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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 18 a 24 de novembro de 2010 Ano 8 • Número 403 ISSN 1978-5134 Reprodução e cultura latino-americana Pág. 8 Guilherme Delgado Pressão pelas “reformas” Já se iniciou a temporada de pressões sobre a presidenta Dilma, tendo em vista as iniciativas de reformas estruturais nas políticas econômica e social, que supostamente o novo governo promoveria no primeiro ano. Pág. 7 Prefeitura de SP ataca Lei de Fomento ao teatro e à dança Por meio de um decreto, a Prefeitura de São Paulo po- de pôr em risco uma das leis mais avançadas do Brasil em termos de financiamen- to de produções teatrais e de dança. Os trabalhadores da arte se mobilizam e pro- metem lutar para defender a Lei de Fomento contra mais um ataque. Pág. 6 Dezenove mortos, 159 desaparecidos e 723 fe- ridos é a contagem, até agora, do despejo, realiza- do pelas forças de repres- são do Marrocos, de um acampamento no Saara Ocidental, país ocupado há 35 anos. Os acampados exigiam melhores condi- ções de vida e igualdade de oportunidades. Pág. 12 Uma vitória dos atingidos por barragens Saaráuis na mira da repressão marroquina O presidente Luiz Iná- cio Lula da Silva assinou em outubro decreto que estabelece critérios de cadastro socioeconômico das pessoas atingidas por construções de represas e hidrelétricas em todo o país. Esta era uma reivin- dicação antiga do Movi- mento dos Atingidos por Barragens (MAB). Pág. 7 Silvio Mieli O baú sem fundos “Que é roubar um banco em comparação com fundar um banco?”, perguntava Bertold Brecht. A questão persiste desde a aurora do capitalismo financeiro (…) até aterrissar no recente escândalo do banco PanAmericano. Pág. 3 Beto Almeida Regulamentação da mídia O ministro da Secretaria de Comunicação Social Franklin Martins afirmou que todo o ruído dos grandes empresários para associar a ideia de regulamentação da comunicação à prática da censura “não passa de um truque”. Pág. 3 Um século de luta negra Entrevista com Abdias do Nascimento Págs. 4 e 5 A construção do preconceito Os últimos casos de intolerância contra nordestinos, como o da estudante de direito Mayara Petruso, mostram como determinados setores da sociedade brasileira, especialmente em São Paulo, agem para proteger e manter a estrutura social da qual fazem parte. Pág. 8 Ricardo Stuckert/PR Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr Reprodução Jose Lirauze/ABI Os últimos casos de intolerância contra nordestinos, como o da estudante de direito Mayara Petruso, mostram como determinados setores da sociedade brasileira, especialmente em São Paulo, agem para proteger e manter a estrutura social da qual fazem parte. Pág. 8 A tragédia estrutural haitiana Págs. 9 e 10 A tragédia estrutural haitiana Págs. 9 e 10 O “socialismo” militar boliviano Pág. 10 O “socialismo” militar boliviano Pág. 10

Edição 403 - de 18 a 24 de novembro de 2010

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 18 a 24 de novembro de 2010Ano 8 • Número 403

ISSN 1978-5134

Reprodução

e cultura latino-americana

Pág. 8

Guilherme Delgado

Pressão pelas “reformas”Já se iniciou a temporada de pressões sobre a presidenta Dilma, tendo em vista as iniciativas de reformas estruturais nas políticas econômica e social, que supostamente o novo governo promoveria no primeiro ano. Pág. 7

Prefeitura de SPataca Lei de Fomento ao teatro e à dança

Por meio de um decreto, a Prefeitura de São Paulo po-de pôr em risco uma das leis mais avançadas do Brasil em termos de financiamen-to de produções teatrais e de dança. Os trabalhadores da arte se mobilizam e pro-metem lutar para defender a Lei de Fomento contra mais um ataque. Pág. 6

Dezenove mortos, 159 desaparecidos e 723 fe-ridos é a contagem, até agora, do despejo, realiza-do pelas forças de repres-são do Marrocos, de um acampamento no Saara Ocidental, país ocupado há 35 anos. Os acampados exigiam melhores condi-ções de vida e igualdade de oportunidades. Pág. 12

Uma vitória dosatingidos por barragens

Saaráuis na mirada repressãomarroquina

O presidente Luiz Iná-cio Lula da Silva assinou em outubro decreto que estabelece critérios de cadastro socioeconômico das pessoas atingidas por construções de represas e hidrelétricas em todo o país. Esta era uma reivin-dicação antiga do Movi-mento dos Atingidos por Barragens (MAB). Pág. 7

Silvio Mieli

O baú sem fundos“Que é roubar um banco em comparação com fundar um banco?”, perguntava Bertold Brecht. A questão persiste desde a aurora do capitalismo fi nanceiro (…) até aterrissar no recente escândalo do banco PanAmericano. Pág. 3

Beto Almeida

Regulamentação da mídiaO ministro da Secretaria de Comunicação Social Franklin Martins afi rmou que todo o ruído dos grandes empresários para associar a ideia de regulamentação da comunicação à prática da censura “não passa de um truque”. Pág. 3

Um século de luta negraEntrevista com Abdias do Nascimento Págs. 4 e 5

A construção do preconceito Os últimos casos de intolerância contra nordestinos, como o da estudante de direito Mayara Petruso, mostram como determinados setores da sociedade brasileira, especialmente em São Paulo, agem para proteger e manter a estrutura social da qual fazem parte. Pág. 8

Ricardo Stuckert/PR

Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr

Reprodução

Jose Lirauze/ABI

Os últimos casos de intolerância contra nordestinos, como o da estudante de direito Mayara Petruso, mostram como determinados setores da sociedade brasileira, especialmente em São Paulo, agem para proteger e manter a estrutura social da qual fazem parte. Pág. 8

A tragédia estrutural haitiana Págs. 9 e 10

A tragédia estrutural haitiana Págs. 9 e 10

O “socialismo”militar boliviano Pág. 10

O “socialismo”militar boliviano Pág. 10

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Nossa política e nossas tarefas

FINDAS AS ELEIÇÕES e vitoriosa Dilma Rousseff, é hora de descer do palanque e encarar o Brasil re-al. Há muito a ser feito. Os dados abaixo são todos ofi ciais.Em que pese os avanços sociais do governo Lula, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD 2009 -, IBGE, divulgada a 8 de setembro, a renda média do brasileiro, calculada em R$ 1.106 em 2009, foi 2,2% inferior à de 2008.

Embora o rendimento real médio do trabalho tenha se elevado de R$ 1.082 (2008) para R$ 1.106 (2009) – alta de 2,2% –, esta variação ain-da é inferior à da década de 1990, quando subiu, entre 1995 e 1998, de R$ 1.113 para R$ 1.121. Em 2009, a renda per capita dos 10% mais pobres cresceu apenas 1,5%, enquanto a média nacional foi de 2,4%.

Em 2009, trabalhavam no Brasil 101,1 milhões de pessoas. Metade na economia informal, sem car-teira assinada. Comparado com o ano anterior, houve aumento do emprego com carteira assinada: de 58,8% (2008) para 59,6% (2009).

Porém, o desemprego teve alta de 18,5%. Em 2008, o índice foi de 7,1 milhões de desempregados. Em 2009, 8,4 milhões, acréscimo de 1,3 milhão de pessoas fora do mer-cado de trabalho.

O número de crianças no mer-cado de trabalho mereceu a signi-fi cativa redução de 1 milhão. Em 2009, encontravam-se no mercado de trabalho 4,25 milhões de bra-sileiros entre 5 e 17 anos de idade. Comparado a 2008, menos 202 mil crianças e adolescentes. Embo-ra no Nordeste tenha ocorrido um pequeno aumento entre jovens de 14 a 15 anos.

O índice de analfabetos de 2009 ainda é alto: 8,9% da população. Reduziu-se o número de analfabe-tos com mais de 15 anos de idade: de 10% da população (2008) pas-sou para 9,7% (2009). E um em cada cinco brasileiros é analfabeto funcional, incapaz de redigir uma carta sem graves erros de concor-dância e sintaxe, e também sem condições de interpretar um texto.

Com o governo Lula, o Brasil avançou na redução da pobreza e da desigualdade social. Cerca de 20 milhões de pessoas deixaram a extrema miséria. Porém, houve queda, nos últimos anos, do ritmo de aumento da renda dos 10% mais pobres.

Em 2009, encontravam-se em extrema pobreza 8,4% dos brasi-leiros (15,96 milhões de pessoas), numa população de 190 milhões. No ano anterior a 2009, a pobre-za extrema caiu 0,4%. De 2007 a 2008, havia decrescido 1,5%, três vezes mais. Portanto, o ritmo de desempobrecimento dos brasilei-ros foi reduzido.

É verdade que, graças à facili-dade de crédito (o volume chegou a R$ 1 trilhão) e à crise fi nanceira mundial, que obrigou muitos ex-portadores a destinarem seus pro-dutos ao mercado interno, houve signifi cativo aumento do consumo de bens duráveis: máquinas de lavar roupa, televisores, microcom-

putadores, celulares e aparelhos de DVD.

Hoje, 72% das moradias pos-suem tais equipamentos. O curioso é esta contradição: 59,1% dos do-micílios brasileiros não dispõem de rede de esgoto, o que equivale a 34,6 milhões de moradias.

No governo Lula, aumentou o número de casas com abastecimen-to de água, coleta de lixo e energia elétrica. Mas recuou o índice das que são servidas por rede de esgoto (saneamento): de 59,3% (2008) caiu para 59,1% (2009). À falta de saneamentos são atribuídos 68% dos casos de enfermidades.

Após sete anos de queda, a taxa de fecundidade voltou a subir no Brasil. Passou de 1,89 fi lho por mu-lher (2008) para 1,94 (2009).

O Brasil tende a um perfi l popu-lacional acentuadamente de idosos. Em 2009, 11,3% dos brasileiros tinham 60 anos de idade ou mais. Isso signifi ca aumento do custo da Previdência (que é um dos meca-nismos de distribuição de renda) e da saúde pública.

Quem se deu muito bem na ges-tão Lula foram os bancos. Os lucros dos três maiores – Banco do Brasil, Itaú e Bradesco – somam R$ 167 bilhões na era Lula, alta de 420% comparada à era FHC (quando o lucro foi de R$ 32,262 bilhões).

As mazelas do Brasil têm razões estruturais. Nenhum governo, desde o fi m da ditadura, em 1985, ousou promover reformas como a agrária, a tributária, a política, nem dos sistemas de saúde e educação. Enquanto não se mexer nessas estruturas e serviços, o país estará, como diz Jesus, pondo remendo novo em pano velho.

Espera-se que Dilma Rousseff mexa na estrutura da casa brasi-leira, sobretudo na fundiária e na tributária. A primeira, para dar fi m à imensidão de terras ociosas, à miséria e ao êxodo rural. A segun-da, para que o peso maior dos im-postos não continue recaindo sobre os mais pobres.

Frei Betto é escritor, autor de A mosca azul – refl exão sobre o poder

(Rocco), entre outros livros.

debate Frei Betto

Governo Dilma e o Brasil real

crônica Marcelo Barros

OU OS PARTIDOS de esquerda, as organizações e movimentos dos tra-balhadores e de todos os explorados e oprimidos se colocam a tarefa de aprofundamento e ampliação de suas bases – de modo independente e autônomo – e se lançam numa grande disputa política e ideológica da sociedade, ou estaremos fadados a sucumbir ao fascismo.

Em termos da disputa ideológi-ca, sua urgência fi cou patente nas últimas eleições presidenciais: de repente, como se ressurgissem das suas catacumbas, as forças mais sinistras do nosso país foram al-çadas ao proscênio pelas mãos do candidato derrotado: não satisfeito com o DEM, esse senhor legitimou o Comando de Caça aos Comunistas (CCC); a Tradição, Família e Pro-priedade (TFP); o Integralismo, e tantas outras sociedades de celera-dos. A grande mídia comercial, por sua vez, naturalizou essa questão, reforçando assim a legitimidade conferida por seu candidato a tais grupos. O nosso silêncio, por sua vez, será uma conivência, um refor-ço à banalização desse gravíssimo precedente.

Sobre a independência e autono-mia das organizações e movimentos dos trabalhadores, dois passos são imprescindíveis para nos livrarmos da herança fascistizante (e, portanto,

populista) da ditadura do Estado Novo: o fi m absoluto da carta e do imposto sindical; e a organização dos trabalhadores em seus locais de trabalho e de moradia, ao invés da organização em torno das sedes dos sindicatos e/ou de guias geniais dos povos, como pretendeu Getúlio Vargas, e em consequência do que pagamos muito caro no golpe de 1964: ocupadas as sedes dos sindi-catos, e presos ou perseguidos seus dirigentes, em menos de 48 horas a classe trabalhadora e o povo esta-vam absolutamente desorganizados e, portanto, incapazes de resistir, independentemente de qual fosse a orientação dos partidos que hege-monizavam a política nacional-de-senvolvimentista em curso durante o governo do presidente João Goulart.

