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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
ANNA VÖRÖS
DESIGN E MODOS DE VIDA: UMA ESCUTA PARA CONEXÕES ENTRE
OBJETOS E VALORES CONTEMPORÂNEOS
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
MESTRADO EM DESIGN
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
São Paulo, 2012
UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
ANNA VÖRÖS
DESIGN E MODOS DE VIDA:
UMA ESCUTA PARA CONEXÕES ENTRE OBJETOS E VALORES
CONTEMPORÂNEOS
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Design Mestrado, da Universidade Anhembi Morumbi, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Design
Orientadora: Profa Dr
a Cristiane Mesquita
São Paulo, 2012
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do
trabalho sem autorização da Universidade, do autor e do orientador.
ANNA LUCIA DA SILVA ARAÚJO VÖRÖS
Designer formada pela Universidade Federal do Paraná,
atua como pesquisadora e como designer em projetos de organizações do 3º
setor. Contato: [email protected]
V925d Vörös, Anna Lucia da Silva Araújo
Design e modos de vida: uma escuta para conexões
entre objetos e valores contemporâneos / Anna Lucia
da Silva Araújo Vörös. 2012.
131 p.: il.; 30 cm.
Orientador: Profª Drª. Cristiane Mesquita.
Dissertação (Mestrado em Design) Universidade
Anhembi Morumbi, São Paulo, 2012.
Bibliografia: p. 126-129.
1. Design. 2. Linguagem dos objetos. 3. Modos de
escuta. 4. Walkman. 5. Ipod. I. Título.
CDD 741.6
ANNA VÖRÖS
DESIGN E MODOS DE VIDA: UMA ESCUTA PARA CONEXÕES ENTRE
OBJETOS E VALORES CONTEMPORÂNEOS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Design, da Universidade Anhembi Morumbi, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Design
Profa Dr
a Cristiane Mesquita
Orientadora
Mestrado em Design Anhembi Morumbi
Profa Dr
a Maristela Ono (externo)
Universidade Tecnológica do Paraná - UTFPR
Profa Dr
a Luisa Paraguai (interno)
Universidade Anhembi Morumbi
Prof. Dr. Jofre Silva (coordenação)
Universidade Anhembi Morumbi
AGRADECIMENTOS
Das utopias
Se as coisas são inatingíveis...ora!
Não é motivo para não querê-las!
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
Mário Quintana
Agradeço pela companhia de minhas estrelas materna e paterna,
Beth e András. Às estrelas fraternas Aline e André. Às mulheres da
família Garzuze, especialmente à estrela Anita e aos sábios
Silva Araújo e Vörös. Às estrelas companheiras de todo dia, a meu
querido Jeff, a Kati, Mari, Fran, Ju, Ali, Alê, Jé e Rô. Mando uma saudação
a minhas queridas amigas e queridos amigos, que vão comigo pelas
estradas da vida dentro do meu coração, e às outras mil estrelas na
minha constelação desde os tempos mais remotos; elas sabem quem
são.
Nessa caminhada, ganhei a companhia de estrelas a quem
agradeço com uma saudação especial; sem as quais o percurso teria sido
muito mais difícil, duro e escuro. Vindas de constelações várias, cada
qual vibrou uma energia: a querida e suave Kathia Castilho, a atenciosa e
generosa Antonia Costa, a instigante e intuitiva Márcia Merlo, a
inspiradora e atenta Luisa Paraguai, a prestativa e delicada Maristela
Ono, a múltipla e intensa Carol Garcia, a universal Jana Braga Nunes, a
curandeira Lygia M.F.Pereira, o companheiro Ademar Heeman e o
conciso Trindade. Ao Fernando Stickel, agradeço por acreditar nesta
pesquisa e contribuir para que ela fosse possível. E às estrelas do mar
Paulo G. Santana e Gabriela Mondini, agradeço pela companhia.
Outro agradecimento especial vai para todas as pessoas que se
entusiasmaram e aceitaram contribuir com essa pesquisa participando
das entrevistas: Alessandra, Juliana, Francine, Nilton, André, Juliana
Leonel, Jéssica, Adriana, Kolotelo, Cristina, Lucas, Paulinho, Viviane e
Patrícia.
De todas as estrelas que me acompanharam e iluminaram meu
caminho gostaria de destacar mais uma, com a qual muitas vezes
estivemos em silêncio e respeito, aprendendo a abrir caminhos: Cris
Mesquita, meu coração vibra de alegria!
Anna Lucia
RESUMO
O presente trabalho investiga o Design enquanto articulador de
linguagens, visando identificar aspectos em torno de interações que se
estabelecem entre objetos, usuários e modos de vida proeminentes no
contemporâneo. Para delinear tais correspondências, apresenta uma
breve revisão conceitual sobre a formulação da subjetividade articulada
à abordagem que o filósofo Gilles Lipovetsky manifesta para a
contemporaneidade a partir de seus apontamentos sobre o sistema
Moda, bem como das propostas que o escritor italiano Ítalo Calvino
vislumbra para a literatura do terceiro milênio. Compartilha ainda uma
revisão das teorias relativas à linguagem dos objetos de Design,
articulando autores como Bernhard E. Bürdek, Rafael Cardoso e Adrian
Forty. Em diálogo com as conceituações, a pesquisa investiga aspectos
dos modos de escuta predominantes nos dias atuais, a fim de melhor
delinear o contexto das interações entre usuários e dois objetos
selecionados o walkman e o ipod. Para tanto, foram realizadas
entrevistas cujas interpretações estabelecem eixos condutores para
melhor entendimento das correspondências entre objetos de Design e
modos de vida contemporâneos.
Palavras-chave: design, linguagem dos objetos, modos de escuta,
walkman, ipod.
ABSTRACT
This paper investigates Design as a language articulator, and aims to
identify aspects surrounding interactions established between objects,
users and paramount contemporary lifestyles. To outline such
correspondences, it presents a brief conceptual revision about the idea of
subjectivity, as connected to the approach introduced by the philosopher
Gilles Lipovetsky for the present times, based on notes about the Fashion
System, as well as Ítalo Calvino proposals for the third millennium
literature. It also shares an analysis of the theories regarding the
language of Design objects, linking authors such as Bernhard E. Bürdek,
Rafael Cardoso and Adrian Forty. This paper also investigates the
contemporary listening modes to outline the interactions between users
and its selected objects Walkman and ipod. For that matter, a series of
interviews was made and its interpretations define conductive axes to
better understand the correspondences between design objects and
present-day lifestyles.
Keywords: design, language of objects, listening modes,
walkman, ipod.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................. 18
1. O DESIGN COMO ARTICULADOR DE LINGUAGENS ....................... 26
1.1 OBJETO, ARTEFATO, PRODUTO .......................................................... 29
1.2 TRÊS FUNÇÕES DOS OBJETOS: simbólica, de uso e técnica .............. 32
1.3 ASPECTOS DO DESIGN ENQUANTO ARTICULADOR DE LINGUAGENS 38
2. SUBJETIVIDADE E CULTURA: UM OLHAR PARA O
CONTEMPORÂNEO ......................................................................... 54
2.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE SUBJETIVIDADE E CULTURA .... 56
2.2 INDIVIDUALISMO, ESTETICISMO E EFEMERIDADE: três vetores ....... 64
2.3 QUATRO VALORES CONTEMPORÂNEOS ............................................. 71
2.3.1 Leveza .............................................................................................. 72
2.3.2 Rapidez ............................................................................................ 74
2.3.3 Visibilidade ....................................................................................... 76
2.3.4 Multiplicidade .................................................................................. 77
3. OBJETOS DE DESEJO E MODOS DE ESCUTA: INTERAÇÕES ENTRE
DESEJO, INDIVIDUALISMO E MOBILIDADE. ..................................... 79
3.1 ASPECTOS DOS MODOS DE ESCUTA NO CONTEMPORÂNEO .............. 81
3.2 INDIVIDUALIDADE E MOBILIDADE: UM ESTUDO SOBRE O WALKMAN
E O IPOD .................................................................................................... 85
3.3 ONZE ESCUTAS INDIVIDUAIS SOBRE O WALKMAN E O IPOD ............. 92
3.3.1 Interpretação sobre Escutas: Modos de uso e valores que permeiam
a subjetividade contemporânea ................................................................ 98
3.3.1.1 Visão geral .................................................................................... 99
3.3.1.2 Uso, entorno, duração, ponto de vista, discurso e experiência ... 101
3.3.1.3 Leveza, rapidez, visibilidade e multiplicidade. ............................ 112
CONSIDERAÇÕES FINAIS: ASSOCIAÇÕES ENTRE OBJETOS E
VALORES PRESENTES NA CONTEMPORANEIDADE ........................ 121
REFERÊNCIAS .............................................................................. 127
ANEXO 1: ROTEIRO DAS ENTREVISTAS .......................................... 131
ANEXO 2: PERFIL DOS ENTREVISTADOS ........................................ 132
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Cápsulas espaciais.. ................................................................. 41
Figura 2:Relógio e embalagem antigos como objetos decorativos.. ........ 43
Figura 3: Espremedor de limão Juicy Salif, de Phillipe Starck.. .............. 44
Figura 4: William Morris retratado por George Frederic Watts, 1870, e o
................................................... 48
Figura 6: Dieter Rams e rádio T3 projetado para Braun. ......................... 49
Figura 5: Raymond Loewy e a locomotiva Pennsylvania
Railroad's S1 steam locomotive. ............................................................. 48
Figura 7: W.W.Stool, do designer francês Phillipe Starck. ...................... 52
Figura 8: Discman D-50, primeiro modelo do aparelho, de 1984.. .......... 83
Figura 9: Discman modelo D121.. ............................................................ 84
Figura 10: Primeiro modelo do walkman, de 1979. ................................. 87
Figura 11: Modelo de rádio da década de 1930 e rádio portátil. .............. 87
Figura 12: Propaganda do "Hi-fi compact 2000", aparelho de áudio
lançado no início dos anos 1970 pela empresa Telefunken.. ................... 88
Figura 13: Modelos de minidisc da marca Sony.. ..................................... 90
Figura 14: mp3 player NWZ-B172F e aparelho celular Android Walkman
Z MP3 Player ambos da marca Sony. ......... Error! Bookmark not defined.
Figura 15: O uso do walkman associado à dança e à ginástica aparece em
uma propaganda veiculada na televisão. ............................................... 111
Dedico, com amor, à minha grande família.
INTRODUÇÃO
A presença e a influência dos objetos no cotidiano das pessoas é
um tema que tem despertado interesse em diferentes áreas do
conhecimento, tais como a Sociologia, a Antropologia, a Economia e a
Filosofia. Do mesmo modo, pesquisadores ligados ao campo do Design1
vêm demonstrando interesse pelo tema e observando a profusão de
pesquisas que tratam do assunto por meio de diferentes enfoques ,
como nas áreas das engenharias, do consumo, da sustentabilidade.
O pesquisador Adrian Forty (2007), instigado pela proeminência do
Design nas sociedades ocidentais, realizou uma pesquisa sobre os
objetos e a sociedade industrial, abrangendo o período de 1750 até a
década de 1980, publicada em 19862
histórico no qual analisa o surgimento da profissão do designer, a
produção de objetos segundo lógicas industriais, bem como
transformações no cotidiano das pessoas e no contexto das sociedades
industrializadas.
Além de Forty (2007), Rafael Cardoso (2012) e Deyan Sudjic (2010)
também abordaram o tema da influência do Design no dia a dia de
sociedades e indivíduos. Enquanto o primeiro autor traz um contexto
socioeconômico e cultural do período estudado, Cardoso (2012) e Sudjic
(2010) abarcam aspectos sobre a relação entre usuários consumidores e
1 Nesta pesquisa, a palavra Design, escrita com letra maiúscula, refere-se ao campo do
conhecimento denominado Desenho Industrial ou Design de Produto, Gráfico, de
Moda etc., e engloba tanto suas teorias quanto as atividades projetuais. Por outro
lado, a palavra escrita com letras minúsculas foi utilizada em referência ao projeto
de algum produto.
2
2007.
19
objetos, o que contribui para a investigação das questões de valorização
e estabelecimento de vínculos entre ambos.
O tema, também presente nesta pesquisa, é aqui abordado a partir
da perspectiva do Design, e objetiva investigar aspectos que permeiam as
relações que as pessoas estabelecem com os objetos, levando-se em
consideração modos de vida e valores que se sobressaem em
determinada época. Para tanto, a pesquisa se orienta pelo entendimento
do Design como um campo articulador de linguagens, intrinsecamente
relacionado com o contexto de interação, onde se edificam as relações
entre pessoas e objetos.
O trabalho faz um recorte espaço-temporal que compreende as
décadas de 1950 a 2000, ao qual se denominou nesta pesquisa como
período contemporâneo, ao longo do qual se consolidam diversos dos
modos de vida proeminentes nas sociedades ocidentais. Esse contexto é
entendido por Sevcenko (2001) como um período abrangendo uma série
de transformações sociais que se refletiram em mudanças nos modos de
vida, nas estruturas socioeconômicas e em tantos outros âmbitos da
sociedade. Na esfera do Design, mais especificamente, autores como
Lipovetsky (2004), Cardoso (2012) e Sudjic (2010) assinalam a aparição e
potencialização de transformações na produção de objetos, seja em
termos projetuais, técnicos, seja na crescente ênfase dada aos aspectos
intangíveis dos objetos observados, por exemplo, a maior atenção para
se construir e comunicar seus valores simbólicos.
Nesta dissertação, optou-se por criar um caminho que se guiasse
por uma revisão bibliográfica pautada em pesquisas do Design, da
subjetividade e da contemporaneidade. Além dessas revisões, buscando
convergir para o estabelecimento de conexões entre objetos e alguns dos
valores estimados no presente, foi realizado um estudo sobre modos de
20
escuta na época contemporânea e sobre dois objetos usados para a
escuta de música: o walkman3 e o ipod
4.
Em razão disso, a investigação divide-se em quatro capítulos. Nos
dois primeiros, são feitas uma revisão conceitual do Design como
articulador de linguagens e outra do período contemporâneo, buscando
classificar alguns dos valores proeminentes nesse enquadramento. O
terceiro encerra uma abordagem sobre modos de escuta proeminentes
na atualidade, bem como um estudo sobre o walkman e o ipod por meio
de pesquisa documental, bem como de dados coletados em entrevistas
semiestruturadas com onze usuários (MOREIRA et al, 2008).
No capítulo 1, procurou-se identificar e conceituar aspectos dos
objetos e de seu uso, no que concerne a transmissão de valores, tais
como suas funções e o entendimento delas por seu usuário. Essa revisão
possibilitou o estabelecimento de categorias de análise que contribuíram
para o estudo do walkman e do ipod, assim como para a realização e a
interpretação de entrevistas com alguns de seus usuários.
A teoria que entende o Design como um articulador de linguagens
considera que os objetos são portadores tanto de função quanto de
informação. De acordo com essa teoria, os objetos revelam uma
variedade de dados sobre a marca à qual são vinculados para
comercialização; sobre os processos utilizados para sua produção, ou,
ainda; dados sobre o público-alvo a que se dirigem e seus aspectos
culturais, entre tantas outras informações. Para Bürdek (2006), Sudjic
(2010) e Cardoso (2012), os objetos podem ainda refletir objetivos e
3 O Walkman é um aparelho com a finalidade de transmitir música através da fita
cassete e das rádios. Foi criado pela empresa Sony, no Japão, em 1979. Devido à sua
popularização, a palavra walkman foi associada ao objeto em si, virando sinônimo de
aparelho de escuta individual, tal qual a Gilette tornou-se sinônimo de aparelho de
barbear. Fonte:<http://www.techtudo.com.br/artigos/noticia/2011/06/principais-
criacoes-da-sony-que-mudaram-historia-da-tecnologia.html>. Acesso em
20/jul/2012.
4 Aparelho de reprodução de arquivos mp3, criado pela empresa Apple.
21
valores de uma sociedade por meio da transmissão de informações neles
materializada.
A breve revisão conceitual sobre a subjetividade contribui para a
compreensão do aparecimento, fortalecimento e desfavorecimento de
modos de vida que se sobressaem em determinados períodos históricos.
Articulada à abordagem que o filósofo francês Gilles Lipovetsky
apresenta para a contemporaneidade, a partir de seus apontamentos
sobre o sistema Moda, a revisão teve como intuito compreender alguns
dos valores proeminentes na sociedade ocidental contemporânea. Junto
dessa revisão, são apontados aspectos históricos e culturais sobre o
Design, a produção e o uso de objetos, em especial a partir das
abordagens de Adrian Forty (2007), Deyan Sudjic (2010) e Rafael Cardoso
(2012).
Nessa etapa, consta também um levantamento sobre valores que
se destacam na contemporaneidade, tendo como base um trabalho do
escritor Ítalo Calvino (1990) e algumas articulações propostas pelo
designer Gui Bonsiepe (2011), que orientaram a seleção dos objetos de
pesquisa e a elaboração de questões das entrevistas. Foram
selecionados dois objetos, o walkman e o ipod, a fim de se averiguar a
relação entre objetos e valores por eles representados e transmitidos, e
os valores identificados e conceituados no segundo capítulo. A partir da
identificação e seleção dos dois objetos, realizou-se um estudo sobre sua
concepção e projeto. Com isso, foram identificados outros subsídios para
a construção das entrevistas semiestruturadas, as quais enfocam modos
de uso e buscam averiguar suas possíveis relações com modos de vida e
valores contemporâneos.
Por fim, são expostas considerações sobre associações e
correspondências entre objetos e valores contemporâneos no sentido de
articular as investigações da pesquisa.
22
Uma nota sobre a interdisciplinaridade
Com o intuito de melhor delinear os caminhos das investigações
traçadas nesta pesquisa, vale apresentar uma breve consideração sobre
a interdisciplinaridade. Para compor tais considerações, tomaram-se por
base leituras sobre a interdisciplinaridade no âmbito das pesquisas em
Design.
Diferentes autores concebem esse campo de conhecimento como
sendo de caráter interdisciplinar. Bonsiepe (2012), por exemplo, observa
que tal peculiaridade ocorre em virtude do seu direcionamento baseado
na perspectiva projetual, sendo que suas ações se difundem em um
espaço de ão entre indústria, mercado, tecnologia e cultura
(2012, p.234), aspecto que por si só já lhe confere uma condição favorável
à interdisciplinaridade. Além disso, o autor destaca como um dos pontos
fortes associados à atividade do Design o incentivo à criação de novas
experiências, o que lhe atribui uma tendência de buscar conhecimentos
de diferentes áreas, a fim de agregá-los em investigações que
possibilitem inovações na prática projetual e nas esferas de
conhecimento do Design.
Nesse sentido, Cardoso (ibid.) também expressa considerações a
respeito da interdisciplinaridade,
(ibid., p.234), pois figura como um campo que ora se aproxima,
ora se distancia das mais diversas áreas, criando variadas tramas de
informação, propenso a dialogar com praticamente todos os campos do
conhecimento.
Os diálogos e intersecções entre o Design e as demais áreas do
conhecimento se produziram e se produzem em diferentes níveis de
intensidade e duração, configurando distintas tessituras e provocando
inúmeros resultados. Em sua leitura sobre esse campo, Breslau (2010)
observa as diversas lógicas que perpassaram a história do Design e
aponta um desdobramento em duas linhas principais de pensamento: o
23
Design clássico, que pode ser considerado como a linha mestra entre os
anos de 1850 a 1980 aproximadamente, e o Design contemporâneo.
O primeiro, denominado Design clássico, aparece ligado a um
pensamento racionalista, orientado para o modelo de produção e
consumo de massa, marcado pela proeminência das ciências exatas e
pelo enfoque nas questões da matéria. Para Breslau, esse
5,
recorrente em estudos do Design, tal como aponta também Cardoso
(2012) quando ressalta a orientação para projetar soluções adequadas a
um propósito específico de produção industrial em larga escala, fruto de
projetos de cunho mais racional do que sensível, ornamental e emocional
(CARDOSO, 2012, p.16).
O Design contemporâneo, intitulado por Breslau (2010) como
, por sua vez, aquele que se orienta para e
pelas relações e interações entre as pessoas e os objetos, assumindo
outra abordagem d
preocupa-se com a forma das coisas, um design de subjetividades se
ibid., p.48).
Consideremos, portanto, que essas duas visões de Breslau (2010)
sobre os propósitos do Design podem ser compreendidas por dois
caminhos. Um deles é o Design clássico, pautado pela resolução de
mundo externo, ou seja, orientado para a conformação da matéria como
algo estático e com menor grau de relação e interação criativa com seu
usuário. Observa-se que o autor, ao referir-se ao
procura expressar a visão que orienta o Design a projetar objetos
determinados a
5 Pronunciado pelo arquiteto estadunidense Louis Sullivan, conhecido por suas criações
ligadas ao movimento artístico e arquitetônico modernista, tais como os arranha-céus e
prédios comerciais de grandes alturas. Fonte:
<http://web.mit.edu/museum/chicago/sullivan.html> Acesso em 08/out/2012.
24
maneira de linhas de produção, encadeados em uma lógica orientada à
matéria, pautada pela forma e função, e na linearidade cronológica de
ibid., p.48), sem levar em consideração aspectos da
interação entre as pessoas, suas realidades sensíveis e as
subjetividades.
O outro caminho apontado pelo autor, o Design contemporâneo,
pode ser entendido como uma atuação pautada pelas e para as relações e
interações entre as pessoas e os objetos. Essa visão é permeada pelo
sobretudo, estruturador de linguagens e subjetividades
p.48) e, principalmente, pela compreensão da condição sensível e
reagente dos objetos.
Nesta pesquisa, o interesse maior é deter a atenção na
conceituação do Design contemporâneo, uma vez que suas ideias
principais contribuem para a investigação dos temas aqui presentes.
Seus conceitos são enunciados por Breslau (2010) a partir das reflexões
sobre a interação entre indivíduos e grupos, e os universos perceptivos e
cognitivos ao longo de suas vidas. Seguindo essas ideias, destaca-se um
viés no qual ele
interações com um universo infinito e sensível, reagente, no qual se
percebem e se criam formatos para realidades (ibid., pp.34-37). Ao se
fazer uma leitura do Design contemporâneo a partir dessas premissas, é
possível delinear melhor nossa compreensão como um campo que
contribui e participa da criação de realidades, linguagens e modos de
vida, tal como também sugere Bürdek (2006) ao tratar do entendimento
que os usuários têm de determinado objeto. Para ele, as funções dos
objetos:
[...] nada mais são do que distinções linguísticas feitas
por um observador. As funções não estão nos produtos e
sim na linguagem. Com isto, fica confirmado o caráter da
25
configuração é assim porque assim o faço. (apud
BÜRDEK, 2006, p.287).
Partindo dessas considerações, cabe trabalhar as questões
apontadas nesta pesquisa, levando em conta algumas contribuições de
outros campos do conhecimento para articular manifestações do Design
e transformações sociais, tecnológicas e culturais relacionadas ao
período de investigação.
26
1. O DESIGN COMO ARTICULADOR DE LINGUAGENS
Para lavar a roupa: omo
Para viagem longa: jato
Para difíceis contas: calculadora
[...]
(Marisa Monte)6
Da epígrafe que introduz este primeiro capítulo, um trecho da
música Diariamente (MONTE, 1991), destacam-se duas frases. A
ibid.), inicia-se com a
indicação de uma ação realizar contas difíceis e representa uma ideia
bastante comum no que tange os objetos: para se realizar uma ação, use
dado objeto. Seja em metodologias de projeto, seja em situações de uso,
observa-se a tendência, tanto por parte de designers quanto de usuários,
de relacionar um objeto a uma ação (ou ações) factível pelo dito objeto ou
com ele
outra ideia frequentemente relacionada aos objetos: o emprego da marca
comercial do objeto para nomeá-lo: neste caso, refere o sabão em pó, ou
seja, a marca Omo. Aqui, observa-se o uso de uma metonímia, usando a
marca do sabão em pó para significar o produto sabão em pó. Analisado
pelo viés das lógicas mercadológicas, tal uso manifesta um dos
princípios - (SEMPRINI, 2006) o qual é praticado nos
discursos sociais para conduzir a produção de sentidos. Nesse caso, a
marca Omo, o sabão em pó e os significados referentes a essa marca
específica podem ser articulados com base na associação entre os
valores da marca, o objeto e o uso do nome da marca como sinônimos de
sabão em pó. Assim, aqueles que reconhecem a marca desse objeto
poderão interpretar as associações de valor planejadas e comunicadas;
6 Trecho da música
cantora Marisa Monte.
