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TIAGO CARZETTA MARCHINA
EDUCAÇÃO ESTÉTICA E CONTEMPORANEIDADE: UM ESTUDO DA
FORMAÇÃO HUMANA NO CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2010
TIAGO CARZETTA MARCHINA
EDUCAÇÃO ESTÉTICA E CONTEMPORANEIDADE: UM ESTUDO DA
FORMAÇÃO HUMANA NO CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA
Dissertação de Mestrado apresentada
como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação junto à
Universidade Cidade de São Paulo -
UNICID, sob a orientação da Profa. Dra.
Margaréte May Berkenbrock Rosito
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2010
Ficha Elaborada pela Biblioteca Prof. Lúcio de Souza. UNICID
M317e
Marchina, Tiago Carzetta. Educação estética e contemporaneidade: um estudo da formação humana no curso superior de tecnologia. / Tiago Carzetta Marchina. - São Paulo, 2010. 114 p. Bibliografia Dissertação (Mestrado) – Universidade Cidade de São Paulo - Orientador: Profa. Dra. Margarete May Berkenbrock Rosito. 1. Educação estética. 2. Educação como humanização. 3. Formação profissional tecnológica. I. Rosito Margarete May Berkenbrock. II. Título.
CDD 371.1
________________________________________
Profa.. Dra Margaréte May Berkenbrock Rosito (Orientadora)
________________________________________
Profa. Dra. Silvia Regina Rocha Campos Brandão
________________________________________
Prof. Dr. Julio Gomes Almeida
Comissão Julgadora
Agradeço a todos aqueles que enquanto fragmentos e luz fizeram possível esse trabalho:
Á Profa. Dra Margaréte May Berkenbrock Rosito pelas inúmeras “luzes”, pela
orientação, paciência, dedicação e pelo respeito.
A todos os professores do Programa de Mestrado em Educação da Unicid pelo aprendizado.
Aos colegas de sala pelo companheirismo e apoio, em especial ao Clovis e ao
Moyses, sempre parceiros.
Às secretarias Sheila e Juliana pela disposição e o carinho.
A Profa. Dra. Tereza Mª de Paula Cavalari Telles pela revisão do trabalho que iluminou meus pensamentos.
À Profa. Dra. Silvia Regina Rocha Campos Brandão e ao Prof. Dr. Julio Gomes
Almeida pela participação na banca: uma importante aula final.
Aos meus colegas de trabalho que acompanharam o processo, incentivando, apoiando, ouvindo... Sem vocês o trabalho teria sido muito mais escuro:
Bruna, Conceição, Cris, Dani, Edina, Eduardos, Fernanda, Gabriela, Gilmar, Ignatti, Joelma, Juliana, Liliane, Lisete, Luciana, Pepe (pelo incentivo em iniciar
o mestrado), Renata Salu, Sandras, Thais.
Aos amigos que tiveram paciência com as minhas ausências, Eddy, Ná e Lili.
Á minha madrinha, Tia Graça, pela silenciosa inspiração em seguir a carreira docente.
Aos meus pais, meu irmão, minha cunhada, minha Tia Cris, minha avó e meu
namorado por me apoiarem, ouvirem, incentivarem e mesmo sem entender muito bem o que eu estava pesquisando terem certeza de que iria dar certo,
OBRIGADO!
Dedico esse trabalho aos meus professores por me inspirarem a seguir a carreira docente, aos meus alunos que me motivam a estudar sempre e aos
colegas professores que se sentem desafiados a cada dia.
Disneylândia
Titãs
Filho de imigrantes russos casado na Argentina Com uma pintora judia,
Casou-se pela segunda vez Com uma princesa africana no México
Música hindu contrabandeada por ciganos poloneses faz sucesso No interior da Bolívia
Zebras africanas E cangurus australianos no zoológico de Londres.
Múmias egípcias e artefatos íncas no museu de Nova York Lanternas japonesas e chicletes americanos
Nos bazares coreanos de São Paulo. Imagens de um vulcão nas Filipinas
Passam na rede de televisão em Moçambique Armênios naturalizados no Chile Procuram familiares na Etiópia,
Casas pré-fabricadas canadenses Feitas com madeira colombiana
Multinacionais japonesas Instalam empresas em Hong-Kong
E produzem com matéria prima brasileira Para competir no mercado americano
Literatura grega adaptada Para crianças chinesas da comunidade européia.
Relógios suíços falsificados no Paraguay Vendidos por camelôs no bairro mexicano de Los Angeles.
Turista francesa fotografada semi-nua com o namorado árabe Na baixada fluminense
Filmes italianos dublados em inglês Com legendas em espanhol nos cinemas da Turquia
Pilhas americanas alimentam eletrodomésticos ingleses na Nova Guiné Gasolina árabe alimenta automóveis americanos na África do Sul.
Pizza italiana alimenta italianos na Itália Crianças iraquianas fugidas da guerra
Não obtém visto no consulado americano do Egito Para entrarem na Disneylândia
Quem sabe
Quem sabe sabe que não sabe
Porque sabe que ninguém sabe
E quem não sabe
Não sabe porque ninguém sabe
Luiz Tatit e Itamar Assumpção
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO______________________________________________ 12
1. A METÁFORA DO CALEIDOSCÓPIO: AS IMAGENS DA
NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA E OS PROCESSOS FORMATIVOS __
16
1.1 Um percurso singular formativo: a justificativa para a escolha do
tema_____________________________________________________
16
1.2 A imagem: a busca do sentido das experiências formadoras._____ 21
1.3 A abordagem hermenêutica: uma possibilidade de compreensão
dos discursos______________________________________________
25
2. A EDUCAÇÃO ESTÉTICA: UM PERCURSO PARA A FORMAÇÃ O
HUMANA DO TECNÓLOGO ___________________________________
35
2.1 A contemporaneidade: a necessidade de um processo contínuo de
formação_________________________________________________
35
2.2 A educação e a arte na contemporaneidade: um caminho em
direção à formação dos sujeitos________________________________
50
2.3 O processo formativo e a dimensão estética___________________ 57
3. A FORMAÇÃO HUMANA DO TECNÓLOGO: O
DESENVOLVIMENTO HUMANO PARA A VIDA PRODUTIVA ________
70
3.1 Uma reflexão sobre as Diretrizes Nacionais dos Cursos de
Tecnologia________________________________________________
70
3.2 A mobilidade social e a fluidez: a pertinência da formação estética
do tecnólogo_______________________________________________
86
3.3 O mundo contemporâneo: a essencialidade da liberdade na
construção da autonomia do sujeito ____________________________
91
CONSIDERAÇÕES FINAIS___________________________________ 104
REFERÊNCIAS____________________________________________ 110
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS CEB – Câmara de Educação Básica
CEE – Conselho Estadual de Educação
CES – Câmara de Educação Superior
CFE – Conselho Federal de Educação
CNE – Conselho Nacional de Educação
CP – Câmara Plena
MEC – Ministério da Educação
s/d – sem data definida
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Mapa Hermenêutico________________________________ 31
Figura 2 Encolhimento do Mundo____________________________ 36
Figura 3 Abaporu_________________________________________ 48
RESUMO
O Ensino Superior de Graduação em Tecnologia caracteriza-se por sua
adequação às exigências do mercado de trabalho, portanto, a rapidez e a
pressa são as marcas indeléveis desses cursos. Neste contexto, a educação
estética seria uma referência para a humanização dos sujeitos. Neste estudo,
estabelece-se, como objetivo, a reflexão sobre a possibilidade da instauração
da educação estética, voltada para a formação humana no Ensino Superior de
Nível Tecnólogo. Considera-se, sobretudo, a aceleração do mundo moderno,
sujeito ao avanço científico e tecnológico. A humanização, nos cursos para
formação de tecnólogos, requer dos professores, coordenadores e alunos uma
atitude de reflexão ininterrupta, diante da velocidade do tempo, que distancia o
homem dos valores morais, éticos e estéticos. Este reflexão constante conduz
o homem à liberdade. As marcas da contemporaneidade conduzem à
percepção da necessidade da implantação da educação estética para a
formação humana, nas Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos
Superiores de Tecnologia.. A hipótese é, portanto, que haja, nos Cursos
Tecnológicos, a oportunidade para que se formem sujeitos estéticos. A
elaboração do trabalho pressupõe a pesquisa documental, apoiada na
perspectiva de Gadamer (2000). O material analisado é a Resolução CNE/CP,
3 de 18 de dezembro de 2002 e, como apoio a essa análise, o Parecer
CNE/CP nº. 29/2002 que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais de Nível
Tecnólogo que deu origem à Resolução CNE/CP 3/2002.
Palavras-chave: Educação Estética – Formação Humana – Tecnólogo -
Hermenêutica
ABSTRACT
Higher Education Degree in Technology is characterized by its suitability to the
demands of the labor market, so the speed and haste are the indelible marks of
these courses. In this context, the esthetic education would be an opportunity to
humanize the subjects. In this study it is established as an objective, the
reflection on the desirability of the establishment of esthetic education, focused
on the human education at the Technology Level in Higher Education of the
Professional Technologist. It is considered, especially the acceleration of the
modern world, subject to scientific and technological advancement.
Humanization in courses for technologists, requires teachers, coordinators and
students an attitude of continuous reflection, given the speed of time, that
distances the man from moral, ethical and esthetic values. This constant
reflection leads man to freedom. The marks of contemporary lead to the
perception of the need for implementation of esthetic education for human
development, in the National Curriculum Guidelines, at the level of technology,
in higher education, for the Technologist training courses. The hypothesis is
therefore that there is, in the Technologist training courses, the opportunity for
creating esthetic subjects. The creation of this work is based on documentary
research, based on the perspective of Gadamer (2000). The analyzed material
is the Resolution CNE/CP 3, dated December 18th, 2002 and in support of this
analysis, the CNE/CP #29/2002 which deals with National Curriculum
Guidelines in Technologist Level that led to the Resolution CNE/CP 3/2002.
Key-words : Esthetic Education – Human Development - Hermeneutic
12
INTRODUÇÃO
Neste estudo, o foco central é a formação, no Ensino Superior de
Graduação em Tecnologia, considerando a conveniência da introdução da
Educação Estética, como elemento presente nos processos formativos dos
tecnólogos.
Propõe-se uma reflexão, a partir de algumas especificidades que são
decorrentes do mercado de trabalho, entre outras, a rapidez, nos cursos de
Graduação Tecnológica, com uma duração média de dois anos. Neste
contexto, a educação estética seria uma possibilidade de humanização dos
sujeitos na contemporaneidade.
A proposição da educação estética, como fundamento da formação
humana dos profissionais tecnólogos, possibilita o surgimento de uma
pergunta: para que serve a valorização da estética, como forma de
humanização dos sujeitos, na educação superior no nível tecnológico?
Esta expressão interrogativa, “para que serve”, mostra que a educação
estética não tem sido objeto de reflexão, com frequência, nos cursos superiores
de formação do profissional tecnólogo. Pelo contrário, os propósitos da
educação e da formação passam pelo estabelecimento de privilégios do ensino
tecnicista, desconsiderando o valor da formação humana do profissional, que
visaria à aquisição da capacidade de pensar de forma crítica, reflexiva e
criativa. São aspectos legítimos e necessários para uma educação de
autonomia e emancipação dos sujeitos. Estes sujeitos não são anônimos, no
seu processo singular e plural de construção de suas histórias de vida.
No contexto da cultura líquida, em que vivemos, sem dúvida, a tarefa de
formação do sujeito é algo paradoxal. Por um lado, a formação humana requer
habilidades reflexivas que demandam tempo e preparo. Por outro lado,
constata-se que o que motiva o aluno a buscar o Ensino Superior é a busca de
status, melhor remuneração, ascensão social. Não há, realmente, o
estabelecimento de metas, voltadas para a aquisição do pensamento
autônomo, do autoconhecimento, da conscientização sobre si, sobre o outro e
sobre o mundo.
A compreensão do ser e, não apenas, do fazer e do saber, na
formação do tecnólogo, torna-se relevante no mundo contemporâneo. A
13
formação, como modalidade de educação superior, no nível dos Cursos
Tecnológicos, organiza-se de forma apropriada às novas demandas
educacionais, decorrentes das mudanças na nova ordem econômica mundial,
com ênfase no saber-fazer imediato.
Portanto, esta formação requer dos professores, coordenadores e
alunos uma atitude de reflexão ininterrupta, diante da velocidade do tempo, que
distancia o homem dos valores morais, éticos e estéticos. Este reflexão
constante conduz o homem à liberdade.
Leciono as disciplinas "Comportamento Ético e Cidadania"; "Política
Social Empresarial", “Comunicação Empresarial” e “Metodologia da Pesquisa”.
Estas disciplinas são unidades curriculares que compõem módulos comuns aos
cursos superiores de tecnologia. Os cursos são organizados em 4 ou 5
módulos com duração de um semestre cada um.
Como coordenador, atuo, desde 2009, nos cursos de Graduação
Tecnológica em Turismo, Hotelaria, Gestão Hospitalar e Gestão Ambiental,
entre os quinze existentes na Instituição de ensino, na grande São Paulo, onde
trabalho. Este cargo favorece a possibilidade de que haja uma observação
minuciosa das práticas, tanto de docentes, como de discentes, evidenciando a
prevalência dos pensamentos objetivo, prático e mercadológico, nos cursos de
formação de tecnólogos, em detrimento da necessária formação humana.
Assim, é a partir deste contexto, que se elege o problema, neste estudo:
o sentido da formação humana, nas Diretrizes Curriculares Nacionais dos
Cursos Superiores de Tecnologia, para a Educação Estética na
contemporaneidade.
Propõe-se, como hipótese, que o espaço da formação, nos Cursos
Superiores de Tecnologia, possibilita oportunidades de aprendizagem, de um
sujeito estético. O saber estético é construído, diante da manifestação de
encantamento ou desencantamento dos alunos e professores, inseridos no
processo de ensino, aprendizagem e formação. Os referenciais estético-
culturais podem fomentar uma cultura do fazer, que pode reforçar o
individualismo, o consumismo, a busca da novidade. No contexto da cultura
líquida, o esvaziamento humano distancia o ser de sua atribuição de sentido à
vida em sociedade e consigo mesmo.
14
Neste trabalho, estabelece-se como objetivo, a compreensão da
conveniência da introdução da formação humana, nas Diretrizes Curriculares
Nacionais dos Cursos Superiores de Tecnologia, sob a ótica da Educação
Estética. Constata-se que a formação nos cursos de tecnólogos requer, dos
formadores, uma reflexão sobre a construção do ser humano, como sujeito
estético em formação. Isto remete à possibilidade de que a formação do sujeito
estético é um fator emancipatório, considerando-se que a autonomia é um
caminho para a libertação e para a aprendizagem do pensamento crítico.
(Freire, 1997; Schiller, 2002).
Apresenta-se uma analise documental, com suporte na abordagem
hermenêutica, na perspectiva de Gadamer (2000).
O material analisado é a Resolução CNE/CP, 3 de 18 de dezembro de
2002 e, como apoio a essa análise, o Parecer CNE/CP nº. 29/2002 que trata
das Diretrizes Curriculares Nacionais de Nível Tecnólogo que deu origem à
Resolução CNE/CP 3/2002.
A compreensão da Resolução tem como referencial teórico, a estética
em Freire (1987, 1996), Boal (2008), Valcárcel (2005), Schiller (2002) e Perisse
(2009), a construção histórica do conceito Educação Estética em Wojnar
(1967). Os autores oferecem o sentido da educação estética para pensar a
formação, no nível tecnólogo.
Para a elucidação do contexto da contemporaneidade utilizou-se Hall
(2006), Bauman (1998, 2005), Harvey (2010) e Boutinet (s/d), recortando seus
olhares sobre a relação do sujeito na contemporaneidade, com suas
identidades e suas aflições. Tal olhar permitiu a reflexão sobre os caminhos da
construção do sujeito estético, em formação.
Os dados serão analisados na abordagem hermenêutica, na perspectiva
de Gadamer (2000). Esta abordagem tem apoio em pilares que possibilitam a
compreensão e interpretação dos discursos (conjunto harmonioso de palavras)
que pode ser o dito, ou seja, aquele factual, tangível, apresentado e os
discursos intrínsecos – não ditos, presentes nas entranhas dos pensamentos
representados por ideologias, agrupamentos morais e aspirações do
documento.
Estrutura-se este trabalho em três capítulos.
15
No primeiro capítulo, apresenta-se a narrativa autobiográfica do autor da
pesquisa, seu trajeto e as justificativas para a escolha dos temas e dos eixos
teóricos. Neste trabalho, há também, a fundamentação da escolha da
hermenêutica, como forma de análise do trabalho e há um olhar teatral sobre a
relação com a autonomia. A análise hermenêutica da história de vida permitiu
identificar a forma pela qual os fragmentos da história do pesquisador, antes,
em momentos de luz e sombra, compõem-se, em novos momentos de luz, que
somados aos fragmentos vividos, compõem novas imagens.
No segundo capítulo, reflete-se sobre o tempo liquefeito na formação
humana. Há a aproximação entre Schiller (2002), Freire (1987; 1996), Boal
(2008). Nesse capítulo, as teorias de educação estética e formação humana
são as luzes para a transformação e a composição das imagens fragmentadas
do sujeito esvaziado do sentido humano, na sociedade contemporânea. Essas
luzes, ao iluminar os fragmentos, tira-os da sombra, possibilitando
transformações estéticas, proporcionando, sensibilidade e razão, ao mesmo
tempo, um movimento caleidoscópico, um impulso lúdico, no campo da
educação de sensibilidade na formação humana. A idéia do teatro do oprimido
é jogo (lúdico) de luz, sombra e olhar, é o olhar sobre si que permite ver a
imagem transformada, é o ver-se oprimido e o ver-se opressor, em movimento
para a imagem estética de libertação.
No terceiro capítulo, ao apresentar-se a análise hermenêutica da
Resolução CBE/CP 3/2002, possibilita-se a visualização dos fragmentos da
composição do profissional, como autor e ator do jogo da formação. As partes
do documento analisadas exibem imagens e narrativas que dão contornos e
evocam o tema central deste estudo, dos fragmentos do todo: o sutil, a
diferença. O diferente vê o fio da construção do sujeito estético: as narrativas
(auto) biográficas, como possibilidade de fio condutor para uma formação mais
humana.
16
1 A METÁFORA DO CALEIDOSCÓPIO: AS IMAGENS DA NARRAT IVA
AUTOBIOGRÁFICA E OS PROCESSOS FORMATIVOS
Neste capítulo, resgata-se o percurso (auto) formativo do pesquisador,
buscando as influências de seus formadores em sua prática e, ainda, a
percepção de momentos específicos, na trajetória pessoal e profissional.
