Homem comeou a olhar
para si mesmo num perodo especfico da
histria ocidental.
Aps o perodo Renascentista, quando o
pensamento ocidental iniciou o seu processo
de secularizao, a Filosofia Social, matriz do
pensamento das cincias humanas, promoveu
o Homem como o objeto sine qua non da
dvida metdica e da observao laica e
criativa. Tornar-se objeto do seu prprio
pensamento racional e cientfico foi uma das
maiores revolues efetuada pelo Homem da
sociedade ocidental; e a Antropologia
alimentou-se do produto desta revoluo para
se consolidar e se firmar dentro deste
pensamento cientfico. No entanto, quando no
perodo Moderno este pensamento foi taxado
negativamente de positivista, a Antropologia
passou a questionar a lgica cientfica3 atravs
de um conceito amplo e inovador, qual seja, o
Relativismo Cultural, que a fez saltar do
paradigma evolucionista e biologicista para o
paradigma funcionalista e culturalista.
Relativizar foi a maneira encontrada por
ns (uma categoria ampla, que engloba todos
que se consideram herdeiros de uma forma
ocidental de viver e de pensar), para
construirmos o outro (tambm uma categoria
ampla, que reifica qualquer ser humano
estranho s normas e regras ocidentais), e nos
separarmos dele definitivamente, como faz
qualquer cientista-sujeito com seu objeto de
pesquisa.
3. O pensamento estruturalista de Claude Lvi-Strauss foi
o mais incisivo. Para uma viso mais pertinente, ver as
seguintes obras deste autor: Antropologia Estrutural,
vol.1 e vol.2 (2008).
Entretanto, no apenas dessa forma
que este conceito est sendo apropriado nesse
nosso mundo Contemporneo. A linguagem
miditica estabelecida pela mundializao do
capital real e simblico adaptou-se forma
mais rasteira e cruel de relativismo, criando
regras politicamente corretas, tanto para o
mundo cotidiano como para o universo
cientfico, que nada mais so do que o mais
perverso desrespeito pelas reais diferenas e
similitudes socioculturais e individuais
existentes. Esta vulgarizao de um
pensamento cientificamente slido, criada pela
banalizao e pela incompreenso com relao
epistemologia cunhada pelo historicismo
alemo e pelo funcionalismo francs
apresenta-se hoje, para a cincia culturalista,
como o mais profundo abismo entre um saber
cientfico e uma tica humanista.
Neste universo ps-paradigmtico,
marcado pela crise de representao e de
fragmentao do objeto em estudo, a
Antropologia apega-se cada vez mais sua
base metodolgica arraigada ao trabalho
etnogrfico, uma das fontes de distino frente
s suas cincias-irms. H um certo consenso
atual de que a viso de mundo de um ourives
urgentemente necessria: e precisamente
neste ponto que residem no momento a fora e
a atratividade da Antropologia
cultural(MARCUS; FISCHER, 1986, p. 6).
Como tambm que
[...] as inovaes contemporneas no texto da antropologia, ocasionada pela mesma crise de representao que afeta outras disciplinas, a esto levando em direo a uma sensibilidade histrica e poltica de um refinamento sem precedentes, que est transformando a maneira como a diversidade cultural retratada (idem, 1986).
Esta viso otimista que marca o incio do
movimento ps-moderno na Antropologia deu,
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Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.
sem sombra de dvida, um novo lan para esta
disciplina. Juntamente com esse movimento
interno, a Antropologia alcanou nos ltimos
anos uma popularidade considervel entre a
mdia de um modo geral, exatamente pela
capacidade de relativizar e de contextualizar o
diferente.
Porm, esta imagem construda para e
pela Antropologia, de uma cincia que reifica e
normatiza o diferente, por meio de um
processo de intensa fragmentao,
preocupante. Vivemos numa ausncia de
autoridade paradigmtica que pode, em algum
momento, transformar-se numa ausncia de
legitimidade do saber cientfico. Tentar
compreender a fragmentao como um
produto da diversidade cultural o objetivo
fundante da dmarche antropolgica.