27
no caso da frase, o uso da palavra Omo propicia diferentes associações,
previamente conhecidas por seus usuários, tais como o tipo de limpeza, o
aroma, as características da limpeza em relação às cores das roupas,
entre outras. E é com essas duas frases que se fazem notar aspectos
gerais relacionados à transmissão de informações por meio de objetos:
suas funções, os valores a eles atribuídos, bem como aspectos que
permeiam a relação entre as pessoas e os objetos.
Neste capítulo, ambos os assuntos são tratados em dois eixos
teóricos: o das metodologias projetuais e o da teoria que entende o
Design como articulador de linguagens.
Cabe observar que esta pesquisa enfoca os aspectos inerentes às
interações entre as pessoas e os objetos, e não se aprofunda em
questões envolvidas na dimensão projetual. Contudo, em razão da
perspectiva que considera os objetos como materialidades que
7, bem como das abordagens que
entendem haver relações de significação a partir dos objetos, elaborou-
se uma revisão do conceito de função dos objetos, conforme as
metodologias de Design.
Desse modo, discorre-se primeiramente sobre as funções dos
objetos via metodologias do Design, buscando destacar os três âmbitos
principais de transmissão de informação de um objeto, conforme
previsto pelas metodologias de projeto. Em seguida, apresenta-se a
perspectiva teórica que compreende o Design como um campo
articulador de linguagens.
Foram revisados conceitos sobre funções propostos por
diferentes autores: Cardoso (2012), Ono (2006), Bonsiepe, Bomfim (1984),
Baxter (2000), Denis (2000) e Löbach (2001), para integrar uma
7 Cabe mencionar que nosso entendimento da transmissão de informações por meio dos
objetos, construída a partir de Sudjic (2010), Forty (2007) e Cardoso (2012), entre
outros autores, de maneira geral, confirma essas perspectivas e abordagens.
28
conceituação que se ajustasse a esta pesquisa. Para nomear essas
funções, utilizaram-se os termos apresentados por Ono (2006), a fim de
se destacarem as finalidades principais de um objeto: funções
simbólicas, funções de uso e funções técnicas (ibid., p.30). As funções são
tratadas em separado para facilitar a compreensão de aspectos
cognitivos, culturais, entre outros, relacionados à percepção de cada
uma delas por parte do usuário.
No segundo momento, por meio de uma revisão conceitual, expõe-
se um breve histórico da formação das teorias que compreendem o
Design como campo articulador de linguagens. Tal teoria abarca as
relações que as pessoas estabelecem com os objetos, nas quais se
configuram modos de interação, que são, por sua vez, influenciados por
diferentes variáveis, tais como aspectos do entorno onde ocorre a
interação, o modo como as pessoas entendem os objetos e suas
finalidades, a duração da interação, as variáveis socioculturais que
representam influência em diversas dimensões, entre tantas outras que
permeiam ditas relações.
É oportuno ressaltar, neste ponto, a abordagem específica que
conduziu esta pesquisa. Baseada no ponto de vista das metodologias do
Design, ela caminha para a relação dos processos de significação e valor
de objetos, segundo a experiência dos usuários.
Antes, porém, de prosseguir com essa exposição, cabe traçar
considerações sobre três termos que aparecem nas teorias do Design
objeto, artefato e produto a fim de se apresentarem as premissas
utilizadas para a seleção daquele que melhor se ajusta à presente
pesquisa.
29
1.1 OBJETO, ARTEFATO, PRODUTO
Objeto, artefato e produto são termos empregados em teorias do
Design, ora com significados similares, ora díspares. Sendo assim,
convém esclarecê-los de modo a evitar confusões conceituais. Diferentes
autores foram tomados como base para a exposição a seguir.
É curioso entender algumas das diferenças etimológicas8 entre
essas três palavras, todas elas originárias do latim. Artefato, por
exemplo, vem do latim, arte factus, e significa fazer com arte (CUNHA,
1999, p.72). Objeto, por sua vez, corresponde a coisa, matéria, objetivo
(ibid., p.554), enquanto que produto pode ser entendido como
é produzido pela natureza, ou o
ibid, p.637). Tais diferenças introduzem nossa
investigação, pois colaboram para compreender porque essas três
palavras que parecem distintas em seus significados etimológicos são
encontradas com significados próximos, senão semelhantes, tanto em
teorias do Design quanto no entendimento do senso comum.
Ripper enten
sentido, ele aponta que a seleção para empregar cada um dos termos
objeto, artefato ou produto está diretamente relacionada a essas
variáveis, permitindo-se afirmar que a aplicação de qualquer deles
ocorre de acordo com a decisão do tema e contexto que se investiga.
Portanto, conforme esse raciocínio, é possível entender porque as três
palavras parecem distintas em seus significados etimológicos,
recebendo significados próximos, senão semelhantes, tanto em teorias
do Design quanto no senso comum.
8
etimológica da palavra Design,
conferindo-lhe, inclusive alguns sentidos poéticos e pouco convencionais.
30
Segundo o aporte dado por Cardoso (2008) para o Design no
contexto das sociedades ocidentais contemporâneas, o termo mais
adequado para tratar de suas produções é artefato, uma vez que o
concebe como algo produzido pelo trabalho humano. Esse emprego se
deve ao fato de o autor considerar o Design um fenômeno humano
ibid., p.21), no
qual se busca a concretização de ideias abstratas e subjetivas. Através de
sua concepção, o Design atinge uma amplitude de ações e atividades,
refletindo-se no uso da palavra artefato. Assim, o termo artefato
caracteriza uma ideia abrangente que designa qualquer coisa produzida
por uma pessoa, uma vez que abarca uma ampla gama de objetos, como
quadros, máquinas, roupas, bordados, panelas de barro, pregos e
parafusos. É uma concepção que converge para o entendimento do autor
sobre o Design.
Para Ripper (2008), o termo objeto é o mais adequado para
representar a concepção dada para a palavra artefato por Cardoso
(2008). Ripper (2008) afirma que um objeto pode ser entendido como a
o objeto pode
ser, portanto, compreendido, segundo o autor, como aquilo que o homem
utiliza em seu cotidiano e que, ao mesmo tempo, constitui um símbolo.
Bomfim (1997) apresenta uma designação próxima a esse conceito, ao
eleger o termo objeto como adequado para designar aquilo que surge da
de
ibid., p.36). Segundo essas duas concepções,
portanto, é de se considerar que o termo objeto pode ser entendido como
um sinônimo de artefato, conforme descrito por Cardoso (2008).
O terceiro termo apresentado produto pode ser compreendido
pelo conceito exposto por Farbiarz (2008), que o define como o resultado
de um projeto, seja ele materializado ou digitalizado. O autor não faz
distinção entre produtos fabricados por processos industriais ou
31
artesanais, em pequena ou larga escala. O produto se refere ao
resultado de um projeto, atrelado à possibilidade de ser consumido.
Podem-se citar diferentes exemplos de produtos: carros, canetas,
cartazes, programas de computador ou projetos de serviços, como um
sistema de coleta de lixo. Essa é uma palavra que, novamente, se refere
à criação humana; porém, diferentemente dos termos artefato e objeto
apresentados anteriormente, está diretamente conectada a um projeto e
ao consumo. O ponto de vista de Farbiarz (2008) apresenta o uso do
termo produto como o mais adequado para definir um resultado de um
projeto; seja referindo-se a objetos concretos, seja a comunicação visual,
ações mediante um design etc. Tal concepção, bastante utilizada em
metodologias do Design, abrange várias dimensões espaciais com um só
termo, sem limitá-lo à dimensão específica dos objetos tridimensionais.
Diferente de Farbiaz (2008), Denis (1998) propõe o uso das
palavras produto e artefato para criar uma distinção entre o que é
tangível e o que é intangível. Para o autor, o termo produto é usado para
denominar, por exemplo, um endereço eletrônico (digitalizado), que ele
entende como intangível, e a palavra artefato, para se referir àquilo que
é tangível (materializado), como o computador.
Nesta pesquisa, optou-se por usar o termo objeto como sinônimo
de produto para designar o que é produzido a partir de projetos de
Design. Considera-se que esse termo possibilita uma abrangência maior
do que o termo produto, associado de modo mais estereotipado ao
consumo, como observa Farbiarz (2008). Além disso, acredita-se haver
uma sugestão de abrangência do termo objeto para além da ideia de
consumo, incluindo-se outras linhas de forças que influenciam sua
interpretação e relação com as pessoas, tais como as variáveis políticas e
culturais. Isso, acredita-se, faz realçar a intenção desta pesquisa de
investigar elos entre projetos, produtos e usos, sob diferentes pontos de
vista das relações entre pessoas e objetos.
32
1.2 TRÊS FUNÇÕES DOS OBJETOS: simbólica, de uso e técnica
Este tópico apresenta considerações sobre funções e valores
atribuídos aos objetos, na medida em que visa abordar os objetos
segundo metodologias do Design, e traçar um caminho de análise sobre
um objeto em especial. Esta análise será apresentada no capítulo 3.
De um modo sucinto, é possível entender que a função de
qualquer objeto diz respeito àquilo que ele pode realizar. De acordo com
Luiz A. de Saboya (2008), a função diz respeito ao modo como as ações
serão desempenhadas por um objeto para atingir o propósito previsto em
um projeto. Diante desse entendimento, a
ajudam a compreender os propósitos de um projeto, bem como
as funções de um objeto.
Segundo Ono (2006), um mesmo objeto pode assumir diferentes
funções e significados, de acordo com a compreensão de seus usuários.
Nesse sentido, a autora destaca que os objetos apresentam aspectos que
transmitem informações tanto objetivas quanto subjetivas, traduzidas
por meio de suas funções e elementos formais, simbólicos, emocionais,
psíquicos, econômicos etc.
Buscando classificar as funções dos objetos para facilitar-lhes a
compreensão, foram tomadas como referência as categorias
apresentadas por Ono (ibid.), uma vez que nas metodologias do Design
podem-se encontrar diferentes termos para nomear as funções de um
objeto. Como resultado de um projeto (design), a autora nomeia as
funções de um objeto como funções simbólicas, de uso e técnicas ibid.,
p.30).
A categoria simbólica ocorre quando as pessoas atribuem
significados aos objetos a partir das interações e vínculos estabelecidos.
Está, portanto, relacionada às motivações psicológicas e aos
33
comportamentos dos indivíduos ou grupos no momento em que percebem
um objeto e interagem com ele, disparando um processo de
estabelecimento de relações com esse objeto, mediado por repertórios
socioculturais e memórias de experiências anteriores,
concomitantemente com o sistema de valores e crenças de sua cultura.
Seguindo esse entendimento, é interessante destacar que os aspectos
culturais influenciam as funções dos objetos de diferentes maneiras, seja
pela constatação de hábitos de uso que precisam ser levados em
consideração, seja pela atribuição de diferentes significados para
determinadas cores, entre outras características que influenciam na
percepção e entendimento do objeto.
Ono (2006) também ressalta que as funções simbólicas estão
estreitamente relacionadas aos aspectos estéticos de um objeto, às
sensações que eles suscitam e à percepção sensorial ligada à visão, tato,
audição, olfato e paladar, os quais dependem basicamente de dois
fatores: a) do repertório individual e cultural conhecido de formas, cores,
sabores etc. e b) do estado emocional e psíquico do usuário. Pode-se
dizer que as funções simbólicas indicam ligações potenciais que o
usuário estabelecerá entre o que ele conhece seu repertório cultural e
individual de sensações e experiências anteriores e o objeto: sua
forma, cores, texturas, material, entre outras características físicas.
Löbach (2001) contribui para esse entendimento, complementando
que as funções simbólicas incluem tanto aspectos ligados à percepção da
dimensão tangível dos objetos e de suas utilidades como aspectos
intangíveis envolvidos no consumo, como aqueles que influenciam a
escolha de um modelo, os modos de uso, entre outras características
pertinentes ao entendimento usuário-consumidor.
Um exemplo que corrobora o entendimento dessa relação entre
funções simbólicas e consumo é o uso de estratégias comerciais
diretamente sobre a qualidade das sensações, procurando criar
34
diferenciações entre objetos de mesma função de uso (produtos
concorrentes) para atrair a atenção dos usuários-consumidores e
seduzi-los, conforme apontam autores como Bomfim (1984), Denis (2000)
e Löbach (2001). Dentro desse exemplo, podemos trazer uma observação
de Cardoso (2012) a respeito da comercialização de garrafas de água
mineral de cor vermelha, que diferem da maioria das garrafas
comercializadas, de cor transparente. A princípio, essas garrafas podem
causar certa estranheza aos olhos do consumidor, mas também
provocam um efeito de novidade em face da diferenciação das cores
costumeiras, o que contribui para estimular uma reação positiva para o
consumo, dada a valorização de seu aspecto inovador.
A segunda categoria apresentada por Ono (2006, p. 40) são as
funções de uso. Elas caracterizam os aspectos necessários para a
execução de uma ou mais ações, configuradas a partir do serviço a
prestar ao usuário. Tal serviço pode ser entendido como aquilo que se
espera de um objeto.
As funções de uso são pautadas pela estrutura do objeto,
modelando sua configuração formal-espacial seu tamanho, peso,
matérias-primas, pegas, proporções etc. projetada segundo a
conjuntura dos modos de uso necessários para a realização de uma
tarefa na interação fisiológica entre objeto e usuário9. Esses modos de
uso dizem respeito à dimensão física do corpo, os movimentos
necessários para desempenhar uma tarefa e a manipulação do objeto.
Portanto, para se projetar a configuração formal-espacial mais
adequada de um objeto, levam-se em conta dois aspectos da interação
entre objetos e usuários: os qualitativos e os quantitativos, estudados
pela Ergonomia. Os primeiros compreendem tipos de movimentos, de
9 O usuário pode ser compreendido como usuário direto (a pessoa que usa o objeto) e
usuário indireto (a pessoa que produz, distribui, recicla e/ou faz a manutenção desse
objeto). Esta pesquisa enfoca o usuário direto; portanto, adotará apenas a
denominação usuário (IIDA, 2005).
35
manuseio e outras ações que o usuário realizará ao servir-se do objeto. O
segundo grupo abarca dados quantificáveis, como o tamanho do corpo e
membros envolvidos na realização da tarefa, idade, força necessária
para o uso do objeto, seu tamanho e peso, entre outros.
O projeto da função de uso prevê ainda a manutenção do objeto e a
transmissão de informações, como a colocação de um botão para ligar e
desligar uma máquina, uma lâmpada que avisa se está ligada ou
desligada, a presença de parafusos e tampas para facilitar a
manutenção. As funções de uso associam-se às funções simbólicas
quando, por exemplo, são criadas convenções que sejam interpretadas
conforme previsto no projeto por exemplo, a função de ligar e desligar
um aparelho de TV pode ser transmitida pelo uso de um botão associado
a luzes, cores e palavras: um botão de liga/desliga com luz de cor
vermelha sinalizadora.
A terceira categoria apresentada funções técnicas decorre das
outras duas funções, a simbólica e a de uso, a fim de satisfazer as
demandas dos usuários. Abrange aspectos técnicos de um objeto, que
compreendem a construção dele, ou seja, a materialização das duas
outras funções de acordo com especificações de matérias-primas,
recursos tecnológicos empregados etc. (ONO, 2006).
É possível entender que todos os objetos do campo do Design
apresentam essas três funções, mas é comum que haja uma
hierarquização. Isso se deve aos propósitos almejados na produção e
consumo dos objetos, determinados durante o projeto. Para isso, são
listados diferentes requisitos projetuais, que orientam tomadas de
decisão e escolhas. Como auxílio para a seleção e descrição dos
requisitos projetuais, recorre-se a uma abordagem metodológica que
apresenta :
36
Esses requisitos podem ser determinados, por exemplo, pelo
contexto de fabricação, que envolve variáveis como local de produção,
custos, matéria-prima disponível, processos de fabricação, tradição
produtiva. Além disso, a definição de quem será o usuário do produto
também estabelece hierarquização das funções, como faixa etária,
ambiente de uso, classe social, ou, ainda, o repertório cultural para
compreensão das funções de um objeto.
É interessante notar que as funções podem ser entendidas,
através de Bonsiepe (apud BÜRDEK, 2006), como diferenciações
linguísticas feitas pelos usuários dos objetos. Ele afirma:
[...] as funções nada mais são do que distinções
linguísticas feitas por um observador. As funções não
estão nos produtos e sim na linguagem. Com isto, fica
confirmado o caráter da configuração é assim porque
assim o faço. (BONSIEPE apud BÜRDEK, 2006, p.287).
Neste trecho, o autor ressalta a dimensão interpretativa a que
estão atreladas as informações transmitidas por um objeto e que
ibid.). Tal
afirmação contribui para a compreensão de que as funções de um objeto
estão relacionadas à capacidade de ele transmitir informações a seus
usuários; e também de que elas podem variar e se desdobrar em
diversos sentidos, conforme a interpretação de seus significados por
parte do usuário.
Portanto, ao enfocar a dimensão de uso dos objetos, pode-se
entender que as funções estão localizadas nessa interação, servindo
como mediadoras das ações experimentadas.
Por fim, antes de entrar no próximo tópico, é conveniente fazer
uma observação quanto ao emprego das palavras função e uso: a
distinção entre elas é especialmente demarcada neste trabalho, porque
nosso enfoque teórico e nossa diretriz da pesquisa de campo residem no
37
uso do objeto em questão, embora essa distinção não seja tão clara nas
relações entre pessoas e objetos:
Q
artefato, gera-se uma confusão nefasta entre o que se
pode fazer com ele ou seja, seus usos, e o que ele
pode significar. (CARDOSO, 2012, p.102).
Sendo assim, a palavra função será empregada para nomear e
descrever as categorias planejadas em âmbito projetual, de modo a
diferenciá-la da palavra uso, que será empregada para nomear as
relações entre usuários e objetos.
38
1.3 ASPECTOS DO DESIGN ENQUANTO ARTICULADOR DE LINGUAGENS
A teoria que propõe uma linguagem a partir da significação dos
objetos começou a se desenvolver no fim da década de 1960, inicialmente
sistematizada por Theodor Ellinger (apud BÜRDEK, 2006). O
entendimento do Design como campo que delineia linguagens firmou-se
ao longo das décadas de 1970 a 1990, período em que suas principais
ideias amadureceram e se consolidaram. Seus conceitos, entretanto,
foram estabelecidos entre as décadas de 1960 e 1970.
A partir dos diferentes autores abordados nesta pesquisa, é
possível entender que a teoria que compreende o Design como campo
articulador de linguagens estabelece um entrelaçamento das diversas
variáveis componentes de um objeto, tais como aquelas envolvidas nos
aspectos de sua produção, de sua comercialização e de seu uso. Nessa
perspectiva, um objeto pode revelar diferentes informações, tais como
dados sobre a empresa que o produziu, dados decorrentes dos processos
produtivos pelos quais passou, informações a respeito da marca à qual é
associado em sua comercialização ou, ainda, revelar dados sobre a
pessoa que o usa e sobre os valores afetivos, econômicos, culturais e
simbólicos que lhe são atribuídos, entre tantas outras informações.
Dita perspectiva compreende, portanto, a relação entre diversas
variáveis ligadas a um objeto que perpassam sua existência.
Em revisão histórica sobre o tema, Bürdek (2006) retoma os
principais aspectos de criação e consolidação dessa teoria. Segundo o
autor, foi em 1966 que o engenheiro e economista Theodor Ellinger
sistematizou o conceito de "informação do produto", fundamentado pela
compreensão de que "o produto pode possuir linguagem simbólica e em
multicamadas que é mais abrangente e variada do que uma linguagem
verbal" (apud BÜRDEK, 2006, p.285), englobando vários formatos de
expressão: dimensão, forma, estrutura, textura, movimento, material,
cores, ruídos e tons, sabor, cheiro, temperatura, embalagem, entre
outras.
39
Seguindo os apontamentos de Bürdek (ibid.), observa-se que, no
ano de 1973, o historiador do Design Gert Selle constatou a crescente
importância social dos objetos, o que o levou a afirmar que o Design tinha
-a- ibid.), em
virtude do resultado de suas pesquisas, Selle aderiu ao conceito criado
por Ellinger e declarou que os objetos são tanto portadores de função
quanto de informação, apresentando uma linguagem específica, a qual
permite ao usuário identificar uma série de informações transmitidas por
eles.
É interessante lembrar que essas conceituações foram
incorporadas ao Design durante um período em que diferentes
profissionais ligados a produção, consumo e uso dos objetos visavam à
formação de uma teoria única do Design, na qual se procurava conceituar
o que é, o que deve ser e o que deverá ser o Design.
Bürdek (2006) indica que, entre os anos 1970 e 1990, a busca por
um discurso disciplinar para o Design se baseava no conceito de
como, a semiótica10
, a psicologia e a sociologia. O autor também observa
que nos anos 1980, a partir do conceito de linguagem do produto,
consolidou-se a ideia para o Design de um campo que se encarrega das
ligações entre as pessoas e os objetos, sejam elas beneficiadas por
produtos e/ou sistemas de produtos, projetos gráficos, projetos de
interiores, entre tantas outras resultantes de um design. Nota-se,
inclusive, que a maioria das abordagens sobre o tema é similar e
apresenta muitos pontos convergentes.
No período subsequente, dos anos 1990 aos anos 2000,
destacamos dois autores, Sudjic (2010) e Cardoso (2012), cuja
continuidade do tema contribuiu para esta pesquisa. Ambos apresentam
abordagens e criam articulações entre a ideia de uma linguagem dos
10 designado na semiótica por Charles Jencks, em
1978 (BÜRDEK, 2006, p.282)
40
objetos e aspectos proeminentes no contexto contemporâneo, tais como
o consumo, a individualidade e a moda.
Para Sudjic (2010), a ideia do Design como linguagem sustenta-se
em sua compreensão acerca dos aspectos dos objetos, ideia que se
fundamenta pelo pressuposto de que há algo a se entender sobre os
objetos além de seus aspectos óbvios de funcionalidade e finalidade.
ou
pós- ibid., p.49), uma vez que o campo é formado por códigos
que revelam componentes dessa sociedade, refletindo aspectos de seu
sistema econômico e cultural, de suas tecnologias de produção, dos
modos pelos quais as pessoas interagem entre si e a sociedade, entre
várias outras instâncias que fazem parte e perpassam a existência
humana.
Nesse sentido, para o autor, o Design é uma das linguagens de que
uma sociedade se utiliza para criar meios que reflitam seus objetivos e
seus valores, por meio da materialização de informações derivada da
produção de objetos. Assim, ao ressaltar a ideia de que os objetos são
portadores de informações, que, de modo sutil ou explícito sinalizam
valores compartilhados na sociedade em que se encontram, Sudjic (2010)
reforça a concepção do campo do Design como uma linguagem que
reflete diversos valores, sejam eles econômicos, afetivos ou culturais.
Entretanto, ele próprio questiona se esses significados estão
são adquiridos pela repetição constante, pela familiaridade e pela
os
conceitos transmitidos pelos objetos vão além das intenções previstas
durante seu projeto. Dito de outro modo, um design que visa, por
exemplo, transmitir mais conteúdos relacionados à sua utilidade do que
outras informações poderá também suscitar conteúdos emocionais e
simbólicos.
Para a exposição dessas ideias apresentadas pelo autor, pode-se
emprestar um dos exemplos utilizados por ele: as cápsulas espaciais
41
desenvolvidas pelos Estados Unidos e a União Soviética (SUDJIC, 2010) e
vinculadas ao período histórico da Guerra Fria.