Surge, no resgate deste percurso, a possibilidade de refletir sobre o objeto de
estudo: a formação do ser humano, como profissional no Curso Tecnólogo.
1.1 Um percurso singular formativo: a justificativa para a escolha do tema
No regate de minhas memórias escolares, a primeira lembrança é a
professora, Tia Terê do Pré-I. Ela era afetuosa. Meus pais tinham seu telefone,
na agenda de casa, um símbolo de proximidade. Isto pode ser a causa de uma
das minhas características, como professor: na minha relação com os alunos,
há, sempre, a preocupação em saber quem são eles, de onde vieram e quais
são suas aspirações. A outra lembrança é do Prof. João Torres, da quarta série
do Ensino Fundamental I. Foi o primeiro professor, do sexo masculino, um
senhor com ar rígido, que permitia, durante suas aulas, o ensaio das
apresentações de teatro. No ensino fundamental II, recordo com saudades da
professora Elisa, de Matemática, também séria. Ficou a imagem de seu esforço
para que todos os alunos compreendessem as equações.
Até a 2ª série do Ensino Fundamental, estudei em escolas particulares
e, depois, em escolas estaduais. Durante os anos de estudo no ensino
fundamental, passei por duas escolas, nas quais tive dificuldade de
relacionamento com alguns grupos de alunos, devido ao fenômeno, hoje,
denominado bullying.
Os professores sentiam-se impotentes diante do constrangimento
vivenciado por alguns alunos, vítimas de bullying.
Hoje, como professor e como coordenador, percebo que o bullying é
uma forma de assédio moral ou agressão que resulta em males físicos e
psicológicos no indivíduo. Manifesta-se em forma de agressões verbais, físicas
e psicológicas. Ocorrem, no espaço escolar, nas universidades, nos ambientes
17
de trabalho, enfim, em todas as instituições de uma sociedade. Tais atitudes
são decorrentes de comportamentos socialmente aceitos, em muitos casos,
são apontados como naturais, pois são marcas de uma sociedade onde a
aceitação da pluralidade, inerente à existência humana, é subjugada.
A preocupação em pensar na formação humana do sujeito, hoje, provém
dessa inquietação, fruto do bullying, do qual fui vítima no passado.
A ética, ou seja, o compromisso com a vida e o bem-estar do outro são
desconsiderados, a favor de uma estética que valoriza o padrão, socialmente
aceito, o igual, suprime o diferente.
Como aluno, procurei a solução do problema, ao optar por prestar
vestibulinho, para escolas técnicas estaduais. Fui aprovado na Escola Técnica
Estadual Getúlio Vargas. Nela, tive contato com uma outra forma de educar e
formar: não era obrigatório o uso de uniformes, os portões ficavam abertos,
entrar e sair era determinado pelo querer de cada aluno, havia participação do
processo de eleição dos dirigentes da escola, éramos incentivados a ter idéias,
a sermos “seres pensantes”.
Nessa escola técnica de Ensino Médio, além da construção de um ciclo
de amigos, que permanece até hoje, há três professores que foram
extremamente marcantes. A professora de Biologia, Nilcéia, que permanece na
minha memória, devido à organização de um trabalho de estudo de campo,
com os alunos. Visitamos casas do bairro da escola. Neste estudo, o objetivo é
o mapeamento da quantidade e dos tipos de lixo, produzidos pelas pessoas da
comunidade. Havia a Profa. Ana Maria Aoki, do curso técnico de Química,
cujas aulas alcançavam um alto nível de qualidade. Construímos uma relação
próxima, principalmente, quando ela participou da festa de aniversário de uma
amiga. A coordenadora pedagógica, Profa. Fátima, foi marcante, por sua
proximidade com os alunos, pela dedicação, aliada à rigidez, elementos
imprescindíveis ao bom funcionamento da escola. Ela repetia as frases:
“Formar seres pensantes independente da área em que fossem atuar” e ”A
escola não era para formar só profissionais, mas, para formar cidadãos”. Tais
frases eram proferidas, durante uma reunião de abertura de ano letivo. Ainda
são importantes para mim.
Fiz um curso pré-vestibular que possibilitou a minha entrada no Ensino
Superior em Turismo. Este curso deixou sua marca, em minha formação,
18
devido às restrições que eu tinha pelo processo de ensino desenvolvido ali: o
foco era apenas o vestibular e não a real aprendizagem.
O (per) curso de turismo foi marcado, desde a sua escolha até a
conclusão, por diversos professores, pelo domínio dos temas, pelo
comprometimento e pelo incentivo ao desenvolvimento do processo criativo. A
relação afetiva e educacional que eu possuía com eles influenciou o meu modo
de agir no magistério.
Cursar turismo foi a opção para estudar em uma faculdade reconhecida
e, possivelmente, trabalhar com eventos. Tal trabalho era um sonho, eu o
considerava como momentos de diversão, de agito e de magia. Essa imagem
foi sendo desmontada, aula após aula, devido à organização dos
conhecimentos do curso: sociologia, história, geografia, antropologia,
comunicação, com a exigência de muita leitura. Enfim, organizar eventos se
apresentou como algo pequeno perto do universo de possibilidades, aos quais
eu estava sendo apresentado. Entre outras possibilidades, a carreira docente.
Desempenhando o meu papel de universitário, comecei a atuar em
agências de viagens, a partir do primeiro semestre, fui mudando de emprego,
sempre em empresas reconhecidas no mercado, o que elevava o meu status
como aluno. Consegui me posicionar, no trabalho com turismo GLS. Abria-se
um espaço para que as minhas crenças pessoais, de um mundo menos
preconceituoso e mais inclusivo, fossem afirmadas, por meio da minha prática
profissional, uma possibilidade de re-significar os constrangimentos
vivenciados no ensino fundamental.
Durante o curso de turismo, houve a elaboração de um inventário
turístico, na disciplina Planejamento Organizacional do Turismo, desenvolvido
em trio, com o objetivo de elaborar o planejamento turístico de uma das
subprefeituras da cidade de São Paulo. A Vila Mariana foi o local escolhido
pelo grupo. Isto possibilitou a descoberta de que eu seria capaz de realizar algo
bem feito, sobretudo, se fizesse com paixão.
Foi fundamental conseguir o prêmio “São Paulo Capital Mundial da
Gastronomia”, por um trabalho realizado pelo mesmo trio. Este trabalho era
sobre os pontos gastronômicos, no centro da cidade de São Paulo. A
qualidade do trabalho realizado angariou para o trio o apelido de “gênio”. A
elaboração do trabalho durou um ano. Houve um fato marcante: a boa
19
qualidade do texto do trabalho suscitou a dúvida da professora orientadora,
sobre a fidedignidade da autoria do texto. A dúvida foi esclarecida.
Tive o primeiro contato com a pesquisa acadêmica, na graduação em
Turismo, com o Trabalho de Conclusão de Curso, também em trio. O trabalho
foi uma seqüência ao trabalho premiado e foi aprovado com nota 10. Além da
avaliação positiva, foi significativa a escolha do tema, as leituras, a produção
dos textos, a pesquisa de campo. O resultado deste estudo foi a transformação
do aluno, que odiava as aulas do cursinho, no aluno que usufruía uma posição
de destaque e que, no semestre seguinte à formatura, iniciaria a atuação como
docente e como palestrante sobre turismo.
Atuar como professor universitário provocou duas situações: tornou-se
inviável a continuidade da posição de sócio, em uma agência de viagens, e a
migração da pesquisa em turismo para a pesquisa em educação.
A docência é uma abertura para descobertas, em ambos os campos: o
profissional e o acadêmico. A realização do curso de Pós-Graduação, Lato
Sensu, sobre Docência do Ensino Superior, resultou no trabalho de conclusão
de curso, que se apoiou, exclusivamente, em levantamento bibliográfico sobre
educação, memória e narrativas, intitulado: “Desafio do professor iniciante:
narrativas e audições na construção do conhecimento”.
Esse estudo aproximou-me da pesquisa em educação e das suas
diferentes vertentes. A escolha da temática “Narrativas (auto) biográficas no
espaço educacional” resultou na escolha, por cursar um programa de mestrado
que tratasse do tema e tivesse uma maior possibilidade de desenvolvimento
pessoal e profissional.
Ingressar em um programa de Mestrado em Educação é um momento
que marca o percurso pessoal, profissional e educacional de qualquer sujeito-
educador. É momento de mudança na forma de olhar a pesquisa; ela, agora, é
mais do que apenas um estudo. Trata-se, agora, da formação do pesquisador,
no espaço aberto para o desenvolvimento do pensamento, do raciocínio, da
lógica. Há, agora, a reflexão sobre a forma pela qual se produzem
conhecimentos.
A escolha da área de pesquisa, da linha de pesquisa e da temática a ser
abordada, remete a reflexões sobre as aspirações profissionais, educacionais e
pessoais.
20
No meu percurso formativo, ficaram as marcas dos professores com os quais
convivi.
Refletindo acerca dos acontecimentos da vivência, é possível que se
perceba que é, no aluno, que as impressões do professor ficarão fixadas mais
fortemente, embora, de certa forma, o professor também carregue consigo
influências dos alunos, mesmo que inconscientemente.
A revisão das passagens marcantes do processo formativo contextualiza
o nascedouro desta pesquisa. Emerge, da reflexão sobre a própria prática
docente, a problemática sobre a necessidade e a conveniência da formação
humana do profissional tecnólogo.
Como docente, no curso de Turismo, tomei consciência das grandes
transformações nos aspectos burocráticos da emissão de passagens aéreas,
em decorrência do avanço tecnológico. Da emissão manual dos bilhetes,
chegou-se ao bilhete virtual. Isto suscitou minha perplexidade sobre o ensino
de práticas que, em decorrência do avanço tecnológico, tornam-se,
rapidamente, obsoletas.
Como docente, vislumbrei, ainda, a conveniência da possibilidade da
vivência da construção da autonomia, nos cursos para tecnólogos. Isto seria
viável pela técnica de ensino, estudo de caso ou case, em Inglês. O estudo de
caso supõe a análise de um fato real, com o intuito de aproximar o aluno de
sua área de estudo. É uma prática que, embora contribua para a visualização
prática dos conceitos, pode provocar, no aluno, a desvalorização de sua
realidade e de sua história de vida.
A partir dos pressupostos freireanos, os conhecimentos contextualizados
tornam-se apropriáveis, como ponto de partida, transformando o processo de
conhecimento mais palpável, para compreender o outro, a realidade distante de
seu cotidiano. Nessa perspectiva, é um processo de atribuir sentido aos
conhecimentos e sua relação com o seu projeto de vida. A compreensão do
contexto, em que foram desenvolvidos os projetos, permite que o aluno possa
conviver com as evoluções tecnológicas, além de compreender como elas
repercutem no contexto local, planetário e universal. Esta compreensão
possibilita, ainda, o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos, construída a
partir da leitura do mundo, do próprio processo de decidir, de fazer escolhas,
de atribuir sentidos e significados de sua existência consigo mesmo, com o
21
outro e com o contexto.
1.2 A imagem: a busca do sentido das experiências formadoras.
As imagens que se veem, em um caleidoscópio, assemelham-se às que
emergiram, no processo de relato de minha própria trajetória. São imagens
externas que me conduziram a olhar a minha própria história, a refletir sobre a
minha travessia. Essas imagens ampliaram a compreensão dos motivos que
me levaram a eleger a formação humana como tema de pesquisa, que é a
compreensão da própria vida.
São imagens que só têm sentido e significado, individualmente, pois as
experiências formadoras ganham sentido no próprio percurso vivido. Traçar a
trajetória e atribuir sentidos e significados ao processo formativo é, ao mesmo,
tempo formar-se e compreender o processo de formação, é utilizar a vida como
espaço e tempo de aprendizagem.
Compreender o percurso formativo tem o sentido de desvelar a si
próprio, o profissional e a pessoa, revelando a historicidade das experiências
formadoras que nos habita. Maturana e Varela (1995, p.26) dizem que: “a
libertação do ser humano está no encontro profundo de sua natureza
consciente consigo mesma”. Portanto, o pesquisador deve empreender a
investigação do contexto do percurso formativo dos contornos de sua
identidade.
Hall (2006) diz que as representações do mundo apresentam aspectos
da identidade dos sujeitos, ou seja, o conhecimento científico não é asséptico,
ele é contextualizado nas vivências e no mundo no qual o individuo está
inserido, banhado de ideologias e influências.
Mergulhei, em meu processo formativo, com a narrativa e imagens, na
confluência do mundo exterior e interior. São vivências originais enraizadas no
corpo, metafóricas e poéticas, que, refletidas, tornaram-se uma experiência
formadora de abertura para a compreensão do tema proposto, neste estudo: a
compreensão do ser humano e sua formação na graduação de cursos
tecnológicos.
A narrativa do meu percurso singular foi produzida a partir da proposta
da disciplina Educação Estética e Formação de Professores, que compreende
22
a elaboração de três documentos, por meio da narrativa escrita, fílmica,
pictórica e oral. São movimentos integradores do método da Colcha de
Retalhos, preconizado por Berkenbrock-Rosito (2007; 2008).
A narrativa escrita é produzida por meio de duas estratégias. A primeira
estratégia aborda a narrativa Biográfica do Ensino Superior. E tem, como
primeira atividade, a realização de um trabalho Biográfico sobre o Ensino
Superior, compreendendo a formação como relação com o conhecimento, com
o professor e consigo mesmo, no campo das imagens.
O trabalho constitui-se do resgate de três cenas marcantes, no Ensino
Superior. Descrevem-se as cenas e analisa-se a própria formação, através dos
seguintes questionamentos: Como foi a sua relação com as disciplinas no
Ensino Superior? Foi de autoria ou submissão? Como foi a sua relação com o
professor? Foi de autoria ou submissão? Que aluno(a) você foi?
A segunda estratégia aborda a narrativa da História de Vida,
propriamente dita, onde há a elaboração do Quadro da Vida, buscando “os
momentos divisores de água”, inspirados nos “momentos charneiras” (Josso,
2002) que são os acontecimentos da existência, que causam transformações e
divisões na própria vida. Tais acontecimentos nos formam e nos modificam. O
Quadro da Vida tem, como objetivo, fazer o mapeamento dos momentos
“divisores de água”, buscando, no percurso de vida da pessoa, os espaços e
tempos, nos quais ocorreram acontecimentos que provocaram uma
transformação de referenciais de vida, uma mudança profunda, no modo de
pensar e agir do indivíduo. Com foco nas categorias de espaço e tempo: vida
familiar, escolar/acadêmica, profissional, pessoas, professores, livros, filmes,
relações amorosas, deslocamento geográfico. As narrativas são produzidas, ao
narrar os momentos “divisores de água”, resgatando as lembranças, a memória
vivida. A reflexão sobre o que se aprendeu é uma experiência da vivência. Se
não há uma reflexão, não há a experiência, há apenas a vivência. Há uma
diferença entre experiência e vivência, na perspectiva do paradigma
experiencial de Josso (2002).
A narrativa escrita da Atividade Biográfica do Ensino Superior e o
“Quadro Linha da Vida” transformam-se em narrativa pictórica. Na sala de aula,
cada participante narra para o outro, oralmente, a história tecida no retalho de
vida. Após a narrativa ocorre a costura de cada retalho, formando a Colcha.
23
Tal prática apoia-se em Freire, no que se refere à epistemologia de que
o conhecimento é produzido, a partir do projeto de vida da pessoa.
O estudo das histórias de vida dos professores tem se apresentado,
cada vez mais, como uma possibilidade de entendimento do processo
formativo desse sujeito, surgindo “(...) de vontade de produzir um outro tipo de
conhecimento, mais próximo das realidades educativas e do quotidiano dos
professores” (Nóvoa 1992:19).
Para Nóvoa, existem três AAA que sustentam a identidade do professor:
A de Adesão, A de Ação e A de Autoconsciência. Sobre esta última:
Autoconsciência, porque em última análise tudo se decide no processo de reflexão que o professor leva a cabo sobre sua própria ação. É uma dimensão decisiva da profissão docente, na medida em que a mudança e a inovação pedagógica estão intimamente dependentes deste processo reflexivo. (NÓVOA, 1992, p.16)
Após a produção de três documentos (orais, escritos e pictóricos),
compreendidos como processo de autoria, partimos para o entendimento da
dimensão estética que envolve esse processo, compreendendo ética e moral
como parte dessa Educação Estética. O filme COLCHA DE RETALHOS, título
original How to make an american quilt by Jocelyn Moorhouse, EUA, Universal
Home Vídeo, 1995. Drama, 116min, permitiu-nos interpretar e refletir sobre a
nossa própria realidade, tendo a arte cinematográfica como fio condutor para
novas experiências.
Tendo, como fio condutor, a narrativa fílmica e a narrativa de cada
participante, realizam-se debates sobre “Estética e Formação”, para a
compreensão dos diversos caminhos que compõem a formação do sujeito
concreto, sobretudo, a compreensão do arrebatamento e da arte, presentes de
diferentes formas, em nosso cotidiano, no processo de educar para um olhar
estético.
A conclusão da disciplina foi realizada, através da apresentação dos
retalhos de cada indivíduo (sua narrativa pictórica) e a elaboração coletiva da
Colcha de Retalhos. Foi possível perceber a singularidade tecida no coletivo,
ao unir as partes (retalhos), que compõem o todo. Tais procedimentos
possibilitaram a compreensão de reconstruir a História de Vida, uma
24
experiência autoformativa, na relação com o outro, de vivências em grupos
(plurais) que resultam em experiências individuais tecidas no coletivo.
Há uma compreensão hermenêutica, ao analisar as partes, para
compreender o todo e analisar o todo, para compreender as partes. Os retalhos
da Colcha de Retalhos são histórias de mestrandos, que possibilitam a
compreensão do todo, o contexto da sala de aula. A colcha é formada por
partes que são histórias maiores do que ela própria.
Bosi (1994: 411) comenta “por muito que deva a memória coletiva, é o
indivíduo que recorda” e, falando do papel do grupo na composição da
memória, traz um exemplo bastante feliz para o contexto dessa pesquisa:
Quando o grupo é efêmero e logo se dispersa, como uma classe para o professor, é difícil reter o caráter e a fisionomia de cada aluno. Para os alunos as lembranças são mais sólidas, pois tais fisionomias e caracteres são sua vivência de anos a fio. (BOSI, 1994, p. 414)
Nas obras, "Contos da Tradição Sufi" e "O violino cigano", de Regina
Machado, encontra-se o conto armênio "Fátima, a fiandeira". A heroína da
História sofre uma série de desafios e aventuras para tornar-se Fátima, a
fiandeira, a tecelã, a construtora de mastros de navio e de tendas para o
imperador da China. Fátima só consegue superar os desafios porque age, a
partir de um lugar, localizado em si mesma. Ao olhar para esse lugar encontra
um centro, um eixo norteador, a partir do qual: ela é capaz de se lançar ao
mundo.
