Dissertacao Versao Final ES E GESTAO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE CINCIAS ECONMICAS DEPARTAMENTO DE CINCIAS ADMINISTRATIVAS CENTRO DE PS-GRADUAO E PESQUISAS EM ADMINISTRAO

DANIEL CALBINO PINHEIRO

A EDUCAO E A GESTO NA ECONOMIA SOLIDRIAUM ESTUDO SOBRE OS PROCESSOS DE FORMAO DAS INCUBADORAS TECNOLGICAS DE COOPERATIVAS POPULARES

Belo Horizonte 2010 1

DANIEL CALBINO PINHEIRO

A EDUCAO E A GESTO NA ECONOMIA SOLIDRIAUM ESTUDO SOBRE OS PROCESSOS DE FORMAO DAS INCUBADORAS TECNOLGICAS DE COOPERATIVAS POPULARES

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Administrao da Faculdade de Cincias Econmicas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito obteno do ttulo de Mestre em Administrao. rea de concentrao: Estudos Organizacionais e Gesto de Pessoas. Orientadora: Prof. Dr. Ana Paula Paes de Paula

Belo Horizonte 2010 2

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por me conceder o dom do discernimento, de modo que termino o Mestrado mais convicto das limitaes da cincia, da racionalidade humana e com a certeza, da existncia de Deus. minha famlia (meu pai minha me e minha irm), pela educao que me deram, possibilitando que eu chegasse at onde estou hoje. minha orientadora, Ana Paula Paes de Paula, por tudo que me ensinou tanto nas questes acadmicas quanto na vida pessoal, repleta de uma coerncia tica e cheia de princpios e valores que fortalecem novas utopias. A todos os amigos do Cepead: Amon, Renata e Elcemir, pelas provocaes intelectuais sobre a temtica da economia solidria; aos colegas dos grupos de pesquisa e extenso (Ites-Ufmg), autogestionrios, Felipe, Dimitri, Leonardo, Ana Diniz, Raquel Barreto e Cleiton, que contriburam para as reflexes que emergiram neste trabalho e por me abastecer de esperanas para lutar por modificaes na sociedade. Aos professores Carrieri, Reynaldo e Ben, pelas contribuies tericas que me forneceram nestes dois anos de trabalho. minha amiga Mariana Mayumi, por todos os debates filosficos e teolgicos que realizamos, alm das diversas parcerias nos artigos. Ao Jonathan e a sua mulher (Tita), por me mostrarem onde de fato se encontra a felicidade plena e duradoura. A meus irmos que conheci no Cepead, Xambinho, Rafael e Cleyto, que me proporcionaram diversos momentos de felicidade e apoio nos dois anos que vivi em BH.

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So as circunstncias que fazem os homens. Ento, faamos as circunstncias humanamente. Robert Owen

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RESUMO Esta dissertao teve por objetivo central compreender em que condies situam os trabalhos de educao e repasse de conhecimentos tcnico-administrativos e polticos realizados pelas incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares (ITCPs). Feita esta distino, props-se estudar como se configura a educao poltica desenvolvida pelas ITCPs que realizam esta atividade. Para a constituio da base epistemolgica deste trabalho, recorreu-se teoria crtica. No que se refere metodologia, apoiou-se na triangulao de mtodos, realizando uma pesquisa quantitativa e qualitativa. Na pesquisa quantitativa, utilizou-se um survey. Os resultados indicaram que a maioria das incubadoras afirma desenvolver as atividades de formao tcnica e poltica equitativamente, de modo formal e informal, h mais de trs anos, que criam materiais didticos prprios, e que todos os integrantes participam destes processos. Constatou-se tambm que relataram desenvolver projetos de pesquisa, realizam debates internos, e apresentam um perfil poltico que defende a economia solidria como um contraponto economia capitalista. Os resultados possibilitaram ainda a criao de critrios para a seleo de trs incubadoras para anlises qualitativas: ITCP/UNEB, ITES/UFBA e INCOOP/UFSCar. Na pesquisa qualitativa, realizaram-se visitas s trs incubadoras, entrevistas com os membros e levantamento de dados secundrios. Para a anlise dos resultados, recorreu-se ao mtodo dialtico e anlise de contedo. Ao comparar os resultados das duas pesquisas, observaram-se contradies com o que foi afirmado na primeira fase, inferindo que a utilizao apenas do mtodo quantitativo no suficiente para aprofundar nas temticas estudadas. No que se refere aos resultados da pesquisa qualitativa, confirmou-se que as incubadoras desenvolvem atividades de formao poltica e tcnica. Contudo, nas atividades de formao tcnica existem dificuldades para sistematizar e criar materiais didticos prprios, e as tentativas de ressignificao do conhecimento gerencial tem ocorrido de modo pontual. Constataram-se ainda contradies na organizao interna das incubadoras. Apesar de defenderem a autogesto para os empreendimentos incubados, deparam-se com contradies no que se refere s relaes de poder, as decises coletivas, as divises de tarefas, a remunerao de seus profissionais, as dinmicas de jornada de trabalho, nos cursos de formao interna e nos financiamentos. Observou-se tambm que apesar de alguns membros compreenderem os aspectos negativos, parecem que so poucos os que fomentam propostas para esses problemas. Por fim, confirmou-se que as concepes das trs incubadoras seguem o posicionamento de contraponto economia mercantil. Todavia, constatou-se que as incubadoras tm elaborado poucas estratgias e teorias de mudanas sociais com base nesta perspectiva. Desse modo, infere-se que a dificuldade de formulao de teorias sociais tem refletido na prtica das incubadoras, restringindo as tentativas de ressignificao do conhecimento gerencial, limitando de organizarem-se de modo autogestionrio e comprometendo at mesmo as prticas de incubao. Palavras-chave: Economia solidria. Incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares. Educao. Processos de formao. Modos de gesto.

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ABSTRACT This work aimed at understanding the conditions under which lie the work of education and knowledge transfer of technical and administrative policy made by technology incubators of popular cooperatives (ITCP's). Made this distinction, was proposed study how is education policy implemented by ITCP's. To constitute the epistemological basis of this work, we resorted to critical theory. As regards the methodology, relied on triangulation methods, making a quantitative and qualitative research. In quantitative research, we used a Survey. The results indicated that most activities of technical and policy occurs equally, formally and informally, for over three years, creating their own materials, and that all members participate in these processes. It was also reported that develop research projects, hold internal discussions, and has a political profile that supports the social economy as a counterpoint to the capitalist economy. The results also enabled the establishment of criteria for the selection of three incubators for qualitative analysis: ITCP/UNEB, ITES/UFBA and INCOOP/UFSCar. In qualitative research, there were visits to three incubators, interviews with members and survey of secondary data. For the analysis of the results, we used the dialectical method and content analysis. By comparing the results of two surveys, there were contradictions with what was stated in the first phase, implying that only the use of quantitative method is not sufficient to develop this themes. Regarding the results of qualitative research, was confirmed that the incubators have developed training activities, technical and policy. However, about the activities of technical training, there are problems to systematize and create materials themselves, and to try to reframe the knowledge management has occurred in piecemeal fashion. It found also contradictions in the internal organization of the incubators. Despite propose the self-managed, have contradictions with regard to power relations, collective decisions, divisions of labor, the compensation of its professionals, as well as the dynamics of the working day. It was also noted that incubators have had difficulty in carrying out internal discussions and training courses for teachers, and dependence have funding to carry out the process of incubation. Although some members has understanding the negative aspects of these processes seem to be few who encourage alternative proposals. Finally, it was confirmed that the conceptions of the three incubators is of counterpoint to the market economy. However, few have developed strategies and theories of social change based on this perspective. Thus, it appears that the difficulty of formulating social theories, have to be reflected in the practice of incubators, hampering attempts to reframe knowledge management, limiting to organize themselves so self-managed and committing even the practices of incubation. Keywords: Economic solidary, technology incubators of popular cooperatives, education, management methods.

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LISTA DE FIGURASFIGURA 1 DICOTOMIA ENTRE A TCNICA E A POLTICA ............................................................ 108 FIGURA 2 METODOLOGIA DE INCUBAO DA ITCP/UNEB .......................................................... 135 FIGURA 3 EMPREENDIMENTOS INCUBADOS PELA ITCP/UNEB GRUPOS E LOCALIDADES ............................................................................................................................................................................. 154 FIGURA 4 METODOLOGIA DA ITES/UFBA........................................................................................... 169 FIGURA 5 ESTRUTURA ORGANIZACIONAL DA REDE MATARANDIBA ..................................... 182 FIGURA 6 METODOLOGIA DE INCUBAO DA INCOOP/UFSCAR .............................................. 202 FIGURA 7 CONDIES ESSENCIAIS PARA A INCUBAO DA INCOOP/UFSCAR .................... 203 FIGURA 8 INCUBAO DA INCOOP/UFSCAR (1998-2006) ................................................................ 204 FIGURA 9 INCUBAO DA INCOOP/UFSCAR (2007-2009) ................................................................ 205 FIGURA 10 RELAO DOS PARCEIROS DA INCOOP/UFSCAR ...................................................... 214 FIGURA 11 METAS DA REDE SOLIDRIA DA INCOOP/UFSCAR ................................................... 215 FIGURA 12 OS REFLEXOS DAS TEORIAS NA PRTICA DAS INCUBADORAS ............................ 242