Por meio deste exemplo, ilustrado na figura 01, o autor procura
demonstrar que dois objetos projetados para uma mesma finalidade
podem apresentar configurações formais, estéticas e simbólicas
diferentes entre si, fato que o autor atribui a duas culturas diferentes,
dois sistemas econômicos e políticos opostos traduzidos na produção de
cada um deles. Isso nos faz perceber que o Design pode ser entendido
como uma linguagem que transmite informações e pode sinalizar
valores.
A partir das conceituações e considerações traçadas acima, pode-
se deduzir que a existência de uma linguagem específica dos objetos
pressupõe uma relação entre pessoas e objetos, pela qual se
suas interpretações, num
processo de comunicação. Conforme esse entendimento, as funções de
um objeto podem variar e se desdobrar em diferentes significados,
devido à sua interpretação por parte do usuário. Assim também, elas (as
Figura 1: Cápsulas espaciais. À esquerda, desenvolvida pelos EUA; à direita, pela
URSS. Fonte: SUDJIC (2010, pp.44-45).
42
funções) estão relacionadas à capacidade de os objetos transmitirem
informações sobre as próprias funções a seus usuários. De modo mais
amplo, todas as funções estão relacionadas ao repertório de
experiências e sensações dos usuários, em sua capacidade de
ressignificação e reconstrução das mesmas.
No âmbito da interação entre pessoas e objetos, para o qual se
está atento neste momento, nota-se, portanto, que as informações
transmitidas pelos objetos, bem como seus significados, podem variar e
ser influenciados por diferentes razões: pelo juízo de cada pessoa, seu
repertório, por aspectos do contexto de uso, culturais, emocionais e
tantos outros.
Nesses termos, para fins didáticos, Cardoso (2012) ressalta seis
fatores que influenciam a produção de significado dos objetos, norteando
sua descrição e conceituação neste trabalho. São eles: o uso, o entorno,
a duração, o ponto de vista, o discurso e a experiência11
. Todos eles
perpassam, ao mesmo tempo, a interação entre as pessoas e os objetos,
mas se apresentam aqui separados para melhor compreensão de cada
um.
O fator uso é descrito pelo autor pelo ângulo da operacionalidade,
funcionamento e aproveitamento de um objeto. Cardoso (2012) propõe o
termo uso para substituir a palavra função, pois entende que ela gera
uma abertura para a interpretação do usuário acerca de seus possíveis
usos, em vez de induzir a apenas uma finalidade.
O segundo fator, o entorno12
, nomeia o contexto de uso de um
objeto, o qual engloba o espaço geográfico, físico e cultural, ou seja, é
11 O recurso gráfico do negrito foi utilizado nesta frase e em outras partes do trabalho
para destacar os seis fatores apontados por Cardoso (2012) a fim de facilitar a leitura
e apoiar o leitor na fixação de tais conceitos.
12 Vale mencionar que a compreensão do entorno, considerado como o espaço
geográfico no qual o objeto está inserido, é uma investigação bastante complexa, não
empreendida nesta pesquisa. Uma referência enriquecedora para esse tipo de
43
aquilo que está à volta do objeto. Um exemplo de modificação do entorno
de um objeto pode ser observado quando se desloca esse objeto de seu
contexto usual, colocando-o em um museu ou, numa situação um pouco
menos distante, quando se compra um objeto em uma feira de
antiguidades e o coloca em uma estante, como elemento decorativo.
contextualização são as teorias propostas pelo geógrafo Milton Santos, em especial
A Natureza do espaço
), os quais se
influenciam mutuamente.
Figura 2: Relógio e embalagem antigos utilizados como objetos
decorativos. Fonte:< http://migre.me/bpYu6>. Acesso em:
08/set/2012.
44
Outro exemplo ainda seria comprar o espremedor de limão Juicy
Salif 13
e usá-lo como objeto de decoração.
O terceiro fator relacionado à produção de significado dos objetos
é a duração. Ela comporta a trajetória de um objeto, quer dizer, sua
existência dentro de um ciclo de vida, os lugares e pessoas por onde
passou e acabam refletindo transformações em sua dimensão material,
ou seja, na sua aparência, forma, textura etc. Quanto mais tempo o
objeto se mantém reconhecível , observa Cardoso (2012, p.66), maior
será a probabilidade de incidirem sobre ele mudanças de uso e entorno.
13 Juicy Salif é um espremedor de limão, projetado pelo designer francês Phillipe
Starck, reconhecido por manipular aspectos da linguagem dos objetos para criar
projetos de objetos, ambientes, etc. O Juicy Salif foi um objeto amplamente associado
ao nome do designer e à sua fama, o que lhe atribuiu um valor simbólico de luxo e
inovação, entre outros. Assim, o objeto é comumente associado à representação
desses valores por parte de seus consumidores, que em sua maioria o exibe como
peça de decoração ou de arte (MORRISET, 2009). Fonte:
<http://blogdesign.blog.uol.com.br/arch2009-08-09_2009-08-15.html>. Acesso
em: 8/set/2012.
Figura 3: Espremedor de limão Juicy Salif, de Phillipe Starck.
Fonte:<http://blog.deco-interieure.com/41/philippe-starck/>.
Acesso em: 02/jun/2012.
45
Os aspectos de juízo, inerentes à percepção das pessoas, dizem
respeito aos três últimos fatores: ponto de vista, discurso e
experiência. O ponto de vista está relacionado aos modos de ver e às
hierarquias de atenção e importância daquilo que se vê, constituídos
culturalmente e consolidados ao longo dos anos. A hierarquia dos modos
de ver pode ser entendida pela escolha do ponto de vista a respeito de
um objeto, no qual se entende o que é frente, verso, dentro ou fora,
como, por exemplo, o que pode ocorrer no uso de roupas. Sugere o
autor
2012, pp.67-68).
O discurso diz respeito ao modo como cada ponto de vista se
representa em linguagens verbais, visuais ou outras e é um fator que,
necessariamente, agrega sentidos que influenciam na compreensão do
objeto. No contexto das sociedades contemporâneas, Cardoso (2012) faz
uma ressalva a respeito desse fator, entendendo que, conforme a
intensidade de trocas de informações, as pessoas conhecem os objetos
previamente, por discursos. Para o autor, discurso circundante é
quase sempre um patamar de acesso necessário para chegar a um
objeto qualquer . (ibid., p.69).
A experiência, o último fator arrolado pelo autor, está relacionada
àquilo que é próprio do que cada um estabelece na interação com o
objeto, embora ela seja condicionada pelas experiências vividas
anteriormente e ligada a todos os outros fatores citados acima. Além
disso, Cardoso (ibid.) ressalta que hoje a maioria dos objetos está
conectada a imagens veiculadas pelos meios de comunicação e que,
portanto, deve-se levar tal condicionamento em consideração, por sua
quantos lugares,
situações, até pessoas, são conhecidos prioritariamente por meio de
ibid., p.59). Observa-se uma infinidade de seres e coisas que
podem ser conhecidos por meio de imagens, os quais, por sua vez, geram
46
imagens mentais de natureza
provavelmente terão influência quando se der a experiência direta.
Pondera o autor:
Mesmo para quem só tem conhecimento direto de um
artefato, sem mediação (se é que isso ainda é possível), a
experiência do objeto é sempre delimitada por costumes
e convenções. (CARDOSO, 2012, pp.59-60).
Nesse sentido, ele comenta sobre uma dessas convenções, que
está diretamente ligada aos objetos e pode ser entendida em um âmbito
mais geral em relação às especificidades culturais. O autor utiliza o
convenções relacionadas à
configuração formal, padronizada de objetos. Observando diferentes
modelos de um mesmo objeto, ou seja, objetos com função similar,
podem-se encontrar exemplos dessas gramáticas formais: as cadeiras e
mesas, por exemplo, têm quatro pernas; os automóveis, quatro rodas; as
vassouras têm cabo e pelos etc. São características formais que podem
variar de material, peso, cor etc., mas que continuam contendo um
aspecto significativo, interligado às informações de uso desses objetos.
Cardoso (2012) considera que, diante desses seis fatores, há ainda
mais um o tempo que incide sobre todos os outros aspectos
envolvidos na relação entre as pessoas e os objetos: com o passar dos
anos, um uso proeminente adquire qualidade estável e se afirma como
propósito; a duração mutável de um objeto transforma-se em história, e
o entorno mutável em permanência; o ponto de vista variável torna-se a
atenção, o discurso instável em consagração; e a experiência variante em
memória. O tempo é o fator que indica a qualidade mutável de todos
esses aspectos, do mesmo modo que a sua estabilidade é o que mostra
inclusive os significados que
associamos a qualquer objeto (ibid., pp.70-71).
Os seis fatores apresentados acima uso, entorno, duração,
ponto de vista, discurso e experiência poderão se adaptar ao âmbito
47
da criação dos objetos, ou seja, ao âmbito projetual. Nessa área, porém,
existem fatores claramente definidos que influenciam a interpretação de
um objeto. Diferentemente do ambiente de uso, no projetual as
informações de um objeto estão sendo ainda conformadas, definidas a
partir de requisitos previamente delimitados no projeto. Assim, a
interpretação das informações dos objetos ocorre em um nível
conceitual, no qual os profissionais envolvidos são também influenciados
por outros fatores, como os econômicos, tecnológicos e políticos.
Embora a esfera projetual esteja conectada em diferentes níveis de
intensidade à de interação, existe uma dinâmica própria da área
projetual, mais restrita, que tem como finalidade delimitar as
interpretações das informações dos objetos.
Sudjic (2010) entende que os designers e demais profissionais
envolvidos na criação de um objeto funcionam como criadores dessa
linguagem específica. Dependendo dos requisitos projetuais e de sua
autonomia em relação ao projeto, esses profissionais podem criar um
design próprio para a empresa onde atuam, ou criar um vocabulário
próprio para uma marca específica, ou, ainda, criar um design associado
a sua personalidade, sonhos e fantasias. Raymond Loewy14
, um dos
exemplos citados por Sudjic (ibid.), ficou conhecido por ser um dos
primeiros designers a utilizar a linguagem dos objetos para expressar
um design volt - (SUDJIC, 2010, p.XX)15
, que eram
extremamente valorizados pelas inovações estéticas e fortaleciam o
14 Raymond Loewy (1893 -1986) é um dos designers mais conhecidos do século XX.
Engenheiro francês, migrou para os EUA e trabalhou com projetos em diferentes
áreas do design. É comumente reconhecido pela sua atuação em prol do aumento do
consumo de produtos e pela sua atitude de autopromoção, incomum à época
(SUDJIC, 2010).
15 A questão do fetichismo é discutida em diversas áreas das ciências humanas, entre
elas as ciências sociais e a psicanálise. Em nosso trabalho, vale mencionar a
associação deste conceito com os objetos investigados na nossa pesquisa de campo,
em especial o ipod. Sudjic (2010) menciona diversos exemplos de produtos
fetichizados e comenta inclusive sobre seus próprios fetiches, exemplificando com a
descrição da compra de um novo modelo de computador pessoal (SUDJIC, 2010,
P.11-21).
48
Figura 5: Raymond Loewy (à esquerda) e um de seus projetos (à direita), a locomotiva
Pennsylvania Railroad's S1 steam locomotive. Fontes:<http://migre.me/bpY4n>
<http://migre.me/bpY2n>. Acesso em: 10/out/2012.
Figura 4: À esquerda: William Morris retratado por George Frederic Watts, 1870,
National Portrait Gallery. William Morris, arts and crafts
Fontes: <http://www.spartacus.schoolnet.co.uk/Jmorris.htm>. Acesso: 26/jan/2013
<http://www.morrissociety.org>. Acesso: 14/out/2012.
consumo de objetos. Para Sudjic (2010), Loewy contribuiu para a geração
de novos padrões ligados ao styling, os quais interferiram em aspectos
do design modernista , representada por
uma visão de design europeia, ligada ao estilo internacional, às ideias
propagadas por William Morris16
, pela Bauhaus etc.
16 William Morris (1834-1896), poeta, artista, fabricante e socialista, é considerado um dos
grandes precursores do Design. Sua atuação profissional baseava-se em princípios do
movimento Arts and Crafts (Artes Decorativas). Seus escritos sobre a produção
industrial e artesanal continuam sendo importantes fontes de pesquisa no campo do
Design. Fonte:<http://www.morrissociety.org/morris/bio-mackail.html. Acesso em:
14/out/2012.
49
Figura 6: Dieter Rams e rádio T3 projetado para Braun.
Fonte: <http://migre.me/bpYaB><http://dieterrams.tumblr.com>. Acesso em:
10/out.2012.
Em um sentido inverso ao uso da linguagem de Loewy, o autor cita
Dieter Rams17
, designer da empresa de eletrodomésticos alemã Braun18
,
reconhecido por criar objetos que procuravam eliminar o supérfluo,
desafiando a moda e a obsolescência ainda em ritmo e proporção
diferentes da contemporaneidade. Outro exemplo trazido por Sudjic
(2010) a respeito da relação entre objetos e seus criadores é o designer
Phillipe Starck19
. Conhecido por desconstruir padrões e convenções dos
objetos, o designer francês configurou uma linguagem para os objetos e
17 Dieter Rams (1932), junto com Loewy, faz parte da lista de designers mais conhecidos do
século XX. Designer alemão, atuou por trinta anos na Braun, empresa alemã de
eletrodomésticos. Fonte:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Dieter_Rams>. Acesso em
8/set/2012.
18 A Braun é uma empresa alemã famosa pela qualidade de seus produtos, bem como
por características de seu design, marcado pelos ideais funcionalistas. Fonte:
<http://www.braun.com/pt/world-of-braun.html>. Acesso em 8/set/2012.
19 Phillipe Starck (1948) é um designer reconhecido pela sua produção autoral, reflexo
de um estilo próprio, simbolicamente ousado e inovador. Sua condição pessoal é de
celebridade e seus projetos de design têm status múltiplo de obra de arte e de
design.
Fonte:<http://books.google.com.br/books?hl=en&lr=&id=hU1I0109JrcC&oi=fnd&pg=PA1
0&dq=%22%22quem+%C3%A9+phillipe+starck%22&ots=8I7gm4SVrS&sig=m0P4H7CnNQ
QH48my9ofSCb7CP9w>. Acesso em: 14/out/2012.
50
ambientes relacionada a sua personalidade, sonhos e fantasias, tal como
cita Sudjic (ibid.). O espremedor de limão Juicy Salif, apresentado no
tópico anterior, é um exemplo de suas criações. O objeto que, para um
espremedor de limão, apresenta uma configuração formal
extremamente distinta de configurações convencionais, acabou sendo
valorizado por representar uma inovação estética. Para o autor, Starck
se assemelha a Loewy, em sua postura de autopromoção.
Por todos esses exemplos, pode-se observar uma dimensão da
linguagem dos objetos que reflete informações sobre a cultura de uma
nação, seus aspectos socioeconômicos, comportamentos, desejos,
fantasias e tantos outros aspectos envolvidos na invenção de objetos e na
interação com eles. É possível também deduzir que haja uma estratégia
por parte dos criadores dos objetos designers e demais envolvidos
que manipula, ou cria convenções e padrões, gerando mensagens dos
mais diferentes tipos e intuitos que incidem na interpretação e
valorização dos objetos, seja em suas finalidades, em modos de uso etc.
Trilhando essa ideia, Sudjic (2010) reflete sobre a influência do Design na
vida das pessoas. Para ele, os objetos
São o que usamos para nos definir, para sinalizar quem
somos e o que não somos. Ora são joias que assumem
esse papel, ora são os móveis que usamos em nossas
casas, ou objetos pessoais que carregamos conosco, ou
as roupas que usamos. (SUDJIC, 2010, p.21) 20
Seguindo esse raciocínio, é apropriado dizer que um objeto pode
possuir características que comuniquem21
aspectos sobre, por exemplo,
seu modo de uso, finalidade, onde era comprado, seu preço, quem
comprava, por que comprava, onde usava... Ou seja, uma série de dados
20 Essa relação dos objetos com identidades pessoais e coletivas, sugerida aqui por
Sudjic (2010), é intensamente estudada pelas ciências sociais, como a antropologia e
outras áreas de estudo que valorizam os objetos inseridos na cultura material de um
grupo, nação, sociedade etc.
21 No entanto, é importante demarcar que a comunicação se constitui também na
relação entre o usuário e o objeto.
51
que revelam aspectos de determinado momento histórico-cultural. Em
um sentido próximo, Cardoso (2012) compreende que nenhum objeto é
simplesmente um objeto, mas é um objeto que transmite uma série de
informações. Para ele, uma cadeira, por exemplo,
[...] é uma cadeira específica, dentro de uma gama de
possibilidades, e carrega informações sobre estilo,
procedência, valor, uso, e assim por diante. Ou seja: todo
artefato material possui também uma dimensão
imaterial, de informação. (CARDOSO, 2012, p.111)
Aqui, o autor reforça a ideia de que existem dois aspectos
inerentes a um objeto, proposta por Selle (apud BÜRDEK, 2006): a
dimensão material, que diz respeito a sua configuração formal, texturas,
cores etc. e a dimensão informacional, ou seja, aquela que guarda
diversas informações sobre o objeto, potencialmente reveladoras de
dados sobre sua origem, finalidades, valor, marcas dos processos de
produção pelo qual passou, aspectos culturais relacionados à sua
finalidade e muitos outros.
Segundo Cardoso (2012), os objetos não possuem um significado
preciso e podem, inclusive, transmitir diferentes tipos de informação. O
autor defende que essa condição a que os objetos estão sujeitos é em
razão de que os processos de significação de um objeto são inerentes às
interações estabelecidas pelas pessoas com os objetos. Dito de outro
modo, pode-
entre aquilo que está embutido em materialidade e aquilo que pode ser
ão com os
objetos (ibid., p.36).
Para discorrer sobre essa condição, Cardoso (ibid.) retoma a
cadeira como exemplo, procurando demonstrar a variação de
significados que um objeto pode ter a partir desses processos de
significação, mediante a interação das pessoas com ele: uma cadeira
pode ser usada para sentar, mas também para pendurar roupas em seu
52
Figura 7: W.W.Stool, objeto criado pelo designer francês Phillipe
Starck. Fonte: <http://ww.liveauctioneers.com/item/6048736>.
Acesso 13/07/2012
encosto, como uma escada para alcançar algo em um armário, para
empilhar livros etc. Enfim, é uma multiplicidade de usos de um mesmo
objeto que supostamente teria como seu principal significado de uso o
sentar ou o acesso a lugares altos, previsto em seu projeto. Outro
exemplo que segue nesse sentido, também apontado pelo autor, é o caso
do objeto criado pelo designer Phillipe Starck, comercializado pelo nome
, em tradução literal). Criado originalmente
para integrar um cenário de filme, o objeto é comercializado por uma
empresa de mobiliário, a qual informa que ele é um objeto escultural,
que pode ser usado como banqueta, escultura ou apoio do corpo
(CARDOSO, 2012, pp.121-122). Seu nome pode ser outra informação,
sugerindo seu uso como banqueta, embora sua aparência não remeta
explicitamente ao padrão formal conhecido para tais objetos, a não ser
por lembrar alguns aspectos, como o apoio em três pés. Esse objeto,
comenta o autor, revela um modo de projetar que parece ter a intenção
de subverter ideias preconcebidas em torno do design do objeto (ibid.,
p.123).
53
Os dois exemplos citados corroboram a reflexão sobre a
linguagem dos objetos, ao provocar uma abertura ante as variantes de
significados dados a eles, quer estejam elas relacionadas ao objeto
mediante um design, quer sejam decorrentes das interações
estabelecidas pelos usuários, que permeiam o ciclo de vida de um objeto.
Cardoso (2012) pondera sobre esses aspectos, ao discorrer sobre o modo
como as pessoas interagem com os objetos.
O trato que reservamos para cada artefato encontrado
revela um acúmulo de juízos, crenças, valores, oriundos
de experiências anteriores e memórias, assim como de
informações obtidas indiretamente. Tendemos a
naturalizar tais significados ou seja, a considerar que
eles ocorrem da natureza do objeto e são os mesmos,
desde sempre , mas o fato é que todos eles foram
construídos e são reconstituídos continuamente por
meio da cultura e das trocas simbólicas. (CARDOSO,
2012, p.116).
As considerações desenvolvidas acima indicam que a atribuição
de valores resulta de interações e vínculos pessoais e sociais que as
pessoas criam com os objetos, que terão caráter econômico, emocional,
sensorial, afetivo e simbólico. Compreendendo os diferentes fatores e
condições que incidem nos processos de significação dos objetos,
procurou-se dar ênfase aos aspectos que influenciam esses processos
em termos gerais, deixando em suspenso aspectos relacionados à
peculiaridade de cada indivíduo.
À luz dessas articulações, serão tratados no segundo capítulo os
aspectos do macrocontexto da sociedade contemporânea segundo os
estudos de Lipovetsky (1989) e Sevcencko (2001), procurando destacar
modos de viver e valores proeminentes dentro de um recorte de tempo e
espaço que vai da metade do século XX até a primeira década do século
XXI.
54
2. SUBJETIVIDADE E CULTURA: UM OLHAR PARA O
CONTEMPORÂNEO
O segundo capítulo deste trabalho apresenta um aporte teórico
sobre cultura e modos de vida contemporâneos, visando relacioná-los
aos modos de uso e aos processos de valoração e significação de objetos
nas interações entre pessoas e objetos. Procurou-se destacar o período
compreendido entre os anos de 1980 e 2010, por ser um momento
histórico em que se observa a introdução intensa de tecnologias
baseadas na informática e na robótica a automação industrial de base
microeletrônica alterando os modos de produção, as relações de
trabalho e, em um espectro mais amplo, os modos de viver. (ARAÚJO,
1999).
Para abordar teoricamente essas e outras mudanças ocorridas
nas últimas décadas do século XX, recorreu-se a autores que discutem o
conceito de subjetividade, tais como Suely Rolnik e Félix Guattari (2005) e
Leila Machado (1999). Além desse aporte, também foram consultadas as
contribuições de Maristela Ono (2006) e Maria Lucia Santaella (2003)
sobre o conceito de cultura, o que proporcionou uma articulação teórica
entre esse conceito e as ideias acerca da subjetividade.
Juntamente com uma breve revisão teórica sobre a subjetividade,
é apresentada a abordagem da contemporaneidade feita pelo
filósofo Gilles Lipovetsky (2004) a partir de seus apontamentos sobre o
sistema Moda, uma vez que suas considerações dialogam com o enfoque
dado nesta pesquisa acerca dos modos de vida contemporâneos
ocidentais.
Foram incluídos ainda quatro tópicos que indicam valores que se
sobressaem nos modos de vida contemporâneos com base nas
qualidades definidas por Ítalo Calvino em Seis propostas para o próximo
milênio (1990) como atributos para serem mantidos na literatura dos
55
anos 2000: leveza, rapidez, visibilidade e multiplicidade. O objetivo dessa
estruturação é estabelecer parâmetros para fazer uma analogia entre a
subjetividade e as características de alguns objetos que integram o
campo do Design.
Considera-se, portanto, este capítulo como o fio condutor desta
pesquisa. A partir dessa articulação, pretende-se compreender o Design
e confrontar esse campo e os modos de vida contemporâneos com os
valores atribuídos a objetos.
56
2.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE SUBJETIVIDADE E CULTURA
Segundo Guattari e Rolnik (2005), a noção de subjetividade se
relaciona aos modos de vida e de expressão humanos, tais como os
modos de trabalhar, ensinar, falar, sentir, emocionar-se fazem parte da
existência. Machado (1999) observa que o conceito de subjetividade, que
ela compartilha com Guattari e Rolnik (2005), vem questionar uma ideia
ibid., p.211), colocada como concepção
dualista que pressupõe separações e hierarquizações entre dois polos,
como em sujeito e objeto, consciência e mundo, corpo e alma etc.
