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DOSSIê DOSSIê FOTO: UN Photo/McLain

Dossiê - Ministério das Relações Exteriores · 2016. 4. 7. · Dossiê Desde seu surgimento, a ONU tem como funções precípuas manter a paz internacional e promover a coopera-ção

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FOTO: UN Photo/McLain

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“Uma das minhas memórias mais remotas é andar numa estrada enlameada rumo às montanhas, deixando atrás meu vilarejo em chamas. Havia uma escola. Logo, chegaram as Na-ções Unidas. Eles me alimentaram e também minha família, minha comunidade”. O relato de Ban Ki Moon, relembrando a destruição causada pela Guerra da Coreia, simboliza o poder da ONU de auxiliar populações civis em crises humanitárias, promovendo o respeito aos direitos humanos e condições mí-nimas de existência em diversos cantos do mundo. A este as-pecto positivo opõe-se uma estrutura institucional complexa que, para muitos, se superpõe e é ineficiente. Para uns, a ONU seria como Ianus, um deus bifronte. Sua ubiquidade, porém, não permite tal simplificação.

7As Nações Unidas aos

ANOSVinícius Fox Drummond Cançado Trindade

e Pedro Mariano Martins Pontes

Pedro Leão Velloso, Ministro das Relações Exteriores e chefe da Delegação Brasileira, assinando a Carta das Nações Unidas, em uma cerimônia realizada no edifício do Veterans’ War Memorial em 26 de junho de 1945.

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Desde seu surgimento, a ONU tem como funções precípuas manter a paz internacional e promover a coopera-ção entre os povos. Com o passar do tem-po, porém, a atuação do “sistema ONU” adquiriu tamanha complexidade que, nos dias de hoje, não apenas determina parâmetros para diferentes regimes in-ternacionais como também influencia políticas públicas nos mais diversos âm-bitos, compondo – com as instituições de Bretton Woods e a Organização Mundial do Comércio – a dimensão multilateral da governança global.

Setenta anos após o fim da Segunda Guerra, o multilateralismo enfrenta di-versos desafios e revela uma série de de-bilidades. O Conselho de Segurança tem sido incapaz de lidar com as principais ameaças à paz internacional, o impasse na Rodada Doha e a não efetivação da última reforma do FMI têm estimulado iniciativas que contornam o arcabou-ço multilateral, e a imperativa redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) opõe-se à necessária obtenção de acordo intergovernamental equânime

e justo, com meios de implementação adequados. Além disso, busca-se con-vergência em torno de diretrizes que guiarão a promoção do desenvolvimen-to sustentável e dos direitos humanos, sem ignorar particularidades culturais e as diferentes capacidades institucio-nais e financeiras. À luz do exposto, o presente artigo analisa diferentes di-mensões da atuação das Nações Uni-das, identificando alguns dos principais processos negociadores e desafios en-frentados pelo sistema ONU.

A Agenda de Paz e Segurança Com o objetivo de “preservar as gera-ções vindouras do flagelo da guerra”, atribuiu-se às Nações Unidas a função de manter a paz internacional. Passa-dos 70 anos, a atuação da ONU nessa seara revela um contraste entre avan-ços e impasses. No centro do meca-nismo de segurança coletiva instituído pela Carta de São Francisco, o Conse-lho de Segurança tem sido incapaz de

enfrentar as principais ameaças à paz internacional. Intervenções militares unilaterais fomentaram o radicalismo islâmico e incrementaram sobremanei-ra a instabilidade internacional. A ina-ção do Conselho no contexto da guerra civil síria e o fornecimento de armas para grupos anti-Assad ensejaram a ascensão e o fortalecimento do autode-nominado Estado Islâmico, bem como a eclosão da maior crise de refugiados desde o fim da Segunda Guerra. Na Lí-bia, excedendo os limites da autoriza-ção do Conselho, a intervenção gerou grande fluxo de armas a grupos tribais que, posteriormente, disputariam o po-der entre si e ampliariam a instabilida-de regional. A marginalização do Con-selho de Segurança nas deliberações sobre o uso da força e o desrespeito a seus mandatos revelam a urgência da reforma do órgão, não apenas de sua composição, mas também de seus mé-todos de trabalho.

As Nações Unidas também desempe-nham papel fundamental na promoção do desarmamento, servindo de platafor-

Soldados uruguaios da MONUSCO observam o avanço de uma milícia rebelde em direção à cidade. Norte de Goma, República Democrática do Congo, março de 2013.