A história ensina que, com os percalços que a vida nos apresenta, em
cada momento de nossa trajetória, em cada momento de nossa vida, com cada
experiência, há a possibilidade de aprender, com o sofrimento e com as
perdas.
No trabalho, com a história tecida no retalho de cada participante da
disciplina, visava-se ao encontro do enraizamento da autoria. Isto ocorreria,
vivenciando e experimentado as narrativas, desvelando o eixo norteador, de
nossa compreensão de ser e estar no mundo, como possibilidades de perceber
os movimentos de cada processo formativo e as articulações com o tema de
estudo da pesquisa. De forma lúdica, exploramos novas possibilidades de
interação com o mundo. Ao final tecemos imagens e narrativas a respeito de
25
nossos caleidoscópios de todo o trabalho, compreendendo que reconstruir a
História de Vida é uma obra de arte.
Quando a arte se ausenta da produção humana, há um embrutecimento
das relações humanas, retira-se a sensibilidade do indivíduo, necessária para
que se conviva com os diferentes e as diferenças, o processo de formação
tanto dos docentes, quanto dos discentes, deve ser permeado por experiências
de sensibilidade e arte.
Para a formação humana, é necessário pensar que a sensibilidade é
inerente à experiência artística e que a técnica reprodutora não pensada desfaz
a arte. Autores como Adorno (2002) apresentam o desmanchar da cultura e da
produção artística, ao reproduzirmos mecanicamente a arte através da
indústria cultural.
Benjamin (1994) afirma que a reprodutibilidade é uma arte, porque as
experiências são únicas, não é possível a cópia de um objeto. Toda cópia é
reinvenção, tem algo de original.
A arte e a sensibilidade são experiências que auxiliam na compreensão
da amplitude do conceito de belo. Em uma sociedade tão plural, como a
brasileira, as diversas representações artísticas existentes nos contemplam
com um sem número de possibilidades. A diversidade humana proporciona
sentimentos e emoções diversificadas de tudo que temos contato. A estética de
uma sociedade é o belo de sua pluralidade de conceitos de belo e feio, sem a
pretensão racional de sobrepor um ao outro, privar os alunos de contato com
as impressões das artes é privá-los da sensibilidade de serem humanos e de
se formarem como humanos.
1.3 A abordagem hermenêutica: uma possibilidade de compreensão dos
discursos
Para “fazer ciência”, exige-se um livre pensar que não pode ser
entendido como o pensar sem rigor, sem cientificidade, mas um pensar gerador
de conhecimento. O entendimento da diferença entre o
pensamento/conhecimento do senso comum e o pensamento científico torna-
se essencial para a construção do discurso. Diferente do senso comum, o
conhecimento científico pressupõe um pensar, um examinar a realidade
26
através de uma lógica, é o resultado de um raciocínio sistematizado. (BUZZI,
1983:102)
Para Demo (1987), “senso comum é a forma comum de conhecermos a
realidade”, é um conhecimento “acrítico, imediatista, crédulo. Não possui
sofisticação. Não problematiza a relação sujeito/objeto” (DEMO, 1987 p. 30).
Para Buzzi (1972): “o senso comum não argumenta nem justifica”, ou
seja, ele simplesmente é, está posto. Já, a ciência é uma representação da
realidade criada pela razão (BUZZI, 1972 p.114)
As pesquisas qualitativas possuem uma facilidade em direcionar-se para
o senso comum o que pode causar uma incredulidade em seus resultados,
embora autores como Mafessoli (2007) destaquem que alguns pesquisadores
“mostram mais zelo na defesa de uma ordem científica do que preocupação em
produzir idéias originais, de modo consentâneo ao tempo presente”
(MAFESSOLI, 2007 p.18).
Adota-se a abordagem hermenêutica, na perspectiva de Gadamer
(2000), para a compreensão dos discursos apresentados na forma da Narrativa
Autobiográfica, presente nessa pesquisa. Também, na forma da Resolução do
Conselho Nacional de Educação, por meio da resolução CNE/CP, 3 de 18 de
dezembro de 2002, será extraída a compreensão da Formação Humana no
Ensino Superior Tecnológico, percorrendo o sentido de estética, presente nas
Diretrizes Curriculares Nacionais.
Do grego hermeneuein originou a palavra interpretar, para o grego o ato
de interpretar significa “elucidação e explicação das elusivas mensagens
sagradas”. Hermes, nome associado ao hermeneuein, tinha a missão de trazer
à terra, os sentidos das mensagens dos deuses. É na teologia protestante, com
a busca de uma compreensão mais sistemática dos textos bíblicos, que surge
a hermenêutica: “uma arte de interpretação com seus próprios procedimentos e
técnicas”. Tais procedimentos foram criados para a interpretação correta da
bíblia entendida como “palavra de Deus, a divina revelação”. (LAWN, 2007
p.66).
A hermenêutica, atualmente, não se apresenta mais, exclusivamente,
como uma técnica ou um método para a correta compreensão dos significados
dos textos sagrados da tradição escrita; não há pretensão de alcançar
27
resultados absolutos com o seu uso, distanciando-se da certeza matemática do
positivismo.
Amaral (1994, p.09) afirma que a hermenêutica “não é uma disciplina
particular com limites e temas determinados, não é apenas uma opção
metodológica, mas, a condição da investigação. Constitui-se, antes, uma
‘corrente’ ou ‘tendência’ que se ocupa dos mais diferentes setores da
existência”, como uma corrente filosófica. Esse status de simples método foi
sendo alterado, ao longo do século XIX e XX, quando atingiu “a dignidade de
um tipo filosófico de questionamento”, a partir das contribuições de
Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer. (AMARAL, 1994 p.09).
Schleiermacher foi o primeiro a acentuar a genuína dimensão filosófica da hermenêutica na medida em que ele salientou o problema da correta compreensão e interpretação, não somente para os textos da tradição escrita, mas também de uma ampliação da tarefa hermenêutica para todas as formas de comunicação, especialmente o diálogo vivo. (AMARAL, 1994, p. 10)
Lawn (2007) e Amaral (1994) afirmam que foi, a partir do pensamento de
Schleiermacher, ao tentar construir uma hermenêutica geral, que emergiu a
possibilidade da Hermenêutica, como compreensão filosófica para todas as
formas de interpretação presentes em textos, que são formas de comunicação:
documentos, entrevistas, questionários, História de Vida, Memória. Com
Schleiermacher, a compreensão do sentido de um texto só é possível, quando
se conhece o contexto histórico de formulação.
Gadamer apresenta dois aspectos necessários para a interpretação dos
textos: um gramatical e outro psicológico. O primeiro consiste em reconhecer
as regras e formas de uso das palavras e o segundo, o contexto do autor,
sendo necessário, para a interpretação, conhecer o psicológico do autor mais
do que ele mesmo (Lawn, 2007).
No circulo hermenêutico, segundo (Lawn, 2007, p.70), há: “os processos
de pensamento do autor, suas crenças, intenções e os significados comumente
entendidos das palavras usadas”. Pressupõe-se, então, que o caráter
linguístico e o histórico são constitutivos do ser humano.
Em Gadamer, o Circulo Hermenêutico consiste na compreensão do
todo, a partir da parte, e a da parte, a partir do todo. Um texto não é nada sem
os parágrafos, que não são compreendidos sem as frases. Estas não existem
28
sem as palavras. No sentido inverso, as palavras não são nada sem o
contexto, frases, parágrafos e textos, apresentam uma relação cíclica.
Para Gadamer (2000):
A regra da hermenêutica de que tudo deve ser entendido a partir do individual, e o individual desde o todo, procede da retórica antiga e passou, através da hermenêutica moderna, da arte de falar à arte de compreender (GADAMER, 2000, p.141).
A compreensão é ponto de partida para a interpretação e para a volta a
uma compreensão mais profunda, fechando um ciclo. Para Gadamer (2000,
p.144), compreender, não é, em todo caso, estar de acordo com o que ou
quem se compreende. (GADAMER, 2000, p.23)
Nesse sentido, Gadamer (2000) afirma que o leitor, ao debruçar-se
sobre o texto, já o faz com um pré-conceito, com uma ideia do sentido que
buscará no texto, esse sentido, faz parte de um projeto, já pensado pelo leitor,
que é colocado à prova (GADAMER, 2000, p. 144-145).
O conceito de círculo de compreensão, em Gadamer, baseado em
Heidegger e Dilthey, consiste em interpretar, rompendo com os pré-conceitos e
pré-compreensões, que o intérprete, no caso pesquisador, tem ao deparar-se
com seu objeto de estudo. O desvelar dos sentidos e significados do texto são
postos à prova, evidenciando os pré-juízos e pré-conceitos do pesquisador,
para, no momento seguinte, estabelecer uma coerente compreensão.
A interpretação hermenêutica refere-se à compreensão dos significados
das obras produzidas pelos homens. Ela requer do pesquisador, a consciência
de sua historicidade e do contexto histórico, e que ele esteja suficientemente
de acordo com o modo de se relacionar com o mundo, a partir da superação do
pré-saber. Esse cuidado é necessário, pois os pré-juízos determinam a
interpretação das coisas.
É necessário que o intérprete examine tais pré-juízos, quanto a sua
origem e validez, havendo uma abertura por parte do intérprete. O círculo abre
espaço para um constante refazer. A interpretação inicia-se com conceitos
prévios e, no decorrer do trabalho e do tempo, eles são, geralmente,
substituídos por outros mais adequados, surgindo outras lentes de
29
compreensão. Isto quer dizer que o círculo não é fechado, mais sim, dinâmico,
ele interage com o sujeito.
Compreender um universo como ele é, não é julgá-lo ou compará-lo a
outro. Pressupõe interpretar, a partir do interior de quem pesquisa, verificando
a forma pela qual se estabelece o relacionamento com o tema da pesquisa.
Desse modo, transita-se entre o familiar e o não-familiar. Nesta perspectiva, o
pesquisador não nega seu referencial de mundo e de vida.
[...] O conhecimento histórico não pode ser descrito segundo o modelo de um conhecimento objetivista, já que ele mesmo é um processo que possui todas as características de um acontecimento histórico. A compreensão deve ser entendida como um ato da existência, e é, portanto um "pro-jeto lançado". (GADAMER, 2000, p. 55)
Gadamer mostra a importância da tradição, da arte e da linguagem. Ele
tem, como foco, a posição que o sujeito tem na história, isto quer dizer que a
interpretação envolve uma interação, um encontro denominado “fusão de
horizontes”.
Horizonte é o âmbito da visão que abarca e encerra tudo o que é visível deste um determinado ponto. Aplicando-o à consciência pensante. Devemos falar dos limites horizontes, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes (GADAMER, 2000, p.57).
A abertura de horizonte é uma tomada de consciência, provoca um
deslocamento em direção a outro ponto, a um novo horizonte histórico, também
o horizonte se desloca. Isto faz ampliar o horizonte do pesquisador, permite
alcançar um novo horizonte, revelando o seu sentido, desvinculado dos
conceitos pré-existentes do indivíduo. E, do contexto histórico, emerge a
interpretação possível, por via da linguagem, da arte, da tradição. Isto requer
estar atento à alteridade do texto.
Quem quiser compreender um texto deve estar pronto a deixar que ele lhe diga alguma coisa. Por isto, uma consciência educada hermeneuticamente deve ser preliminarmente sensível á alteridade do texto. Essa sensibilidade não pressupõe “neutralidade” objetiva nem esquecimento de si mesmo, mas implica numa preciosa tomada de consciência das próprias pressuposições e dos próprios pré-juízos (GADAMER, 2000, p.31).
30
Em Gadamer (2000), a tarefa da hermenêutica em compreender:
“não entregará sem mais à casualidade da própria opinião (...). Quem pretende compreender um texto está disposto a deixar que o texto lhe diga algo“. A compreensão começa quando algo nos chama a atenção. “Esta é a principal das condições da hermenêutica” (GADAMER, 2000, p. 145).
Ao compreendermos algo, nos aproximamos do pensar do outro e de
nosso próprio pensar. Para Coreth (1973 p.50), compreender significa
apreensão de sentido e questiona: qual o sentido do sentido?
Visto que o sentido de um enunciado se encontra sempre num determinado contexto de sentido, pode-se definir por um correspondente critério de sentido aquilo que, no respectivo contexto deve ter tido como significativo. (CORETH 1973 p.50).
Ainda diz o autor:
Se quisermos fazer justiça à totalidade e pluralidade do fenômeno, sem limitá-lo arbitrariamente, só podemos determinar o que denominamos ‘sentido’ como o conteúdo de uma compreensão possível: como o inteligível ou compreensível. (...) Em todo caso, porém, compreensão é apreensão de sentido, e sentido é o que se apresenta à compreensão como conteúdo (CORETH 1973 P.51-52).
A busca do sentido de possíveis respostas às inquietações que originam
este estudo envolve a compreensão – interpretação - compreensão. Desse
modo, compreensão e sentido apresentam-se, também, de forma cíclica, um
movimento circular, como relação de entendimento da parte pelo todo, do todo
pela parte, que Gadamer, define como círculo da compreensão (Lawn 2007
p.72-74).
Com o objetivo de mostrar a dinâmica da compreensão hermenêutica, a
partir das leituras feitas, apresenta-se a Figura 1, nomeada Mapa
Hermenêutico.
A compreensão hermenêutica de textos, falas, narrativas, discursos, é o
elemento central do mapa. Os textos apresentam um outro discurso, o não dito,
ou seja, aquele que está subentendido no texto, propiciado pelo contexto no
qual foi criado e pelos pensamentos do sujeito autor. Pensamentos esses
incontroláveis e, na perspectiva hermenêutica, são influenciados pelos
31
Narrativas
Discurso Dito
Discurso Não Dito
Linguagem
Pensamento
Palavra
Conceito
Conhecimento
Saber
HERMENÊUTICA
COMPREENSÃO
Fonte: Tiago Carzetta Marchina
conceitos que possuímos anteriormente, ao início da leitura ou produção do
texto.
Figura 1: Mapa Hermenêutico
Na outra direção do mapa, há o discurso dito, aquele tangível,
apresentado em uma linguagem intencional para a expressão de uma idéia que
se apresenta, na escolha proposital de palavras e nos conceitos que se
atribuem a elas, os quais são escolhidos, a partir dos pensamentos e conceitos
intangíveis.
Por mais que o discurso dito apresente uma organização de ideias, os
pensamentos e (pré) conceitos podem traduzir algo ou coisas diferenciadas.
Esses são elementos intangíveis fundamentados em saberes anteriores que
podem vir, na forma de vivência ou experiência dos sujeitos, mas, que não têm
necessariamente uma formalização e reflexão sobre ele.
32
As palavras e as linguagens apresentadas, no discurso dito, são
oriundas de um saber que a compreensão hermenêutica permite ter contato em
um primeiro momento. Porém, a análise mais atenta permite o encontrar,
através do uso recorrente das palavras e da linguagem, os pensamentos e os
conceitos apresentados nos discursos, como saberes e conhecimentos, do
contexto tanto do autor como do leitor.
O discurso dito expressa palavras que trazem consigo conhecimentos,
tais palavras originam linguagens que resultam em discursos, isso no campo
tangível do discurso dito, porém, a essas palavras são atribuídos conceitos e
pensamentos originários de diferentes saberes (científico, senso comum,
mítico, filosófico) que não são tangíveis e estão presentes no campo do
discurso não -dito.
A hermenêutica é, muito antes, uma visão fundamental acerca do que significa em geral, o pensar e o conhecer para o homem na vida prática, mesmo se trabalhando com métodos científicos (GADAMER, 2000, p.19)
A hermenêutica, como compreensão filosófica, não alcança (e nem
poderia alcançar) uma verdade absoluta, um resultado matemático sobre o
pensar do outro. O próprio ato de compreender e seus significados permitem
diversas interpretações. Ao compreender ou “hermeneutizar” algo se encontra
a proximidade com o outro, o contato, a relação do ponto de vista da obra com
o do sujeito que interpreta e compreende.
(...) a hermenêutica, enquanto filosofia, não é qualquer disputa de métodos com outras ciências, teorias das ciências ou coisas que tais, senão um modo de mostrar que – e isso ninguém pode negar – em cada momento em que pomos nossa razão a trabalhar, não fazemos apenas ciência (GADAMER, 2000 p.26).
Assim:
(...) se não apreendermos a virtude da hermenêutica, isto é, se não reconhecermos que se trata, em primeiro lugar, de compreender o outro, a fim de ver se, quem sabe, não será possível, afinal, algo assim como solidariedade da humanidade enquanto um todo, também, no que diz respeito a um viver junto e a um sobreviver com o outro, então – se isso não acontecer – não poderemos realizar as
33
tarefas essenciais da humanidade, nem no que tem de menor nem no que tem de maior (GADAMER, 2000, p.25).
Ao se compreender algo, aproxima-se do pensar do outro e do próprio
pensar. Através da leitura das palavras organizadas por outros, organizam-se
novos conceitos, dos quais se originam novos discursos que, ao serem
“hermeneutizados”, contribuem para relações entre o sujeito leitor e o sujeito
autor, sendo esse ato de compreender mais do que ciência e razão e, não
apenas, emoção.
Esse processo pode resultar em uma experiência estética, Neitzel (2006)
apresenta o conceito de estética da recepção que consiste em considerar o
leitor como co-autor do texto:
A partir da estética da recepção, atribuímos ao leitor a responsabilidade pela interpretação e ampliamos os alicerces da referência com o mundo histórico, pois a leitura depende do contexto do leitor, de suas vivências, de sua arca de palimpsestos, de um entendimento relativo à sua própria situação histórica. A teoria da recepção examina o papel do leitor enfatizando que os textos só adquirem sentido, que os processos significativos só se materializam na prática da leitura (NEITZEL, 2006 p.H).
Dessa forma, é responsabilidade do leitor o resultado da sua leitura, a
sua busca por compreensão não se dá isoladamente do contexto histórico.
Gadamer (2000) aponta a compreensão como a função da hermenêutica, não
um compreender ingênuo, mas um compreender crítico1, buscar o sentido além
do apresentado na superfície do dito, trata-se da arte de compreender.