Acompanhando a reflexão desses autores, é possível afirmar que a
subjetividade é um conceito que aborda as múltiplas instâncias que
permeiam e transpassam a existência, as quais não se fixam em
polarizações, num indivíduo ou num grupo.
Dito de outro modo, o sentido que se procura dar a esse conceito é
o de processualidade, que é sugerida pelo caráter dinâmico de constante
transformação da subjetividade (GUATTARI e ROLNIK, 2005). A sugestão
dessa característica pode ser percebida, por exemplo, na conexão entre
de
ibid., p.35).
As forças e instâncias que conformam a subjetividade podem ser
notadas, por exemplo, por meio da observação do modo como as pessoas
interagem com o espaço onde vivem ou pela maneira como as sociedades
inventam, produzem e transformam os espaços que habitam. Isso
engloba a configuração das cidades, da urbanização, da divisão de terras,
os modos de circulação das pessoas e transportes, os tipos de
edificações, entre tantos outros aspectos.
Para Machado (1999), as configurações que emergem nas
sociedades estão diretamente relacionadas aos modos de viver, sentir,
trabalhar etc. Segundo a compreensão da
57
a sociedade, a natureza, a tecnologia ou os valores assumem contornos
ibid., p.214), que variam de acordo com a subjetividade22
de
cada época. Vendo por esse ângulo, pode-se entender, em termos gerais,
que a subjetividade abrange modos de viver predominantes em
determinada época e/ou cultura.
A respeito da relação entre subjetividade e cultura, é interessante
apontar uma consideração feita por Rolnik (1995), na qual a autora
entende que essa relação é indissociável. Para ela, há uma ligação entre
subjetividade e cultura que pode ser percebida pelo fato de que, quando
um perfil de subjetividade é delineado, cria-se também um perfil cultural
a ela correspondente. Ou seja, as dinâmicas de criação e transformação
da subjetividade e da cultura estão intrinsecamente relacionadas,
conforme é visto pela autora:
[...] quando uma dobra23
se faz e, junto com ela, a criação
de um determinado mundo, não é apenas um perfil
subjetivo que se delineia, mas também e
indissociavelmente, um perfil cultural. Não há
subjetividade sem uma cartografia24
cultural que lhe
sirva de guia; e, reciprocamente, não há cultura sem um
certo modo de subjetivação que funcione segundo seu
perfil. A rigor, é impossível dissociar estas paisagens.
(ibid., p. 308).
Neste momento, cabe uma pausa para que se delineie o conceito
de cultura no qual esta investigação se baseia. Entre as possibilidades
acerca de uma conceituação para a cultura, partiu-se de uma
22 Machado (1999) utiliza a palavra rede tanto em substituição aos aspectos específicos
da subjetividade de uma época quanto à dinâmica constante de criação e
desconstrução de cruzamentos e tramas, os quais representam seus aspectos em
diferentes instâncias da vida humana.
23
os movimentos de criação da subjetividade (MACHADO, 1999).
24 Cartografia é um conceito emprestado da Geografia para designar um método de
pesquisa relacionado à subjetivi Para os geógrafos, a cartografia
diferentemente do mapa, representação de um todo estático é um desenho que
acompanha e se faz ao mesmo tempo em que os movimentos de transformação da
ROLNIK, 1989, p.15-16).
58
convergência das ponderações sobre subjetividade e cultura abordadas
por Rolnik (1995) com as proposições de Santaella25
(2003) para a
cultura, na qual a autora visa contemplar o contexto das sociedades
contemporâneas, foco do presente trabalho.
Santaella (2003), em sua exposição sobre o conceito de cultura,
parte do
(1998), Khun (1974) e Canclini (1997). Desse último, a autora destaca o
conceito das 26
, o qual procura caracterizar
ica cultural contemporânea que não se
solidifica em estruturas hierárquicas e estáveis, mas, ao
contrário, flui e se desloca ao longo de rotas impossíveis
de se prever de antemão. (SANTAELLA, 2003, p.3).
Ao trazer essa conceituação, Santaella (2003) visa articular sua
investigação baseada no conceito que considera a cultura como aquilo
que está em constante ação ordenadora e reordenadora, em uma
dinâmica desordenada. Tal conjectura indica uma conceituação que a
distingue pela presença de movimentos constantes, ou, em suas
palavras,
A cultura passa a ser vista como um conjunto de linhas
insubordinada e rebelde, ordenadora, porém, ela mesma
não ordenada, desconsiderando profanamente a
sacrossanta distinção entre o substantivo e o marginal, o
. (ibid., p.2).
25 promovido pela
Associação Cultural Video Brasil em 30/set/2003. Disponível em:
<http://www.videobrasil.org.br/14/news/port-opiniao/4Cultura.pdf> Acesso
12/jul/2012.
26 diz respeito a um conceito elaborado por Canclini (1997)
expressando a diversidade de movimentos e entrelaçamentos multiculturais que
permeiam as sociedades contemporâneas ocidentais. Para melhor entendimento,
vale consultar: CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. Estratégias para entrar
e sair da modernidade. São Paulo: Unesp, 1997.
59
A autora considera, pois, que o movimento das formações
de modo que uma nova formação cultural vai se integrando na anterior,
provocando nela reajustame ibid., p.5). E é
aqui que emergem com clareza elementos que apontam uma
convergência entre suas considerações sobre cultura e o exposto por
Rolnik (1995).
Cabe ainda apresentar outros aspectos das proposições de
Santaella (2003) acerca das formações culturais, os quais também
indicam possibilidades de convergência entre os processos da
subjetividade e o delineamento de perfis culturais abordados por Rolnik
(1995). Para Santaella (ibid., p.5)
jogo complexo de sobreposições e complem a cultura
continuum, ela é cumulativa, não no sentido linear,
mas no sentido de interação incessante de tradição e mudança,
pers .
Partindo desse ponto, retoma-se a propriedade de interligação
entre subjetividade e cultura compreendida por Rolnik (1995), tal como
exposto anteriormente, a qual remete ao conceito de que, à medida que
um perfil subjetivo se cria, delineia-se também um perfil cultural.
Afora os aportes de Santaella, outra contribuição que ajuda na
elaboração de um conceito de cultura mais próximo das variáveis que se
apresentam na contemporaneidade é trazida por Ono (2006), a partir de
seu enfoque da cultura e da diversidade cultural. Segundo seu raciocínio,
a cultura pode ser entendida como tudo aquilo que expressa os
processos de formação das sociedades e, ao mesmo tempo, faz parte
deles, em uma relação de correspondência intrínseca. Segundo a autora,
A cultura encontra-se essencialmente vinculada ao
processo de formação das sociedades humanas, numa
relação de simbiose, interdependente e dinâmica que
acompanha o desenvolvimento dos indivíduos e grupos
60
sociais, expressando sua linguagem, seus valores,
gestos e comportamentos, enfim, sua identidade. (ONO,
2006, p.3).
Diante desse entendimento, ela observa a força de influência do
contexto social, econômico e cultural na vida das pessoas, em seus
pensamentos, ações e valores. E ainda, de modo especial, enfoca a
influência desses aspectos nos hábitos e modos de consumo dos objetos.
Entendendo-os como parte integrante da cultura material27
de uma
-se e influenciam-
se em uma relação dinâmica, no processo de construção material e
ibid., p.2).
Partindo desse ponto de vista, os objetos podem ser considerados
como parte integrante dos processos sociais de formação e
transformação das sociedades, pois se entende que, por meio da criação
construção de símbolos, a linguagem, a comunicação, as relações e
ibid., p.3).
Para que se percebessem as relações das transformações sociais
nos modos de vida com o Design e o uso de objetos, e visando estreitar a
leitura nos termos da relação que as pessoas estabelecem com os
objetos, foram também investigados estudos que privilegiam aspectos
históricos e culturais do Design. Assim, são apresentados a seguir
alguns exemplos para melhor conduzir a compreensão acerca das
relações entre subjetividade, cultura e Design.
Estudos realizados pelo historiador Adrian Forty (2007) acerca do
Design e dos objetos contribuem para a compreensão das relações entre
objetos e modos de viver, em foco nesta pesquisa. O autor traçou uma
27 O
utilizados pelas culturas humanas ao longo do tempo, sendo que, para cada
sociedade, os objetos assumem significados particulares, refletindo seus valores e
pesquisa.
61
revisão hi
buscando relacionar a história
do Design com a história das sociedades (ibid.
explicação da mudança deve apoiar-se em uma compreensão de como o
(ibid., p.14).
A ideia de lar e de espaço de trabalho é um exemplo interessante.
O lar, tal qual é concebido contemporaneamente, mantém relação direta
com as diversas transformações ocorridas a partir da Revolução
Industrial. No período, ocorreram várias mudanças na maneira como as
pessoas ocupavam e organizavam os espaços de convivência nas cidades,
que passaram a ser organizados em espaços domésticos e espaços
produtivos.
Anteriormente, o lar era o local onde os artesãos, comerciantes e
demais profissionais exerciam seus ofícios juntamente com outras
atividades, como comer, descansar, dormir, morar. Com o advento das
fábricas e escritórios, ao longo do século XIX, houve a separação entre as
atividades produtivas formais e as domésticas, e o lar passou a ser, para
os trabalhadores, um local exclusivo para atividades da família, como
comer, criar os filhos, descansar. O escritório e a fábrica tornaram-se os
locais destinados à produção, onde havia controle do tempo e das
atividades exercidas pelo trabalhador, e regras específicas, denotando
um ambiente opressor e hostil, em contraste com o período em que
trabalhavam em casa e tinham a liberdade de decidir seu modo de
trabalho.
Esse e outros fatores influenciaram inclusive os padrões de
edificação, de urbanização, o modo de as pessoas se locomoverem, a
percepção da passagem do tempo, a percepção das distâncias, entre
tantos outros elementos que coexistem e permeiam o relacionamento
entre pessoas e espaços.
62
Forty (2007) aponta que, em virtude das mudanças em relação às
atividades do trabalho e às atividades domésticas, além da separação
física entre os ambientes, originou-se uma variedade de sentimentos.
Grande parte das pessoas passou a atribuir diferentes significados ao
espaço doméstico e ao espaço de trabalho, o que provocou uma espécie
-
se, por exemplo, pelo desejo dos trabalhadores em tornar o lar um
espaço oposto ao seu ambiente de trabalho, conferindo-lhe virtudes para
transformá-lo em um local de abrigo, onde poderiam ter a sensação de
amor-próprio diferentemente do espaço de trabalho, onde prevaleciam
características opressoras.
Foram criadas inúmeras maneiras para exprimir a diferenciação
entre lar e trabalho, tais como a invenção de códigos de comportamento
específicos, o uso de um tipo de roupa para o trabalho e outro para a casa
e muitas outras, das quais aquela que mais se destacou foi a criação de
e manuais de decoração (FORTY, 2007, p.141). A produção de artefatos,
em especial a de móveis, visava a comercialização de produtos que
refletissem tais diferenciações através de suas formas, materiais, cores,
estilo etc., definidas conforme seu local de uso.
Um exemplo que pode ilustrar valores e modos de vida
proeminentes no começo do século XX são os eletrodomésticos.
Aspiradores de pó, batedeiras, fogões e geladeiras etc., amplamente
comercializados a partir da década de 1930, foram associados à ideia de
economia de trabalho no lar, visando principalmente às mulheres de
classe média do século XIX, mais do que as esposas da classe
ibid., p.280). Para essas mulheres, de modo geral, o
trabalho doméstico era associado a uma natureza humilhante e deveria
ser realizado por criadas, além de não ser reconhecido como tal por não
ser remunerado. Ao mesmo tempo, porém, difundia-se o mito de que
63
uma mulher teria reconhecimento social e realização pessoal se fosse
uma boa dona de casa, tendo a satisfação sentimental como sua
recompensa. Tais ideias colaboraram para a difusão dos aparelhos
eletrodomésticos como substitutos das criadas e facilitadores do
trabalho doméstico. Embora grande parte do trabalho de casa tivesse
que ser feita manualmente, os eletrodomésticos representaram uma
alternativa para alimentar a ilusão de um status na sociedade
ibid.,
2007, p.289).
Nota-se que os exemplos acima mencionados dizem respeito a
uma observação de Guattari e Rolnik (2005) sobre as dinâmicas de
criação e modificação da subjetividade. Segundo os autores, tais
dinâmicas ocorrem nos âmbitos coletivos e individuais, da mesma forma
que a produção da sensibilidade, a produção do desejo, das
necessidades, dos modelos de comportamento etc. e é resultante de
produções sociais e individuais. Dada leitura colabora para compreender
aspectos da relação entre os objetos e as sociedades, como uma maneira
de sinalizar e identificar aspectos da subjetividade de uma época.
Outra observação que se pode fazer sobre a relação entre os
objetos e os modos de vida de uma época nos remete ao que Machado
(1999) indica: a subjetividade se caracteriza por não apresentar
contornos fixos , ou seja, está em constante transformação ela
mantém uma relação de processualidade com a história, de modo que as
modificações de suas forças componentes, tanto em intensidade quanto
em sentido, podem ser observadas na manifestação de novos modelos de
comportamento ou padrões de relação pessoal.
Com essas considerações, volta-se ao enfoque do período
compreendido pelas décadas de 1950 até 2010, apresentando-se, com
isso, no próximo tópico, considerações sobre modos de vida
contemporâneos pela identificação de alguns dos elementos e valores
que a permeiam.
64
2.2 INDIVIDUALISMO, ESTETICISMO E EFEMERIDADE: TRÊS VETORES
Nas últimas décadas do século XX, ocorreram transformações que
refletiram tanto nas estruturas socioeconômicas quanto nos modos de
vida cotidianos. Sevcenko (2001) colabora em nossos estudos, elencando
exemplos dessas mudanças, tais como a proeminência da produção
industrial, a intensificação de transformações tecnológicas e o fluxo
acelerado de informações.
Concomitantemente, observa-se a emergência de alguns atributos
que atravessam a subjetividade desde a Modernidade e se acentuam nos
dias atuais. Entre eles, estão o individualismo28
, o consumismo, a
efemeridade e o esteticismo. Em diálogo com Lipovetsky (2004), esses
atributos foram brevemente abordados como forças que permeiam a
subjetividade contemporânea. Segundo suas considerações, as
transformações ocorridas ao longo do século XX tiveram como vetores de
organização algumas lógicas, tais como a obsolescência, a sedução e a
diversificação, que corroboram o aparecimento e/ou fortalecimento de
variáveis, a exemplo do estímulo ao consumo de massa e ao prazer das
novidades.
Em sua pesquisa acerca das sociedades contemporâneas,
Lipovetsky (2004) propõe uma leitura na qual apresenta suas formações
interligadas ao estabelecimento do sistema Moda29
, uma vez que os
28 É importante ressaltar que, nesta pesquisa, o termo individualismo é diverso do
senso comum, que o compreende como um valor positivo, constituinte das noções de
individualidade, privacidade, ou identidade. Nesta pesquisa, empresta-se o termo tal
como empregado e realçado nas abordagens de Lipovetsky (2004), dizendo respeito à
cultura que se formou ao longo da Modernidade e que aponta para os modos de
subjetivação que privilegiam os valores individuais em detrimento do coletivo. Nesse
sentido, cabe observar que o autor procura abordar o conceito de individualismo no
âmbito histórico, social e cultural como um dos valores que permeiam a sociedade
ocidental contemporânea.
29 e princípios ordenadores da moda.
Nesta pesquisa, a palavra Moda iniciada em maiúscula representa o sistema Moda,
enquanto que moda, em letras minúsculas, refere-se aos fenômenos dos modismos,
como nas expressões
(MESQUITA, 1999).
65
princípios desse sistema se afirmaram como valores e forças que
reorientaram as sociedades durante o século XX e passaram a reger os
modos de vida contemporâneos. Para o autor, foram as forças da
expressão individual, do esteticismo e da efemeridade que possibilitaram
a configuração e instauração da Moda, e repercutiram como forças
orientadoras de uma cultura específica das sociedades globalizadas.
Tais forças vinham sendo gestadas há mais de três séculos, a partir
do antropocentrismo, da expansão do comércio e dos progressos
científico-tecnológicos, fortalecendo-se na Modernidade e acentuando-
se na pós-modernidade. Suas primeiras manifestações remetem-nos ao
período de transição das sociedades aristocráticas para as sociedades
democráticas, bem como à consolidação de seus novos processos de
funcionamento e dinâmicas socioeconômicas e culturais.
Segundo Lipovetsky (2004), a emergência da expressão individual,
por exemplo, pode ser localizada com certa clareza em diferentes
manifestações no final da Idade Média e ao longo dos primeiros séculos
da Modernidade, tais como o aparecimento da autobiografia na literatura
e do retrato e autorretrato nas artes, entendidas como expressões que
revelaram uma nova relação do indivíduo com o coletivo. Embora os
primeiros quadros ainda seguissem códigos e símbolos, e tais
manifestações, a princípio, estivessem restritas às elites, elas revelavam
um desejo de expressão e uma exaltação da individualidade, que
principiava a ser reconhecida socialmente. Conforme o autor, tais
aspectos contribuíram para um movimento de valorização social do que é
singular, corroborando o rompimento das normas tradicionais, as quais
valorizavam o coletivo.
Acompanhando o raciocínio do autor, a
seja, o gosto pelo novo e pelas mudanças foi impulsionado por essa nova
concepção de unidade social singular, a qual estimulou o direito de
diferenciação dos indivíduos em relação à coletividade. A legitimação do
66
novo, acalentada pela valorização da mudança e pela nova orientação
temporal da vida direcionada pelo presente, bem como a lógica
individualista junto ao desejo de diferenciação pela aparência formaram
as novas estruturas da vida social nos séculos subsequentes.
Essas novas estruturas sociais que vinham se consolidando entre
os séculos XV e XIX ganharam força no começo do século XX, período
permeado por intensas crises e redirecionamentos socioeconômicos e
políticos. Nesse momento, nota-se um aumento de potência das forças
do individualismo, do esteticismo e da efemeridade. A lógica econômica
que se estabeleceu após a Segunda Grande Guerra, por exemplo,
começou a se pautar pela regra do efêmero, orientando a produção e o
consumo de objetos conforme os princípios de renovação e
obsolescência programada (LIPOVETSKY, 2004).
A emergência de valores e acepções culturais modernas que
dignificavam, em especial, a novidade e a expressão da individualidade
corroborou o esboço do estabelecimento, fortalecimento e abrangência
das lógicas da Moda, as quais atingiram seu ápice na pós-modernidade,
expressas em sua disseminação como vetores reorganizadores do
sistema econômico capitalista. Para Lipovetsky (2004, p.11)
lógica da inconstância, as grandes mutações organizacionais e estéticas
avanço e consolidação de tais
forças. Esse movimento é visível a partir da década de 1980, quando
houve um intenso processo de expansão das lógicas do sistema Moda
para diversos âmbitos da sociedade ocidental.
Tal cenário pode ser entendido em Lipovetsky (ibid., pp.180-181),
como o s
, nas quais não há mais regras impostas e
(ibid.), manifestadas na expansão da comunicação publicitária, na
sedução do consumo e do psicologismo, ou, ainda, na sedução do sentido,
67
contrária às convicções ideológicas e aos movimentos revolucionários.
Encara-se um panorama em que a mudança, o prazer e as novidades
estruturam apoios para o funcionamento dessas sociedades.
Segundo as análises de Lipovetsky, essas qualidades
proeminentes na pós-modernidade eclodiram durante as três últimas
,
instabilidade das normas de socialização, superindividualização dos
. Foi o momento em que a Moda representou um
importante papel impulsionador de novas forças e atributos à pós-
modernidade.
Tamanha reconfiguração, baseada nos princípios ordenadores da
Moda o efêmero, o individualismo e o esteticismo influenciou uma
reorientação da cultura de massa pautada pelo hedonismo e ideais
individualistas, impulsionando o fortalecimento de valores como o desejo
pelas novidades, o desuso sistemático e acelerado e a sedução celebrada
pela aparência.
São valores que atravessaram diversos esferas da sociedade,
como o design de produtos, o design de interiores, a arquitetura, a
cultura midiática, a publicidade e as ideologias, entre tantos outros.
Nesse contexto, é possível perceber que os signos efêmeros e estéticos
da Moda tornaram-se uma exigência social. Um exemplo significativo
pode ser percebido nas estratégias de gestão e produção alicerçadas no
princípio da obsolescência programada, cujas bases emergiram nos anos
1920 e consistem, essencialmente, em criar produtos que durem menos
para vender mais, ratificados pela valorização da novidade e dos
aspectos ligados à aparência (LIPOVETSKY, 2004; MALBAREZ et al.,
2011, p.133). O ideal de culto ao novo difundiu-se em várias esferas da
sociedade, provocando descrédito em relação à tradição e ao passado.
Conforme aponta Lipovetsky (2004), nessas condições, o Design
incorporou sistematicamente a dimensão estética e a lógica da
68
diferenciação na elaboração dos produtos industriais, as quais
representam o novo lugar atribuído à sedução e ao desejo de novidade. A
diferenciação, funcionando como lógica orientadora das atividades
produtivas, contribuiu para impulsionar o consumo e acabou por
estabelecer uma espécie de regra a ser seguida pelas empresas, uma
vez que, para competir, os concorrentes deveriam inovar e lançar novos
produtos, às vezes de concepção inédita, e, na maioria dos casos,
exibindo pequenos aperfeiçoamentos de detalhe dos produtos,
provocando no consumidor uma sensação de novidade.
Ao abarcar o Design segundo as lógicas da Moda, Lipovetsky (ibid.)
indica que esse campo também passou a se sustentar pelas lógicas da
Moda, demonstrando igual direcionamento para valores e forças como o
individualismo, o consumo exacerbado, a efemeridade e o esteticismo.
Tal fator pode ser compreendido pela conexão entre cultura e
subjetividade, conforme apontado anteriormente, as quais apresentam
relação direta com a produção de objetos e seu consumo.
Essa percepção é também apontada por Bonsiepe (2012), o qual
entende que o Design
[...] se distanciou cada vez mais da ideia de ”solução
inteligente de problemas e se aproximou do efêmero,
da moda, do obsoletismo rápido a essência da moda é
rápida -, do jogo estético-formal, da glamourização do
mundo dos objetos. (ibid., p.18).
Em suas observações, o autor aponta para a frequente relação,
por parte da sociedade, entre o campo do Design e as lógicas
orientadoras da Moda. É comum, segundo ele, supor que os objetos de
design são caros, inúteis ou pouco práticos, engraçados, divertidos e
coloridos.
Podem-se também notar na literatura sobre Design aspectos da
sustentação das lógicas do individualismo, expressão individual da
efemeridade e do esteticismo no campo do Design quando se expressa,
69
por exemplo, a importância de englobar aspectos de autorreferência no
projeto de objetos. Baxter (2011) indica esse aspecto como uma
autoimagem
simbólico que contribui para despertar a confiança dele sobre
determinado produto. Cardoso (2012), por sua vez, comenta sobre a
importância de se transmitir aspectos da individualidade por meio de
objetos e sobre o desejo de seus usuários em se ver ali refletidos.
Quanto a esses aspectos, Lipovetsky (2004) observa uma
tendência dos consumidores em não mais se ater apenas à
funcionalidade dos objetos e serviços, mas em solicitar a experiência de
sensações, a diferenciação estética e a expressão de valores pessoais
por meio do seu uso, em uma relação com dimensões psicológicas. De
modo sintético, podem-se utilizar as palavras do autor para retratar os
modos de consumo que se desenvolveram e se aprimoraram a partir da
expansão da Moda:
Consumimos através dos objetos e das marcas,
dinamismo, elegância, poder, renovação de hábitos,
virilidade, feminilidade, idade, refinamento, segurança,
naturalidade, umas tantas imagens que influem em
nossas escolhas e que seria simplista reduzir só aos
fenômenos de vinculação social quando precisamente os
gostos não cessam de individualizar-se [...] é a era das
motivações íntimas e existenciais, da gratificação
psicológica, do prazer para si mesmo, da qualidade e da
utilidade das coisas que assume o posto (ibid,, p.174).