LISTA DE TABELATABELA 1 PARADIGMAS EPISTEMOLGICOS ........................................................................................................ 25 TABELA 2 INCUBADORAS VINCULADAS REDE ITCP ......................................................................................... 52 TABELA 3 EVOLUO DOS EMPREENDIMENTOS SOLIDRIOS NO BRASIL ............................................................. 57 TABELA 4 FORMAS DE ORGANIZAO DOS EMPREENDIMENTOS SOLIDRIOS ...................................................... 57 TABELA 5 TIPOS DE MOVIMENTOS E NMERO DE PARTICIPAES........................................................................ 57 TABELA 6 PARTICIPAO OU DESENVOLVIMENTOS DE ATIVIDADES SOCIAIS DOS EMPREENDIMENTOS SOLIDRIOS ...................................................................................................................................................................... 58 TABELA 7 REA DE ATUAO DOS EMPREENDIMENTOS SOLIDRIOS .................................................................. 58 TABELA 8 INICIATIVAS SOCIAIS DOS EMPREENDIMENTOS SOLIDRIOS ................................................................ 58 TABELA 9 MODOS DE INICIATIVAS SOCIAIS DOS EMPREENDIMENTOS SOLIDRIOS: ............................................. 58 TABELA 10 TRATAMENTO/DESTINO DOS RESDUOS GERADOS NOS EMPREENDIMENTOS SOLIDRIOS: .................. 59 TABELA 11 RELAO DAS INCUBADORAS QUE REALIZAM CURSOS DE FORMAO TCNICA: ............................ 113 TABELA 12 RELAO DAS INCUBADORAS QUE REALIZAM CURSOS DE FORMAO ............................................ 113 POLTICA IDEOLGICA: ......................................................................................................................................... 113 TABELA 13 RELAO DAS INCUBADORAS QUE REALIZAM CURSOS DE FORMAO POLTICA ORGANIZACIONAL: .................................................................................................................................................................... 113 TABELA 14 COMPARAO NA PARTICIPAO DAS ATIVIDADES DE FORMAO TCNICA E POLTICA: ............... 114 TABELA 15 COMPARAO NO MODO DE PARTICIPAO DAS ATIVIDADES DE FORMAO TCNICA E POLTICA. 114 TABELA 16 TEMPO DE REALIZAO DOS CURSOS DE FORMAO TCNICA E POLTICA: ..................................... 115 TABELA 17 FREQUNCIA DOS CURSOS DE FORMAO TCNICA E POLTICA: ..................................................... 115 TABELA 18 CARGA HORRIA DOS CURSOS DE FORMAO TCNICA E POLTICA: ............................................... 116 TABELA 20 RELAO DOS MINISTRANTES NOS CURSOS FORMAO TCNICA E POLTICA: ................................ 117 TABELA 21 CONTEDO DOS CURSOS DE FORMAO TCNICA ........................................................................... 117 TABELA 22 INCUBADORAS QUE DESENVOLVEM PROJETOS DE PESQUISA EM ECONOMIA SOLIDRIA: ................. 118 TABELA 23 INCUBADORAS QUE DEBATEM INTERNAMENTE A ECONOMIA SOLIDRIA:........................................ 118 TABELA 24 CONCEPES TERICAS DAS INCUBADORAS SOBRE A ECONOMIA SOLIDRIA: ................................ 119 TABELA 25 INCUBADORAS QUE POSSUEM UM POSICIONAMENTO FORMAL SOBRE O PAPEL POLTICO DA ECONOMIA SOLIDRIA: ................................................................................................................................................. 119 TABELA 26 DELINEAMENTO DAS INCUBADORAS QUE AFIRMAM POSSUIR UM POSICIONAMENTO FORMAL DA ECONOMIA SOLIDRIA ................................................................................................................................. 119 TABELA 27 CARGO DOS ENTREVISTADOS NA INCUBADORA ............................................................................... 120 TABELA 28 ATIVIDADES PROFISSIONAIS DOS ENTREVISTADOS NA INCUBADORA ............................................... 120 TABELA 29 TEMPO PARTICIPAO DOS ENTREVISTADOS NA INCUBADORA ....................................................... 120

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TABELA 30 PARCERIA DA ITCP/UNEB ............................................................................................................. 152

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LISTA DE SIGLAS

AATC - Associao Alternativa dos Trabalhadores Cegos ACIEPE - Atividade Curricular Integrada de Ensino, Pesquisa e Extenso ADS Agncia de Desenvolvimento Solidrio AMAC - cooperativa mltipla de Artess de Cajazeiras. ANTEAG - Associao Nacional dos Trabalhadores de Empresas de Autogesto e Participao Acionria APAEB Associao dos Pequenos Agricultores do Municpio de Valente. ARTSOMA - Artesanato Solidrio de Matarandiba ASCOMA - Associao Comunitria de Matarandiba ASCOMAT - Associao Scio-Cultural de Matarandiba ASMOCONP Associao de Moradores do Conjunto Palmeira BANSOL - Banco da Solidariedade CEFET-BA Centro Federal de Educao tecnolgica da Bahia CEFET/RJ - Centro Federal de Educao tecnolgica Celso Suckow da Fonseca CEPED - Centro de Pesquisa e Desenvolvimento do Estado da Bahia CIGALEs (Clubs d Investisseurs pour une Gestion Alternative et Locale de LEpargne), CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil CNES: Conselho Nacional de economia solidria, e prefeituras municipais. COAPES - Cooperao e Aes em Poltica Pblicas e economia solidria COEP Comit de Entidades Pblicas no Combate a Fome e pela Vida CONSUMOSOL - Articulao tica e Solidria para o Consumo Responsvel COOFE - Cooperativa Mltipla Fonte de Engomadeiras COOLETIVA - Cooperativa de Coletadores de Materiais Reciclveis do Jardim Gonzaga COOPAFRO - Cooperativa de costureiras e artess do bairro Pau Mido COOPERART - cooperativa mltipla dos Artesos do Bairro de Cajazeiras, Castelo Branco e Adjacncias COOPERCOOK - Cooperativa de Prestao de Servios em Culinria de So Carlos COOPERCORTE- Cooperativa de mulheres construindo uma realidade diferente COOPERJOVENS - Cooperativa de Produo dos Jovens da Regio do Sisal COOPERLIMP Cooperativa de Limpeza Jardim Gonzaga Organizao; COOPERTANE - Cooperativa mltipla unio popular dos trabalhadores de Tancredo neves 11

COOPERTRAC - Cooperativa de Trabalhadores Cegos. COOPTEBA - Cooperativa de trabalho do setor energtico da Bahia. COOSTURART E- Cooperativa dos Trabalhadores em Confeces So Carlos COPPE/UFRJ Coordenao dos Programas de Ps-Graduao de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro CUT Central nica dos Trabalhadores DIESSE Departamento Intersindical de Estatsticas e Estudos Sociais Econmicos EAs Empresas autogestionrias EVA - Etileno-vinil-acetato FAFIRE- Faculdade Frassinetti de Recife FAPESP - Fundao de Amparo a Pesquisa do Estado So Paulo FBB Fundao Banco do Brasil FBES: Frum Brasileiro de Economia Solidria; FEES: Fruns Estaduais de Economia Solidria; FEEVALE - Centro Universitrio Feevale FINEP Financiadora de Estudos e Projetos FGV/SP - Fundao Getlio Vargas de So Paulo FSA Fundao Santo Andr FURB - Fundao Universidade Regional de Blumenau FURG - Fundao Universidade Federal do Rio Grande GALIMAR - Produo de galinhas caipira para corte e postura GRUPO PRO - Cooperativa de Cajazeiras GTs Grupo de Trabalho HABIS - Grupo de Pesquisa em Habitao e Sustentabilidade ITCPs Incubadoras Tecnolgicas de Cooperativas Populares ITCP/UNEB Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares da Universidade Estadual da Bahia. ITES/UFBA Incubadora Tecnolgica de Empreendimentos Solidrios da Universidade Federal da Bahia. INCOOP/UFSCar Incubadora Regional de Cooperativas Populares da Universidade Federal de So Carlos. INFOMAR - Infocentro Comunitrio de Matarandiba LAU Laboratrio de Agricultura Urbana LETS (Local Exchange trading system), 12

MADEIRARTE - Marcenaria coletiva no Assentamento Rural Fazenda Pirituba MCT/FINEP: Ministrio da Cincia e Tecnologia, atravs da Financiadora de Estudos e Projetos; MDS: Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate a Fome; MEC: Ministrio da Educao; MLSTP Movimento de Libertao de So Tom e Prncipe MST Movimento dos Sem-Terra MTE/SENAES: Ministrio do Trabalho e Emprego, atravs da Secretaria Nacional de economia solidria; NEGP Ncleo de Pesquisa em Gesto Pblica NEF - Nouvelle Economie Fraternelle NEOS Ncleo de estudos organizacionais e sociedade NUFESMAR - Ncleo de formao em economia solidria OCB Organizao das cooperativas brasileiras ONG - Organizao No Governamental PAC Projetos Alternativos Comunitrios PEDECO - Plano Estratgico de Desenvolvimento Comunitrio PIPP - Programa Integrado de Projetos Produtivos de Desenvolvimento Scio-ambiental PROEX Pr-Reitoria de Extenso PRONINC Programa Nacional de incubadoras de cooperativas RECRIART - empreendimento de produo de papel artesanal e derivados REL (Redes de economia Local) SCA Sistema de Cooperativista dos Assentamentos SEAP - Secretaria Especial de Aqicultura e Pesca SEBRAE- Servio brasileiro de apoio s micro e pequenas empresas SEL (Systemes dechanges locaux) SEMPRE - Secretaria Municipal da economia, Emprego e Renda SENAES - Secretria Nacional de Economia Solidria SESOL - Superintendncia de Economia Solidria SETRE - Secretaria de Trabalho e Esportes THABA - Tecnologia da Habitao UCPEL - Universidade Catlica de Pelotas UCSAL - Universidade Catlica de Salvador UEMS - Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul 13

UEPG - Universidade Estadual de Ponta Grossa UFBA - Universidade Federal da Bahia UFES - Universidade Federal do Esprito Santo UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados UFJF - Universidade Federal de Juiz de Fora UFLA - Universidade Federal de Lavras UFMG Universidade Federal de Minas Gerais UFMS - Universidade Federal do Mato Grosso do Sul UFPR - Universidade Federal do Paran UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRPe - Universidade Federal Rural de Pernambuco UFSCar - Universidade Federal de So Carlos UFSJ - Universidade Federal de So Joo Del Rei UFT - Universidade Federal de Tocantins UFV - Universidade Federal de Viosa UNEB - Universidade Estadual da Bahia UNEF Universidade Estadual do Norte do Fluminense UNESP - Universidade Estadual Paulista UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas UNICERP - Centro Universitrio do Cerrado UNIFACS - Universidade Salvador UNIFEI - Universidade Federal de Itajub UNIJUI Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul UNILASALLE - Centro Universitrio La Salle UNIMONTES - Universidade Estadual de Montes Claros UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISOL Unio e Solidariedade das cooperativas do Estado de So Paulo UNIVALI Universidade do Vale do Itaja UNOCHAPEC - Universidade Comunitria Regional de Chapec UNOESC - Universidade do Estado de Santa Catarina USP - Universidade de So Paulo

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SUMRIO1 INTRODUO .......................................................................................................................................... 17 1.1 1.2 1.3 1.4 1.4.1 1.4.2 1.5 2 O PROBLEMA DE PESQUISA .................................................................................................................. 20 PREMISSAS .......................................................................................................................................... 21 JUSTIFICATIVA ..................................................................................................................................... 21 OBJETIVOS: ......................................................................................................................................... 22 Objetivo geral: ............................................................................................................................... 22 Objetivos especficos ...................................................................................................................... 22 ORGANIZAO DA DISSERTAO ........................................................................................................ 23