Estamos, então, no domínio da hermenêutica. É assim que chamo a arte do compreender. (...) Compreender não é, em todo caso, estar de acordo com o que ou quem se compreende (grifo do autor). Tal igualdade seria utópica. Compreender significa que eu posso pensar e ponderar o que o outro pensa. (grifo nosso) Ele poderia ter razão com o que diz e com o que propriamente quer dizer. Compreender não é, portanto, uma dominação do que nos está à frente, do outro e, em geral, do mundo objetivo (GADAMER, 2000:23).
1 Referência ao conceito de curiosidade ingênua apresentado por Paulo Freire na obra “Pedagogia de Autonomia” onde o autor diferencia a curiosidade ingênua da curiosidade crítica aquela onde o “curioso” problematiza a sua busca por conhecimentos.
34
Considerando que: “Compreender significa que eu posso pensar e
ponderar o que o outro pensa” (GADAMER, 2000, p.23), infinitas possibilidades
abrem-se, para desvelar o sentido e significados de um texto.
A compreensão hermenêutica da história de vida do pesquisador
permitiu identificar, no discurso, categorias que serão exploradas ao longo
deste estudo. Do ponto de vista da hermenêutica, os discursos apresentam
informações que não estão ditas explicitamente. Assim, emergiu a necessidade
do estudo sobre a formação humana, na dimensão estética da educação e na
formação no curso tecnólogo.
É decorrente dessa compreensão, a análise do documento oficial que
rege as diretrizes dos Cursos Tecnólogos, que possibilitam a compreensão e
interpretação dos discursos da política educacional brasileira, a respeito da
graduação tecnológica, o dito, ou seja, aquele factual, tangível. A compreensão
perpassa o dito e o não-dito, presentes nas manifestações, nas entranhas dos
pensamentos, representados por ideologias, agrupamentos morais e
aspirações, nos discursos dos livros, teses, dissertações, leis que foram
utilizados para este estudo.
O círculo hermenêutico possibilitou a reconstrução de minha história de
vida e mostrou-me a relevância do trabalho com conceitos. A reconstrução de
nossa história de dos conceitos, percebendo como foram construídos,
historicamente, é condição essencial para tomarmos consciência de nossas
ações e exige um movimento circular, transformando-se na imagem do
caleidoscópio.
Em direção à metamorfose da formação profissional do tecnólogo, é
imprescindível entender o conceito de sujeito estético e desvelar seu sentido e
significado e a questão da formação humana nele imbricado, no mundo da
contemporaneidade. Para tanto, torna-se necessário o desenvolvimento dos
conceitos de estética, educação estética e contemporaneidade para que,
assim, se compreendam as concepções sobre o ser sujeito e suas relações
com a estética, com a libertação e com a autonomia.
35
2 A EDUCAÇÃO ESTÉTICA: UM PERCURSO PARA A FORMAÇÃO
HUMANA DO TECNÓLOGO
Caso se considere o pressuposto de que os seres humanos já estão em
seu estado acabado, não existiriam razões para pensar sobre sua
humanização. A educação estética aparece como possibilidade de caminho
para pensar uma formação mais humana dos profissionais tecnólogos,
sobretudo, tendo como contexto a sociedade líquida, na qual vivemos e as
inúmeras possibilidades “de si”, a que as identidades dos sujeitos são
submetidas.
2.1 A contemporaneidade: a necessidade de um proces so contínuo de formação A compreensão dos discursos se relaciona diretamente com o contexto
do interpretador e da sua elaboração. Como vimos em Gadamer (2000), o ato
de compreender é cíclico. Ás vezes, é necessário um distanciamento histórico
para a compreensão do texto, porém, esse faz sentido, se compreendido
dentro do contexto em que foi elaborado ou no contexto do interpretador.
Na perspectiva de Hall (2006 p.70), todo meio de representação se dá
em um determinado tempo/espaço. Tal concepção de Hall apoia-se em Harvey
(2010) e tem, como pressuposto, que os conhecimentos e os textos surgem,
em um determinado contexto histórico. A apresentação do contexto em que se
insere essa pesquisa, sobretudo as identidades culturais dos sujeitos, na
contemporaneidade ou pós-modernidade e o seu processo contínuo de (trans)
formação, torna-se imprescindível.
Para Harvey (2010 p.187), “o espaço e o tempo são categorias básicas
da existência humana”, os ciclos de tempo que se repetem trazem uma certa
segurança. Marcam-se e estabelecem-se as rotinas diárias, a partir do
entendimento de que o tempo é composto por uma “única escala temporal
objetiva”. O espaço é encarado como tangível que se pode quantificar através
das suas propriedades de “direção, área, forma, padrão e volume”, mas,
diferentes sociedades e grupos vão possuir uma concepção de espaço
diferente. Para o autor “nem tempo nem espaço podem ter atribuídos
significados objetivos sem levar em conta os processos materiais” e, mais
36
adiante, ele alega que, na perspectiva materialista, “podemos afirmar que as
concepções do tempo e do espaço são criadas necessariamente através de
práticas e processos materiais que servem à reprodução da vida social”, e
conclui: “cada modo distinto de produção ou formação social incorpora um
agregado particular de práticas e conceitos do tempo e do espaço” (HARVEY,
2010 p.189).
O autor apresenta um esquema gráfico da diminuição do “tamanho do
mundo”, uma consequência da evolução tecnológica. Neste esquema gráfico,
percebe-se a forma pela qual se tem a impressão de um encolhimento do
mundo e a forma pela qual se tem a impressão de que se vive em uma
sociedade comprimida.
Figura 2: Encolhimento do Mundo
Fonte: (Harvey, 2010 p. 220)
37
Após a revolução industrial e a troca dos meios de produção da
manufatura para a maquinofatura e o consequente aumento da capacidade de
produção, surgiu a necessidade de mão de obra e de mercado consumidor,
para os produtos sobressalentes. Nesse contexto, as famílias saíram do
campo, onde exerciam suas atividades econômicas e culturais, em um único
espaço físico e em tempos simultâneos, em direção aos centros urbanos.
Nestes centros, havia a divisão entre o tempo do trabalho e o tempo do lazer,
entre o espaço da família, o espaço da religião, da educação, proporcionando
uma nova organização social e novas formas de relacionamento, entre classes
e pessoas, permitindo assim a concepção do sujeito sociológico de Hall (2006),
condizente com os pensamentos de Harvey (2010): a aceleração do tempo de
giro de produção envolve acelerações paralelas na força e no consumo. O
autor complementa: a mobilização da moda em mercados de massa forneceu
um meio de acelerar o ritmo do consumo, não somente de bens de consumo,
mas também de estilos de vida e atividades de recreação. Outra modificação é
o aumento do consumo de serviços. Há também o aspecto volátil e efêmero da
moda e de todos os bens, uma sensação de que “tudo o que é sólido se
desmancha no ar”, uma característica dessa pós-modernidade. (HARVEY,
2010 p.257-258)
Bauman (2005) comenta que, na atualidade, as identidades dos sujeitos
são compostas por inúmeras partes que são integradas no processo de
construção da identidade. Porém, não se tem a ideia da imagem que será
formada, no final, diferente de um quebra-cabeça, exemplifica o autor, a
identidade do sujeito não tem uma imagem de referência para ser seguida
como a da caixa do quebra-cabeça, a identidade vai se compondo de infinitas
peças, das quais não se tem certeza, se estão, corretamente, encaixadas.
Bauman afirma que “nem sempre foi assim”. Na substituição, na modernidade,
dos estados pré-modernos que definiam a identidade do individuo no
nascimento, pelas classes, “as identidades se tornaram tarefas que as pessoas
deveriam desempenhar” (BAUMANN, 2005 p. 55).
As definições e diferenciações entre os termos, contemporaneidade e
pós-modernidade, pela perspectiva da sociedade atual, regida pelas forças do
capitalismo – são compreendidas, nessa pesquisa, como termos que
demonstram as transformações e relações sociais da atualidade. Esses termos
38
são entendidos, dentro de uma mesma esfera do conhecimento. Isto contribuirá
para a compreensão do problema da pesquisa e contextualização dos
discursos que serão analisados.
Para Boutinet (s/d, p.53), existem diversas possibilidades de
nomenclatura para esse momento social e elenca possibilidades propostas por
alguns autores:
(...) pós-industrial (Bell e Touraine) para dizer que o parâmetro produtivo deixou de ser determinante; anti-moderna (G. Blandier), a anti-modernidade difundindo modos de protesto não revolucionários e favorecendo o reaparecimento de formas arcaicas de existência social; super-moderna (M. Auge se esta super-modernidade se deixa assimilar, pela criação de não lugares, isto é, de lugares sem memória), ou, simplesmente, pós-moderna (J-F. Lyotard que foi buscar o termo ao arquitecto (sic) americano Ch. Jenck) para significar esta nova era da paralogia dos autores” (BOUTINET S/d p.53).
Outra possibilidade de nomenclatura é modernidade tardia, que significa
um estado novo dessa mesma modernidade, “que não elimina algumas
características que lhe são inerentes”. Dessa forma, independente dos nomes,
que iremos atribuir tem-se que, nunca, um novo período elimina ou rompe na
totalidade com o período que o antecedeu, contudo novos paradigmas se
estabelecem. (BOUTINET s/d p.54)
A modernidade é marcada pela característica descêntrica do sujeito pós-
moderno ou contemporâneo, que escorre por diversos caminhos, onde
encontra uma identidade com a qual se sente bem (mesmo que
temporariamente), essa fluidez levou a uma identificação com as ideias
apresentadas por Hall (2006), Boutinet (s/d), Bauman (1998; 2005) e
posteriormente Harvey (2010).
Há preocupações referentes à formação e ao desenvolvimento da
identidade, na fase compreendida na pós-juventude ou vida adulta. Pensa-se
que as aflições, que atingem os adultos, influenciam as tomadas de decisões
dos jovens, sobretudo no que diz respeito à sua carreira. Pensa-se, também,
que o recente aumento pela procura do diploma de ensino superior não
corresponde apenas aos jovens egressos do ensino médio e, sim, inclui
pessoas que buscam a formação superior para uma ascensão social ou
profissional. Isto é verdadeiro, sobretudo, ao confirmarmos o pensamento de
39
Boutinet (s/d p.19) sobre a imaturidade dos sujeitos adultos e de sua
dependência das instituições formativas, frente aos desafios da atualidade.
O “ser adulto” é composto, segundo Boutinet, por diversos parâmetros: o
parâmetro demográfico que diz respeito ao contexto da sociedade, onde esse
ser está inserido, compreendendo que as questões de um adulto em uma
sociedade jovem ou envelhecida se dão de forma diferente; o parâmetro
sociológico, referente às ideologias presentes na sociedade que influenciam
diretamente na formação da identidade do sujeito; o parâmetro cultural que
“confronta-nos com uma dinâmica histórica de heranças de valores
organizados, de códigos, de regras”; parâmetro econômico em relação ao
desenvolvimento da sociedade e sua forma de organização (rural e
tecnológica); e parâmetro psicológico que “permite recordar o itinerário singular
de cada indivíduo, em função dos acontecimentos e influências que ele viveu e
à sua maneira interiorizou” (BOUTINET s/d p.21-22).
A identidade do sujeito forma-se na relação social, mas, não apenas
nela. Hall alega que a Identidade Cultural do sujeito dá-se no “pertencimento a
culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais”
(Hall, 2006 p.8). Pode-se adicionar, a essa afirmação de Hall, que a identidade
do sujeito, também se constitui na sua relação com a educação e com o
trabalho, sendo esses outros processos formativos que contribuem para a
formação da identidade.
É importante considerarmos que a formação do sujeito para Ferry (1997
p.53-56) apresenta-se como um processo que pode ser visto de muitas formas:
- formação como dispositivo, ou seja, algo que se faz; - formação como algo
externo ao individuo, como algo a ser consumido, recebido por um indivíduo
vazio que será moldado à semelhança do seu formador; - formação como
processo solitário do indivíduo, como inverso ao processo de modelagem.
O mesmo autor apresenta a formação como “La dinâmica de un
desarollo personal” que, embora pessoal, tem mediações do professor
(“mediadores humanos”), das leituras, das circunstâncias, dos acontecimentos
da vida e da relação com os outros. Todas essas são mediações que
possibilitam a formação, que orientam e dinamizam o desenvolvimento em um
sentido positivo. Para o processo de formação ocorrer, Ferry (1997 p.53-56) vê
três condições básicas; “condiciones de lugar, de tiempo y de relación con la
40
realidad”. É necessário haver um tempo e um lugar para a formação, para o
individuo pensar sobre si mesmo, para trabalhar em si mesmo, para se
deslocar de sua realidade e representá-la de forma refletida. É no espaço e
tempo de formação que o indivíduo se dedica à representação de sua
realidade. Quando o indivíduo está, em espaço e tempo de formação, trabalha-
se sobre representações da realidade e não sobre a realidade propriamente
dita2.
Compreende-se que não apenas as instituições escolares são espaços
de formação na perspectiva apresentada por Ferry, mas, sim, as próprias
relações com suas inquietações e aflições possibilitam, ao sujeito, espaço para
formar sua identidade. A concepção de que a identidade do sujeito forma-se
apenas na relação social, segundo Hall (2006) está relacionada com os
pensamentos sociológicos, ou sujeito sociológico como denomina.
O processo de formação de identidade é inacabado e constante, o
adulto vive essa relação dialética entre estar maduro e imaturo, ao mesmo
tempo. Para Boutinet, “a identidade adulta é sempre frágil neste ponto de
encontro, entre a estabilidade de certos parâmetros percebidos e a mudança
na percepção de si próprio”. A formação de identidade do adulto, para o
mesmo autor, é dada, através de um sentimento, que surge na afinidade com
os grupos com os quais o sujeito se relaciona, como família, grupos sociais e
outros. Esse conjunto de relações é estruturante e formador para uma
segurança da identidade de si. Por outro lado, aquelas experiências vividas e
julgadas como únicas, também, contribuem para a criação dessa identidade,
tornando-se “paradoxal implicando a conjugação de dois sentimentos
contrastados” (BOUTINET, s/d p.170).
Durante muito tempo a idade adulta foi considerada como um estado, o de maturidade adquirida; a sociedade, seja ela puritana, neo-jansenista ou de moral laica, procura impor um quadro tradicional de existência que emerge em meados do séc. XIX, para se prolongar até ao fim da 2ª Guerra Mundial no nosso sec. XX;(...) o adulto foi então, definido como um estatuto. (BOUTINET s/d p.17)
O autor comenta mais adiante que, nos últimos trinta anos (1960 a
1995), o adulto passou da figura de “Adulto Padrão” para a figura de adulto,
2 Tradução livre do original em espanhol.
41
como um estado em perspectiva, em busca de uma maturidade vocacional,
nunca atingida, chegando ao status de um “Adulto com Problema” onde há:
“uma imaturidade gerada por circunstâncias frustrantes que tornam os
caminhos da vida adulta, vulneráveis e arriscados”. (BOUTINET s/d p.16)
Outras características da identidade do adulto e dos sujeitos, na pós-
modernidade, são apresentadas nos pensamentos de Hall (2006), que analisa
três concepções de identidade do sujeito, através do processo histórico: sujeito
do iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. O autor entende
essas divisões como generalizações, mas, que contribuem para a
compreensão de seus pensamentos.
Conforme Hall (2006 p.8), o próprio conceito de “identidade” é muito
complexo e pouco desenvolvido para ser totalmente colocado à prova, mas, o
que se tem nesse momento é uma crise da identidade do sujeito
contemporâneo, afetando a sua identidade cultural e a “identidade de si”. Isto
abala a ideia que se tem de si mesmo, colocando em xeque se os processos
de mudança e de descentralização do sujeito representam, também, um
momento de alteração da própria modernidade.
Esta perda de um ‘sentido de si’ estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento – descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmo – constitui uma ‘crise de identidade’ para o indivíduo (HALL, 2006 p.9). Esses processos de mudança, tomados em conjunto, representam um processo de transformação tão abrangente que somos compelidos a perguntar se não é a própria modernidade que está sendo transformada (HALL, 2006 p.10).
Essas crises e modificações da sociedade podem se caracterizar como
a criação de uma pós-identidade diferente de qualquer outra presente
anteriormente.
Leva-se em conta que não é possível desconsiderar os aspectos sociais,
na construção da identidade. Ainda, considera-se que as identidades dos
sujeitos de uma sociedade também contribuem para a forma como essa
sociedade se desenvolve. Para Boutinet, essa construção ocorre entre o
paradoxo da imagem de si que leva em conta o sentimento de identificação e
de diferenciação e, também, o paradoxo entre o psicológico e o social, nas
42
relações entre aqueles do mesmo sexo e do sexo oposto, da mesma geração,
de gerações anteriores e com os mais jovens. Bauman (2005) também
apresenta a importância de um pertencimento ou de uma aceitação social da
identidade:
Quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam parecer ‘natural’, predeterminada e inegociável, a ‘identificação’ se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um ‘nós’ a que possam pedir acesso. (grifo nosso) (BAUMAN, 2005 p.30).
Ao relacionarmos a citação de Bauman (2005) com a fundamentação de
Boutinet (s/d), o pronome Nós pode ser compreendido, possivelmente, como
estando associado aos grupos definidos por gênero ou por idade do sujeito. É
“a idade e o gênero os dois elementos fundadores do sentimento de
identidade”. Na atualidade, há a “rejeição da idade”, ou seja, se quer ser
sempre jovem, abrindo mão dos benefícios da maturidade, das experiências,
das vivências e do distanciamento crítico. A rejeição da idade é “também a
rejeição da experiência”. Ao mesmo tempo, há uma rejeição do gênero, não
necessariamente no sentido negativo, mas, as funções, os comportamentos e
as manifestações sociais começam a se perder e não são mais definidas pelo
gênero da pessoa, nas organizações, nas famílias, no governo, na moda. Os
homens e mulheres trocam e compartilham suas atividades e costumes, essas
são características de uma sociedade pós-industrial. (BOUTINET s/d p. 168-
170).
Hall (2006, p. 45) atribui, ao feminismo, uma forma de rejeição dos
padrões de gênero, como proposto por Boutinet, transformações na
centralidade do sujeito. Há uma forte influência na ruptura, entre as
concepções de sujeito iluminista ou de sujeito cartesiano e de sujeito
sociológico. Isto se refere à concepção de sujeito mais centrado no “eu
individual” e o sujeito centrado nas relações sociais.
Outra característica da sociedade pós-moderna ou pós-industrial é o
mal-estar, pelo não reconhecimento, sobretudo, no espaço do trabalho. Hoje, o
trabalhador não se identifica mais com as empresas, ocupa, e sabe disso, um
cargo temporário que poderá ser a qualquer momento extinto. Esse
trabalhador, comandado por outros trabalhadores, igualmente, sem
43
identificação com as “instituições frias da era pós-industrial”, ignora o seu
subalterno que se sente desnecessário àquela organização, fazendo com que
se sinta desnecessário também para a vida. (BOUTINET s/d p. 168-170).