Essas articulações não esgotam a investigação sobre modos de
vida das sociedades contemporâneas. No entanto, buscam introduzir
aspectos que nortearam a investigação de valores que perpassam a
subjetividade contemporânea, em comparação com os valores
propagados pelo Design por meio da linguagem dos objetos.
A partir deste ponto, com o intuito de ampliar o entendimento dos
valores que servirão como princípios para análise das entrevistas, serão
elencados valores que se destacam como forças presentes nos modos de
70
vida contemporâneos. Para tanto, dialoga-se com Ítalo Calvino (1990) a
partir de quatro dos seis valores enumerados pelo autor como
qualidades para a literatura e que deseja ver preservadas com a
aproximação do 3º milênio: leveza, rapidez, visibilidade e multiplicidade.
71
2.3 QUATRO VALORES CONTEMPORÂNEOS
Ítalo Calvino expõe uma rica reflexão sobre seis valores literários
que estimava e sugeria que fossem continuados ao longo do 3º milênio:
leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Os
seis valores formavam o tema de conferências30
preparadas por ele para
um período letivo na Universidade de Harvard (1985-1986). O autor
faleceu antes de fazer todas as suas exposições, entretanto elas foram
publicadas na íntegra em livro póstumo, sob o título de Seis propostas
para o próximo milênio: lições americanas (1990). A obra concentra a
apresentação dos textos datilografados por Calvino, nos quais expõe
aquelas seis qualidades literárias com o propósito de situá-las na
perspectiva do milênio que se iniciava.
É interessante observar que o período em que Calvino escreveu
suas propostas coincide com um momento histórico de diversos sinais de
transformação da subjetividade contemporânea, os quais se insinuaram
na primeira metade do século XX e se consolidaram como modos de vida
predominantes.
Outro ponto que se releva é que as conferências escritas por
Calvino conservam uma inter-relação e se constituem como uma
tessitura. Nesta pesquisa, elas serão apresentadas e conectadas ao
campo do Design. A relevância de salientar esse estudo se deve ao fato
de entender que Bonsiepe (2011) aproxima os conceitos de Calvino (1990)
com o campo de conhecimento desta pesquisa.
Bonsiepe (2011) notou, no campo do Design, ressonâncias das
propostas elaboradas por Calvino (1990), e adotou as ideias dele para
adotar como guia na identificação e conceituação de qualidades a serem
30
Publicado após sua morte, ocorrida em 1985, o livro apresenta a reprodução na
íntegra de textos datilografados por Calvino. As conferências fariam parte das
Charles Eliot Norton Poetry Lectures: tradicional ciclo de conferências realizadas
desde 1926, para o qual escritores como T.S. Eliot, Jorge Luis Borges e Octavio Paz,
ou artistas como Igor Stravinsky foram convidados.
72
preservadas pelo Design. O pesquisador ressalta que sua intenção foi
traçar uma aproximação com as qualidades apresentadas por Calvino
para, baseado nelas, delinear suas propostas, sem a pretensão de fazer
de seus escritos uma interpretação das ideias expostas pelo escritor
italiano.
Mais um item realçado por Bonsiepe (2011) diz respeito à
existência recente do campo do Design, se comparado ao da literatura e
à valorização cultural de ambas as áreas: o Design apresenta certa
desvalorização cultural em relação à tradição arraigada da literatura.
Além disso, o autor associa as virtudes enumeradas por Calvino à prática
projetual, dado que, em seu exercício, compreende que se deve atender a
interesses e necessidades, e a escolha para resolver essas necessidades
independentemente do fato de o desig ibid.,
p.35).
Nos subitens que se seguem, portanto, serão pontuadas quatro
das seis propostas de Calvino (1990), com articulações entre elas e as
propostas de Bonsiepe (2011), a fim de se apontarem forças e valores da
subjetividade contemporânea, os quais, mais adiante, serão retomados
em relação a alguns objetos oriundos do campo do Design.
2.3.1 Leveza
A primeira proposta é a leveza. Em seu texto, Calvino (1990) utiliza
mitos, fábulas e poesias para falar sobre o primeiro valor, pois considera
esses gêneros literários como linguagens capazes de conferir leveza,
mesmo às coisas mais pesadas.
O autor entende que a leveza de um texto pode resultar da
combinação exata de palavras que conseguem exprimir a vida sem
petrificá-la. Dito em outros termos, o autor entende que uma dose de
leveza resulta em um texto que exprime vida, ao mesmo tempo em que a
73
suspende pela escrita. Essa ideia é expressa em sua seguinte
, para mim, está associada à precisão e à
determi
com uma citação de
ibid., p.28).
O escritor italiano persiste na proposta de encontrar a leveza por
meio do equilíbrio entre qualidades intelectuais e poéticas, buscando
conferir-
-lo, ele cita
o exemplo de Lucrécio e Ovídio, que, conscientes do processo de
mudança inerente a todas as formas, do imprevisível e da diversidade,
conferiram leveza a seus escritos (ibid., pp.21-22).
Calvino (ibid.) vê também nos avanços da ciência e da informática
perspectivas para a leveza, as quais são uma de suas fontes para
inspiração. Ele identifica nas imagens do DNA31
, nos impulsos
neurônicos, nos quarks32
, a qualidade da leveza:
Cada ramo da ciência, em nossa época, parece querer
nos demonstrar que o mundo repousa sobre entidades
sutilíssimas tais as mensagens de A.D.N., os impulsos
neurônicos, os quarks [...] Em seguida, vem a
informática [...] [a qual] é o software que comanda, que
age sobre o mundo exterior e sobre as máquinas, as
quais existem apenas em função do software (ibid., p.20).
Assim, Calvino (1990) observou a leveza como um dos elementos
que se sobressaíram nas mudanças provocadas pela segunda Revolução
31 ADN (ou DNA em inglês) é o acrônimo de ácido O ácido
desoxirribonucleico é o material genético de todos os organismos celulares e de
grande parte dos vírus, o qual transporta a informação necessária para dirigir a
síntese de proteínas e sua replicação. A síntese de proteínas nada mais é do que a
produção das proteínas que as células e os vírus precisam para o metabolismo e
http://www.todabiologia.com/dicionario/dna.htm>
Acesso em 21/mar/2012.
32 Os quarks são subpartículas que formam os elétrons e prótons. Fonte:
<http://www.algosobre.com.br/fisica/quarks.html> Acesso em 21/mar/2012.
74
Industrial quando se desenvolveram tecnologias de informação,
robotização e miniaturização. Para o autor, essa qualidade pode ser vista
, que
comandam as máquinas (ibid., p.20).
A partir da abordagem de Calvino (ibid.), Bonsiepe (2011) associa a
leveza aos projetos de design e sua influência sobre o meio ambiente. O
autor faz referência, por exemplo, a projetos pautados em fundamentos
de sustentabilidade ambiental, que se aproximam de um mínimo de
impacto ambiental:
Leveza no design é um termo que deveria ocorrer,
sobretudo, quando se leva em consideração os fluxos de
materiais e de energia e de suas influências sobre o
ambiente, ou quando se registra a sobrecarga da rede
virtual com lixo digital. (ibid., p.33).
Além das características físicas, Bonsiepe (ibid.) considera outro
aspecto dessa virtude no Design
certos objetos podem transmitir (ibid., p.34).
2.3.2 Rapidez
O segundo tema abordado nas conferências de Calvino (1990) é a
rapidez. Para o autor, essa qualidade está relacionada à percepção do
tempo enquanto se lê um texto, sendo que os vetores que formam a
velocidade da leitura, como a concisão e a economia de argumento, são
configurados com base na escolha do ritmo, na métrica, na concatenação
dos fatos e na quantidade de elementos que formam um texto. Calvino
(ibid.) aponta que a sensação de rapidez será, pois, a mais adequada,
conforme for a articulação de tais elementos.
Nessa perspectiva, ele expressa sua preferência pelo conto, em
especial os populares que abordam mitos e fábulas, pois, segundo ele, o
conto popular tem como característica principal a economia de
75
tem
o que é nomeado tem uma função ne ibid., pp.49-50).
Observe-se que o destaque atribuído à economia de expressão
sugere seu apreço pela escrita concisa. Tal característica é por ele
pontuada como uma força com potencial de traçar conexões diversas a
partir dos elementos fundamentais do texto. Para o autor, tal potencial
estimula a imaginação daquele que escreve e daquele que lê o texto,
provocando um movimento ininterrupto de conexões, imaginado por
Calvino (ibid., p.48) c
Ao ilustrar esse movimento, Calvino cita um trecho de Carlo Levi,
no qual apresenta uma descrição sobre as sensações provocadas pela
rapidez:
A rapidez e a concisão do estilo agradam porque
apresentam à alma uma turba de ideias simultâneas, ou
cuja sucessão é tão rápida que parecem simultâneas, e
fazem a alma ondular numa tal abundância de
pensamento, imagens ou sensações espirituais, que ela
ou não consegue abraçá-las todas de uma vez
inteiramente a cada uma, ou não tem tempo de
permanecer ociosa e desprovida de sensações. (LEVI
apud CALVINO, 1990, p.55).
Aparentemente distante de Calvino, Bonsiepe (2011, p.36) examina
a segunda virtude do Design do século XXI como a necessidade de uma
revisão crítica de seus princípios conceituais, ou seja, a exigência de um
exame acer
revisão se faz necessária para que prossigam as ações de design que
efetivamente introduzem mudanças viáveis e refletem uma postura
crítica frente à realidade e ao status quo (ibid., pp. 36-37). De certo modo,
essa postura crítica sugere uma aproximação com a leitura de Calvino
(1990) sobre a rapidez, uma vez que ambos tratam de conexões que se
estabelecem entre elementos e propostas projetuais.
76
2.3.3 Visibilidade
Na proposta sobre a visibilidade, Calvino (1990) aborda a
imaginação e a capacidade imaginativa, antes de entrar propriamente
nas questões dos processos imaginativos.
Primeiramente, comenta sobre a fantasia e o imaginário evocados
por um autor diante de uma folha branca. Para ele, a imaginação pode
sequência, reflete sobre o imaginário indireto, ou seja, sobre aquela
instância imaginativa povoada de imagens fornecidas pela cultura. Nesse
reservado à imaginação individual nessa que se convencionou chamar de
? ibid., p.107) A partir daí, ele traça
considerações sobre os processos imaginativos no mundo
crescente inflação de imagens pré- ibid., p.111).
Diante dessa conjuntura, Calvino (ibid.) lembra que antes de tal
imaginação limitavam-se à combinatória das experiências diretas com o
reduzido repertório de imagens refletidas pela cultura (ibid., p.107).
Todavia, no período em que escrevia suas conferências, Calvino
apontava para uma dinâmica de disseminação de um repertório
-
crescentes, quer pela cultura de massa, quer por outros meios de
comunicação. Para ele, tamanho e difuso repertório passou a povoar de
modo tão intenso o imaginário pessoal que as experiências diretas
começaram a se misturar com as experiências vistas, estimuladas pela
cultura. Tais imagens são carregadas de significados sobre, por exemplo,
estilos de vida, conceitos e estados de espírito, prontas a serem
absorvidas, consumidas e ressignificadas.
77
bomba provocou
mudanças na percepção e interpretação individual, as quais preocupam
Calvino (ibid., p. 107): de que modo tamanho repertório de imagens
poderá influenciar na imaginação individual? Ele adverte sobre o perigo
ibid., pp.107-108).
Bonsiepe (2010) aborda o termo visualidade procurando enfatizar
a importância da imagem como um meio de comunicação e a tendência
de revalorização da dimensão visual que vem se consolidando a partir
das evoluções científico-tecnológicas. Ele evidencia ainda as
transformações ligadas ao domínio da percepção, estimuladas pela
multiplicação do uso da linguagem visual, e o próprio potencial da
visualidade, ou seja, da capacidade de visualização.
2.3.4 Multiplicidade
Para discorrer sobre a multiplicidade, Calvino (1990) expõe
considerações sobre o romance contemporâneo. Tal forma literária,
explica ele, é como se fosse uma enciclopédia aberta, uma rede de
conexões entre as pessoas, os fatos e o mundo.
A multiplicidade pode estar presente na descrição dos mínimos
detalhes de um objeto, por exemplo, na descrição das dobras e sombras
de um lençol ao vento ou das cores que se formam ao pôr do sol. Nas
palavras do autor, é como se a escrita conduzisse a infinitos universos,
o de uma rede de
ibid., p.122). A multiplicidade pode também se manifestar pela
pluralidade de sujeitos, vozes e olhares que constroem um texto.
O autor entende que a multiplicidade é o grande desafio da
onjunto os diversos saberes e
(ibid., p.127).
78
Bonsiepe (2010) discorre sobre o atributo da alteridade a partir do
conceito de Calvino de multiplicidade. Para ele, a alteridade se refere ao
respeito às diversas culturas projetuais existentes. É a busca da
resistência a uma visão de mundo etnocentrista e a prática de um design
que se concentra em apenas 25% da população mundial. Desse modo, o
autor sublinha o entendimento do mundo que respeita diversidades
culturais, diferenças econômicas, sociais e políticas; para ele, o respeito
à alteridade é uma atitude em prol de uma cultura de paz.
No capítulo seguinte, é sugerido um estudo sobre alguns objetos,
seus modos de uso e as relações de significado e valor estabelecidas por
seus usuários, procurando-se entendê-los como meios de expressão de
modos de vida e manifestação de aspectos da subjetividade. Para realizá-
lo, partiu-se da ideia de abordar um verbo específico relacionado à
subjetividade contemporânea, como escutar, dormir, trabalhar, passear,
relaxar etc. Selecionou-se, então, o verbo escutar, com um enfoque nos
modos de escuta de músicas, notadamente através de aparelhos de
escuta individual por essa ser uma característica marcante do período de
investigação. Faremos também uma breve análise de dois objetos o
walkman e o ipod levando em consideração seus modos de uso e de
consumo, por entender que ambos podem expressar aspectos da
subjetividade abordados nesta pesquisa.
79
3. OBJETOS DE DESEJO E MODOS DE ESCUTA: INTERAÇÕES ENTRE
DESEJO, INDIVIDUALISMO E MOBILIDADE.
Neste capítulo, é apresentada uma leitura acerca de modos de
escuta na contemporaneidade, a partir de Obici (2008), buscando-se
centralizá-la na investigação dos modos de escuta relacionados a objetos
de transmissão de som, tais como o walkman e o mp333
player34
. Serão
abordados alguns dos aspectos da interação entre pessoas e sons, tendo
em vista a escuta mediada por dispositivos de escuta individual,
propiciada pelo uso de fones de ouvido.
Primeiramente, é exposto um breve histórico acerca das
transformações ocorridas no final do século XIX e princípio do XX, a fim
de sinalizar aspectos sobre modos de escuta que se sobressaem na
época contemporânea. Em seguida, são feitas considerações sobre
modos de escuta proeminentes no período enfocado pela pesquisa da
década de 1980 até os anos 2000 , procurando destacar fatores que
levaram à seleção de dois objetos para estudo junto a seus usuários o
walkman e o ipod.
Em seguida a essa abordagem acerca de modos de escuta
contemporâneos, serão levantados dados acerca do walkman, ipod e
outros aparelhos reprodutores de mp3, coletados em referências
advindas da indústria e de pessoas ligadas à sua produção, tais como
designers e o ex-diretor da empresa Sony.
33 Mp3 (mpeg player 3) é um formato de arquivo de áudio bastante difundido, que utiliza
algoritmos para comprimir dados de base digital. Foi um dos primeiros tipos de
arquivo a comprimir arquivos de áudio com eficiência e qualidade significativa.
(OBICI, 2006).
34 O mp3 player é um aparelho que reproduz arquivos de mp3 usados principalmente
para armazenar músicas. Alguns modelos combinam essa finalidade com o
transporte de outros arquivos, como vídeos e imagens, podendo ser utilizado para
visualizá-los. Ipod é o nome do mp3player da marca Apple. Fonte:<
http://teiacast.com.br/2011/07/o-que-e-o-ipod-2/>. Acesso em 10/ago/2012.
80
Adiante, apresenta-se a metodologia utilizada na pesquisa com
usuários desses dois objetos, realizada por meio de entrevistas
semiestruturadas; o roteiro das entrevistas e as interpretações sobre as
informações fornecidas pelos entrevistados, visando averiguar
correspondências entre a revisão bibliográfica e os dados coletados
sobre seus modos de uso e valores atribuídos a eles.
81
3.1 ASPECTOS DOS MODOS DE ESCUTA NO CONTEMPORÂNEO
A observação de modos de escuta no tempo atual, apresentada
neste trabalho, baseia-se na pesquisa de Giuliano Obici (2006), onde o
territórios sonoros delineados pelos dispositivos de registro, difusão,
codificação e compartil ibid., p.17), tais como
o microfone, o alto-falante, o rádio, a televisão, o celular e o aparelhos
reprodutor de mp3. Nessa pesquisa, são enfocadas as relações de escuta
indireta, mediada por aparelhos de difusão do som apresentadas pelo
autor.
Obici (ibid.) aponta uma série de transformações no ambiente
acústico musical, as quais se intensificaram no final do século XIX
impulsionadas por diversos fatores, como a concentração de pessoas nas
cidades e a proximidade delas com as máquinas e com as inovações
tecnológicas. São mudanças que foram agenciadas pela industrialização,
urbanização, entre outros fatores, e se seguiram ao longo do século XX.
Um dos aspectos expostos por Obici (ibid.) é a separação entre
escuta e visão, que pode ser notada com certa saliência na
contemporaneidade. A invenção de diversos dispositivos de registro,
difusão, codificação e compartilhamento de dados sonoros, como o
telégrafo, o telefone e o rádio, mudou a forma de geração, difusão e
recepção do som, bem como provocou alterações nos vínculos que as
pessoas mantêm com o som. Tais inventos possibilitaram uma escuta
dissociada da fonte transmissora de som, como, por exemplo, a audição
de música sem estar presente no local de sua produção, quer vinda de
um instrumento, cantor, ou outra fonte de som. Cabe comentar que essa
desvinculação entre visão e audição provoca diferentes maneiras de
escutar, as quais podem ser compreendidas, em termos gerais, como a
escuta direta e a escuta indireta. A primeira está relacionada ao contexto
da visão, e a segunda, a uma escuta mediada (ibid.).
82
O telefone, por exemplo, criado em 1876, é apontado pelo autor
como um equipamento sonoro que causou alteração significativa, tendo
estabelecido
ibid., p.22). Isso quer dizer que a pessoa que
fala não está presente fisicamente no mesmo ambiente da pessoa que
(ibid.), esse nov
e o surgimento de outros dispositivos, como as mídias portáteis
(walkman ibid, p.22). Outro exemplo de objeto
mediador da escuta, citado por Obici (ibid.), são os aparelhos de
gravação, que possibilitaram o armazenamento, a repetição e o exame de
sons, sem a presença da fonte que os produziu. Essas e outras inovações
com o som, seja no plano da música, da comunicação ou dos sons
ibid., pp.22-23), gerando uma condição de escuta onde se
dissociam visão e ouvido, mediada por um objeto que transmite os sons.
Dos anos 1950 em diante, fatores como a ampliação e o
barateamento da tecnologia promoveram maior consumo de aparelhos
de escuta, contribuindo para a geração de outras realidades de convívio
com os sons (ibid.). É importante lembrar que esse período histórico
corresponde à Guerra Fria, às disputas econômicas baseadas na
concorrência tecnológica, ao grande crescimento econômico das
economias industriais, à chegada do homem à lua, entre tantos outros
acontecimentos e fatores que contribuíram para a ocorrência de
profundas transformações sociais nos períodos posteriores (SEVCENKO,
2001).
Santaella (2012, p.4) discorre sobre essas mudanças ao longo da
segunda metade do século XX, e destaca que os anos 1990 constituíram-
se como um período em que se concentraram transformações intensas
quanto à difusão de informações e comunicação. Essas modificações
colaboraram para uma revolução nos meios de transmissão de
83
informação dos mais diferentes tipos, sejam elas sonoras, escritas,
visuais etc. As mídias digitais são um exemplo da emergência dos novos
meios de difusão de informação, as quais foram impulsionadas por uma
série de aspectos, como a propagação dos computadores pessoais, o
desenvolvimento da informática e das tecnologias digitais. Essas e outras
questões, tais como as transformações nas relações políticas e
geográficas, refletidas na intensificação da globalização, e a junção da
informática com as telecomunicações contribuíram para a configuração
de redes de transmissão de informação que conectam as pessoas em
uma amplitude global.
Seguindo esse raciocínio, observam-se sinais do aparecimento de
novos modos de difusão de informação e convívio com os sons, na
disseminação das vitrolas portáteis e dos rádios de pilha. O walkman, o
discman35
e os aparelhos reprodutores de mp3 invenções posteriores
podem ser entendidos como uma ampliação dos modos de escuta, uma
vez que ampliaram as condições para se escutar música, como a
possibilidade de estar em diversos ambientes e não necessitar de uma
fonte de energia elétrica para funcionar. Com esses objetos, pode-se
ainda observar a ampliação do acesso à música, que inclui tanto a
transmissão via rádio quanto via gravações em mídias físicas (disco de
vinil, fita cassete e CDs) e digitais (mp3) e através de transmissão pela
internet.
35
O discman é um aparelho reprodutor de CDs, também de escuta individual. Foi criado
pela empresa Sony, no Japão, em 1989.
Fonte:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Discman>. Acesso em 25/ago/2012.
Figura 8: Discman D-50, primeiro modelo do
aparelho, de 1984. Fonte: <http://migre.me/bzHdg>.
Acesso em 04/nov/2012.
84
Obici (ibid.) observa que no mundo contemporâneo há uma espécie
de instituição da circulação intensa das pessoas, das coisas, das
uma
movimentação constante. É um paradigma que pode ser concebido, via
Obici (ibid.), com auxílio das mídias sonoras e aparelhos de som, os
quais, segundo o autor,
[...] nos acompanham em muitos aspectos da vida, como
meios de criar uma zona temporária de segurança em
momentos de solidão, ansiedade, medo ou pavor,
espera, monotonia. O celular, o mp3 player e o laptop
cumprem a função de acompanhar-nos até onde não se
imaginava ser possível: a intimidade, o espaço privado.
Isso já acontecia com as outras mídias como o livro, o
rádio, o telefone e o televisor, mas hoje a portabilidade,
os recursos, a integração das mídias e o volume de
dados são bem maiores, assim como a acessibilidade
que possibilitam (ibid., pp.87-88).
Nesse sentido, Obici (ibid.) entende que a comercialização de
aparelhos para escutar música está muito mais focada nos tipos e
maneiras de acessar a músicam, contanto que possibilitem conforto,
proteção e flexibilidade para que seus usuários possam transitar em
diferentes ambientes das grandes cidades, sentidos como caóticos.
Segundo seu raciocínio, os aparelhos para escuta individual se tornaram
ferramentas que operam velocidade, portabilidade e uma capacidade de
Figura 9: Discman modelo D121.
Fonte:<http://migre.me/bzIjm>.
Acesso em 04/Nov/2012.
85
3.2 INDIVIDUALIDADE E MOBILIDADE: UM ESTUDO SOBRE O
WALKMAN E O IPOD
Inúmeros objetos produzidos ao longo do século XX poderiam ser
citados para ilustrar modos de viver e padrões de comportamento, bem
como transformações nas suas estruturas e dinâmicas de
funcionamento.
Nesse tópico, é apresentado um estudo sobre o walkman e um
modelo específico de aparelho reprodutor de mp3, o ipod, por serem
considerados exemplos de objetos que expressam modos de escuta
proeminentes na contemporaneidade. Além dessa condição, os dois se
destacam por possivelmente expressarem uma das forças mais
marcantes da subjetividade contemporânea: o individualismo. Até sua
invenção, os artefatos utilizados para se ouvir música, como os rádios ou
aparelhos de som, tinham projeto baseado na transmissão da música por
alto-falantes. Portanto a escuta era comumente coletiva, uma vez que os
alto-falantes transmitem o som para o ambiente. Naqueles objetos, a
escuta tornou-se individual, por se utilizar de um fone de ouvido para a
audição das músicas, sejam elas transmitidas por gravações ou
transmissões de rádio. É exatamente esse o ponto que os diferencia dos
demais objetos de escuta: o uso de um fone para ter uma escuta
individual, não compartilhada.