Já no que diz respeito aos partidos políticos de esquerda, cabe incor-porar em suas políticas o enunciado nos dois parágrafos anteriores; orientar seus militantes para o trabalho de organização dos traba-lhadores e de todos os explorados e oprimidos, dando prioridade àque-les ligados diretamente à produção, seja nas cidades ou no campo; e por fi m, discutir, elaborar e disputar na sociedade um programa político claro para enfrentar a atual situação. Um programa que tenha como pre-ocupação a unifi cação das forças de

esquerda e da classe trabalhadora e do povo. Um programa que tenha como estratégia, o entendimento de que o avanço das nossas conquistas não se dará tendo como palco cen-tral (menos ainda exclusivo) as insti-tuições do Estado, mas que depende de combinar essas lutas institucio-nais com as lutas das organizações e movimentos populares. Sobretudo sem esquecer em nenhum momento que o terreno onde podemos crescer e ser mais fortes; são exatamente as ruas, avenidas e praças.

O quadro internacional que se esboça nos é desfavorável, e já é mais que evidente que as grandes potências econômicas e políticas vergam-se cada vez mais, do ponto de vista político e ideológico, para a ultradireita, na mesma velocidade e medida em que, a crise inaugurada há alguns anos começa a explodir mais dura em diversos países, como Grécia, Espanha, Portugal e França.

Em breve, um novo surto dessa crise se manifestará intensamente nos EUA, e não se tem ainda ideia de sua dimensão e da violência com que poderá nos atingir – sobretudo que hoje somos donos de duas das mais importantes reservas petrolífe-ras. As guerras são apenas a política feita através das armas, com a qual as maiores potências procuram re-solver seus problemas às custas dos povos, inclusive os seus.

Analistas de todas as procedên-cias têm advertido sobre essa crise e sobre a política belicista da Casa Branca, tão intensa hoje quanto o foi sob George W. Bush.

De acordo com o economista cubano Osvaldo Martinez, em seu artigo “Crise econômica global, guerra econômica e gasto militar”, “A estrutura do orçamento dos EUA e a lógica de sua política econômi-ca, com Bush e Obama, é a de uma economia de guerra na qual o gasto

militar exacerba o defi cit fi scal, mas permite o funcionamento de um ‘equilíbrio do terror fi nanceiro’, re-passa imensos lucros ao complexo militar industrial e mantém uma chantagem global baseada na força militar”. (CubaDebate, LA Habana, 16 de novembro de 2010)

Some-se a isto, a situação interna do país, onde as contradições de classes se aguçam. Apenas para ilus-trar essa questão, transcrevemos um trecho do que nos diz Bill Quigley, Diretor do Centro para os Direitos Constitucionais e professor de di-reito na Universidade de Loyola de New Orleans, em seu artigo “EUA: concentração de renda e aumento da pobreza como refl exos de suas polí-ticas elitistas”:

“A disparidade de renda nos EUA é hoje tão ruim como era an-tes da Grande Depressão, no fi nal da década de 1920. Entre 1979 e 2006, a camada formada pelo 1% mais rico mais que dobrou sua por-ção no total das rendas, passando de 10% para 23%. Sua renda anual média foi superior a 1,3 milhões de dólares. Nos últimos 25 anos, mais de 90% do total de crescimento das rendas nos EUA foi para os 10% mais ricos, deixando apenas 9% para as outras faixas de renda que formam os demais 90% da população”.

de 18 a 24 de novembro de 20102editorial

Gama

União e consciência negraNO BRASIL, ESTA semana começa pela recordação do dia em que foi implantada a República (15 de novembro) e se encerra com o dia consa-grado à União e Consciência Negra. Segundo historiadores recentes, no Brasil, a mudança da Monarquia para a República aconteceu quase por engano ou por acaso. Não era a opção profunda do Marechal Deodoro e de seus companheiros. E não signifi cou uma verdadeira transformação da forma de exercer o poder que continuou com as elites (Cf. Fábio Kon-der Comparato em Caros Amigos, nov. 2010). O segundo fato recordado nesta semana ocorreu em 20 de novembro de 1696. Neste dia, Zumbi dos Palmares, líder da resistência negra contra a escravidão, foi martirizado.

Atualmente, em várias cidades, este dia é feriado e conclui uma sema-na de comemorações culturais. Uma criança perguntou à mãe se união tem cor e o que signifi ca “consciência negra”. A unidade das raças e a igualdade entre os seres humanos supõe que cada cultura e cada povo tenha consciência de sua dignidade. Chama-se “consciência negra” o fato das pessoas afro-descendentes assumirem sua identidade cultural, cons-cientes do imenso valor de sua cultura, para contribuir com as outras na riqueza intercultural do Brasil.

A comemoração anual da memória do Zumbi é importante em um Bra-sil que ainda mantém uma herança de forte desigualdade social. Em inú-meros casos, na realidade brasileira, ser negro é quase sinônimo de ser pobre e ter menos acesso à escolaridade e ás condições sociais de outros brasileiros. José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, afi rma: “A cor negra da pele de homens e mulheres, assim co-mo sua raça e cultura própria, foram motivos de crueldade humana e de barbárie que mancharam e continuam manchando a dignidade da huma-nidade” (Carta Capital, 12/11/2008, p. 60).

Por isso, são sempre importantes e oportunos os programas que fo-mentam a igualdade de condições e a integração social de negros e bran-cos. Conforme a Constituição Brasileira, devem ser respeitadas e valoriza-das as comunidades remanescentes de Quilombos. São grupos que, desde os tempos da escravidão, reúnem negros, seus aliados e descendentes, em uma comunidade com cultura e valores próprios. Eles devem ter direito à terra coletiva e merecem das autoridades públicas a proteção e o apoio necessários. Estas comunidades estão organizadas em quase todos os Estados e somam mais de dois mil grupos e comunidades. Algumas delas mantêm elementos de idioma, de danças e costumes ancestrais que são de uma riqueza incalculável para todo o Brasil.

Uma das mais profundas riquezas das culturas afro-descendentes é a espiritualidade viva e bela das comunidades negras. A Mãe África perma-nece viva e atuante na memória religiosa dos seus fi lhos e fi lhas. Para ser escravas nos diversos países da América, foram sequestradas pessoas de diferentes áreas do continente africano. Para evitar rebeliões, os senho-res separavam os escravos vindos do mesmo clã ou região. Misturavam etnias. Proibiam que falassem as suas línguas e praticassem as suas reli-giões. Mesmo impedidos de saber onde estavam outros membros de sua família, também sequestrados, os afro-descendentes conseguiram manter as línguas, contar a seus fi lhos as histórias dos seus antepassados, guar-dar as canções da Mãe-África e reconstituir muitas expressões culturais e religiosas. Só podiam cultuar à noite, enquanto os brancos dormiam. Como objetos de culto, só possuíam seus corpos, suas vozes e os terreiros das senzalas, seus templos. Foram obrigados a adaptar antigos costumes da África às novas condições de clima, ao pouco tempo livre de que dis-punham e à sua extrema pobreza. Fundiram costumes religiosos, adapta-ram mitos e elaboraram oralmente uma explicação religiosa do mundo e da sua história. Esta teologia narrativa deu origem a religiões novas como o Candomblé, o Batuque, o Tambor de Minas, a Santeria cubana e o Vodu haitiano. Durante séculos, de geração em geração, se transmitiram ritos, cânticos e histórias ancestrais.

Nós somos chamados a continuar este caminho de reverência amorosa e delicadeza no diálogo e na colaboração com as outras religiões e culturas.

Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 30 livros, entre os quais Dom Helder, profeta para os nossos dias, Goiás, Ed. Rede da Paz, 2006.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

O nosso silêncio, por sua vez, será uma conivência, um reforço à banalização desse gravíssimo precedente

Uma das mais profundas riquezas das culturas afro-descendentes é a espiritualidade viva e bela das comunidades negras

As mazelas do Brasil têm razões estruturais. Nenhum governo, desde o fi m da ditadura, em 1985, ousou promover reformas como a agrária, a tributária, a política, nem dos sistemas de saúde e educação

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de 18 a 24 de novembro de 2010

No clássico A noite da madrinha, que procurava en-tender o papel dos programas de auditório, o sociólogo Sergio Miceli defende a tese de que o sucesso da tele-visão no Brasil deve-se a uma difusão restrita do sis-tema de ensino. Nesse contexto, o veículo funcionaria como mostruário de bens materiais e artigos de con-sumo, mas também como uma vitrine ideológica, de opiniões, atitudes, condutas e valores. As novelas e os programas de auditório atuariam como agentes peda-gógicos do sistema. Um casamento perverso entre as injustiças econômico-fi nanceiras e as mazelas do sis-tema de comunicação no Brasil.

O rombo no banco PanAmericano deveria estimu-lar não só a implantação de severos mecanismos de regulação dos bancos, como também de um controle efetivo dos meios de comunicação no Brasil, para que possamos nos livrar preventivamente da investida ili-mitada de outras fi guras de sorrisos marotos.

Em tempo: o megaempresário Eike Batista ainda não fundou um banco, nem tem um canal de comu-nicação…

O baú sem fundos “QUE É ROUBAR um banco em comparação com fun-dar um banco?”, perguntava o dramaturgo alemão Ber-told Brecht. A questão persiste desde a aurora do capi-talismo fi nanceiro, passando pela crise do sistema imo-biliário nos EUA, até aterrissar no recente escândalo do banco PanAmericano, do apresentador Silvio Santos.

Silvio Santos é um típico megaempresário brasileiro: explorou os mais pobres de todas as formas imaginá-veis; teve herdeiros; escreveu (ou mandou escrever) um livro; plantou árvores; bajulou o último governo militar a ponto de conseguir uma emissora de televisão. E, para completar, fundou o tal banco PanAmericano, que cau-sou um prejuízo superior a R$ 2,5 bilhões por causa de uma fraude contábil.

Como amealhou parte do seu capital? Depois de pa-garem as suadas prestações do carnê do Baú e desper-diçarem seus domingos diante do programa Silvio San-tos, centenas de milhares de pessoas trocavam as suas “poupanças forçadas” por um escorredor de macarrão ou um ralador de queijo nas lojas Tamakavy, do mes-mo empresário.

Antonio Cruz/ABrinstantâneo frases soltas

Silvio Mieli

de 1988, não foi regulamentado, bloqueado pelos mag-natas da mídia.

Registre-se que a regulamentação nos países centrais do capitalismo não impediu que seus modelos de comu-nicação dessem sustentação, em muitos casos, às políti-cas de intervencionismo militar, de neoliberalismo en-sandecido, de privataria e rapina contra as economias periféricas do mundo.

A novidade está no caso argentino. A lei do audiovi-sual nasceu de baixo para cima, com meses de deba-tes abertos, audiências públicas. E há, ainda, uma in-teressante semelhança com o artigo 223 da Constitui-ção Brasileira, ainda não regulamentado. A comunica-ção na terra de Maradona foi dividida em três segmen-tos: empresarial, estatal e público, no qual até univer-sidades e centrais sindicais passarão a ter TV. Além de ter sido quebrado o monopólio privado do papel de imprensa.

No Brasil, os constituintes foram sábios e colocaram no artigo 223 que a comunicação social deve ser com-plementar entre os sistemas público, privado e estatal. O coronelismo midiático acha que o espectro é proprie-dade privada dele. E não cumpre a Constituição. É pre-ciso pôr em prática o sábio desejo dos constituintes. É hora de regulamentar!

Tirania da mídiaAO ABRIR O SEMINÁRIO Internacional “Comunica-ção Eletrônica e Convergência de Mídias”, o ministro Franklin Martins afi rmou que todo o ruído dos grandes empresários para associar a ideia de regulamentação da comunicação à prática da censura “não passa de um truque”. Visa impedir o debate para manter tudo como está, desregulamentado, ou seja, sob controle absoluto de apenas alguns poucos grupos empresariais.

A iniciativa do governo de trazer a experiência de re-gulação da mídia de países que nada têm de esquerdis-tas como Portugal, Inglaterra, França, EUA, Canadá, Espanha e Argentina, começa por derrubar um dos tru-ques usados pelos conservadores para identifi car, falsa-mente, regulamentação com ameaça à liberdade de im-prensa: países referência construíram modelos de regu-lação, ampliaram a concorrência, a pluralidade e a di-versidade de atores sociais na mídia.