BASE EPISTEMOLGICA ..................................................................................................................... 25 2.1 2.2 UTILIZAO DOS ESTUDOS CRTICOS: .................................................................................................. 25 A TEORIA CRTICA ............................................................................................................................... 26

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REFERENCIAL TERICO ..................................................................................................................... 34 3.1 A ECONOMIA SOLIDRIA ..................................................................................................................... 34 3.1.1 Origens: ......................................................................................................................................... 34 3.1.2 Origens no Brasil ........................................................................................................................... 40 3.1.3 Definio: ...................................................................................................................................... 42 3.1.4 Manifestaes da economia solidria ............................................................................................ 44 3.1.5 Definio das incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares ............................................ 47 3.1.6 Origens das incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares: .............................................. 48 3.1.7 A Rede de incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares .................................................. 51 3.1.8 A metodologia de incubao das incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares .............. 54 3.1.9 Os avanos da economia solidria no Brasil................................................................................. 56 3.1.10 Limites e desafios para a economia solidria no Brasil ........................................................... 59 3.2 EDUCAO .......................................................................................................................................... 64 3.2.1 O paradigma de que educao ocorre apenas na escola .............................................................. 64 3.2.2 Embates sobre a neutralidade da educao .................................................................................. 68 3.2.3 A negatividade da neutralidade educacional ................................................................................. 69 3.2.4 A concepo harmnica e a concepo dialtica da educao ..................................................... 72 3.2.5 A educao poltica e seu mtodo .................................................................................................. 74 3.2.6 A utopia pedaggica ...................................................................................................................... 77 3.2.7 Uma alternativa utopia pedaggica............................................................................................ 78 3.2.8 O cooperativismo como um projeto socialista ............................................................................... 81 3.2.9 Uma definio de educao na economia solidria ...................................................................... 86 3.3 POR UMA NOVA ADMINISTRAO NOS CONTEXTOS ORGANIZACIONAIS ALTERNATIVOS DE GESTO.... 86 3.3.1 Embates sobre a neutralidade da Gesto ...................................................................................... 86 3.3.2 A negao da neutralidade e da replicao tecnolgica ............................................................... 89 3.3.3 Os modos de gesto: da heterogesto autogesto ...................................................................... 91 3.3.4 Heterogesto .................................................................................................................................. 92 3.3.5 A participao e a cogesto ........................................................................................................... 94 3.3.6 Autogesto ..................................................................................................................................... 95 3.3.7 Novas perspectivas para uma administrao na autogesto ......................................................... 98

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METODOLOGIA ...................................................................................................................................... 99 4.1 4.2 4.3 4.4 VNCULO EPISTEMOLGICO-METODOLGICO ...................................................................................... 99 POSICIONAMENTO METODOLGICO DOS AUTORES ............................................................................ 101 MTODO E ESTRATGIA DE PESQUISA ................................................................................................ 104 DELIMITAO DA EDUCAO NO MBITO ADMINISTRATIVO E POLTICO .......................................... 107

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APRESENTAO E ANLISE DOS RESULTADOS ....................................................................... 110 5.1 A PESQUISA QUANTITATIVA .............................................................................................................. 110 5.1.1 Caracterizao ............................................................................................................................. 110 5.1.2 Anlise dos resultados da pesquisa quantitativa ......................................................................... 112

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5.2 CRITRIOS DE SELEO DAS INCUBADORAS PARA A PESQUISA QUALITATIVA ................................... 122 5.3 A PESQUISA QUALITATIVA ................................................................................................................. 124 5.3.1 Incubadora tecnolgica de cooperativas populares da Universidade estadual da Bahia ITCP/UNEB................................................................................................................................................ 126 5.3.2 Incubadora tecnolgica de empreendimentos solidrios da Universidade Federal da BAHIA ITES/UFBA ................................................................................................................................................ 164 5.3.3 Incubadora regional de cooperativas populares INCOOP/UFSCar ........................................ 195 5.4 ESTUDO COMPARATIVO ITCP/UNEB, ITES-UFBA, INCOOP/UFSCAR ....................................... 232 6 CONSIDERAES FINAIS................................................................................................................... 244

REFERNCIAS ................................................................................................................................................. 251 ANEXO A ........................................................................................................................................................... 262 ANEXO B ........................................................................................................................................................... 269

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INTRODUO

O tema motivador deste trabalho surgiu do grupo de pesquisa de estudos sobre a economia solidria, vinculado atualmente ao Ncleo de Estudos de Gesto Pblica (NEGP). Em uma das reunies de trabalho o autor deste projeto relatou sua experincia em uma incubadora tecnolgica de cooperativas populares (ITCP), afirmando que no perodo no havia desenvolvido diretamente nenhuma atividade de educao poltica para as entidades incubadas e que a maior parte da educao ministrada se condensava apenas em processos e tcnicas de gesto. Uma das associaes vinculadas incubadora possua uma excelente situao financeira, o que se devia, provavelmente, s tcnicas de gesto aplicadas com sucesso. Contudo, relatos dos apoiadores da associao davam conta que um dos maiores problemas que esta passou a enfrentar no se referia questo da renda para a sobrevivncia, mas sim baixa conscientizao dos integrantes no que se refere aos valores de solidariedade, tomada de deciso coletiva e distribuio das sobras. Isso acarretava a permanncia dos valores individualistas entre os associados, colocando em xeque o carter ideolgico da associao, que atualmente se assemelha mais a uma pequena empresa capitalista do que a um empreendimento de base solidria. Essa experincia inspirou a elaborao desta proposta para estudar se o desequlibro entre a educao poltica e a administrativa tem ocorrido nas demais incubadoras do Pas. Paralelamente construo desta dissertao, um debate acadmico travado entre pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais sobre estudos crticos em administrao colocava de um lado aqueles que acreditavam que o papel do pesquisador com este vis, deveria romper com as propostas de qualquer modelo de gesto, ainda que alternativo, sob a alegao de que serviam lgica do capital, e restringir os estudos organizacionais apenas s questes de natureza ideolgica, afastando-se das demandas do mundo real, e do outro aqueles que defendiam que a rea dos estudos crticos nas organizaes deveria, sim, manter os estudos em gesto, contudo modificando-os a partir de uma perspectiva poltica, cuja ideologia superasse a lgica do capital, pois a gesto em si no seria o problema, mas sim a forma de apropriar-se do conhecimento gerencial e o modo de significar e conduzir a gesto. Acredita-se que os partidrios da primeira posio tm dificuldade em compreender que a conscientizao poltica e ideolgica dos membros da organizao descolada da apropriao e ressignificao do conhecimento gerencial 17

impossibilita a autogesto, pois, uma vez que este conhecimento segue sendo monoplio de uma elite gerencial, esta continua detendo o poder e reproduzindo a lgica do capital. Este embate levou uma reformulao do problema inicial, pois, mais do que tentar descobrir quais eram as ITCPs que desenvolvem a educao poltica, tornou-se fundamental saber que tipo de educao estas vm desenvolvendo: Seria uma educao poltica predominantemente ideolgica1 e desvinculada da gesto ou uma educao poltica que prope ressignificar a gesto, de modo a alterar a lgica do capital e coletivizar efetivamente o poder? A educao gerencial abrange conhecimentos de natureza tcnica, como aspectos jurdicos, contbeis, processos de produo e qualidade, estoques, logstica, pesquisa de mercado, formao de preos, dentre outras ferramentas gerenciais, e conhecimentos de natureza organizacional, como os modos de gesto das organizaes (autogesto, cogesto e heterogesto), as relaes de poder em estruturas autogestionrias, o processo decisrio, a formao de diretorias e comisses, a diviso do trabalho, a mecanizao, o uso da tecnologia e o uso das informaes. Como j alertava Tragtenberg (1974), as teorias administrativas so ideolgicas, refletindo a lgica e o interesse do capital, de modo que o conhecimento tanto tcnico e organizacional instrumentalizado de acordo com esta perspectiva. No mbito da economia solidria, a ideologia que alicera a educao poltica est relacionada primordialmente s seguintes questes: emancipao, valores de coletivismo e solidariedade, participao e criao de redes solidrias, desigualdades sociais, limites dos sistemas mercantis e busca de caminhos alternativos ao sistema capitalista. A grande lacuna que pode existir neste contexto a dificuldade de se ressignificar o conhecimento gerencial, tcnico ou organizacional, de acordo com esta ideologia, que parece no estar produzindo alternativas para a gesto, na medida em que continua reproduzindo as mesmas prticas do mundo corporativo. Ocorre que o conhecimento gerencial, principalmente o organizacional, tambm poltico e pode no estar sendo tratado como tal, permitindo a hegemonia da perspectiva ideolgica capitalista. Retomando o tema das ITCP`s, estas surgiram em decorrncia das condies propcias da dcada de 1990, marcada pelo aumento vertiginoso do desemprego no Brasil, consequncia da globalizao da economia, da reestruturao produtiva e da privatizao das empresas pblicas. Isso representou para os trabalhadores brasileiros, principalmente aqueles inseridos no mercado formal, uma forte ruptura, resultando em ndices de desempregos expressivos jamais vistos na histria do Pas. Trabalhadores antes includos nos mercadosIdeolgica entende-se por um conjunto de valores, de interesses, no uma atividade neutra, isenta de juzos de valores.1

