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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE LITERATURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MÁRCIO HENRIQUE VIEIRA AMARO O AMOR E A GUERRA EM ARISTÓFANES A PARTIR DE UMA LEITURA DA PEÇA RÃS FORTALEZA 2015

Dissertacao de MARCIO HENRIQUE VIEIRA AMARO · universidade federal do cearÁ centro de humanidades departamento de literatura

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

CENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE LITERATURA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

MRCIO HENRIQUE VIEIRA AMARO

O AMOR E A GUERRA EM ARISTFANES A PARTIR DE UMA LEITURA DA PEA RS

FORTALEZA

2015

MRCIO HENRIQUE VIEIRA AMARO

O AMOR E A GUERRA EM ARISTFANES A PARTIR DE UMA LEITURA DA PEA RS

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Cear, como requisito final obteno do ttulo de mestre em Letras. rea de concentrao: Literatura Comparada. Orientadora: Prof. (a) Dr. (a). Ana Maria Cesar Pompeu

FORTALEZA

2015

Dados Internacionais de Catalogao na PublicaoUniversidade Federal do Cear

Biblioteca de Cincias Humanas

A522a Amaro, Mrcio Henrique Vieira.O amor e a guerra em Aristfanes a partir de uma leitura da pea Rs / Mrcio Henrique Vieira

Amaro. 2015.132 f. : , enc. ; 30 cm.

Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Cear, Centro de Humanidades, Departamento de Literatura, Programa de Ps-Graduao em Letras, Fortaleza, 2015.

Orientao: Ana Maria Csar Pompeu.

1. Mitologia grega na literatura. 2. Teatro grego (Comdia) Crtica e interpretao. 3. Poesia grega Crtica e interpretao. I. Ttulo.

CDD 883.01

MRCIO HENRIQUE VIEIRA AMARO

O AMOR E A GUERRA EM ARISTFANES A PARTIR DE UMA LEITURA DA PEA RS

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal do Cear, como requisito final obteno do ttulo de mestre em Letras. rea de concentrao: Literatura Comparada. Orientadora: Prof. (a) Dr. (a). Ana Maria Cesar Pompeu

Aprovado em: ____/____/______.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

Prof. (a) Dr. (a). Ana Maria Cesar Pompeu (Orientadora) Universidade Federal do Cear UFC

____________________________________________

Prof. Dr. Orlando Luiz de Arajo Universidade Federal do Cear - UFC

____________________________________________

Prof. Dr. Antnio Vieira da Silva Filho Universidade da Integrao Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB.

s Musas, que com suas vozes me

encantaram.

Aos meus pais, pelo amor ao

conhecimento.

Aos meus alunos, por tudo que me

ensinam.

AGRADECIMENTOS

Aos Deuses, que sempre respondem com maior amor do que merece a nossa

perversidade.

Aos meus pais, por terem lutado todos os seus dias para que eu pudesse ter uma

boa educao.

Aos meus familiares e amigos, por se alegrarem com minhas vitrias.

Aos colegas do mestrado e grupos de estudo, por me acompanharem durante a

construo desse trabalho.

minha mestra, professora Ana Maria Csar Pompeu, pela pacincia com

minhas limitaes, por sempre trazer uma palavra de incentivo e acreditar que esse dia

chegaria.

Aos professores Orlando Luiz de Arajo e Robert Brose Pires, pelas preciosas

crticas e sugestes durante a qualificao.

Aos professores participantes da banca examinadora, Orlando Luiz de Arajo e

Antnio Vieira da Silva Filho, por honrarem esse trabalho com sua presena.

CAPES, pelo apoio financeiro com a manunteno da bolsa de auxlio.

Universidade Federal do Cear (UFC) e ao Programa de Ps-graduao em

Letras da UFC, por tornarem possvel minha formao.

RESUMO

A partir da leitura da pea Rs, de 405 a.C., de Aristfanes, depreende-se uma forte

utilizao de material mitolgico utilizado pelo comedigrafo na construo do texto.

Dessa forma, uma leitura dessa comdia, a partir das modernas abordagens cientficas

do mito, permite a determinao de um ncleo mtico capaz de oferecer uma importante

chave de leitura para a obra de Aristfanes, bem como para a produo dramtica do

final do perodo clssico grego. No agn entre squilo e Eurpedes, so os prprios

trgicos, que, insultando-se, revelam como fonte de sua produo, respectivamente, a

influncia dos mitos de Ares e Afrodite. Sendo os dois tragedigrafos integrantes da

trade eleita pelos atenienses como os melhores representantes do gnero trgico, e,

sendo a poesia uma das fontes constituintes da educao do cidado grego, a pesquisa

verificar, at que ponto os mitos de Ares e Afrodite esto presentes na obra dos dois

tragedigrafos, e como ambos os utilizam como contribuio para o fundamento da

formao do esprito do homem grego. Tendo como base uma dialtica entre o amor e a

guerra, a pesquisa ir verificar as ocorrncias dessas tradies na obra do comedigrafo

Aristfanes, a partir da leitura da pea Rs. Aristfanes, ao escolher o reino dos mortos

como espao de discusso entre essas duas tradies mitolgicas, estabelece um tribunal

paradigmtico, apto para apreciar e valorar os diferentes elementos e tipos de discurso

trgico, tratando-os, entretanto, sob a tica cmica. Faz-se mister determinar at que

ponto o discurso cmico, a partir do paralelo entre estruturas do submundo e a

contingncia da vida ateniense estariam sendo utilizados como uma tentativa de

interpretar o mito. Por fim, verificaremos se comdia no ano de 405 a.C., com a

apresentao da pea Rs, procurava apropriar-se do discurso mitolgico, modificando-

o e plasmando-o de acordo com as novas exigncias da plis, como antes fizeram os

trgicos, e quais as implicaes desse novo discurso diante dos elementos do fazer

teatral: texto, performance e audincia.

Palavras-chave: Mitologia. Comdia Antiga. Poesia Dramtica.

ABSTRACT

Based on a reading of the play The Frogs, 405 b.C., by Aristophanes, its inferred a

strong use of mythological material used by the comediographist in the construction of

the text. Therefore, a reading of that comedy under the modern scientific approaches to

the myth allows the determination of a mythical nucleus able to offer an important key

to reading the work of Aristophanes as well as the dramatic production of the late

classical Greek period. In the agon between Aeschylus and Euripedes, the tragic

themselves are the ones who, insulting each other, reveal the source of their production

to be, respectively, the influence from the myths of Ares and Aphrodite. Both the

tragedians being members of the triad elected by the Athenians as the best

representatives of the tragic genre, and, the poetry being one of the constituent sources

of the Greek citizens education, this research will verify to what extent the myths of

Ares and Aphrodite are present in the work of the two tragedians, and how both use it as

a contribution to the foundation for the shaping of the Greek mans spirit. From a

dialectic between love and war, the second part of the research will verify the

occurrences of these traditions in the work of the comediographist Aristophanes,

analyzing the play The Frogs. The author, when choosing the kingdom of the dead as a

discussion space between these two mythological traditions, establishes a paradigmatic

court, able to appreciate and value the diferent elements and types of tragic speech,

treating them, however, under the comical perspective. It is necessary to determine to

what extent the comic speech from the parallel between the underground structures and

the contingency of Athenian life were being used as an attempt to interpret the myth.

Finally, will verify with the presentation of the play Frogs, the comedy would be, in 405

b.C., seeking to appropriate the mythological speech, modifying it and shaping it

according to the new requirements of the polis, as the tragic did before, and what are the

implications of this new discourse on the elements related to theater: text, performance

and audience.

Keywords: Mythology. Ancient Comedy. Dramatic Poetry.

SUMRIO

1 INTRODUO ...................................................................................................................... 10

2 O MITO EM RS ................................................................................................................... 14

2.1. O motivo mitolgico na pea ......................................................................................... 15

2.2. Estrutura da pea ........................................................................................................... 16

2.3. Estudos crticos da pea sob a perspectiva mitolgica ................................................ 21

2.3.1. Evoluo das investigaes sobre o mito ............................................................... 22

2.3.2. Abordagens mitolgicas modernas dos textos dramticos .................................. 23

2.4. Estabelecimento de um paradigma mitolgico a partir da leitura de Rs: ............... 27

2.5. O amor e a guerra na literatura grega ......................................................................... 32

2.5.1. O amor e a guerra em Hesodo: ............................................................................. 32

2.5.2. O amor e a guerra em Homero: ............................................................................. 35

2.5.3. O amor e a guerra na poesia lrica de Safo de Lesbos: ........................................ 37

2.5.4. O amor e a guerra na elegia marcial de Calino e Tirteu ...................................... 39

2.5.5. O amor e a guerra na filosofia cosmolgica .......................................................... 40

2.6. O Hades enquanto espao metapotico ........................................................................ 42

2.6.1. O Hades na poesia pica: ........................................................................................ 43

2.6.2. O Hades na poesia dramtica ................................................................................. 47

2.7. Concluses parciais ........................................................................................................ 48

3 O AMOR E A GUERRA NA TRAGDIA .......................................................................... 51

3.1.1. Sete contra Tebas...................................................................................................... 53

3.1.2. Eumnides ................................................................................................................ 61

3.2. Tradies mitolgicas usadas por squilo ................................................................... 65

3.3. Articulao funcional do mito em squilo ................................................................... 69

3.4. Os ideais de Slon na poesia de squilo ....................................................................... 71

3.5. O amor e a guerra na produo de Eurpides ............................................................. 73

3.5.1. Alceste: o poder do amor que cuida ......................................................................... 74

3.5.2. Hiplito: o poder do amor que mata ...................................................................... 81

3.6. Articulao funcional do mito em Eurpides ............................................................... 87

3.7. Os ideais sofsticos na poesia de Eurpides ................................................................... 90

3.8. Algumas consideraes sobre a personagem de Sfocles em Rs .............................. 92

3.9. Concluses parciais: ..................................................................................................... 100

4 A FORMA E O CONTEDO DA CIDADE ...................................................................... 103

4.1. A guerra e o amor na produo de Aristfanes ......................................................... 103

4.1.1. Acarnenses: ............................................................................................................ 103

4.1.2. Cavaleiros: .............................................................................................................. 105

4.1.3. Nuvens: ................................................................................................................... 105

4.1.4. Vespas: .................................................................................................................... 107

4.1.5. Paz: .......................................................................................................................... 108

4.1.6. Aves: ........................................................................................................................ 109

4.1.7. Lisstrata e Tesmoforiantes: ................................................................................... 112

4.1.8. Assembleia de Mulheres: ....................................................................................... 115

4.1.9. Pluto: ....................................................................................................................... 117

4.2. A funo do mito em Aristfanes a partir de Rs ...................................................... 120

4.2.1. O mundo de cima e o mundo de baixo: ............................................................... 120

4.2.2. A reconstruo da cidade ...................................................................................... 124

5 CONCLUSO ...................................................................................................................... 128

REFERNCIAS: ..................................................................................................................... 131

10

1 INTRODUO

O colorido e a variedade do patrimnio mitolgico grego esto presentes no

mundo ocidental como uma ponte que nos mantm ligados s origens de nossa prpria

identidade e aos nossos mais recnditos anseios. De fato, a Grcia representa o bero do

desenvolvimento de todo o pensamento que configurou nossa forma de pensar, ser e

agir, e, por isso, apesar do passar dos sculos, sentimos tanta necessidade de um retorno

perene s fontes gregas.