Na investigação deste trabalho sobre o walkman e o ipod, foram
ainda traçadas conexões com as considerações de Obici (2006), conforme
apresentado no item 2.3. Tais entrelaçamentos visam relacionar, na
etapa das entrevistas e interpretação dos dados obtidos, modos de uso
de aparatos para escuta de música aos modos de escuta que se
expressaram ao longo das décadas de 1990 e 2000. Essas relações
buscam compreender os objetos como manifestação de valores e modos
de vida proeminentes no período analisado pela pesquisa.
86
A partir do estudo desses dois objetos, o walkman e o ipod, foram
realizadas aproximações entre o sujeito produtor/criador, o sujeito
consumidor e a sociedade (BOMFIM, 1984).
Enjoying the music for yourself36
(Sony Walkman Design
Classics, 1990). A declaração de Akio Morita, presidente da Sony em
1990, registrada no documentário produzido pela BBC de Londres sobre
o walkman 37
, ajuda a sintetizar as ideias que impulsionaram a sua
criação, em 1979. O aparelho de reprodução de música, que é
considerado como um design clássico pelo Design Museum de Londres
(THORNHILL, 2011), realizou a façanha de possibilitar, pela primeira vez,
que as pessoas ouvissem música segundo sua escolha, fosse pelo rádio
ou pela fita cassete, em movimento.
A ideia chave do objeto, pontuada por Akio Morita (Sony Walkman
Design Classics, 1990) surgiu a partir de observações do comportamento
musical dos jovens na década de 1970. Morita (ibid.) observa que, na
época, os jovens gostavam de ouvir música dirigindo, em casa, na rua e
que, naquele momento, os aparelhos de som eram pesados. Diante de tal
contexto, o walkman representou uma inovação que possibilitava a
qualquer um ouvir música em qualquer lugar, transportando com mais
facilidade seu próprio aparelho e, o mais importante, através de um fone
de ouvido individual sem incomodar quem estivesse ao seu redor.
Como dito anteriormente, a grande inovação desencadeada pela
invenção do walkman foi a mudança do projeto de aparelhos de áudio
para um projeto no qual o som era transmitido por fones de ouvido, ou
seja, era direcionado para dentro do ouvido do usuário.
36 (Sony Walkman Design Classics, 1990, tradução
nossa).
37 Walkman foi a palavra criada para dar nome ao aparelho e à marca de objetos
incluído no Dicionário de Inglês
Oxford, como descrição de qualquer tocador de fitas cassetes.
87
Comparando-se os projetos dos rádios, aparelhos de áudio e do
walkman, pode-se observar que esse último reforçou o valor do
individualismo, permitindo que o usuário selecionasse as músicas de seu
gosto para ouvir e gravar, sem a necessidade de negociar ou
compartilhar escolhas.
Figura 10: Primeiro modelo do walkman, de 1979.
Fonte:<http://polones.art.br/blog/2011/07/06/the-walkman-day-isso-e-do-meu-tempo/
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Walkman.jpg>.Acesso em 19/Nov/2011.
Figura 11: À esquerda, modelo de rádio da década de 1930 aprox. À direita, rádio
portátil, sem data. Fontes: <http://migre.me/bpYKK> <http://migre.me/bpYMv>.
Acesso em 19/Nov/2011.
88
Figura 12: Propaganda do "Hi-fi compact 2000", aparelho de áudio lançado no início
dos anos 1970 pela empresa Telefunken. Fonte: <http://migre.me/bpYNF>. Acesso
em 31/mar/2012.
Para o designer Kenji Ekuan38
, os ritmos e os modos de vida nas
cidades levaram as pessoas a criar seus próprios espaços pessoais, o
que ele aponta como um desejo humano fundamental39
. Seguindo esse
raciocínio, o designer entende que o walkman foi um objeto que propiciou
criar um mundo individual e privado independentemente das
circunstâncias do entorno. Tanadori Nagasawa40
(ibid.), designer
japonês, observa que a maioria das pessoas usava o walkman em metrôs
lotados, onde seus espaços privados e a sensação psicológica de
privacidade é praticamente ausente, devido à aproximação e contato
físico entre as pessoas. Neste contexto, ele entende que usar o walkman
seria como preencher o espaço pessoal com música, criando uma
espécie de concha e evitando o contato com outras pessoas. Embora seja
uma ilusão, observa Nagasawa (ibid.), a escuta através de um fone
promove uma sensação psicológica de se estar criando uma barreira
38 Presidente da GK Design Association na época da realização do documentário
produzido pela empresa de comunicação BBC, em 1990.
39 Sony Walkman Design Classics,1990,
40 Presidente da empresa Design Analysis International (DAI) em Tóquio, na época de
realização do documentário produzido pela BBC, em 1990.
89
entre aquele que ouve (o indivíduo) e as pessoas ao seu redor, tendo a
sensação de preservação de seu espaço íntimo.
Em relação a essa sugestão de Nagasawa (ibid.), cabe citar um
estudo do campo da ergonomia, apresentado na publicação Humanscale
(DIFFRIENT et al, 1981), o qual expõe considerações sobre o contato
entre as pessoas e as sensações experimentadas por elas.
Diffrient et al (ibid.) apresentam mensurações sobre áreas de
contato entre pessoas, relacionando-as a sensações psíquicas. Um
outra. Para os autores, a distância íntima pode ser experimentada em
situações como fazer amor, em metrôs e ônibus, elevadores cheios etc.
entendida por Diffrient et al (ibid.) como aquela em que as pessoas estão
separadas pelo alcance dos braços e há possibilidade de contato entre os
corpos. A validade dessas medidas e categorizações é passível de
discussão, e os próprios autores observam que sua consolidação
depende de uma gama de fatores, como os culturais, o contexto do
espaço de contato, a existência de ruídos altos e pouca luz, os quais
podem dar a sensação de aproximação (ibid.). Embora a presente
pesquisa não aprofunde teorias da ergonomia, esse estudo corrobora a
afirmação citada anteriormente.
Obici (2008) dialoga com esse conceito quando apresenta seus
estudos sobre territórios sonoros, procurando abordar modos de escuta
nas sociedades contemporâneas. O autor considera que os sons, sejam
eles musicais, ruídos etc. podem criar territórios, como também
acontece com os livros, o rádio e a televisão.
90
design do walkman influenciou o projeto de uma série de objetos criados
belamente detalhado, pequeno e bem feito como esse produto [o
walkman Sony Walkman Design Classics, 1990).
É interessante pontuar que, passados 30 anos de sua invenção, o
walkman representa um objeto de tecnologia ultrapassada. Porém, seu
design significou uma mudança no modo como as pessoas percebiam as
mídias eletrônicas, tal como o propõe a designer e escritora Liz Bailey
(ibid.). Para a autora, foi essa mudança que propiciou o surgimento das
mídias posteriores, a exemplo do minidisc, do mp3 e de objetos como as
câmeras digitais, os celulares, as agendas eletrônicas, o ipod, entre
tantos outros.
Ao longo das três últimas décadas do século XX, diferentes
inovações tecnológicas possibilitaram a criação de novos aparelhos de
escuta individual, como o discman e os aparelhos reprodutores de mp3,
embasados na tecnologia dos arquivos de mp3. Seguindo o raciocínio de
Bailey (ibid.), pode-se afirmar que o design desses aparelhos
acompanhou a lógica da escuta individual inventada no design do
walkman. Assim, alterações projetuais incorporaram novas tecnologias
Figura 13: Modelos de minidisc da marca Sony. Fonte: <http://migre.me/bzLb7>.
Acesso em:04/nov/2012.
91
de reprodução de música. É o caso dos CDs, minidiscs e arquivos mp3,
bem como dos novos componentes de funcionamento que influenciaram
a aparência, tamanho, portabilidade, leveza e interface dos aparelhos.
Com essas inovações, a capacidade de armazenamento de músicas, a
facilidade de execução e a durabilidade da bateria são alguns exemplos
que, além de possibilitar a criação e escolha de repertórios musicais
cada vez mais individualizados, passaram a ser valorizados por seus
usuários.
Além desse aspecto, Bailey também destaca outro ponto
importante relacionado à concepção do walkman: ele mudou a cultura da
música, pois possibilitou que as pessoas criassem uma trilha sonora
para suas vidas e as ouvissem em diferentes momentos de seu cotidiano.
O ipod, aparelho reprodutor de arquivos mp3, criado pela empresa
Apple, pode ser apontado como o segundo objeto de maior importância
em relação aos tocadores de música com escuta individual. Esta hipótese
baseia-se na constatação de que o design desse objeto ampliou a
conexão com softwares e plataformas da internet, além de conter maior
capacidade de armazenamento de músicas e uma interface digital de
melhor compreensão e uso (FARIA e JUNG, 2011). Outro ponto que
reforça nossa consideração do ipod como objeto de estudo para esta
pesquisa, em detrimento de outros tipos de aparelhos reprodutores de
mp3, se dá pelo valor simbólico que este aparelho pode representar,
sendo produzido pela Apple. Tal associação vincula-se à constatação de a
empresa e seus produtos serem comumente associados a valores como
status, inovação e excelência de uso, tal como nos apontam Faria e Jung
(ibid.) e Sudjic (2011), entre outros autores.
92
3.3 ONZE ESCUTAS INDIVIDUAIS SOBRE O WALKMAN E O IPOD
A trajetória desta pesquisa teve em vista abordar os contextos de
uso dos objetos e a observação de modos de vida na sociedade
contemporânea em um sentido amplo, horizontal. A amplitude e
proporções em macroescala levaram a identificar estereótipos, que
apareceram refletidos nas entrevistas aqui realizadas e nas pesquisas
sobre relações entre Design e atributos relevantes na
contemporaneidade.
A presente etapa enfoca a investigação dos objetos selecionados
nesta pesquisa, o walkman e o ipod, a partir de entrevistas com seus
usuários, buscando aprofundar a observação e coleta de dados sobre os
objetos em questão.
O método qualitativo de coleta de dados, aplicado nas entrevistas,
orientou-se pela necessidade de abordar diferentes pontos da relação que
as pessoas estabelecem e/ou estabeleciam com seus aparelhos de escuta
individual, tais como modos de uso, contextos de uso, relações entre
aspectos do uso e modos de vida etc. Assim, supondo haver grande
variação nas respostas, optou-se pela pesquisa qualitativa em entrevistas
semiestruturadas.
O caminho metodológico seguido na realização das entrevistas se
baseou em três referências do campo da metodologia científica: Bauer e
Gaskell (2002), Mazzotti e Gewandsznajder (2002), Moreira e Caleffe
(2008). Suas abordagens orientaram a seleção do tipo de entrevista,
nesse caso, a semiestruturada, bem como sua realização e
interpretação.
A entrevista semiestruturada consiste em um método de pesquisa
qualitativa, no qual se espera que o entrevistador tenha desenvolvido
previamente um referencial teórico ou conceitual em que irá se basear
para escolher o tema da entrevista. O mesmo vale para a escolha das
93
questões centrais, os chamados tópicos-guia, e das pessoas a serem
entrevistadas (BAUER et al, 2002, pp.64-67).
Desse modo, antes de concretizar as entrevistas, o pesquisador
cria um roteiro de perguntas que guiarão o entrevistador ao longo da
entrevista propriamente dita. Cabe observar que o pesquisador pode
simultaneamente desempenhar o papel de entrevistador ou designar
outra pessoa para realizar a tarefa. Neste trabalho, a pesquisadora fez o
papel de entrevistadora.
O roteiro de perguntas é alicerçado pelas questões centrais da
pesquisa e ajuda a criar estímulos para alimentar a conversa entre
entrevistador e entrevistado. Ele também contribui para que o
entrevistador permaneça concentrado no tema a ser investigado. Na
presente pesquisa, o roteiro construído para as entrevistas pautou-se
pelo referencial teórico apresentado nos capítulos 1 e 2. Assim,
formularam-se perguntas sobre os objetos, seus modos de uso e sobre a
percepção de valores a partir dos quatro valores pré-definidos com base
nas propostas de Ítalo Calvino (1989), apresentadas no item 2.3. Junto a
esse referencial, criaram-se outras questões decorrentes da pesquisa de
Obici (2006), visando abordar aspectos do uso dos objetos de escuta
individual, e sua relação com modos contemporâneos de escuta e de
vida.
Para elaborar esse roteiro, os assuntos foram divididos em três
categorias de análise: a) aspectos que influenciam os processos de
atribuição de significado aos objetos, seguindo os apontamentos de
Cardoso (2012), que os indica: uso, entorno, duração, ponto de vista,
discurso e experiência mencionados no capítulo 1; b) funções dos
objetos segundo as categorias apontadas no item 1.2: função simbólica,
de uso e técnica (ONO, 2006) e c) valores que se sobressaem na
contemporaneidade e permeiam os modos de vida atuais, baseados nas
94
propostas de Calvino (1989): leveza, rapidez, visibilidade e
multiplicidade.
A realização das entrevistas se deu em diferentes locais, sem que
houvesse uma pré-seleção de ambientes ou fosse estabelecido um
critério para tal; contudo, cada abordagem foi feita individualmente.
A seleção dos entrevistados baseou-se em quatro critérios: ter
idade entre 25 e 50 anos, conhecer o walkman, ter usado um walkman,
conhecer o ipod e/ou aparelhos reprodutores de mp3 e, se possível,
possuir um objeto desse tipo ou usar algum tipo de objeto que
proporcione a escuta individual, como os celulares, que podem ser
usados com fone de ouvido, têm capacidade de armazenamento de
arquivos mp3 e podem também propiciar a escuta de rádio.
Cabe observar que se ampliou a gama de objetos estudados para
outros modelos e marcas de aparelhos reprodutores de mp3, pois
observou-se que os entrevistados pouco ou nada comentaram sobre
diferenças de uso entre ipods e aparelhos de mp3. Além disso, alguns
entrevistados não possuíam ipod, mas utilizavam aparelhos
reprodutores de mp3. Desse modo, a hipótese sustentada sobre a
importância de se tratar o ipod como um objeto de estudo diferenciado
nas especificidades desta pesquisa deixou de proceder após a realização
das entrevistas.
Assim sendo, é importante referir que foram incluídas as
respostas dos entrevistados que mencionaram objetos semelhantes ao
walkman e ipod, tais como celulares e aparelhos reprodutores de mp3 de
outras marcas. Isso se justifica pelo fato de essa pesquisa enfocar os
modos de escuta individual com fone de ouvido, a criação de repertórios
musicais individuais e a possibilidade de ouvir música em diferentes
lugares e situações. Portanto, objetos com projetos semelhantes, ou
95
seja, com design que contemple os requisitos fazem parte do escopo da
pesquisa.
Para definir a quantidade de entrevistas a serem realizadas,
foram seguidos os critérios apontados por Bauer e Gaskell (2002).
Segundo os autores, se há pontos iguais recorrentes nas entrevistas,
denotando repetição de respostas sobre os conteúdos, é hora de concluí-
las. Para eles, esse fenômeno é uma manifestação da construção
coletiva de experiências acerca de um tema de interesse comum,
resultante de processos sociais. Por isso, no presente caso, das
entrevistadas foram escolhidas 11 pessoas, uma vez que as respostas
começaram a coincidir.
Entende-se que o tema abordado pelas entrevistas é de interesse
comum, já que walkman, ipod e aparelhos reprodutores de mp3 são
objetos conhecidos por grande parte das pessoas que vivem em cidades.
Além desse aspecto, outra razão que limitou o número de abordagens foi
o limite de tempo para realizá-las, tendo em vista a expectativa de obter
melhor aproveitamento na fase de interpretação dos dados produzidos
pelos depoimentos.
Para fazer a interpretação das entrevistas, primeiramente
transcreveram-se as 11 inquirições a partir de suas gravações. Ressalte-
se que essa etapa demanda boa parte do tempo da investigação; porém,
trata-se de um importante estágio, pois, concomitantes às transcrições,
surgem espontaneamente os primeiros apontamentos da interpretação
dos dados. O processo da transcrição envolve atenção e uma escuta
repetida das entrevistas, de modo a anotar as falas com a máxima
precisão possível. E é nesse processo da escuta repetida que o
pesquisador refaz o percurso das abordagens, captando nuances e dados
presentes nas declarações, ampliando sua leitura e traçando conexões
entre os dados obtidos nas entrevistas e seu referencial teórico (Bauer;
Gaskell, 2002).
96
Após a transcrição, das respostas de cada entrevistado foram
destacadas frases e palavras relevantes para a pesquisa e elementos
relacionados às categorias de análise. Nesse processo, pôde-se verificar
se estavam sendo abrangidos as categorias de análise e os assuntos de
interesse enfocados na pesquisa. Em seguida, foram destacados os
trechos mais significativos de cada entrevistado, a fim de transpô-los
para o texto da dissertação, procurando relacioná-los a cada categoria de
análise. Na seleção e transposição daqueles trechos para o corpo da
dissertação, buscou-se contemplar o conteúdo apresentado nas 11
entrevistas. Em toda essa fase, foram feitas três leituras completas de
cada entrevista e uma por uma repassada três vezes adicionais, com
olhos postos em cada categoria.
Na etapa de interpretação dos dados, foi importante recordar a
dinâmica das entrevistas. Por exemplo, ao conversar com os
entrevistados, foi necessário gerar estímulos para abordar o assunto,
evitando que a entrevista se assemelhasse a um questionário. Assim, o
entrevistador precisava ser criativo e sensível para usar o roteiro de
perguntas e, ao mesmo tempo, aproximar-se do universo de cada
entrevistado para envolvê-lo no assunto em questão. Ao ouvir novamente
as entrevistas, coube ao entrevistador rememorar aspectos da conversa
com cada pessoa, tais como os emocionais e psicológicos, bem como
elementos do ambiente onde se encontravam. Conforme apontam Bauer
e Gaskell (2002), tais aspectos podem provocar diferentes estímulos,
influenciando a interpretação das perguntas e a emissão de respostas.
Segundo seu entendimento, fica ressaltada a importância da observação
desses fatores, que complementam a leitura e interpretação dos dados.
Cabe observar que, neste trabalho em especial, notadamente na
etapa de seleção dos dados e de sua interpretação, foi necessário
considerar o fator da passagem do tempo afora as categorias de análise
apontadas anteriormente. A dimensão histórica, além de influenciar os
processos de atribuição de valores aos objetos, apareceu em diferentes
97
respostas, da qual se destaca um aspecto: a memória que cada
entrevistado produziu sobre os objetos em questão, principalmente
sobre o walkman41
42
. Constatou-se que os 11 entrevistados não utilizam
o walkman e que se passaram em média 10 anos desde a época em que o
haviam usado. Portanto, observa-se que o ponto de vista dos
entrevistados é constituído por elementos de seu repertório acerca do
walkman, ipod e aparelhos reprodutores de mp3 e por elementos
advindos da memória produzida sobre eles, acessados durante a
entrevista. Nota-se que o ponto de vista do entrevistador também se
pauta pelos mesmos elementos e que ambos os olhares, do
entrevistador e do entrevistado, estão permeados por referências e
experiências geradas ao longo de suas vidas. Desse modo, as
interpretações dos dados obtidos nas entrevistas levam em consideração
importa é lembrar que tudo é passível de mudança no tempo inclusive
41 O walkman teve sua maior comercialização nas décadas de 1980 e 1990, notando-se
uma diminuição crescente nas vendas após a invenção de novas tecnologias, como o
CD, o minidisc, entre outros. Fontes:<http://migre.me/bpYQF>
<http://migre.me/bpYSo>. Acesso em: 15/junho/2012.
42 A Sony continuou produzindo aparelhos de escuta individual com o nome walkman,
uma vez que ele consolidou a marca desse tipo de objeto comercializado pela
empresa. Porém tais objetos são fruto de projetos baseados em tecnologias de
reprodução de música diferentes dos aparelhos anteriores, os quais eram baseados
nas fitas cassetes e rádio e que são o foco dessa pesquisa. Fonte:<
http://www.sony.com.br/default.html> Acesso em: 30/set/2012.
98
3.3.1 Interpretação sobre Escutas: Modos de uso e valores que
permeiam a subjetividade contemporânea
A partir deste ponto, apresenta-se a interpretação dos dados
obtidos nas entrevistas sobre a relação entre os objetos e os modos de
vida proeminentes na época atual, bem como aspectos que influenciam
os processos de atribuição de significados e valores aos objetos. Este
tópico é permeado por trechos das falas dos entrevistados, articulados
ao conteúdo da pesquisa. Na transcrição das entrevistas, são respeitadas
as falas, que são apresentadas tal como foram ditas, o que equivale a
dizer que erros de português, gírias etc. não foram corrigidos.
A primeira parte do texto mostra brevemente uma visão geral
sobre as onze falas. A segunda foi organizada a partir das categorias de
análise nominadas no primeiro capítulo uso, entorno, duração, ponto
de vista, discurso e experiência , as quais se baseiam nos
apontamentos de Cardoso (2012) acerca dos fatores que influenciam a
produção de significado dos objetos. E a terceira parte, com maior
enfoque na relação entre modos de vida e design, foi estruturada para
apresentar as interpretações dos entrevistados sobre leveza, rapidez,
multiplicidade e visibilidade articulada aos conceitos apresentados no
capítulo 2.
A comunicação dos significados e valores atribuídos pelos
entrevistados a seus objetos perpassa as entrevistas do começo ao fim,
sendo possível detectar associações de ideia com mais de um significado
para os dois objetos, o walkman e o ipod. Notou-se também que a idade e
a profissão dos entrevistados foram direta ou indiretamente associadas
aos significados narrados, porém o tipo de atividade desempenhada,
como por exemplo, escrever, exercitar-se etc., e os aspectos envolvidos
em sua realização tiveram maior grau de relação com os significados e
eu uso para
descansar eu uso para me concentrar verbos de ação.
99
3.3.1.1 Visão geral
De modo geral, sobressaíram-se nas onze entrevistas dados que
revelam aspectos do repertório de cada entrevistado, resultantes, em
sua maioria, da memória de suas experiências com os objetos em
questão. Isso se deve ao fato de que os temas abordados nas entrevistas
enfocam as interações e vínculos estabelecidos entre as pessoas e esses
objetos, pois que os significados e valores a eles atribuídos são fruto do
usar, usufruir e admirá-los.
Notou-se que o walkman, de modo especial, mantém uma relação
com o passado, inclusive por ter sido, dos três objetos pesquisados, o
primeiro a ser criado e por sua produção e comercialização terem sido
finalizadas em 201043
. As duas frases abaixo representam essa
referência ao passado. Nelas pode-se perceber que os entrevistados
fazem comparações entre o tempo em que o walkman era
comercializado e os objetos e tecnologias que surgiram depois:
[...] É porque realmente, você trouxe um aparelho do
passado (André).
[...] hoje ele [walkman] é aquele sistema de som portátil
pra fita cassete, que é uma coisa que caiu em desuso
rápido por conta do mp3 (Nilton).
43 Aparelhos celulares e reprodutores de mp3 podem ainda ser encontrados com a
marca walkman, pois a empresa Sony usou o nome do antigo aparelho de fita cassete
para designar sua marca de aparelhos de escuta individual.
Figura 14: À direita, mp3 player NWZ-B172F, à
esquerda, aparelho celular Android Walkman
Z MP3 Player ambos da marca Sony.
Fonte: <http://migre.me/bzLrS>/
<http://migre.me/bzLDU>.
Acesso:04/nov/2012.