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formais vieram somar-se aos j historicamente excludos, ou seja, aqueles trabalhadores que nunca tiveram trabalho com carteira assinada, provenientes do mercado informal. A partir do momento em que a referncia social do trabalhador estava atrelada sua insero na economia, a perda do trabalho formal significou muito mais que a perda financeira. Nesta conjuntura desfavorvel aos trabalhadores, floresceram importantes projetos, que marcaram os anos de 1990, como reao ao processo de fechamento de postos de trabalho e de excluso (GUIMARES, 1999; GUERREIRO et al., 2004). Ainda, um movimento composto por um conjunto de militantes de diversas ideologias de cunho social e adversos da ideologia neoliberal, buscava novas estratgias de contraponto economia mercantil (POCHMANN, 2004). Neste cenrio, como uma alternativa queda nos empregos formais e como estratgia poltica de resistncia ao capitalismo, surge a proposta da economia solidria, uma retomada dos princpios de cooperativismo do incio do sculo XIX, inspirados pelos socialistas utpicos e libertrios como Robert Owen, Saint-Simon, Louis Blanc, Fourier e Proudhon. Um ponto em comum entre estes autores era a proposta de que os trabalhadores se reunissem em associaes e cooperativas, e rompessem com a estruturada assalariada, tornando-se os donos dos meios de produo, com o direito de participar dos processos de deciso das organizaes. Emergem, assim, princpios que se tornaram a essncia do cooperativismo: a propriedade social dos meios de produo, a gesto democrtica destes meios e a orientao da produo em funo da satisfao das necessidades humanas (RIOS, 1989). Segundo Singer (2002), a economia solidria se pauta na proposta de unio entre os valores solidrios e as necessidades de produo e gerao de renda, na busca por um desenvolvimento sustentvel e alternativo ao sistema capitalista vigente. No Brasil, existem diversos rgos que apoiam a economia solidria: Secretaria Nacional de economia solidria (SENAES), Associao dos Trabalhadores de empresas Autogestionrias (ANTEAG), Central nica dos Trabalhadores (CUT) e as diversas incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares. Estas incubadoras so, em sua maioria, rgos ligados s diversas Universidades do Pas, que tm por objetivo utilizar os recursos humanos e os conhecimentos da Universidade na formao, qualificao e assessoria de trabalhadores para a construo de atividades autogestionrias, visando a sua incluso no mercado de trabalho (GUIMARES, 1999). Atualmente, existem no Pas 110 incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares desenvolvendo estas atividades. Destas, 40 esto vinculadas Unitrabalho, 45 Rede de ITCPs, e 25 no tm vnculos institucionais diretos. Para este trabalho, recorreu-se ao estudo apenas das incubadoras vinculadas Rede de ITCPs. A justificativa para tal escolha que as 19

incubadoras do Pas vinculadas Rede so as mais antigas e parte-se da premissa que so as que mais se aproximam de um carter poltico sobre o papel da economia solidria e da educao como estratgia poltica. 1.1 O problema de pesquisa No que tange as cooperativas e s associaes no Brasil, segundo dados do mapeamento realizado, entre 2005 e 2007, pela Secretaria Nacional de economia solidria, constata-se um aumento significativo destes empreendimentos econmicos solidrios, bem como a sua insero nos movimentos sociais e no desenvolvimento de produtos e servios que atendam sociedade em geral. No o bastante o aumento do nmero de empreendimentos solidrios, que servem como mecanismo de gerao de renda e como instrumento poltico, ocorrem diversos problemas, como: diviso nos processos de trabalho, distribuio de renda desigual entre os membros das cooperativas e associaes, formao de quadros de gesto, presena de valores individualistas entre os cooperados e dificuldade em agregar os associados nos processos de tomadas de deciso (VIEITEZ; DAL RI, 2001). Alm disso, a expanso das cooperativas em espao fsico, da produo ou do nmero de associados, muitas vezes, geram-se estruturas rgidas e burocratizadas, reproduzindo os sistemas vigentes das empresas capitalistas (FRANA, 2008). Diante do exposto, pode-se citar que os limites e os principais desafios a serem superados pela economia solidria hoje so: necessidade de superao da competio com o capitalismo para sobreviver sem sofrer suas influncias; modificao dos valores individualistas ainda presentes nos cooperados para valores de solidariedade; conscientizao da importncia da participao de todos na tomadas de deciso; e tomada de conscincia de um trabalho para um projeto poltico de mudana social, e no apenas de sobrevivncia (SINGER, 2002; FRANA; LAVILLE, 2004; CANDEIAS, 2005). A educao emerge como uma sada, pois aponta para um processo de conscientizao dos atuais problemas, para o reforo dos valores solidrios e para a politizao dos trabalhadores. Esta proposta defendida por diversos autores quando abordam a educao em uma perspectiva voltada para a economia solidria, como Arroyo e Schuch (2006), Frana e Laville (2004), Singer (2002), Vieitez e Dal Ri (2001) e Gutierrez (1988, 1999a, 1999b). Diante deste cenrio, sendo as ITCPs um rgo de apoio a diversas cooperativas e associaes no Brasil, busca-se compreender em que condies se situam os trabalhos de 20

educao no repasse de conhecimentos tcnico-administrativos e polticos realizados pelas incubadoras para as cooperativas e associaes? Feita esta distino, prope-se estudar como se configura a educao poltica desenvolvida pelas ITCPs que realizam esta atividade. Trata-se de uma educao meramente ideologizada, ou se faz uma reapropriao e ressignificao do conhecimento gerencial, seja ele tcnico, ou organizacional?

1.2

Premissas

As premissas que procura-se confirmar no presente trabalho so duas:

a) A educao desenvolvida nas incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares tem um enfoque muito mais voltado para o plano gerencial do que para uma educao poltica. b) As incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares que adotam um enfoque mais voltado para a educao poltica tm dificuldades para realizar uma reapropriao e ressignificao do conhecimento gerencial, de modo a fazer prevalecer sua perspectiva ideolgica.

1.3

Justificativa Esta pesquisa se justifica, primeiramente, pelo reduzido nmero de estudos sobre

educao relacionados economia solidria e s incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares. No levantamento da literatura, no se encontrou nem um trabalho que mapeasse se as incubadoras no Brasil desenvolvem atividades educativas, e tampouco que esclarecesse que tipo de educao desenvolvem e se reforam os valores essenciais da economia solidria ou ficam apenas no plano do conhecimento gerencial. Tambm no se encontraram estudos que avaliassem que modelos de gesto so implementados e repassados pelas ITCPs para suas incubadas. Dessa forma, no h informaes se estes modelos de gesto so importados dos clssicos livros de administrao ou se so construdos de acordo com a realidade dos empreendimentos solidrios. O resultado da pesquisa pode ser til tanto s incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares como ao prprio projeto poltico que circunda a economia solidria. Quanto s ITCPs, espera-se que os resultados e anlises sobre a educao e os modelos de gesto desenvolvidos pelas ITCPs possibilitem repensar as suas diretrizes polticas e estratgicas; 21

quanto economia solidria, que este estudo venha a fomentar o debate sobre a importncia da educao neste contexto, de modo que a educao proposta no se restrinja ao repasse e reproduo de modelos gerenciais, mas que venha a reforar os valores solidrios propostos pela economia solidria s cooperativas e s associaes do Pas. Acredita-se que isto possa ser um forte instrumento para reduzir os atuais fatores limitantes encontrados na maior parte dos empreendimentos solidrios do Pas. Espera-se tambm que este trabalho abra espao para um novo campo de pesquisa sobre os estudos organizacionais, que contemple o estudo dos modos de gesto implementados no contexto da economia solidria. Busca-se ento, refletir sobre a criao de modos de gesto que atendam s questes administrativas e polticas e que sejam coerentes com as realidades das estruturas organizacionais das cooperativas e associaes. 1.4 Objetivos:

1.4.1

Objetivo geral: Compreender se as ITCPs que declaram desenvolver a educao poltica caminham

para uma perspectiva de ressignificao do conhecimento gerencial, tcnica ou organizacional, ou permanecem apenas no campo ideolgico que sustenta a economia solidria. 1.4.2 Objetivos especficos

a) Realizar o mapeamento de todas as incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares do Brasil vinculadas Rede ITCP, para compreender quais desenvolvem a educao nos mbitos tcnico e poltico; b) Identificar se as incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares do Brasil vinculadas Rede desenvolvem entre seus membros estudos e pesquisa sobre assuntos relacionados a economia solidria; c) Identificar se existe equilbrio entre as atividades de formao tcnica e poltica realizadas pelas incubadoras que alegaram desenvolver tais atividades; d) Identificar se as incubadoras tm um posicionamento poltico formal sobre o papel da economia solidria e citar qual seria este; e) Identificar qual a concepo dos membros da incubadora sobre a importncia da educao poltica e tcnica (ou seja, se estes vm a gesto como ideolgica); 22

f) Identificar se os resultados dos cursos de formao refletem no cotidiano dos empreendimentos solidrios incubados, possibilitando que se estruturem de modo autogestionrio; g) Identificar se as incubadoras que prezam pela autogesto conseguem se estruturar deste modo.

1.5

Organizao da dissertao Este trabalho encontra-se dividido em seis captulos, incluindo esta Introduo, em que

se apresentam os fatores que motivaram esta pesquisa, os objetivos, a justificativa e as premissas do estudo. O segundo captulo refere-se base epistemolgica utilizada. Por afinidades ideolgicas dos autores, recorreu-se s perspectivas da teoria crtica. O terceiro captulo corresponde ao referencial terico. Divide-se em trs subcaptulos. O primeiro aborda as origens da economia solidria, seus modos de manifestao, os limites e desafios e as incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares. O segundo trata-se das perspectivas de uma educao crtica vinculada s propostas dos modos de autogesto como tentativas de suprir os problemas presentes na economia solidria e constituir novas estratgias de mudanas sociais. O terceiro considera os modos de gesto e a importncia da ressignificao do conhecimento gerencial nos contextos autogestionrios. Parte-se das argumentaes de que a gesto e a tcnica no so neutras e de que os valores presentes nos empreendimentos solidrios so diferentes das organizaes convencionais, e com isso as propostas de gesto no podem ser replicadas sem adaptaes para estas realidades. O quarto captulo consiste em abordar sobre o mtodo utilizado, na qual se recorre a duas estratgias de pesquisa: a quantitativa e a qualitativa. Como mtodo de anlise dos resultados, utilizam-se a anlise de contedo e a anlise dialtica. Tambm, retoma-se a base epistemolgica utilizada, defendendo a importncia de manter um vnculo entre a epistemologia e o mtodo de pesquisa a ser utilizado. O quinto captulo, compreende apresentao e anlise dos resultados: primeiro, da pesquisa quantitativa; em seguida, relatam-se alguns critrios para selecionar trs incubadoras que afirmara contemplar os objetivos propostos no trabalho; por fim, inicia-se a pesquisa qualitativa, na qual se confrontam os resultados desta com os da primeira fase, realizando um estudo comparativo entre as trs incubadoras. 23

O sexto captulo dedicado s concluses e recomendaes. Inicialmente, abordam-se as concluses em relao aos objetivos do trabalho e as limitaes da pesquisa quantitativa. Por ltimo, foram feitas algumas recomendaes s incubadoras do Brasil e sugestes para trabalhos futuros.