Cada nova pesquisa desenvolvida constitui um esforo desse constante voltar-se.

A nossa no , portanto, uma exceo regra, pois o estudo da comdia antiga encerra

uma importante chave de leitura para a compreenso da evoluo do gnero cmico no

ocidente, passando pela obra de Menandro, e dos cmicos latinos Plauto e Terncio.

Entre os muitos nomes conhecidos da comdia antiga, o comedigrafo

Aristfanes aparece como aquele do qual temos um nmero considervel de obras

completas (onze comdias e fragmentos de outras). Entretanto, mesmo com tantas peas

sobreviventes, muitas perguntas acerca desse gnero ainda aguardam novas descobertas

para serem respondidas.

Procuramos desenvolver um trabalho que pudesse travar um dilogo intertextual

entre as narrativas mitolgicas e o gnero dramtico grego, com nfase na comdia

antiga. Para tanto, selecionamos como texto principal a pea Rs de Aristfanes, pela

importncia que a ela ocupa dentro de sua produo, bem como pela proximidade com o

motivo mitolgico.

Entretanto, pelo fato de essa pea ter como tnica principal a questo da crtica

literria, ser necessrio apresentarmos dados que comprovem que o motivo mitolgico

constitui um aspecto to relevante quanto o concurso entre os trgicos. Assim,

estratificaremos o texto nas suas partes constituintes, destacando os elementos mticos

importantes.

Em seguida, aps a comprovao da importncia do mito na pea Rs,

buscaremos apresentar um panorama do desenvolvimento das modernas abordagens do

mito, compreendido como uma rea de investigao cientfica, para podermos

contextualizar nossa pesquisa, integrando-a s vrias correntes de estudo existentes. E,

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assim, dentre elas poder escolher uma definio de mito capaz de atender s

necessidades de nossa pesquisa, que voltada para um dilogo intertextual entre mito e

drama.

Concludo esse processo de localizao da pesquisa dentro de uma linha de

estudos, nos utilizaremos de um recorte do agn da pea para tentar individualizar um

aspecto mitolgico relevante que possa servir como chave de leitura para a pea, bem

como para a prpria dramtica relacionada por meio das personagens de squilo e

Eurpides na pea.

A leitura de Rs sugere que a pea construda a partir de dois motivos

mitolgicos bsicos, correspondentes produo dos dois tragedigrafos que aparecem

envolvidos na trama: a guerra e o amor. Entretanto, apenas essa indicao literria no

suficiente para justificar um estudo cientfico sobre esses motivos, sendo necessrio

construir um quadro evolutivo dos principais gneros literrios gregos e constatar se h

ou no uma presena e evoluo de ambos os motivos no patrimnio cultural grego.

Ser necessrio, tambm, oferecer um pequeno recorte que procure contemplar

esses motivos inseridos nos textos filosficos da poca, pois no perodo clssico alguns

pensadores cosmolgicos utilizaram-se dos recursos poticos para expressar com

maestria sua forma de compreenso do mundo que os cercava.

Outro aspecto que precisaremos ampliar diz respeito ao espao meta-potico do

Hades para a construo da pea. Aristfanes desenvolve quase toda a trama no

submundo, e, como esse tambm constitui uma tradio mitolgica muito poderosa

poder acrescentar novos aspectos para a compreenso do dilogo entre os motivos da

guerra e do amor.

Com esses aspectos, acreditamos reunir material suficiente para dar continuidade

pesquisa, finalizando, assim, o primeiro captulo. A preparao do segundo momento

de nosso estudo ter necessidade de fazer um novo dilogo entre textos. Ser necessrio

ir alm do universo de Rs e adentrar o mbito da tragdia para buscar nas prprias

fontes trgicas de squilo e Eurpides os elementos de que Aristfanes necessitou para a

construo de sua pea.

Assim, estabeleceremos dois textos de cada um dos tragedigrafos como

paradigmas para um estudo comparativo, buscando a presena dos motivos da guerra e

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do amor nas entrelinhas de cada uma das peas. Entretanto, mesmo com a constatao

dos motivos mitolgicos ser necessrio verificar se a recepo de ambos em Rs se

ajusta sua utilizao no drama trgico.

Como o gnero dramtico possui uma grande ligao com as questes

pertinentes ao mito e vida da cidade, procuraremos ao final de cada anlise

contextualizar o texto estudado com as tradies filosficas que podem ter influenciado

os autores, j que essas fontes podem tambm estar em harmonia com a leitura cmica

de Aristfanes.

Da mesma forma, procuraremos determinar algum importante aspecto da plis

que possa ter influenciado a produo de squilo e Eurpides, pois esses mbitos

tambm podem ter sido utilizados por Aristfanes na sua leitura cmica da vida da

cidade luz da identidade da comdia antiga.

Acreditamos que, chegando a esse ponto, teremos condies de abordar

diretamente o motivo do amor e da guerra na produo de Aristfanes, tendo sempre a

pea Rs como texto nuclear, e assim verificar se ela realmente a chave necessria

para compreender o conjunto de sua produo, e para construir uma sistematizao da

produo sobrevivente do comedigrafo.

Dessa forma, analisaremos, no momento final de nossa pesquisa, recortes de

todas as peas ntegras de Aristfanes, procurando a reincidncia dos motivos da guerra

e do amor em sua produo. A pea Rs continuar aqui a ser usada como um grande

ncleo harmonizador entre os vrios temas e motivos peculiares a cada um dos textos

do comedigrafo.

No terceiro captulo ser analisado com mais preciso a utilizao do Hades

enquanto espao meta potico e sua relao com o motivo da guerra e do amor. Por fim,

procuraremos um sentido para a utilizao do mito por Aristfanes a partir das tradies

mitolgicas utilizadas na pea Rs, bem como a sua inclinao para alguma questo

importante para vida da plis.

Caso todas as nossas hipteses se comprovem acreditamos poder estar

oferecendo uma pequena contribuio aos muitos estudos existentes sobre a comdia

antiga, especialmente para a pea Rs, ajudando assim, a lanar novas perguntas que

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possam gerar um maior debate e pesquisa sobre a investigao do mito nos textos

dramticos.

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2 O MITO EM RS

A pea Rs de 405 a.C., uma das melhores produes de Aristfanes, a ltima

que apresenta todos os elementos integrantes da comdia antiga (prlogo, prodo, agn,

parbase e xodo), como explica Grimal (1986, p.55-57):

A comdia antiga compreende vrias partes obrigatrias [...] tinha tambm que comportar um prlogo, como na tragdia. Na obra de Aristfanes, este prlogo umas vezes entregue a uma personagem que reaparece no decurso da pea, [...] outras vezes, a personagens secundrias, [...]. Depois do prlogo, vinha o prodos, o primeiro canto do coro. [...]. Uma vez na orchestra,[sic] o coro inicia o que se chama o agn, o , que se instaurava entre o actor [sic] principal, o condutor do jogo, e o coro. [...] Ao agn sucedia, na comdia antiga, o que se chama a parbase; nessa altura, o coro avanava para o pblico dando-se uma quebra da iluso dramtica e da prpria sequncia da pea; [...] Por fim, vinha a sada do coro, tratada muitas vezes como uma cena de aco [sic], em que o riso levado aos seus extremos: a poesia cede o lugar aos eternos mtodos da farsa.

Dessa forma, considerada como uma despedida do poeta cmico do antigo

formato de comdia, sendo suas realizaes posteriores tidas como obras de transio

entre a comdia antiga e a intermediria, da qual no sobreviveu nenhum exemplar,

como bem explica Duarte (2000, p.203):

As Rs , em certo sentido, uma comdia de despedida. Em primeiro lugar, uma pea de adeus a dois dos maiores tragedigrafos gregos, Eurpides e Sfocles, mortos recentemente. Depois ela pode ser considerada a ltima pea da comdia antiga, tanto pelo tema quanto pela forma, pois de um lado ainda se ocupa predominantemente da esfera pblica e, de outro, apresenta as sees tradicionais claramente identificveis. As comdias posteriores de Aristfanes, Assemblia de Mulheres [sic] e Pluto, refletem cada vez mais a vida privada e apresentam a dissoluo da estrutura formal, entre elas a parbase, que termina por ser abolida por completo.

A temtica de Rs aborda, principalmente, questes de crtica literria.

Aristfanes ambienta a trama no submundo, e coloca em cena Dioniso como rbitro

qualificado na querela entre os dois grandes poetas trgicos squilo e Eurpides, que

empreendero um embate singular, onde suas armas sero os prprios versos.

O clmax do enredo compreende o concurso literrio para verificar qual dos dois

tragedigrafos deve ser considerado o melhor poeta e o que mais contribuiu com sua

produo para a educao dos cidados da plis. A partir de critrios tcnicos, Dioniso

procura mensurar a maestria de ambos em sua arte, como explica Sousa e Silva (1987,

15

p. 179): Atravs de sucessivas metforas, a tragdia de ambos vai sendo contrastada

nos seus pontos vitais: linguagens, estilo, estrutura dramtica, originalidade e talento.

Os vrios aspectos estilsticos, discutidos no agn de Rs, embora tenham o

maior destaque dentro do enredo, parecem servir de pano de fundo para uma outra

questo apresentada de forma bem mais sutil, mas que se revela digna de ser

desenvolvida: a funo do mito na poesia dramtica, trgica e cmica.