Bauman, refletindo sobre os aspectos das empresas pós-industriais, afirma
que, hoje, as empresas tornaram-se um espaço de disputa pelo
reconhecimento do chefe. Existe a busca por um “aceno de aprovação”, as
empresas deixaram de ser, como no passado, “estufas de solidariedade
proletária na luta por uma sociedade melhor”. (BAUMAN, 2005 p.40)
Essas rejeições de dois elementos fundadores da identidade e as
aflições, quanto ao seu reconhecimento e identificação com algo, demonstram
a descentração do sujeito. Hall (2006), ao comentar sobre a identidade do
sujeito pós-moderno e também Boutinet (s/d), ao tratar do fato que o adulto, na
contemporaneidade, aproxima-se de sua figura da infância, ao fragilizar-se
diante das aflições que a vida adulta lhe impõe, não quer ser adulto, para não
perder a sua ligação com o não saber. Esse adulto “sem pontos de referência
bem determinados sente-se perdido com múltiplas dependências; fragiliza-se e
reencontra a precariedade da sua infância”. BOUTINET (s/d/ p.19)
complementa esses aspectos.
De acordo com Bauman (1998, p.177), a caracterização frágil da figura
da criança não foi sempre apresentada na sociedade, é uma construção
moderna, “até aproximadamente o século XVI, as crianças, na Europa, eram
tratadas de modo não muito diferente do que ‘adultos de tamanho menor’”. Tal
situação passa a se alterar, a partir do século XVII, mas, se afirma, a partir do
século XVIII, com três desvios que, segundo o autor, foram fundamentais para
a modificação da concepção de criança e adulto:
(...) primeiro, em separar uma certa parte do processo da vida individual como o estágio da “imaturidade”, isto é, uma fase repleta de perigos, mas, também, caracterizada por necessidades especiais e que requer, assim, um ambiente, um regime e um processo todo seu; segundo, na separação especial daqueles que precisam de tal tratamento peculiar e na sua submissão ao cuidado de especialistas deliberadamente instruídos; e, terceiro, em conferir à família especiais responsabilidades de supervisão no processo de ‘amadurecimento” (BAUMAN, 1998 p.177).
44
Posteriormente, no século XIX, a criança vai ganhando maior status de
ingenuidade e fragilidade, sendo submetida a espaços estruturados para
recebimento de conhecimentos e para as suas fases do desenvolvimento,
sendo elevada, cada vez mais, a ingenuidade e fragilidade (Bauman, 1998
p.182). Para Boutinet (s/d), a sociedade pós-moderna e sua dinâmica,
principalmente, aquela que diz respeito às exigências do trabalho, cria no
sujeito uma imaturidade e uma infantilidade, sobretudo, na exigência constante
da sociedade, por um profissional mais capacitado. Isto eleva a formação
continuada à situação de solução aos problemas. Essa impotência que o
sujeito sente transforma-o nessa criança do século XVIII e XIX, frágil e
dependente.
Os diferentes momentos históricos causam impacto na identidade do
sujeito, as concepções de arte, ciência, adulto, criança, as organizações
morais, são relacionadas à forma como aquela determinada sociedade pensa.
Hall (2006) distingue três tipos de identidade, exemplificando o processo de
modificação que as transformações da sociedade causaram no sujeito
moderno, tal divisão contribui para entendermos o processo que constitui esse
adulto pós-moderno, frágil e aflito.
Tentar mapear a história da noção de sujeito moderno é um exercício extremamente difícil. A idéia de que as identidades eram plenamente unificadas e coerentes e que agora se tornaram totalmente deslocadas é uma forma altamente simplista de contar a estória do sujeito moderno. Eu a adoto aqui (em seu livro) como um dispositivo que tem o propósito exclusivo de uma exposição conveniente (HALL, 2006 p.24).
A ideia do autor é expressar a forma pela qual a concepção do sujeito
moderno mudou, em “três pontos estratégicos durante a modernidade”, e que
esse sujeito, como teve seu nascimento, em um determinado momento
histórico, passará por transformações e, possivelmente, morrerá.
A concepção do sujeito iluminista dá-se naquele “totalmente centrado,
unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação”.
Entende-se que essa ideia surge em oposição à idéia do sujeito individual,
submetido a uma decisão divina sobre sua individualidade, não sendo
soberano de sua existência. “O nascimento do “indivíduo soberano” está entre
o Humanismo Renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII,
45
representou uma ruptura importante com o passado” (HALL, 2006, pp.10, 11,
19, 46).
Contribuíram para a concepção de indivíduo soberano, ou sujeito
racional cientistas como Descartes que “colocou no centro da mente o ‘sujeito
individual’”. Essa noção de sujeito individual vai se perdendo na forma como
diversos sociólogos apresentam a relação do sujeito com a sociedade na qual
ele está inserido. Ele não é completamente autônomo, estando subordinado,
no caso do pensamento de Marx, ao capital e aos donos dos meios de
produção Esse sujeito reflete a “consciência de que este núcleo interior do
sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado, na relação com
‘outras pessoas importantes para ele”. O sujeito sociológico ainda possui um
núcleo o “’eu real’, mas, este é formado e modificado, num diálogo contínuo
com os mundos culturais exteriores, e as identidades que esses mundos
oferecem”, a identidade funciona como uma ponte entre o mundo interior e o
mundo exterior (HALL, 2006, pp.10-11;19-46).
Essa concepção de sujeito sociológico alinha-se à concepção de
Boutinet dos processos de formação de identidade, que se dão, na relação com
os outros e nas suas experiências interiores, ou seja, no paradoxo entre o
interno e o externo.
Bauman (2005) destaca dois pontos importantes do sujeito: a identidade
e o pertencimento. O pertencimento também é destacado por Boutinet (s/d). Ao
mesmo tempo, o sujeito quer pertencer a um grupo e quer se diferente deste
grupo. Para Bauman (2005):
Tornamo-nos conscientes de que o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’ (BAUMAN, 2005 p. 17).
Bauman já apresenta, nesse trecho, a flexibilidade que a identidade do
sujeito possui. Esse sujeito se esforça para preservar sua identidade e seu
pertencimento. Hall (2006) afirma que o sujeito pós-moderno constrói uma
história para justificar as modificações da sua identidade. Ele se esforça para
dar um sentido de unidade à identidade e não de fluidez ou falta de centro.
46
Para Bauman (2005 p.19) poucos de nós, ou quase nenhum de nós, são
apresentados a apenas “uma comunidade de ideia e princípios”, influenciando
a “coerência daquilo que nos distingue como pessoas”.
O sujeito pós-moderno já não apresenta mais um único centro ou um
centro de referência que deve seguir, não há essa coerência de dever ser
como alguém, embora a necessidade de pertencer a um grupo exista, para
Bauman (2005 p. 33): “no admirável mundo novo das oportunidades fugazes e
das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis,
simplesmente não funcionam” e, mais adiante, comenta:
(...) a identificação é também um fator poderoso na estratificação, uma de suas dimensões mais divisivas e fortemente diferenciadoras. Num dos pólos da hierarquia global emergente estão aqueles que constituem e desarticulam as suas identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-as no leque de ofertas extraordinariamente amplo de abrangência planetária. No outro pólo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que não têm direito de manifestar suas preferências e que no final se vêm oprimidos por identidades aplicadas e propostas por outros (...). A maioria de nós paira desconfortavelmente entre esses dois pólos, sem jamais ter certeza do tempo de duração de nossa liberdade de escolher (...) (BAUMAN, 2005 p. 44).
Essa opressão dá-se, inclusive, no espaço da escola, onde sem a
existência da ética, há uma supressão das diferenças, em busca de uma
homogeneização dos alunos. O mesmo acontece, nas empresas, os ditos
diferenciais, que o profissional deve ter, são quase padronizados, entre as
organizações. Não há permissão para que aquele sujeito manifeste-se da
forma que preferir. São padronizadas as roupas, as instituições de ensino que
ele deve ter estudado, os países que deve ter visitado. Porém, em seu convívio
social, o sujeito tenta constituir uma identidade “própria” que, possivelmente,
será muito próxima de identidades globais.
Para Hall (2006), a identidade desse sujeito pós - moderno transpassa o
único centro, o contato com diversas possibilidades de centros, as inúmeras
relações propostas e disponíveis. No mundo contemporâneo, abrem, ao
sujeito, infinitas possibilidades de núcleo. Para Hall (2006), a globalização tem
importante contribuição nesse sentimento, não a globalização, no sentido do
senso comum, utilizada, vulgarmente, para definir qualquer manifestação
transnacional, mas, sim, uma globalização entendida como “um complexo de
47
processos e forças de mudança, que, por conveniência, pode ser sintetizado
sob o termo ‘globalização’” (HALL, 2006 p.67). Os processos mundiais sempre
foram globais. O próprio capitalismo não respeita fronteiras, mas, percebe-se
que, após a década de 1970, os processos passaram a caracterizar-se, de
forma mais global. Essas relações globais, para Hall, influenciam na construção
da identidade nacional do sujeito.
Bauman (2005) afirma que a idéia de identidade nacional, assim como a
idéia de identidade, é uma ficção e “não foi naturalmente gestada e incubada
na experiência humana, a idéia de identidade “surgiu da crise do
pertencimento”. (BAUMAN, 2005 p.28)
Assim, no processo de alinhamento dos pensamentos de Bauman
(2005) com a crise do reconhecimento, proposta por Boutinet (s/d) e a falta de
centro, proposto por Hall (2006), é possível inferir que o sujeito da atualidade
tem a sua identidade colocada em crise. Isto ocorre, mesmo que essa
identidade seja composta de modo ficcional. Ocorre, ainda, se o fenômeno da
globalização, na forma proposta por Hall, for considerado como algo que
permite que se tenham contatos (no processo global) com outras infinitas
possibilidades de identidades. Mesmo dentro de um mesmo país, as
identidades se diferenciam e se distanciam, aproximando-se, muitas vezes, de
identidades de outras nações.
Para Hall (2006), esse fenômeno apresenta três consequências, em
relação às identidades nacionais, que são importantes elementos da formação
da identidade cultural do sujeito. As identidades nacionais estão dando lugar a
identidades globais; as identidades nacionais estão se fortalecendo como uma
resistência à globalização; ou, as identidades nacionais estão dando lugar a
identidades híbridas que se dão, em uma relação espaço-temporal, tendo em
vista que cada época trama relações com uma forma de tempo e espaço e
essa influi nas suas representações do mundo (artes, comunicações, etc) e
essas representações do mundo apresentam aspectos da e na identidade dos
sujeitos. (Hall 2006, p.67-73)
Como exemplo da relação identidade-representação do mundo:
O sujeito masculino, representado nas pinturas do século XVIII, no ato de inspeção de sua propriedade, através das bem reguladas e controladas formas espaciais clássicas (...) tem um sentido muito
48
diferente de identidade cultural daquele sujeito que vê a ‘si próprio/a’ espelhado nos fragmentados e fraturados ‘rostos’ que olham dos planos e superfícies partidos de uma das pinturas cubistas de Picasso (HALL 2006 p.71).
O sujeito da modernidade, representado na obra da de Picasso,
apresenta-se muito mais fragmentado e disforme do que teria sido
representado na arte clássica, que manifestava um ideal, um modelo de
identidade.
Leva-se em conta o quadro Abaporu de Tarsila do Amaral. A figura
humana é disforme, fora dos padrões clássicos. Este quadro é um forte
representante da arte modernista brasileira, que deu origem ao movimento
antropofágico, que objetivava digerir e regurgitar a cultura europeia, de forma
mais nacional. Demonstra como os sujeitos dessa época (início do século XX)
estavam utilizando as representações artísticas, como forma de buscarem uma
identidade que já se mostrava relacionada com o global.
Figura 3: Abaporu – Tela de Tarsila do Amaral
Fonte: www.tarsiladoamaral.com.br/images/JPG/ABAPORU50.jpg
Essa arte, apresentada na obra de Tarsila do Amaral, abre-se como
inovadora em relação ao que a antecedia.
Para Bauman, é impossível falar de vanguarda, na pós-modernidade,
pois tal conceito está relacionado a algo que tem por essência uma distância
fixa entre dois pontos e um posicionamento, sendo de vanguarda aquele que
vai à frente dos outros. Para o autor: “(...) o mundo pós-moderno é tudo menos
imóvel. Mas os movimentos parecem aleatórios, dispersos e destituídos de
direção bem delineada.” Para o autor o modernismo caracteriza-se como um
“protesto contra as promessas descumpridas e esperanças frustradas, mas,
49
também um testemunho da seriedade com que as promessas e as esperanças
foram tratadas” (BAUMAN 1998 p.121-122).
Não é possível saber o que é para frente e o que é para trás. Há
movimentos em vários sentidos, diversas vertentes possíveis, há inúmeras
possibilidades, há uma coexistência entre tendências e comportamentos. A
sociedade que, para Boutinet, rompeu as questões de gênero e que, para Hall,
torna-se descêntrica vive, ao mesmo tempo, uma igualdade racial. Convivem
as manifestações preconceituosas, com a igualdade de gênero e com
sociedades machistas. Não existe algo à frente, assim como não existe algo
obsoleto. Havia mais clareza, na sociedade industrial, onde se estabelecia,
claramente, um ponto de separação, entre a era pré-industrial, com os meios
de produção artesanais e manuais, e a era industrial, com a máquina
transformando o homem. Em sua extensão, havia uma sinalização de uma
direção, que a sociedade estava seguindo, a direção da ruptura com as
tradições, da mobilidade social e também, da exploração do proletariado.
Embora, na atualidade, a tecnologia ganhe lugar de destaque e, em
alguns casos, características de feitor, coexistem uma necessidade e um
sentimento bucólico, em relação à vida no campo ou a uma vida menos
agitada, facilmente identificada nos anúncios de imóveis, que prometem bem-
estar para as famílias, área verde, reinventam os quintais, nas “varandas
gourmet”. Ao mesmo tempo, o mercado consumidor torna obsoletos, em
poucas horas, produtos como celulares, carros, computadores e demais bens
que são resultados da tecnologia.
Nas instituições escolares, pretende-se formar um sujeito habilitado a
trabalhar com essa coexistência e com essa falta de linearidade das evoluções
e dos conhecimentos. São representações da realidade e, consequentemente,
relacionadas com a arte e a estética da identidade cultural de um dado
momento.
Para Bauman (1998 p.127), na pós-modernidade, “os estilos não se
dividem em progressista e retrógrado, de aspecto avançado e antiquado”, as
novas artes não pretendem roubar a cena e os lugares das já existentes, mas,
sim se juntar a elas. Nesse contexto, para Adorno e Horkheimer (2002) “a
cultura contemporânea a tudo confere um ar de semelhança”. Menos otimistas,
quanto aos benefícios da pós-modernidade e da liberdade de estilos artísticos,
50
os autores atribuem, à “indústria cultural”, o sentido de padronização das
manifestações artísticas para comercializar a arte. Para Bauman (1998), a
dinâmica da arte tem de ser rápida para dar lugar, nas prateleiras, a novas
artes. Tal metáfora, utilizada por Bauman, alinha-se com a expressão “Indústria
Cultural” de Adorno.
No pensamento de Hall (2006), o sujeito pós-moderno é descentrado, já
nas reflexões de Adorno (2002, p.55), “na indústria cultural o indivíduo é
ilusório não só pela estandardização das técnicas de produção. Ele só é
tolerado à medida que sua identidade sem reservas com o universal
permanece fora de contestação”. A indústria cultural criou comportamentos
padronizados, se o sujeito pós-moderno não possui um centro e uma imagem
social fixa e não se dá apenas na relação com a sociedade, a sua identidade
forma-se nessa fluidez da sociedade atual.
Sintetizando os pensamentos apresentados, vê-se em Bauman (1998,
2005), que a sociedade atual não é organizada de forma linear e em Boutinet
(s/d) que essa organização atual da sociedade cria aflições no adulto, que se
sente imaturo. Em Adorno, a sociedade cultural padroniza o indivíduo, sendo
esse autor aquele mais contrário e pessimista quanto à mobilidade e à
liberdade do sujeito contemporâneo em escolher ser quem será.
2.2 A educação e a arte na contemporaneidade: um ca minho em direção à
formação dos sujeitos
Pensar que toda produção humana pressupõe uma estética e,
consequentemente, há aí uma concepção de arte que conduz à reflexão sobre
a formação dos sujeitos. Ela contribui para seu compromisso com o belo e com
o bem, sendo esses, em alguns casos, desassociados.
A educação será analisada pela perspectiva de Freire, principalmente,
nas reflexões sobre Educação Bancária, Autonomia e Pedagogia do Oprimido.
A hermenêutica pressupõe o conhecimento dos contextos para o
entendimento dos textos, sabe-se, também, através da hermenêutica, que, em
toda leitura, há o pressuposto de um preconceito acerca do tema e do texto
51
que será lido. A leitura permite, ao leitor, o distanciamento de seus
preconceitos e a sua contestação e possível reafirmação.
Pressupõe-se a necessidade de pensar uma educação que seja
libertadora, não mais opressora e aprisionadora e que o egresso dessa
educação não seja oprimido por novos conceitos que emergem, na sociedade,
como solução a todos os problemas. Convém que a tecnologia não seja o feitor
do profissional. Convém que a fluidez e a falta de centro das identidades, na
atualidade, não impeçam a autonomia dos sujeitos que serão capazes de
compreender a ética e estética, na sua produção. Tem-se ainda a ideia de que
a formação humana transpassa o espaço da educação regular e se
desenvolve, na sociedade, em um efeito multiplicador de atitudes éticas e
estéticas, ou seja, de bem e beleza.
Experiências como a de Augusto Boal (2008) com o “Teatro do
Oprimido”, que consiste na representação teatral de acontecimentos cotidianos,
permitindo a identificação dos papéis de oprimidos e de opressores,
desempenhados pelos indivíduos em sua atuação social. A proposta inicial, o
“apoio decidido do teatro às lutas dos oprimidos”, permite o acesso à forma
como a arte e à sua procedente estética. Tais experiências possibilitam a
aquisição da autonomia e da experiência com o sensível e com a
humanização.
Somente uma sociedade, na qual seja possível a mobilidade de classes,
pode ser pensada, na perspectiva da humanização dos oprimidos e dos
opressores. Nas sociedades antigas, nas quais os indivíduos, ao nascerem,
tinham já as posições sociais estabelecidas, havia mais dificuldades para a
humanização. As sociedades pós-modernas são espaços abertos para a
humanização.