É rigorosamente falso afi rmar, como fazem os mag-natas da comunicação e suas marionetes, que a regu-lação pretendida por Lula não existe em nenhum lu-gar do mundo. Existe sim, vem até sendo aperfeiçoa-da mediante avanços tecnológicos. No Brasil, a legisla-ção é obsoleta, de 1962, quando não havia o vídeo-ta-pe, TV em cores ou celular. E o que há de novo no Bra-sil, o capítulo da Comunicação Social da Constituição

Beto Almeida

NOVO GOVERNO – O deputado federal Antônio Palocci chega para encontro com a equipe de transição de governo, reunida em Brasília no dia 16 de novembro

comentários do leitor

QualidadeAgradeço a gentileza da remessa de

exemplar do Brasil de Fato e felicito pela qualidade da publicação.

Com as expressões do nosso apreço, Maurício Azêdo – Presidente da Associação Brasileira de

Imprensa (ABI), Rio de Janeiro (RJ).

Novo projetoCaralho!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Nosso jor-

nal tá mais bonito. Passamos dos 60%. Agora dá para elogiar a cara do nosso jornal. Achei muito, muito bom mes-mo. Vamos em frente. Só faltam 40%.

Parabéns a todos os que contribuí-ram.

Abraços,Vito Giannotti, do Rio de Janeiro (RJ)

Sugestão de pautaAcho interessante o Brasil de Fato

abordar a recente polêmica sobre o pa-recer do Conselho Nacional de Educa-ção (do MEC) ao livro Caçadas de Pe-

drinho (Monteiro Lobato) que suge-riu nota explicativa contextualizando a obra por causa de alguns termos de co-notação racista. O assunto, na opinião de muitos integrantes do movimento negro, não teve o tratamento adequado pela grande mídia, o debate fi cou muito aquém da importância e complexidade do assunto.

Carlos Alessandro, de São Paulo (SP)

Copa do Mundo 2014Como bem diz a reportagem, a FI-

FA é corrupta e corruptível, basta to-mar como exemplo a CBF (Confedera-ção Brasileira de Futebol) que assegu-ra seus interesses com patrocínios, es-peculação e participação nas transfe-rências de atletas ao exterior, movi-mentando milhões de reais sem ne-nhum tipo de fi scalização por parte do Estado; e quando há CPI, acaba sen-do engavetada para não desestabilizar os interesses em torno do futebol. E se

há questionamentos por parte de jor-nalistas (como o Juca Kfouri), é sim-plesmente processado. João Have-lange, declarou em entrevista que Ri-cardo Teixeira deixará seu posto na CBF em 2014 para presidir a FIFA. Se com a CBF faz das transmissões de jo-gos um verdadeiro monopólio e ao bel prazer, de acordo com interesses da Globo, imagine o que não faria se pre-sidisse a FIFA?

Ricardo de Oliveira Teixeira Barros – por correio eletrônico

Educar para o socialismo É preciso educar as crianças, os jo-

vens e os adultos para o socialismo; vi-giar sem perseguir a imprensa burgue-sa; fazer uma reforma agraria e urba-na séria...Não é prioridade o esporte, mas também não é descartável... Mas a grande prioridade é a educação de to-dos para o socialismo!

Cristiano Dias – por correio eletrônico

3

A classe de área de mais de mil hectares no Mato Grosso do Sul obteve fi nanciamento de mais de R$ 1 bilhão e gerou um valor de produção de R$ 524 milhões. A pequena unidade de produção, com menos de 50 hectares, acessou R$ 2,4 milhões e gerou um valor de produção de R$ 42,9 milhões. Isso quer dizer que as áreas menores que 50 hectares multiplicaram por 20 o valor do fi nanciamento. E a grande propriedade dividiu por dois o valor do fi nanciamento

Rosemeire Aparecida de Almeida, professora da Universidade Federal do Mato

Grosso do Sul, em entrevista à RadioagênciaNP, na qual afi rma que a suposta “produtividade do

agronegócio” é um mito, 15 de novembro

5 milhões de pessoas usam, todo dia, transporte ferroviário na Alemanha. No Brasil, apenas 4.100 passageiros! O Brasil dispõe de apenas duas linhas ferroviárias para passageiros: Maranhão-Pará e Minas-Espírito Santo. As duas, privadas: da Vale

@freibetto, via Twitter, 13 de novembro

Lendo as absurdas argumentações da professora Janaina Paschoal ‘Em defesa da estudante Mayara’, lembrei que grandes pesquisadores do racismo e preconceito no Brasil, como Roger Bastide e Florestan Fernandes, denunciaram a lógica da inversão. (...) Se não fossem os negros, os nordestinos, os pobres, as prostitutas, os homossexuais; se Lula não fosse presidente, a estudante Mayara não teria cometido o destempério de pedir o assassinato de ninguém e tampouco teria sido demonizada. Coitadinha dela!

Heloísa Fernandes, professora associada de Sociologia da Faculdade de Filosofi a da

Universidade de São Paulo, em protesto contra o artigo publicado pelo jornal Folha

de S.Paulo, 14 de novembro

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culturade 18 a 24 de novembro de 20106

Velha arengaNem bem assentou a poeira da

eleição presidencial e a grande im-prensa burguesa já reiniciou o seu trabalho preferido, que é pautar o governo conforme os interesses do capital. Entre os vários temas do momento, inclusive a composição do ministério e a participação pri-vada no pré-sal, os alvos preferidos são o “defi cit da Previdência” e o “al-to custo da máquina pública”. Está na cara que o ataque está dirigido contra os direitos sociais.

Mídia mulherCom o apoio do Instituto Patrícia

Galvão, Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher e Secretaria de Políticas para as Mu-lheres, será realizado no Rio de Ja-neiro, de 2 a 4 de dezembro, o Semi-nário Mídia e Mulheres no Poder. A programação e mais informações po-dem ser obtidas na Agência Patrícia Galvão, [email protected] e fone (11) 3262-2452. A luta das mulheres tem tudo para ganhar for-ça em 2011!

AntitorturaTermina dia 24 de novembro o

prazo de inscrição para o processo de seleção do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortu-ra do Rio de Janeiro, que terá seis membros eleitos pelo Comitê Esta-dual, com mandatos até 2012 e 2014, conforme a Lei 5778, de 30 de junho de 2010, iniciativa do mandato do deputado estadual Marcelo Freixo. É mais uma tentativa para denunciar o terrorismo de Estado no Brasil.

AntimuralhaVários meios de comunicação bra-

sileiros participaram, dias 12 e 13, da maratona internacional de mídia organizada para denunciar o muro construído pelo estado de Israel para isolar as cidades palestinas da Cisjor-dânia. Com 700 quilômetros de ex-tensão, equivalente à distância entre São Paulo e Florianópolis, o muro é mais um marco do autoritarismo e da intolerância do governo israelita contra os povos do Oriente Médio.

Desrespeito – 1 De janeiro até outubro, o Sistema

Nacional de Defesa do Consumidor registrou mais de um milhão de re-clamações contra serviços e produ-tos. O campeão de reclamações é o sistema fi nanceiro (bancos e cartões de crédito), seguido da indústria (automóveis e eletrodomésticos). Empresas privadas concessionárias de serviços públicos – especial-mente de telefonia – continuam desafi ando o Código de Defesa do Consumidor.

Desrespeito – 2 Os movimentos sociais e ambien-

talistas do Mato Grosso denunciam a mais recente investida do agrone-gócio contra os povos indígenas e os recursos naturais daquele Estado: a Assembleia Legislativa aprovou o substitutivo 3 do Zoneamento Socioeconômico e Ecológico, que reduz as áreas de reservas e permite o plantio da cana em qualquer área do Estado, inclusive no cerrado, fl o-resta amazônica e Pantanal. É o fi m da picada!

OpportunityO jornalista Raimundo Rodrigues

Pereira lança, dia 26, na Livraria Argumento, no Rio de Janeiro, seu livro O escândalo Daniel Dantas – duas investigações, no qual apon-ta falhas na condução da Operação Satiagraha, da Polícia Federal, quando se descobriu que o Banco Opportunity havia criado 83 empre-sas de fachada, remeteu milhões de dólares para o exterior sem o devido registro e operava uma verdadeira “lavanderia”. A conferir.

Baú golpistaO golpe do Banco PanAmericano,

do Grupo Silvio Santos, encobriu um desvio de R$ 2,5 bilhões, enga-nou a fi scalização do Banco Central e as auditorias das empresas pri-vadas. Além disso, colocou a Caixa Econômica Federal na condição de sócia-laranja, já que o banco estatal comprou 36% da golpista, em 2009, com o golpe em pleno andamento. E ainda tem gente que acha o sistema fi nanceiro superseguro!

Classe médiaAs primeiras investigações sobre

as fraudes no Banco PanAmericano indicam que, entre outras mano-bras, os dirigentes da instituição tentaram encobrir a elevada inadim-plência nas linhas de crédito ao con-sumidor, em especial no fi nancia-mento de veículos. Se isso aconteceu mesmo com o PanAmericano, pode acontecer com outros bancos. Pare-ce que a “nova classe média” não é tão consistente como se pensava!

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Dafne Meloda Redação

CONSIDERADA A LEI mais avançada em termos de fomento à produção tea-tral no Brasil, fruto de anos de luta de grupos de teatro da cidade de São Paulo e modelo para a reivindicação de outros grupos de teatro pelo Brasil, a Lei de Fo-mento ao Teatro e Dança está novamen-te sob ataque.

Dessa vez, a gestão de Gilberto Kassab (DEM) editou um decreto (51.300, de fe-vereiro de 2010) que, de acordo com os trabalhadores ligados à Cooperativa Pau-lista de Teatro (CPT) entrevistados pelo Brasil de Fato, burocratizam e difi cul-tam o acesso dos grupos de teatro e dan-ça às verbas destinadas ao programa, fe-rindo a lei aprovada em 2001, durante a gestão de Marta Suplicy (PT).

O decreto muda a relação contratual entre a Cooperativa Paulista de Teatro – que representa juridicamente os grupos benefi ciados – e a Prefeitura, estabele-cendo um convênio. De acordo com um manifesto assinado pelo Movimento de Teatro de Grupo de São Paulo e pela Mo-bilização Dança, em novembro, o decre-to, “dentre seus ditados, aumenta a car-ga tributária dos projetos fomentados e converte os trabalhos prestados em con-vênios. Estas mudanças enquadram os grupos de dança e teatro em um mar fi s-cal burocrático que padroniza e estran-gula seu pleno desenvolvimento. O de-creto cria prerrogativas capazes de ani-quilar os fomentos, ou, no mínimo, dis-torcer suas características até tornarem-se irreconhecíveis”.

MudançasPara Luciano Carvalho, do grupo tea-

tral Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, o decreto não leva em conta que o processo continuado de pesquisa e pro-dução teatral, como defi ne a Lei de Fo-mento, não pode ser burocratizado e pa-dronizado, sob risco de prejudicar a li-berdade e autonomia dos grupos, um dos melhores aspectos da lei.

Um dos pontos criticados pelos gru-pos é a forma como passaria a ser fei-ta a prestação de contas. Tudo terá que ser defi nido, detalhadamente, antes, e por meio de um método contábil que engessaria o processo criativo. Os nú-cleos teatrais realizam a prestação de contas de todos projetos contempla-dos, mas em outros moldes. Luciano explica, por exemplo, que não se po-de defi nir previamente tudo o que vai ser utilizado numa peça. “Se no meio do processo você decide que não quer usar mais maquiagem, mas máscaras, para citar um exemplo, esse decreto di-fi culta esse tipo simples de mudança. O Fomento benefi cia grupos de pesquisa artística e o caráter peculiar desse tipo de pesquisa deve ser levado em conta”, defende.

Outro problema grave é que o decreto dá margem para que a verba destinada à lei seja disputada pela própria Prefei-tura e outros tipos de organizações so-ciais. Na prática, isso signifi ca retirar a verba dos grupos de teatro e dança para projetos culturais do município ou pa-ra outros grupos escolhidos pela Prefei-tura, por meio de um edital. “Eles que-rem controlar esse dinheiro e isso des-caracteriza a lei”, afi rma Luciano, para quem a motivação da Prefeitura é polí-tica e não meramente jurídica. Osvaldo Pinheiro, da Companhia Estável de Tea-tro, reitera: “As ameaças são no sentido de burocratizar mais esse processo para difi cultar o acesso dos grupos de teatro e dança a essa verba”.

MobilizaçãoOutra mudança contestada pelos gru-

pos é que há o aumento da carga tributá-ria sobre os projetos selecionados, uma outra forma de reter a verba do Fomento. Hoje, os grupos são responsáveis por pa-gar 11% do recolhimento para o Institu-to Nacional de Seguridade Social (INSS).

Com o novo decreto, a nova tributação seria de 20%.