2.1. O motivo mitolgico na pea

A tragdia grega, como se sabe, apropriou-se do patrimnio mitolgico,

pertencente tradio arcaica, interpretando-o luz das principais questes emergentes

na plis do sculo V a.C., de acordo com Vernant (2011, p.215):

A tragdia tem, como matria, a lenda heroica. No inventa nem as personagens nem a intriga de suas peas. Encontra-as no saber comum dos gregos, naquilo que eles acreditam ser seu passado, o horizonte longnquo dos homens de outrora. Mas, no espao do palco e no quadro da representao trgica, o heri deixa de se apresentar como modelo, como era na epopeia e na poesia lrica: ele tornou-se problema.

Sabe-se, pelas peas sobreviventes, que muitos foram os mitos explorados pelos

trgicos. Entretanto, o texto de Rs parece sugerir que essa relao com o mito, presente

com mais intensidade na tragdia, e de maneira mais tnue na comdia antiga, possui

algo mais que uma simples leitura e interpretao por parte dos poetas do gnero

dramtico em geral.

Dessa forma, os poetas - tanto no gnero trgico, como no cmico em seu

fazer criativo, parecem se utilizar de um refinado processo de seleo dos motivos

presentes nas tradies mitolgicas, articulando-os, a fim de torn-los compatveis com

os anseios peculiares a cada uma das pocas de desenvolvimento do povo grego.

Aristfanes parece ter se servido, ao longo de sua carreira, do material existente

nas antigas narrativas para a construo de seus textos. Em peas como Paz de 421 a.C.

e Aves, de 414 a.C., apenas para exemplificar, possvel encontrar algumas

significativas referncias mitolgicas: uma viagem fantstica ao Olimpo e a construo

de uma cidade nas nuvens, respectivamente.

16

Assim, a pea Rs, dentro do corpus de sua produo, bem como em relao a

produo dos outros comedigrafos, dos quais s h fragmentos, serve como paradigma

para se tentar vislumbrar uma viso do perfil do gnero cmico no final do sculo V

a.C, como considera Dover (1993, p. 05):

Aristfanes o nico poeta da Comdia Antiga, cujo trabalho podemos avaliar por meio da leitura de peas completas; portanto, no podemos deixar de trat-lo como seu representante. Ele representa, no entanto, a ltima fase do gnero (Nossa traduo).1

Dentre as onze comdias suprstites de Aristfanes, no conjunto de quarenta que

a ele so atribudas, aproximadamente, Rs a que possui, sem sombra de dvida a

maior incidncia de elementos mticos. Isso pode ser evidenciado mesmo numa leitura

superficial, pois o elenco de personagens, lugares e aes de carter mitolgico

significativo.

O crescimento da utilizao dos elementos mitolgicos pela comdia antiga

parece desenvolver um movimento de reelaborao interna do gnero cmico ao final

do sculo V a.C., dando incio a um processo de apropriao de uma linguagem at

ento predominante na tragdia. H, assim, uma tendncia para uma valorizao da

metapoesia como possvel ver no texto de Rs, que, no mesmo concurso, concorreu

com uma pea de temtica semelhante, Musas de Frnico.

Esse fato nos leva a fazer uma breve apresentao sistemtica da pea Rs com o

intuito de mostrar como o motivo mitolgico possui uma presena significativa nesse

texto, identificando seus elementos a partir da observao de cada uma das suas partes

constituintes, como segue abaixo:

2.2. Estrutura da pea

2.2.1. Prlogo (vv. 01-309):

A pea tem incio com um dilogo entre Xntias (um escravo) e o seu mestre

Dioniso (o deus filho de Zeus e Smele). Dessa forma, j nos primeiros versos,

Aristfanes parece apresentar um dilogo entre dois mundos mortal e imortal. Essa

1 Aristophanes is the only poeto of the Old Comedy whose work we can assess throught reading of complete plays; therefore we cannot help treating him as its representative. He representes, however, the last stage of the genre.

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relao se apresenta como conflituosa haja vista as vrias reclamaes do escravo (vv.

01-34).

Bowie acredita que nessa passagem a pea procura estabelecer um dilogo entre

a comdia e a tragdia a partir da figura do deus Dioniso, que ao aparecer vestido de

forma ambgua trazendo, por um lado uma pele de leo, e por outro a tnica cor de

aafro (prpria para o uso de mulheres) relembra tanto o carter heroico de Hrcules,

no seu aspecto trgico, quanto seu aspecto cmico.2 Esse dilogo tragicmico

simbolizaria a relao de decadncia presente no gnero dramtico em 405 a.C.3

Em seguida, surge um segundo personagem de origem mtica, Hrcules. A partir

de ento, so dois personagens mitolgicos que conduzem o dilogo (vv 35-164).

Assim, aos poucos, o mito parece se sobrepor na trama, dando incio ao que parece ser

um processo crescente na construo do texto;

Aps despedirem-se de Hrcules, um breve dilogo entre Xntias e Dioniso

antecede o incio da jornada ao Hades. Nesse momento, h uma sbita introduo de um

personagem bastante peculiar, um homem morto. Aristfanes parece simbolizar a

partida dos personagens em um interldio com um ser que j pertence s duas esferas

existenciais (vv. 165-179).

Repentinamente, ambos os personagens se vem diante da barca de Caronte para

dar incio travessia. Aqui no s mais um personagem mtico que introduzido com

Caronte, mas o espao em que os personagens esto inseridos ele todo pertencente ao

patrimnio mitolgico grego.

Nesse ponto Xntias precisa se separar de Dioniso e contornar ao lado, pois na

condio de escravo sua travessia no permitida. Dessa forma, seu patro segue a

bordo, e, durante o percurso, ainda vivenciar uma experincia curiosa de embate com

as rs do lago pantanoso (vv. 180-274).

Em seguida, Dioniso e Xntias se reencontram aps a travessia. Novamente um

terceiro elemento de ordem mtica inserido entre ambos, a Empusa, uma espcie de

2 Essa representao do heri parece fazer referncia a lenda de Hrcules e nfale, a rainha Ldia que o manteve cativo a seu lado por trs anos, obrigando-o a executar tarefas femininas em seu palcio. 3 Bowie (1993, p. 228): [...] two dialogues in which the derelict state of comedy and tragedy has been lamented. Dois dilogos nos quais o estado de abandono da comdia e tragdia foi lamentado.

18

besta metamrfica, que, embora no participe do dilogo, amplia em cena o nmero de

seres mitolgicos em detrimento dos humanos (vv. 275-309).

2.2.2. Prodo (vv. 310-459):

Segue-se um breve dilogo entre Xntias e Dioniso, que marca a entrada do coro

em cena. no prodo que o elemento coral ressalta o carter mitolgico da construo

da pea Rs, pois os integrantes do coro seguem representando os (mstai),

aqueles que foram iniciados nos Mistrios Eleusinos (vv. 316-339).

Os anapestos do prodo (vv. 354-371) apresentam um pequeno catlogo no qual

so apresentadas as condies de pureza que permitem que algum possa integrar os

sagrados ritos. Entretanto, essa impureza parece se encontrar associada aos crimes de

atimia, como bem notou Bowie (2003, p.239): [...] here the Chorus go on to list a

number of more or less serious crimes which debar people from joining their mystic

chorus.4

Aps essa fala do coro a procisso segue, guiando os personagens at a porta do

palcio de Hades (vv. 372-459). Os (mstai) formam a ponte pela qual a jornada

poder ser concluda, dando a impresso de que sem o conhecimento ritual parece ser

difcil uma verdadeira compreenso do sentido da ao.

Chegando casa de Hades, seguem-se algumas cenas divertidas de

reconhecimento e troca de identidade (vv. 460-500). O mito de Hrcules novamente

trazido de volta a partir das memrias das servas e estalajadeiras de sua ltima

passagem pelo submundo (vv. 501-600). nesse trecho que se tem incio a cena de

troca de identidade entre Dioniso e Xntias.

Finalizando o prodo (vv. 600-673), aco, um dos juzes do mundo dos mortos,

procura determinar a identidade de Dioniso entre os dois personagens. Nessa altura da

pea, a incapacidade da autoridade dos nferos em fazer um reconhecimento seguro,

parece indicar que agora ambos os mundos parecem ter se fundido, no sendo to claro

assim, os critrios que permitem diferenci-los.

2.2.3. Parbase (vv. 674-737):

4 Aqui o coro passa a listar um nmero de alguns crimes mais ou menos srios, os quais impedem as pessoas de participar de seus coros msticos (Nossa traduo).

19

Na parbase ocorre mais sistematicamente quebras da iluso dramtica. Nesse

momento, o poeta, a partir da voz do coro, coloca em cena com mais detalhes todos os

assuntos inerentes vida da plis. Ocorre tambm as aluses competio, e qualidade

do trabalho dos vrios poetas inseridos no certame.

Esse trecho de Rs identificado como um dos momentos mais brilhantes da

carreira de Aristfanes, o qual teria ganho uma coroa de folhas de oliveira em virtude da

qualidade dos conselhos apresentados cidade nessa pea, que despertaram a admirao

dos presentes ao espetculo (DUARTE, 2000:204).

O coro faz sua evoluo, apresentando-se desde o incio da parbase como

sagrado: (v. 674), e (686). Dessa forma, estabelecido, ao que

parece, um carter ritual vinculado ao mito dos Mistrios Eleusinos, que parece

constituir a chave de leitura para a compreenso do texto, como bem destaca Bowie

(1993, p. 238): Dionysus journey therefore and the Eleusinian Mysteries have a

similar end in view: salvation. 5

2.2.4. Agn (vv. 815-1499):

Aps a interveno do coro, segue-se um pequeno dilogo entre Xntias e o

criado de Hades, que parece funcionar como um segundo prlogo para introduzir o agn

(vv. 738-814).

Com a introduo do agn, d-se incio ao tema propriamente dito da pea: a

crtica literria. Entretanto, durante o embate entre os tragedigrafos o mito permanece

presente e dominante, pois so citados fragmentos de seus textos, os quais se valem

desse arcabouo de heris, deuses e criaturas maravilhosas, para construo de seus

enredos.