FOTO: UN Photo/Sylvain Liechti

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ma para a adoção de importantes acor-dos, como as convenções para a proibição de armas biológicas, armas químicas e, recentemente, o Tratado sobre o Comér-cio de Armas Convencionais. A despeito desses marcos importantes, resta muito por fazer nesse âmbito, como reconheceu o Secretário-Geral em 2012: “the world is over armed and peace is underfunded”. Quanto à regulação de armas nucleares, o histórico também é controverso. Desde o surgimento da ONU, nenhum artefato nuclear foi empregado em conflito, mas pouco tem sido feito para reduzir o ar-senal dos países nuclearmente armados, um dos pilares do TNP.

As operações de manutenção da paz são, em diversos países, o aspecto mais visível e impactante da ONU, estando no centro das deliberações do Conse-lho de Segurança. Reconhecendo que a manutenção da paz exige esforço além do apoio emergencial ou do uso da for-ça, as missões de paz têm buscado con-jugar presença militar com o apoio ao desenvolvimento econômico e institu-

cional após situações de conflito, visto como condição para a estabilização. Exemplo paradigmático dessa evo-lução é a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH), cujo componente militar tem sido co-mandado por generais brasileiros des-de 2004. Reconhecendo a inter-relação entre estabilidade e desenvolvimento, a diplomacia brasileira tem enfatizado a importância da coordenação entre o Conselho de Segurança e outros foros e agências da ONU, de modo a assegurar a transição efetiva para a paz em cená-rios pós-conflito.

Marco importante na promoção da paz e da estabilidade foi a criação da Co-missão de Consolidação da Paz (CCP), em 2005. Como as cicatrizes deixadas pela guerra tendem a estimular a rein-cidência da violência, a Comissão foi criada com o objetivo de auxiliar o de-senvolvimento institucional, social e econômico de países recém-saídos de conflitos, mobilizando recursos, atu-ando preventivamente contra focos de

instabilidade e propondo estratégias integradas para a construção da paz. Por incluir ampla gama de atores em suas reuniões – vizinhos regionais, pa-íses doadores, instituições financeiras internacionais e países que contribuem com tropas –, a Comissão enseja diálogo mais abrangente do que aqueles condu-zidos no âmbito do Conselho de Segu-rança. Além de presidir a configuração dedicada a Guiné-Bissau, coordenando o auxílio internacional ao país, o Brasil assumiu, em 2014, a presidência anual da Comissão. Num momento de grandes desafios, promoveu importantes inicia-tivas, como as sessões dedicadas à gera-ção de receita em países recém-saídos de conflitos, à questão da igualdade de gênero e aos impactos da crise do ebola nos principais países afetados.

Paralelamente ao apoio ao desenvol-vimento como elemento estabilizador, observa-se tendência à autorização de mandatos mais “robustos” para que, em contextos de crônica instabilidade, as operações de paz possam alcançar seus

Soldados indianos da MONUSCO na província de Kivu do Norte montam guarda sobre Bunagana e sobre o reduto rebelde Runyonyi.

Membros do Batalhão de Engenharia brasileiro da MINUSTAH constroem ponte a norte de Porto Príncipe.

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Campo de refugiados de Za’atri, na Jordânia, onde estão alojados dezenas de milhares de sírios.

objetivos. Na República Democrática do Congo, a Resolução 2098 (2013) inovou ao criar uma brigada de intervenção autorizada a “neutralizar” grupos re-beldes, turvando ainda mais a distinção entre “peacekeeping” e “peace enforce-ment”. Operações anteriores já haviam sido autorizadas a usar a força para pro-teger civis e defender seu mandato, mas é inédita a criação de unidade explicita-mente ofensiva, de grandes implicações políticas e legais.

À luz dos crescentes desafios en-frentados pela ONU em seus esforços de manutenção e consolidação da paz, três processos de revisão revestem-se de grande importância no contexto atual. O primeiro corresponde ao Painel Inde-pendente de Alto Nível sobre Operações de Paz, presidido pelo ex-presidente timorense José Ramos Horta. Quinze anos após o Relatório Brahimi, o painel deverá formular críticas e estratégias

para o aprimoramento das operações de paz da ONU. Os outros processos são a Revisão da Arquitetura de Consolidação da Paz – que inclui, além da Comissão, o Fundo de Consolidação da Paz e o Es-critório de Apoio à Consolidação da Paz – e a revisão da participação das mulhe-res em questões de paz e segurança, que analisa a inclusão da perspectiva de gê-nero nas operações de paz e nos proces-sos de consolidação da paz. Caberia ain-da destacar a atuação das Nações Unidas como foro para discussão sobre Questão Palestina, e a imposição de sanções pelo Conselho de Segurança.