Sua edição, assim como outras me-didas, em anos anteriores, que tenta-vam modifi car a lei, gerou uma forte re-ação de trabalhadores ligados ao teatro e à dança, muitos de grupos tradicionais, que têm desenvolvido trabalhos de for-ma contínua, por meio da Lei de Fomen-to. Osvaldo Pinheiro conta que há as-sembleias semanais e que as últimas vêm contando com mais de 200 pessoas.

No dia 10 de novembro, mais de 300 pessoas de 85 grupos de teatro e dança foram à Câmara Municipal de São Paulo para uma audiência da Comissão de Ad-ministração Pública da Câmara com os secretários Carlos Augusto Calil (Cultu-ra) e Cláudio Lembo (Negócios Jurídi-cos, ex-governador de SP). Ambos fi ze-ram um discurso conciliador, afi rman-do que a Prefeitura não tem interesse em interferir na Lei de Fomento. Um grupo de trabalho, integrado por Lembo, Calil, pelo procurador-geral do município de São Paulo e por representantes dos mo-vimentos de teatro e dança, foi estabele-cido para detalhar e discutir os danos do decreto à lei. “Nessa audiência, o Lem-bo cogitou a possibilidade de que a Lei de Fomento fi que de fora desse decreto”, conta Luciano Carvalho.

da Redação

Em todo Brasil, a cidade de São Paulo é reconhecida por abrigar um forte movi-mento teatral, contando com grupos que procuram produzir na contramão da ló-gica empresarial. A explicação para isso não está nas características inerentes a uma metrópole, mas sim na luta dos gru-pos teatrais.

A Lei Municipal de Fomento ao Tea-tro, aprovada em 2001 e em vigor des-de o ano seguinte, é fruto de uma reivin-dicação histórica de trabalhadores da ar-te, articulados em diferentes grupos, co-mo o Movimento Arte Contra a Barbárie. “A ideia da Lei do Fomento é fi nanciar

grupos, com investimento público, que tenham uma pesquisa continuada, se-ja em comunidades ou bairros. São gru-pos que já possuem uma trajetória e têm esse compromisso de fazer essa pesqui-sa continuada”, explica Osvaldo Pinhei-ro, da Cia. Estável de Teatro.

A lei destina uma verba fi xa, a ser corri-gida anualmente pela infl ação, ao fomen-to de projetos de pesquisa e produção te-atral da cidade de São Paulo. Todos os anos, 30 projetos são contemplados, dois terços deles no primeiro semestre de ca-da ano. Os projetos têm duração máxima de dois anos e devem prestar contas ao fi nal. Em 2002, o valor da verba foi de cerca de R$ 6 milhões. Hoje, com as cor-reções, chega a R$ 14 milhões. Para efei-tos comparativos, o governo federal ofe-rece anualmente mais de R$ 3 bilhões, em forma de renúncia fi scal, aos empre-sários que queiram investir em ações cul-turais via Lei Rouanet.

DemocratizaçãoAo contrário desta, porém, que permite

que o dinheiro público seja usado para fi -nanciar megaprojetos culturais nos gran-des centros urbanos, a preços caros e pa-ra um público das classes altas, a Lei de Fomento permite maior democratização,

aumentando a quantidade, a qualidade e a distribuição territorial da arte na cida-de. Como a dotação é fi xa, dá mais auto-nomia e liberdade necessária aos grupos de arte, justamente o que incomoda o po-der público que, em outras ocasiões, ten-tou cortar a dotação fi xa e burocratizar a lei. “A Lei de Fomento foi criada de uma forma que ela se autorregulamente. Não precisa de edital, de decreto, de nada”, defende Osvaldo.

Luciano afi rma que graças à lei, que deve, inclusive, ser ampliada, muitos grupos de teatro que atuam na perife-ria, antes invisíveis, passaram a ter vi-sibilidade e apoio para tocar seus pro-jetos. “Sua potência é reconhecida por amigos e inimigos”, aponta o ator, que afi rma que boa parte dos grupos benefi -ciados, hoje, atuam em bairros da perife-ria de São Paulo, alguns com grupos ex-cluídos, como albergues, ocupações etc. “A Lei de Fomento é um avanço que traz uma forma diferente de como as políticas públicas podem e devem prover a produ-ção artística e cultural. Nós conseguimos, com menos dinheiro, ter mais penetra-ção social do que os megaprojetos midiá-ticos travestidos de projeto artísticos e fi -nanciados via Lei Rouanet”, defende Lu-ciano. (DM)

Prefeitura de SP faz novo ataque à Lei de FomentoTEATRO Companhias afi rmam que decreto editado em fevereiro burocratiza acesso à dotação orçamentária e cerceia produção artística

Lei não é perfeita, mas seu balanço é bastante positivo

20% do recolhimento para o INSS

é o que os grupos de teatro e dança de São Paulo teriam que

pagar de acordo com o novo decreto da Prefeitura

“Estas mudanças enquadram os grupos de dança e teatro em um mar fi scal burocrático que padroniza e estrangula seu pleno desenvolvimento”

Legislação ajuda a democratizar a arte e dá autonomia e liberdade de criação a grupos artísticos

Membros da Cooperativa Paulista de Teatro participam de audiência pública

Reprodução

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brasil de 18 a 24 de novembro de 2010 7

JÁ SE INICIOU de maneira tácita ou explícita a temporada de pressões so-bre a presidenta Dilma, tendo em vis-ta as iniciativas de reformas estrutu-rais nas políticas econômica e social que, supostamente, o novo governo promoveria no primeiro ano. O argu-mento implícito é sedutor – há uma base parlamentar expressiva, sufi cien-te para aprovar até emendas constitu-cionais, e o primeiro ano de governo costuma ser, como manda a tradição parlamentar, de “estado de graça” pa-ra o presidente recém-eleito.

Sob o pressuposto da oportunidade política e da necessidade de reformas no sistema tributário e no sistema previdenciário brasileiro, começa-se a pautar o novo governo com uma reforma ampla e autodeclarada neu-tra em termos distributivos (Projeto de Reforma Tributária do fi nal do go-verno Lula – PEC 233-2008), cujos desdobramentos de desoneração da Contribuição Previdenciária e do es-tabelecimento de teto de gasto na Se-guridade Social, conduziria impli-citamente a uma opção de desmon-te ou arquivamento do experimento distributivo mais exitoso da Consti-tuição de 1988.

A falta de debate político na suces-são presidencial sobre política tribu-

tária levou a muitos consensos enga-nosos – um deles é o da desonera-ção ampla geral e irrestrita, preâm-bulo de uma redução da carga fi s-cal, a que se acrescentariam medi-das de simplifi cação e uniformiza-ção tributária em todo território na-cional, fi m da “guerra fi scal” etc. Es-se arrazoado, que contém meias ver-dades, continua fi rmemente repetido em algumas falas da presidenta elei-ta, sem qualquer menção à função re-distributiva que o sistema tributário precisaria exercer em uma sociedade desigual como a brasileira.

O primeiro reparo à tese da deso-neração geral, começando pela con-tribuição patronal à Previdência, pro-posta que já está lá na PEC 233-2008, é de dupla mão: 1– A desoneração ge-ral é equivocada porque desconside-ra o fato de que há grupos sociais al-tamente tributados (consumidores e trabalhadores), enquanto outros – pessoas jurídicas e pessoas físicas com altos rendimentos, gozam de verda-deiros privilégios fi scais que os deso-neram fortemente; 2 – O Regime Ge-ral de Previdência Social nos últimos dez anos incorporou mais de 20 mi-lhões de segurados – ativos e deve-rá prosseguir no ritmo atual (a incor-poração de segurados – contribuintes

no biênio 2006-2008 foi da ordem 3 milhões ao ano) no próximo quadriê-nio, fato que deve lhe implicar um cer-to ciclo de crescimento das despesas com benefícios no próximo quinquê-nio mais forte que a evolução da arre-cadação. Não há evidência de que so-brem, mas, ao contrário, de que fal-tem recursos a médio prazo para este sistema, que lida com mais de 60% da População Economicamente Ativa e paga um benefício médio aos inativos inferior a dois salários mínimos.

A pressão por reforma tributária ampla e neutra é também uma arma-dilha, que em geral costuma consu-mir muito capital político aos gover-nos que se iniciam. Não costumam vingar quando implicam em grandes mudanças constitucionais. Ademais, as questões distributivas (em prol da equidade), que essas iniciativas de re-forma sequer cogitam, não dependem de mudanças constitucionais, mas de leis ordinárias e regulamentos admi-nistrativos.

Não se deve concluir dessa obser-vação inicial que a agenda de refor-mas na política social e, particular-mente, no sistema tributário sejam desnecessárias ou puramente residu-ais. Ao contrário, para dar sequência e sustentação ao experimento de cresci-

mento econômico com maior igualda-de social, é fundamental contar com um sistema tributário adequado para cumprir o papel redistributivo na cap-tura dos recursos, coerente com a dis-tribuição dos benefícios monetários e em espécie que a política social execu-ta dentro das regras do chamado Es-tado Social.

Outra coisa que precisa fi car cla-ra à continuidade do experimento de crescimento com distribuição da renda é que esse estilo de desenvol-vimento exigirá, provavelmente por mais uma década, elevação e não congelamento ou redução dos gastos sociais vinculados a direitos básicos. Isto ocorrerá por pressão para inclu-são dos grupo sociais ainda não con-templados pela linha dos direitos bá-sico (Saúde, Educação, Previdência, Habitação e Reforma Agrária), como também pela pressão dos que já são atendidos de forma marginal ou pre-cária. Esse conjunto de pressões pre-visíveis não se coaduna com o siste-ma tributário atual. Mas a conversão dessas demandas difusas em projeto político concreto de mudança no pa-drão de tributação ainda levará tem-po para para ser assimilada politica-mente pelo Executivo e Congresso re-cém-eleitos.

Pressão por “reformas” Guilherme C. Delgado

A conversão dessas demandas difusas em projeto político concreto de mudança no padrão de tributação ainda levará tempo para para ser assimilada politicamente pelo Executivo e Congresso recém-eleitos

Alexania Rossatode São Paulo (SP)

É DIFÍCIL CONTABILIZAR a profundi-dade e a gravidade que os impactos da construção de barragens causam na vi-da dos atingidos. Para quem vai perder a terra onde sempre viveu ou as condições de trabalho, como no caso dos atingidos pela Usina Hidrelétrica de Estreito, o de-samparo parece não ser indenizável.

A obra está sendo construída sob o Rio Tocantins pelas empresas Suez-Tracte-bel, Vale, Alcoa e Camargo Corrêa, entre os Estados do Maranhão e Tocantins. Se-rá concluída ainda este ano, mas o con-sórcio só indenizou duas mil famílias, ainda assim com valores insufi cientes. Outras 1.200 famílias ribeirinhas de pes-cadores, quebradeiras de coco, barquei-ros e outros, que tiveram suas atividades de subsistência impactadas, não foram compensadas.

O caso das famílias atingidas pela usi-na de Estreito se repete pelo país afora. Mas essa realidade deve mudar a par-tir do decreto nº 7.342, de 26 de outu-bro, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O decreto estabelece crité-rios de cadastro socioeconômico às pes-soas atingidas por barragens em todo o país, como um instrumento de identifi ca-ção, qualifi cação e registro público da po-pulação atingida, monitorado e fi scaliza-do pelo Comitê Interministerial – forma-do por representantes dos Ministérios de Minas e Energia, Meio Ambiente, Agri-cultura, Pecuária e Abastecimento, De-senvolvimento Agrário, Pesca e Aquicul-tura e Secretaria-Geral da Presidência da República.

ReivindicaçãoEsta é uma reivindicação antiga do

Movimento dos Atingidos por Barra-gens (MAB), já que no Brasil não havia uma legislação que assegurasse os direi-tos dessa população, tampouco um órgão público encarregado de realizar as inde-nizações e reassentamentos. Para Joce-li Andrioli, da coordenação nacional do MAB, o decreto é um avanço, pois defi -ne legalmente quem deve ser cadastra-do, ou seja, quem são os atingidos e, por sua vez, quem deverá ser indenizado. “Is-to saiu do arbítrio das empresas”, decla-rou. Até hoje, a defi nição de quem é con-siderado atingido e a forma de indeni-zação eram decisões tomadas pelas em-presas construtoras da barragem. Tal si-tuação exclui a maioria das pessoas afe-tadas, pois considera apenas o conceito territorial patrimonialista de atingido.

