Este comentário ao livro de Qohélet, pelo peso da tradição continua
mos a chamá-lo Eclesiastes. Em linhas gerais sigo o mesmo método de
trabalho empregado no comentário a Sabedoria, publicado por esta
mes ma editora em 1995.
O Eclesiastes, aceito por todos como livro canônico, manifesta para
doxalmente a riqueza inesgotável da revelação de Deus com palavras
muito humanas. Em nenhum outro livro da Sagrada Escritura
encontramos o simples homem tão próximo a nós como neste. A atitude
de Qohélet é ati tude de busca permanente do sentido da vida, sem
que em nenhum mo mento encontre explicação tranqüilizadora.
Converte-o isso no crítico mais implacável das doutrinas que
oferecem segurança no campo sapiencial religioso e profano. No
entanto sua fé inquebrantável em Deus faz com que não leve até o
extremo a lógica de seus raciocínios.
Qohélet revela a impotência absoluta do homem diante dos mistérios
da vida e do além. Homem experimentado e derrotado em todas as bata
lhas transcendentais da vida, descobre como ninguém o sabor das
coisas simples no cotidiano de nossa existência e na natureza que
nos rodeia.
JOSÉ VILCHEZ LÍNDEZ, sj. nasceu em Pedro Martínez (Granada,
Espanha) em 1928. Estudou Filosofia e Teologia em Madri, Barcelona
e Innsbruck (Áustria). Especializou-se em Sagrada Escritura
em Roma.
certos que sou contra a venda ou troca de todo
material disponibilizado por mim. Infelizmente
depois de postar o material na Internet não tenho o
poder de evitar que ' alguns aproveitadores tirem
vantagem do meu trabalho que é feito sem fins
lucrativos e unicamente para edificação do povo
de Deus. Criticas e agradecimentos para:
mazinhorodriguesQyahoo. com. br
Att: Mazinho Rodrigues.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara
Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vílchez Líndez, José, 1928 -
Eclesiastes ou Qohélet / J osé Vílchez Líndez ; [tradução João
Rezende Costa], — São Paulo : Paulus, 1999. — (Coleção grande
comentário bíblico)
Título original: Sapienciales — Comentários I. Título. II.
Série.
96-1357 CDD-223.807
GRANDE COMENTÁRIO BÍBLICO
^ T r O T A O r r P O
OU QOHELET
Título original Sapienciales III - Eclesiastes o
Qohélet © Editorial Verbo Divino, Navarra, Espanha,
1994
Tradução João Rezende Costa
Revisão H. Dalbosco
© PAULUS-1999 Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (011) 570-3627
Tel. (011) 5084-3066 http://www.paulus.org.br
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PAULUS Estrada de São Paulo 2685 Apelação (Portugal) Fax (01) 948
88 78
Tel. (01) 947 24 14
ISBN 85-349-1261-0 ISBN 84-7151-669-1 (ed. orginal)
A Códice alexadrino a. c. artigo citado
ANET An c ien t N ear Ea st Texts Rela t in g to th e 0 .
T. , editado por J. B. Pritchard, Princeton, 1955
_
Aq Aquila (versão grega de Aquila) BH Bíblia Hebraica,
ed. R. Kittel, Stuttgart, 1961, 3s ed. BHS Biblia Hebraica
Stuttgartensia, ed. K. Eiliger — W. Rudolph, Stuttgart, 1967
1977 , CCL Cor pus Chr i st i an or um Series Latina,
Turnholt CSEL Cor pus Scr ip t or um Ecc lesiast i cor um La t in
or um , Viena F. Zorell L ex ik on hebra icum et ar am aicum
Veter i s Testam ent i , Roma, 1962 G/LXX Versão grega dos
Setenta Ges.-K. W. Gesenius — E. Kautzsch, H ebräische Gr ammat i k
, Leipzig, 1902, 27 ed. K Ketib La VL Versão Vetus L at in
a LXX/G Versão grega dos Setenta M (s) Manuscrito(s) 0. c.
obra citada P(P) página(s) P Versão siríaca Pesitta P. Joüon
P. Joüon, Gr amma i r e de Vhébreux bi bl i qu e, Roma, 1947
PG Patrologia Greaeca, ed. J. M. Migne, Paris PL Patrologia Latina,
ed. J. M. Migne , Paris PW A Pauly — G. Wissowa,Real encyclopädi e
der cl assi schen Al ter t umsw i ssen scha f-
ten, Stuttgart, 1883ss Q Qerê RR1R 2 Redator, Redator l 9,
Redador 29... S Códice Sinaítico s. v. sub verbo Sim/Sym Símmaco
(versão grega de) Tg Targum Teod/Th Teodocião (versão grega
de) TH/TM Texto hebraico / texto massorético v(v)
versículo(s)
PRÓLOGO
Ao apresentar esse comentário, dou por bem empregados todos
os meus esforços e sacrifícios, porque, assim como no caso do
nascimento de um filho, vê a luz uma nova criatura.
Este comentário ao livro de Qohélet, que pelo peso da tradição
conti nuamos chamando de Eclesiastes, pertence à Coleção: Nova
Bíblia Espa nhola. Comentário teológico e literário, dirigido por
L. Alonso Schõkel, e que com muito louvor vem publicando a Editora
Verbo Divino. Nele, sigo o mesmo método de trabalho que usei no
comentário àSabedoria, publicado em 1990 na mesma editora.
Para a versão ao castelhano do texto sagrado, levei muito em conta
a tradução de L. Alonso Schõkel (cf. Eclesiastés, Madri,
1974), se bem que nem sempre a tenha seguido.
O Eclesiastes, aceito por todos como livro canônico, faz parte dos
Sapienciais e manifesta de forma paradoxal a riqueza inesgotável da
re velação de Deus em palavras humanas.
Espero que este novo comentário tenha ao menos a mesma acolhida
favorável que teve o comentário ao livro da Sabedoria. Em todo
caso, agra deço sinceramente a L. Alonso Schõkel eaJ. L. Sicre pela
ajuda que com seus valiosos conselhos me prestaram para melhorar a
redação primeira deste comentário. Do mesmo modo terei muito
presente qualquer crítica positiva que se me fizer para melhorar
futuras edições.
Granada, julho de 1994 José Vílchez SJ
I. TÍTULO
Dizer que Qoh 1,1 é o Título do livro não é nada disparatado,
ainda que necessariamente tenhamos que matizar de imediato essa
afirmação. Falando com propriedade, só la: Palavras de
Qohélet, pode-se chamar Tí tulo do livro, pois somente ele
corresponde ao livro inteiro; não, porém, a aposição a
Qohélet v. lb: Filho de Davi, rei em Jerusalém, que
se pode aplicar a Qoh 1-2, mas não ao resto do livro. Esta é uma
das razões de muitos autores modernos defenderem que na redação de
Qoh 1,1 intervie ram várias mãos.1
Poder-se-ia defender com todo direito que 1,1a: Palavras de
Qohélet pertence ao autor do livro.2De modo parecido começa
Jr 1,1; Am 1,1; Pr 30,1; 31,1 e Ne 1,1 (cf. Dt 1,1; Os 1,1; Mq 1,1
e Sf 1,1). Todavia, parece-nos mais provável a opinião da
intervenção de dois redatores distintos de Qohélet, porque explica
melhor as incoerências de Qoh 1,1 com relação a todo o livro.
II. AUTOR DE QOHELET
Qohélet começa: “Palavras de Qohélet, filho de Davi, rei em Jerusa
lém”; mas em seguida surge uma pergunta: Quem seria essa persongem
que se esconde sob o nome fictício de Qohélet? Ou em outra
palavras: Quem seria o autor do Eclesiastes? Nem sempre se
responde da mesma maneira.
'Admite-se com naturalidade que este versículo primeiro não
pertence ao sábio Qohélet, mas redigiu-se posteriormente ao
se publicar o livro. Assim R. Gordis afirma que “o versículo 1 é um
título, posto pelo editor que acreditava que Salomão era o autor”
( Koheleth — the Man. 204); cf. N. Lohfink,
Kohelet, 19; melek, 537). Outros distinguem bem
dois redatores, um res ponsável pelo v. la e outro pelo v. lb (cf.
L. Di Fonzo, Eclesiaste, 121b; K. Galling, Der
Prediger, 84).
1. O autor de Qohélet é Salomão
“A antiguidade responde a essa pergunta [Quem é o autor de
Qohélet?] com uma só voz e com uma só opinião imperturbável: o
autor é Salomão”.1 E a razão é bem simples, uma vez que é moderno o
problema da origem do livro, proposto criticamente; a resposta de
toda a tradição não pode ser outra, pois lê sem preconceitos o que
se escreve no começo do livro (1,1.12).
A tradição dos judeus é constante.2Os Padres primeiro e os
escritores eclesiásticos depois se encarregam de recordá-lo, pois
consideram-se os herdeitos dessa tradição.3Pode-se afirmar que até
o século XVII mantém- se pacificamente essa tradição, continuando
também depois, ainda que não pacificamente, mas no seio de
contínuas controvérsias.
Em 1860 F. H. Reusch defende tenazmente a autoria salomônica do
livro, assim como A. Motais em 1876, R. Cornely em fins de século
XIX e começos do século XX, e mesmo depois continuam defendendo a
mesma coisa autores como Vigouroux e L. Cl. Filion.4
2. Começa-se a duvidar da autoria de Salomão
Os dois pilares em que se fundamenta a opinião tradicional, ou
seja, a tradição judaico-cristã e o próprio livro, começam a
dissolver-se seriamen te no século XVII com Hugo Grotius. Já antes
se tinha escutado alguma voz discrepante entre os judeus, que,
porém, logo se calou.5Costuma-se citar também Lutero em suas
Tischreden, como se fosse ele o primeiro a negar que Salomão
foi autor do Eclesiastes.6Atribui-se-lhe, com efeito, o
!A. Vaccari, Institutiones, 80. 2R. Gordis escreve:
“Segundo a tradição da Sinagoga, o livro de Qohélet é atribuído a
Salomão,
filho de Davi [Nota 1: Sua fonte mais antiga está no título 1,1].