100
Alguns entrevistados comentaram sobre a memória que têm dos
objetos e o que eles representaram em sua vida, ou seja, revelaram a
lembrança da época e do uso daqueles objetos:
O walkman acho que é isso, ele significou pra mim, é, em
dois momentos diferentes, mas ambos da memória,
porque ficou a memória da expedição, daquela coisa da
descoberta. E o momento também de, de gravação de
memória, de ter, de ter isso, registro [...] Era ter aquilo,
e aquilo é... Poder andar, poder ouvir o que
eventualmente eu quisesse ouvir, mas... Se eu tivesse
que lembrar de alguma música ou alguma memória
musical eu diria que foi o som da minha casa. O walkman
me trouxe o momento, e não o walkman em si, a música
que eu ouvia nele. É diferente (Juliana).
Eu posso lembrar de mim, que quando eu vi achei,
assim, o máximo. Eu só pensava em mim, andando na
rua, eu consegui só... Eu não sosseguei enquanto
comprei... Passava nas Casas Bahia ou sei lá, na me
lembro direito, naquela época, e via aquele aparelho na
vitrine...Era juntar dinheiro pra comprar um aparelho
daquele, porque aquilo, era o aparelho que eu precisava
(André).
É legal... o walkman. Ele fez assim é... Foi uma das
coisas, que trouxe assim... Uma alegria, uma felicidade.
Né?! Uma motivação. Era gostoso você ter um aparelho.
Porque, é assim, o aparelho, pra você ter uma ideia, o
walkman, como ele era, era um aparelho novo, né?!
Vamos pensar... (entrevistadora:Você lembra, não tinha
nenhuma outra coisa parecida na época?) É, não, não
tinha mesmo. Era um aparelho novo. Inventaram. Não
era um... Reinventaram o rádio e o toca fitas, vamos falar
desse jeito (André).
Afora os aspectos sobre a passagem do tempo, ao responder as
perguntas sobre o walkman e o ipod, os entrevistados revelaram modos
e situações de uso, elementos de suas rotinas e, ainda, indicaram
preferências musicais e comentaram sobre as sensações propiciadas ao
se ouvir música.
101
3.3.1.2 Uso, entorno, duração, ponto de vista, discurso e experiência
Nas perguntas direcionadas para o contexto de uso dos objetos,
os entrevistados narraram situações em que usavam (ou usam) os
objetos, relacionadas às ações que desempenhavam (ou desempenham).
Parte das respostas apresentou-se associada a situações de
deslocamento e aos meios usados para tal, como carro, ônibus, metrô,
trem ou a pé. Além do meio de transporte, outras informações podem ser
retiradas das falas que expressam ideias sobre situações de
deslocamento. No trecho abaixo, o entrevistado relaciona o uso do
walkman companhia
cumprir suas tarefas de office-boy, tais como ir ao banco, ao correio,
entre outros trabalhos administrativos, numa época em que esses
serviços eram feitos presencialmente:
A ideia era ter esse som andando junto comigo. Porque
até então o som, a música que eu escutava e que acho
que todo mundo escutava era nos lugares. Ou em casa,
ou no carro, porque os aparelhos que tocavam estavam
fixos nos lugares. E o walkman foi que levou esse, a
música pra junto com você, pra onde você fosse. [...] Ou
eu tava num ônibus, ou eu tava andando na rua e, cara, é
muito solitário você andar na rua como office-boy,
sabia?! [...] E o walkman era a minha companhia na
época (André).
De modo semelhante ao de André, Juliana relata o uso que
descobriu para seu aparelho reprodutor de mp3 quando morava em uma
cidade e tinha que viajar até outra para trabalhar:
[...] ele foi meu c
faço nada nessa viagem, quando eu vou e volto, às vezes
eu tenho que providenciar um livro e tal, e às vezes ouvir
música faz bem, não quero ler às vezes, eu quero ouvir
música (Juliana).
Nas duas falas, observa-se a recorrência da palavra companheiro,
o que pode nos fazer compreender que, ao escutar música, o usuário
sentia-se menos só. Próximo ao sentido do uso do aparelho dado por
102
Juliana e André está a fala de Nilton, com a menção ao uso da música
para se distrair em determinadas situações:
[...] Ah, isso dá pra lembrar. Lembro que eu usava em
viagens, é... Principalmente viagens Santos São Paulo,
viagens rodoviárias que eu fazia com uma certa
frequência pra visitar primos etc. Basicamente, o
walkman, em viagens. (Nilton).
No trecho destacado a seguir, Nilton amplia essa noção do uso dos
aparelhos de escuta individual em suas atividades cotidianas:
Eu acho que é uma coisa extremamente prática, uma das
coisas boas que a tecnologia nos trouxe, que é a
possibilidade de ouvir música, que é uma coisa que
existe desde a pré-história, em qualquer lugar, em
qualquer situação e acaba trazendo entretenimento pra
um mundo tão estressante como o que a gente vive
(Nilton).
Podem ser encontradas também nos depoimentos passagens que
dão conta da finalidade e da atividade relacionada ao uso dos referidos
objetos, tais como descansar, brincar e de práticas em que há alguma
necessidade de distração, como se vê nos seguintes trechos:
[...] no início era [...] pra minha distração, pro meu
relaxamento, então colocava as fitas em, em viagens...
Então ia escutando, ia de ônibus e escutando o, as
músicas que eu selecionava (Paulo).
[...] Ele só tinha finalidade de ouvir música se eu tava na
rua, junto com os meus amigos, mas no momento dessa
de expedição. Mas mesmo porque o walkman, o que eu
me lembro naquele momento, eu não consegui tirar o
fone e todo mundo ouvir (Juliana).
Eu gostava de escutar andando de bicicleta [sozinha], às
vezes no quarto, sozinha (Patrícia).
[Associa a música] a atividades que eu preciso
transcender aquela atividade, por exemplo, correr
(Nilton).
103
No escritório eu fico bastante tempo com o, com o fone
assim, que há muito tempo eu trabalho escutando
música (Adriana).
É... Quando eu punha o fone eu ficava mais concentrada.
Engraçado que hoje em dia no trabalho, sempre trabalho
com música, escutando no computador. E eu...tipo, às
vezes eu nem percebo a música que tá tocando, sabe?!
Eu penso no trabalho. Por causa do fone (Jéssica).
Eu usava muito dentro de casa, eu lembro. Não saía
tanto com ele na rua, mesmo porque você sempre fica
Era mais pra não incomodar meus pais, pra ouvir
música, coisa desse tipo (Cristina).
[...] Então o walkman era essa coisa da portabilidade, de,
de levar, de poder escutar uma música que não seja sua
casa e tal [...] era poder escutar as minhas músicas em
qualquer lugar, na hora que eu quisesse. É... Sem ter
encheção de saco (Lucas).
Eu gravava as coisas que eu queria falar. Eu comecei
meio que fazendo um diário com, com esse walkman.
Nesse momento ele virou muito mais gravador do que,
do que o walkman mesmo de, de ouvir (Juliana) 44.
As respostas sobre o contexto de uso podem ser sintetizadas
pelos verbos: deslocar-se, movimentar-se, trabalhar, exercitar-se,
entreter-se, relaxar, concentrar-se, conviver, ter privacidade,
registrar sons. Nos três últimos trechos, porém, emergiram dois
elementos diferentes: o ouvir música sem incomodar os outros, na fala
da Cristina, ou sem ser incomodado, na fala do Lucas, e o uso do
walkman como gravador para ter registros pessoais. Os elementos que
Cristina e Lucas apontam referem-se diretamente à escuta individual
que, de maneira implícita, está nos demais depoimentos. Essa questão
da individualidade será novamente abordada mais adiante.
44 Nesse trecho da entrevista, Juliana descreve o uso que fazia do segundo aparelho
walkman que teve, aos 14 anos de idade. O primeiro que teve foi aos 9 anos.
104
Segundo as falas sobre contextos de uso, à medida que os
entrevistados apresentavam suas informações, outros dados
complementavam seus depoimentos. Esses dados indicam
características sobre a configuração formal dos objetos, seu tamanho e
seu peso, por exemplo, e estão diretamente associados às situações em
que usavam ou usam os objetos. Junto a eles também foram elencadas
particularidades sobre modos de funcionamento, tais como sua operação
a pilha, os tipos de mídia usados para escutar e gravar música, o modo
de gravação e o modo de interface entre aparelhos de reprodução e de
armazenamento de música (toca-discos, computadores e rádios), a
escuta por meio de fone de ouvido etc.
Para ilustração, na fala de Luciano, apresentada a seguir, os fones
de ouvido ganharam ênfase em relação aos outros aspectos. Tal ênfase
é atribuída aos fatores novidade e liberdade propiciadas pela escuta
individual, embora essa última esteja associada a aspectos que ensejam
a portabilidade do aparelho. Outros atributos foram elencados pelos
entrevistados, como praticidade, leveza e pequeno tamanho, descritos
como requisitos do objeto, que dão facilidade e colaboram para sua
utilização nas situações de uso descritas acima e estão, portanto, inter-
relacionados. Três passagens selecionadas e transcritas abaixo
demonstram as relações entre configuração formal, modos de
funcionamento e situações de uso:
[...] saíram os tocadores de cassete, mas eles não eram
estéreo e não tinham esse conceito de fone de ouvido. O
conceito de fone de ouvido também foi um conceito,
assim, muito ímpar, muito único. Porque ele te dava, ao
mesmo tempo, uma certa liberdade, que você poderia...,
liberdade até de você ouvir sua própria música e não
precisava ligar o som alto e dava também, o fato do
walkman ser pequeno, te dava a liberdade de, de levar
onde você queria. Só pra você ter uma ideia. Naquela
época a gente saía de moto, e moto naquela época era
um conceito meio rebelde... Moto naquela época... A
gente saía de moto e usava o walkman junto com a moto.
Então a gente ficava ouvindo o walkman, pô... Uma
105
sensação de liberdade total, imagina! Não precisa
carregar carro nas costas e não precisa carregar
aparelho de som nas costas era um conceito muito... Foi
muito revolucionário (Luciano).
Olha, tem muitas coisas diferentes de ouvir num
walkman. Principalmente é você ter a sensação de, da
liberdade mesmo, vamos supor, você tá na rua, tá
chovendo, tá frio ou calor, tá sentindo o vento no rosto, e
você continua escutando som. Entende? Não é aquela
coisa que, por exemplo, você tá no aconchego da sua
casa, no quentinho e desliga tudo e cai no frio, ou cai
num outro, temperaturas, sem a trilha sonora indo com
você. Então, acho que os principais motivos são esses,
né?! Você mudar de ambiente e temperaturas e até
mesmo conversar com várias pessoas ouvindo música,
que era o que eu fazia. Entrava no banco e saía e aí
tava...Vários ambientes sem falar do fator é...do...de
manter você sempre num alto astral (André).
[...] foi uma coisa que foi importante, e o, a maneira que
ele era, o tamanho, uma coisa muito fácil de transportar,
né?! Levava pra tudo quanto é canto. Era... prático. Pra
época, né?! (Paulo).
A sensação de liberdade citada nas falas de Luciano e André
pode ser considerada a revelação de aspectos da individualidade dos
entrevistados. O modo individual de escuta e a possibilidade de ouvir
música em situações de deslocamento, ou ainda a escolha de um
repertório musical individual, apontam para exercícios de autonomia de
escolha. A questão da liberdade emergiu, de modo indireto, em todos os
depoimentos. A fala de Nilton, destacada a seguir, revela claramente
esse aspecto, pois ele declara utilizar o fone de ouvido em casa por
conviver com uma pessoa que não tem os mesmos gostos musicais que
os seus:
[...] eu peguei tanto o hábito de usar o fone, que eu, por
exemplo, não tenho estéreo em casa, a gente não tem
em casa nenhum sistema de som... Até porque eu
convivo com uma pessoa que tem gostos musicais
diametralmente opostos aos meus... (e a entrevistadora
106
pergunta: É?! Ah, entendi... Aí fica cada um no seu
quadrado?) Com certeza (Nilton).
A valorização da individualidade pode também ser percebida nas
entrevistas, em aspectos que revelam a necessidade de criar um espaço
individual, como foi notado em outro exemplo, pelo exercício da
autonomia para ir e vir. O gosto musical e a seleção de um repertório
também são elementos que indicam a demarcação da individualidade.
Nota-
, sem precisar esperar pela aceitação de outros ouvintes ou ter a
preocupação de incomodar alguém, pela característica da escuta
individual por meio do fone, tal como se comentou anteriormente. Na
época em que o walkman foi criado, havia outros aparelhos que
gravavam música e possibilitavam a criação de repertórios musicais
individuais, porém a escuta particular através do fone de ouvido
individual potencializou a sensação de liberdade e escolha.
A possibilidade de se criar um repertório pessoal de músicas,
quer na fita cassete, no caso do walkman, quer com as listas de
reprodução, no mp3/ipod, apareceu associada à ideia de invenção de uma
trilha sonora particular, que pudesse ser ouvida em momentos
específicos, que suscitasse emoções, ou ainda como trilha musical de
situações corriqueiras. A possível interpretação para tais associações
mostra um vínculo entre a escuta de uma música determinada e seu
potencial para estimular outras sensações na pessoa que a ouve, visto
que todos os entrevistados narraram efeitos da música. Notou-se que, ao
falar desses efeitos, eles complementaram com a descrição das
situações e atividades que se relacionavam ao efeito esperado da música,
tais como situações de monotonia, repetição, estresse e concentração
mental.
Para se organizarem os depoimentos relativos aos efeitos
apresentados, pode-se criar uma compilação relativa a três sensações:
prazer, relaxamento e concentração. Cabe observar que essas
107
sensações foram fortemente associadas a situações em que o
entrevistado estava desempenhando uma atividade individual em um
ambiente coletivo, onde a escuta individual propiciava algum tipo de
benefício pessoal, tais como o descrito abaixo:
[Associa música] a atividades que eu preciso
transcender aquela atividade, por exemplo, correr. Eu
acho que fica muito monótono. Eu gosto de correr, mas
fica monótono sem a música. A música, ela te estimula.
(Uso) pra passar o tempo né? Sentir que o tempo passa
mais rápido, sentir que aquela atividade que, pura e
simples, ela é tediosa, ela passa a ser mais agradável,
ela passa a ser, ela corre com mais tranquilidade
(Nilton).
[...] Nossa, porque eu preciso muito da música. A música
funciona muito como estímulo pra mim. Então eu tenho
até a minha programação de músicas, que eu uso pra
correr... Lá pelo minuto tanto que eu sei que eu vou tá
cansada, tem tal música que eu fico mais animada...
Então ela serve de estímulo (Adriana).
[...] Ah, é... Música é estado de espírito, né?! Tem dia, de
manhãzinha, tem dia a vontade já vem escutando Iron
Maiden, sabe?! (Paulo).
[...] Eu associo a situações que eu queria ficar mais
sozinha. Tipo, não situações, não épocas, mas
momentos. [...] Ah, eu sentia mais assim, eu pensava
mais nas coisas quando eu tava com o fone. Mais nas
coisas do que na música, sabe?! (Jéssica).
A música cria um ambiente [...] é a música faz parte de
mim. Faz parte. Então eu levanto de manhã escutando
música. Claro, o meu gênero de música hoje, né?! Não
essa invasão de gente que passa com o carro, com o som
no último volume, invadindo... (André)
Hoje mais do que nunca. Não dá mais. Eu não consigo, a
minha vida ficaria sem graça sem música [...] Que, com a
música eu não to comigo mesmo, eu to com o meu
sentimento, to lidando com eles, assim, tentando, não
deixar afetar (André).
[...] Eu sou, fui muito, fui um cara muito musi..., sempre
fui muito musical desde criança [...] Então no início era
108
mais pro meu, pra minha distração, pro meu
relaxamento, então colocava as fitas em, em viagens...
Então ia escutando, ia de ônibus e escutando o, as
músicas que eu selecionava, né?! (Paulo)
Eu adorava pedalar ouvindo música [...] Ah, ficava assim,
tudo à volta ficava em segundo plano, né?! Você ficava
muito conectado à música. Era legal isso, essa sensação.
Essa sensação que me fazia gostar assim de ouvir, de
ficar me isolando, com os meus pensamentos, ouvindo
as musicas que eu gostava... (Patrícia).
[...] Às vezes eu levava quando, quando ia pra aula de
inglês que aí minha mãe demorava um pouco pra buscar
(Cristina).
Uma boa parte dos entrevistados citou a sensação de prazer em
criar suas próprias listas de músicas, a partir de combinações de
ordem de reprodução, classificação de gênero musical etc. Paulo e
Luciano também falaram sobre os processos na criação e realização das
listas musicais, destacando o caráter manual, ou melhor, menos
automático, quando se tratava da gravação em fitas cassetes e sua
reprodução em um walkman. Os trechos destacados abaixo nos
comunicam e representam essas questões:
Eu tenho músicas que eu gosto, tenho seleções, eu
organizo nos programinhas de, de, de edição de som, de
bibliotecas de música, né?! Mas, o negócio vai
automatizando tanto, você vai... É como o Flüsser fala,
dos funcionários, né?! O cara só tá apertando o botão, a
máquina tá decidindo o que fazer, como que vai ser a
disposição. Escutar música hoje em dia é muito isso,
você só bota o negócio e deixa acontecer o que tá
acontecendo lá, você nem tá se preocupando no que você
tá escolhendo, no que você não tá. É, acho que é isso.
Sabe?! Entendeu?! (Lucas).
Assim, você tem que, eu tinha que gravar num certo
volume, né?! Então tinha que aumentar o volume por
causa disso. Pra compensar o... Realmente eu nunca
gravava num volume muito alto, porque o aparelho ele já
conseguia ... esse aí, toda vez que eu ia gravar, pra
colocar a fita no walkman, se gravava sempre um pouco
mai, mais, maior, mais alto pra poder compensar isso
(Paulo).
109
Eu não comprava fita. Eu gravava do LP as minhas
próprias fitas. [...] Então a gente comprava a fita, virgem,
-
disco pra rodar e fazia uma ligação direta entre o
receptor do toca-disco, né, e o toca-fita, e às vezes a
gente tinha a possibilidade de ter isso embutido, e aí o
toca-disco gravava direto no toca-fita (Luciano).
[...] era todo manual, nós tínhamos que fazer o fade-in
manual [...], significa baixando o som, tinha que fazer,
não era automático, tinha que fazer baixar o som na
mão. Então o toca-disco ia terminando a música, a gente
tinha que sacar até que número a fita dava, por exemplo,
você voltava a fita inteira pra descobrir que ela ia até o
531. Então quando começava a chegar no 525 a gente ia
baixando o som pra cortar e dar aquela atenuação do
som, né?! Era tudo manual, tinha toda uma lógica. Era
muito legal! (Luciano).
Outro dado interessante de se observar aparece na fala de Lucas,
destacada a seguir. Trata-se da diferença entre a produção de seleções
musicais em fitas cassetes para ouvir no walkman e a criação de listas de
músicas, as chamadas playlists, para se ouvir com aparelhos
reprodutores de mp3. Lucas comenta o trabalho que envolvia a criação
de seleções para as fitas cassetes, que demandava mais criatividade e
coordenação entre os tempos de cada faixa musical e o espaço disponível
na mídia, ou seja, a fita cassete.
Porque hoje, como eu me relaciono com esses mp3
players e walkmans da vida é muito diferente de como
eu me relacionava quando tinha o cassete. Porque era
uma coisa muito... Porque é uma construção minha,
assim... Então por mais que fosse, hoje eu to na internet
e eu escolho o que eu quero, antes não, eu tinha um
trabalho de colocar um CD ali e gravar no CD. Ou um
amigo me emprestou um CD que eu não tenho e eu pus
lá e gravei no cassete. Ali tinha uma construção, de uma
edição, que hoje em dia é muito automático, as pessoas
nem percebem que, que você faz isso, sabe?! Era um
tesão você colocar lá a fitinha no negócio e apertar o play
rec juntos e você gravar uma fita cassete pra depois
botar no seu walkman [...] Gravava tudo. Pegava, lá em
casa tinha o aparelho, aí eu dava o play lá nos CDs das
bandas que eu gostava e gravava no cassete, fazia as
minhas edições e, e escutava o que eu gostava.(Lucas).
110
A individualidade pode ser percebida de modo um pouco mais
excêntrico nas falas de Paulo e Juliana, transcritas abaixo. Nelas, é
perceptível um tipo de ligação entre a pessoa e o objeto: é como se a
identidade:
[...] Nossa! Quase todo momento. Quando esquecia
parecia que não tinha uma parte. (Paulo)
Hoje o iphone é a vida dele. / Aham... / Entrevistada: Aí,
é a vida de alguém, tá vendo?! É a vida dele... (Juliana)
De todas as falas sobre o uso dos aparelhos de escuta individual,
auferiu-se outro ponto relevante para interpretação nesta pesquisa: a
relação do walkman e dos aparelhos reprodutores de mp3 com as
atividades esportivas. Essa associação encontra apoio nos discursos em
torno do walkman quando de seu lançamento, em 1979, através dos
meios de comunicação45
. Nas propagandas em revistas, televisão etc.,
apareciam imagens de uso do walkman associado à ginástica, dança e
outros exercícios físicos. É oportuno lembrar que, ao longo da década de
1980, houve um fortalecimento dos aspectos relacionados aos cuidados
com a aparência do corpo, bem como à criação e valorização de
estratégias e técnicas que promovessem, por iniciativa dos próprios
sujeitos, a boa aparência e seu bem-estar. E com isso, a consequente
multiplicação de academias de ginástica, a diversidade de inovações
cosméticas e cirúrgicas etc. (MESQUITA, 2004).
45 Para conhecer algumas imagens, sugere-se consultar o videodocumentário
produzido em 1990 pela BBC (Sony Walkman Design Classics, 1990) e Du Gay et al
(2000).
111
Do exposto acima, podem-se inferir dados sobre as relações
produzidas pelos entrevistados entre suas experiências e as
representações socioculturais dos objetos, que remetem à análise das
funções simbólicas atribuídas aos aparelhos de escuta individual. É bom
lembrar que os significados e valores atribuídos aos objetos estão
vinculados a processos que envolvem tanto aspectos subjetivos quanto
sociais. Entende-se que os dados mencionados podem ter influenciado
tanto os modos de interagir dos sujeitos com seus objetos como as
informações registradas na memória de cada entrevistado. Contudo,
esses processos de produção de sentido e valor são mutuamente
influenciados e mediados tanto por elementos que advêm de repertórios
socioculturais quanto por aspectos pessoais peculiares, tais como as
informações em suas memórias, percepções e experiências vivenciadas.
No tópico a seguir serão apresentadas as relações que os
entrevistados estabeleceram entre os objetos e os quatro valores:
leveza, rapidez, visibilidade e multiplicidade (conceituados no capítulo 2),
bem como os significados que aparecessem em cada relato.
Figura 15: O uso do walkman associado à dança e à ginástica aparece em uma
propaganda veiculada na televisão. Fonte: Vi Sony Walkman Design
1990.
112
3.3.1.3 Leveza, rapidez, visibilidade e multiplicidade.
Para articular os valores atribuídos aos objetos, o pressuposto
desta pesquisa foi questionar a existência ou não de associações entre
leveza, rapidez, multiplicidade e visibilidade, entendidos como valores
relevantes na subjetividade contemporânea, e os aparelhos de escuta
individual escolhidos para este trabalho. Procurou-se dar espaço para
que o entrevistado interpretasse o significado das quatro palavras, sem
induzi-lo a um conceito específico.
Para a leveza, o significado atribuído pelos entrevistados foram os
quesitos peso e tamanho dos objetos, aspectos que foram associados à
facilidade de transporte e à simples compreensão de suas funções e da
operação para se ouvir música. Nesse sentido, o entendimento de leveza
dado pelos entrevistados aproxima-se do conceito de Calvino (1990), pois
a facilidade de transporte e de compreensão do modo de funcionamento
lembra elementos que o autor cita para caracterizar a leveza, como a
precisão e a concisão.
Na maioria dos relatos, a medida do peso e do tamanho do
walkman foi dada pela comparação entre esse objeto e os subsequentes,
como o mp3player e o ipod. Alguns entrevistados disseram que os três
objetos eram leves; outros, que o walkman não o era e que os dois outros
aparelhos, sim.