Entretanto, fragmentar-se enquanto cincia
identificando-se com o universo emprico do
objeto estudado pode significar um retorno s
amarras conservadoras que impedem o
surgimento de novos paradigmas cientficos.
Nesse momento, vale a pena ser feito o
seguinte questionamento: at que ponto o
relativismo cultural pode ajudar a
Antropologia a compreender o
desenvolvimento do Homem e da Humanidade
enquanto um todo?
Toda forma de pensamento cientfico traz
no seu bojo uma relao de assimetria e
hierarquia com o elemento desejado, enquanto
um objeto de anlise. Sobrevm desta
imponderabilidade as complicaes tericas e
ticas que as cincias humanas encontram ao
construrem seus paradigmas e suas
epistemologias.
Dan Sperber (1992), em sua discusso
sobre as proposies lgicas que do base ao
princpio do relativismo e dos problemas de
ordem epistemolgica advindos da utilizao
abusiva deste princpio pela Antropologia,
vaticina:
Que as crenas culturais sejam representacionais quase tautolgico; que sejam semiproposicionais est implcito, s vezes, mesmo explcito na maneira como os crentes as exprimem e comentam. Uma tal concepo acerca das crenas culturais rica em implicaes; apenas uma destas implicaes nos interessa aqui: o relativismo suprfluo [...] So os escritos dos antroplogos que alimentam o relativismo e, contudo nada revela melhor o seu carter errneo que a prpria atividade antropolgica (idem, p. 92-95).
Esta afirmao inquietante. como se
Sperber estivesse cometendo um infanticdio.
Como abrir mo do relativismo sem destruir as
bases constitutivas da moderna Antropologia?
Por outro lado, como manter um conceito que
em si mesmo carrega tantas contradies
lgico-cientficas e tico-humanistas?
Uma das questes que mais incomodam
no relativismo o fato dele negar, a princpio, a
possibilidade cientfica da compreenso das
diferenas. Se cada universo cultural tem os
seus prprios critrios de explicao racional e
o seu prprio leque de metforas possveis,
sem nenhum vnculo com leis universais, na
prtica, o estudo etnogrfico torna-se incuo.
Esta a ideia lanada por Rouanet (1993)
em seu pertinente dilogo com Cardoso (1990)
sobre a tica e o saber cientfico no mbito da
Antropologia. O mal-estar causado pelo uso
acriterioso do relativismo incentivou um
frutfero debate entre ambos e produziu
algumas propostas pertinentes sobre o papel
do antroplogo frente ao seu objeto de
pesquisa.
Tendo como ponto central o problema da
moralidade na Antropologia, frente a sua
conhecida tradio relativista, Cardoso
estabelece esta discusso criando espaos
epistemolgicos diferenciados entre a
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Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.
Antropologia e a Filosofia. Desta forma, sente-
se confortvel para afirmar que se para a
Filosofia a questo fundamentar
racionalmente uma tica universal, para o
antroplogo ou cientista social como agir
eticamente (1990, p. 28). Este jogo entre uma
cincia que pensa e uma cincia que faz, um
estratagema legtimo de uma cultura que
privilegia o fazer, estabelece um vcuo no
dialgico com a pretenso de colocar a filosofia
e seu interlocutor no seu devido lugar.
Pra corroborar a sua viso de que a tica
para a Filosofia possui um foco diferente do da
Antropologia, Cardoso lana mo da hiptese
de H. Groenewold4, que separa as aes
humanas em trs espaos distintos: a
microsfera, o espao da famlia, do
matrimnio e da vizinhana; a mesosfera, o
espao da poltica nacional; e a macrosfera, o
espao dos interesses vitais de toda a
humanidade. Cada espao regulado por um
nvel de interesses. Na microsfera, as regras e
normas estabelecem a conduta entre os
indivduos e os sexos distintos; na mesosfera,
os interesses grupais estabelecem os princpios
comunitrios; e na macrosfera, os princpios
ticos universalistas se impem para a
preservao da humanidade, como, por
exemplo, a proteo dos ecossistemas e a
regulamentao do uso da energia nuclear.
Apenas nesta esfera, as aes no so
passveis de relativizao.