Desenvolvimento e Sustentabilidade“Promover o progresso econômico

e social de todos os povos” é, segun-do a Carta da ONU, um dos objetivos fundamentais da Organização. Setenta anos depois de sua criação, a humani-dade vive, certamente, em condições

melhores do que em 1945, mas a rele-vância das Nações Unidas para essa melhoria está longe ser consensual. Por um lado, o ECOSOC foi esvaziado de seu propósito original pelas grandes potências – que nele não têm prerroga-tivas especiais –, e suas recomendações seriam, com frequência, desrespeita-das. Ademais, o crescimento exponen-cial de países como Japão, Alemanha e China, pouco ou nada teve a ver com a ONU. No entanto, os êxitos das Nações Unidas não são negligenciáveis. Além de auxiliar o processo de descoloniza-ção ao redor do mundo, a ONU prestou apoio técnico imprescindível a países recém-independentes e serviu de plata-forma para a elevação do debate sobre desenvolvimento e sustentabilidade ao topo da agenda diplomática.

Partindo da constatação de que o “laissez-faire” preconizado pelas ins-tituições de Bretton Woods ampliava a

Dois deslocados internos do campo de Zalingei, Sudão, à frente de pôsteres pedindo intervenção da ONU em Darfur.

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FOTO: UN Photo/Mark Garten

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disparidade de renda entre os países, o então recém-criado Grupo dos 77 utili-zou a ONU para elevar a desigualdade entre as nações ao topo da agenda in-ternacional, sendo consequências desse processo a criação da UNCTAD em 1964 e do PNUD em 1965. A ONU foi também exitosa na promoção da cooperação in-ternacional em temas sociais. Com base na ideia de que preconceitos culturais, religiosos e étnicos estimulariam o na-cionalismo exacerbado e a rivalidade entre os países, a UNESCO foi criada ainda em 1945. Nos anos seguintes, con-forme as necessidades imperativas dos países devastados pela guerra, seriam criadas entidades específicas para tratar de crianças (UNICEF), saúde (OMS), refugiados (ACNUR), agricultura (FAO), entre outras, que se somariam a insti-tuições mais antigas, como a OIT. Aos poucos, o foco dessas instituições mi-grou da reconstrução pós-guerra para a promoção de suas agendas em países de baixa renda. Foros mais democráticos, tais agências logo se tornariam espaços propícios para a articulação e a vocali-zação de demandas de países em desen-volvimento.

A atuação das Nações Unidas nes-sa seara tornar-se-ia ainda mais visível com as grandes conferências da década de 1990 – ex. Cairo, Pequim, Copenha-gen - que estimularam a articulação en-tre governos e sociedade civil e chama-ram a atenção para diversos problemas transnacionais que exigiam maior coo-peração. Particularmente importante foi a Rio 92, que reuniu mais de 100 Chefes de Estado e cerca de 2000 ONGs. Além de ser um marco para discussões futuras sobre mudança do clima, desertificação, biodiversidade, entre outros temas, a Rio 92 consolidou o conceito de desen-volvimento sustentável, entrelaçando as discussões sobre meio ambiente e desenvolvimento e pautando esforços posteriores.

A Conferência das Nações Uni-das sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) assinalaria o compromisso da comunidade internacional com a indis-sociabilidade das dimensões social, am-biental e econômica do desenvolvimento sustentável, cuja promoção depende de mecanismos de financiamento apropria-dos. No mesmo contexto, firmou-se o compromisso com a erradicação da po-

breza extrema até 2030. Para tanto, foi decidido que os Objetivos do Milênio (ODM) - conjunto de objetivos, metas e indicadores que nortearam a promoção do desenvolvimento entre 2000 e 2015 – serão sucedidos pelos Objetivos do De-senvolvimento Sustentável (ODS), que representam a necessária confluência de três processos distintos: as conferências ambientais, a agenda social e o debate so-bre o financiamento ao desenvolvimento.