Uma fonte rabínica declara que ele escreveu o Cântico dos
cânticos, com sua acentuação do amor, em sua
juventude; Provérbios, com sua ênfase nos problemas
práticos, em sua maturidade; e Eclesiastes, com suas
reflexões melancólicas sobre a vaidade da vida, em sua velhice
[Nota 2: Midrash Shir Hashirim Rabba 1,1, século X)” {Koheleth
— the man, 39).
3Cf. J. de Pineda, In Ecclesiasten, 2-4; Comélio a
Lápide, Commentaria, lss; os testemunhos aduzidos em V.
Zapletal, Das Buch, 56-57; L.
Bigot, Ecclésiaste, 2006s; H. Hõpfl, De
libro, 393.
4Cf. F. H. Reusch, Zur Frage; A. Motais,
Salomon, 37; também V Ecclésiaste, 9,65s; R. Cornely,
Historicae, 1889, Ia ed, 336 [Essa sentença é mantida
inalterada por R. Cornely até a 5a edição em 1905 (cf. p. 344); F.
Vigouroux, Ecclésiaste, (1906), n. 844: 505s; L. Cl.
Filion, Le livre, 1927, pp. 547 549.
5H. Hõpfl aduz um testemunho, ao afirmar: “A tradição judaica não é
constante [Nota 1. Cf. e. g. Midrash Qoh. Rabba (1,12),
onde se diz que o autor é homem pobre e rude]” (De
libro, 394); H. W. Hertzberg, por sua vez, diz: “Pela primeira
vez surgem suspeitas sobre a autoria salomônica em Ibn Esra (século
XII)” ( Der Prediger, 53).
seguinte: “0 próprio Salomão não escreveu o livro do Pregador, mas
foi escrito por Sirac no tempo dos Macabeus”.7Mas é quase seguro
que se trata de lapsus linguae ou calami, pois corrige-se
a mesma conversa na tradução latina: “neque is [Salomon]
conscripsit Ecclesiasticum, sed tempore Maccabeorum a
Syrach conscriptus est”.8De mais a mais, Lutero, em seu comentário
ao Eclesiastes, não se afasta da tradição.9
A verdadeira ruptura com a tradição começa com Hugo Grotius,
que, em suas Annotationes de 1644, defende abertamente
que Qohélet não foi escrito por Salomão, mas por outros mais
tarde.10Assim o reconhecem to dos os autores, e “desde então a
verdade se impôs”.11Para chegar aí foi preciso todavia passar por
quase três séculos de controvérsias entre os defensores da autoria
salomônica de Qohélet e os que a negavam.
3. Salomão não é o autor de Qohélet
A nova teoria foi aceita paulatinamente, primeiro pelos
não-católicos, e depois também pelos católicos,12não sem antes ter
que superar dificul dades de ordem dogmática.13
A análise do hebraico de Qohélet levou Fr. Delitzsch à sua
célebre afirmação: “Se o livro de Qohélet fosse do tempo antigo de
Salomão, não existiria história da língua hebraica”.14Os estudiosos
lingüísti-
foi o primero que compreendeu que Salomão não pode ter sido o autor
do Eclesiastes” (A criticai, 21, e aduz o texto das
Tischreden, WA 1,207). Cf. ademais H. W. Hertzberg, Der
Prediger, 53; R. Kroeber,
Der Prediger, 6. WA Tischreden, 1,207: n. 475.
®WATischreden 2,653: n. 2776b; o grifo é nosso. A correção
parece estar bem feita e concorda com
que disse em seguida: “É um livro muito bom e agradável... É um
livro como um Talmud, composto de muitos livros, talvez da
biblioteca do rei Ptolomeu no Egito” (TW Tischreden, 1,207: n.
475 e 2,653: n. 2776b). Isso só se pode dizer de Eclo, não de Qoh
(cf. F. H. Reusch, Zur Frage, 430 n. 1; F. Delitzsch,
Commentary, 190 n. 1).
9Cf. Annotationes, 14-15 e ao longo de todo o comentário
(WA20). “ Textualmente diz: “Ego tamen Salomonis esse non puto, sed
scriptum serius, sub illius regis
tamquam paenitentia ducti nomine atque Zorobabilis iussu a viris
quibusdam in unum corpus congestum esse”. Assim em H. W.
Hetzberg, Der Prediger, 53-54.
UH. W. Hertzberger, Der Prediger, 54. 12F. H. Reusch
reconhece que em seu momento (1860) quase todos os protestantes,
mesmo os
conservadores, defendem que o Eclesiastes é pós-exílico. Wangemann
talvez seja o único que ainda defende a autoria salomônica. Também
alguns católicos [M. J. Jahn, J. G. Herbst e Fr. K. Movers] começam
a negá-la (cf. Zur Frage, 430-431); cf. G. Gietmann,
Commentarius, 21-22; E. Philippe,
Ecclésiaste, 1539; L.
Bigot, Ecclésiaste, 2007s. 13Recordemos o que dizia R.
Comely em 1905: “Não se pode explicar isso ‘pela fraude piedosa’
nem
‘pela ficção poética’, pela qual autor recente representasse a
pessoa de Salomão e tentasse vender suas sentenças sob seu nome e
autoridade. Pois tal ‘fraude piedosa’ e ‘ficção poética’, pela qual
os leitores são induzidos a erro inevitável, não se conciliam com a
inspiração do livro” ( Historicae, 344). Pelo contrário, H.
Hüpfl afirma em 1963: “O argumento tirado dos Padres não é
vinculante, pois tanto eles como os antigos documentos do
Magistério da Igreja para designar simplesmente os cinco livros
sapienciais empregam o nome de Salomão” (De libro, 394).
cos posteriores até nossos dias acabaram de eliminar toda dúvida ra
zoável.
Em 1905, R. Cornely tenta refutar os argumentos de tipo
lingüísticos contra a tese da tradição.15A. Merck, por sua vez,
rejeita os argumentos de R. Cornely nas reedições de seu
livro.16Sendo assim, chegou-se à conclu são segura de que Salomão
não pode ter sido o autor de Qohélet,17
Terminamos essa secção com as palavras de R. Gordis em 1978: “A
história da literatura conhece muitos infelizes acidentes que
levaram à perda de obras-primas. Representa Qohélet feliz exceção a
essa regra. A tradição salomônica garantiu ao livro um lugar no
cânon da Escritura, preservando-o assim para a posteridade. Nem
sempre é uma tragédia que ‘habent sua fata
libellV ”.18
4. Dados pessoais de Qohélet
Não temos a intenção de empreender nessa secção uma biografia de
Qohélet,19mas agrupar o que direta ou indiretamente nos
subministra o próprio livro.20Enquanto se identificou
Qohélet com Salomão, este pro blema não existiu; ao negar-se a
identificação, surgiu a necessidade de caracterizar o autor
apelidado de Qohélet. Convém distinguir, nessa ta refa, entre
a identificação Qohélet com uma personagem histórica, mais ou
menos conhecida, e a descrição ou o retrato-robô de
Qohélet. Ao não ser possível o primeiro, alguns renunciaram ao
segundo; nós, porém, não re nunciamos. V. Zapletal concluiu com
razão que não podia dizer quem foi o autor de nosso livro.21E
verdade que de Qohélet sabemos pouco, mas não tão pouco para
não poder dizer nada sobre ele. Seu livro está aí, e sempre será
verdade que podemos chegar pelas obras a conhecer alguma coisa
sobre seu autor.
15Cf. Historicae, 345-346. 16Cf. R. Cornely - A.
Merk, Historicae, 1907 9ä ed., 1934 11a ed., 495. Um
capítulo importante das
Introduções aos comentários modernos de Qoh constitui o dedicado à
língua de Qohélet e de seus estilo, confirmando seu caráter
tardio. Cf. os capítulos dedicados nessa Introdução
ao Estilo (cap. IX) e à Língua de Qoh (cap.
X).
17Cf. V. Zapletal (em 1911), Das Buch, 57; E. Podechard
(1912); UEcclésiaste, 187; A. Bea (1950),
Liber, VI; R. Kroeber (1963), Der Prediger, 4;
H. W. Hertzberg (1963) sentencia: “Que o autor não seja Salomão,
não é necessário que se discuta mais” (Der
Prediger, 52).
wKoheleth — the man, 42. 19Como já fez B. Plumptre na
Introdução a seu Comentário; pode-se verum resumo em V.
Zapletal,
Das Buch, 71. 20J. van der Ploeg critica fortemente R.
Gordis, porque, segundo ele, afirma mais do que se pode
deduzir da leitura e do estudo do livro sagrado, cf. J. van de
Ploeg, Robert Gordis, 106. 21Cf. Das Buch, 71.
O mesmo afirmava R. Kroeber: “O autor do livro Qohélet é
desconhecido” (Der
Prediger, 6).
A maioria dos autores retêm que um discípulo de
Qohélet escreveu o que lemos em 12,9-10, a saber: “Qohélet,
além de ser sábio, instruiu per manentemente o povo; e escutou com
atenção e investigou, compôs muitos provérbios; Qohélet procurou
encontrar palavras agradáveis e escrever a verdade com acerto”. E
informe verídico abreviado acerca do autor. Como afirma A. Lauha:
“Não há nenhum motivo para duvidar da veracidade dessa notícia.
Deve ter sido Qohélet mestre profissional de sabedoria”.22O epílogo
é apenas um ponto de partida. O estilo, o tipo e o tom do livro
desvendam-nos facetas interessantes do autor.