Tomando como referncia esta
desarticulao das aes humanas em espaos
sociais diferenciados, Cardoso encontra uma
sada para a ao do antroplogo ao se apoiar
na seguinte questo: No exatamente na
micro e mesosfera que se encontra o objeto
4. Especificamente a obra Science and Macro-ethicson a Finite Earth, comunicao feita no colquio internacional realizado na Pennsylvania State University,
1971.
primeiro do estudo antropolgico?5 Porm, o
que Cardoso no leva em conta que estes
espaos so realmente permeveis e
intercambiveis. Ferindo a lgica
argumentativa, prope uma fragmentao da
ao humana em espaos sociais relativistas e
espaos sociais universalistas, como se essa
falha diviso terica pudesse resolver o
paradoxo terico-emprico da Antropologia
neste ponto que Rouanet contra-
argumenta. Na sua perspectiva, obvio que as
aes humanas tm que ser respeitadas e
relativizadas. Contudo, existe um limite
estabelecido por uma tica argumentativa
que permeia todo o universo das aes
humanas, sejam elas da micro, meso ou
macrosfera.
Segundo sua viso crtica, nem mesmo a
Antropologia ps-moderna consegue se livrar
do mais antigo dos fetiches da Antropologia
(ROUANET, 1993, p. 257), mesmo lanando
mo dos paradigmas da intersubjetividade, da
polifonia e do enfoque dialgico. O que
Rouanet observa de forma pertinente que os
autores ps-modernos reificam o paradigma
do relativismo atravs da aceitao tcita da
existncia de uma incomensurabilidade entre o
eu e o outro. Seguindo uma linha que exclui a
moldura argumentativa da razo cientfica, o
antroplogo ps-moderno
jamais problematiza o que dito pelo informante, o que resulta numa atitude de extraordinria condescendncia... [e] est to ansioso em mostrar que no colonialista que se esquece de que a melhor maneira de tratar os homens
5. Pois bem: se tomarmos como referncia essa separao das aes humanas em espaos distintos, ainda
que articulados e articulveis, verificamos que
precisamente na micro e mesosfera que a postura
relativista, exercitada pelos antroplogos (naturalmente
que mais na primeira esfera do que na segunda), mais se
aplica e ganha consistncia terica na lgica da
disciplina (CARDOSO, 1990, p. 28).
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Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.
como iguais argumentar com eles [...] (ROUANET, 1993, p. 258).
Com estes argumentos, Rouanet est
perguntando a ns, antroplogos, tendo
Cardoso como um interlocutor, onde a
Antropologia se encaixa e como ela quer ser
configurada no rol das Cincias Humanas. As
ambiguidades que ele observa nas bases
tericas e metodolgicas do pensamento
antropolgico contemporneo fazem parte, a
meu ver, das razes da Antropologia. A nossa
cincia sempre teve um certo desprezo pelos
limites explicativos da lgica racional, e esta
viso crtica resultou em problemas
relacionados s suas bases epistemolgicas.
Por exemplo, a simples existncia da
Antropologia enquanto um estudo do outro
pressupe a falibilidade do pressuposto
relativista, j que este pressuposto cria uma
incomensurabilidade entre seres
biologicamente (geneticamente) idnticos. Se a
Antropologia se curvar apenas sobre as
diferenas culturais e ignorar os avanos
contemporneos dos estudos na rea da
Gentica e da Etologia, sua existncia
enquanto cincia ser legitimamente colocada
em xeque.
Entretanto, o que ainda mantm a
validade da Antropologia enquanto um ramo
do pensamento cientfico que, apesar dos
antroplogos acreditarem na singularidade
incondicional de cada cultura, todos, sem
exceo, partem do princpio de que existem
traos invariantes entre os homens. Um
exemplo mximo a universalidade da
estrutura comunicativa das culturas. A
linguagem e a capacidade de comunicao so
aspectos natos do Homo sapiens sapiens, e
atravs desta capacidade que a Antropologia
prope, sem ainda muita convico, um
processo dialgico de conhecimento.