Boal (2008), para explicar a estruturação do Teatro do Oprimido, utilizou,
como metáfora, uma árvore, que nasce do “solo fértil da Ética e a Política, da
História e da Filosofia, onde a nossa árvore vai buscar a sua nutriente seiva.”
Os frutos dessa árvore são a multiplicação que espalham pela sociedade as
ideias que compõem o teatro do oprimido. A solidariedade é “parte medular do
Teatro do Oprimido”. No tronco da árvore, está presente o Jogo que reproduz
características essenciais da vida em sociedade: as regras e a liberdade
criativas. “Sem regras não há jogo, sem liberdade não há vida”. Outros
52
componentes do tronco são o Teatro Imagem e o Teatro Fórum, sendo esse
“talvez a forma mais democrática do TO e, certamente, a mais conhecida e
praticada em todo o mundo, usa ou pode usar todos os recursos de todas as
formas teatrais conhecidas”. Na copa da árvore, estão as ações diretas, o
teatro legislativo, o teatro invisível, o arco-íris do desejo e o Teatro Jornal.
(BOAL, 2008 p.16-19)
Para Boal (2008), “(...) o teatro deve ser um ensaio para a ação na vida
real, e não um fim em si mesmo. O espetáculo é o início de uma transformação
social necessária e não um momento de equilíbrio e repouso.” (2008 p.19). A
arte é espaço de humanização, o teatro, sobretudo na forma proposta por Boal,
é espaço de reflexão sobre os oprimidos e opressores.
Pensar em humanização, para Freire (1987) implica em: “reconhecer a
desumanização, não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade
histórica.” Sendo humanização e desumanização “possibilidades dos homens
como seres inconclusos e conscientes da sua inconclusão”. (FREIRE, 1987
p.16)
A humanização é a vocação natural do homem, mesmo na sua negação
está presente sua afirmação, a desumanização não é vocação histórica do
homem, sua prática tem, na sua oposição, a humanização. Acreditar que a
vocação do sujeito é ser desumano leva ao desespero. A desumanização está
presente na violência dos opressores, que se fazem, também, desumanizados,
ao desumanizarem os outros. Esses, ao serem “feitos menos”, uma hora ou
outra, se voltam contra os que “se fazem mais”, porém, essa volta e busca por
sua humanidade, só se faz verídica, quando esses oprimidos não se tornam
opressores daqueles que os oprimiam, mas, sim tentam restaurar a
humanidade de ambos. (FREIRE, 1987 p.16)
A liberdade dos oprimidos não se dará por acaso, “mas pela práxis de
sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por
ela.” Essa luta se dará contra a violência dos opressores, “até mesmo quando
esta se revista da falsa generosidade”. (FREIRE, 1987 p.17)
Freire (1987) propõe uma pedagogia dos oprimidos, essa teoria
antecede a teoria de Boal (2008) de Teatro do Oprimido. Para alguns
pesquisadores, o teatro do oprimido tem sua origem na pedagogia do oprimido,
que, para Freire (1987), é aquela: “que tem de ser forjada com ele e não para
53
ele (o oprimido), enquanto homens ou povos, na luta incessante de
recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas
causas objeto da reflexão dos oprimidos” (1987 p.17).
Essa pedagogia do oprimido, de acordo com Freire (1987 p.16-18), é
aquela que libertará os oprimidos dos opressores, dessa forma, não pode ser
pensada ou criada por esses. Os oprimidos não podem pensar em libertação,
como a ocupação dos lugares dos opressores, sua projeção de liberdade não
pode se dar, na privação da liberdade dos seus opressores ou então, na
criação de novos oprimidos, porém, para o autor a descoberta da possibilidade
de libertação: “É que quase sempre, num primeiro momento deste
descobrimento, os oprimidos, em lugar de buscar a libertação, na luta e por ela,
tendem a ser opressores também, ou subopressores” (1987 p.17).
Complementando o pensamento de Freire temos em Boal (2008),
“oprimidos e opressores não podem ser candidamente confundidos com anjos
e demônios. Quase não existem em estados puros, nem uns nem outros.”
(2008 p.23)
Os oprimidos interiorizam a imagem do outro, do opressor, como um
modelo de homem. Ao pensarem em liberdade ficam amedrontados, pois
“Descobrem que, não sendo livres, não chegam a ser autenticamente. Querem
ser, mas, temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado
neles, como consciência opressora”. (FREIRE, 1987 p.19)
Boal (2008) afirma que é impossível inocentarmos os opressores,
justificando que tal comportamento é conseqüência da sociedade, que agem
assim porque não conhecem outra forma de agir, alega que, se fosse assim,
todos teriam razão, na sua forma de agir e que “todas as razões se equivalem,
seria melhor que o mundo ficasse da forma que está”, e continua:
Nós, do TO, ao contrário, queremos transformá-lo (o mundo), queremos que mude sempre em direção a uma sociedade sem opressão. É isto que significa humanizar a Humanidade: queremos que o homem deixe de ser o lobo do homem, como dizia o poeta. (BOAL, 2008 p.25)
Freire (1996, p.31) afirma que “mudar é difícil, mas é possível”. Não
devemos pensar que basta pedirmos aos grupos oprimidos que se rebelem e
se voltem contra tudo, mas, no trabalho pedagógico, deve haver a possibilidade
54
de “desafiar os grupos populares para que percebam, em termos críticos, a
violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta”. Em
outra obra, Freire (1987 p.30) afirma que a realidade concreta de opressão não
pode ser um “mundo fechado, do qual não pudessem sair, mas, uma situação
que apenas o limita e que eles podem transformar”.
Essa percepção é condição essencial para a libertação, mas, a
libertação não é coisa simples, “a libertação, por isto, é um parto. E um parto
doloroso. O homem que nasce desse parto é um homem novo que só é viável
na e pela superação da contradição opressores/oprimidos, que é a libertação
de todos” (FREIRE, 1987 p.19)
“Como educador preciso ir “lendo” cada vez melhor a leitura de mundo
que os grupos populares com quem trabalho, fazem de seu contexto imediato e
do maior do qual o seu é parte” (FREIRE, 1996 p.32) É preciso compreender a
relação dos oprimidos com a parte e dessa parte com o todo.
O teatro do oprimido demonstra-se como possibilidade de contato com
essa representação da realidade do oprimido e da sua visão sobre os
opressores. Para Hall (2006), as representações da realidade são frutos do
momento histórico, em que vivemos e surgem, na forma das manifestações
artísticas.
A representação do teatro contribui para a visualização da identidade do
sujeito, é preciso que o oprimido entenda-se como sujeito da transformação,
não bastando apenas identificar seus opressores e, sim, se entender, como
oprimido, e buscar uma relação mais ativa com a falta de ética que faz parte da
vida.
“Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e
se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si
mesmos, superando, assim, sua “conivência” com o regime opressor. (FREIRE,
1987 p.29), não conivência como vontade de ser oprimido, mas, um medo da
liberdade, Freire (1996 p.32) complementa esse pensamento com:
É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidade por sua situação. Daí a culpa que sentem eles, em determinados momentos da relação com o seu contexto e com as classes dominantes por se acharem nessa ou naquela situação desvantajosa (FREIRE, 1996 p.32).
55
Para Boal (2008), a tomada de consciência, proporcionada pelo teatro,
contribui para a não conivência com as ações violentas dos opressores.
A função de pensar sobre a relação dos opressores com os oprimidos e
a necessidade de humanização não se dá apenas aos educadores ou, de
acordo com Boal (2008 p.29), aos artistas que pensam e executam a filosofia
por trás do Teatro do Oprimido:
Fôssemos veterinários, dentistas, pedreiros, filósofos, bailarinos, professores, jogadores de futebol ou lutadores de judô – qualquer que seja a nossa profissão – temos a obrigação cidadã de nos colocarmos ao lado dos humilhados e ofendidos (BOAL, 2008 p.29).
Para Freire (1987), os oprimidos atingem um estágio de dependência
emocional, resultado dessa situação de opressão em que vivem, Boutinet (s/d)
afirma que o adulto da contemporaneidade vive uma dependência dos espaços
de formação frente às exigências que o mercado de trabalho impõe, o mercado
de trabalho surge como um opressor.
Assim Freire (1996) afirma:
Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. (...) Exige de mim uma escolha entre isto e aquilo (FREIRE, 1996 p. 39).
Ser professor, para Freire, exige também uma concepção de estética no
sentido de compromisso com o belo:
Sou professor a favor da boniteza da minha própria prática, que dela some se não cuido do saber que devo ensinar se não brigo por esse saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo, descuidado corre o risco de se amofinar (...). Boniteza que se esvai de minha prática se, cheio de mim mesmo, arrogante e desdenhoso dos alunos, não canso de me admirar (FREIRE 1996 p.40).
Percebe-se, nessa afirmação, uma relação entre a estética, ou seja, o
belo apresentado na forma da boniteza das ações docentes e a estética da
feiúra, no amofinar do corpo descuidado, há ainda uma relação com o bem ,
pois, o comportamento sem boniteza se apresenta como um comportamento
56
anti-ético , pois o professor, ao abrir mão do compromisso com a beleza de
sua profissão, age de forma não ética.
O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processo de busca (FREIRE, 1987 p.34).
A ideia dos opressores não é a de dar possibilidades de transformação e
humanização à sociedade, mas, sim, de transformar a mentalidade dos
oprimidos, para que sejam mais facilmente dominados. A concepção bancária
de educação tem, como sua humanização, o fato de torná-los integrantes de
uma sociedade que não lhes pertence, ao invés de transformar a sociedade
para que esses façam parte dela (FREIRE, 1987 p. 34-36).
Na concepção bancária da educação, os homens estão no mundo e não
com o mundo e com os outros, não são agentes de transformação. Quanto
mais adaptados à concepção bancária da educação, mais educados estarão,
não há espaço para o pensar autentico do educando, “a opressão, que é um
controle esmagador, é necrófila. Nutre-se do amor à morte e não do amor à
vida” (FREIRE, 1987 p.37). Tal concepção bancária da educação nutre-se do
anti-ético, ou seja, do não compromisso com a vida e o bem-estar coletivo.
O educador precisa de liberdade e autoridade, porém, dificilmente,
consegue-se entender e definir as atitudes libertadoras e autoritárias, sem a
utilização de um autoritarismo desnecessário.
Para Freire (1996), a liberdade sem limite é tão ineficiente quanto a
liberdade castrada: “Quanto mais criticamente a liberdade assume o limite
necessário tanto mais autoridade tem ela, eticamente falando, para continuar
lutando em seu nome”.
O bem estar e o compromisso com a coletividade estão intrínsecos à
busca por uma libertação, a beleza da execução da função do educador está
no compromisso com a estética, sendo essa o campo das possibilidades de
contato com o sensível e com o humano.
O Teatro do Oprimido, proposto por Boal (2008), é uma representação
artística que pretende a tomada de consciência da opressão que se sofre. Não
é pura arte, é arte crítica e lúcida. A pedagogia do oprimido ou a pedagogia da
57
autonomia, propostas por Freire (1987, 1996) são, igualmente, instrumentos
éticos e estéticos de se pensar as relações da educação com a estética e a
ética. Elas não são técnicas, receitas ou fórmulas mágicas, pois se assim
fossem tornar-se-iam novos mecanismos de alienação, são tratados para a
reflexão sobre nossa prática docente e, no caso dessa pesquisa,
direcionadores de caminhos para se pensar a formação humana do profissional
tecnólogo.
2.3 O processo formativo e a dimensão estética
A escola apresenta-se como um espaço de construção e manutenção de
relações humanas que reproduzem modelos sociais de convivência entre os
indivíduos. Seu ambiente propicia a reprodução de comportamentos e ações
socialmente aceitas tanto por educadores como por educandos. Mas, a escola
sendo um organismo vivo, composto por sujeitos individuais e coletivos é viva e
possui vida, é um espaço criador de novas práticas (ou práticas éticas) que
serão replicadas socialmente.
A discussão sobre ética (o bem e o bom), nas relações humanas, está
presente também no campo educacional e não há como pensar relações éticas
de convivência, sem pensar os preconceitos que balizam as relações e os
valores atribuídos às ações boas e belas.
Pressupõe-se a ética como o compromisso com a vida e o bem estar da
coletividade, entende-se como educação ética aquela que prima pela
preocupação com o bem-estar do educando e da sociedade em que ele está
inserido, sendo premissa da educação, a ética, o bem e o bom . Nesse
contexto, surge outro pressuposto o belo , a estética de uma sociedade em
constante mutação. Essa estética pressupõe e, ao mesmo tempo, compõe uma
estética da educação.
Entendendo “processo formativo”, como a formação de valores e visões
de mundo, no e do indivíduo, a escola emerge como espaço de formação de
cidadãos, indivíduos que convivem em uma sociedade diversa, no que diz
respeito à religião, aos costumes, à orientação sexual, às etnias, à deficiência,
às questões de gênero e de idade.
58
No ensino superior, essas diferenças apresentam-se como uma micro-
sociedade e, em alguns casos, na forma de preconceitos velados ou explícitos,
nas práticas de professores e alunos. Ao profissional docente, cabe o desafio
de lidar com a interação entre as diferenças presentes na escola.
O homem (no sentido de ser humano) se constrói, nas relações do
processo de aprender, tendo, como ponto de partida, o que já se sabe, ou seja,
um pré-conceito. Cabe à escola, sistematizar o conhecimento, apresentando ao
indivíduo outros saberes3 e, também, valorizar os conhecimentos ainda não
formalizados dos educandos. A própria hermenêutica nos deixa claro que, pela
leitura de textos, ou seja, formalizações de discursos, resgata-se um conceito
anterior, que será utilizado para ler aquela realidade, ao mesmo tempo, em que
será colocado à prova.
O tornar-se adulto exige, do sujeito, o contato com outros sujeitos
diferentes, entre si, que influenciarão a sua “identidade de si”. No espaço da
educação formal e nas empresas, exige-se uma identidade única, apresentada
como modelo – possivelmente a identidade do opressor internalizada pelo
oprimido – tal fato contraria, conforme o que foi apresentado por Bauman
(1998, 2005), Hall (2006) e Boutinet (s/d), a identidade líquida ou descêntrica
do sujeito pós-moderno.
O sujeito acaba por viver uma contradição, ao mesmo tempo em que é
liquefeito, obriga-se a solidificar-se em uma imagem que não é a sua. Da
mesma forma que o metal Mercúrio toma a forma do recipiente que o contém, o
sujeito contemporâneo molda-se, ou tenta moldar-se, às exigências do
ambiente. Criam-se, assim, sujeitos com inúmeras identidades: o sujeito-pai, o
sujeito-marido, o sujeito-aluno, o sujeito-profissional e assim por diante.
Constroem-se ficções acerca de si mesmo, aprisiona-se em um querer ser
como alguém e não no “ser a si mesmo”.
De acordo com Oliveira (1994), as instituições de ensino, muitas vezes,
contribuem para a reprodução de comportamentos das classes socialmente
dominantes, “forçando” o indivíduo a atribuir valor a aspectos muito diferentes
da sua realidade:
3 Nota de aula da Educação Estética e Formação de Professores ministrada pela Profa. Dra. Margarete May Berkenbrock Rosito no Programa de Mestrado em Educação na Universidade Cidade de São Paulo no ano de 2009.
59
Na escola, várias informações, valores e valorações se entrecruzam, se contaminam e se combinam ou se repelem quando observamos o processo manifesto da aula, no qual o professor, embora orientado por um movimento de elevar os estudantes a uma formação (‘Bildung’), tende a aderir às idéias e valores da classe dominante transmitindo-os como idéias e valores absolutos (OLIVEIRA in PUCCI, 1994 p.126).
Almeida (2009)4, em aula sobre a formação e o papel da escola,
expressou: “Não é papel da escola educar o aluno para esse modelo de
sociedade desigual, injusta (...) educar o aluno para ocupar um bom lugar em
uma sociedade ruim.” Ou seja, não é papel da escola “treinar” o aluno para
reproduzir as injustiças da sociedade de forma a beneficiar-se ou, então,
adaptar-se às injustiças, a favor de seus interesses individuais, sem
compromisso com o coletivo e o bem estar, pois, nessa reprodução e
adaptação, há a manutenção das desigualdades e injustiças da sociedade. Há,
no espaço escolar, a valorização da estética, um conceito de estética
relacionado à aparência física e não à sensibilidade proporcionada pelo
arrebatamento da arte. Essa noção de estética, presente no espaço da escola,
sobretudo, no entendimento dado pelos alunos, refere-se a um padrão de
beleza corporal, ou então, a um padrão de comportamento, não levando em
conta as diferenças. Aqueles que se submetem a esse padrão buscam ali uma
solidificação da sua identidade, na tentativa de encontrar um centro e pertencer
a um grupo.
Na sociedade atual atribuem-se diversos significados à palavra estética,
desde a representação mais popular de estética como o corpo belo
proporcionado pelas “Clínicas de Estética” da sociedade do “homem light” 5, até
a estética como o estudo da arte, como o belo, como conseqüência da ética,
como pressuposto para ética ou como a contra-ética, como apresenta Amélia
Valcárcel, em seu livro “Ética contra Estética”, que demonstra um panorama
histórico da relação ética / estética, ora a ética é associada à razão e a estética
à emoção, ora outros atribuem, às duas, uma parceria indissociável.
4 Nota de aula da Disciplina Formação de Professores: Concepções e Práticas ministrada em conjunto pela Profa. Dra. Ecleide Cunico Furlanetto e Prof. Dr. Julio Gomes Almeida no programa de Mestrado em Educação da Universidade Cidade de São Paulo no ano de 2009. 5ROJAS apud AMORIM NETO, R.C. e ROSITO, M. M. B. Ética e Moral na Educação , Editora Wak. 2009.
60
A obra de Valcárcel (2005) surge, a partir da análise da afirmação de
Wittgenstein: “A ética e a estética são uma coisa só”. Tal afirmação apresenta
uma das muitas discussões que surgem, a partir da relação entre ética e
estética. Tal discussão se torna pertinente a esta pesquisa, que pretende
pensar a ética e a estética na educação.