A partir desse entendimento, acreditamos que em Rs, no h somente uma

questo literria para ser trabalhada. Essa presena dos inmeros personagens

pertencentes ao patrimnio mitolgico grego: Tlefo, Belerofonte, Fedra, entre outros,

parece sugerir a existncia de um submotivo, de carter mitolgico, presente no texto.

O par cmico squilo-Eurpides, como representante de dois perodos histricos

relativamente prximos, guardam distines considerveis no tratamento de questes

5 A jornada de Dioniso, portanto, e os Mistrios Eleusinos tm um fim similar em vista: a salvao. (Nossa traduo).

20

nucleares para a plis como religio, poltica e, principalmente, quanto formao do

cidado. Isso parece indicar que, na histria da tragdia grega, houve muito mais do que

uma simples apropriao do discurso mitolgico, parece ter havido uma reconstruo

funcional do mito em conformao prpria evoluo que o esprito humano sofria

quela poca, como destaca Vernant (2011, p. 214):

A inveno da tragdia grega na Atenas do sculo V no se limita apenas produo de obras literrias, de objetos de consumao espiritual destinados aos cidados e adaptados a eles, mas, atravs do espetculo, da leitura, da imitao e do estabelecimento de uma tradio literria, da criao de um sujeito, abrange a produo de uma conscincia trgica, o advento de um homem trgico.

O discurso dramtico, a partir de Rs em 405 a.C., parece concluir que a

tragdia, ao atingir o pice do seu desenvolvimento com a trade squilo-Sfocles-

Eurpides, teria como ncleo um conjunto de mitos inter-relacionados, fazendo deles o

seu fundamento e o referente paradigmtico de uma prxis potica, voltada para esse

novo modelo de homem e de conscincia.

Entretanto, esse ncleo comum, longe de isolar a produo de um poeta, parece

pelo contrrio, estabelecer uma ponte, viabilizando um dilogo perene entre a sua obra e

a dos outros tragedigrafos, bem como entre as outras tradies mitolgicas existentes,

articulando-as a uma finalidade esttica e poltica do artista, sempre tendo em mente a

evoluo dos acontecimentos da plis.

Com a morte dos trs grandes poetas, e o ocaso do gnero trgico, o discurso

cmico, a partir de Rs, parece querer lanar as bases de uma reforma que visa

preencher a lacuna deixada pela tragdia. O esprito humano continuava a reclamar uma

resposta para as questes vigentes, principalmente com a crise instalada nos ltimos

anos da guerra do Peloponeso.

A poesia cmica, assim, parece almejar a consolidao de sua voz, como um

novo canto do bode capaz de responder ao clamor do esprito humano, que, naquele

momento, necessitava do amparo das musas, para reencontrar a sua identidade enquanto

povo. Esse anseio, em Rs, se faz bem presente na personagem de Dioniso, como

afirma Sousa e Silva (1987, p. 172): Comea para Dioniso a procura cmica da sua

individualidade, que se traduz numa constante incerteza, ao longo de toda a catbase, da

verdadeira identidade da figura.

21

Esse lugar de destaque na formao do cidado, usurpado principalmente pelo

(lgos) dos sofistas, e a participao do poeta na construo da cidade parece se

amparar nessa leitura funcional do mito, que parece tentar lev-lo novamente ao trono

da Paideia, recm conquistado pelos mestres da palavra que vendiam seus ensinamentos

para a juventude ateniense.

2.2.5. xodo (vv. 1500-1530):

Os versos finais de Rs apresentam o retorno de squilo para o mundo dos homens.

Mesmo nesse processo de retorno a presena mitolgica ainda dominante, pois quem

parece conduzir a procisso o prprio Hades, juntamente com o coro de iniciados nos

Mistrios Eleusinos.

Percebemos, a partir do exposto na anlise sistemtica de Rs, que Aristfanes

parece mascarar, atravs da iluso cmica, outros problemas a serem debatidos na pea,

que no sero somente relativos crtica literria ou escolha do poeta a ser resgatado

do Hades, mas tambm funo do mito na poesia dramtica, trgica e cmica e,

atravs desse dilogo, o lugar da prpria comdia e do seu poeta na plis6 de 405 a.C.

2.3. Estudos crticos da pea sob a perspectiva mitolgica

Aps termos apresentado a relevncia do motivo mitolgico em Rs,

procuraremos contextualiz-lo junto s abordagens cientficas modernas. Nesse

processo, buscaremos mostrar que, na medida que o (mythos) passou a ser

compreendido como objeto de estudo sistematizado, foi aberto um novo paradigma de

compreenso dos textos dramticos gregos.

Dessa forma, procuraremos identificar estudiosos que, ao longo dos sculos XX

e XXI, realizaram uma leitura das peas dentro dessa perspectiva mitolgica,

contemplando de forma especial a comdia Rs. Em seguida, procuraremos apresentar

um dilogo entre duas dessas abordagens recentes, ressaltando seus principais aspectos.

Por fim, buscaremos identificar, no terceiro momento, um paradigma dentre os

vrios mitos presentes no texto de Rs para desenvolver nossa anlise. A multiplicidade

6 Todas as hipteses verificadas, bem como as concluses obtidas devem ser compreendidas restritas a esse recorte espao temporal especfico, ou seja, uma viso de Atenas em 405 a.C., pois precisamente nessa data verifica-se o znite e o ocaso da produo da comdia antiga.

22

dos elementos mitolgicos no texto, antes de um empecilho, parece vislumbrar uma

riqueza de possibilidade para se compreender melhor a funo do uso do mito pela

comdia em 405 a.C.

2.3.1. Evoluo das investigaes sobre o mito

As tentativas de estudo do mito a partir de critrios cientficos so relativamente

recentes. De fato, durante o perodo compreendido entre os sculos XV-XVIII, as

abordagens se apresentavam de forma assistemtica, e o mito enquanto fenmeno no

era analisado em sua singularidade, mas fazia parte de todo um conjunto de

conhecimento denominado por erudio.

Somente a partir das escolas de mitologia comparada, antropolgica inglesa e

filolgica histrica, surgidas entre os sculos XIX-XX, o mito passou a receber uma

abordagem que tentava verdadeiramente criar uma cincia especfica. Entretanto esses

primeiros esforos, apesar dos seus mritos, ainda no contemplavam muitas questes,

que s seriam mais claras aps os modernos estudos da lingustica de Saussure.

Desde o incio do sculo XIX, o pensamento filosfico desenvolvido

principalmente por Creuzer e Schelling, abriu novos horizontes para a interrogao

moderna sobre o sentido e o alcance das criaes mticas. Dessa forma o mito passou a

ser compreendido como modo de expresso diferente do pensamento conceitual,

podendo ser trabalhado em muitas reas do conhecimento, como psicologia (Freud,

Jung), fenomenologia religiosa (W. F. Otto), histria da religio (Mircea Eliade) e

filosofia (Paul Ricoeur).

O perodo entre guerras mostrou-se bastante prolfico para o estudo do mito

atravs das pesquisas da escola francesa de L. Gernet e Dumzil e do Estruturalismo de

Levi-Strauss. Atravs do uso de categorias sociolgicas durkeimianas por parte dos

estudos franceses e da adoo do pensamento de Bacherlard pelos estruturalistas, as

abordagens tericas do mito ganham novas possibilidades.

A poesia dramtica grega, trgica e cmica, no poderia ficar margem das

modernas formas de estudo do mito. Assim, desde o incio do sculo XX, estudiosos

como Conford, Segal, e, posteriormente, Bowie e Radcliffe, procuraram associar aos

23

estudos do mito, os ritos existentes no patrimnio religioso grego, utilizando os textos

dramticos como referente.

2.3.2. Abordagens mitolgicas modernas dos textos dramticos

Os estudos que abordam cientificamente as relaes entre o gnero dramtico

(trgico e cmico), os ritos e as tradies mitolgicas passaram ento a ser

contemplados sob novos parmetros e com maior intensidade a partir do final do sculo

XIX e ao longo do seguinte.

Estudiosos como Conford e Segal, buscaram, com maior ou menor sucesso,

estabelecer novas formas de dilogo entre rito e mito, estabelecendo um dilogo

cientfico entre esses dois mbitos, como se ver a partir de uma viso panormica de

suas consideraes:

2.3.2.1. Conford e Segal:

Conford aborda a relao entre mito e rito, buscando determinar uma

compreenso de referente mitolgico cultual comum s produes teatrais, como aponta

Bowie7 (1993, p.03):

A ideia de conectar a comdia ao mito e ritual no , obviamente, nova. A mais famosa tentativa foi a de Conford, em A Origem da Comdia tica, publicada primeiramente em 1914. (Nossa traduo).8

Entretanto, as mais variadas tentativas de se reduzir a produo dramtica a uma nica estrutura ritual mostraram-se sem sucesso, em virtude dos vrios sistemas utilizados em sua construo, advenientes de uma variedade de tradies incidentes, como destaca Bowie (1993, p.03):

A diferena entre esse estudo e o de Conford que ele tentou construir um nico ritual, o qual poderia ser encontrado presente em todas as peas: essas, em virtude de toda sua variedade e extravagncia no tm somente uma nica unidade estrutural, mas um recorte de incidentes tradicionais, os quais, no podem, como acredito, ser

7 A obra de Bowie, Myth, Ritual and Comedy, de 1993, ser examinada em dilogo com o estudo de Radcliffe Edmonds, Myths of the Underworld Journey, 2004. 8 The idea of conecting comedy to myth and ritual is not of course new. [...] The most famous attempt was that of Conford in The Origin of Attic Comedy, first published in 1914.

24

explicados, salvo exceo, como uma reminiscncia de uma trama ritual. (Nossa traduo).9

Verificamos que Conford, procura, atravs de um reducionismo cientfico, isolar

o mito dentro de um universo ritualstico nico, tirando-lhe o seu carter de articulao

com as outras formas de manifestaes rituais. Essa limitao tenta dar uma certa

sistematicidade ao tema, partindo de uma diluio do mito nos elementos de ordem

teatral, estabelecendo assim a tentativa de um dilogo entre ritualstica e performance.

Entretanto, ao fazer isso, acaba por limit-lo, interferindo no seu dilogo com a

multiplicidade do contingente, bem como com todas as suas manifestaes culturais

comunitrias, que mesmo no teatro grego no se limitava somente cidade de Atenas e

por isso, acabou por no lograr muito xito.