A proposta de Rouanet, para que a
Antropologia alcance um conhecimento vlido
e objetivo, no pode ser considerada apenas
como uma retrica de um representante de
uma cincia que busca de forma obsessiva
fundamentar racionalmente uma tica
universal, como afirma Cardoso. A
Antropologia necessita urgentemente se
reafirmar como um pensamento cientfico, o
que no significa que tenha que se curvar a
dogmas preestabelecidos.
O pensamento cientfico, por ser uma
inveno e um produto histrico do Homem
ocidental, impe uma forma especial de viso
sobre a realidade que visa aumentar um tipo
especfico de conhecimento e/ou melhorar a
compreenso acerca dos fenmenos j
conhecidos. Assim, a Antropologia, sendo parte
integrante da lgica cientfica, possui um corpo
epistemolgico e uma estrutura terico-
metodolgica falvel e mutvel como qualquer
conhecimento cientfico, e que no se coaduna
com verdades preestabelecidas como as
impingidas pelo princpio do relativismo
cultural.
Se como antroplogos invertermos o
nosso foco de interesses e nos voltarmos para a
Antropologia enquanto um conjunto de regras
a serem analisadas, nos deparamos no
somente com o problema do fazer cientfico,
mas principalmente nos damos conta da
dimenso tica, pouco discutida, embutida em
uma cincia positivamente ambiciosa que se
prope pensar qualquer grupamento humano.
Neste movimento inverso, perguntas bsicas e
simples de serem respondidas transformam-se
em teoremas prontos a nos devorarem. O que
significa para a Antropologia o direito de vida e
de morte? O respeito e a equivalncia entre os
gneros? A opo sexual dos indivduos? At
onde vai sua tolerncia com a violncia social,
sexual e moral embutidas em culturas
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Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.
teologicamente fundamentalistas? Deve o
antroplogo, como um ser humano envolto em
uma histria de vida, marcado pelo seu gnero,
por sua classe e experincia sociocultural,
expor seu ponto de vista outsider ao grupo que
lhe serve de objeto de estudo?
O estudo cientfico estabelece entre o
sujeito detentor de um conhecimento e o
objeto-sujeito deste conhecimento uma relao
assimtrica. Mesmo para as Cincias
Humanas, onde o objeto o prprio homem, e
para a Antropologia em particular, onde o
homem-objeto possui um conhecimento a ser
decifrado pelo conhecimento maior, a
assimetria de forma alguma superada.
A crise de representao que atinge h
algum tempo a Antropologia, atravs das vozes
polifnicas dos ps-modernos, faz parte, como
aponta Monteiro (1991), de uma ordem maior
que atinge o modo de ser ocidental desde o
final da dcada de 1960. A Cincia, como um
produto desta ordem, no pde passar ao largo
deste processo de desencantamento tpico de
incio de sculo; de um ciclo que procura se
fechar para a razo positivista, mas sem
sucesso.
A fragmentao em campos de saber
estabelecida pelo formalismo positivista o seu
prprio paradoxo e o seu ocaso. Disciplinas to
prximas, como a Antropologia, a Psicologia, a
Psicanlise e a Filosofia se afastaram, como
aponta Sperber, muito mais por problemas
ligados ao mtodo do que por problemas de
ordem terica. A Etnografia, a base pulsante da
Antropologia, permanece inquestionvel como
uma disciplina, viva e agitada (SPERBER,
1992:25), justamente por ser a nica forma
conhecida e legtima de conhecer os grupos
culturais. Da mesma forma, o ato psicanaltico
permanece inabalvel atravs da eficcia da ab-
reao6 como mtodo de cura. Como vemos, o
arcabouo terico sofre um descompasso com
as prticas investigativas em vrios campos das
cincias contemporneas. Qui, porque as
teorias fragmentam e as metodologias tratam
de organizar estes fragmentos atravs de um
todo interligado7. Assim sendo, visto que a
Antropologia contempornea pretende
estabelecer um processo dialgico entre grupos
distintos, o relativismo apresenta-se como uma
ferramenta empobrecedora do ponto de vista
epistemolgico. Neste sentido, no basta
compreender as estruturas sociais, as formas
mentais e as teias de significado de um
determinado grupo social, como nos aponta
Geertz. necessrio que a Antropologia avance
e busque compreender at que ponto as
estruturas hierrquicas so convenientes para
os indivduos que a elas esto submetidos; que
visualize onde esto os pontos
desestruturantes das culturas estudadas, e
como e de que forma os indivduos que as
compem pensam as mudanas; que
questione, pela via argumentativa como sugere
Rouanet, utilizando-se de valores eticamente
universais, o direito e o poder das estruturas
tradicionais sobre os indivduos e sobre as
liberdades coletivas8.