Segundo o professor Carlos Vainer, da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro, via de regra, com o conceito terri-torial, os impactos abaixo da barragem não eram considerados, e as populações

que viviam nessa região não eram reco-nhecidas como atingidas, já que as áreas não eram alagadas. Por outro lado, pelo conceito patrimonialista, apenas era re-conhecido como atingido quem possuía o título da terra. “Muitas vezes só se re-conheciam como efetivamente atingi-dos os detentores de propriedade, in-denizando-se a propriedade e, em caso de ocupantes ou posseiros, apenas suas benfeitorias (e não a posse), o que sig-nifi cava, quase sempre, a inviabilização de sua reprodução enquanto produtor. Não se considerava a perda dos meios de vida, mas a indenização da proprie-dade”, disse.

AvançosO professor Vainer, que há anos faz

pesquisas com atingidos por barragens, aponta uma série de avanços do decreto no que diz respeito ao reconhecimento

de São Paulo (SP)

Desde 2009, o presidente Lula tem se manifestado publicamente sobre a necessidade de pagar a dívida histó-rica do Estado com os atingidos por barragens. Em fevereiro deste ano, durante o primeiro encontro do pre-sidente com o Movimento dos Atin-gidos por Barragens (MAB), Lula re-afi rmou a necessidade de estabelecer normas para o reconhecimento das fa-mílias como atingidas por barragens. O decreto avança neste sentido, mas não dá base legal de interferência so-bre o passivo social referente às anti-gas barragens, já que será válido pa-ra barragens licenciadas a partir de ja-neiros de 2011. Mas segundo os coor-denadores do movimento, sem dúvi-

de São Paulo (SP)

Durante a solenidade de assinatura do decreto, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) entregou para o presi-dente Lula a Plataforma Operária e Cam-ponesa. O documento é um conjunto de propostas formuladas pelos movimen-tos sociais da Via Campesina, Federação Única dos Petroleiros (FUP), Federação Nacional dos Urbanitários (FNU) e por sindicatos de eletricitários, que apontam linhas para que a energia esteja, de fato, a serviço do povo brasileiro. Na oportu-nidade, Joceli Andrioli criticou a entrega do setor elétrico para as empresas priva-das durante a onda de privatizações dos anos 1990. Segundo ele, é necessário re-tomar o setor elétrico sob controle do po-vo brasileiro, e essa é uma luta de toda a sociedade.

Alerta“O MAB e os demais movimentos e or-

ganizações que elaboraram a plataforma estarão atentos para os compromissos do novo governo e esperam que, de agora em diante, os atingidos por barragens e a sociedade em geral tenham mais partici-pação nas defi nições da política energéti-ca nacional”, complementou. (AR)

da confere grande força moral e políti-ca à luta do MAB pelo reconhecimento e reparação da dívida social contraída com as populações atingidas nos últi-mos 40 anos.

Fato históricoPara Joceli Andrioli, da coordena-

ção nacional do MAB, o decreto presi-dencial é um fato histórico e uma con-quista dos atingidos; e o gesto de ins-tituir uma forma de reconhecimento dos atingidos e de cadastrá-los é um esforço do governo reconhecido pelo MAB. “Temos que dar muitos passos ainda com relação ao passivo históri-co que o Estado tem com os atingidos e não abrimos mão de nossa luta pe-la reparação de toda dívida social das barragens já construídas. O cadastra-mento é muito importante, mas por si só, não nos garante as conquistas. Te-mos consciência de que, da mesma forma como aconteceram em outras oportunidades, é a nossa organização que vai garantir a implementação e o avanço desta política”, declarou. (AR)

de categorias de trabalhadores que de-pendem do rio ou do seu entorno para sobrevivência, como, por exemplo, os pescadores e comerciantes. “O decre-to é explícito quanto à perda da capa-cidade pesqueira. Ora, é sabido que co-munidades ribeirinhas muitas vezes de-pendem, seja para sua alimentação, se-ja para a pesca comercial, do potencial pesqueiro. Também reconhece o direi-to à reparação a todos os que, de algu-ma maneira, dependem do rio ou da co-munidade para sobreviver, como o bar-queiro que faz a travessia ou o proprie-tário de um pequeno comércio que ven-dia para uma comunidade que vai ser deslocada. Outro exemplo: o proprietá-rio de um caminhão que recolhia o lei-te de um conjunto de estabelecimentos na região inundada: seu caminhão con-tinua intacto, mas sua atividade foi com-prometida”, avalia.

Cadastramento para atingidos por barragensCONQUISTA O presidente Lula assina decreto que estabelece critérios de cadastro socioeconômico às pessoas atingidas por barragens em todo o país

Plataforma operária e camponesa da energia

O documento é um conjunto de propostas dos movimentos sociais

Avançar no pagamento da dívida socialPara Joceli Andrioli, da coordenação nacional do MAB, o cadastramento é muito importante, mas por si só, não nos garante as conquistas

“É a nossa organização que vai garantir a implementação e o avanço desta política”

Lula assina decreto durante encontro com o MAB

José Cruz/ABr

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brasilde 18 a 24 de novembro de 20108

Eduardo Sales de Limada Redação

A ESTUDANTE DE direito Mayara Pe-truso clamou, por meio de uma rede so-cial na internet, por um assassinato em massa. “Nordestino não é gente, faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado!”. A moça proferiu isso por con-ta da vitória de Dilma Rousseff (PT) nas eleições presidenciais, atribuindo sua vi-tória ao voto dos nordestinos.

A atitude dela, entretanto, apenas traça uma caricatura histórica de alguns seto-res da sociedade brasileira, especialmen-te o sulista. É de muito que a infelicidade do preconceito encontra eco nas classes médias e elites do país.

Um exemplo disso. Diogo Mainardi, no artigo “Com Dilma, o PT chega em quin-to”, escrito para a revista Veja, esbaldou-se da visão racista do jornalista carioca Euclides da Cunha (autor de Os sertões, morto em 1909) para criticar o povo bra-sileiro e nordestino.

Diz o texto de Mainardi: “analisando a campanha de Canudos, Euclides da Cunha delineou perfeitamente o caráter nacional”. O articulista de extrema-direi-ta, ao criticar a vitória de Dilma Rousseff e a continuidade do governo petista, ca-pitaneado com relativo sucesso por um pernambucano, afi rma que Euclides da Cunha compreende a mente e o compor-tamento dos brasileiros quando asseme-lha os seguidores de Antônio Conselheiro a “retardatários”, dotados de uma “mo-ralidade rudimentar” e com uma série de “atributos que impediam a vida num meio mais adiantado e complexo”.

ConstruçãoComo testemunha viva da história re-

cente brasileira, o sociólogo pernam-bucano e professor aposentado da Uni-versidade de São Paulo (USP) Chico de Oliveira, que trabalhou na Sudene (Su-perintendência do Desenvolvimento do Nordeste) ao lado do economista Celso Furtado, cita um exemplo e elucida ain-da mais o papel de fi guras da elite brasi-leira e paulista na construção do precon-ceito em relação aos nordestinos.

“Eu ouvi de Júlio de Mesquita Filho, na minha cara e na cara de Celso Fur-tado, há quarenta anos, num seminário promovido aqui em São Paulo, dizer que

Desconstruir o preconceitocontra o nordestinoRACISMO Para Luiza Erundina, é preciso “paciência histórica” para vencer esse mal arraigado em setores da sociedade brasileira

os esforços para desenvolver e industria-lizar o Nordeste eram em vão, porque o nordestino não tinha mentalidade para a indústria”, conta. Tratava-se, segundo Chico, de uma afi rmação, antes de tudo, racial. “Era um líder do jornal Estado de S. Paulo, e o pior é que o Estadão fez a cabeça de metade dos paulistas”, diz.

De fato, anos após a infeliz manifesta-ção de Júlio de Mesquita Filho, ou das ponderações de Euclides da Cunha em Os sertões, o preconceito contra o nor-destino arraigou-se não apenas na eli-te, segundo comprova a recepcionista baiana Juciara Nascimento da Silva, de 25 anos, que vive no bairro do Capão Re-dondo, na zona sul de São Paulo, há seis anos. Logo que chegou a São Paulo (SP), Juciara cursou o primeiro ano do ensino médio no Colégio Davi Aguiar Dias, no bairro onde mora. Ela revela que o fato de ser baiana e negra foi primordial pa-ra ser um dos alvos principais de gozação da turma. “Me chamavam de ‘nega preta’ e ‘nega encardida’; eu queria voltar para minha casa, na Bahia, e não ir mais para a escola”, conta.

Como o preconceito é, sobretudo, ideo-lógico, segundo nos afi rma a ex-prefei-ta de São Paulo e atual deputada fede-ral reeleita pelo PSB (SP), Luiza Erundi-na, nem sempre ele aparece de forma ex-plícita. “As próprias piadas e certas rea-

ções jocosas, aparentemente inofensi-vas, são expressão desse preconceito ar-raigado e incorporado em nosso compor-tamento”, salienta Erundina. Segundo ela, que é paraibana, ninguém está isen-to disso: “até mesmo nós, eventualmen-te vítimas desse tipo de comportamento, nos pegamos tendo reações que o reafi r-ma”, pontua.

DesconstruçãoLuiza Erundina pondera que os últi-

mos atos de agressividade empenhados contra nordestinos – surgidos, sobre-tudo, no estado de São Paulo –, como o da estudante de direito, ocorrem em mo-mentos mais “agudos” da história, de mudança. Ela lembra que o Brasil foi go-vernado por oito anos por Lula, e, agora, terá como presidente uma mulher. Pa-ra a deputada, acontecimentos que fo-gem dos padrões provocam manifesta-ções ideológicas, de intolerância contra o diferente – “do ponto de vista de raça, de gênero, de origem, de classe social” – que “ousa ocupar espaços historicamen-te ocupados por determinados segmen-tos da sociedade”.

Veio, então, uma sacada, com o fi m de reforçar a desconstrução do preconcei-to contra o nordestino. Segundo conta Erundina, ela nunca se sentiu diminuída ou humilhada por sofrer preconceito. Ao

contrário. “Fiz dessas questões das quais eu era vítima um pretexto para reforçar minha participação na luta contra o pre-conceito e a discriminação”, salienta.

Para ela, “se fi carmos recolhidos, viti-mizados ou diminuídos, estaremos con-tribuindo para a reprodução dessa cultu-ra que precisa ser mudada. E cultura não se muda nem por lei, nem por vontade de um e de outro, mas é uma mudança de mentalidade de uma maioria de determi-nada sociedade”, explica a paraibana.

A baiana Juciara engrossa o coro com a ex-prefeita e atesta que, quando retor-nar à sala de aula para completar o se-gundo e o terceiro anos do ensino médio, nenhum tipo de ato preconceituoso vai incomodá-la.

O conselho da paraibana à baiana e a todos os brasileiros afeitos à tolerância é: “temos que ter paciência histórica, como dizia Paulo Freire, e não nos sentir dimi-nuídos; temos que travar essa luta”.

da Redação

De acordo com a antropóloga Bernade-te Castro, da Universidade Estadual Pau-lista (Unesp) de Rio Claro, as classes mé-dias mais reacionárias do estado de São Paulo compreendem, em grande parte, as classes médias ascendentes e a tercei-ra e quarta gerações de imigrantes euro-peus, como italianos e portugueses, por exemplo.

Sobre as últimas, a antropóloga conta que são famílias oriundas de uma aristo-cracia rural que tiveram como herança o apossamento das terras e de riquezas du-rante o Brasil Colônia e o Império.

“Antes, as terras não eram deles. Eles vão conseguindo formar um patrimô-nio muito grande a partir dessa possibi-lidade de se apossar das terras do reino e da Lei de Terras de 1850”, conta, fazen-do referência à legislação que determina-va que as terras brasileiras só poderiam ser ocupadas mediante sua compra, en-quanto os que já as ocupavam teriam ga-rantido o título de proprietários. Tal nor-ma impossibilitaria a posse da terra aos ex-escravos, que não tinham como pa-gar por ela.

De acordo com Bernadete, essas famí-lias tradicionais, se não têm terras, pos-suem grandes patrimônios imobiliários. Para ela, é a partir desse enfoque prote-

cionista e patrimonialista que essas clas-ses médias desenvolvem suas visões so-bre os outros imigrantes, os índios e os negros. “Vão desenvolver um precon-ceito contra os próprios imigrantes num primeiro momento, e depois, alimenta-dos por um passado escravagista, emer-ge um racismo contra o índio e o negro. E o nordestino, como é o mestiço nisso tu-do, sofrerá um preconceito pior ainda”,

explica Bernadete. Segundo ela, isso tudo desemboca numa xenofobia contra todos aqueles que não têm o mesmo status e a mesma presença na estrutura social bra-sileira que essas famílias. (ESL)

da Redação

Luiza Erundina de Sousa é de Uiraú-na, na Paraíba. Ele foi eleita a primeira prefeita de São Paulo (SP), pelo PT, em 1988. Atualmente, exerce o cargo de de-putada federal pelo estado de São Paulo pelo PSB. “Eu sofri preconceitos e até ho-je sofro, numa dimensão muito menor que há vinte anos, porque hoje eu não ameaço o poder machista, patriarcal de ninguém”, salienta.