É, você vê que... Aí entra uma época. Se você me
perguntasse numa época seria algumas questões. Hoje,
é outra, né?! Com certeza leveza hoje é impossível
associar ao walkman, porque naquela época ele era
pesado. Pesar da gente não sentir o peso dele porque a
gente não tinha uma referência maior ou menor peso de
um aparelho igual. Ele era o único. Então o peso que ele
fosse ia ser...É que nem o celular. Eu me lembro do meu
primeiro celular, ele era um tijolão, pesadaço, não tinha
uma outra referência, então ele seria aquele aparelho
pesado, não era pra discutir o peso nem o tamanho
(André).
113
Nossa, leveza, rapidez, visibilidade e multiplicidade... É
engraçado, porque hoje fazer essa associação com o
walkman, ela... Na época fazia sentido, hoje parece que
não faz tanto sentido porque... Os walkmans, por
menores que, né, por mais que eles eram pequenos
assim, eles eram grandes, né?! Então, não sei... Era mais
leve do que um rádio. Portátil. Né?! (Adriana).
De modos diferentes, Lucas e Paulo deram outras conotações de
leveza para o walkman. O primeiro entendeu a leveza em relação ao peso
e ao tamanho do objeto, pensando também na possibilidade de ouvir
música por meios diferentes, através do rádio ou da fita cassete, por
exemplo, e, assim, associou o walkman à leveza. O segundo depoimento
revela que a leveza diz respeito à praticidade do transporte:
Na verdade ele era meio trambolhudo, porque, pô, você
tinha a caixinha, mais o cassete, mais as pilhas, e você
sempre levava pilha extra, porque o negócio acabava
rápido. Nunca foi leve, não. Na época que eu escutava
[...] Essa coisa de pilha. Era muito, não tinha pilha
recarregável. Era um saco ter que ficar carregando
pilha, sabe?! E eles não eram a bateria. Então você
sempre tinha que ter. Mas era legal que, ao mesmo
tempo que ele tinha o cassete, ele tinha rádio também.
Então às vezes você enchia o saco das suas fitas,
colocava lá o rádio. Ah, acho que é isso, do leveza
(Lucas).
O walkman, pelo fato do tamanho da fita, de caber dentro
de um bolso, né, de uma jaqueta, cabe tranquilamente, é
fácil de transportar. Mais em função disso (Paulo).
Questionados sobre a possibilidade de associação entre leveza e
os aparelhos reprodutores de mp3 e o ipod, os onze entrevistados
encontraram facilidade em responder. Além das características de peso
e tamanho, também associaram a leveza à capacidade de
armazenamento de músicas propiciada por esses aparelhos. Nesse caso,
há outro elemento que se sobressai e que remete a um pormenor
pode ser percebida, por exemplo, na proeminência dos softwares
comandando máquinas e sistemas, facilitando a comunicação entre as
114
pessoas e influenciando o design dos aparelhos, que apresentam
tamanho e peso cada vez menores.
O mp3 essa coisa da leveza é mais portátil, é mais
simples, que hoje em dia é um trequinho de nada, você
leva gigas e gigas de música, e... E tá lá, né, você tem um
monte de músicas, é rápido, você escuta, se você tem
acesso à internet você pesquisa, procura, faz não sei o
que. É... e o outro é agilidade? (Lucas)
Bom, aí eu acho que a leveza tem muito a ver, porque
hoje o... Tem o ipod que é um clips que você prega na
roupa. Então assim, pra fazer exercício ele é bem mais
leve, é bem mais prático. E aí nesse caso acho que entra
também a, aí multiplicidade dele porque enfim, você tem
ele de vários tamanhos. Pode usar ele pra armazenar
música, vídeo, é... Arquivos, até ele vai, eu acho
(Adriana).
Leveza também, super leve, menor ainda, ó o tamanho
disso. Inclusive existe hoje, pessoas correm muito com
os mp3. Correm muito, né, escutando música, né. Então
ele cabe. Já existe até agasalhos que têm um bolso do
mesmo tamanho assim, ele cabe ali diretinho, você
coloca dentro daquele bolso ali, aquilo ali, e tem alguns
suportes também, né (Paulo).
Leveza, sim. Porque é uma coisa portátil, tanto o
discman quanto o iphone, dadas proporções, né?!
(Jéssica).
A rapidez foi associada à agilidade e à facilidade/dificuldade
operacional, tanto para se escutar música quanto para se criar ou
adquirir mídias de áudio (fitas cassete, CDs e arquivos digitais) e
armazená-las nos aparelhos, como é o caso dos aparelhos de
reprodução de mp3 e ipods.
Essa interpretação coletiva tende ao senso comum, tal qual em
relação à leveza, mas também remete a aspectos apontados por Calvino
sobre a rapidez (1990). O autor salienta a importância da concatenação
das partes que formam um texto, como o ritmo e a métrica, para
produzir a sensação de rapidez ou de lentidão. Para ele, a concisão
115
contribui para a produção de conexões entre as partes e o todo de um
texto, estimulando-a, o que, no caso em análise, pode ser lido pela
conexão entre as funções práticas dos objetos e as formas de uso
(escolher músicas, produzir listas, reproduzir aleatoriamente ou em
sequência definida etc.).
(Sobre o ipod) A rapidez sem dúvida, porque você tem
milhões de músicas, você gira ali rapidinho, escolhe o
artista, muda o artista, muda da música pro vídeo, volta
do vídeo pra música. Alguns têm as rádios também, mas
aí é mais podcast assim, que baixa, né?! (Adriana).
(Sobre o walkman) Acho que a rapidez seria mais no
sentido, e aí também talvez entraria a multiplicidade
dele, você poder levar pra qualquer lugar, aonde
quisesse escutar uma música ali, ele tava junto
(Adriana).
A visibilidade foi amplamente associada ao valor simbólico de
status. Csiksentmihaly e Rochberg, citados por Coelho (2006),
compreendem que o valor de status é atribuído a um objeto segundo os
seguintes aspectos: raridade, idade, preço e associação do objeto com
uma pessoa proeminente, ou seja, se um indivíduo de certo prestígio
utiliza um objeto, determinado valor pode ser-lhe atribuído. Campanhas
publicitárias que convidam atores de televisão, comumente celebridades,
para aparecer usando o objeto em uma propaganda são exemplo disso.
Outro exemplo é revelado no trecho abaixo da fala de Adriana sobre o
walkman
mais pelo item ali, de ter o walkman, as pessoas
tinham... E às vezes, às vezes em viagem, escutava ali,
era mais isso assim... (Adriana).
Em outras falas, a atribuição desse status aparece por meio de
outras palavras:
116
Nossa, eu ver aquele aparelho na loja, ou alguém com
aquele aparelho, eu queria ter aquele aparelho... era um
aparelhinho legal, tinha uma qualidade de música boa,
sem falar que ele não era só rádio, era toca-fita (André).
Era o sonho de consumo da minha vida, era aquela coisa
mais mágica de ver na televisão... Hahahaha (Juliana).
Visibilidade?! É, ele chama a atenção (o walkman).
Quando você tava escutando as pessoas acho que
olhavam pra você, só porque você tava com aquele fone
de ouvido, não sei o quê. Era um negócio que... É, eu
acho que assim, chama a atenção. Chama. Até hoje
chama a atenção. Até hoje em dia você vê as pessoas no
metrô com aquele quadradinho no pescoço e o negócio...
(Lucas).
Ah, porque hoje ter um iphone é super legal... É super
legal ter um iphone. Na época, eu num lembro, mas na
época devia ser super legal ter um discman também
(Jéssica).
É?! Hoje em dia, essa coisa do mp3 todo mundo quer ter,
né?! Todo mundo quer mostrar que tem um fonezinho
branco, que é o negócio da Apple, que se for, é branco,
ah, é o da, é aquele que é legal. É... Hoje em dia, tá
voltando essa moda de fone, de headphone grande, né?!
Que tampa a orelha inteira. Isso eu acho legal, né,
porque a qualidade do som é muito superior e tal
(Lucas).
Outra interpretação para a visibilidade foi relacionada aos
aspectos aparentes dos objetos, tais como as características estético-
formais expressas na fala de Paulo:
Visibilidade eu penso num... Na beleza dele, né. Assim,
em como a pessoa vê assim, que às vezes você até vai
comprar e você vê, é bonito, o meu era super bonito, o
vidro, do walkman era todo fumezinho, verde sabe?!
Então, fumê o vidro, verde, então ele era muito bonito né.
Esses aqui são mais assim, em termos de parte bonita
não têm nada, né (Paulo)
Aliás, mais as pessoas, chama, as pessoas quando, vão
mais por visibilidade do que pelo aquilo que ele pode
tocar né, pode reproduzir. Eu já penso aquilo, né, a coisa,
ele é bonito só que às vezes a... a... O nível de ruído que
117
ele vai trazer pra mim, de qualidade, não é suficiente
(Paulo).
Em duas entrevistas, a visibilidade não foi associada ao ipod, pois
a interpretação dada a esse conceito remetia ao valor de status, devido
às possíveis dificuldades de se possuir um aparelho como esse:
Visibilidade?! Puxa, visibilidade eu não sei... Eu não sei
se ele hoje, eu acho que talvez ele é muito mais comum
do que talvez o walkman era pra época. Então eu acho
que hoje você ter o ipod não tem tanta visibilidade
quando tinha ter um walkman assim. Eu acho... Não sei,
que hoje tem tantos, tem o ipod, tem o mp3, enfim, todo
dia sai um diferente, eu acho que essa questão,
associada à moda como era, enfim, comprando os dois,
não sei se é bem isso assim (Adriana).
Visibilidade eu acho que hoje em dia já é uma coisa tão
comum, que não traz tanta visibilidade (Cristina).
Adriana e Cristina, por entenderem que a visibilidade se refere à
posse e raridade de um objeto, julgam que o ipod não se associa a esse
valor, uma vez que há maior oferta de tipos de aparelhos reprodutores
de mp3 e de preços em comparação com a época em que tinham o
walkman. Nilton comenta, em outro momento da entrevista, sobre essa
facilidade de possuir um aparelho reprodutor de mp3:
[...] porque o mp3 ficou muito barato, porque se você for
olhar, até vendia o walkman no camelô, mas o mp3 é
muito mais barato e você tem muito mais acesso hoje
(Nilton).
As interpretações dos entrevistados para a visibilidade mantêm
uma relação com imagens, quer sejam projetadas e produzidas para
gerar um repertório acerca dos dois objetos, quer sejam imagens
internalizadas pelos próprios usuários. Isso remete a um dos aspectos
destacados por Calvino (1990) ao tratar da visibilidade como relativa aos
processos imaginativos no mundo contemporâneo e ao questionar se o
118
-
A interpretação das entrevistas também leva a Lipovetsky (2004),
quando comenta a exacerbação do valor da imagem, seja por meio do
discurso das aparências pessoais, seja articulada pela publicidade ou
pela cultura de mídia, conectada à originalidade e à novidade em
diversos sentidos que podem ser observados de modo contundente,
especialmente a partir de um enfoque dos meios de comunicação. Nesse
contexto, a visibilidade também pode ser notada como um vetor
fortalecido da subjetividade contemporânea e entendida como um dos
fatores que estimulam o individualismo, entre outras forças que
permeiam a contemporaneidade.
Valer-se de diferentes modos de reproduzir música pelo rádio,
pela fita cassete ou por arquivos de áudio digitais oi a associação
estabelecida pelos entrevistados para a multiplicidade. Além da
diversidade de modos de reprodução, armazenar e reproduzir outros
tipos de arquivo, como imagens e vídeos, foi citado como uma função
adicional dos aparelhos, remetendo à ideia de multiplicidade de usos e
funções.
Na verdade, o negócio [mp3 player] virou um curinga,
né?! Essas coisas digitais, você escuta música,
transporta arquivos da faculdade. É... Passa vídeos e
coisas pra outros amigos, então o negócio vira
multitarefa (Lucas).
Talvez a multiplicidade talvez tenha mais relação pra
mim porque [...] Eu tive dois momentos com o walkman,
ele foi meu gravador e meu, meu aparelho pra ouvir
música [...] (Juliana).
Porque dava pra ouvir música, gravar e ouvir rádio, né?!
(Nilton).
[...] multiplicidade, porque acho que na época tinha a
possibilidade de você ouvir a fita e o rádio (Cristina).
119
Multiplicidade eu acho que pro iphone. Ele é usos
múltiplos, além da música (Jéssica).
[...] você poder levar pra qualquer lugar, aonde quisesse
escutar uma música ali, ele tava junto (Adriana).
Ah, isso aí, isso é legal, multiplicidade. Essa coisa né,
você bota lá o que você quiser, você faz a tua edição de
fita do jeito que você quer, você bota música clássica,
um jazz, você coloca um samba, coloca o que for. Isso
que é muito legal. E quando tudo se cansa, você escuta
uma rádio, que tem lá milhões de rádios AM e FM,
estação 1, 3, 2, sei lá, o que for, e... É legal. E hoje em
dia, com mp3 é mais ainda, né?! Porque ele, além de tá
tocando todas essas músicas você tá levando arquivo,
você tá fazendo, levando foto, você tá imprimindo não sei
o que, tem até impressora que você espeta o negócio, já
imprimi, não precisa de ter interface com o computador.
É, multiplicidade é uma palavra bem forte pra tudo, o
que virou o walkman e o que é um walkman hoje, né?!
Que vai, não existe hoje um instrumento eletrônico que
só toque música, existe?! Ele sempre tem que ter uma
funçãozinha a mais que senão não vende. É... é... Acho
que é isso, multiplicidade. O que mais que é
multiplicidade?! Multiplicidade pela Itunes Store
também, né?! Você tem tudo ali. E na Itunes você só não
compra, você compra livros, você compra não sei o que
mais, é... É bem múltiplo isso (Lucas).
Nesta fala de Lucas, podem-se destacar elementos que
demonstram os inúmeros modos de uso de um objeto, a variedade de
funções e a interface com outros objetos, como apontado por outros
entrevistados. Esses elementos são convergentes com a conceituação
traçada por Calvino a respeito da multiplicidade, na qual ele entende que
cada palavra, elemento do texto ou objeto tem potencial de gerar e
Em outro trecho da fala de Lucas acerca da multiplicidade,
observa-se a continuidade dessa ideia, na qual também se podem
verificar diferenças no tipo de relações que as pessoas criam com os
objetos:
120
[...] ao mesmo tempo surge esses cara funkeiro indo no
busão e no metrô que querem escutar a música sem
fone de ouvido. De uma forma bem excêntrica, é uma
multiplicidade bacana, né?! Porque, enquanto o cara tá
lá no (som), naquele puta som pesado, o outro tá lá
acesso a isso, é fácil, é barato, não é mais caro (Lucas).
121
CONSIDERAÇÕES FINAIS: ASSOCIAÇÕES ENTRE OBJETOS E
VALORES PRESENTES NA CONTEMPORANEIDADE
O design é um campo de possibilidades imensas no
mundo complexo em que vivemos [...]
(Rafael Cardoso) 46
As décadas compreendidas entre os anos 1950 e 2000
representam um período de emergência de mudanças no campo do
Design, percebidas na manifestação de diferentes enfoques e tópicos que
o permeiam, tais como questões metodológicas e projetuais, técnicas e
tecnológicas, além de aspectos relacionados à comercialização, à
circulação e ao consumo dos objetos.
Inúmeras variáveis contribuíram para essas mudanças, entre elas
a flexibilização da produção industrial, a intensificação de
transformações tecnológicas, o fluxo acelerado de informações e as
mudanças no sistema econômico no ocidente, delineadas por aspectos do
fenômeno que se costuma denominar de globalização. Referência?
Junto às transformações socioeconômicas, percebem-se
variações nas forças que atravessam a subjetividade, as quais foram
apontadas por Lipovetsky (2004) como individualismo, consumo,
efemeridade e esteticismo, as quais vinham, desde a Modernidade,
estabelecendo suas potências, acentuadas na contemporaneidade.
Em diálogo com o autor, nesta pesquisa tais atributos foram
enfocados para que se compreendessem e delineassem algumas das
transformações ocorridas ao longo do século XX. Pautou-se pelo estudo
do autor para se elencarem especialmente algumas lógicas que
percolam os modos de vida contemporâneos, a exemplo da
46 (CARDOSO, 2012, p.134).
122
obsolescência e da expressão individual. Assim se procede, a fim de que
essas lógicas possam ser relacionadas com o campo do Design, uma vez
que elas permeiam suas práticas e estão possivelmente ligadas ao
aparecimento e fortalecimento do estímulo ao consumo, ao prazer das
novidades, entre outras variáveis que delineiam a subjetividade nos dias
atuais.
Com tal intenção, coube a esta pesquisa melhor compreender as
inter-relações entre o Design e os modos de vida contemporâneos, no
intuito de convergir para a investigação de conexões entre objetos e
valores pertinentes a esse contexto. Para tanto, destacou-se um dos
tantos verbos que configuram os modos de vida ouvir música foi o
enfoque da pesquisa, neste estudo sobre modos de escuta, bem como
sobre os dois objetos: o walkman e o ipod.
Aqui foram constatados, por meio do depoimento de onze pessoas,
significados e valores atribuídos aos dois objetos, que mantêm conexão
com as forças e lógicas enfocadas neste trabalho, especialmente a
individualidade, a efemeridade e a mobilidade. Assim, é oportuno
lembrar Guattari e Rolnik (2005), que comentam o fato de a criação do
walkman
pessoas e a música, tendo ela passado a migrar de um aparelho
fontes externas.
Para os autores, a invenção do walkman foi também a invenção de um
universo musical, pautado pela escuta individual, seja pela escolha do
repertório, seja pela escuta em si, feita de forma personalista, através de
um fone de ouvido.
Pela perspectiva dos estudos culturais, Du Gay et al. (2000), por
sua vez, entendem que o walkman faz parte da cultura contemporânea,
pois sua criação influenciou diversas práticas sociais, como a sensação
de estar em dois lugares ao mesmo tempo e/ou fazendo coisas
diferentes e simultâneas. Isso é exemplificado em ações tais como andar
123
de metrô ou ônibus e ouvir música, ou trabalhar e ouvir música
simultaneidades capazes de ativar um espaço imaginário e uma
de um princípio que permeia o significado de portar um walkman desde
sua criação, e que passou a ser compartilhado por um número cada vez
maior de pessoas com acesso ao produto. Nas palavras dos autores, o
walkman
Nossas cabeças estão cheias de conhecimentos, ideias e
imagens sobre a sociedade, como ela funciona e o que
significa. Pertencer a uma cultura fornece-nos acesso a
tais estruturas compartilhadas ou "mapas" de
significado que usamos para fazer e entender as coisas,
de "fazer sentido" do mundo, formular ideias e de se
comunicar ou trocar ideias e significados sobre o
assunto. O Walkman está agora firmemente situado
sobre os "mapas de significado" que compõem o nosso
'know-how' cultural. (DU GAY et al., 2000, pp.8-10,
tradução nossa).
O entendimento de Du Gay et al. (2000) corrobora os estudos
apresentados por Sudjic (2010), para quem o Design nas sociedades
contemporâneas ocidentais se apresenta como uma linguagem não
verbal, transmissora de [...]
com que se molda [...] objetos e confecciona mensagens que eles
ibid., p.21). Nesse sentido, o autor comenta que:
O papel dos designers mais sofisticados, hoje, tanto é ser
contadores de histórias, fazer um design que fale de
uma forma que transmita essas mensagens, quanto
resolver problemas formais e funcionais. Os designers
manipulam essa linguagem com mais ou menos
habilidade ou encanto, para transmitir [...] história.
(SUDJIC, 2010, p.21).
refere demonstram como os objetos se vinculam aos modos de viver e de
conviver, sonhar, consumir etc.. E como os designers podem se apropriar
124
das relações entre objetos e subjetividade para atribuir ou reforçar
significados e valores.
Essa relação foi discutida por Breslau (2010) a partir da premissa
de que o ato de projetar pode influenciar e configurar realidades. Para
ele, tal argumento parte do princípio de que os objetos são sensíveis,
interagem com seus usuários, reagindo às ações envolvidas nas relações
de uso e usufruto. Em suas próprias palavras,
[Os objetos] se relacionam mais como fruição do que
como uso propriamente dito. O utente, por outro lado,
deixa de ser passivo, não interativo, estático, para atuar
como criador-interagente. (BRESLAU, 2010, p.26).
Seu entendimento está intimamente relacionado aos processos de
significação comentados por Cardoso (2012), que se conectam às
experiências individuais e coletivas, ao entorno e ao contexto onde se dão
as interações de uso. Está relacionado também ao ponto de vista da
pessoa que interage com o objeto, aos discursos que proliferaram e se
criaram em torno desse objeto etc.
Breslau (2010) compreende que as variações de significado e valor
dadas a um objeto referem-se a todos esses aspectos e estão
intimamente ligadas à individualidade de cada usuário. O autor contribui
para o entendimento e ampliação dos processos de significação e
atribuição de valor expostos por outros autores, como Sudjic (2010) e
Cardoso (2012). Para ele, cabe ao Design
lógica clássica dos sentidos, para ganhar toda uma nova sensibilidade
, assim,
que tenham em potência a fruição poética própria do brincar como modo
Em um momento histórico em que o individualismo, o esteticismo
e a efemeridade se revelam como forças proeminentes nos modo de
vida, a capacidade de criar e atribuir significados e valores aos objetos
125
absorve um caráter múltiplo. É uma qualidade que lembra o movimento
ininterrupto dos ziguezagues imaginado por Calvino (1990, p.48) para
representar dinâmi
acontecimentos, puntiformes, suscitam uma abundância de
pensamentos, sensações e imagens.
126
127
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131
ANEXO 1: ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
Nome / Idade / Profissão
Perguntas:
Você conhece o Walkman? Teve um?
O que é um Walkman para você?
E o que faz você querer um walkman?
Como você usa? E em quais situações? (Você costuma andar a pé? E
de transporte coletivo?)
Você sente diferença em ouvir música pelo walkman? Por quê?
Você tem um aparelho de tocar mp3?
Poderia me dizer quais as suas funções? E qual é a mais importante
pra você?
Você vê diferença entre um walkman e outros aparelhos
reprodutores de música, de uso individual? Quais?
Você conhece o ipod? Tem um?
Você vê diferença entre um ipod e os outros reprodutores de mp3?
Quais diferenças?
Vou te falar 4 palavras e gostaria que você me dissesse quais delas
podem ser associadas ao walkman: leveza, rapidez, visibilidade,
multiplicidade. Você pode me dizer por que cada uma delas se associa
ao walkman?
Vou te falar 4 palavras e gostaria que você me dissesse quais delas
podem ser associadas ao walkman: leveza, rapidez, visibilidade,
multiplicidade. Você pode me dizer por que cada uma delas se associa
ao ipod?
Gostaria de falar algo mais sobre seu aparelho reprodutor de
música?
132
ANEXO 2: PERFIL DOS ENTREVISTADOS
Data da
entrevista
Idade Profissão Local da
realização da
entrevista
Duração
da
entrevista
Nilton 12/07/2012 35 Jornalista Restaurante
André 14/07/2012 45 Livreiro Na livraria dele
(após o horário de
trabalho)
Paulo 16/07/2012 51 Prof. Educação
Física
Na academia onde
trabalha, durante
seu intervalo
Jéssica 16/07/2012 24 Engenheira Restaurante
Juliana 16/07/2012 29 Administradora Casa da
entrevistadora
Lucas 16/07/2012 29 Publicitário e
assistente
fotográfico
Restaurante
cafeteria
Adriana 18/07/2012 29 Arquiteta Restaurante
Luciano 18/07/2012 50 Engenheiro Via skype
Cristina 20/07/2012 30 Arquiteta Casa da
entrevistadora
Patrícia 23/07/2012 37 Advogada Escritório dela
Viviane 23/07/2012 37 Advogada Escritório dela