24

2

BASE EPISTEMOLGICA

2.1

Utilizao dos estudos crticos: Escolher uma perspectiva crtica uma tarefa rdua, visto que se rompe com a solidez

do funcionalismo, que prope pesquisas que geram hipteses e modelos tericos de trabalhos empricos, para aproximar-se da incerteza e da produo de um conhecimento questionado pelo prprio pesquisador, no qual se colocam muitas vezes, prova as concluses e os resultados alcanados (PAES DE PAULA, 2008). Outro desafio para esta perspectiva a prpria definio do conceito de crtica. Paes de Paula (2008), antes de defini-lo, busca contextualiz-lo recorrendo aos quatro paradigmas de Burrell e Morgan (1979): funcionalismo, interpretacionismo, estruturalismo radical e humanismo radical (TABELA1).Tabela 1 Paradigmas epistemolgicos SUBJETIVO ORDEM Interpretativo MUDANA RADICAL Humanismo radical Fonte: Burrell e Morgan, 1979 (adaptado)

OBJETIVO Funcionalismo Estruturalismo radical

Nesta classificao, os autores fazem uma separao entre a objetividade (funcionalismo e estruturalismo radical) e subjetividade (humanismo radical e

interpretacionismo). Ainda, nos quadrantes da subjetividade se encontram a fenomenologia e o existencialismo, vinculados ao interpretacionismo e ao humanismo radical, respectivamente (CALDAS; VIEIRA, 2006). Embora a crtica e o interpretacionismo se situem no mesmo grupo, aponta-se que uma das diferenas fundamentais entre as duas perspectivas a questo da emancipao. A crtica est no domnio da mudana e da transformao radical da sociedade, pressupondo um comprometimento com as possibilidades revolucionrias, enquanto o interpretacionismo se situa no campo da regulao social e se mantm no terreno do reformismo (PAES DE PAULA, 2008). Aps a breve contextualizao da perspectiva crtica, Paes de Paula (2008, p.xiv) busca definir este conceito recorrendo a Foucault e a Kant. Segundo a autora, o primeiro define a crtica como a arte da inservido voluntria, da indolacilidade refletida, em outras palavras, uma atitude de resistncia em relao governamentalizao que procura sujeitar 25

os indivduos. J na concepo de Kant, a sada do homem do seu estado de menoridade, isto , a sua superao da incapacidade de servir de seu entendimento sem a direo de outrem ou o alcance da emancipao. Ao recorrer questo da emancipao na definio do conceito de crtica, a autora conclui que a crtica pode ser identificada com o humanismo radical e com o conceito de dialtica. Quanto ligao com o primeiro ponto:[...] a crtica pode ser identificada com o humanismo radical, j que o humanismo, que nasce na Antiguidade entre os filsofos gregos e romanos e resgatado no contexto do Renascimento, que considera o homem um sujeito autodeterminado, autoconsciente e autnomo, capaz de refletir sobre sua realidade e fazer as escolhas que moldaro seu destino.

Em relao ligao do conceito de crtica com a dialtica, Paes de Paula (2008, p.xv) define:a) os processos de transformao so constitudos por perodos lentos, que acumulam pequenas alteraes quantitativas, e por perodos de acelerao, quando ocorrem alteraes qualitativas, ou seja, saltos e modificaes radicais (lei da passagem da quantidade qualidade); b) as coisas esto inter-relacionadas, e os aspectos da realidade entrelaam-se em todos os nveis, quer dizer, nada pode ser compreendido isoladamente, e cada realidade tem sempre dois lados, que constituem uma unidade, mas que geral, so contraditrios (lei da interpretao dos contrrios); e c) toda afirmao pode ser negada, e negao desta afirmao tambm pode ser negada, de modo que a sntese da realidade a negao da negao, podendo mesmo essa sntese ser revista (lei da negao da negao).

Diante do exposto, a crtica pode ser exercida por intermdio da dialtica, colocando em questo as realidades que a circundam continuadamente, em que cada sntese a que se chega precisa situar-se sob constante questionamento. Quanto ao campo dos estudos organizacionais, os estudos crticos se encaixam em duas vertentes: a teoria crtica e o ps-modernismo (ALVESSON; DEETZ, 1999). Dentre as duas correntes, prope-se aqui a adoo da perspectiva da teoria crtica, que defende:1. Orientao para a emancipao do homem na sociedade. Permite compreender a sociedade e agir. No se limita a compreender o mundo, mas examina-o visando possibilidades; 2. Manuteno de comportamento crtico. O terico crtico mantm e realimenta seu comportamento critico freqente a tudo que existe, sem se conformar com o que dado como descrio do real (CALDAS; VIEIRA, 2006, p.62).

2.2

A teoria crtica

26

A teoria crtica, historicamente, est associada ao Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, fundado em 1923, que teve como membros diversos intelectuais, como Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Jurgen Habermas, Walter Benjamin, Leo Lowenthal, Franz Neumann, Friedrich Pollock, Erich Fromm, Ernst Bloch e Felix Weil (WIGGERSHAUS, 2002). O termo teoria crtica apareceu pela primeira vez em 1937, no ensaio terico de Max Horkheimer Teoria Tradicional e Terica Crtica. Neste trabalho, prope-se romper com uma viso instrumental e positivista, desinteressada da realidade a teoria tradicional , que buscou um saber racional que denunciasse o irracional existente na histria e na sociedade. Na viso de Bronner (1997, p.15):[...] seu propsito foi destacar a maneira como a teoria crtica militava contra todas as tentativas de construir um sistema fixo e contra todas as tentativas de identificar o sujeito ao objeto, fossem elas concebidas como instituies sociais ou categorias abrangentes da filosofia.

Na concepo de Morgado (2005, p.3) a teoria crtica uma determinada teoria da sociedade, um mtodo de investigao e uma Escola de Pensamento. Ainda, por teoria crtica considera-se:[...] 1. uma referncia investigao terica iniciada por Horkheimer, Adorno, Simmel, Luckcs, entre outros, na qual se analisavam (segundo uma perspectiva histrica) as reais possibilidades de podermos vir a coexistir uma sociedade organizada racionalmente, sem que isso implicasse a subordinao da vontade e da individualidade autoridade logocntrica; 2. Meno a obras de autores associados linha de investigao da Escola de Frankfurt, a partir de 1950. O nome, Escola de Frankfurt, foi adotado neste mesmo ano pelos membros do Instituto de Pesquisas Sociais. [...] Entre 1930 e 1970 a teoria crtica se define como uma anlise crtica da sociedade, mas diz-se tambm proponente de um mtodo que contribui para a erradicao das vrias formas de dominao da sociedade em nome de uma autoritria razo instrumental; 3. teoria que tinha como objetivo incluir todas as cincias sociais num projeto comum que visasse a construo de uma teoria materialista da sociedade (seguindo a tradio marxista); 4. Estudo do papel da cincia e da tecnologia moderna, sendo-lhe atribudo um papel negativo na formao da conscincia e da razo; [...] 5. oposio, sob as formas de anlises e produes tericas, estrutura racional das sociedades contemporneas; [...] 6. teoria que no fim dos anos sessenta serviu como referncia terica para movimentos sociais de protestos na Alemanha.

Alm dessas caractersticas levantadas por Morgado (2005), ao se recorrer leitura de outros pesquisadores sobre teoria crtica e queles da Escola de Frankfurt, podem-se traar alguns pontos em comum da teoria, tais como: (a) compromisso com a justia social; (b) crtica a opresso; (c) oposio ao materialismo mecanicista; (d) ligao da teoria e prtica; 27

(e) uso de mtodos dialticos; (f) renuncia ao status quo; (g) enfoque na emancipao; e (h) preocupao com o fomento de uma educao crtica. No que tange ao compromisso da teoria crtica com a justia social, nas leituras de Bronner (1997), Freitag (2004), Kincheloe e McLaren (2006) e Paes de Paula (2008) esta sempre expressou interesse pela abolio da injustia social. Tinha como questo mostrar que interesses repressivos estavam ocultos em formulaes supostamente neutras da cincia. Tinha tambm um compromisso com a integridade do indivduo e com a liberdade para alm dos parmetros existentes. Quanto preocupao de se restringir a todos os modos de opresso, Bronner (1997, p.12), afirma:A teoria crtica desejava ir alm do dogma estupefaciente e do coletivismo do que ficou conhecido como socialismo realmente existente. A estrutura ideolgica e institucional da opresso sempre foi trazida ao primeiro plano e transformada em alvo de ataques. Foi isso que nutriu a preocupao da teoria crtica com a utopia e seu compromisso inabalvel com a experimentao com novas formas de experincia e anlise.

Kincheloe e McLaren (2006) e Bronner (1997, p.12) tambm abordam a oposio da teoria crtica ao materialismo mecanicista:[...] sua oposio ao materialismo mecanicista e a todas as formas a-histricas de interpretao, sua nfase no mtodo dialtico e na importncia da tradio idealista para o marxismo e sua preocupao com a conscincia e com a superao da alienao, transformou seus pensadores em muito mais do que simples precursores da Escola de Frankfurt.

A preocupao em manter uma ligao da teoria com a prtica se caracterizou como um dos pontos centrais da teoria crtica. Paes de Paula (2008, p.2), ao definir seu objetivo, ressalta:Seu objetivo promover a reflexividade e uma nova base para a prxis, que uniria teoria e prtica, realizando as seguintes tarefas: uma oposio ao determinismo econmico e a qualquer teoria etapista da Histria por meio da crtica ao socialismo realmente existente; e um resgate da relao entre o marxismo e a filosofia para fazer uma reviso das categorias marxistas e da teoria anacrnica da revoluo inserida pela leitura que Lnin faz da obra de Marx, desnudando o que dificulta a prtica revolucionria e o seu desfecho emancipatrio.

Bronner (1997), ao tratar das contribuies de alguns tericos da Escola de Frankfurt, como Karl Korsch, Georg Luckcs e Ernst Bloch, ressalta que todos eles tiveram uma

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extraordinria influncia no desenvolvimento da teoria crtica. Observa que eles rejeitavam as restries disciplinares rgidas e procurava reconstituir a ligao entre a teoria e a prtica. Tentando resgatar essa preocupao com a teoria e a prtica, Pucci (1995, p.36) observa que esta nova proposta de prxis surge com Horkheimer no ensaio Teoria Tradicional e Teoria Crtica, no qual observou que a teoria tradicional, por querer ser mais rigorosa em seu mtodo de pesquisa para que os resultados fossem os mais objetivos e alcanassem a maior aplicabilidade prtica, acaba por, paradoxalmente, tornar-se mais abstrata, no se ocupando das situaes reais em que a cincia usada e para que fim usada. J a teoria crtica, por no aceitar a resignao dos homens ordem totalitria, favorece a realizao da autonomia e determinao do homem. Ainda, acrescenta que a incapacidade da ideologia burguesa de pensar a relao orgnica entre teoria e prxis deve ser entendida como a no superao do dualismo cartesiano entre o pensar e o ser. Entretanto, a teoria crtica que se torna um poder real, que promove atravs dos sujeitos uma grande revoluo histrica, tem condies de superar esse dualismo. Por fim, o autor conclui que a organicidade da teoriaprtica prende-se a sua vinculao com os ideais de transformao portados pela classe trabalhadora. Cita a seguinte passagem de Horkheimer (1991):[...] a funo da teoria crtica torna-se clara se o terico e a sua atividade especfica so considerados em unidade dinmica com a classe dominada, de tal modo que a exposio das contradies sociais no seja meramente uma expresso da situao histrica concreta, mas tambm um fator que estimula e que transforma.