Segundo ela, o fato de ser nordestina foi apenas mais um elemento que po-tencializou reações preconceituosas logo após sua vitória nas eleições para a Pre-feitura paulistana. “O que ajudou tam-bém foi o fato de eu ser mulher, de es-querda, com história de luta e de resis-tência à ditadura civil-militar e ao pró-prio machismo”, explica.

Ela conta que no primeiro ano do go-verno foi forçada, por orientação de equi-pe de segurança do gabinete da prefeitu-ra, na época, a “evacuar”, ou seja, a não sair pela porta da frente da Prefeitura. Is-so porque havia ameaças de atentados e de bombas contra ela, segundo conta. “Até que chegou o momento que eu dis-se: ‘vamos sair daqui pela frente, mesmo que estoure’; porque era a tentativa de inviabilizar o governo”, lembra.

FezesA ex-prefeita de São Paulo revela que,

apesar de nenhum ato mais violento tê-la atingido, em muitas ocasiões, sobre-tudo no primeiro ano do governo, re-cebia correspondências com fezes den-tro delas. “Isso não foi uma ou duas ve-zes, foram diversas vezes. E dentro esta-va escrito: ‘Vá embora, nordestina nojen-ta’, ‘Por que você não vai fazer política na sua terra’?”.

A ex-prefeita de São Paulo pondera, entretanto, que não se pode generalizar as coisas. “Dizer que é o paulista, o pau-listano, que se comporta dessa forma in-tolerante não é certo. Até porque, no meu caso, nordestina, tive oportunidade há vinte anos de ser eleita justamente nes-sa cidade, caracterizada pela pluralida-de étnica, cultural, uma diversidade mui-to grande, que também dá oportunidade aos que migram para cá”, conclui.

Para Bernardete Castro, é a partir desse enfoque protecionista e patrimonialista que essas classes médias desenvolvem suas visões sobre os outros imigrantes, os índios e os negros

Status, patrimonialismo e preconceito

“Eu sofri preconceitos e até hoje sofro, numa dimensão muito menor que há vinte anos, porque hoje eu não ameaço o poder machista, patriarcal de ninguém”

Paraibana, primeira prefeita de São Paulo

Traços de formação de elite paulista revela parte da origem do preconceito contra o “diferente”

Luiza Erundina pede para que os nordestinos não se sintam vitimizados

“Me chamavam de ‘nega preta’ e ‘nega encardida’; eu queria voltar para minha casa, na Bahia, e não ir mais para a escola” “Cultura não se muda nem por lei, nem

por vontade de um e de outro, mas é uma mudança de mentalidade de uma maioria de determinada sociedade”

Cena do Filme O Homem que Virou Suco, dirigido por João Batista de Andrade em 1981

Reprodução

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américa latina de 18 a 24 de novembro de 2010 9

Thalles Gomesde Maceió (AL)

“PRECISAMOS absolutamente deste di-nheiro o mais rápido possível para evi-tar que sejamos superados por esta epi-demia. Todos os esforços de combate à doença podem se tornar inúteis a menos que a verba seja angariada”.

Esse apelo categórico foi pronunciado em 12 de novembro por Elisabeth Byrs, porta-voz do Escritório para a Coorde-nação de Assuntos Humanitários da Or-ganização das Nações Unidas (ONU). A quantia a que ela se refere é o montante de 163,9 milhões de dólares que, segun-do a ONU, seria necessária para contro-lar a epidemia de cólera que se propaga no Haiti desde meados de outubro e que matou, até momento, mais de 900 pesso-as, além de infectar outras 14 mil.

As palavras de Byrs se somam à recen-te declaração do Departamento de Saú-de da Flórida, estado estadunidense que possui mais de 240 mil migrantes de ori-gem haitiana. A preocupação das autori-dades sanitárias é com a possibilidade da epidemia se alastrar para outros países vizinhos, inclusive os EUA.

Segundo a página ofi cial na internet do departamento, “a cólera não se espalha tão facilmente em países desenvolvidos como os EUA, mas queremos assegurar que não deixaremos situações de alto ris-co passarem despercebidas, como a cóle-ra em alguém que manipule alimentos, ou focos isolados”.

Controlar a epidemia e evitar a propa-gação da doença para fora das frontei-ras haitianas é a preocupação atual da ONU e das ONGs estrangeiras presen-tes na ilha. De fato, essa parece ser a tô-nica da atuação da comunidade interna-cional no país: combater as consequên-cias das tragédias e fechar os olhos para suas causas.

CóleraCólera é uma infecção intestinal aguda

causada por uma bactéria chamada vi-brio cholerae, que se transmite pela in-gestão de água ou alimentos contamina-dos, principalmente, por fezes de pesso-as infectadas. Apesar de alcançar propor-ções epidêmicas em regiões empobreci-das da África e Ásia, até o início de outu-bro passado nenhum caso de cólera ha-via sido registrado em território haitia-no, segundo informações de Claire-Lise Chaignat, chefe do grupo de controle glo-bal da cólera da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Não há ainda um consenso a respei-to da origem da epidemia, que se tor-nou evidente a partir do dia 20 de outu-bro quando dezenas de pacientes come-çaram a morrer com febre alta e diarreia num hospital da cidade de Saint Marc, departamento de Lartibonite. A princi-pal suspeita dos especialistas é a de que a enfermidade tenha vindo do estrangeiro e se difundido pelo país através da conta-minação do rio Lartibonite.

A Minustah (Missão das Nações Uni-das para a Estabilização do Haiti) desta-cou, em comunicado ofi cial, “a difi culda-de, inclusive a impossibilidade” de saber como a cólera chegou ao país, visto que foi comprovado que o microorganismo que causou a epidemia é igual ao encon-trado na Ásia meridional.

No entanto, entre a população haitia-na, as suspeitas recaem justamente sobre os soldados da própria Minustah, espe-cifi camente um batalhão oriundo do Ne-pal, país asiático onde a cólera é endêmi-ca. Localizado no município de Mireba-lais, a poucos quilômetros de Saint Marc e às margens do rio Lartibonite, o atual contingente de soldados nepaleses che-gou ao Haiti nos primeiros dias de outu-bro, depois de um novo surto de cólera ter atingido seu país de origem.

Edmonde Suplice Beauzile, senado-ra do departamento haitiano de Plateau Central, solicitou uma investigação sobre a responsabilidade da Minustah na pro-pagação da epidemia. Para Beauzile, os soldados nepaleses “contaminaram o rio, causando a morte de muitas pessoas. Pe-dimos à Minustah que solicite a um orga-nismo independente a abertura de uma investigação”.

Confi rmada essa hipótese, a missão ve-rá sua função de “estabilização do Hai-ti” novamente comprometida, justamen-te quando seu mandato foi renovado por mais um ano durante a última reunião do Conselho de Segurança da ONU, ocorri-da em 15 de outubro. Ocupando o territó-rio haitiano desde 2004, quando foi cria-da sob o pretexto de que o Haiti repre-sentava “uma ameaça à paz e à seguran-

ça da região” – sendo necessário, portan-to, o envio de uma força militar de ocu-pação para conter as mobilizações popu-lares depois da derrubada violenta do en-tão presidente Jean Bertrand Aristide –, a Minustah passa, hoje, por uma de suas maiores crises de legitimidade.

Durante os últimos seis anos, foram re-correntes as denúncias de tortura, estu-pro e assassinato. Além disso, passados dez meses desde o terremoto que abalou o país em 12 de janeiro de 2010, as tropas da ONU ainda não foram capazes de dar uma resposta efi caz às vitimas. Ruínas e acampamentos improvisados tomam as ruas da capital Porto Príncipe, mas não se vê nenhuma movimentação por parte das tropas militares para a retirada dos escombros e início da reconstrução de prédios e edifícios. E, por fi m, a cólera.

FuracãoCom a aceleração da epidemia nos úl-

timos dias, a previsão é de que “um to-tal de até 200 mil pessoas deverão ter os sintomas da cólera, indo dos casos de le-ve diarreia até a desidratação mais gra-ve”, informou a porta-voz da ONU, Eliza-beth Byrs, que completa: “Espera-se que os casos surjam numa explosão de epide-mias que ocorrerão subitamente em dife-rentes partes do país”.

Na cidade de Gonaives, foram regis-tradas ao menos 60 mortes por cólera.

Na capital Porto Príncipe, onde mais de um milhão de desabrigados do terremo-to vivem em acampamentos sem as con-dições mínimas de saneamento, 27 óbi-tos foram causados pela epidemia. “Por-to Príncipe é uma imensa favela onde as condições são muito ruins em relação às instalações sanitárias e de água. São as condições perfeitas para uma propaga-ção rápida da cólera”, afi rmou Jon K. Andrus, subdiretor da Organização Pan-Americana de Saúde (OPS).

Para agravar ainda mais a situação, no dia 5 de novembro, o furacão Tomas al-cançou o território haitiano, afetando, principalmente, as regiões noroeste e sul do país, deixando ao menos 21 mortos e cerca de 6 mil famílias desabrigadas.

As chuvas e inundações causaram des-lizamento de terra, bloqueando diversas estradas e inundando o rio Lartibonite, suspeito de ser o principal foco da epi-demia de cólera. Os relatos são de que os estragos nas áreas agrícolas foram enor-mes, gerando perdas que podem chegar a 70% dos cultivos como banana, milho e feijão, que formam a base da alimenta-ção local.

De acordo com o historiador José Luis Patrola, que coordena a Brigada Dessa-lines de cooperação entre a Via Campe-sina Brasil e as organizações campone-sas do Haiti, “os problemas causados pelo furacão terão maior efeito nos pró-ximos dois meses, quando a falta de co-mida atingirá outra vez os camponeses pobres dessas duas regiões considera-das as mais isoladas e abandonadas do país”. (Leia a entrevista com Patrola na página 10)

Este não é o primeiro furacão a asso-lar o território haitiano. Entre os meses de setembro e outubro de 2008, as pas-sagens do furacão Gustav e da tempesta-de tropical Hanna deixaram mais de 500 mortos e milhares de desabrigados. Pa-trola ressalta que “cada ciclone ou fura-cão que costuma atingir a região do Ca-ribe nessa temporada tem maior impac-to sobre o Haiti, que vive um grave pro-blema de desmatamento, acompanhado de técnicas agrícolas predatórias ao meio ambiente que levarão a um caos genera-lizado caso o problema não se resolva de maneira sólida e estrutural”. O desmata-mento no Haiti já destruiu mais de 95% das matas originais, e a principal fonte de energia do país – utilizada por mais de dois terços da população – ainda é o car-vão vegetal.

Lucro “Foi preciso mais uma catástrofe para

evidenciar o problema e fazer com que o Estado e a ‘comunidade internacional’ abrissem os olhos para tamanha vulne-rabilidade da população pobre. Esta epi-demia deveria envergonhar aqueles que ‘ajudam’ o Haiti há muitos anos e que, mesmo assim, não mudaram o dado de que mais de 90% dos camponeses conso-mem água suja”, denuncia Patrola.

De fato, a atual epidemia de cólera, os estragos do furacão Tomas e as milhares de mortes causadas pelo terremoto de 12 de janeiro são consequências dos graves problemas estruturais que levam a maio-ria da população haitiana a uma vulne-rabilidade permanente. O Haiti é, hoje, a nação mais pobre do continente ameri-cano, com 56% da população abaixo da linha da pobreza e com uma expectativa de vida de 58,1 anos. No país, a miséria já existia antes de qualquer terremoto, fu-racão ou cólera.

Ao não lidar com os problemas estru-turais, atuando para amenizar as conse-quências das tragédias ao invés de buscar combater suas causas, o Estado haitiano e a comunidade internacional transfor-mam as catástrofes naturais e a miséria no Haiti numa fonte inesgotável de lu-cros.

Aos 163,9 milhões de dólares deman-dados pela ONU para combater a atual epidemia de cólera, podemos somar os 126 milhões que a agência estadunidense Usaid está investindo no campo haitiano, os 9,9 bilhões de dólares para a recons-trução do país pós-terremoto prometidos por Bill Clinton e seus doadores, os 3,6 bilhões consumidos para manter as tro-pas da Minustah no país e os 7,5 milhões de dólares gastos mensalmente somen-te com o aluguel dos banheiros químicos para os desabrigados em Porto Príncipe.

É essa atitude que explica a situação paradoxal de o Haiti ser o país mais po-bre das Américas mesmo sendo o maior destinatário da ajuda internacional no mundo. 60% do PIB haitiano é oriundo de verbas estrangeiras que, assim como os furacões e ciclones, apenas “passam” pelo território haitiano, mantendo a in-fraestrutura e os altos salários dos fun-cionários da ONU e das milhares de ON-Gs, sem chegar às mãos da população e sem alterar as condições socioeconômi-cas do país.