A partir do mandato da Rio+20, for-mou-se um Grupo de Trabalho Aberto na Assembleia Geral que chegou a uma proposta que contém 17 objetivos e 169 metas, incluindo temas como erradica-ção da pobreza, segurança alimentar e agricultura, saúde, educação, igualdade de gênero, energia, água e saneamento, padrões sustentáveis de produção e de consumo, proteção e uso sustentável dos oceanos e dos ecossistemas terrestres e mudança do clima. Além de orientar po-líticas nacionais e atividades de coope-ração até 2030, os ODS representam um novo paradigma: ao contrário dos ODM, foram definidos com ampla participação de governos, setor privado e sociedade civil e serão aplicáveis tanto aos países

Rio+20 - Convenção das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. Rio de Janeiro, junho de 2012.

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em desenvolvimento quanto aos de-senvolvidos. Enquanto a definição dos ODM foi “donor-driven”, favorecendo setores privilegiados pelos investidores, os ODS foram definidos de modo mais democrático. Seguem, porém, a estrutu-ra dos ODM: os objetivos, mais genéri-cos, desdobram-se em metas e indicado-res, mais específicos. Como parte de um plano abrangente, os ODS integram a Agenda Pós-2015, que inclui, ainda, uma declaração política, meios de implemen-tação e meios de acompanhamento (in-dicadores). Estes são também de grande

importância, pois, incorporados aos or-denamentos jurídicos internos – como alguns países tencionam fazer –, fortale-cerão o comprometimento com o desen-volvimento sustentável.

Em consonância com seu histórico participativo e propositivo nos fóruns internacionais e com a significativa melhoria de seus indicadores sociais, o Brasil se destacou tanto na implemen-tação dos ODM quanto na elaboração dos ODS, defendendo a erradicação da pobreza como condição basilar para o desenvolvimento sustentável, conforme a declaração final da Rio+20. A coorde-nação nacional em torno da Agenda Pós-2015 elaborou o documento “Elementos Orientadores da Posição Brasileira”, com base em consultas a representantes da sociedade civil e de entidades muni-cipais e nas deliberações do Grupo de Trabalho Interministerial.

O segundo processo associado à pro-moção do desenvolvimento sustentável diz respeito aos mecanismos de finan-ciamento. Na Conferência de Monterrey (2000), países desenvolvidos comprome-teram-se a dedicar anualmente 0,7% do PIB para auxiliar o desenvolvimento de

países de baixa renda. Em 2008, em con-ferência realizada em Doha, concluiu-se que a meta não era cumprida e que, como agravante, muitos países contabilizavam ajuda militar como ajuda ao desenvolvi-mento. Em 2014, o Comitê Intergoverna-mental de Peritos sobre Financiamento do Desenvolvimento Sustentável, previs-to pela Rio+20, destacou a importância de novas medidas regulatórias, institu-cionais e programáticas de modo a ga-rantir a perenidade e a efetividade dos compromissos com o financiamento ao desenvolvimento. Tais medidas foram debatidas em julho de 2015, na Conferên-cia de Adis Abeba, e o referido processo orientará a distribuição e canalização de recursos para o desenvolvimento susten-tável, essenciais para o alcance das metas associadas aos ODS.

O terceiro processo corresponde à agenda ambiental, visto que a promoção do desenvolvimento sustentável está in-trinsecamente associada a temas como mudança do clima, produção de energia, aproveitamento de recursos naturais, abastecimento de cidades e padrões de consumo. Na Rio 92, preocupações so-ciais, ambientais e econômicas foram

Escola da ONU no campo de refugiados de Jabalia, Faixa de Gaza.

As operações de manutenção da paz estão no centro das deliberações do Conselho de Segurança e são o aspecto mais visível e impactante da ONU.

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Eleanor Roosevelt e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em novembro de 1949.

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cristalizadas em documentos ambiciosos, como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UN-FCCC), a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e a Agenda 21. Ademais, consolidou-se o princípio das responsa-bilidades comuns, porém diferenciadas, pelo qual os países de industrialização an-tiga reconheceram serem os maiores res-ponsáveis pelo acúmulo de Gases de Efei-to Estufa (GEE) na atmosfera até então. Com base nesse princípio, o Protocolo de Quioto estipulou obrigações de redução de emissão dos GEE aos países de indus-trialização antiga. No entanto, a redução de emissões ficou aquém do esperado, so-bretudo pela não ratificação do Protocolo pelos EUA. Além disso, persiste o déficit de implementação dos compromissos fi-nanceiros de países desenvolvidos previs-tos na UNFCCC e no Protocolo, limitando a capacidade de contribuição de países em desenvolvimento.