Quanto utilizao dos mtodos, a teoria crtica utiliza o marxismo para explicar o funcionamento da sociedade e a formao de classes e a psicanlise para explicar a formao do indivduo. Recorre, com isso, ao modernismo e aos marcos dialticos de Hegel e Marx, nos quais recupera tambm o humanismo do Renascimento (PAES DE PAULA, 2008, p.3). Busca-se, segundo a autora,

[...] dialogar com a filosofia alem, realizando uma sntese entre o idealismoalemo, que reduz o ser ao pensamento, considerando o esprito, a conscincia as idias e a vontade como dados primrios para resolver os problemas filosficos, e o materialismo dialtico marxista, que critica a filosofia materialista a-historica e mecanicista, propondo uma concepo de histria forjada pela atividade humana, ou prxis, dentro de determinadas condies materiais que variam no espao e no tempo.

O mtodo dialtico torna-se uma das principais ferramentas da teoria crtica, como cita Pucci (1995, p.40): a perspectiva da negao da negao acompanha a teoria crtica em todos os momentos. Ele corrobora sua afirmao citando a seguinte passagem de Rouanet (1986): 29

[...] a Escola de Frankfurt dialetiza o processo de ideologizao, j desde a fase dos studien. As ideologias, nascidas num contexto de represso, no so em si mesmas repressivas, assim como a interiorizao da cultura, que princpio equivalente introjeo de impulsos e tendncias emancipatrias. [...] os aparelhos ideolgicos no so meros canais de circulao dos valores dominantes, podendo funcionar ambiguamente, como o campo em que se estrutura uma resposta anti-hegemnica.

Grande contribuio para o mtodo foi a dialtica negativa de Adorno. A dialtica negativa consistia no esforo permanente de evitar as falsas snteses, de desconfiar de toda e qualquer proposta definitiva para a soluo de problemas e da rejeio de toda viso sistmica e totalizante da sociedade. Dessa forma, na dialtica de Adorno possvel encontrar um inconformismo ao status quo, representando um esforo permanente da razo no sentido de resgatar do passado as dimenses reprimidas e no concretizadas no presente, transferindo-as para um futuro pacificado em que as limitaes do presente se anulem (PAES DE PAULA, 2008; FREITAG, 2004; BRONNER, 1997). A teoria crtica tambm buscou sua contribuio na proposta de emancipao, que deve ocorrer nos planos fsico, intelectual e social. Para isso, necessrio transformar as condies socioeconmicas da sociedade. Este processo ocorreria por meio da reflexo acerca dos pressupostos necessrios para transformar a sociedade e a vontade de submeter teoria aos interesses da ordem prtica, resistindo contra formas de poder dominantes (MORGADO, 2005). Por fim, pode-se constatar a opinio de diversos autores sobre a contribuio da teoria crtica para a educao (KINCHELOE e MACLAREN, 2006; SILVA, 1994; FREITAG, 2004; PUCCI, 1995). Segundo Silva (1994), a teoria crtica um estilo de anlise desenvolvido pela Escola de Frankfurt para fazer uma crtica s formas educacionais existentes. Para Freitag (2004, p.145),como na Alemanha, a teoria crtica est incentivando, no Brasil, a formao de uma pedagogia crtica. J para Kincheloe e Maclaren (2006), o papel da teoria crtica na educao serve para contestar o poder do discurso dominante nas escolas, que enfraquece os mltiplos significados da linguagem, estabelecendo uma leitura que implanta determinada mensagem ideolgica/hegemnica na conscincia dos estudantes leitores. Ainda, possibilita a reflexo e esperana de que as escolas podem ser cenrios de resistncia e de possibilidade democrtica por meio de esforos conjuntos entre professores e alunos para o trabalho segundo um esquema pedaggico libertrio. Alm deles, Pucci (1995) busca fazer uma ligao da teoria crtica com a construo de uma teoria pedaggica recorrendo argumentao da educao como ato de refletir e da desbarbarizao.

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Segundo o autor, o ato de refletir resgata uma dimenso que vai alm do crculo da mercadoria, do repetitivo, tornando se educativo, formativo. Ele ressalta uma citao de Marcuse (1988) para expressar essa conotao:O pensamento dialtico comea com a experincia de que o mundo no-livre: isto quer dizer o homem e a natureza existem em condies de alienao, existem como outra coisa que no o que eles so. Qualquer modo de pensamento exclui essa contradio de sua lgica com uma lgica falha. O pensamento corresponde realidade, compreendendo sua estrutura contraditria. Aqui o princpio dialtico leva o pensamento para alm dos limites da filosofia. Pois compreender a realidade, significa compreender o que as coisas realmente so, e isto, por sua vez, significa rejeitar sua mera facticidade. O pensamento dialtico torna-se assim negativo em si mesmo. Sua funo romper com a autoconfiana e autosatisfao do bom senso, solapar a confiana sinistra no poder e na linguagem dos fatos, demonstrar que a no-liberdade est to no cerne das coisas, que o desenvolvimento das contradies internas leva necessariamente a uma mudana qualitativa: a exploso e catstrofe do estado estabelecido das coisas (PUCCI, 1995, p.46-47).

Pucci (1995, p.47) cita ainda que Adorno tambm resgata a funo educativa do refletir no texto A educao aps Auschwitz2, pois inicia o artigo com a frase Para a educao, a exigncia que Auschwitz no se repita primordial. E afirma que a educao s teria pleno sentido como educao para a auto-reflexo crtica. A educao pela autoreflexo crtica significa para Adorno a busca da autonomia, da autodeterminao kantiana, do homem enquanto sbio fazendo uso pblico de sua razo, superando os limites da liberdade trazidos pela barbrie. O autor ainda complementa que a autoreflexo crtica representa para os frankfurtianos um elemento fundamental na luta pela emancipao, uma vez que os dominados podem ser esclarecidos sobre a situao enquanto classe explorada e subordinada no sistema capitalista. Seria, assim, um instrumento para a consequente ao transformadora que a reflexo crtica exige. A autoreflexo crtica se torna educativa quando esclarece os mecanismos de alienao e de manipulao ideolgica presentes do sistema e na revelao das verdades no intencionais que poderiam estar ocultas na sociedade. Pucci (1996, p.48), ainda refora este argumento citando Giroux (1986):Ao contrrio das explicaes tradicionais e liberais da escolarizao, com sua nfase nas continuidades histricas e no desenvolvimento histrico, a teoria crtica dirige a educao para um modo de anlise que enfatiza rupturas, descontinuidades e tenso na histria, todas as quais se tornam valiosas na medida em que enfatizam o papel central da ao humana e da luta, ao mesmo tempo que revelam o hiato existente entre a sociedade atual e a sociedade como poderia ser.

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Nome dado a um grupo de campo de concentrao localizado no sul da Polnia, na Segunda Guerra Mundial.

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O segundo ponto da teoria crtica na construo de uma teoria pedaggica levantado por Pucci (1995, p.50) a educao para a desbarbarizao. O autor cita que Adorno definia a barbrie como o fascismo, o preconceito delirante, a represso, o genocdio e a tortura. Isso significava a continuidade do potencial autoritrio, que gera esta situao. Nos texto Tabus a respeito do professor, Adorno constata que a sociedade teve uma recada humana na mais profunda barbrie e que o essencial reside na desbarbarizao dos indivduos. E o processo de desbarbarizao consiste em restabelecer as condies de autonomia, de conscincia e de liberdade do indivduo, do sujeito do ambiente social, tendo a escola um papel fundamental:A desbarbarizao da humanidade o pressuposto imediato de sua sobrevivncia. A ela deve servir a escola, por limitados que sejam seu mbito e suas possibilidades e, para tanto, precisa libertar-se dos tabus, sob cuja presso se reproduz a barbrie. [...] Opor-se a isso tudo que o mundo de hoje nos oferece e que, no presente momento, no admite vislumbrar outra possibilidade de resistncia mais ampla, competncia da escola (PUCCI, 1995, p.50).

Pode-se constatar que o autor, a partir das citaes de Marcuse, Adorno e Giroux, e baseando-se nas premissas da funo educativa do refletir e na responsabilidade da escola no processo de desbarbarizao, tenta corroborar a tese de que a teoria crtica teve tambm a inteno de contribuir para a construo de uma pedagogia crtica, ou educao crtica. A proposta de delimitar alguns pontos em comum da teoria crtica recorrendo-se interpretao de estudiosos sobre o tema foi utilizada devido dificuldade de se encontrar nas obras dos representantes da Escola de Frankfurt, os fundadores da teoria crtica, esclarecimentos explcitos do que seria a teoria crtica e seus objetivos. Causa disso a heterogenia nos posicionamentos epistemolgicos e polticos dos fundadores desta teoria. Como observa Freitag (2004, p.33), a teoria crtica sugere uma unidade temtica e um consenso epistemolgico terico e poltico que raras vezes existiu entre os representantes da Escola. Alm disso, argumenta-se que o prprio termo Escola de Frankfurt tratou-se de uma etiqueta adotada externamente nos anos 60, etiqueta essa que Adorno acabou por adotar com evidente orgulho (WIGGERSHAUS, 2002, p.34). Apesar das possveis leituras que se possa fazer da teoria crtica e dos seus representantes, buscou-se recorrer a esta perspectiva como base de fundamentao epistemolgica, devido similaridade com a proposta deste trabalho. A utilizao do mtodo dialtico, a negao do status quo, as propostas de justia social, o ideal emancipatrio, a ligao da teoria e prxis, e a abordagem da criao de uma educao crtica tornam-se congruentes com a proposta de

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estudar a educao e a gesto nas incubadoras tecnolgicas de cooperativas populares e com o objeto de estudo: a economia solidria. Essa similaridade registrada por Paes de Paula (2008, p.19), que observa, que ao tratar da teoria crtica,torna-se importante identific-la com um projeto de reconstruo fundamentado em formas concretas de solidariedade e sustentabilidade econmica e social, como ocorrem nas experincias autogestionrias e nas prticas legitimas de economia solidria.