“O Estado haitiano e a comunidade in-ternacional deverão pensar o Haiti sob outra ótica que não a das permanentes tragédias que aqui ocorrem”, aponta Jo-sé Luis Patrola, que conclui: “Ou pensa-mos a ajuda ao Haiti desde um ponto de vista de resolver problemas estruturais ou viveremos grandes espetáculos midi-áticos acompanhados de grande propa-ganda sobre doações para ajudas emer-genciais. Por dois ou três anos em segui-da, as catástrofes retornarão e veremos o mesmo espetáculo da tragédia se re-petindo”.

Cólera, furacão e lucroHAITI A tônica da atuação da comunidade internacional parece ser a de combater as consequências das tragédias e fechar os olhos para suas causas

163,9milhões

de dólares é a quantia necessária, segundo a ONU, para controlar a epidemia

de cólera no Haiti

Passados dez meses desde o terremoto que abalou o país em 12 de

janeiro de 2010, as tropas da ONU ainda não foram capazes de dar uma

resposta efi caz às vitimas

“O Estado haitiano e a comunidade internacional deverão pensar o Haiti sob outra ótica que não a das permanentes tragédias que aqui ocorrem”

Haitianos são socorridos em tenda improvisada pela Cruz Vermelha em Porto Príncipe

“Minustah equivale a cólera e miséria”, avisa cartaz em protesto na capital haitiana

Fotos: British Red Cross

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américa latinade 18 a 24 de novembro de 201010

Thalles Gomesde Maceió (AL)

EM ENTREVISTA ao Brasil de Fato, o historiador José Luis Patrola, membro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e coordenador da Bri-gada Dessalines de cooperação entre a Via Campesina Brasil e as organizações camponesas haitianas, dá um panora-ma sobre a epidemia de cólera que atin-ge o Haiti e debate os problemas estrutu-rais que contribuíram para o alastramen-to da doença.

Brasil de Fato – Vivendo no departamento de Lartibonite, foco principal da atual epidemia de cólera no Haiti, como vocês, da Brigada da Via Campesina, analisam a situação dessa região? Há hospitais sufi cientes? A população camponesa está tendo acesso aos medicamentos?

José Luis Patrola – No interior da brigada, não chegamos a fazer um deba-te mais profundo a respeito da atual epi-demia, pois estamos trabalhando em vá-rios Estados do país. Tratamos apenas de seguir rígidas medidas de prevenção, já que não somos especializados na aju-da aos milhares de afetados. O Haiti so-fre com vários problemas estruturais que levam a grande maioria da população a uma vulnerabilidade muito grande e per-manente. Uma das vulnerabilidades é a qualidade da água consumida pela popu-lação pobre e a evidente falta de qualida-de dos alimentos. O problema da quali-dade da água consumida, em larga me-dida pelos camponeses, é o principal mo-tivo do surto mortal da cólera que, se-gundo os últimos dados, já matou mais de 800 pessoas e registrou cerca de 11 mil hospitalizações. A grande maioria dos mortos e afetados pela cólera é for-mada por camponeses que consumiram a água contaminada na região de Larti-bonite, local da principal base da Brigada da Via Campesina. Os hospitais da região estão lotados desde há um mês. A preca-riedade dos serviços de saúde e de infor-mações a esse respeito evidencia outra

“Foi preciso mais uma catástrofe para evidenciar o problema no Haiti”ENTREVISTA Para José Luis Patrola, membro da Brigada Dessalines de cooperação entre a Via Campesina Brasil e as organizações camponesas haitianas, surto de cólera no país comprova a vulnerabilidade estrutural de sua população

grande vulnerabilidade vivida pela po-pulação haitiana que depende, em lar-ga medida, da ajuda internacional para assegurar medicamentos e materiais de prevenção.

Qual a atuação do Estado haitiano para lidar com essa epidemia? E em relação aos outros agentes internacionais, como a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, comandada pelo Brasil) e as ONGs, como se dá seu trabalho neste momento de crise?

Todo o sistema de saúde haitiano, in-cluindo o próprio ministério da área, há muito tempo se encontra muito fragiliza-do. E as estruturas existentes são limita-das para resolver os problemas rotinei-ros da população. Em caso de uma epi-demia que está se generalizando, a de-pendência externa aumenta. Foi preciso mais uma catástrofe, que não sabemos para onde vai, para evidenciar o proble-ma e fazer com que o estado e a “comu-nidade internacional” abrissem os olhos para tamanha vulnerabilidade da popu-lação pobre. Existem muitas ONGs sé-rias que realmente trabalham com o te-ma sob uma perspectiva estrutural. No entanto, o bombardeio internacional de informações sobre a epidemia deve-ria envergonhar aqueles que “ajudam” o Haiti há muitos anos e que, mesmo as-sim, não mudaram o dado de que mais de 90% dos camponeses consomem água suja. Signifi ca que o Estado haitiano e a comunidade internacional deverão pen-sar o Haiti sob outra ótica que não a das permanentes tragédias que aqui ocor-rem. Ou pensamos a ajuda ao Haiti des-de um ponto de vista de resolver proble-mas estruturais ou viveremos grandes espetáculos midiáticos acompanhados de grande propaganda sobre doações pa-ra ajudas emergenciais. Por dois ou três anos seguidos, as catástrofes retornarão e veremos o mesmo espetáculo da tragé-dia se repetindo.

O furacão Tomas também assolou o Haiti na semana passada. Quais as informações que se têm sobre os

danos causados? O furacão Tomas afetou o sul e o noro-

este do país. Trabalhamos em dois esta-dos dessas duas regiões afetadas e os re-latos são de que os estragos nas áreas agrícolas foram enormes, gerando per-das que podem chegar a 70% de culti-vos como banana, milho e feijão, que for-mam a base da alimentação. Dessa ma-neira, os problemas causados pelo fura-cão terão maior efeito nos próximos dois meses, quando a falta de comida atingir outra vez os camponeses pobres dessas duas regiões consideradas as mais isola-das e abandonadas do país. Cada ciclone ou furacão que costuma atingir a região do Caribe nessa temporada tem maior impacto sobre o Haiti, que vive um gra-ve problema de desmatamento acompa-nhado de técnicas agrícolas predatórias ao meio ambiente que levarão a um caos generalizado caso o problema não se re-solva de maneira sólida e estrutural.

Mesmo diante de todos esses problemas, as eleições presidenciais e legislativas do dia 28 de novembro estão mantidas? Como está a disputa eleitoral? Há possibilidade de esvaziamento das urnas diante dessa crise?

As eleições estão confi rmadas e elas

Vinicius Mansurcorrespondente em La Paz (Bolívia)

DURANTE AS comemorações do bicen-tenário do Exército da Bolívia, o coman-dante-geral da instituição, general Anto-nio Cueto Calderón, surpreendeu a to-dos ao qualifi cá-la como socialista e anti-imperialista. Eduardo Paz Rada, diretor do curso de sociologia da Universidade Mayor de San Andrés (UMSA), a univer-sidade pública de La Paz, analisa, em en-trevista ao Brasil de Fato, o comporta-mento e as mudanças nas Forças Arma-das (FA) nestes quase cinco anos de go-verno Evo Morales.

Brasil de Fato – Como você vê a autodefi nição do Exército boliviano como socialista, comunitária, anticapitalista e anti-imperialista?Eduardo Paz Rada – O que está cla-ro é que as Forças Armadas [FA], nos anos de governo Evo Morales, se incli-naram a uma posição muito identifi ca-da com o processo, com os movimentos populares. Elas praticamente coadjuva-ram plenamente com as ações do gover-no, sobretudo em suas medidas contra a Usaid [órgão estadunidense de fi nancia-mento ao desenvolvimento], a embaixa-da dos EUA e a presença da DEA [Agên-cia Antidrogas dos EUA, por sua sigla em inglês). Isso foi um marco histórico im-portante e de acompanhamento ao pro-cesso social. Entretanto, em relação à de-claração específi ca, creio que é excessiva, excede o que a própria Constituição sina-liza. A nova Constituição não dá um salto tão vertiginoso, e o socialismo não é um discurso, é toda uma construção que tem outros ingredientes. A declaração parece

buscar a consolidação do atual Alto Co-mando Militar, até porque também há uma renovação nos quadros militares de tipo geracional. Muitas autoridades não se atreveriam a dizer que se vive um pro-cesso socialista, ainda que haja elemen-tos que podem permitir impulsionar pro-cessos desse tipo.

O que explica a lealdade das FA ao atual processo político?

Evo Morales deu a atenção que antes não se havia dado às FA. Durante todo o período neoliberal, elas foram maltrata-das econômica e institucionalmente. Evo as reposicionou e aumentou considera-velmente o investimento. E, aí, há uma resposta a esse respaldo. As FA foram muito importantes nas nacionalizações mineiras e petroleiras, por exemplo. E, nesses cinco anos de governo, Morales, um espírito nacionalista, que é a carac-terística genérica desse processo, se im-pregnou muito nas FA. Além disso, Mo-rales tem um carisma especial na sua re-lação com as tropas, com a base dos mili-tares, e acho que isso afi ança sua relação com as FA. Já há uma identifi cação “pe-le à pele” desta base, que vem de setores populares, com o presidente. Além dis-so, o Evo foi muito hábil. Durante esses anos, ele visitou regularmente a maio-ria das unidades militares para tomar ca-fé da manhã, almoçar, dormir nos quar-téis, junto com as bases militares. Além disso, existe a experiência de delegações de movimentos populares que puderam receber instruções militares nos quartéis em períodos curtos.

A experiência da esquerda com os militares, especialmente na América Latina, é muito traumática. Mesmo

diante de um histórico recente de fi delidade militar na Bolívia, as FA lhe parecem dignas de tamanha confi ança?

Eu não descarto que nas FA existam setores organizados que sofrem a infl u-ência do que foi toda a estratégia dos EUA para a América Latina. Entretan-to, acho que foram tomadas medidas, em relação a esses setores, que foram con-trolados internamente e que estão muito isolados nesse momento. Por outro lado, as FA bolivianas são diferentes em sua composição em comparação com Chile, Argentina ou Brasil, onde elas são insti-tucionalmente muito consolidadas. Na Bolívia, elas são menos arraigadas a in-teresses de alguma oligarquia débil ou uma burguesia. Talvez esse elemento, o de não existir uma burguesia poderosa, torna débil a relação orgânica nesse sen-tido. Creio ser o processo político mesmo que está empurrando fortemente as FA a essa tomada de posição. O tema crucial é que elas não atuarão de maneira in-dependente enquanto houver um movi-mento popular forte respaldando o Evo Morales. Provavelmente, caso se vá debi-litando esse apoio – o que eu creio que está acontecendo, pois há um certo fra-cionamento do movimento popular, cer-tas dúvidas em relação ao Evo Morales – as FA começarão a ter papéis mais pro-tagonistas.

A proximidade do Executivo com as FA pode ser um perigo para a investigação de crimes cometidos pela ditadura militar?

Sem dúvida. Porque nas FA há um for-te espírito institucional. Ainda que se te-nha avançado muito nesse sentido, em alguns casos há um certo atraso dos che-

fes militares em dar mais informações, em abrir seus arquivos reservados. Is-so porque muitos desses militares esti-veram no período ditatorial e ainda es-tão em algum nível de mando ou têm al-guma infl uência. Entretanto, acho que, com o passar do tempo, vão ter que abrir todos os arquivos e, assim, esclarecer os crimes.

Por fi m, o senhor destacaria alguma outra recente mudança importante nas FA bolivianas?

São importantes as mensagens dadas sobre a vontade de se integrar a essa pro-posta de força militar latino-americana. Proposta que já foi falada em reuniões da Unasul [União das Nações Sul-America-nas] e da Alba [Alternativa Bolivariana para as Américas]. É muito importante, porque acho que seria a única maneira de gerar forças armadas latino-america-nas, em correspondência com o proces-so de mudanças, e romper as relações or-gânicas com os EUA. Sobretudo no mo-mento em que se está em curso uma polí-tica de blocos em nível mundial, aqui is-so pode ter uma importância especial, es-pecialmente em temas como as bases mi-litares estadunidenses que há em alguns países e o das Malvinas, que logo vai ex-plodir. Há petróleo ali e a Inglaterra es-tá interessada em intervir nisso. O go-verno argentino rechaçou, o brasileiro e o uruguaio também. Há versões de que a Inglaterra não está preparada para res-ponder a uma tomada das Malvinas por parte da Argentina. E se a Argentina tem respaldo das FA de seus vizinhos, seria muito diferente do que ocorreu em 1982, quando a recuperação das Malvinas foi revertida pela Inglaterra, apoiada pelos Estados Unidos.