Apesar das patentes dificuldades, a ação multilateral logrou resultados im-portantes. Além da decisão de alocar US$ 100 bilhões por ano a partir de 2020 para ações de mitigação e adaptação e da criação do Fundo Verde para o Clima — já em processo de capitalização —, há um compromisso político com a nego-ciação de novo acordo sob a UNFCCC, a ser finalizada em 2015, na COP-21 (Paris), para entrada em vigor em 2020. Deverá contemplar equilibradamente os temas de adaptação, mitigação, financiamento, transferência de tecnologia e capacitação. Sua natureza jurídica ainda não foi defini-da, mas é possível que elementos do Pro-tocolo de Quioto sejam incorporados.

O princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, será man-tido, pois não está no mandato da nego-ciação a revisão da Convenção-Quadro e seus princípios. Na COP 20 (Lima), foram definidos os elementos do novo acordo e

as informações que deverão constar das Contribuições Nacionalmente De-terminadas (NDCs). Ao contrário do Protocolo de Quioto, o conceito parte de uma perspectiva “bottom-up”, em que cada país determina sua meta, mediante abrangente consulta domés-tica. No Brasil, as Contribuições foram determinadas em ampla consulta à sociedade civil, num esforço coorde-nado entre vários ministérios e enti-dades públicas.

A relevância das Nações Unidas para a elevação dos padrões de vida ao redor do mundo está longe de ser con-sensual. No entanto, em seus 70 anos, a ONU construiu um inventário po-sitivo, estimulando a cooperação em diversas áreas, elevando a promoção do desenvolvimento ao topo da agen-da internacional e consolidando o en-tendimento de que os três pilares do desenvolvimento sustentável devem

FOTO: UN Photo

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necessariamente ser tratados conjunta-mente. A realização de três grandes con-ferências em 2015 – Adis Abeba, Nova Iorque e Paris – assinala o reconheci-mento da importância do multilateralis-mo para a solução dos grandes desafios contemporâneos. Além disso, a formula-ção dos ODS demonstra a capacidade da ONU de gerar resultados de grande im-pacto e estabelece novo paradigma para a atuação da Organização, lastreado na universalidade e na ampla participação da sociedade civil.

Direitos HumanosA agenda de direitos humanos é uma

das faces mais visíveis da ONU. Partin-do da Declaração Universal dos Direi-tos Humanos, a Organização foi capaz de construir, ao longo de 70 anos, um conjunto significativo — ainda que in-completo — de padrões universais de proteção, a despeito de diferenças cul-turais, políticas e econômicas dos Esta-dos Membros. Desse processo resultou uma ampla gama de convenções, tanto de natureza geral, como os dois Pactos Internacionais de 1966, quanto de cará-ter específico, destinadas a pessoas em situação de particular vulnerabilidade.

O Brasil participou não apenas des-se esforço legislativo, mas também do de aperfeiçoamento institucional, que culminou na criação do Conselho de

Direitos Humanos (CDH), em 2006, em substituição à antiga Comissão de Direi-tos Humanos. O CDH aumentou a trans-parência conferida ao tema e introduziu o importante mecanismo de Revisão Pe-riódica Universal, que já opera em seu se-gundo ciclo de exames. A esse arcabouço jurídico-institucional somam-se os múl-tiplos Procedimentos Especiais do CDH, que buscam elencar boas práticas aos Es-tados e monitorar a situação de direitos humanos; o Escritório do Alto Comissário para Direitos Humanos, como resultado do processo iniciado em Viena, em 1993; e os dez órgãos de tratado de direitos hu-manos, que observam e orientam a imple-mentação de obrigações dos Estados Par-tes. Avanço recente no plano institucional foi a efetivação do sistema de petições individuais do Comitê de Direitos Econô-micos, Sociais e Culturais, o que ampliou a proteção internacional sobre esses di-reitos e reafirmou o entendimento de que os direitos humanos são universais, inter-dependentes e indivisíveis.