Num momento posterior, temos a contribuio de Segal10, que d continuidade

aos estudos de Conford na medida em que procura na relao entre o mito e o rito

desenvolver sua leitura dos textos dramticos. Ele j faz uma abordagem mais detalhada

da pea Rs, procurando mostrar a existncia de uma equao formada entre catbase e

iniciao.

Dessa forma, para Segal, o simples fato de Dioniso empreender uma descida ao

mundo dos mortos em Rs, j evidenciaria, por si, a necessidade de uma compreenso

dos aspectos rituais inerentes catbase, como pressuposto para se chegar ao sentido do

texto.

Assim, o comportamento do deus faz referncia a uma espcie de rito iniciatrio,

que lhe daria, ao final, uma nova identidade. Dioniso passa, ento, a ser visto pelo

mbito da meta-teatralidade como o esprito da comdia. Radcliffe explica que no h

uma ligao necessria entre a jornada ao submundo e um rito de iniciao, ou seja,

uma coisa no implica outra.11

2.3.2.2. Bowie e Radcliffe:

9 The difference between this study and Confords is that he tried to construct a single ritual structure which could be found to inform all the plays: The plays, under all their variety and extravagance, have not only a unity of structure, but a framework of tradicional incidents, which cannot, I believe, be otherwise explained than as the surviving fabric of a ritual plot. 10 Radcliffe desenvolve sua crtica a partir obra The Character of Dionysos and the Unity of the Frogs, de 1961. 11 However, the pattern of action in which the protagonist leaves one status and gains a new status is not always connected with the journey to the realm of the dead. (p.115). Entretanto, o padro de ao no qual o protagonista deixa um status e ganha outro no pode ser sempre conectado com uma jornada ao mundo dos mortos. (Nossa traduo).

25

Temos nos estudos de Bowie e Radcliffe duas abordagens mais recentes sobre a

relao entre os aspectos mitolgicos associados aos ritos na literatura dramtica

cmica. Em virtude de trabalharem diretamente com a comdia, acreditamos ser

importante uma viso conjunta de seu trabalho no que diz respeito a pea Rs, pois o

estabelecimento de um dilogo e um contraponto entre suas ideias pode abrir uma nova

perspectiva de leitura da pea.

Segundo Bowie, a descrio feita por Hrcules da presena dos coros dos

iniciados no incio da pea introduz o tema ritual, sem, entretanto, revelar, o que

acontecer mais frente na pea. Essa referncia fez com que Rs, tenha despertado

muitos estudos, sendo que grande parte deles relacionados aos mistrios Eleusinos:

: , , . (vv. 155 ss.)

Hrcules: Da para a frente vai-te envolver um som de flautas, e hs-de [sic] ver uma luz maravilhosa, como a daqui. Seguem-se bosques de mirto, cortejos bem-aventurados de homens e mulheres e um grande estrpito de palmas.

E, logo a seguir, isso reforado, a partir de uma sutil referncia numa fala de

Xntias, que, segundo ele, no muito observada em virtude de ser compreendida

somente como uma piada: / Ora toma, a mim

tocou-me ser o asno nos mistrios (v. 159).

Bowie acredita que esse coro, na verdade composto por iniciados nos Mistrios

Eleusinos, e que um ateniense ao ouvir o termo (mystria) na fala de Xntias,

j estabeleceria uma relao direta Eleusis, pois seu culto detinha uma marca muito

prpria. Assim, ele pergunta: a simples utilizao das palavras, as indicaes de

misticismo, a presena dos iniciados, em um contexto conjunto com o grito de Iaco, no

faria um ateniense pensar diretamente nos mistrios?12

Assim, para Bowie (1993, p. 230) preciso considerar a relao entre o jogo das

palavras do enredo e o festival em si, de forma muito mais abrangente, pela sua forma

estrutural:

12 Cf. Bowie (1993, p. 228-229).

26

A presena de detalhes como estes, no faz mais do que apoiar a afirmao de costume que os mistrios de Elusis esto em questo; para os nossos propsitos preciso considerar toda a questo da relao entre jogo e festival de forma muito mais abrangente, numa viso estrutural (Nossa traduo).13

Bowie, segundo Radcliffe14, apesar de sua contribuio em identificar vrios

elementos inerentes ritualstica dos mistrios eleusinos em Rs, parece no conseguir

perceber, em sua tentativa de identificar um padro nico, toda a riqueza das

combinaes utilizadas por Aristfanes. Realmente, o comedigrafo se utiliza do rito,

entretanto a ele associa toda uma srie de outras narrativas j conhecidas por sua

audincia.15

Radcliffe no desenvolve seu estudo limitando-se apenas Rs. Ele constri um

dilogo entre trs importantes textos da Antiguidade: as tbuas rficas, Rs (de

Aristfanes) e o Fdon (de Plato), tomando como elemento comum s trs obras o

motivo da viagem ao reino dos mortos.

No captulo pertinente Rs, ele desenvolve seu estudo a partir do recorte de

trs momentos especficos e significativos da viagem de Dioniso: a travessia do abismo

de guas, a busca at encontrar o caminho para o palcio de Hades, e o embate travado

para sua chegada aos seus portes da manso do senhor dos mortos.

Cada uma dessas etapas vista dentro de trs parmetros: obstculo, soluo e

resultado, que so, segundo Radcliffe a constante varivel comum nas narrativas de

viagem ao mundo dos mortos, sendo, portanto, um elemento estrutural comum a esse

gnero narrativo.

O mais pertinente na anlise de Radcliffe que ele consegue ir alm de estudos

que at pouco tempo eram referncia, como os de Segal e, posteriormente os de Bowie,

que se limitavam a estudar o mito em Rs apenas procurando identificar os padres

clssicos da catbase, bem como elementos dos mistrios eleusinos, como simples

indicativos de ritos de inicializao.

13 The recital of details such as these does no more than support the usual contention that the Eleusinian Mysteries are in question; for our purposes we need to consider the whole question of the relationship between play and festival in a much more all-embracing, structural fashion. 14 Em sua obra Myth, Ritual and Comedy (1993). 15 However, their attempts to fit all these elements into the initiatory pattern of action cause them to miss the full depth and richness of Aristophanes use of these elements. (p. 117). Entretanto, essas tentativas, para ajustar todos esses elementos dentro de um padro de rito de iniciao, faz com que se perca toda a sua riqueza e profundidade que utilizada por Aristfanes. (Nossa traduo).

27

A partir das vrias abordagens cientficas do mito apresentadas, bem como dos

modernos estudos do texto de Rs, acreditamos que essa comdia pode fornecer, a partir

da determinao da existncia de um ncleo mitolgico central, a possibilidade de

desenvolvimento de um dilogo entre os gneros trgico e cmico, bem como da funo

do mito neles presente.

2.4. Estabelecimento de um paradigma mitolgico a partir da leitura de Rs16:

Pelo exposto at agora, acreditamos que necessrio buscar, primeiramente, no

texto de Rs, uma indicao que fundamente a existncia de um referente mitolgico

nuclear, a partir do qual o poeta desenvolva seus objetivos estticos, bem como a

possibilidade da vinculao desse ncleo a um ideal tido como importante na plis

ateniense em 405 a.C.

Em virtude da extenso do texto, com seus mais de mil e quinhentos versos,

faremos a anlise dessa hiptese a partir de um recorte do agn da pea, que tem incio

nos vv. 830ss, onde ser realizado o concurso literrio no qual haver o embate dos

personagens trgicos a partir dos textos de suas respectivas produes.

Um aspecto que no pode ser negligenciado que Aristfanes um poeta, e,

como tal, um mestre no uso e na arte da palavra. O seu discurso est inserido em uma

estrutura dramtica que tem como objetivo primeiro o entretenimento e no a pesquisa

cientfica.

Dessa forma, para utilizarmos cientificamente os seus juzos sobre as tragdias

de squilo e Eurpides, presentes em Rs, ser necessrio que ns os submetamos a uma

anlise comparativa com os textos trgicos originais.

Assim, aps verificarmos os dados percebidos no texto de Rs, faremos o seu

confronto com alguns textos paradigmticos do gnero trgico, de squilo e Eurpides,

respectivamente, j que suas produes esto em evidncia na comdia, a fim de

verificarmos se as palavras de Aristfanes se confirmam. Sero citados os textos

originais ao lado de suas respectivas tradues a fim de se poder ter uma maior preciso

nas questes levantadas.

16 A traduo de Rs utilizada na pesquisa a da Dra. Maria de Ftima Sousa e Silva, publicada na srie Autores Gregos e Latinos, 2014, disponvel no stio: www.classicadigital.com.

28

Assim, pelo que vimos na anlise da pea, o poeta parece ter se utilizado de

forma intensa do arcabouo mitolgico que recebera de longas eras, selecionando um

conjunto de mitos para construir um ncleo ao redor do qual desenvolver sua obra.

Esse processo, entretanto, no teria como consequncia a limitao do seu

processo de criao haja vista todo o colorido multifacetado da comdia grega - mas

lhe conferiria um maior carter de articulao com o patrimnio cultural grego,

sistematizando-o a um propsito maior, de cunho educativo nacional, como j acontecia

nas celebraes dos diversos festivais assim como explica Nicholas Richardson, citando

Burkert, em sua introduo aos hinos homricos:

[...] ao celebrar uma divindade comum, os cidados reforavam sua identidade coletiva e promoviam, a um s tempo, a quebra e o reordenamento de seu cotidiano (Burkert, 1993, p. 437) e de sua cultura tradicional.

Aristfanes em Rs, leva para o palco a figura da trade clssica squilo,

Sfocles e Eurpides, devolvendo-lhes a vida e a voz atravs dos artifcios cmicos do

teatro.

Com a morte de Sfocles em 406/5 a.C., fecha-se um perodo que presenciou o

esplendor do gnero trgico juntamente com a consolidao da democracia de Atenas

do perodo clssico. O nome desses artistas ficou inscrito no corao do povo ateniense,

que procurou mant-los indissociavelmente ligados na vida e aps a morte, como

indicado pela tradio como explica Vernant (2011, p. 221-22):

Essa ordem cannica, a da idade: os antigos gostavam de dizer forando um pouco as datas, que, por ocasio de Salamina (480), squilo (nascido por volta de 525) lutava, Sfocles (nascido em 496 ou 495) cantava o pe e Eurpides (nascido por volta de 485) nascia; [...] Seja como for, e por caminhos variados, esses trs trgicos se tornaram clssicos, se verdade que o classicismo a possibilidade, at a obrigao da repetio.