4.1. Qohélet é judeu, de Jerusalém
Com muita razão escreve estranhando H. W. Hertzberg: “Não se com
preende que se tenha duvidado de seu judaísmo”.23Diante dessa leve
dú vida está a asseveração de todos os outros. Alguns atribuem-lhe
explicita mente, como lugar de origem e residência, a região da
Judéia. Se se aceitar a região da Judéia,24Jerusalém será o único
lugar adequado.25De modo excepcional alguns colocam Qohélet na
Palestina do norte.26 M. Dahood, por sua vez, defende que “o autor
foi judeu residente na Fenícia”.27
4.2. Qohélet é aristocrata ou da classe acomodada
A cultura sempre foi um dos bens mais apreciados; sua
aquisição ge ralmente se reservava na antiguidade às pessoas
economicamente fortes. Por essa razão e enquanto não se demonstre o
contrário, é preciso conside rar Qohélet pertencente a família
de boas posses;28mais ainda, pertencen te à classe alta ou
aristocrática.29Seu livro não deixa lugar a dúvidas. O
22 Kohelet, 1; cf. A. L.
Williams, Ecclesiastes, XLVIII; H.
Duesberg, Ecclésiaste, 41-42; H. W. Hetzberg, Der
Prediger, 54.
23Der Prediger, 54; refere-se a D. S. Margoliouth (The
Exp 8a série, vol. 2 [1908] 125). 24Assim, por exemplo, F.
Asensio, In libros, 266; M.
Hengel, Judentum, 215. 25"Todos os sinais apontam a que
Qohélet vivia em Jerusalém” (E. Gordis, Koheleth — the
man,
76); cf. também A. L. Williams, Ecclesiastes, XLVIII;
S. Holm-Nielsen, The Book, 45; N. Lohfink,
Kohelet, 12 = DerBibel, 24-25; “Com grande
probalidade em Jerusalém” (R. Braun, Kohelet, 178); cf.
também R. Kroeber, Der Prediger, 23; L. Di
Fonzo, Ecclesiaste, 71.
26Escreve W. F. AIbright: “Retenho que o autor deste livro
[Qohélet] era judeu influente, que viveu na planície costeira,
provavelmente na Fenícia do sul” (Some Canaanite, 15).
27Qohélet, 302; o mesmo em Canaanite-Phoenician, 33.
Assim também estes autores: J. Muilenburg, A
Qoheleth; J. T. Milik, RB 59 (1952) 590; H. Cazelles, VT 6
(1956) 221; E. Arbez, CBQ 15 (1953) 115 (citados todos eles por M.
Dahood em Qoheleth, 302 nota 4).
28M. Hengel afirma que Qohélet, “como mestre de sabedoria integrava
a acomodada e aristocráti ca classe alta da Judéia”
( Judentum, 215); cf. também L. Di Fonzo,
Ecclesiaste, 71; H. L. Ginsberg, The
structure, 149; R. Braun, Kohelet, 177.
tipo espiritual que o caracteriza é o de um aristocrata um tanto
distancia do da realidade,30que recebeu esmerada educação e
formação.31
Por isso tudo pode-se afirmar também que Qohélet pertence à
classe influente e dominante em todos os campos da vida cidadã,32à
medida que o permitiam as circunstâncias políticas do momento.33Só
nesse sentido pode-se admitir a relação de Qohélet com o ainda
não existente sadu- ceísmo.34
Vêm bem a nosso propósito as palavras de N. Lohfink: “Muitas
coisas esclarecer-se-ão mais facilmente, se supusermos que ele
[Qohélet] proce dia de família influente”.35
Até agora fixamos nossa atenção nas circunstâncias que
podemos qualificar de externas, ainda que internamente digam
respeito ao nosso autor. Há, porém, outras circunstâncias que
determinam maus intimamente a personalidade de Qohélet e
outros traços ou notas que revelam essa mesma personalidade.
Movemo-nos, em alguns casos, no meio de conjetu- ras, ainda que
fundadas no texto, em outros, porém, a certeza é plena.
4.3. Estado civil de Qohélet
Será porventura possível chegar a determinar o estado civil de
Qohélet, se era casado ou não, com os dados que nos
subministra o livro? Pisamos terreno movediço. R. Gordis ousa
afirmar que “Qohélet era solteiro”,36que “não tem esposa nem quer
compartilhar os sucessos simples da vida ordi nária nem os raros
momentos de uma profunda experiência”.37São exces sivamente
terminantes essas afirmações. Com razão J. van der Ploeg cri tica
R. Gordis: “Por que dizer que Qohélet não era casado..., quando
o
30Qohélet revela-se cético; ora, como argumenta R. Gordis, o
ceticismo se dá nas classes altas da sociedade, as que não sofrem;
não nas baixas que sofrem na vida e buscam mudar as condições de
vida ou sair delas (cf. Koheleth — the
man, 34-35).
31Assim admite R. Kroeber: “Provavelmente procedia de família
notável da alta classe de Jerusa lém e recebeu a educação
científica e religiosa e a instrução profissional que correspondia
à tradição de sua classe” (Der Prediger, 23); cf. também R.
Braun, Kohelet, 178.
32W. F. Albright escreve: “Retenho que o autor deste livro
[Qohélet] foi judeu influente” (Some Canaanite, 15); e
R. Kroeber: "Vemos, portanto, no autor um mestre de sabedoria que,
como membro da classe dominante...” (Der Prediger, 6).
33A matização no-la dá H.-P. Müller: Qohélet “pertence à antiga
camada social dominante, que foi despojada de seu poder pelos
diádocos e seus colaboradores” (Neige, 264, no resumo em
francês do artigo).
“ Cf. D. Michel, Qohélet, 75, onde rejeita a opinião de L.
Levy em seu livro Das Buch. R. Kroeber opina
acertadamente que Qohélet “reflete a atitude espiritual
daqueles círculos que no século seguin te constituíram uma coalizão
sociopolítica no partido dos saduceus. Mais não se pode dizer”
(Der
Prediger, 6). 35 Kohelet, 12 = Der
Bibel, 24-25. 36 Koheleth— the man, 78; e acrescenta
a razão em que se funda: “Porque está bastante preocupa
do pelo fato de que, quando o homem morre, deve deixar sua riqueza
a ‘estranhos’, que nunca traba lharam para consegui-la, e não
manifesta nenhum sentimento por parentes e amigos, também quan do
fala da família” (Ibidem).
37Koheleth — the man, 84.
texto não diz nada disso?”38Deve-se supor antes o contrário, pois
ficar sol teiro constituía exceção entre os judeus, e o próprio
Qohélet recomenda o contrário: “Desfruta a vida com a mulher
que amas” (9,9).
Sobre se Qohélet tinha ou não filhos, nega-o R. Gordis:
“Qohélet era solteiro ou, ao menos, homem sem filhos”,39e seu “lar
jamais ressoou com vozes de crianças brincando”.40A resposta de van
der Ploeg, que me parece mais equilibrada, é a mesma que deu a
propósito de se Qohélet era casado ou solteiro e no mesmo
lugar.
4.4. Profissão de Qohélet
Sobre esse ponto, sim, temos dados concretos em Qohélet. Diz-nos o
epiloguista que “Qohélet, além de ser sábio, intruiu
permanentemente o povo; e escutou com atenção e investigou, e
compôs muitos provérbios; Qohélet procurou encontrar palavras
agradáveis e escrever a verdade com acerto” (Qoh 12,9-10). Neste
pequeno semblante do mestre amado subli nham-se dois aspectos de
sua atividade profissional: o do sábio-mestre e o do
investigador.41Como sábio-mestre ou mestre de sabedoria, “era
mestre numa das academias de sabedoria em Jerusalém, que estava a
serviço das necessidades educacionais da juventude da classe
alta”.42
N. Lohfink difere da maioria dos autores quanto à maneira de ensi
nar de Qohélet. “Em nosso contexto o mais provável é que
Qohélet, ao estilo dos filósofos gregos ambulantes, tenha oferecido
seu ensinamento publicamente (ao ‘povo’) nas praças, naturalmente
como estes, por dinhei ro”.43A novidade está no modo de ensinar ao
ar livre, e não em receber dinheiro em troca.44
Alguns chamaram Qohélet filósofo.45Creio que em sentido
rigoroso não é adequada essa qualificação. Melhor seria
chamá-lo pensador. Quan-
38J. van der Ploeg, Robert Gordis, 106, que ademais afirma: “E
gratuito pensar que ele [Qohéletl tenha transgredido
seu principal mandamento, apesar de 7,26, que fala da mulher em
termos hiperbólicos e rebuscados para pôr em guarda os discípulos
dos sábios contra as seduções femininas, o que sempre fizeram os
sábios (cf. Pr 2,16 etc.)” ( Ibidem).
^Koheleth — the man, 78. i0Koheleth — the
man, 84. 41As palavras de A. Baruq confirmam essa apreciação:
“As duas personagens: o mestre tradicional
e o buscador decidido a recolocar tantas e tantas coisas,
descobertas pelo epiloguista, reconhecem-se com bastante facilidade
no livro que tomou a seu encargo difundir”
( Ecclésiaste, 11; trad. 14-15).
42R. Gordis, Koheleth — the man, 77. A. Lauha também
afirma que “Qohélet deve ter sido mestre profissional de sabedoria”
( Kohelet, 1).
i3Kohelet, 12 = DerBibel, 24-25. “ Pr 4,5-7 e 17,16
sugerem que os discípulos pagavam ao mestre de sabedoria. Sobre a
instituição da
Escola pode-se consultar o que já escrevi em L. Alonso - J.
Vüchez, Provérbios, Madri, 1984, 47-48. 45"0 fato de
Qohélet confrontar-se criticamente com a sabedoria tradicional de
escola faz supor
to ao grau de originalidade, já é mais discutível, pois depende de
como se interpretam as influências que recebeu da cultura ambiente
e de sua assi milação.46
Devemos pensar que a atividade docente de Qohélet era
inseparável de sua atividade política na comunidade de que fazia
parte; a que se acres centa sua pertença à classe dominante. Desse
ponto de vista, a afirmação de R. Kroeber parece-nos lógica:
“Vemos, pois, no autor, um mestre de sa bedoria que, como membro da
classe dominante, tomou parte na vida po lítica”47e, como tal,
favorecedor das tendências conservadoras.48
4.5. Personalidade bem definida de Qohélet
Chama poderosamente a atenção a singularidade de Qohélet; é certo
que o livro é um marco na literatura sapiencial judaica. Seu autor
deve ter sido pessoa muito singular, como o é sua obra.49A
personalidade de Qohélet é muito complexa, ou, como disse J.