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REFERENCIAL TERICO

3.1

A economia solidria

3.1.1

Origens: A proposta de uma economia solidria se fortalece na dcada de 1990, devido juno

de dois fatores especficos. O primeiro diz respeito ao aparecimento de um enorme excedente de mo de obra em escala global. Observou-se uma conteno do segmento organizado do trabalho, principalmente dos setores assalariados regulares e homogneos, das empresas capitalistas. Alm do desemprego formal, constatou-se a ampliao do segmento no organizado do trabalho, responsvel por ocupaes precrias e heterogneas, oriundas de um setor informal. O segundo foi a busca por novos modelos alternativos de gesto ao sistema capitalista, principalmente em um contexto marcado pelo fracasso das propostas polticas de cunho social. Assim, militantes, em sua maioria antineoliberais, que vieram de diversos movimentos sociais crticos e engajados na construo de alternativas de organizao social e laboral, encontraram na proposta de economia solidria uma sada poltica capaz de fazer frente ao capitalismo e gerar trabalho e renda para os setores excludos da sociedade (POCHMANN, 2004). Esta proposta, contudo, tem sua inspirao na retomada de princpios do cooperativismo do incio do sculo XIX, que foram inseridos por socialistas utpicos e libertrios, como Robert Owen, Saint-Simon, Louis Blanc, Fourier e Proudhon. O cooperativismo daquele contexto surgiu como uma resposta ao espantoso empobrecimento dos artesos, provocado pela difuso das mquinas e da organizao fabril da produo. O pensamento destes autores visava a um novo modelo de vida e busca pela emancipao, com a proposta de modelos alternativos de produo (SINGER, 2002; OLIVEIRA, 2006). Constata-se aqui uma similaridade nos fatores (aumento da pobreza e busca por uma nova organizao de sociedade) que motivaram estes dois movimentos: o cooperativismo e a economia solidria. Retomando as contribuies tericas dos socialistas utpicos e libertrios, podem-se citar, de incio, as de Saint-Simon (1760-1825). Este era um socialista francs, liberal avanado e revolucionrio, com uma formao racionalista. Tinha como ideal a constituio de um novo mundo, governado pela cincia, por meio de uma associao coletiva, na qual a 34

cincia desenvolveria a sociedade e geraria o progresso. Ainda, propunha a supresso dos ociosos, que para ele eram os militares, o clero e a nobreza, bem como o fim da explorao do homem pelo homem. A nova sociedade seria constituda por trs classes: os sbios, os proprietrios e os que no tinham posses. Seria governada por um Conselho de Sbios e Artistas (MOTTA, 1987, OLIVEIRA, 2006). Saint-Simon (2002, p.60) afirma isso na seguinte passagem:A organizao social est pouco aperfeioada; que os homens ainda se deixam explorar pela violncia e pela fraude; e que a espcie humana, politicamente falando, ainda est mergulhada na imoralidade; pois os sbios, os artistas e os artesos, que so os nicos homens cujas atividades so de utilidade positiva para a sociedade, e que no custam quase nada, so subalternizados pelos prncipes e por outros governantes, que no passam de indivduos rotineiros mais ou menos incapazes.

Charles Fourier (1772-1837) foi outro precursor das ideias participativas e autogestionrias. Oriundo da classe mdia mercantil francesa e tendo vivido em um ambiente menos industrializado, preocupou-se mais em imaginar uma organizao adequada e justa para a agricultura. Influenciado por algumas ideias de Rousseau, considerava a natureza humana imutvel, entendendo que ela precisava de um ambiente social adequado para florescer. Ainda, propunha um trabalho baseado no princpio da atrao passional, que seria desenvolvido com prazer, emoo e liberdade individual. Para isso, a sociedade no podia se desenvolver sem que houvesse uma repartio proporcional da riqueza produzida e um equilbrio populacional (MOTTA, 1987, OLIVEIRA, 2006). O autor props, ento, a criao de uma comunidade autogerida, os falanstrios. Nestes, haveria estabelecimentos industriais dispersos em um contexto agrcola, de modo a eliminar as diferenas entre cidade e campo. A maior parte da renda deveria servir para cobrir os custos da produo e os custos sociais. O restante deveria ser utilizado para remunerar o talento, o capital e o trabalho. Os falanstrios deveriam ser federados a um governo de coordenao chamado omniarca. O autor defendia tambm que s existe a possibilidade de liberdade real quando esta universal. Com isso, enquanto houvesse pessoas economicamente dependentes no haveria a liberdade plena. O faranstrio precisava garantir o direito do trabalho e oferecer segurana material a seus membros. Alcanada essa situao, o Estado poderia desaparecer, pois a ausncia de interesses opostos tornaria desnecessria a coero. Por fim, Fourier acreditava que este projeto s poderia ser concretizado com o auxlio dos filantropos. Contudo, isso nunca ocorreu. Depois de sua morte, alguns de seus seguidores conseguiram levantar fundos, estabelecendo as comunidades cooperativas, em sua maioria, 35

nos Estados Unidos, no perodo de 1843 a 1853. Nestas, os membros recebiam de acordo com o capital investido e o talento demonstrado (MOTTA, 1987). Louis Blanc (1811-1882), tambm francs e socialista, que era advogado e jornalista, posicionava-se como moderado e descrente de uma revoluo violenta. Pensava que o Estado poderia ser usado para a promoo de reformas sociais. Para ele, s o Estado poderia proteger os membros fracos da sociedade. Desse modo, propunha a estatizao das indstrias, bancos, companhias de seguro, e estradas de ferro, a fim de que o governo pudesse regular a produo nacional. Com isso, o Estado financiaria a criao de oficinas nacionais nos setores industriais centrais. No incio, o governo designaria um diretor, mas, com o passar do tempo, os prprios trabalhadores elegeriam os seus prprios diretores. Tambm, a distribuio da renda, inicialmente desigual, iria se tornando paulatinamente mais igualitria com este modelo de sociedade. Assim, estas oficinas nacionais poderiam estabelecer uma fraternidade real no interior da Frana e gerar uma evoluo gradual, que iria transformar as relaes internacionais e, consequentemente, levar a uma organizao pacfica da humanidade (MOTTA, 1987). Com a revoluo de 1848, Blanc pde participar do governo. Props a criao de uma lei que estipulava que um quarto dos lucros auferidos pelas empresas deveria ser acumulado em um fundo de reserva e que vrios destes formariam um fundo de assistncia mtua, a ser utilizado em caso de necessidade. Dessa forma, um grande capital seria acumulado, o qual pertenceria a todos. Contudo, o governo desconsiderou este projeto. Criou oficinas, que no possibilitavam que os trabalhadores at ento desempregados pudessem desenvolver trabalhos teis. Tais oficinas visavam apenas afastar os operrios das ruas e de rebelies. Insatisfeito, Blanc se demite do governo. Mais adiante, acusado de ser responsvel por uma rebelio contra o governo, sendo deportado por um perodo de vinte anos (MOTTA, 1987). Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) foi tambm outro importante idelogo. De todos os socialistas utpicos libertrios, foi o nico proletrio e o nico a desenvolver uma crtica econmica e poltica sistematizada da sociedade capitalista e a propor um sistema completo da sociedade autogerida. Entendia que o capitalismo era um sistema impulsionado por determinadas contradies internas responsveis pela passagem de uma etapa de anarquia negativa para um capitalismo oligoplio. Este estgio deveria evoluir ainda para um capitalismo de Estado, que finalmente deveria ser destrudo, constituindo em seu lugar uma anarquia positiva ou democracia industrial, que seria a sociedade socialista autogestionria. Para alcanar este estgio, a sociedade deveria se constituir de empresas industriais, que seriam autogeridas e de propriedade coletiva dos trabalhadores, as quais deveriam se ligar a 36

uma Federao da Indstria. J a agricultura deveria ser mutualizada em pequenas propriedades familiares organizadas em comunas rurais e ligadas a uma Federao Agrcola. Estas federaes formariam uma Federao Agroindustrial, que seria responsvel pelas estatsticas econmicas e pela organizao do comrcio e servios. O autor ainda propunha que toda esta estrutura constitusse um sistema de coordenao em oposio autoridade, declarando com isso o fim do Estado e a criao de uma organizao poltica altamente descentralizada, cujos rgos de base seriam os grupos funcionais e territoriais (MOTTA, 1987). Por fim, dentre esses idelogos, pode-se citar Robert Owen (1771-1858), socialista utpico ingls que conseguiu levar mais adiante suas propostas do cooperativismo e autogesto.3 Owen nasceu em Newtown, regio ao norte do Pas de Gales. Aos 10 anos j trabalhava como vendedor ambulante. Manteve-se nesta vida de vendedor at os 18 anos, quando recebeu o convite para a constituio de uma sociedade. Um ano depois, deixou este empreendimento para trabalhar para um rico empresrio, em Stanford. Neste perodo, conseguiu desenvolver tcnicas no sistema de produo que possibilitaram aumentos na produtividade do empreendimento. Diante de um conflito com seu scio, Owen mudou para New Lanark, em 1799, arrendando unidades fabris do industrial David Dale (que tinha um empreendimento manufatureiro), por vinte anos. Neste mesmo ano, ele casa com a filha de um milionrio (SOUZA; OLIVEIRA, 2006). Ainda em New Lanark, o autor passa a observar que as crianas eram submetidas a jornadas exaustivas de trabalho e que as famlias viviam envolvidas com vcios, roubos, dvidas e doenas, em situao de indigncia. Owen passou a destinar seus esforos para um novo sistema de gesto, pautados em princpios de justia e generosidade. Em 1824, muda-se para os Estados Unidos, onde cria a comunidade de New Harmony, a primeira aldeia cooperativa experimental de que se tem notcia. A experincia no foi bem sucedida, embora nos anos que seguiram tenha inspirado a criao de dezoito vilas. Suas ideias inspiraram o movimento cooperativista. Em 1843, um grupo de discpulos seus fundou a Sociedade Cooperativa dos Pioneiros de Rochdale (SOUZA; OLIVEIRA, 2006; MOTTA, 1987). Este levantamento bibliogrfico revela divergncias epistemolgicas entre os socialistas utpicos e os libertrios. Alguns propunham a estruturao da sociedade em parceria com o Estado (Blanc, e Owen); outros, a sua destituio (Proudhon, Fourier); outros, ainda, a busca da emancipao a partir da constituio de uma nova cincia (Saint-Simon). No

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Esta definio ser abordada mais adiante, na terceira parte do referencial terico.