Deve-se, entretanto, distinguir, tecnicamente, as vrias vozes presentes em Rs a

fim de no confundir a fico, os fatos histricos, e os artifcios de cena. No texto

aristofnico coexistem s vozes dos personagens, o eco da voz dos verdadeiros trgicos,

presente nas citaes de seus versos, a voz do poeta17, habilmente disfarada, e as

reminiscncias do discurso de vrias tradies mitolgicas.

17 Esses aspectos, a saber, das diversas vozes da poesia e da identificao da voz do poeta cmico foram inseridos no trabalho a partir da leitura do artigo de T.S. Eliot, As Vozes da Poesia, presente na obra De

29

O mesmo cuidado deve ser mantido na tentativa de identificao da voz do

poeta, que, entre todas, certamente a mais difcil de ser detectada. Considerando a

mmesis, como a arte de simular a presena de um ausente, necessrio ter em mente

que as acusaes que ambos os poetas trocam no agn da pea parecem representar na

realidade a opinio crtica de seus contemporneos, e no suas consideraes pessoais.

Depreende-se da leitura dos versos 1014 ss. de Rs, que a personagem de

squilo afirma ter deixado para a plis um legado singular, pois, atravs de sua obra

fomentou toda uma gerao de homens de tmpera nobre, tendo na coragem e no

patriotismo suas principais qualidades:

: , , , , .

squilo: [...] Repara s que tipo de gente, partida, ele herdou de mim: uns fulanos valentes, com uns bons palhos de altura, incapazes de desertar, que no tm nada a ver com esses badamecos, uns patetas alegres e uns aldrabes que para a andam hoje em dia. Trata-se de gente que respirava dardos e lanas, elmos de penacho branco, capacetes, caneleiras, com a alma forrada de sete peles.

Na continuidade do dilogo, a personagem de Eurpides o interpela,

questionando o que afirma ter feito para imprimir esse carter em sua audincia, ao que

a personagem de squilo responde no verso 1021: , Fiz

uma pea cheia de Ares.

Tomando a expresso (reos mestn), que preferimos traduzir

como repleta de Ares, a personagem parece determinar que h uma influncia nuclear

do mito de Ares em sua produo. Os valores ligados ao culto do deus da guerra

parecem perpassar seus versos, insuflando-lhes um mpeto capaz de estabelecer tanto a

identidade dos homens legada pela sua produo, como tambm o seu prprio fazer

potico.

O colorido das imagens utilizadas na comparao:

/

, Trata-se de gente que respirava dardos e lanas, elmos de penacho branco,

capacetes, caneleiras, com a alma forrada de sete peles, parece rememorar e parodiar os

Poesia e Poetas (1991) e da obra de Adriane Duarte, O Dono da Voz e a Voz do Dono: a parbase na comdia de Aristfanes (2000), respectivamente.

30

quadros de combate da guerra de Troia, cantados na Ilada18, em que os guerreiros e

seus instrumentos de guerra estavam indissociavelmente ligados, perdendo a sua

singularidade para formar uma s massa beligerante.

O prprio embate entre os dois trgicos representado por Aristfanes sob o vu

de pseudo epicidade, como destaca Sousa e Silva (1987, p. 180):

[...]. Em campos opostos, iro defrontar-se o poeta construtor, de talento ingnito, que assenta em bases slidas sua arte, e o poeta habilidoso, arteso gil do cinzel, a quem o embelezamento exterior merece especial ateno. [...] Todo o passo um primor da tcnica de Aristfanes, no seu timbre falsamente pico, a dar ao agn a feio de uma lia entre feras ou guerreiros.

Nesses versos, parece haver uma ratificao e uma delimitao da fora motriz

da produo esquiliana. O mpeto guerreiro, a bravura, cantados em seus versos, possui

como referencial no somente a tradio pica homrica, mas tambm uma inspirao

mtico-religiosa, que parece ter no mito de Ares o seu ncleo e sua fora propulsora.

No que diz respeito a Eurpides, o texto de Rs, a partir dos vv. 1040, tambm

parece oferecer a indicao de uma orientao mitolgica como fonte de seu fazer

potico. Defendendo-se das acusaes de Eurpides, squilo vangloria-se por no ter

explorado a temtica feminina em sua obra:

: , .

squilo: [...] Mas Fedras no, caramba, putas dessas eu no compunha, nem Estenebeias, e no h quem possa apontar uma s mulher apaixonada que alguma vez tenha criado.

A resposta de Eurpides a essa acusao consiste na denncia da negligncia de

seu antagonista em trabalhar a dimenso amorosa em suas peas. No que conclui, com a

invocao do nome da deusa Afrodite, toda a dignidade que parece considerar presente

nessa temtica, que indiretamente, de forma retrica assume como sua:

: .

Eurpides: No, l isso no! Porque com Afrodite no tens mesmo nada a ver.

18 So muitos os exemplos na Ilada para a ntima unio do homem com suas armas. Apenas a ttulo de ilustrao observe-se o Canto XIII, vv.240ss., em que Idomeneu ao vestir-se parte clere como os raios do prprio Zeus.

31

Essa referncia indireta parece ser confirmada e intensificada na resposta

seguinte de squilo, que afirma que a influncia de Afrodite na vida de Eurpides foi

forte ao ponto de ele ter sofrido em seus relacionamentos as agruras das paixes

desordenadas de suas peas.

: . ', .

squilo: E oxal que nunca venha a ter! Ao passo que sobre ti e sobre os teus teve ela um peso tremendo. A ponto que te deixou de rastos.

Ao tratar de uma narrativa mitolgica e de sua influncia no fazer potico, corre-

se o risco de buscar concluses a partir de referenciais tecnicamente imprecisos, pois

grande a distncia que separa a experincia do discurso mitolgico grego da cultura

ocidental moderna.

Assim, utilizaremos, como um ponto de partida para o desenvolvimento de nossa

da anlise do amor e da guerra na obra de squilo e Eurpides, o conceito de mito

definido por Walter Burkert19 em Mito e Mitologia, (BURKERT, 2001).

Burket observa que o mito constitui uma espcie de narrativa, entretanto, por

suas peculiaridades, essa escapa aos limites impostos pela teoria. Esse discurso

apresenta-se atravs de contos, sagas, lendas, ou seja, numa multiplicidade de aspectos

narrativos. Dessa forma, ao invs de se buscar o seu contedo, deve-se buscar a sua

funo, o elemento que articula essa narrativa realidade.

[...] A seriedade e dignidade do mito procedem desta : um complexo de narrativas tradicionais proporciona o meio primrio de concatenar experincia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras, de o comunicar e dominar, de ligar o presente ao passado, e simultaneamente de canalizar as expectativas do futuro.

Constata-se, assim, que em Rs, antes de se passar a anlise dos quesitos de

ordem estilstica, a voz dos personagens parece procurar apresentar o eixo mitolgico

que orienta a sua produo artstica. Essa orientao permite a articulao do discurso

potico dando-lhe um novo alcance, capaz de lhe atribuir novas funes no universo da

plis.

19 A abordagem dos aspectos tericos do estudo do mito em geral ser feita a partir do opsculo de Burkert, Mito e Mitologia (2001). Entretanto, na anlise especfica dos mitos de Eros e Afrodite, ser utilizada a obra Religio Grega na poca Clssica e Arcaica (1993). Subsidiariamente ser utilizado a obra em trs volumes do prof. Junito de Souza Brando, Mitologia (1986).

32

Entretanto, para podermos compreender o impacto e projeo da temtica do

amor e da guerra na poesia dramtica em geral, precisamos, brevemente, perscrutar suas

ocorrncias mais significativas no universo literrio grego antigo e arcaico, pois s com

essas referncias teremos a chave de leitura capaz de nos abrir uma compreenso da

funo do mito em Rs.

2.5. O amor e a guerra na literatura grega

Antes de abordarmos a temtica do amor e da guerra no drama trgico e cmico,

acreditamos ser necessrio verificar a sua relao dentro do patrimnio literrio grego,

pois somente com o conhecimento das narrativas-fonte, ser possvel ver claramente o

seu posterior desenvolvimento a partir da linguagem da tragdia.

Acreditamos que as melhores referncias s relaes entre essas duas tradies

estejam localizadas nos gneros pico e lrico, mais precisamente no Teogonia de

Hesodo, na Ilada e na Odisseia de Homero, bem como na poesia lrica de Safo de

Lesbos e na elegia marcial de Calino e Tirteu.

Esses textos gozaram de prestgio durante a era clssica, tanto em virtude da

autoridade atribuda aos seus autores, bem como a sabedoria expressa em suas palavras.

Acreditamos que sua anlise luz do paradigma do amor e da guerra pode auxiliar na

compreenso de seu uso na poesia dramtica tanto dramtica como cmica. Daremos

incio abordagem com Hesodo, em virtude de sua unidade temtica e sistematicidade.

2.5.1. O amor e a guerra em Hesodo:

Hesodo parece estabelecer a origem da relao entre o amor e a guerra num

nico ponto da narrativa de seu poema20: a castrao de , (Cu), como

analisaremos a partir de agora:

: , : , , , . ,

20 Aqui seguindo a traduo de Jaa Torrano.

33

, : : , . , : , : , : , : , . (vv. 182-200, grifos nossos)

Mas nada inerte escapou da mo: quantos salpicos respingaram sanguneos a todos recebeu-os a Terra; com o girar do ano gerou as Ernias duras, os grandes Gigantes rtilos nas armas, com longas lanas nas mos, e Ninfas chamadas Freixos sobre a terra infinita. O pnis, to logo cortando-o com o ao atirou do continente no undoso mar, a muito boiou na plancie, ao redor branca espuma da imortal carne ejaculava-se, dela uma virgem criou-se. Primeiro Citera divina atingiu, depois foi circunfluda Chipre e saiu veneranda bela Deusa, ao redor relva crescia sob esbeltos ps. A ela. Afrodite Deusa nascida de espuma e bem-coroada Citeria apelidam homens e Deuses, porque da espuma criou-se e Citeria porque tocou Citera, Cpria porque nasceu na undosa Chipre, e Amor-do-pnis porque saiu do pnis luz.