Cantó Rubio: “Possui toda uma perso nalidade, e forte, com
certeza”.50Enfrenta valorosamente os mais graves problemas humanos
de toda ordem e põe em interrogação as soluções tra dicionais que
de fato se consideravam intocáveis. A. Barucq disse dele que “é um
mestre na arte de romper as seguranças mais firmes e os valores
mais cotados”.51Esse arrojo e a árdua tarefa de buscar formas
literárias adequadas “supõem uma personalidade mais marcante; e
desta vez, sim, o livro está de acordo... sem ter, com certeza,
nada de linha revolucioná ria”.52Fê-lo, porém, valendo-se de formas
e métodos novos, com cara des coberta e diante dos representantes
do poder e da intelectualidade do povo.53
E impossível reduzir tal personagem a moldes determinados; rompe
com eles todos, porque tem características muito díspares e até
contradi tórias: conservador e inovador, cuja obra é “mescla de
abertura ao mundo e de conservadorismo, de ceticismo e de
fé”.54
46Que seja autor original defenderam G. A. Berton (cf. A
criticai, 43), O. S. Rankin - G. G. Atkins (cf. The
Book, 15a), R. Gordis (cf. Koheleth — the
man, 55-58). Pôs em dúvida Ch. F. Whitley, que diz: “Em vista
do número de lugares paralelos que se podem aduzir para muitos de
seus ditos, isso é discutível” ( Koheleth, 183).
47Der Prediger, 6; cf. H.
Duesberg, Ecclésiaste, 41. ' “ Cf. J.
Steinmann, Ainsi, 17.131; cf. L. Di
Fonzo, Ecclesiastes, 70-77. 49Apesar dos poucos dados de
que dispomos, “pode-se falar de manifesta ‘individualidade’ do
au
tor” (M. Hengel, Judentum, 215), típica do tempo do
helenismo, assinalada pela liberdade do indiví duo (cf.
215-216).
mSapienciales, 154. 5lEcclésiaste, 7; trad. 11. 52A.
Baruq, Ecclésiaste, 11; trad. 14-15. 53Como escreve N.
Lohfink: “Alguém que logrou fazer isso em Jerusalém deve ter sido
não somente
homem (que presumivelmente viajou muito) com ampla formação e
elevadas atitudes espirituais e lingüís ticas, mas também
personalidade com forte poder para se impor”
( Kohelet, 12 = Der Bibel, 24-25).
5. Atitude de Qohélet na vida
Qohélet podia estar dotado de melhores qualidades de espírito,
mas não manifestá-las suficientemente em sua obra escrita. O estudo
de Qohélet põe-nos, todavia, a descoberto uma pessoa bem
caracterizada, que se con fronta com a realidade que o circunda de
maneira firme, decidida, clara e inequívoca. Descobrir e descrever
essa atitude de Qohélet é o que nos inte ressa agora.
5.1. Pressuposto fundamental
Qohélet faz distinção fundamental entre Deus e tudo o mais.
Deve-se, sem dúvida, à fé religiosa em que foi educado. Constitui
ela o núcleo prin cipal do legado religioso que herdou da tradição
de seu povo.
Qohélet não se distingue especialmente por sua piedade
religiosa; mas a fé em Deus, Criador e Senhor do mundo e do homem,
lhe é algo tão conatural que sequer se propõe o problema de sua
existência, ele que de tudo duvida. Acerca disso não existe nenhuma
voz discrepante.55Tão se guros estão todos da fé de Qohélet que
chegam a afirmar: “Deus não é problema para ele”,56ou então: “No
livro de Qohélet não existe ‘o problema de Deus’ (‘Gottesfrage’). E
estranho ao autor o ateísmo”.57
Consequência imediata de tudo isso é o estabelecimento de outra dis
tinção, que coincide com a anterior e que influirá decisivamente no
desen volvimento das reflexões de Qohélet em todo o livro:
Qohélet tem ple na consciência do que “é investigável” pelo
homem e do que “não é investigável”; Deus em primeiro lugar, depois
tudo o mais. O que quer dizer que “a priori” exclui de seu campo de
reflexão, e com certeza de ob servação, a existência de Deus mesmo;
não assim tudo o mais, incluídas as formas de pensar sobre esse
Deus e suas relações com o homem e a criação, que foram
transmitidas quase intocáveis através de gerações e gerações e
influíram em toda a vida de fé, no culto, na moral, na concepção de
todo um povo como povo e de seus indivíduos. Parafraseando o
próprio Qohélet: não se podem confundir “as coisas que acontecem
sob o sol”, que podem e devem ser investigadas pelo homem como dura
e inútil tarefa, com “o que está sobre o sol”, ou seja, Deus e seu
mundo: o impenetrável, o mistério.
55A. Lauha afirma como algo sabido e admitido por todos:
“Naturalmente Qohélet, como filho de seu povo, não é ateu. Ele não
duvida da existência de Deus” ( Kohelet, 17). G. von Rad, por
sua vez: “Qohélet não é, absolutamente, ateu niilista; sabe que o
mundo foi criado e é regido continuamente por Deus” (Teologia dei
A. T., I, 551).
56J. A. Loader, Polar, 129, que aduz o testemunho de H.
Blieffert: “A única realidade indiscutível e indiscutida” para
Qohélet é a existência de Deus (Weltanschauung, 17).
5.2. Qohélet é bom observador
A realidade próxima ao homem, “o que acontece sob o sol”,
concentra toda a atenção de Qohélet. Este é seu meio natural
em que se move como peixe na água: “Dediquei-me a investigar e
explorar com sabedoria tudo o que se faz sob o céu” (1,13);
“Examinei todas as ações que se fazem sob o sol” (1,14); “Observei
a tarefa que Deus impôs aos homens” (3,10); “E ou tra vez observei
todas as opressões que se cometem sob o sol” (4,1); “E observei
também que todo trabalho e todo êxito nos empreendimentos só
são...” (4,4); “De tudo vi em minha vida sem sentido” (7,15);
“Dediquei-me a conhecer a sabedoria e a observar as tarefas que se
realizam na terra” (8,16). Poder-se-ia acrescentar número muito
considerável de passagens em primeira pessoa em que o autor frisa
sua ação pessoal de investigação: suas experiências pessoais. Com
suas afirmações terminantes, universais, evidentemente
hiperbólicas, parece que Qohélet quer dar a impressão de que
não há parcela da realidade que não tenha analisado pessoalmente
como cabe, segundo ele, ao verdadeiro sábio e mestre: “Tudo isso
tenho-o examinado com sabedoria. Eu disse: serei sábio”
(7,23).
Efetivamente seu campo de observação é tão amplo como a própria
vida. Ele é o centro (eu... eu... eu...). Apartir de si mesmo, de
sua experiên cia pessoal, percorrerá o universo humano, traçando
círculos concêntri cos. Observa a atividade humana em torno: o ir e
vir, o azafamar-se da gente; o mundo dos negócios com suas perdas e
ganhos, a vida dos concidadãos, ou seja, a ordem social ou, antes,
a desordem.58Estes primei ros e fundamentais contatos com a
realidade servem de ponto de arran que para suas primeiras
reflexões de grande nervo sobre a avaliação justa das coisas, sobre
a hierarquia dos valores estabelecidos na sociedade ou comunidade
humana. Ninguém lhe poderá lançar em rosto que é sonha dor, ainda
que seja de pesadelos, nem que não tenha fundamento na vida real o
que ele diz. Não inventa nada; seu mundo é nosso mundo. E depois de
observar e examinar “o que sucede debaixo do sol”, reflete-o por
escrito: escreveu “a verdade com acerto” (12,10).
5.3. Qohélet é crítico radical
O que Qohélet vê no campo das relações inter-humanas, a
seu redor, não é nada alentador; é o mesmo que viram e vêem muitos
outros, sábios ou responsáveis, em maior ou menor medida, pela
marcha da vida da co munidade humana. A diferença está em que ele
não permanece calado; diz em voz alta o que a maioria silenciosa
pensa.59Não lhe satisfaz o que lhe
ensinaram desde pequeno na sinagoga, na escola e no templo: o
ensino tradicional contido por escrito na Lei ou Torá, nos
Profetas, nos Sábios e na tradição viva do povo.
Qohélet não é moralista, não levanta a voz como os antigos
Profetas, mas constata, como sábio, a contradição evidente entre o
que às vezes se ensina como doutrina recebida de Deus e o que
acontece: “Irá bem para os que temem a Deus, porque o temem, porém
não irá bem para o malvado, nem se prolongarão seus dias como uma
sombra, porque não é temente na presença de Deus. Há uma vaidade
que se verifica na terra: que há justos aos quais cabe a sorte dos
malvados, enquanto há malvados a quem toca a sorte dos justos”
(8,12-14; ver também 7,15).
Pode-se afirmar que a constatação repetida dessa contradição é o
prin cipal fundamento que tem Qohélet de sua visão crítica da
realidade e, con seqüentemente, da crítica implacável que faz ao
que se ensinou tradicio nalmente; para ele não existem tabus de
qualquer espécie.
Se Qohélet foi capaz de confrontar-se com o ensino
tradicional em coisas tão graves como na negação de qualquer
retribuição,60na impossi bilidade de conhecer os sentimentos de
Deus para com o homem,61já pode mos imaginar que não existe nada,
por muito certo que pareça, que não negue ou ponha em dúvida
Qohélet. Por isso repetirá uma e outra vez: “Tudo é vaidade”,
porque nada tem consistência, tudo desvanece como a fumaça e o
vento.
Os homens lutam e matam-se pelo poder; Qohélet, transfigurado
no rei mais poderoso de Israel com tudo o que o homem pode desejar
ou sonhar (cf. 1,12-2,10), confessa sem rebuços : “Tudo é vaidade e
caça de vento” (2,11).