Não obstante essas conquistas, a re-cente prática da III Comissão da AGNU e do CDH demonstra o surgimento de no-vos temas no debate internacional sobre direitos humanos, sobretudo no tocante a grupos vulneráveis. Em 2014, o Brasil lo-grou aprovar no CDH, em coautoria com diversos Estados, resolução sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade

de gênero. Embora ainda não haja, em âmbito universal, instrumento vinculan-te que trate de direitos LGBT, esse é um tema que vem paulatinamente ganhan-do espaço na agenda das Nações Uni-das, como desdobramento necessário do princípio da não discriminação.

A proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade poderá colher novos avanços no ano de 2015. É nesse ano que se celebram os 20 anos da Declaração e da Plataforma de Ação de Pequim, o que constitui oportunidade para identifi-car os desafios a serem superados para a promoção dos direitos das mulheres. Consensos vêm sendo construídos em torno das temáticas de violência con-tra mulheres e meninas e de tráfico de mulheres e crianças. Contudo, a temáti-ca de direitos sexuais reprodutivos e de educação sexual abrangente ainda divi-de os Estados Membros. É também em 2015 que se inicia a Década Internacio-nal dos Afrodescendentes, inaugurando um processo de avaliação de medidas concretas para a inclusão social de afro-descendentes e o combate a todas as formas de racismo, discriminação racial, xenofobia e qualquer tipo de intolerân-cia. Ademais, a partir de 2015, a proteção dos direitos dos povos indígenas pode-rá colher os resultados práticos iniciais da Conferência Mundial sobre os Povos Indígenas, realizada em 2014, a qual re-

O ACNUR tem pela frente graves desafios, como a escalada do número de refugiados sírios, a grave situação de vulnerabilidade de refugiados mulheres e crianças e o baixo número de ratificações das duas convenções sobre apatridia, das quais o Brasil é Parte

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presentou momento de consulta aberta e inclusiva entre Estados Membros e po-vos indígenas, para compartilhar pers-pectivas sobre a realização dos direitos consagrados na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos In-dígenas —adotada pela AGNU em 2007, com apoio do Brasil.

Tema de importância crescente e ob-jeto de longo processo de consultas é a relação entre empresas transnacionais e direitos humanos. Avanço importante foi a definição dos Princípios Orientado-res das Nações Unidas para Empresas e Direitos Humanos, adotados pelo CDH em junho de 2011, com apoio do Brasil, servindo de marco conceitual para o debate. Em 2014, a Resolução 26/09 do CDH, aprovada com dificuldade, insti-tuiu Grupo de Trabalho encarregado de elaborar projeto de instrumento vincu-lante sobre esse tema. A proposta é, con-tudo, objeto de forte oposição da maio-ria dos países desenvolvidos.

Outra novidade na agenda é a questão do direito à privacidade na era digital, que tem motivado expressiva mobiliza-ção diplomática do Brasil. Em coautoria com a Alemanha, o Brasil logrou aprovar resolução na AGNU, por consenso, bem como a instituição de Relator Especial para o tema, no CDH. Essas iniciativas constituem os primeiros passos para a formulação de regras claras e univer-salmente aceitas sobre ações de moni-toramento extraterritorial dos Estados e a garantia do direito à privacidade no mundo digital.

Há temas, no entanto, que exigem maior intensificação de esforços das Nações Unidas, como o aumento da po-pulação de refugiados e de deslocados internos. A história do ACNUR demons-

trou a capacidade da agência de se reno-var ao longo de décadas, como atestam a expansão do escopo geográfico e tem-poral da Convenção de 1951 e a adoção do Protocolo de Nova York de 1967. Con-tudo, a agência tem pela frente graves desafios, como a escalada do número de refugiados sírios, a grave situação de vulnerabilidade de refugiados mulheres e crianças e o baixo número de ratifi-cações das duas convenções sobre apa-tridia, das quais o Brasil é Parte. Além disso, cumpre destacar a contínua ine-xistência de instrumento universalmen-te vinculante sobre deslocados internos, mas tão somente diretrizes e princípios gerais. Nesse contexto, a América Latina acaba de passar por profundo proces-so de avaliação, graças às consultas de alto nível realizadas sob a égide dos 30 anos da Declaração de Cartagena, e po-derá contribuir sobremaneira em temas como a eliminação da apatridia, integra-ção cultural e econômica dos refugiados e proteção de indivíduos perseguidos

pelo crime organizado transnacional.Atualmente, a expansão da proteção

internacional é também visível na seara da responsabilização penal individual, com a criação dos tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia e Ruanda, dos tribunais híbridos (Serra Leoa, Camboja, Líba-no) e do Tribunal Penal Internacional. A sanção penal contra responsáveis por crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio são avanços recentes. Resta agora empreender esforços para que o TPI possa julgar, também, os per-petradores do crime de agressão — tipi-ficado em 2010, na Conferência de Revi-são de Kampala —, atingindo níveis mais altos de cadeias de comando responsá-veis por crimes internacionais.