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entanto, estes autores comungavam pontos em comum: a proposta que os trabalhadores se reunissem em associaes e cooperativas, e rompessem com a estrutura assalariada, tornandose donos dos meios de produo, com direito de participar dos processos de deciso das organizaes. Assim, o cooperativismo do sculo XIX se pautou por uma proposta autogestionria, na qual no haveria divises do trabalho e consequentemente, nem a separao entre o trabalho intelectual e o manual. Todos seriam donos dos meios de produo e as decises seriam tomadas de maneira coletiva. Esta proposta conseguiu sua concretude at o incio de 1848, com a constituio de diversas cooperativas baseadas nestes ideais. Como exemplo, cita-se novamente o caso da sociedade de Rochdale, que surgiu em um contexto de desemprego e de misria. Reunidos, 28 operrios e artesos resolveram se estruturar, baseando-se na ajuda mtua, em melhorias de condies de vida e no bem-estar comum. Sua proposta consistia em: abrir um armazm para a venda de provises e roupas; comprar ou construir casas destinadas aos membros que desejassem ajudar-se mutuamente; iniciar a fabricao de artigos para a sociedade, possibilitando trabalho s pessoas desocupadas; comprar e adquirir terras que fossem cultivadas pelos scios; e tambm organizar as foras de produo, distribuio e educao, criando, assim, um governo prprio e estabelecendo uma colnia que se bastaria a si mesma, na qual os interesses estariam unidos. Para que isso ocorresse, a sociedade se constituiu nos seguintes princpios: adeso livre; controle operrio; retorno de excedentes em proporo s operaes; taxa limitada de juros ao capital social; neutralidade poltica e religiosa; educao cooperativa; e integrao cooperativa. Dessa maneira, foi criada, em 1843, a sociedade de Rochdale. Paralelamente a esta, surgiram diversas outras inspiradas nesta experincia (KEIL; MONTEIRO, 1982). Este perodo foi marcado por um aumento vertiginoso do cooperativismo e de diversos empreendimentos solidrios, que possibilitou at mesmo a criao de um Comit Central de Associaes, o que permitia aos trabalhadores participarem da cena poltica:A partir de 1848, as associaes estendem seus objetivos numa perspectiva de democracia associacionista. A fraternidade no seu seio as leva a inclinar-se sobre as questes da solidariedade entre as associaes. Projetos neste sentido aparecem como a Sociedade das corporaes reunidas e em seguida, como a Cmara sindical do trabalho, o Banco do povo, a Mutualista dos trabalhadores, o Comit central das associaes ou a Unio das associaes de trabalhadores (Desroches, 1981). Esta tendncia amparada pela Comisso do governo dos trabalhadores, dita Comisso de Luxemburgo, que distribui as profisses em colgios eleitorais para designar seus representantes e os legitim-los, assim, na cena pblica. Alguns vem esta Comisso, em posio de segunda Assemblia Nacional, intervindo nos conflitos sociais e garantindo as convenes passadas entre patres e empregados, sustentadas pelas associaes cada vez mais ligadas aos clubes polticos ativos, os

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estados gerais do trabalho, que anunciam uma repblica operria (FRANA; LAVILLE, 2004, p.48).

Contudo, o avano desse novo modo de estruturao foi visto como uma ameaa s elites. A partir de 1848, uma forte oposio e ataques de diversos governos da poca levaram as cooperativas a destiturem qualquer proposta poltica de contraponto lgica do capital, transformando-se em instituies apenas focadas na produo e na gerao de renda:[...] A partir de 1848, a interveno estatal no se contenta em apoiar a constituio de mercados. Pela represso dos movimentos sociais, e em seguida, pelo desencorajamento das associaes operrias, ela extirpa a dimenso poltica do econmico. Na sada de uma fase de intensa criatividade e de violncia, em que se afrontaram diferentes possibilidades de construo da economia, a instancia estatal aceita o princpio de uma economia mercantil constituda a partir da circulao autoregulada de mercadorias e de capitais, pelo qual o poder nas unidades de produo ligado a deteno do capital. [...] A represso de que vitima o movimento associacionista transforma o contedo dos campos econmicos e poltico, bem como sua articulao, colocando em questo os traos prprios da economia solidria. Na esfera econmica, a finalidade de economia plural contida na economia solidria que abandonada. No lugar da economia plural, trata-se ao contrrio do pleno desenvolvimento da economia mercantil, que favorecida com a criao da empresa capitalista. [...] A produo assegurada por produtores privados independentes, uns e outros submetidos a concorrncia, mas capazes de decidir sua natureza e disp-la tendo por objetivo seus prprios interesses (FRANA; LAVILLE, 2004, p.48-50)

Desta maneira, a perda do enfoque poltico acabou por reforar uma economia social, preocupada apenas com problemas de redistribuio, esquecendo o seu enfoque emancipatrio:[...] Anteriormente confundida com a economia poltica, a economia social dela se desprende, at criticando-a, para inclinar-se sobre as intervenes necessrias com vistas a corrigir os efeitos nefastos desta produo mercantil em regime de concorrncia, conforme lembra Vienney (1994). A economia social examina condies, permitindo conciliar o modo de produo econmico com uma reduo da pobreza que ameaa a ordem estabelecida, da a nfase posta sobre a questo moral (Procacci1993), conforme atesta a posio de Gide, que passa a contestao da economia poltica ao reconhecimento da sua complementaridade com a economia social (Gide,1980,1905,apud Vienney,1994). Os estudos de economia social singularizam-se pela sua ateno dirigida aos problemas de redistribuio: dedicados s atividades e aos atores que no funcionam segundo as regras do mercado e da empresa capitalista, eles vo focalizar-se sobre a anlise dos subconjuntos atomizados. [...] Corolrio, a economia social como teoria abandona a produo, domnio da economia poltica, em proveito da distribuio, correndo o risco de ser percebida como vulgar (Procacci, 1993) e a economia social como prtica submete-se a disperso induzida pelos estatutos diversificados. [...] A lgica de reao em relao aos efeitos do capitalismo, que explica o nascimento dos organismos de economia social, atenua-se em proveito de uma lgica de adaptao funcional a este modo de produo, que se conjuga com a manuteno de particularidades notveis, atingindo, porem, apenas a sua estrutura interna. Este afastamento do campo poltico, que assinala a passagem de um projeto de economia

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solidria para aquele de economia social, tambm sensvel na historia das idias como a inflexo da noo de solidariedade (FRANA; LAVILLE, 2004, p.50- 51).

Em similaridade com este posicionamento, Canado (2007) ressalta que a economia social nega o ideal do poder poltico, pois parte da premissa de que a alternativa deve ocorrer com a multiplicao de cooperativas, o que lhes permitir operar e competir com as demais organizaes da sociedade capitalista. Assim, a economia social se mantm presente ainda hoje em grande parte dos pases da Europa (Portugal, Inglaterra, Alemanha e Itlia). Todavia, Frana e Laville (2004) abordam que as crises econmicas da dcada de 1970, acrescidas ao declnio das propostas utpicas4 de cunho social, fez ressurgir as tentativas de economia solidria, principalmente em alguns pases da Amrica Latina (Argentina, Venezuela, Uruguai e Brasil). Passa-se a analisar as origens e o ressurgimento da economia solidria no Brasil. 3.1.2 Origens no Brasil Segundo estudos de Carbonell de Masy, as primeiras iniciativas prximas de um cooperativismo na Amrica do Sul, ocorreram em 1627, na formao de reduo jesutica de ndios guaranis. Constituram trinta comunidades, com os seguintes princpios: adeso livre, gesto democrtica, distribuio de sobras, educao, integrao e indiscriminao. Em 1759, tais comunidades foram destitudas pelos portugueses e espanhis. Ainda que neste perodo, at 1888, as relaes de trabalho ocorressem de maneira escrava, em 1847, por iniciativa do mdico Jean Maurice Faivre, fundou-se a colnia de Tereza Cristina, no estado do Paran, que seguia os mesmos princpios da comunidade de Rochdale (SEIBEL et al., 2003). No entanto, esses dois casos so pontuais, pois a histria do cooperativismo no Brasil marcada por influncias patronais, distantes das propostas do cooperativismo dos socialistas utpicos e libertrios. Isso ocorreu devido s influncias de um transplante cultural, causado pela importao do modelo de economia baseado na mo de obra escrava e na constituio de uma legislao trabalhista inspirada no fascismo. Com isso, as propostas de cooperativismo, estavam mais voltadas para manter a ordem dominante e deixar intocvel a concentrao individual da propriedade e do modo de produo de acumulao privada de rendas (OLIVEIRA, 2006).

O termo utopia adotado nesta parte do trabalho no tem um carter pejorativo, de algo inalcanvel. Mas tratase da possibilidade de repensar a sociedade, de almejar novas mudanas.

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A maior parte da criao de cooperativas era oriunda de interesses patronais, que visavam reduzir os conflitos gerados pelas relaes entre patro e empregado. At mesmo aquelas criadas por trabalhadores tinham um estmulo patronal, com o objetivo de transferir para as cooperativas parte das obrigaes que lhe eram prprias. Ainda, com a Constituio de 1932, que passou a legalizar as cooperativas, o prprio Estado comeou a interferir no cooperativismo e utiliz-lo como instrumento de suas polticas e programas de desenvolvimento. Para manter esse controle sobre o cooperativismo, o Estado cria, em 1969, a Organizao das cooperativas Brasileiras (OCB). Esta entidade foi oficializada como a representante de todo o sistema cooperativista brasileiro, adquirindo poderes de obrigar todas as cooperativas a se vincularem a ela, sob a pena de no terem condies legais de funcionamento. Em seu estatuto, a OCB se declara como de interesse patronal e se mostra mais marcada pelo pensamento liberal, com diversos representantes de cooperativas rurais e no Congresso brasileiro, constituindo at mesmo, a bancada, a ruralista (OLIVEIRA, 2006). Todavia, na segunda metade dos anos 1970, quando o desemprego em massa comeou a aumentar, grande parte da produo industrial mundial foi transferida para pases em que as conquistas do movimento operrio nunca se realizaram, provocando a desindustrializao dos pases centrais, e mesmo, dos semidesenvolvidos, como o Brasil, ressurge a proposta de reestruturar as cooperativas, nos moldes das propostas do sculo XIX. Esse novo modo de estruturar as cooperativas definido como cooperativismo popular. Segundo Oliveira (2006), o cooperativismo popular considerado uma modalidade de cooperativismo que, alm de buscar exercitar os princpios do cooperativismo, aproximase, exclusivamente, das camadas populares da sociedade, daqueles trabalhadores que se encontram em situao precria e daqueles que buscam alternativas de complementao de renda. Ainda, mais do que gerao e renda, esta proposta, visa, sobretudo, possibilitar que os trabalhadores alcancem espaos para atuar segundo uma orientao que remeta ao exerccio da cooperao e solidariedade, e alcanar proteo e mudana social. Nesta mesma consonncia, Guimares (2000), define o cooperativismo popular como um