Entre as coisas que mais estimamos, os humanos, estão as
riquezas, o possuir, o dinheiro. Com elas acredita-se
conseguir os bens supremos do homem: a segurança na vida, o poder,
o prestígio, o desfrutamento e gozo dos prazeres mais variados e
refinados, a possível felicidade em suma. Mas ocorre com elas como
com os fogos de artifício: muito trabalho para fugaz desfrutamento.
Qohélet apresenta-se a si mesmo, real ou ficticia- mente, como
o mais afortunado neste campo. Mas nem Salomão sentiu-se satisfeito
com todas as suas riquezas (2,4-11); nem o avaro: “O que ama o
dinheiro não se farta dele, e o que ama as riquezas não as
aproveita. Tam bém isso é vaidade. Quando aumentam os bens,
aumentam os que os co mem, e o que resta a seu dono senão o
espetáculo de seus olhos?” (5,9-10). Em todo caso o despojo total
de tudo é o triste resultado final para todos sem exceção: “Como
saiu do ventre de sua mãe, nu, assim de novo irá
como veio; e nada levará do trabalho de suas mãos. Também isso é
grave mal. Como veio, assim irá. E que vantagem terá aquele que
trabalhou para o vento?” (5,14-15. cf. também 6,1-2).
Quanto não fazem e dão homens e mulheres para conseguir alto grau
de consideração sociaU Mas esta, ao ver de
Qohélet, também é fumaça que desvanece, vento que não se pode
apanhar: “Fui maior e mais magnífico que todos os que me precederam
em Jerusalém”, diz o pseudo-Salomão, para acrescentar
imediatamente: “Tudo é vaidade e caça de ventos” (2,9.11). Não
infreqüentemente o espetáculo de nossa vida na sociedade é como o
de uma festa de carnaval: “Há um mal que vi sob o sol, um erro de
que é responsável o soberano: A tolice é colocada nos mais altos
postos, enquan to ricos se sentam abaixo; vi escravos a cavalo,
enquanto princípes iam a pé como escravos” (10,5-7).
Os filhos sempre se consideraram em Israel como bênção de
Deus. São a única garantia de futuro para um povo, uma estirpe, um
nome. Para Qohélet isso é evidente, pois a própria fama,
espécie de imortalidade, des vanece com o esquecimento, sorte que a
todos nos espera (cf. 1,11; 2,16; 9,5). Qohélet não dedica
sequer uma palavra amável aos filhos, mas algu mas muito amargas.
Normalmente, o filho é o herdeiro: “Aborreceu-me todo o fruto de
meu esforço pelo que me fatigo sob o sol, pois devo deixá-lo a meu
sucessor, e quem sabe se será sábio ou se será néscio? Certamente
ele terá pleno domínio de tudo o que consegui com tanto esforço e
sabedo ria. Também isso é vaidade. E acabei desesperando em meu
coração de todo trabalho pelo que me fatiguei sob o sol. Pois há
quem trabalha com sabedoria, ciência e acerto, e tem que deixar sua
porção a alguém que não se fatigou nela. Também isso é vaidade e
grande desgraça” (2,18-21).
Sobre as relações do homem com Deus em parte já sabemos como
pen sa Qohélet. Também este aspecto não se livra da visão
negativa de nosso autor. Deixa, contudo, primeiramente bem
assentado seu pressuposto fun damental religioso, ou seja, a
transcendência divina, e recomenda pru dência e respeito: “Não te
precipites com tua boca nem se apresse teu coração a proferir uma
palavra diante de Deus. Porque Deus está no céu e tu na terra.
Portanto, sejam tuas palavras contadas” (5,1). Se, apesar dis so,
se fazem votos e promessas a Deus, Qohélet exige seu exato
cumpri mento: “Quando fizeres voto a Deus, não tardes em cumpri-lo;
porque não lhe agradam os néscios; o que prometes, cumpre-o. Melhor
é que não faças nenhum voto, do que o fazeres e não cumprires”
(5,3-4).
III. COMO SE JULGOU QOHÉLET
Pelo que acabamos de dizer parece que têm razão de sobra os que dão
de Qohélet uma imagem inteiramente negativa e derrotista.
Todavia, em seu conjunto não cremos que seja assim. Dele se
disseram muitas coisas, coisas demais. A nosso ver, algumas
acertadas, outras não tanto, ou aber tamente errôneas. Por isso
cremos que em muitos casos será necessário matizar ou corrigir ou
negar semelhantes juízos e apreciações.
1. Introdução ao tema
Não se pode estranhar as acusações que se fazem contra Qohélet em
nosso tempo, pois, no século I de nossa era, a escola rabínica de
Shamay levava-o ao banco dos réus.10 que mais chama a atenção é o
recrudesci- mento destas acusações, especialmente a partir do
século passado.2Re centemente se repetem os mesmos juízos
negativos.3
2. Acusações contra Qohélet
2.1. Contradições
Um dos capítulos em que mais insistiram os que julgaram negativa
mente Qohélet foi o das contradições. Estas são por demais
evidentes para ignorá-las, sem tentar dar uma explicação. A isso se
deve que tenham surgido desde o começo tentativas de explicação e
harmonização, e que nós sintetizamos em dois capítulos: um dedicado
à composição e outro ao gênero ou gêneros de Qohélet.4
2.2. Pessimismo
Se há uma nota que em geral caracteriza Qohélet entre os autores
antigos e modernos é a do pessimismo. O começo do livro constitui
plano inclinado que nos leva a essa conclusão: “Vaidade das
vaidades — diz
lPode-se ver o que se dirá no capítulo XIII sobre a Canonicidade de
Qoh. 2Isso fazia V. Zapletal exclamar em 1911: “Não há nenhum livro
do AT em que se crê encontrar
tantos erros filosóficos e teológicos como no de Qohélet. Quem não
ouviu falar do pessimismo, determinismo, materialismo, ceticismo e
epicurismo de Qohélet? Quase em cada versículo pretende- se
descobrir um ou outro destes erros e maravilha-se que semelhante
livro tenha podido ser recebido no cânon do Antigo Testamento”
( Das Buch, 81).
3Cf. J. Lévêque, La Sagesse, 657; Ch. F.
Whitley, Kohelet, 1. 4Cf. J. L. Crenshaw
(1988), Eclesiastes, 46s. M. V. Fox considera de tanta
monta o tema das con
Qohélet — ; vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (1,2). A
sentença, com algumas variações, vai se repetindo por todo o livro
até 12,8: “Vaidade das vaidades — diz Qohélet —, tudo é vaidade”.
As interpretações que os autore dão de hebel podem ser
variadas, mas o tom de pessimismo é comum a todas elas.5Da mesma
maneira, este foi o aspecto que inspirou tantos autores, alheios ao
campo da teologia, literatos e filósofos espe cialmente.
Que Qohélet seja pessimista para a maioria dos autores, parece que
se deve admitir sem discussão. Nesta secção, como em todas, uns
autores são muito radicais, outros mais moderados. Assim passamos
da simples afirmação do pessimismo em Qohélet a uma visão
absolutamente derrotista do homem. J. Pedersen diz desempoadamente:
“A dor causada pela falta de êxito na vida nos proporciona em
primeiro lugar um ponto de partida para compreender o pessimismo do
Eclesiastes”.6Moderadamente se ma nifesta também Bo Isaksson, ao
escrever: “O traço pessimista em Qohélet, que eu preferiria chamar
de agonia do vazio ou sentimento do absurdo...”7 H. H. Schmid,
todavia, é contundente: “No mundo, tal como o vê Qohélet, mal há
lugar para o homem, nem sequer um lugar limitado”.8
Quanto à origem do pessimismo de Qohélet, alguns viram-no fora de
Israel, no Egito ou na Mesopotãmia,9outros em Israel.10A resposta
com pleta a essa pergunta vai unida à que se der a propósito do
capítulo sobre as influências a que está submetido Qohélet, e não
em último lugar em sua vida pessoal ou muito próxima. Neste sentido
é preciso levar muito em conta a situação sociopolítica que se
vivia em seu tempo.11
2.3. Ceticismo
O ceticismo é fruto espontâneo do pessimismo e vice-versa.12D.
Michel crê, todavia, que “mais aceitável que a classificação
‘pessimista’ é com cer teza ‘cético’, de fato Qohélet foi
apresentado com frequência por esse ponto de vista”.13
^Veja-se o Excursus 25sobre hebel. 6Scepticisme, 345.
’’Studies, 40. aWesen, 188. Uma sentença parecida é a de
R. H. Pfeifer (cf. The peculiar, 104-106). 9Diz, por exemplo,
R. B. Y. Scott: “As raízes mais profundas de nosso autor... estão
no aspecto
cético e pessimista da sabedoria do Egito e da Mesopotãmia”
( Ecclesiastes, 198). 10A única explicação adequada da
origem do pessimismo do Eclesiastes deve-se encontrar na tra
dição hebráica” (C. C. Forman, The pessimism, 342). nL.
Chopineau assinalava que “a falta de êxito na vida social e
política seria a fonte do pessimis
mo de Qohélet: expressão da filosofia de vida de classe dominante,
despossuída de seu poder” ( L’image, 599). n
I2As vezes os autores passam de um a outro sem adverti-lo, ou
talvez com plena consciência. 13Qohelet, 88; e cita E.
Pedersen (Scepticisme, 317-370), R. H. Pfeiffer {The
peculiar, 100-109), M.
O aberto otimismo que reinava no campo da sabedoria tradicional
desaparece em grande parte do horizonte de Qohélet, porque, fundado
sempre em sua experiência, ele é “cético teórico do
conhecimento”.14
Teve fortuna uma frase atribuída a H. Heine: Qohélet é “a glorifica
ção (das Hohelied) do ceticismo”, sinal manifesto de que a grande
maioria dos autores viu refletido o ceticismo em Qohélet. Não faz
muito tempo demonstrou-se que H. Heine não falava de Qohélet mas de
Jó.15
J. Pedersen começa assim seu célebre artigo sobre o ceticismo
israelita: “Em Israel, tem o ceticismo um representante
característico: é o autor do Eclesiastes”.16Ou como escreve G. von
Rad: “Este ceticismo aparece em toda sua amplidão e com vigor até
então inaudito no livro de Qohélet”.17Sobre isso, pelo que parece,
não há muitas dúvidas.18Qohélet é investigador in cansável, ainda
que nele se dê o paradoxo de que só se fia de suas compro vações e,
ao mesmo tempo, desconfia de suas próprias possibilidades.