Há patente complementaridade entre os três pilares das Nações Unidas — se-gurança, desenvolvimento e direitos hu-manos. A transversalidade da agenda de desenvolvimento afeta diretamente o pi-lar dos direitos humanos, o que se reflete na busca de ancorar os ODS nas normas internacionais de proteção — em particu-lar, no direito à igualdade e no princípio da não discriminação. Raciocínio similar pode ser feito em relação ao pilar de segu-rança internacional, uma vez que o gozo dos direitos humanos é essencial para a eliminação das causas mais profundas de instabilidades e de conflitos. Ademais, a discussão de conceitos como o direi-to ao desenvolvimento e o direito à paz, em Genebra, atesta essa inter-relação. Os marcos conceituais da agenda pós-2015 certamente repercutirão sobre o longo e contínuo processo de renovação da agen-da de direitos humanos das Nações Uni-das. E não poderia ser diferente, uma vez que os fatos sempre precedem as normas e as instituições.

“A ONU não foi criada para levar a humanidade para o paraíso, mas para livrá-la do inferno.”Dag Hammarskjöld,Secretário Geral da ONU entre os anos de 1953 e 1961.

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As Nações Unidas aos 70“A ONU não foi criada para levar a

humanidade para o paraíso, mas para livrá-la do inferno”, afirmou o ex-Secre-tário-Geral Dag Hammarskjöld. Mesmo sem transformar “canhões em arados”, a Organização estabeleceu diversos regi-mes que, além de limitar a belicosidade e a capacidade de atuação unilateral dos mais poderosos, promovem normas e princípios que beneficiam a humanida-de como um todo. Embora a solidarieda-de cosmopolita preconizada por Haber-mas seja um sonho distante, a ONU tem servido de plataforma para a conforma-ção de consensos sobre a necessidade de soluções multilaterais para os grandes desafios contemporâneos.

A atuação das Nações Unidas no âmbito da manutenção da paz interna-cional tem sido aquém do desejado, e a

Organização carece de reformas, mas sua relevância para a governança global é incontestável. Se as crises no Iraque e na Líbia tornam inegáveis os malefícios associados a ações militares unilaterais, a dinâmica recente do CDH assevera a importância da ONU para a promoção dos direitos humanos, especialmente para aqueles em situação de vulnera-bilidade. Por sua vez, a realização, em 2015, das conferências de Adis Abeba, Nova Iorque e Paris corrobora a crença na importância do multilateralismo para a promoção do desenvolvimento susten-tável, inviável sem a existência de me-canismos de financiamento adequados, indicadores universais e comprometi-mentos vinculantes com a redução das emissões de gases de efeito estufa.

A busca da cooperação entre Estados assemelha-se, como no conto de Borges,

a um jardim de caminhos que se bifur-cam. Aqueles representados pelas Na-ções Unidas e demais instâncias multila-terais exigem paciência, perseverança e, ainda assim, não conduzirão a humani-dade a um mundo perfeito. No entanto, nenhuma trilha alternativa nos conduzi-rá ao futuro que queremos. Apesar dos desafios identificados, a promoção de uma ordem internacional mais justa e equânime, ancorada no respeito aos di-reitos humanos e na qual os povos pos-sam se desenvolver sem comprometer as gerações futuras, só é possível dentro dos regimes multilaterais e do arcabou-ço normativo e institucional das Nações Unidas. — J

Abertura do debate geral da UNCTAD em Genebra, 1964, com discurso de Raúl Prebisch, Secretário-Geral da Conferência. Sentados ao seu lado estão Philippe de Seynes (esq.), Subsecretário para assuntos econômicos e sociais, e Abdel Moneim El Kaissouni (dir.), Presidente da Conferência.

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