Em sntese, se o objeto de estudo da
Antropologia so as vrias formas de
organizao do gnero humano, tendo como
objetivo ltimo a compreenso do Homem
como uma categoria universal, nos deparamos
com uma premissa maior, vlida para todo o
pensamento cientfico: a defesa da vida
6. Mtodo, alis, utilizado por vrias prticas religiosas.
7. Por exemplo, para a Psicanlise, a prxis se volta para
o indivduo, e para a Antropologia, a prxis foca-se na
compreenso da organizao social de um determinado
grupo.
8. Como as estabelecidas pela Declarao Universal dos
Direitos Humanos, adotadas pela Assembleia Geral das
Naes Unidas, em 10 de dezembro de 1948.
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Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.
humana e da sua liberdade o limite para
qualquer racionalidade lgico-cientfica. E
para a Antropologia, este o limite para o
exerccio do relativismo.
Segato (1992), em sua instigante anlise
sobre a racionalidade da Antropologia frente
ao sagrado, aponta um outro limite no menos
importante da prxis relativista: ela promove
um perene desencantamento das reais
diferenas existentes entre os grupos e os
indivduos, e ainda retira do antroplogo a
possibilidade do encantamento frente
descoberta do inexplicvel, do que no
passvel de ser analisado somente por uma
lgica e est fora do universo cientfico, mas
que parte integrante do universo humano,
pois que est envolto mais do que nunca em
uma tica humanista9.
Neste ponto especfico, a Antropologia ps-
moderna, apesar de manter a crena no
relativismo, apresenta um enfoque mais
confortvel para o antroplogo que se sente
comprometido com seu objeto de estudo.
Michael Taussig (1993), ao juntar em um
mesmo momento etnogrfico o terror do ciclo
da borracha e o processo de cura entre a
populao da regio da Amaznia Colombiana,
viveu intensamente suas experincias
alucingenas durante seu perodo de trabalho
de campo. Visando compreender o imaginrio
desta populao sobre o espao da morte e
9. Do meu ponto de vista, a compartimentalizao do campo simblico, esta anomalia humana universal, o
que permite que sem renegar das nossas adeses, sejamos
capazes de negociar e casar com o povo vizinho, ou de
tornar-se antroplogo. So precisamente as brechas de
inconsistncia entre os nossos mundos internos, parece-
me, as portas e janelas que nos do acesso aos outros
mundos, sejam eles tnicos ou histricos. Contudo, tanto
o relativismo como os historicismos em voga soem
projetar sobre as sociedades que abordam a mesma
determinao monoltica que caracteriza a viso de
mundo da qual partem. O resultado um antropologismo
irrespirvel, descries inconcebveis [...] (SEGATO, 1992, p. 129).
elaborar um contradiscurso violncia, este
etngrafo ousou adentrar este espao atravs
da participao efetiva nos rituais de cura e da
ingesto do yag. O resultado desta experincia
foi o encontro com um novo modo de
representao retratado com maestria em sua
obra Xamanismo, Colonialismo e o Homem
Selvagem(1993).
No desmerecendo a importncia deste
processo de humanizao do antroplogo
atravs de uma nova postura como etngrafo e
como escritor, o que transparece na realidade
que a corrente ps-moderna, ao potencializar a
prxis relativista prpria forma do fazer
cientfico, fez um grande bem aos
antroplogos, mas pouco acrescentou
Antropologia. O que ela conseguiu demonstrar
que ns somos falveis, no temos
neutralidade e possumos crenas, defeitos e
mritos, como qualquer ser humano e como
qualquer cientista, seja ele fsico, bilogo,
socilogo ou antroplogo. Como afirma
Caldeira (1988),
a maioria das alternativas ps-modernas antropologia no se refere a discusses sobre o contexto poltico em que ela ocorre, ou s possibilidades crticas da antropologia em relao s culturas das sociedades do antroplogo ou s culturas do Terceiro Mundo que ela continua a estudar. As alternativas so basicamente textuais: refere-se a como encontrar uma nova maneira de escrever sobre culturas, uma maneira que incorpore no texto um pensamento e uma conscincia sobre seus procedimentos [grifos meus] (1988, p.140-141).