Geralmente se reconhece que o ceticismo faz Qohélet duvidar
“somente das possibilidades humanas, não da realidade de
Deus”.19Como indica mos em outro lugar, Qohélet jamais põe em
dúvida a existência de Deus; o de que duvida (e até nega) é poder
chegar a conhecer como Deus está
14D. Michel, Qohelet, 33; cf. p. 89. Assim o confirma também
J. M. Rodríguez Ochoa, ao afirmar um pouco exageradamente que em
Qoh, “de todos os elementos que constituíam o antigo ideal da vida
não fica nada, apenas um ceticismo doloroso” ( Estúdio, 44).
Mais duro ainda é o juízo de G. von Rad: “E preferível conceber a
obra [Qoh] como uma nota marginal à tradição sapiencial, de um
ceticismo por certo muito amargo” (Teologia dei Antiguo
Testamento, 1,550). Essa afirmação sobre a marginalidade de
Qoh parece-nos desacertada. Cf. também A. M. Dubarle, Où en
est, 412.
15F. Ellermeier em 1965 desfez o mal-entendido, publicando o texto
completo de H. Heine (. Randbemerkung). A parte central diz:
“Por que o justo tem que sofrer tanto sobre a terra? Por que têm
que perecer talento e lealdade, enquanto o bufão fanfarrão...? O
livro de Jó não resolve esse penoso problema. Pelo contrário, este
livro é o cântico do ceticismo”
( Randbemerkung, 93).
A causa deste erro crasso está nada menos que em Franz
Delitzsch, que, em seu Comentário a Jó de 1894, aplica a Qohélet a
sentença de H. Heine, fazendo notar que Heine fala de Jó, e não de
Qohélet. Tbdavia, no Comentário a Qohélet de 1875 lemos: “Por
isso se poderia chamar o livro de Qohélet de o cântico do temor de
Deus, melhor que ‘o cântico do ceticismo’, como o chama H. Heine”
(F. Delitzsch, Hoheslied und Koheleth, 190 =
Commentary, 183). Curiosamente, no ano seguinte, 1876,
publicava-se a segunda edição do Comentário a Jó. A passagem
da primeira edição, em que se cita H. Heine, permanece inalterada,
ou seja, corretamente (cf. F. Ellermeier,
Randbemerkung, 94). A F. Delitzsch podemos aplicar o que
disse Horácio: “Quandoque et bonus dormitat Homerus”
(Ars, 539). Mas o erro de Delitzsch repete-se ainda nos
Comentários a Qohélet. E. Wülfel advertia em 1958 que todos citam a
célebre frase de Heine, mas nunca se indica em que lugar de seus
escritos encontra-se ela, e acrescentava que foi F. Delitzsch que a
citou pela primeira vez em seu Comentário a Qoh (cf.
Luther und die Skepsis, Munique, 1958, 60). Assim o
constata simplesmente H. W. Hertzberger em seu comentário
(cf. Der Prediger [1963], 222) e estranhamente também S.
Holm-Nielsen em 1974 (cf. On the interprétation, 168), apesar
de que, como vimos, F. Ellermeier tenha decifrado o enigma em 1965.
K. Galling (.Der Prediger, 84 nota 1) e A. Lauha
(Kohelet, 22) explicam-no já corretamente em seus comentários,
mas a maioria dos autores ainda não se inteiraram do fato.
16Scepticisme, 317. 17Teologia dei Antiguo Testamento, I,
549s. 18"Na atualidade há acordo geral de que o livro [Qoh] é obra
de cético derrotista” (S. Holm-Nielsen,
The Book, 40). 19M. Hengel, Judentum, 219, que cita
J. Pedersen (Schepticisme, 344). Cf. G. von Rad,
Teologíadel
Antiguo Testamento, I, 548.
presente e age no mundo e na história.20Duvida também de qualquer
sis tema que assegure ao homem poder chegar a conhecê-lo com toda
segu rança ou aos enigmas da natureza e da vida humana, “de tudo
aquilo que acontece sob o sol”.21
Quanto às causas e raízes do ceticismo em Qohélet, provavelmente se
deve responder da mesma maneira como fizemos ao tratar das causas
do pessimismo. Não é preciso ir muito longe para encontrá-las, ou
seja, na experiência real da vida de Qohélet, ou em seu próprio
sistema ou método de conhecimento: o que ele averiguou em suas
investigações, o que vê com seus próprios olhos e percebem todos os
seus sentidos na vida real, social e política são o fundamento de
seu próprio ceticismo.22Suas frustradas experiências religiosas
fazem com que se proponha uma interrogação an tes de tudo: para que
serve...?, que proveito tem?, que diferença há entre o
justo e o ímpio etc.?23
2.4. Agnosticismo
Qohélet não se o acusa de agnosticismo no sentido filosófico
estrito, pois é evidente que não se abstém de afirmações sobre Deus
e a natureza do criado,24algo que, em nenhum caso, faria verdadeiro
gnóstico.25Mas,
20"Qohélet não é absolutamente ateu niilista” (G. von Rad, Teologia
dei Antiguo Testamento, I, 551). R. E. Murphy escreve:
“Deveríamos matizar um pouco o nosso título [Qohélet o cético]:
talvez Qohélet o cético fiel... fosse mais apropridado... o
ceticismo não exclui a fé” (Qohélet, 358). Ilustra sua
afirmação com uma anedota pessoal com G. von Rad e conclui: a
resposta de von Rad “de que o ceticismo não exclui a fé põe-nos na
perspectiva acertada para interpretar o pensamento de Qohélet”
( Ibidem).
21R. H. Pfeiffer assegura que “o Eclesiástico não é apenas um
cético com relação aos sistemas filosóficos de seu tempo, mas
também com relação à busca de um summum bonum de valor perma
nente” (The peculiar, 108); cf. M. A. Kopfenstein, Die
Skepsis, 98.108-109.
22Cf. M. A. Klopfenstein, Die Skepsis, 105s. 23Cf. R. H.
Pfeiffer, The peculiar, lOOs; A. Lauha, Kohelet, 17
e H. P. Müller, Neige, 247-248, os
quais se deverá matizar em outro lugar. Um bosquejo do cético em
geral, que se inspira em Max Horkheimer, podemos ver em B. Lang,
Ist de Mensch (1979), 118. Em seguida vem a aplicação
a Qohélet: “Se passarmos do cético de Horkheimer a Qohélet,
encontraremos muitas afinidades: Qohélet é seguramente rico
aristrocrata; revela-o o desconhecimento com que fala do sonho
feliz do pobre diabo faminto (5,11). Provavelmente não teve nunca
que sofrer pessoalmente o lado negativo da vida. Como Montaigne se
refugiava em seu palácio como em uma ilha de felicidade, assim o
fazia Qohélet em suas festas. Também não intervém Qohélet na
política, nem empreende nada para mudar a misé ria do mundo, para a
qual tem olho tão vivaz. Fica desamparado diante dos acontecimentos
e deixa levar-se, como Montaigne, de lúgubres pensamentos. Nada
estranho que Montaigne lerá Qohélet com prazer” (o. c.,
118-119).
24Praticamente todos os comentadores subscreveriam o que G. von Rad
admite sem titubeios: “Qohélet não é absolutamente ateu niilista.
Sabe que o mundo foi criado e é regido continuamente por Deus”
(Teologia dei Antiguo Testamento, I, 551), e também: “No tema
da existência de Deus e de sua atuação soberana no universo,
compartilha o Eclesiastes absolutamente da concepção tradicional
dos sábios” (Sabiduría, 292).
analisando suas próprias confissões, pode-se descobrir “certo
agnosticismo”, como diria A. Allgeier.26
A atividade de Qohélet centra-se em investigar, averiguar,
tentar sa ber cada vez mais: “Dediquei-me a conhecer a sabedoria e
a observar as tarefas que se realizam na terra” (8,16). Depois de
seu imenso esforço, que simboliza o esforço da mente humana, chega
à conclusão de que “o homem não pode averiguar o que se faz sob o
sol; por isso o homem afadiga-se buscando, porém nada averiguará; e
ainda que o sábio diga que o sabe, não poderá averiguá-lo” (8,17).
O mistério, como densa nuvem, envolve-o por inteiro: “Longe está o
que existe e profundo, profundo, quem o desco brirá?” (7,24; ver
também 1,8.17; 3,11; 11,5). Especialmente impenetrável para o homem
é o futuro: “Pois é grande o mal que ameaça ao homem; uma vez que
ele não sabe o que acontecerá, pois quem lhe vai anunciar quando
acontecerá?” (8,6b-7; ver também 6,12; 7,14;10,14).
Essas confissões de Qohélet oferecem ocasião a alguns autores para
dele fazerem juízo muito negativo quanto a suas possibilidades de
co nhecimento.27Aqui reside a diferença tão radical entre o sábio
Qohélet e a sabedoria tradicional ou “antiga” de Israel. Essa é
otimista, talvez ex cessivamente otimista, e para ela é
transparente a realidade; encontra com facilidade, no mundo e nos
acontecimentos, a Deus que lhe fala. Em Qohélet, todavia, ao homem
“revela-se mudo o universo, apesar de a po derosa mão de Deus não
deixar de exercer sobre a criação seu domínio soberano”.28E se é
mudo para o homem o universo, não há possibilidade de
diálogo.29
São essas as limitações que Qohélet atribui ao homem no campo do
conhecimento; é este, portanto, também o horizonte de seu agnos
ticismo.