Para Valcárcel (2005), analisando o pensamento de Wittgenstein, a ética
é transcendental, ou seja, está fora do mundo: “O que está fora do mundo é o
sentido do mundo e não pode ser posto em palavra.” A autora, citando
Wittgenstein, apresenta a seguinte frase e depois a analisa “Está claro que a
ética não pode ser posta em palavras. A ética é transcendental” e, assim, ela
analisa: “Se a ética é algo transcendental, é por uma razão kantiana: ou é
assim, ou não é ética”. (VALCÁRCEL, 2005 p.3)
A ética e a estética poderiam ser consideradas uma coisa só, por ambas
serem inefáveis, “não podendo ser postas em palavras, nas palavras da
linguagem significativa, já que expressam algo mais elevado do que aquilo que
justamente essa linguagem não pode expressar”. Embora seja possível
identificar tal característica em ambas (ética e estética), para Valcárcel, isso
não é suficiente para que elas sejam uma só. (VALCÁRCEL, 2005 p.4)
Uma forma de dar sentido a afirmação de Wittgenstein, é afirmar que no
pensamento dele:
(...)a arte supõe uma ética, quer dizer, que toda estética leva consigo uma ética sobreposta. A arte é então simulacro e a ética continua inefável. A arte mostra justamente esse inefável. É bastante provável que assim seja, a partir de uma hermenêutica interna (VALCÁRCEL, 2005 p.6).
Ao analisar diversos autores, é possível extrair do pensamento de
Valcárcel (2005) diferentes possibilidades de relação entre ética e estética. A
ética e a estética são, diretamente relacionadas, sendo a estética uma
possibilidade mais sensível da ética racional.
“O que está bem feito é bom e belo ao mesmo tempo, e assim é
considerado se os prejuízos não distraem o julgamento” (VALCÁRCEL, 2005
p.65). Tal questão também é apresentada, na nossa sociedade, ao atribuirmos
a expressão “isso que você fez foi feio”, quando queremos dizer que algo está
errado ou, contra os padrões de comportamento moral ou ético daquele que
julga tal fato.
61
Jimenez (1999:21-23) apresenta a dificuldade de estabelecer uma regra
que atenda à estética e que defina diretrizes. Esta regra deveria pensar e criar
cronologias, para a sua definição, de dar conceitos de estética (e de belo),
propondo a existência de uma “estética platônica”, de uma estética em Kant, e
diferentes estéticas, de acordo com os movimentos artísticos ou “ismos”
(iluminismo, modernismo etc). Essa pluralidade apresenta a dificuldade de
escolher uma estética como absoluta.
De acordo com Jimenez (1999), arte é o objeto da estética. A arte, por
não ser perecível, abre outra dificuldade para a reflexão sobre estética: as artes
de diversos momentos históricos com conceitos diferentes de estética, ainda,
arrebatam e se mantêm como arte na contemporaneidade:
A antropologia da arte ensina-nos que o belo, assim como o feio, são valores relativos não somente a uma cultura, a uma civilização, mas, também a um tipo de sociedade, a seus costumes, à sua visão de mundo, em um dado momento da história (JIMENEZ, 1999 p.23)
Bauman (1998) também compartilha de tal opinião, ao afirmar que, na
contemporaneidade, não é possível estabelecer uma arte de vanguarda.
Jimenez (1999) atribui à estética também o domínio da sensibilidade e
concebe, como possível, uma história da estética se a pensarmos em um
conceito amplo:
(...) ela (a história) seria, por conseqüência, não a história das teorias e das doutrinas sobre a arte, sobre o belo ou sobre as obras, mas, a história da sensibilidade, do imaginário e dos discursos que procuraram valorizar o conhecimento sensível, dito inferior, como contraponto ao privilégio concebido na civilização ocidental, ao conhecimento racional (JIMENEZ,1999 p.25).
A estética, então, ultrapassa o belo absoluto, ou uma receita do que é o
belo, a estética é o estudo do sensível, a arte não apenas racionalizada, mas, a
arte como imaginário, emoção e sensibilidade.
Na atualidade, estabelecer um conceito de estética único se faz
impossível, sobretudo levando em conta a fluidez das relações com a arte e as
inúmeras possibilidades de representações artísticas.
Perisse (2009) fundamenta-se na análise dos escritos de Baumgarten
que é “considerado o criador da Estética, como disciplina científica, pois
cunhou a palavra, com base nos termos gregos aisthétukós (“que possui a
62
faculdade de sentir”) e aisthésis (“sensação”)”. Ainda, conforme Perisse (2009
p.11), a finalidade da estética é “levar, para o reino das ideias claras, as
sensações confusas e obscuras que apresentamos diante da poesia e da arte
em geral. A estética nos permitirá aperfeiçoar nosso conhecimento da beleza
(...)”.
Wojnar (1967, p.90) considera Baumgarten o criador da estética, como
uma teoria do conhecimento sensível, diferente da lógica que dirige as
operações da inteligência, tendo como objeto formal a perfeição e a beleza.
A autora ainda apresenta o pensamento de Tolstoi que, contrário às
afirmações de Baumgarten, afirma que a estética não pode ser associada
apenas à beleza e que a arte não é apenas o prazer. Para Tolstoi, a arte é
comunicação: “El arte es una forma de la actividad humana que consiste, para
el hombre, en transmitir sentimientos a otros, consciente y voluntariamente, por
médio de determinados signos exteriores” (Tolstoi 1931 p. 21 apud Wojnar
1967 p.91).
As ideias de Tolstoi , assim como diversos autores que pensaram a
estética, não são unânimes, Wojnar (1967 p.92-94), apresenta Abramowski
como um autor contrário à ideia da arte como comunicação, sobretudo porque,
no final do século XIX, a nova organização social permitiu um contato mais
generalizado com a arte, tirando seu aspecto solene e elitista, a arte é, então,
profunda e individual.
Silva (2001), ao analisar o pensamento de Schiller sobre Estética e
educação, afirma:
Se a arte está contaminando toda a ação humana, ela pode ser um princípio ético a todo procedimento, agregando no mundo da diversidade e de fragmentos, um princípio e um fim de beleza totalizadora. Nada mais adequado a todas as épocas, pois todas as épocas e todos os povos, ainda que na dureza da vida primitiva, desenvolveram sistemas de representações artísticas (SILVA, 2001 p.10).
Assim, para Silva (2001), a arte é pressuposto da produção humana e
toda produção humana tem seu conceito de estética.
Perisse (2009) apresenta a dificuldade de se definir a estética e afirma:
63
Nada garante que a leitura de dezenas de livros, escritos antes e depois de Baumgarten, faça alguém entender o que é a arte ou o que é a Estética. Por outro lado, se queremos compreender a natureza e o objeto da Estética, todas as leituras são bem-vindas. Contanto que saibamos conferir as palavras lidas com a realidade vivida. (...) A realidade artística necessita ser experimentada pessoalmente a fim de que se joguem luzes sobre as definições que buscamos com a razão... e o coração (PERISSE, 2009 p.12).
Embora nenhuma leitura garanta a definição de estética, a aproximação
entre os autores propicia reflexões, acerca do belo, em nossa própria
sociedade, e levanta questionamentos sobre os valores que atribuímos à
sensibilidade e ao belo na educação.
Compreender a dimensão estética da educação permite assimilar a
relação entre o sensível e a formação, não apenas na forma das aulas de
educação artística dos níveis fundamental e médio. Em uma perspectiva mais
ampla que engloba a hipótese de que toda produção humana possui uma
estética e que mesmo, ao ter contato com a arte, o sujeito é co-autor do
processo de sensibilização, porém, para tanto, é preciso entender a estética
em um sentido mais amplo do que o simples estudo de obras de arte.
Os pensamentos sobre educação estética não são privilégios dos
tempos atuais, Wojnar em sua obra “Esthétique et pédagogie” publicada, em
1963, em Francês e, em 1967, em Espanhol, com o título “Estética y
pedagogia” já refletia sobre essa prática.
Muito anterior a esse pensamento, há Schiller com “A educação estética
do homem numa série de cartas”, cartas escritas ao príncipe Augustenburg, no
final do século XVIII. Essas cartas apresentam os esboços preliminares das
investigações que culminarão na Educação Estética do homem. (SUZUKI in
SCHILLER, 2005 p.7)
A educação estética conserva sua particularidade e tem sua história.
Suas raízes podem ser descobertas na Antiguidade. Nessa época, “los
principos estéticos habían desempeñado, tanto en la teoria como en la prática
de la educación, un papel primordial6” (WOJNAR, 1967 p.103), para a autora
“Se trata aqui del arte como médio de formación del hombre moderno, de su
personalidad y de sus actitudes frente al universo” (WOJNAR, 1967 p.133)
6 Tradução: “Os princípios estéticos haviam desempenhado, tanto na teoria como na prática da educação, um papel primordial.”
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Wojnar (1967) afirma que, nos anos seguintes, esse tipo de educação foi
ganhando cada vez menos espaço até o século XIX e o surgimento da Nova
Educação. Para a autora, há semelhanças entre as ideias da educação
ateniense e a Nova Educação, chamando assim o movimento que contribui
para o desenvolvimento da educação estética e que surgiu, no final do século
XIX. Os autores em destaque são Binet, Decroly, Dewey, Montessori e Stanley
Hall, sendo que “en la Nueva Educación se reconocen asimismo los vínculos
importantes con el “impulso vital” bergsoniano7”. A pedagogia proposta por
esses autores considerava a criança como o centro da educação e a pensaram
como uma alternativa à pedagogia tradicional, que tratava de modelar a
criança, de acordo com um modelo abstrato de adulto. A autora destaca, como
princípios da Nova Educação: “estimular a atividade das crianças; unir a
atividade manual ao trabalho do espírito; desenvolver na criança as faculdades
criativas” (WOJNAR, 1967 p.103-106).
A nova educação tinha, entre seus propósitos, alguns princípios da
educação estética:
la educación propuesta era la educación al servicio del niño, a partir del niño, y no de uma Idea abstracta de la infância. Y la educación estética parecia corresponder bien a estos objetivos educativos. Las actividades personales, sobre todo las de caracter artístico, permitían satisfacer las necesidades del niño y hacerle penetrar mejor en la realidad de la vida circundante. (WOJNAR, 1967 p.106).
Tal concepção de educação aproxima-se da necessidade apontada por
Freire (1987, 1996) de os oprimidos conhecerem a situação, na qual estão
inseridos e o contexto maior de que ela faz parte. Em Boal (2008) temos a arte,
na forma do teatro, como possibilidade de contato com a representação da
realidade. Wojnar (1967 p.109), citando Wheeler confirma: “son sobretodo la
música, la poesia y el arte dramático los que proporcionan médios importantes
en este método de intuición. El arte, opina Wheeler, ayuda a compreender
mejor el hombre y la vida”.
Após a segunda guerra mundial, segundo Wojnar (1967), o movimento
em favor da educação estética se amplia, a autora destaca um congresso
organizado pela Federação Internacional para a Educação Artística, no ano de
1958, em que não se discutia mais a importância, apenas, do entendimento da 7 Tradução: “Na Nova Educação se reconhecem, também, importantes vínculos com o “impulso vital” bergsoniano”
65
educação artística como o ensinar a desenhar, mas, o ensino artístico que
sugere o interesse por diferentes gêneros de arte, ao mesmo tempo, em que
apresenta o interesse, também, com a formação geral do homem “cuya vida
penetra cada vez más el arte”. (WOJNAR, 1967 p.124-25)
Sobre a importância da educação estética Wojnar (1967), afirma:
El hombre que vive en uma civilización técnica há de conservar sus faculdades creadroas, y esto puede hacerse gracias a la influencia del arte que sirve “para realizar y expandir las fuerzas sin las que ele hombre no puede vivir. (WOJNAR, 1967 p.125)
Schiller (2002), pensando o homem de negócio do seu tempo, século
XVII, traz afirmação condizente com a realidade atual dos profissionais,
apresentada por Boutinet (s/d) e por Wojnar (1967), que também retratava uma
época diferente da nossa, comprovando a importância de se pensar a
formação humana e a educação estética: “(...) o homem de negócios tem
freqüentemente um coração estreito, pois sua imaginação, enclausurada no
círculo monótono de sua ocupação, é incapaz de elevar-se à compreensão de
um tipo alheio de representação” (SCHILLER, 2002 p.39). Ainda, de acordo
com Schiller (2002 p.85), “A tarefa da educação estética é fazer das belezas as
belezas”.
Segundo Neitzel (2006), referendando-se em Eco (1986) e Barthes
(1993) o “gozo de uma obra de arte representa uma forma, ainda que calada e
particular, de execução, o que nos possibilita pensar o leitor numa postura
multivalente e de co-autoria” (NEITZEL, 2006 p.95). A autora explica tal
afirmação, expondo a importância da relação entre estética e educação:
(...) podemos iniciar refletindo sobre como nos comportamos diante da tela de nosso pintor preferido, ou ainda, no teatro, no cinema, em uma apresentação musical. Essas atividades artísticas nos exigem um desprendimento, uma entrega a fruição. Se tivermos como objetivo favorecer o desenvolvimento de habilidades apreciativas é imprescindível oportunizarmos a exposição dos estudantes, com freqüência, á arte. (NEITZEL, 2006 p.95)
Embora a autora enfoque, mais especificamente, o estudo da leitura
fruitiva, suas considerações incluem pensamentos sobre a relação estética e
66
educação. Como possibilidade de contato com a estética no ambiente escolar
ela alega:
Para o leitor interagir com o livro e tratá-lo como conhecimento estético, necessita estar envolvido, imbuído de espírito artístico, o que exige o desenvolvimento de habilidades apreciativas. Nesse sentido a leitura fruitiva necessita fazer parte do currículo da educação infantil e das séries iniciais do ensino fundamental, figurando nos planos de ensino como conteúdo e não como estratégia. (...) A arte requer apreciação e sensibilização estética, o que nos exige um trabalho constante. (NEITZEL, 2006 p.96)
Neitzel (2006 p.97) afirma que “a leitura colabora para nossa formação
humanística, ela nos permite um crescimento individual e social”, a autora
continua:
Ver o texto como um objeto estético não representa torná-lo um material alienante. A literatura representa de maneira tocante uma forma de o indivíduo apreciar, julgar e criticar atividades sociais e políticas promovendo o questionamento ou a passividade, a conformidade ou a contestação, se incentivada como uma prática social. (NEITZEL, 2006 p.100)
Para Schiller (2002):
(...) o caminho para o intelecto precisa ser aberto pelo coração. A formação da sensibilidade é, portanto, a necessidade mais premente da época, não apenas porque ela vem a ser um meio de tornar o conhecimento melhorado eficaz para a vida, mas também porque desperta para a própria melhora do conhecimento. (SCHILLER, 2002 p.47)
Em Schiller (2002), encontramos dois impulsos, no homem, que
representam suas relações com a arte e os conhecimentos: o primeiro
chamado de sensível e o segundo de impulso formal, um terceiro que poderia
ser chamado de fundamental e uniria os dois é um conceito impensável.
O impulso sensível refere-se à necessidade de modificação da
sensação que manifesta a existência física do homem, é o impulso “ao qual se
prende, por fim, toda a aparição da humanidade” e aquele que “desperta e
desdobra as disposições da humanidade” e, também, aquele que torna
impossível sua perfeição, é o impulso do imaginário, da emoção e da
mutabilidade. O impulso formal “quer que o real seja necessário e eterno, e
que o eterno e o necessário sejam reais”, ou seja, é mais racional quando
define algo o toma como fixo, o primeiro impulso é mais sentimento e mutável.
67
“(...) São esses dois impulsos que esgotam o conceito de humanidade”
(SHILLER, 2002 p.63-65).
A arte e a sensibilização apresentam-se como possibilidade de
libertação do homem. Tomando como exemplo Boal (2008) e as experiências
do Teatro do Oprimido, ou Neitzel (2006) com a fruição da leitura, em Schiller
(2002 p.21-22) “a arte é filha da liberdade e quer ser legislada pela
necessidade do espírito, não pela privação da matéria” e continua “é pela
beleza que se vai a liberdade”, aproximando essa afirmação de Schiller aos
pensamentos de Freire (1987, 1996) vê-se que a libertação só se dá, através
da tomada de consciência do lugar de oprimido que ocupamos, é necessário,
então, a sensibilidade e a racionalidade, ou o impulso sensível e o impulso
formal. Da soma dos dois, surge o impulso lúdico. (SCHILLER, 2002 p.70-81)
Cabe à cultura, os limites de cada um dos impulsos, sendo, então sua
incumbência cultivar a faculdade do sensível e a faculdade do racional, sem
transformá-los em pontos competitivos. Outro impulso que surge é o impulso
lúdico que tem como objetivo a beleza, que não pode ser apenas vida, ou seja,
experiência e impulso sensível, mas, também, não pode ser apenas forma,
teoria, ou seja, impulso formal, a beleza é mais que apenas experiência e vida,
ela é o lúdico. (SCHILLER, 2002 p.70-81)
Schiller (2002) traz uma metáfora do aprisionamento que o homem
moderno (em seu tempo) encontra-se:
(...) eternamente acorrentado a um pequeno fragmento do todo, o homem só pode formar-se enquanto fragmento; ouvindo eternamente o mesmo ruído monótono da roda que ele aciona, não desenvolve a harmonia de seu ser e, em lugar de imprimir a humanidade em sua natureza, torna-se mera reprodução de sua ocupação, de sua ciência. (SCHILLER, 2002 p.37)
O homem transforma-se, então, em oprimido por sua própria criação. A
partir da razão, ele deixa de lado a emoção e aliena-se, subordina-se, sem
humanidade, a um conhecimento que não lhe faz sentido. Como vimos em
Freire (1987, 1996), a ausência de beleza, na prática educativa, especialmente,
na prática docente, afasta a educação da humanização e a aproxima dos
mecanismos dominantes de opressão, segundo Schiller (2002 p.91) “A beleza
liga os estados opostos de sensação e pensamento, e ainda assim não há
meio-termo entre os dois. A certeza daquilo é dada pela experiência; a disto,
68
imediatamente pela razão”, ou seja, há o equilíbrio entre o que é razão e o que
é emoção, criando a beleza:
A beleza, portanto, é objeto para nós, porque a reflexão é condição sob a qual temos uma sensação dela, mas é, ao mesmo tempo, estado de nosso sujeito, pois o sentimento é a condição sob a qual temos uma representação dela. Ela é, portanto, forma, pois que a contemplamos, mas, é ao mesmo tempo, vida, pois que a sentimos. Numa palavra: é, simultaneamente, nosso estado e nossa ação (SCHILLER, 2002 p.127).
A educação estética, cujo objetivo é a humanização, pressupõe a
presença do belo que, para o autor:
Da ação recíproca de dois impulsos antagônicos e da combinação de dois princípios opostos vimos nascer o belo , cujo Ideal mais elevado deve ser procurado, pois, na ligação e no equilíbrio mais perfeito de realidade e forma. Este equilíbrio, contudo, permanece sempre apenas numa Idéia, que jamais pode ser plenamente alcançada pela realidade. Nesta restará sempre o predomínio de um elemento sobre o outro, e o mais alto que a experiência pode atingir é uma variação entre os dois princípios, em que ora domine a forma ora a realidade (SCHILLER, 2002 p. 83).