A partir da leitura desses versos, alguns aspectos parecem reforar a relao

entre o amor e a guerra, que passam a ser concebidos como princpios complementares

apesar das suas caractersticas opostas, como bem percebeu Vernant e Detienne21 (2008,

p. 64-65):

Este ato ter consequncias csmicas decisivas. Ele afasta o Cu da Terra, desbloqueia, pelos tempos vindouros, a vinda das geraes futuras; ele institui um novo modo de procriao pela unio dos princpios que permanecem, na sua aproximao mesma, distintos e opostos; ele funda a necessria complementaridade entre as potncias de conflito e as potncias de amor; (grifo nosso)

Dessa forma, apesar de Urano ser apresentado vido de amor, repleto da seiva

fecundante, ele trava uma guerra com sua descendncia, impedindo-a de vir luz por

estar confinada nas profundezas de Gaia. Ao final ele no ser aprisionado como Cronos

21 Cf.: Mtis, As Astcias da Inteligncia.

34

e os Tits, sua pena ser a castrao, e do sangue do seu pnis decepado surgem trs

espcies de seres (Ernias, Gigantes e Ninfas), que, como bem notou Ragusa (2005, p.

323) possuem uma forte relao com o mito de Ares:

Viu-se que, na Teogonia, Afrodite nasce de um ato violento e ardiloso: a castrao de Urano. Tal ato gera, ao mesmo tempo, do esperma misturado gua, a deusa que rege ros, e do sangue do pnis que cai na terra, deidades da guerra os Gigantes, as Ninfas Freixos e da vingana as Ernias (vv. 185-87).

Na continuidade da narrativa, o smen que ainda estava presente no pnis de

Urano que fora atirado ao mar faz nascer Afrodite, a deusa do amor, que no poema

identificada como nascida em Chipre, cognominada Citeria.

Acreditamos, entretanto, que a expresso , aqui traduzida por

Mas nada inerte, mas que tambm podemos traduzir por nada sem propsito ou infrutfero

completando o sentido de , escapou da mo guarda um importante significado

para essa cena.

O uso do aoristo segundo do verbo marca o aspecto de um acontecimento

pontual, nico, do qual, segundo o texto escapam elementos fecundos (nada infrutfero), que

iro agir no processo de gerao da natureza: sangue e smen. Esses smiles funcionam como

representaes da guerra e do amor, que so por Hesodo retratados como elementos

primordiais, antecipando o que posteriormente diriam os pr-socrticos22.

Assim, a partir de um ato doloso e violento, o amor e a guerra surgem como

duas foras presentes na nova ordem do universo, na transio do antigo mundo para o

novo. Esse relato primordial os coloca definitivamente na origem da consolidao do

universo e, porque no, do prprio fazer potico.

J prximo ao final do poema, Hesodo apresenta a descendncia de Ares e

Afrodite, pois juntos eles geram trs filhos: Pavor, Temor, e Harmonia. Os dois

primeiros esto bastantes ligados s artes do combate, enquanto a ltima apenas

descrita como a esposa de Cadmo, entretanto por ser identificada como uma consorte, a

jovem indiretamente ligada s artes do amor. Segue o trecho dos vv. 932-36:

[...] , ,

22 Principalmente Empdocles e Herclito, como ser retomado com mais detalhes posteriormente.

35

, .

[...] E de Ares rompe-escudo Citeria pariu Pavor e Temor terrveis que tumultuam os densos renques de guerreiros com Ares destri-fortes no horrendo combate, e Harmonia que o soberbo Cadmo desposou.

Assim, o amor e a guerra parecem surgir de um mesmo ato, cujas substncias

formadoras pertencem a um mesmo tronco (o pnis de Urano). Essa tradio ser recepcionada

pela posteridade grega, e trabalhada pela literatura dramtica sob muitos aspectos. Passemos,

assim, a apreciao da guerra e do amor na pica de Homero, que, embora anterior Hesodo,

preferimos colocar em segundo lugar em virtude da organicidade com que o poeta da Becia

tratou do assunto em seus versos.

2.5.2. O amor e a guerra em Homero:

Apesar de os poemas homricos serem os mais antigos, e tratarem em muitos

aspectos do amor e da guerra, no possuem uma linearidade no tratamento do tema.

Entretanto, em seu conjunto, ambos os textos fornecem preciosas informaes sobre a

compreenso desse motivo no mundo grego antigo.

Na Ilada, as intervenes de Afrodite diretamente na guerra so registradas nos

cantos V e XX, respectivamente. Entretanto, trabalharemos somente a primeira

passagem, pois nela parece haver uma compreenso diferente da de Hesodo, no que diz

respeito relao entre amor e guerra.

Nessa passagem, a deusa enfrenta sem grande xito Diomedes, que a expulsa do

combate, exortando-a para que no se envolva com os assuntos blicos:

, ; ,

Filha de Zeus, afasta-te da guerra, foge das brigas! No te basta seduzir mulheres frgeis? Queres provar de novo a guerra? O nome guerra penso , de longe mesmo, ora te aterra! (vv. 348-51, grifo do autor)

Retornando ao mundo dos deuses, veremos que Afrodite, ainda no mesmo canto,

receber uma exortao semelhante, mas agora de seu prprio pai Zeus, um imortal:

[...] ,

36

> (vv. 426-30).

[...] Sorriu o pai de todos. E chamando a urea Afrodite: No cuides dos afs da guerra; s himenias, doces obras te consagra; De guerra ho de ocupar-se Ares veloz e Atena.

O trecho em estudo apresenta um aspecto interessante: tanto Diomedes, um

mortal, quanto Zeus, um imortal, acreditam que Afrodite deva permanecer no mbito da

seduo, mas a deusa, aparentemente, insiste em participar dos assuntos da guerra, pois

no pode se afastar daquele que est junto a si desde a origem.

Tomaremos, agora, um recorte do canto VIII da Odisseia, que acreditamos

apresentar uma maior concordncia com Hesodo, pois aqui temos um testemunho

consagrado sobre a irresistvel atrao entre Ares e Afrodite, que no podem ser

contidos, nem mesmo pela (mtis) de Hefesto.

Esse trecho constitui um dos momentos mais conhecidos e engraados da

Odisseia e narra o encontro furtivo entre Ares e Afrodite23. Embora o esposo da deusa

do amor seja Hefesto e no Ares, curioso como outra tradio antiga faz a leitura

dessa narrativa: as duas potncias embora separadas, continuam desejando-se

ardentemente at que conseguem unir-se sorrateiramente em conbio amoroso.

, , : , , : , . , . : , . (vv. 290-298, grifo nosso)

Veio-lhe presto casa, cobioso De gozar Vnus bela: esta pousava De visitar o genitor Satrnio; Pega-lhe o amante na mimosa destra: Vazia a cama est; Vulcano fora, Aos Sntios foi-se de linguagem bronca. Ei-los ao leito jubilando ascendem, E nas malhas do artista se emaranham;

23 Canto VIII, a partir dos versos 290, aqui utilizamos a traduo de Odorico Mendes, a qual preferimos nessa passagem pela proximidade com o orginal, vv. 265 ss.

37

Nem desatar-se nem mover-se podem, Sem ter efgio algum.

A armadilha de Hefesto tem um carter peculiar, ao invs de afastar os amantes

ela os deixa ainda mais presos um ao outro, o que expresso por

, aqui traduzido por nem desatar-se nem mover-se podem.

Entretanto, ao trazer essa ideia de imobilidade dos membros, e de que eles no podiam

mover-se ou ser erguido em quaisquer direes Hefesto parece ter sido o nico a

imobilizar os princpios que em Hesodo no eram inertes.

Contudo, as tentativas de separar os dois amantes surtem o efeito inverso, alm

de ridicularizado, Hefesto parece ter contribudo para deix-los mais prximos. Dessa

forma, tanto os amantes, como as suas respectivas tradies, seja hesidica ou homrica,

parecem concordar num estreitamento inerente a ambos desde suas origens.

2.5.3. O amor e a guerra na poesia lrica de Safo de Lesbos:

Apesar de a pica ter constitudo uma das fontes da Paideia grega, difcil

avaliar a sua influncia sobre a poesia lrica, como destaca Corra (1998, p. 60):

Mas difcil avaliar a influncia de Homero sobre os lricos arcaicos, pois no sabemos at que ponto a Ilada e a Odissia que conheciam assemelhavam-se aos textos que nos chegaram. West (1965b, p. 159) adverte: poderia haver mais de uma dzia de Iladas nessa poca.

A grande variedade de autores e de temas aliada s fontes, muitas vezes escassas

e fragmentrias, torna difcil o estudo da lrica grega24. A obra de Safo no constituiu

uma exceo regra. Entretanto, consideramos os fragmentos sobreviventes de sua obra

importantes para a pesquisa em virtude do dilogo entre as representaes de Afrodite e

Ares presentes em seus poemas.

Tomaremos apenas o primeiro fragmento conhecido como Hino a Afrodite para ilustrar a relao da guerra e do amor em Safo. Apesar de Afrodite ser cantada em muitos versos25 sobreviventes da poetisa de Lesbos concordamos com Ragusa (2005, p.261) quando diz:

Em primeiro lugar, porque essa composio, conhecida como Hino a Afrodite, no s uma das mais estudadas pelos helenistas, como a nica de Safo quase totalmente completa, [...]. Em segundo lugar, porque seu carter de texto completo permite uma anlise mais integral dos seus aspectos estruturais e uma interpretao mais abrangente dos seus significados.

24 Cf. Ragusa, 2005, p.17. 25 Idem.

38

Nesse poema Safo invoca Afrodite para que venha em seu auxlio, o que faz com

que seus versos paream mais uma prece.26A poetisa de Lesbos confere deusa do amor

uma srie de eptetos, que a revestem de atributos originais e de difcil compreenso,

mas que do preciosas informaes sobre a natureza e objetivos de seu poema como

aponta Ragusa (2005, p. 264-65):

No fragmento, Afrodite invocada pelo seu nome e a ele so associados quatro eptetos literrios da deusa nenhum deles atestado em cultos, dado importante para argumentar contrariamente aos que tomam a prece de Safo que literria, como cultual.