“As Forças Armadas se inclinaram a uma posição muito identifi cada com o processo”ENTREVISTA De acordo com o sociólogo Eduardo Paz Rada, a declaração do comandante-geral do Exército de que a instituição é socialista e anti-imperialista é uma resposta à atenção recebida durante a gestão Evo

“O Haiti sofre com vários problemas estruturais que levam a grande maioria da população a uma vulnerabilidade muito grande e permanente”

ocorrerão, a não ser que a epidemia da cólera se amplie de forma generalizada em níveis extremos e ultrapasse o atu-al estágio, que é muito grave. Devido ao terremoto de 12 de janeiro, nenhum car-go eletivo público estará completo ou de acordo com a Constituição a partir do fi -nal do ano. Então, as eleições são neces-sárias para minimamente organizar essa situação de desordem generalizada.

Qual o posicionamento dos movimentos sociais haitianos diante da conjuntura atual do país?

De maneira quase unânime, o movi-mento camponês organizado decidiu não participar efetivamente do processo elei-toral e a tendência é termos um pleito bastante insignifi cante, sem perspectivas de grandes alterações na política econô-mica e social do país e distante do debate sobre os problemas estruturais do país.

BOLÍVIA

Esgoto a céu aberto em rua da capital do Haiti

Reprodução

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áfricade 18 a 24 de novembro de 201012

Héctor Rojo Letón de Madrid (Espanha)

CINCO MARROQUINOS mortos, segun-do o governo marroquino, e 19 saaráuis, segundo cifras ofi ciais da República Ára-be Saaráui Democrática (Rasd), além de 159 pessoas desaparecidas e 723 feridas, é o resultado do despejo do acampamen-to Agdaym Izik, localizado nas redonde-zas da cidade de El Aaiún, por parte das Forças Armadas marroquinas, em 8 de novembro.

Terminar de fazer essa contagem leva-rá dias, já que os enfrentamentos volta-ram depois dos enterros que se produ-ziam na manhã de 9 de novembro na capital do Saara Ocidental. A cidade sa-aráui foi tomada depois do despejo do acampamento por militares, policiais e colonos armados marroquinos. Dessa forma, é muito difícil para a população saaráui saber, de forma certeira, o para-deiro de seus conhecidos, como narra ao Diagonal, desde El Aaiún, Silvia García, integrante do grupo de defesa dos direi-tos humanos Thawra.

Desde meados de outubro, nas cerca-nias de El Aaiún, ocupado por Marrocos, havia se organizado um acampamento para protestar pelo fi m da discriminação contra os saaráuis, a igualdade de opor-tunidades, o acesso a trabalho e moradia dignos, a liberdade de expressão e o res-peito aos direitos humanos nos territó-rios ocupados por Marrocos desde 1975.

Pela primeira vez, cerca de 20 mil pes-soas realizavam um protesto contínuo de mais de 20 dias, desde que a Espa-nha abandonara o território, e, pela pri-meira vez, o direito à autodeterminação da população saaráui não primava so-bre o resto das reclamações. “O que Ra-bat não entendeu na ocasião da primei-ra intifada, de 2005, e continua sem en-tender, é que não enfrenta mais um gru-po político surgido do não cumprimento das promessas por parte da antiga potên-cia colonial, e sim jovens nascidos já sob a administração marroquina que reivin-dicam o que deveria ser normal”, expli-cou à imprensa Antoni Segura, catedrá-tico de História Contemporânea da Uni-versitat de Barcelona.

“Essa é uma nova forma de resistência e de reivindicação dos direitos dos recur-sos que o Marrocos rouba no Saara Oci-dental. A população autóctone sabe que lhe estão tirando os benefícios de sua ter-ra”, afi rma Pepe Taboada, presidente da Coordenadora Estatal de Associações So-lidárias com o Saara Ocidental (Ceas).

VisibilidadeA greve de fome da ativista pró-inde-

pendência Aminetu Haidar no aeropor-to de Lanzarote [Ilhas Canárias, Espa-nha] no fi m de 2009, deu visibilidade à batalha pelos direitos da população sa-aráui nos territórios ocupados (leia so-bre a greve de fome de Aminetu nas edi-ções 352, 355 e 356 do Brasil de Fato). “Graças também à ajuda das novas tec-nologias, porque as reivindicações e pro-testos saaráuis sempre existiram, assim como a repressão marroquina”, pontua Taboada.

Enquanto isso, no deserto argelino, cerca de 150 mil pessoas vivem refugia-das em cinco acampamentos desde que o Marrocos tomou militarmente a antiga colônia espanhola em 1975.

A Marcha Verde [nome dado à ofensiva militar do reino marroquino que ocupou o Saara Ocidental] cumpriu, nos primei-ros dias de novembro, 35 anos. E, ain-da que não se possa comparar, de novo a monarquia marroquina “deu à interven-ção militar uma cobertura civil, para en-cobrir suas ações”, explicou ao Diagonal Bucharaya Beyún, o delegado da Frente Polisario [que reúne as forças indepen-dentistas saaarauís] no Estado espanhol.

“Armaram a população civil, inclusive com uma espécie de facão, para que fos-sem os colonos os agressores da popu-lação saaráui. Tanto policiais como ci-vis estão entrando nas casas e saquean-do as lojas de saaráuis em El Aaiún”, nar-rava por telefone, durante a tarde de 8 de novembro, um saaráui que preferia não revelar sua identidade por temer a es-pionagem telefônica. Momentos depois, as autoridades marroquinas impunham um toque de recolher que esvaziava as

ruas da cidade saaráui, mas que não evi-tava os saques por parte da polícia e dos colonos.

NegociaçõesCom a chegada da noite a El Aaiún, co-

meçaram as conversações informais que, para esse mesmo dia, estavam previstas em Nova York entre Marrocos, a Frente Polisario e a ONU, com a presença de re-presentantes da Mauritânia e Argélia co-mo convidados.

“Não esperamos nada das conversa-ções. Com o despejo do acampamento, o Marrocos pretendeu romper as negocia-ções e nos acusar, caso não sentássemos a conversar, de sermos os responsáveis por tal rompimento”, analisa Bucharaya Beyún. Essa intervenção violenta tentava impedir a discussão da agenda de traba-lho que a comunidade internacional tem traçada, que terá seu principal encon-tro no dia 23 de novembro, denunciam os independentistas. Nesse dia, está pre-visto que Christopher Ross, representan-te da ONU para o Saara Ocidental, reú-na-se com o Conselho de Segurança das Nações Unidas para informar os avanços na região.

Entre os setores que apoiam a Frente Polisario, esperava-se um movimento positivo como resultado das duas últi-mas viagens de Ross à região e das atu-ais conversações informais. Ou seja, al-go que desbloqueasse a postura marro-quina, sustentada especialmente pe-la França, de não oferecer nada mais além do que a autonomia à população saaráui.

Enquanto isso, como em 1991, a Frente Polisario exige um referendo em que a anexação do Saara Ocidental ao Marro-cos, o estatuto de autonomia dentro do reino marroquino ou a independência pudessem aparecer em igualdade de con-dições nas cédulas de uma consulta so-bre a qual se chegou a um acordo após o cessar-fogo há quase duas décadas. Uma exigência respaldada pela legalidade in-ternacional e várias resoluções das Na-ções Unidas.

“Os saaráuis não queremos retomar a luta armada, mas, se for a única saída que tivermos, não nos restará outra op-ção do que nos preparar”, alertou o de-legado do Polisario em Madrid, Espa-nha. Bucharaya lembra que a volta às ar-mas estaria dentro da legalidade interna-cional, como forma de defesa diante da ocupação por parte de uma potência es-trangeira, ainda que reconheça que exis-tem muitas formas pacífi cas de resistên-cia, como demonstrou a população saa-ráui. (Diagonal)

Tradução: Igor Ojeda

de Madrid (Espanha)

Sem tempo para assimilar o vivido na manhã de 8 de novembro, a observado-ra de direitos humanos Silvia García, in-tegrante da organização de direitos huma-nos Thawra, narra ao Diagonal como se produziu o despejo do acampamento Ag-daym Izik nas cercanias de El Aaiún, capi-tal do Saara Ocidental. “Perdi todos meus objetos pessoais e documentos. Mas isso não importa, a única coisa que importa-va era manter minha câmera, e isso con-segui”, lembra.

Como conseguiu escapar do assédio marroquino?Silvia García – Saí, acho, com o últi-mo grupo de mulheres que abandonava a área. Não víamos mais saaráuis atrás de nós. Éramos umas 50 mulheres acompa-nhadas de crianças e uma pessoa em ca-deira de rodas. O problema não foi o ca-minho de Agdaym Izik a El Aaiún, cheio de efetivos policiais e militares que se riam de nós e nos insultavam. O proble-ma era deixar para trás o massacre que havíamos vivido, além do saque marro-quino.

Como foi o momento do despejo pelas forças marroquinas?

Às 5h30, nos acordaram, porque o alar-me tinha disparado. Então, subi ao telha-do da barraca para gravar. Uma hora de-

pois, chegou o helicóptero que avisava o início do despejo. Na nossa parte do acampamento, vimos centenas de carros de polícia. Depois, apareceram forças an-tidistúrbios totalmente equipadas, inclu-sive com coletes à prova de balas de plás-ticos que lhes faziam parecer robocops. Eu nunca havia visto policiais assim. Eles iniciaram o ataque com gases lacrimogê-neos, que te queimam a cara, te deixam sem respiração e irritam os olhos. Depois de descer do telhado, fugimos até o cen-tro do acampamento, perseguidos pela polícia. Os saaráuis se defendiam com pe-dras e com o que encontravam pela frente das agressões marroquinas. Então, topa-mos com outro grande contingente poli-cial e militar. Em um determinado mo-mento, fi quei sozinha e me refugiei na ca-sa do pastor, um dos três edifícios de ci-mento que havia antes do acampamento. Lá, cerca de 50 mulheres, crianças e al-guns garotos mais velhos tentavam impe-dir que a polícia derrubasse a porta e en-trasse. Mas não conseguiram, e tiraram todas de lá, menos os meninos.

Estávamos totalmente rodeadas por agentes armados com cassetetes, escudos e, inclusive, com metralhadoras. Tiravam os meninos um por um e, igual o que fa-ziam com outro grupo que víamos ao lon-ge, lhes algemavam e, no chão, os chuta-vam e golpeavam com os cassetetes. De-pois, eles eram levados e ninguém volta-va a saber deles. O mais terrível era a im-punidade com que passeavam, jogavam

as barracas ao chão e arrasavam com tu-do. Quando se foram, vimos dezenas dejipes conversíveis carregados de mantas,agasalhos e qualquer objeto de valor rou-bados. Quando fomos embora, tudo es-tava um lixão. Gravei como umas espé-cies de tratores arrastavam tudo e forma-vam um monte para, depois, atearem fo-go. Ao chegarmos à estrada, tudo estavatotalmente militarizado e víamos somen-te, desde longe, cortinas de fumaça, emAgdaym Izik e El Aaiún.

E ao chegarem a El Aaiún, o que encontraram?

Tudo estava cheio de pedras, barrica-das, coisas incendiadas... Contaram-nos que haviam matado vários saaráuis.

A resistência ao despejo do acampamento estava preparada?

Estava tudo organizado por comitês: de saúde, limpeza, segurança... a intenção era resistir o maior tempo possível. Por exemplo, havia barracas de segurança en-tre o muro marroquino e o resto. Durante o despejo, eu estive sempre atrás dos sa-aráuis que nos defendiam, que lançavam pedras para reter os marroquinos. Mas, de repente, escutamos “vamos, vamos”, por-que nos acossavam. Minha melfa [vestido tradicional saaráui] está cheia de sangue. Vi várias pessoas mortas, cabeças abertas, braços totalmente ensanguentados. Teve violência, muita selvageria e brutalidade. (HRL, do Diagonal)

O regime marroquino arrasa a lutapela igualdade no Saara OcidentalDIREITOS HUMANOS A repressão ao acampamento de Agdaym Izik marcou o processo de conversações entre Marrocos, saarauís e a ONU fi xado para o fi m do mês nos EUA

19saaráuis foram mortos pelas

forças de repressão marroquinas em 8 de novembro, segundo

cifras da República Árabe Saaráui Democrática

“Com o despejo do acampamento, o Marrocos pretendeu romper as negociações e nos acusar, caso não sentássemos a conversar, de sermos os responsáveis por tal rompimento”

“Os saaráuis se defendiam com pedrase com o que encontravam pela frente”Uma das observadoras internacionais que estavam no acampamento Agdaym Izik relata o momento em que as forças marroquinas o destruíram

Protesto na Espanha: volta às armas estaria dentro da legalidade internacional

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