Em suma, desconstroem a postura do
antroplogo e o seu objeto, mas no discutem a
essncia da Antropologia e sua diretriz
cientfica.
George Marcus (1994), um dos
fundadores desta linha, ao fazer uma reviso
crtica do movimento, afirma que o ceticismo
86 Ldia Maria Pires Soares Cardel
Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.
excessivo e o relativismo paralisante
aprisionaram a Antropologia em um campo de
contnua fragmentao e produziram, como
sintoma, uma confuso epistemolgica. E, mais
ainda, na concepo de Geertz, produziram um
conjunto de obras que falam muito mais dos
seus autores do que dos objetos estudados.
Apesar da proposta de uma fuso de
modelos micos e ticos como uma
possibilidade de traduo simultnea de
culturas e formulao de epistemes
alternativos, visando uma postura tica
progressista, o que se observa que esta meta
no foi alcanada em funo da recusa dos ps-
modernos em pensarem a dinmica social e os
anseios dos grupos estudados10. Contudo,
estabelecer uma relao equilibrada entre o
saber, o tico e o poltico no uma tarefa fcil.
Um dos caminhos a ser tomado tentar ir alm
da quebra do mito da neutralidade do
investigador, desconstruindo tambm o mito
da neutralidade etnogrfica. Ou seja, a
Antropologia deve comear a tomar posturas
mais explcitas quanto ao objetivo de seus
estudos, assumindo publicamente, para o meio
acadmico e para os vrios setores da
sociedade civil, as consequncias polticas,
ticas, econmicas e socioculturais causadas
pelos estudos etnogrficos. Seus fundamentos
tericos e epistemolgicos fazem parte do seu
arcabouo cientfico e exercem pouco ou
nenhum interesse em outros meios que no o
acadmico. Entretanto, sua prtica
estabelecida pelo trabalho etnogrfico bem
visvel, e hoje est na mira de vrios grupos de
10. O conceito de etnodesenvolvimento, sistematizado por
Rodolfo Stavenhagem, defendido por Cardoso e
retomado criticamente por Rouanet, parece ser uma sada
digna para a Antropologia, quando esta se volta para uma
anlise socioeconmica, por exemplo. Porm, devemos
ter cuidado com o prefixo etno para que este no se torne
um elemento vazio, utilizado to somente em discursos
pseudopolitizados.
poder, como, por exemplo, a mdia escrita e os
meios de comunicao de massa. A
Antropologia contempornea tem que se
estruturar tambm fora dos muros da
Academia, mas sem deixar de separar o joio do
trigo.
De uma forma geral, os crticos da
Antropologia acusam-na de ser uma cincia
conformista, avessa s transformaes sociais e
ideologicamente passiva. O que existe nestas
consideraes uma confuso sobre aqueles
que personificam a Antropologia e a
Antropologia em si. Uma cincia capaz de
expor suas prprias mazelas no pode ser
considerada fruto de um pensamento
homogneo. E mais. Uma cincia que tem
como principal objetivo compreender as
diferenas est alm do que o positivismo da
objetividade cientfica pode proporcionar. Ela
nunca ir produzir equaes universalmente
aceitas sobre a ao humana. E se,
paradoxalmente, algum dia esta utopia se
concretizar, ser o seu ocaso. A Antropologia
a cincia da incompletude humana. Os dados
etnogrficos, coletados de forma metdica,
como pedaos espalhados de algo valioso,
juntamente com a vocao da Antropologia
para a interdisciplinaridade e
transdisciplinaridade, efetivadas pela sua
capacidade de interligar-se com qualquer rea
do pensamento cientfico sem perder sua
identidade, so suas molas mestras.
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