2.5. Determinismo e outras qualificações
Não é infreqüente o uso da palavra determinismo entre os comen
tadores de Qohélet; mas seu significado é equívoco. Desde o
extremismo exagerado de R. B. Y. Scott, que na prática converte o
Deus de Qohélet
26Das Buch, 15. 27Um dos mais significativos é G. von
Rad, que generaliza excessivamente sem acrescentar matiz
que talvez seja necessário: “O universo e os acontecimentos
intramundanos são inteiramente incom preensíveis ao Eclesiastes”
(Sabiduría, 289). Certamente, segundo von Rad, mais
incompreensíveis são ainda para Qohélet os desígnios de Deus: “O
homem é incapaz de conhecer (as) disposições de Deus, ou seja, ‘sua
ação’ no universo” (Sabiduría, 287). É preciso supor, portanto, que
o que Qohélet sabe de Deus, sabe-o pela fé que herdou e que vive em
sua comunidade.
28G. von Rad, Sabiduría, 293. 29L. Gorssen avança um pouco
mais e converte o homem em desconhecido a si próprio: “O
homem
num deus grego, impossibilitado de agir na história;30até o uso
mais mati zado de determinismo, que coincide com o das leis
postas por Deus na natureza.31Neste caso não se nega a liberdade de
Deus.32Quanto à liber dade do homem em Qohélet, geralmente se
afirma sua defesa;33mas tam bém se ouve alguma voz
discrepante.34
A Qohélet se aplicaram ainda muitas outras qualificações,
como cíni co, niilista, epicurista; cada dia menos freqüentes, mas
ainda ocorrem.35
3. Defesa de Qohélet
É preciso defender Qohélet de tudo que se lhe imputou? Não o creio,
pois que sobre ele se disseram coisas contraditórias. R. B. Y.
Scott afirma que “o autor é racionalista, agnóstico, cético,
pessimista e fatalista”, e como observação esclarecedora acrescenta
simplesmente: “Os termos não se empregam pejorativamente!”36Que
significado têm, então, os termos? O autor não o explica. Todavia,
não cremos que seja acertado o que em outro tempo se fez: a defesa,
custasse o que custasse, de Qohélet, mais por motivos dogmáticos ou
simplesmente apologéticos do que por razões ob
jetivas.37
30À doutrina da divina Providência converte-se em Qohélet em
determinismo arbitrário e absolu to. Qualquer possibilidade de
intervenção divina na natureza ou nos assuntos humanos está
excluída, visto que nada de novo acontece sob o sol”
( Eclesiastes, 198). O homem está, por conseguinte, domina do
pelo fatum (cf. o breve comentário que faz a 6,10 na p. 233).
31Pelo que parece, é isso o que pretende dizer G. von Rad, ao
escrever: “O Eclesiastes está conven cido de que existe algo como
uma norma, que exerce misteriosamente seu domínio sobre todos os
acontecimentos...” (Sabiduría, 288); como exemplos aduz 3,18.17;
8,6; 9,11-12.
32Diz-nos G. von Rad: O Eclesiastes “está convencido de que tudo
está nas mãos da livre atuação de Deus” (Sabiduría, 289). Mas de um
Deus déspota e arbitrário, segundo alguns: “Um traço essencial da
concepção de Deus no Eclesiastes é, segundo A. Lauha ( Die
Krise, 186) e o O. Rankin ( Ecclesiastes, Nova
York, 1956, 18), a incoerência ética da atitude divina. Deus
favorece ou desfavorece aos homens segundo sua vontade; converte-se
em déspota incompreensível e arbitrário. A religião perverte-se em
fatalismo, a lei em incerteza” (L. Gorssen, La cohérence,
315).
33"0 Eclesiastes pressupõe a liberdade da vontade (1,13.17; 2,1-10;
etc.)” (R. H. Pfeiffer, The pecu liar, 108).
“ "Contra essa misteriosa determinação [que domina na natureza] não
há possibilidade de resis tência. O homem é totalmente escravo do
destino. ‘O homem não pode enfrentar um mais forte’ (Ecl 6,10).
Agora já está suficientemente claro o que se oculta sob essa
inexorável determinação; o próprio Deus é quem fixa ‘os dias
contados’ da existência. Deus ‘criou’ não só o tempo de
prosperidade, mas também o da adversidade, e assim é preciso
aceitá-lo (Ecl 7,14)” (G. von Rad, La sabiduría, 289);
cf. V. Zapletal, Das Buch, 82a, onde cita M. Lutero e G.
Wildeboer.
35Cf. H. Lusseau, El Eclesiastés, 681. F. Spina, ao
dar-nos conta de um juízo de H. B. Y. Scott, acrescenta: “Em grande
parte essa avaliação, que de nenhuma modo se reduz a Scott, provém
da perspectiva cínica, e talvez até niilista, que caracteriza o
livro” ( Qoheleth, 267). Pode-se citar a controvérsia entre
os autores a propósito de Sb 2. Quem são os ímpios deste grande
discurso? Ver meu comentário a Sabedoria (a Sb 2,1, especialmente
nota 7); cf. J. Pedersen, Scepticisme, 370; A. Dupont-Sommer,
“Les ‘impies’ du Livre de la Sagesse sont-ils des
Épicuriens?”, RHT 111 (1935) 90 112.
3.1. A Qohélet se lhe lançou em rosto que é ser
contraditório. Ao dizer isso, geralmente se pensa de modo
cartesiano e ocidental. O modo de pensar de Qohélet é típico do
âmbito semita, que, com certeza, tam bém é lógico; mas à sua
maneira: mais compreensivo, mais vital, com mais alusões, menos
definido. Qohélet enfrenta a realidade e quer re fletir sobre ela
tal como a vê.38A vida está cheia de contradições; o sábio não deve
fechar os olhos ao que o rodeia e menos Qohélet que observa tudo.
Ele deixou gravado em seu livro o que viveu, se bem que fragmen-
tariamente.39
3.2. Otimismo relativo. À característica de pessimismo, com
que uma corrente de comentadores etiquetaram o livro de Qohélet,
outra corrente, não menos forte na atualidade do que aquela, propõe
a de otimismo relativo. Não é que se pretenda eliminar de
Qohélet as passa gens abertamente pessimistas; simplesmente se
incluem no juízo global as muitas passagens que apresentam outra
visão da realidade. Um pessi mismo absoluto em Qohélet não se pode
manter a não ser que se queira mutilar o texto, dele eliminando os
convites à alegria, tão típicos de Qohélet.40
Como não se pode encerrar Qohélet num adjetivo por muito impor
tante seja, há quem pense que se pode qualificar sua atitude de
eclética.41
3.3. O que dizer do ceticismo de Qohélet? Certamente não é
ceticismo paralisante. Um dos maiores defensores do ceticismo de
Qohélet, J. Pedersen, dele afirma: “Mas o que caracteriza o
Eclesiastes, como judeu, é que, apesar de toda sua amargura e da
falta de confiança que marca sua teoria, na prática não desespera;
recomenda perseverança tenaz, esforço infatigável para provar todas
as possibilidades (11,1-6). Teoricamente, fica com os braços
cruzados; na prática, age”.42
38J. Durandeaux expressa-se assim: “Para ‘salvar’ a Deus, Qohélet
não escondeu nada do que causava escândalo no mundo em que vivia: a
injustiça, o mal, a morte. Negou-se a percorrer os cami nhos fáceis
de uma teologia simples que tudo justifica em nome de Deus: não
esquivou-se a nenhuma das maiores contradições com que se confronta
todo crente” (Une foi, 182). Não tinha por que fazê-lo.
39Cf. B. Pennacchini, Qohelet, 493. 40Como nos diz D. Michel:
“Se lhe [a Qohélet] quiser pôr a etiqueta de ‘pessimista’, deve-se
falar ao
mesmo tempo de seu otimismo” (Qohelet, 87). R. Braun matiza:
“Não necessariamente é preciso qualificá-lo nem como pessimista nem
como fatalista, pois ele, apesar das limitações do homem, con vida
ao conhecimento do lado alegre da vida e à atividade como autêntica
possibilidade de realização do ser humano, o que, segundo
Nietzsche, no máximo se poderia qualificar de ‘pessimismo da força’
” (Kohelet, 181). N. Lohfink crê que “ele seria mal
compreendido ao se qualificar de pessimismo sua melancolia suave”
(Valores, 39).
41A. Bonora escreve: “Para Qohélet a alternativa não está entre
pessimismo e otimismo... Certa atitude eclética pode ser sabedoria!
(Qohelet, 129s). Em sua orientação fundamental otimista chama-
o também de “mestre no ensino para gozar da vida” (o.c., 97).
i2Scepticisme, 368.
Alguns negam abertamente que Qohélet seja cético;43outros
aceitam- no apenas em parte.44O que quer dizer que se admite que
Qohélet põe em dúvida quase tudo o que antes dele se aceitara sem
titubeios, que relativiza grande parte de nossos conhecimentos e
apreciações.45
3.4. Sobre o determinismo e o fatalismo em Qohélet
observamos algu mas precisões muito atinadas, que deixam muito
claro tanto a liberdade de Deus em suas atuações como a do homem ao
se dobrar às disposições divinas.46Deus é soberano no exercício de
seu governo (cf. 3,14; 7,13; 9,1); mas isso não faz periclitar a
liberdade do homem que Qohélet supõe em muitas passagens (cf.
3,16-17; 4,17-5,6; 7,29).