Devido a extenso do poema, utilizaremos somente o segundo verso, da primeira

estncia e os quatro versos da ltima estncia, pois so esses os trechos que contm os

elementos que consideramos nucleares para nosso estudo. Seguiremos o texto e

traduo de Ragusa27 para realizarmos nosso estudo, como se segue:

, , (grifo nosso) filha de Zeus, tecel de ardis, suplico-te: , , , , (grifo nosso). Vem at mim tambm agora, e liberta-me dos duros pesares, e tudo o que cumprir meu corao deseja, cumpre; e, tu mesma, s minha aliada de lutas.

Esse epteto que Safo atribui a Afrodite de tecel de ardis reveste a deusa de um

duplo aspecto: enquanto por um lado preserva o seu lado feminino, pois a tecelagem era

uma atividade desenvolvida pelas mulheres gregas, por outro d a ela a astcia, um

elemento bem presente no contexto marcial como exemplo o canto X da Ilada,

denominado pelos antigos, no por acaso, de dolonia.

J o final da ltima estncia bem mais direto no sentido de relacionar Afrodite

a elementos inerentes ao deus da guerra. Safo parece cham-la para junto de si para a

luta, e por isso a considera como sendo sua aliada, e para tanto se utiliza de mais um

26 Ibidem, p. 264. 27 Ibidem.

39

termo prprio do contexto blico (symmachos). Isso faz de Afrodite uma entidade

dbia, que ao mesmo tempo sedutora e perigosa, de acordo com Ragusa (2005, p. 322):

Quanto ideia de guerra, ela se harmoniza com o contexto ertico-amoroso do poema. Se o epteto smmakhos raro na poesia grega antiga, no o binmio opositivo amor/guerra, trabalhado por Safo tambm no fragmento 16 V:

Acreditamos que os trs poetas, bem como as amostras de suas produes

selecionados no daro condies de adentrar no universo dramtico da literatura grega,

para verificarmos, assim, como a guerra e o amor sero trabalhados no drama trgico

em squilo e Eurpides a partir da leitura dos textos paradigmticos em dilogo com a

pea Rs.

Aps uma viso panormica do amor e da guerra na pica e lrica, como tambm

delimitada a compreenso de mito enquanto narrativa aplicada realidade, e, tendo

como textos paradigmticos28 da produo esquiliana, Os Sete Contra Tebas e

Eumnides, e, respectivamente, de Eurpedes, Alceste e Hiplito, ser analisado se

possvel detectar uma correspondncia do discurso aristofnico em Rs em dilogo com

o eixo mitolgico nuclear presente nessas peas.

2.5.4. O amor e a guerra na elegia marcial de Calino e Tirteu

Nesse ponto, no pretendemos nos deter em todas as nuances pertinentes ao

gnero elegaco, pois esse somente recebeu sua forma definitiva a partir do trabalho dos

grandes poetas elegacos do perodo latino. Ao nvel de nossa pesquisa interessa

somente o metro por eles utilizado, o hexmetro, e o seu principal motivo potico, a

exortao marcial.

Tanto Calino quanto Tirteu pertencem ao sculo VII a.C., e ambos cultivaram os

valores atinentes ao mbito da guerra e do valor do guerreiro, aproximando-se assim do

gnero pico. Seu fazer potico constituiu as bases do que seria consolidado na poesia

de Slon e Teognis, como bem explica Romilly (2001, p.62):

Calino parece ter de ser situado na primeira metade do sculo VII e a sua inspirao parece ter sido heroica. Do mesmo modo, conhecemos Tirteu, que vivia em Esparta no sculo VII, por algumas elegias que

28 As tradues utilizadas dos textos paradigmticos sero as de Jaa Torrano, para Sete Contra Tebas (2009) e Eumnides (2004). E para as peas de Eurpides sero usadas as tradues de Manuel de Oliveira Pulqurio e Maria Alice Nogueira Mala para Alceste (1973) e de Bernardina de Sousa Oliveira (1997) para Hiplito.

40

so um convite coragem guerreira e uma exaltao da morte em combate;

Apresentaremos um fragmento pertencente a cada um dos poetas como forma de

exemplificar que a tradio inerente ao motivo blico constitua um importante ncleo

do fazer potico do perodo arcaico.29 E, aparentemente, ao valorizarem esse contexto,

ambos parecem procurar despertar o amor pelo combate, principalmente na fina flor da

juventude grega.

Tirteu (Esparta): Fragmento 10 W (vv.15-18): , , , , Jovens, vamos, lutai, mantendo-vos lado a lado, no inicieis a torpe fuga ou o pavor mas fazei grande e valente o nimo no peito; no amai a vida, em luta com vares! Calino (feso): Fragmento 01 W (vv.15-18): , . , , Pois no h como um varo fugir morte assinalada, Mesmo que seja da estirpe de ancestres imortais; Muitas vezes quem foge luta e ao estridor de dardos Retorna, mas a hora fatal da morte o pega em casa. Esse no caro ao povo, nem dele se tem saudade;

A partir da leitura dos fragmentos apresentados, percebemos um movimento de

deslocamento da afeio do jovem, que exortado a optar pela morte em combate, e ter

a prpria vida como objeto de desprezo. E, igualmente execrvel, aquele que volta

inclume do combate.

2.5.5. O amor e a guerra na filosofia cosmolgica

No podemos desprezar nesse estudo alguns fragmentos dos filsofos pr-

socrticos, que, apesar de no pertencerem diretamente aos gneros literrios da Grcia 29 Ambos os fragmentos, bem como suas respectivas tradues foram retirados da obra de BRUNHARA (2011, p. 68-69, e 82, respectivamente).

41

arcaica, se nos basearmos na moderna concepo do termo, constituem, por sua vez, um

testemunho vlido da importncia das tradies pertinentes ao amor e guerra na

formao do pensamento filosfico ocidental.

Por isso, gostaramos de analisar essas potncias luz do pensamento de dois

desses filsofos a partir da leitura de alguns de seus fragmentos, pois, o grupo de

filsofos, posteriormente denominados de pr-socrticos, no desenvolvimento de seus

sistemas de compreenso da ordem natural se utilizaram de uma reflexo sobre o amor e

a guerra.

Analisaremos alguns fragmentos da obra de Herclito de feso (540-470) e de

Empdocles de Agrigento (490-435), respectivamente, que parecem atuar diretamente

na formao da compreenso de mundo da cultura grega, principalmente na transio

dos sculos VI-V a.C., poca do desenvolvimento e consolidao do gnero potico

dramtico.

Herclito em seu fragmento D.K. 5330 j dizia que:

, , , , , .

De todos a guerra pai, de todos rei; uns indica deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros, livres.

A guerra em Herclito parece atuar na ordem contingente, definindo as

instncias de participao dos seres de acordo com seus prprios paradigmas. Assim,

tanto mortais e imortais esto a ela sujeitos.

Herclito tambm teoriza sobre os deuses procurando estabelecer uma relao de

identidade entre eles. Assim, uma entidade parece refletir diretamente caractersticas de

outras. 31

Da mesma forma que estudamos a ligao entre o amor e a guerra, o filsofo

obscuro via uma grande proximidade entre Dioniso e Hades. Assim o fragmento de

Herclito (D.K. 15) que diz:

... , .

30 Cf. Costa (2012, 132). 31 Cf. Otto (1965).

42

Se no fosse para Dioniso a procisso que fazem e cantassem o hino, que entoam com as vergonhosas realizariam a coisa mais vergonhosa.32

Apesar de a referncia de Herclito ser de difcil contextualizao, como afirma

Otto, em virtude de seu carter filosfico e fragmentrio, a sua apreciao crtica traz

uma certa credibilidade pelo fato de comprovar a existncia de uma identidade ritual

entre os dois deuses por parte da audincia de sua poca, sculos VI-V a.C.

J Empdocles define o amor e o dio como as duas foras que constituem o

princpio movente das substncias essenciais:

Este (Empdocles) estabelece quatro elementos corporais, fogo, ar, gua e terra, que so eternos e que mudam aumentando e diminuindo mediante mistura e separao; mas os princpios propriamente ditos, pelos quais aqueles so movidos, so o Amor e o dio. Pois preciso que os elementos permaneam alternadamente em movimento, sendo ora misturados pelo Amor, ora separados pelo dio. Por conseguinte, seis so, conforme Empdocles, os princpios. 33

V-se, dessa forma, que no perodo da produo dos textos paradigmticos de

squilo e Eurpides, bem como no de Aristfanes, que sero analisados na pesquisa,

essas questes eram presentes e significativas tanto no mbito dos filsofos naturalistas,

bem como no fazer potico grego grega em geral.

2.6. O Hades enquanto espao metapotico

Como vimos, h em Rs, duas tradies mitolgicas de extrema riqueza e poder:

a guerra e o amor. Contudo, essas foras esto contidas num espao igualmente

poderoso para a literatura grega: o Hades. Dessa forma, uma compreenso do

movimento dessas duas foras necessita de uma compreenso do prprio espao que

lhes sustm, e que tambm servir de arena para os poetas trgicos duelarem.

Acreditamos, assim, que a articulao do ncleo mitolgico presente em Rs

tem, no Hades, a sua vinculao ao maior dos ideais para a plis do final do perodo

clssico: a vitria da guerra do Peloponeso, pois com (nke) Atenas teria a

32 Esse trecho apresenta o deus Dioniso inserido em um contexto que sugere um rito fnebre, embora a procisso e o hino que estejam sendo executados pertenam ao seu culto e no ao do deus dos nferos. 33 Kuhnen (1999, p. 179)

43

oportunidade de ressurgir como uma grande potncia, mas com a derrota viria a ser

tragada para as profundezas do submundo, juntamente com seus mortos.

Infelizmente, pouco tempo depois da representao dessa pea adveio a

inevitvel derrota de Atenas para as foras de Esparta, e com ela profundas mudanas

em todos os setores da sociedade, principalmente no campo da poesia dramtica, que

viria nos anos seguintes enfrentar um perodo de decadncia, como explicita Schler

(1992, p. 13):

Eram tempos de letargia aqueles. Em lugar das tragdias violentas de squilo, Sfocles e Eurpides, teatrlogos sem imaginao proporcionavam espetculos serenos a platias acomodadas. Situaes mediocremente hilariantes passavam a ocupar o espao em que as densas comdias de Aristfanes discutiam urgentes questes do momento.

A pea Rs, representa assim, um momento em que se pode ver, por um lado o

pice da produo dramtica grega, bem como a compreenso dos rumos que tomou; e

por outro, abre espao para uma tentativa de prever as possibilidades que ela poderia ter

tomado se At