As lamentações de Qohélet não têm como centro a liberdade ou
falta de liberdade do homem, e sim não poder conhecer até o fundo
as coisas e os acontecimentos, sobretudo os iminentes, e não poder
introduzir mu danças como se desejaria.47
3.5. É ainda possível livrar Qohélet das acusações que se lhe
fizeram de ser epicurista, hedonista e cínico? Certamente não
se pode negar o evidente, suas afirmações: “Isto é o que
compreendi: A felicidade perfeita consiste em comer e beber e
desfrutar de todo o trabalho com que a pessoa se afadiga sob o sol
nos poucos dias da vida que Deus lhe deu. Tal é sua paga” (5,17). E
como essas muitas outras (cf. 2,24a, 3,12.22a; 8,15a; 9,7-9a;
11,7-12,la).48
Em primeiro lugar, não é censurável sem mais convidar a gozar na
vida dos bens deste mundo. Tudo depende de como se queira
conseguir. Uma é a forma que propõem Epicuro e os verdadeiros
hedonistas, e outra muito diferente a que propõe Qohélet.49E não
somente se distancia Qohélet de Epicuro e de seus fiéis sequazes,
mas também de correntes parecidas, porém mais antigas, do
Egito.50
43A. Vaccari sustenta que “embora Qoh pense que nós não podemos
entrar nos planos de Deus sobre o governo do mundo, todavia, supõe
muitas coisas certas acerca de Deus e da ordem física e moral;
louva também a ciência (7,12.19; 9,13-18) e confessa que é mais
proveitosa do que a ignorância, como a luz com relação às trevas
(2,13s), ainda que declare que não basta para a felicidade do homem
(2,15s). Logo não é cético” ( Institutiones, 77, ns 82;
cf. W. Zimmerli, Das Buch, 137; E. Zeller,
Die
Philosophie der Griechen, III 2, p. 304; D. Lys,
VEcclésiaste, 75. “ Cf. M. A. Klopfenstein, Die
Skepsis, 98. 45Cf. A. Bonora, Qohelet, 69; H.
Lusseau, El Eclesiastés, 681. ' 46F. Nõtscher afirma sem
atenuações que “Deus... exerce sua vontade completamente livre e
sem
coação” (Schicksal, 462). 47Cf. F. Nõtscher, Schicksal, 462.
4SVeja-se a análise que de todas essas passagens faz R. N. Whybray
em Qohelet. 49Cf. J. Durandeaux, Une foi, 42. Do mesmo J.
Durandeaux é esta magnífica sentença: “Aprendo
de Qohélet que é possível amar todos os prazeres amando a Deus e
sem ser neurótico” (o. c., 179). A propósito do poema sobre a
velhice 12,1-8), escreve A. Bonora: “Qohélet é o realista
desencantado! Não é hedonista desenfreado ou epicurista, todavia,
convida a gozar cada dia da vida como dom divi no”
(Qohelet, 139).
IV. ASPECTOS POSITIVOS DE QOHÉLET
A tradição rabínica que atribui ao rei Salomão, já ancião, a
autoria do livro do Eclesiastes,1é pura lenda, porém manifesta e
marca ao mesmo tempo a orientação pessimista dos intérpretes judeus
e cristãos durante séculos. Sabemos que a corrente pessimista
predominou até nossos dias, razão por que foi responsável de que se
tenham desconhecido aspectos muito importantes de Qohélet, pois “o
livro de Qohélet está cheio de ale gria e desejo de viver”,2como
indicamos a seguir.
1. Qohélet e sua personalidade sadia
Um livro, aliás muito breve, que causou tal diversidade de opiniões
entre autores de muito valor e de todas as tendências, não pode ter
sido escrito por autor medíocre e vulgar. Fazemos nosso o parecer
de R. H. Pfeiffer que diz de Qohélet: “Sua originalidade de
pensamento e sua ho nestidade mental dificilmente podem pôr-se em
dúvida; seu livro, em con
junto, não tem paralelo nem entre os judeus nem entre os
gregos”.3 Têm razão todos os que falaram do espírito crítico de
Qohélet, porque,
como já sublinhamos antes, têm-no e em sumo grau. Verdadeiramente
“Qohélet é mestre em desmascarar e desnudar, em pôr a descoberto e
fa zer vir à luz tudo o que tentam os homens esconder, embelezar e
masca rar. Chama o pão de pão”.4Ele enfrenta, de rosto descoberto,
os mais gra ves problemas que atormentam o homem, e põe por escrito
sem melindres o resultado de suas investigações sobre o escasso
valor das coisas, até as mais estimadas, sobre a mentira da vida em
família e na sociedade, sobre a concepção mercantilizada da
religião e os supostos conhecimentos do ser misterioso de Deus,
sobre a fria realidade da morte e sua repercussão na maneira de
conceber a vida etc. Por isso causa escândalo tantas vezes e tem,
todavia, razão no que diz.
Neste sentido é verdade que Qohélet é “sábio pessimista, desencanta
do, um tanto mestre da suspeição, um tanto resignado e impotente,
teste munha da crise dos valores sapienciais tradicionais”.5Mas
também é ver-
costuma ser irmão do desespero. As frases em que aconselha a
aproveitar e gozar de tudo o que se puder, contêm uma referência a
Deus, são inclusive as únicas que põem em relação assombrosamente
direta a ação humana com a vontade positiva de Deus: isto ‘agrada a
Deus’ ” (Qoh 9,7b); cf. 2,25; 3,13; 7,14; 9,7s” (Teologia
delAntiguo Testamento, I, 552s).
dade que a vida é complicada, que os fatos e as situações algumas
vezes têm muitos sentidos e outras vezes não têm nenhum, ou, ao
menos, não o encontramos. Qohélet abre os olhos para a realidade na
qual “se dão o mal e o bem que não podemos mudar e diante dos quais
nos vemos desvalidos. Ele nos protege do otimismo frívolo e da
supersegurança cristã”.6Por tudo isso podemos qualificá-lo como
lúcido pensador realista, que ridiculariza com fina ironia “todas
as doutrinas, ideologias, práticas, usos e crenças com que se
imaginam os homens ‘conhecer’ definitiva e exaustivamente a
realidade”.7
2. Qohélet busca o sentido da vida
Se tivéssemos de atribuir característica comum às reflexões e
divaga ções de Qohélet, seria essa provavelmente a de “busca”;
busca, mas de quê?
A pergunta não é retórica, e sim a meu ver, a pergunta mais
importante que nos podemos fazer ao ler Qohélet e tentar penetrar
no mais íntimo e respei tado da personalidad de Qohélet. Se
descobrirmos o que consciente ou in conscientemente buscamos em
nossa atarefada vida, encontramo-nos a nós mesmos, uma vez que
somos puro desejo que é preciso satisfazer. Mas então perguntamos
pelo sentido ou sem-sentido de nossos afãs, chegando assim a uma
das perguntas mais importantes que podemos fazer. “O sábio busca
compreender a vida humana”,8Qohélet é sábio.
Os que sublinham os aspectos negativos de Qohélet, nele não vêem um
enamorado da vida; todavia, nenhum pôde afirmar que Qohélet convi
de ao suicídio, sequer nos momentos mais obscuros da existência. H.
H. Schmid admite que neste ponto Qohélet não é conseqüente.9A razão
para Qohélet é óbvia, visto que o homem não é dono de sua vida nem
do dia de sua morte (cf. 8,8). Qohélet está em favor da vida,
apesar de seus misté rios e contradições, pois, em fim de contas,
“vale mais cachorro vivo que leão morto” (9,4).
Não são muitos os autores que fazem da vida o centro da atenção de
Qohélet, apesar de todas as aparências em contrário. E isso que de
verda de preocupa Qohélet: o sentido da única vida que temos e que
tanto apre ciamos. Dá voltas e mais voltas para ver se pode
decifrar o enigma de nossa existência. E afinal o que
descobre?
6B. Lang, Ist der Mensch (1979), 124. 7A. Bonora,
Qohelet, 150. 8L. Gorssen, La cohérence, 323. 9Cf.
Wesen, 192. G. von Rad reconhece que “Qohélet detém-se
subitamente perante a bancarrota
3. A vida não tem sentido transcendente
A tentativa persistente de Qohélet de compreender a
existência das coisas em geral, e da vida humana em particular,
fica estrepitosamente falida. A razão mais fundamental deste
malogro — causa principal do pes simismo de Qohélet — reside na
incapacidade do homem de compreender as obras de Deus, e na mais
radical ainda de decifrar os desígnios de Deus. Sobre o primeiro
lemos: “observei todas as obras de Deus: o homem não pode averiguar
o que se faz sob o sol; por isso o homem se afadiga buscan do, mas
nada averiguará” (8,17), e se o homem não pode “abarcar as obras
que Deus faz do princípio ao fim” (3,11), muito menos poderá
adentrar o mistério mesmo de Deus. A mera tentativa já é
temeridade, uma vez que, na expressão gráfica do autor: “Deus está
no céu e tu na terra” (5,1).
A isso se acrescentam as consequências que Qohélet tira de
suas per sistentes reflexões sobre a morte. Para ele é evidente que
a morte põe fim definitivo à única vida do homem que conhecemos, ou
“aos dias contados de sua vida” (2,3), “os poucos dias da vida que
Deus lhe deu” (5,17), “os dias de sua vida que Deus lhe concedeu
sob o sol” (8,15), “os dias de tua vida fugaz que Deus te concedeu
sob o sol” (9,9). Se Qohélet tivesse desco berto de alguma forma
que se projetava o destino do homem para além da morte, tê-lo-ia
consignado em seu livro, como tempos depois o fez o autor da
Sabedoria. Mas então Qohélet não seria o livro que conhecemos. Este
não-descobrimento de Qohélet em suas investigações outorga
paradoxal mente a seus múltiplos pensamentos valor transcendental:
a relativização de tudo quanto existe e se pode fazer sob o sol,
uma vez que tudo quanto existe, exceto Deus, tem valor relativo.
Qohélet expressa este “descobri mento” com sua variada fórmula
favorita: “tudo é vaidade”, “também isso é vaidade e caça de
ventos” etc.
4. Qohélet e os parciais mas alegres sentidos da vida
Mas não desespera Qohélet por não ter encontrado sentido pleno à
curta, efêmera e sempre ameaçada vida humana, nem retrocede em seu
empenho, quase fadado ao impossível, de continuar buscando, se não
a felicidade perfeita, o sentido que plenamente satisfizesse à
ânsia de abso luto de seu espírito insatisfeito, mas, pelo menos,
parcelas e frações de satisfação, momentos de felicidade, espaços
reduzidos e limitados de vida que d&a