Esse aspecto do belo de Schiller (2002) alinha-se à ideia inefável da
ética e da estética, propostas por Valcárcel (2005), que considera a arte um
simulacro da estética e essa pressupõe, em si, uma ética. Pode-se intuir,
então, que a arte é simulacro do belo e que o impulso sensível, ao detectar a
arte como real, o torna realidade. Essa realidade, ao ser analisada pelo impulso
formal, torna-se fixa, ou seja, o contato com o belo na forma de arte torna o
sensível real.
O homem, quer individualmente, quer coletivamente, passa por três
estágios de desenvolvimento que são fixos, em sua ordem. Embora possam
ser abreviados, não podem ser pulados, são eles o estado físico , o estado
estético e o estado moral . No primeiro estado, o homem está próximo do seu
estado mais natural e selvagem, o mundo é “apenas destino e não objeto”, só
existe para ele o que é experimentado. Seu contato com o mundo sensível é
imediato e passivo e desconhece a sua própria dignidade humana, sua relação
com o mundo é de uno, “e justamente por ser o próprio homem apenas mundo,
não há ainda mundo para ele” (p.122). “Este estado de natureza crua não pode
ser verificado, tal como descrevemos aqui, em nenhum povo ou época
determinados” (p.125). O homem nunca esteve, com seu todo, nesse estado,
porém, há no homem mais erudito aspectos desse homem selvagem e,
69
também, no mais selvagem, formas eruditas de representação. (SCHILLER,
2002 p. 119-121; p.125)
É apenas, no estado estético, que o homem deixa de ser uno com o
mundo e passa a concebê-lo fora dele, e assim passa a contemplá-lo sendo “a
contemplação (reflexão) a primeira relação liberal do homem com o mundo que
o circunda”. É um momento de trégua e de iluminação, frente à escuridão do
homem, no seu estado natural anterior, essa natureza que o dominava, agora,
se torna objeto do homem. Há um contato e compreensão da beleza, como
estando presente no sensível e na forma. “Já que a disposição estética da
mente, como desenvolvi nas cartas anteriores, dá antes o nascimento à
liberdade, fica fácil ver que ela não pode resultar da liberdade e,
conseqüentemente, ter uma origem moral. Ela tem de ser um presente da
Natureza”. Dessa libertação, surge a consciência estética. É o entendimento
da aparência e das belas artes que o impulso lúdico desperta e traz o “impulso
mimético da criação que trata a aparência como algo autônomo” (SCHILLER,
2002 p. 125-132)
Para Schiller (2002 p.132): “A aparência é estética somente quando
sincera (renunciando expressamente a qualquer pretensão à realidade) e
quando autônoma (despojando-se do apoio a realidade)” e quando não atende
esse pressuposto “torna-se nada mais que um baixo instrumento para fins e
nada pode provar quanto a liberdade do espírito”. Os homens apresentam sua
incapacidade estética e sua falta de valor moral quando “apóiam a realidade na
aparência ou a aparência (estética) na realidade”. (SCHILLER, 2002, p. 132-
133)
Os pensamentos de Schiller contribuem para compreendermos a
possibilidade formativa e de humanização. O belo representa o impulso lúdico,
por ser o equilíbrio entre os impulsos formadores da humanidade do individuo,
é instrumento de sociabilização, é apenas a beleza que pode dar ao homem
um “caráter sociável” e “somente o gosto permite harmonia na sociedade, pois
institui harmonia no individuo”. O impulso estético inicia na parte (o homem)
para o todo (a sociedade), o belo unifica o homem em seus impulsos. “O bem
sensível faz feliz a um, já que está fundado numa apropriação que implica
exclusão (...). Só a beleza faz feliz a todo mundo.” (SCHILLER, 2002 p. 139-
140)
70
3 A FORMAÇÃO DO TECNÓLOGO: O DESENVOLVIMENTO HUMANO
PARA A VIDA PRODUTIVA
A legislação brasileira define os direcionamentos que os cursos
superiores de tecnologia devem possuir. A analise hermenêutica dos discursos
permite destacarmos a reincidência de palavras e a sua relação com a
realidade. O uso das palavras e a despersonificação dos sistemas sociais
dificulta a visualização das possibilidades de humanização dos sujeitos.
3.1 Uma reflexão sobre as Diretrizes Nacionais dos Cursos de Tecnologia
Na perspectiva educacional brasileira, o ensino superior tem se
organizado, nos últimos anos, para atender às demandas sociais, sobretudo,
aquelas relacionadas ao trabalho e ao emprego. Assim uma das estratégias é a
criação de cursos do ensino superior de nível tecnólogo.
Buscar compreender a própria prática profissional do
sujeito/pesquisador, enquanto docente e coordenador do ensino superior de
nível tecnológico, tendo como objeto de estudo o que é instrumento legal,
definido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais de Nível Tecnológico, a
Resolução CNE/CP 3/2002 objetiva a compreensão do sentido da educação
estética e da formação humana do profissional, oriundo da graduação
tecnológica. Essa compreensão se dará, com base nos estudos de
hermenêutica, tendo como referencial teórico Gadamer visando contemplar a
problemática do trabalho.
Os documentos escolhidos para essa pesquisa são a Resolução
CNE/CP 3/2002 e o Parecer CNE/CP 29/2002, que a originou. Quando
necessário, buscaram-se outras fontes que auxiliaram no entendimento dos
documentos ou os complementaram como, por exemplo, a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional – LDB, o Decreto Federal 2.208/97 e a Lei
Federal 10.172/01.
Os cursos de graduação superior, em tecnologia, que certificam seus
egressos como tecnólogos têm se apresentado como uma modalidade de
ensino superior, com grande procura. Muitas instituições de ensino os
oferecem, como uma alternativa de formação mais rápida do que os
71
bacharelados e as licenciaturas, para o ingresso no mercado de trabalho.
Embora tenha surgido mais fortemente na última década, sobretudo, na rede
privada de ensino, os cursos de Tecnologia são oferecidos na cidade de São
Paulo, tradicionalmente, pelo Centro Paula Souza, uma autarquia de
abrangência estadual, criada em 1969, que tem como objetivo “articular,
realizar e desenvolver a educação tecnológica nos graus de ensino Médio e
Superior”. Os cursos superiores são oferecidos através das Faculdades de
Tecnologia (FATECs).
A relação direta com o mercado de trabalho e a capacitação para o uso
de tecnologias é o argumento para que o ensino superior tecnológico ganhe
traços de educação profissional. De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional - LDB (Lei Federal 9394/96) - é aquela que conforme o
Art.39º, “integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à
tecnologia, conduz ao permanente desenvolvimento de aptidões para a vida
produtiva”. Para a LDB essa forma de educação está presente nos diferentes
níveis de ensino, fundamental, médio e superior e também na educação livre.
Para a posterior análise hermenêutica da Resolução CNE/CP 3/2002,
faz-se necessária a apresentação do Parecer CNE/CP 29/2002, que a originou.
Neste parecer, ao iniciar um item sobre o “Histórico da Educação Tecnológica
no Brasil” diz, referendando-se a outro parecer CNE/CEB 16/99, “que a
educação para o trabalho não tem sido tradicionalmente colocada na pauta da
sociedade brasileira como universal”, e ainda continua:
(...) a educação profissional, em todos os seus níveis e modalidades, tem assumido um caráter de ordem moralista, para combater a vadiagem, ou assistencialista, para propiciar alternativas de sobrevivência aos menos favorecidos pela sorte, ou economicista, sempre reservada às classes menos favorecidas da sociedade (...) (BRASIL, 2002a).
A seguir, ainda no mesmo item e também se referenciando ao parecer
CNE/CEB 16/99, afirma-se que todos os cursos do ensino superior têm como
objetivo, também, uma formação profissional. Exemplifica-se com os cursos de
Direito, Medicina e Engenharia e destaca-se que, a rigor, “após o ensino médio
tudo é Educação Profissional”. Continua levantando as impressões de que a
sociedade tem atribuído aos cursos de formação profissional a missão de
apenas preparar mão-de-obra técnica.
72
Com a intenção de combater a ideia da formação profissional e do
ensino superior tecnológico, como uma expansão do ensino médio de nível
técnico, o Parecer CNE/CP 29/2002, que originou a Resolução CNE/CP
3/2002, apresenta-se com:
A tarefa, agora, com este conjunto de Diretrizes Curriculares Nacionais, é a de romper de vez com esse enraizado preconceito, nesta primeira década do século vinte e um, oferecendo uma educação profissional de nível superior que não seja apenas uma educação técnica de nível mais elevado, simplesmente pós-secundária ou seqüencial. O grande desafio é o da oferta de uma educação profissional de nível superior fundamentada no desenvolvimento do conhecimento tecnológico em sintonia com a realidade do mundo do trabalho, pela oferta de programas que efetivamente articulem as várias dimensões de educação, trabalho, ciência e tecnologia (BRASIL, 2002a p.341).
Percebe-se ai, a sinalização para uma educação que não forme apenas
um egresso executor de atividades e, sim, aquela que articule conhecimentos,
em vários aspectos. Tais conhecimentos visam à criação e à autoria. Esta
concepção alinha-se, hipoteticamente, ao pensamento de Freire, onde a
educação tem, como propósito, não apenas a transmissão de conhecimentos
prontos e acabados ao sujeito e, sim, a sua articulação e a possibilidade da
criação de um contexto para a criação e modificação de conhecimentos,
possibilitando autonomia. No sentido de esclarecer a educação tecnológica
como não apenas a criadora ou reprodutora de técnicas, o parecer apresenta a
Educação Tecnológica como:
(...) em sentido amplo como requisito de formação básica de todo cidadão que precisa de instrumental mínimo para sobrevivência na sociedade da informação, do conhecimento e das inúmeras tecnologias cada vez mais sofisticadas. Educação tecnológica, em sentido menos amplo, correspondente aos processos formais e informais de formação técnico profissional nos níveis básico, técnico, Tecnológico e superior em geral. Nesta acepção, a educação tecnológica pode ser considerada correspondente à educação profissional nos termos da atual legislação. Nesse ponto, cabe lembrar que os termos “técnica” e “tecnologia” estão presentes em todos os níveis da educação profissional” (BRASIL, 2002a p.360) (grifos nosso).
Tal afirmação já sinaliza a importância de considerar a educação
tecnológica como essencial para a sobrevivência na sociedade do
conhecimento, porém, sem transformá-la no único espaço para o estudo da
técnica e da tecnologia. No entanto, não se vê, nesse fragmento, a
73
preocupação com o estudo do conhecimento científico, que embasa o
desenvolvimento tecnológico.
O aprendizado de tecnologias não se dá apenas, no ambiente escolar,
ocorre também, na própria prática profissional do sujeito. Sobre isso, o Parecer
apresenta que o processo de aprendizagem da tecnologia e, consequente
educação profissional, está relacionado, tanto com as características da
tecnologia, quanto com o momento histórico de desenvolvimento de
determinada tecnologia. Exemplifica com os métodos de produção medieval,
que eram passados apenas aos aprendizes, limitando o contato com tal
informação e aumentando o tempo de formação desse profissional. Já, após a
Revolução Industrial, tem-se um aumento da força de produção, quando se
prepara mais mão-de-obra para o trabalho, “A produção sempre trazia consigo
a necessidade de formação profissional em massa”. Outro exemplo
apresentado é o investimento alemão em escolas técnicas, no início do século
XIX. Há, ainda, o investimento e criação, no Brasil, do Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (SENAI) para o setor industrial, e o Serviço Nacional
de Aprendizagem Comercial (SENAC) para o setor de comércio e serviços,
posteriormente criou-se o SENAR (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural) e
o SENAT para o setor de transportes. (BRASIL, 2002a p.360)
Para a contextualização do surgimento das idéias apresentadas, na
forma das Diretrizes Curriculares Nacionais do Nível Tecnólogo, o Parecer
apresenta o panorama histórico da educação profissional, a partir da primeira
LDB, a Lei Federal nº. 4.024/61, destacando seu Artigo 104. Apresenta
também os Artigos 18 e 23 da Lei Federal Nº. 5.540/68, sobre a reforma do
ensino universitário, que já previa, em seus textos, a possibilidade de
implantação de faculdades e cursos de tecnologia. (BRASIL, 2002a).
O parecer dá ainda especial destaque ao processo histórico de criação
do curso de Engenharia de Operação aprovado pelo Parecer CFE nº. 60/63,
que surge como um marco, na criação de cursos de formação mais rápida,
para atender à demanda do mercado de trabalho. Com duração menor que o
curso tradicional de engenharia, surgiu para atender a demanda da crescente
indústria automobilística, no país, por um profissional “mais especializado em
uma faixa menor de atividades, capaz de encaminhar soluções para os
problemas práticos do dia a dia da produção, assumindo cargos de chefia e
74
orientando na manutenção e na superintendência de operações” (BRASILL
2002a p.342).
Embora bastante representativo para a história e desenvolvimento da
educação profissional de nível superior, pode-se afirmar:
História desses cursos de engenharia de operação, caracterizados muito mais como cursos técnicos de nível superior e que ofereciam uma habilitação profissional intermediária entre o técnico de nível médio e o engenheiro, foi relativamente curta, durando pouco mais de dez anos” (BRASIL, 2002a p.342).
O insucesso desse curso está relacionado com a resistência dos
engenheiros plenos à outorga do título de engenheiro a esses egressos do
curso, com menor duração. A justificativa é a alegação das dificuldades que o
mercado encontraria para diferenciá-los. Esse fato, aliado a outros, fez com
que muitos, que haviam se graduado no curso de menor duração, buscassem a
capacitação para a obtenção da certificação plena na área. Isto denota o
primeiro fracasso desse tipo de formação, mais voltado para a tecnologia e
para o mercado de trabalho. Ainda hoje, para muitos, os cursos tecnólogos são
encarados como uma compactação dos cursos de bacharelado, não sendo
essa a idéia apresentada, como proposta, pelas Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Profissional de Nível Tecnológico, onde a
preocupação é mais relacionada ao perfil profissional do curso do que,
propriamente dito, ao tempo de duração.
O termo tecnólogo passa a aparecer de forma muito semelhante à, hoje,
conhecida, na década de 1970, com o Parecer CEE/SP nº. 50/70, que
apresenta:
(...) o tecnólogo virá preencher a lacuna geralmente existente entre o engenheiro e a mão de obra especializada (...) deverá saber resolver problemas específicos e de aplicação imediata ligados à vida industrial (...) vem a ser uma espécie de ligação do engenheiro e do cientista com o trabalhador especializado (...) e está muito mais interessado na aplicação prática da teoria e princípios, do que no desenvolvimento dos mesmos (...)” (Parecer CEE/SP 50/70 apud BRASIL, 2002a p.345).
No Parecer CFE 1.060/73, sobre os cursos oferecidos pela Faculdade
de Tecnologia de São Paulo, onde, novamente, aparece o termo tecnólogo, tais
75
cursos devem ser chamados de “cursos superiores de tecnologia”. Os
diplomados, nestes cursos, serão chamados de “tecnólogos””. Tal questão
reaparece, no Parecer CFE nº12/80, sobre a nomenclatura dos cursos
superiores de tecnologia, nas áreas da engenharia, das ciências agrárias e das
ciências da saúde, onde constava a mesma sugestão.
Na década de 1990, o termo tecnólogo passa a constar na CBO
(Classificação Brasileira de Ocupações) com a descrição de “estudar, planejar,
projetar, especificar e executar projetos específicos da área de atuação”,
Posteriormente, em 2002, no CBO, sua definição aparece de outra forma, com
atribuições tais como: “planejar serviços e implementar atividades, administrar
e gerenciar recursos, promover mudanças tecnológicas, aprimorar condições
de segurança, qualidade, saúde e meio ambiente, tal nomenclatura está
presente, também no Parecer CNE/CES 436/01 (BRASIL, 2002a pp.349-351).
Tendo em vista que, hoje, diferente da década de 1970, quando foi
elaborado o Parecer CEE/SP nº. 50/70, a economia, nos grandes centros
urbanos, não é mais baseada na atividade industrial e, sim, na prestação de
serviços, pretende-se com os cursos tecnólogos fazer a ponte entre as diversas
áreas do conhecimento científico e a aplicação nas organizações empresariais.
Tem-se, então, que a idéia de solução rápida, relacionada ao curso
tecnólogo não é especificidade desse início de século vinte um, o Parecer
CNE/CP 29/2002 apresenta que, nos Plano Setorial de Educação e Cultura dos
períodos 1972/1974 e 1975/1979, houve especial atenção aos cursos
tecnólogos, no primeiro, através do Projeto Setorial 19:
Previa incentivo especial para os cursos de nível superior de curta duração, no contexto e no espírito da reforma universitária” com o objetivo na prática de “responder aos anseios de parcela significativa da juventude brasileira na busca de ajustar-se às novas exigências decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico do país no decorrer do século vinte tanto com a formação de profissionais técnicos de nível médio (então segundo grau), quanto com a formação de tecnólogos, em cursos superiores de menor duração e carga horária mais reduzida (BRASIL, 2002a p.346).
No plano seguinte, para o período de 1975/1979, houve, também,
dedicação do Ministério da Educação e Cultura - MEC8, com a temática dos
cursos de menor duração ou tecnólogos, explicitado no Projeto Setorial 15.
8 Hoje apenas Ministério da Educação, porém a sigla MEC continua sendo utilizada.
76
Este projeto incentivava não, apenas, a criação de novos cursos superiores de
tecnologia, mas, sim a melhoria da qualidade dos cursos superiores oferecidos,
através da busca de uma melhor relação com o mundo empresarial e maior
afinidade com as reais necessidades do mercado de trabalho. Os cursos
criados teriam sua demanda de egressos absorvida pelos postos de trabalhos
disponíveis (BRASIL, 2002a p.348).
Com o não cumprimento das recomendações do Projeto 15, em 1977, o
Conselho Federal de Educação, através da Resolução CFE 17/77, passou a
exigir, para a criação de novos cursos, a justificativa de existência de mercado
de trabalho por esses profissionais e um perfil profissiográfico, alinhado com as
exigências do mercado, assim como corpo docente tecnicamente capacitado
para tal finalidade (BRASIL, 2002a p.348).
Em 1979, os próprios estudantes das Faculdades de Tecnologia de São
Paulo e da cidade de Sorocaba reivindicaram a transformação dos cursos
superiores de tecnologia em cursos de Engenharia Industrial, tendo como
principal motivo a dificuldade de inserção no mercado de trabalho (BRASIL,
2002a p.349-350).
Tal questão mostra-se bastante pertinente, sobretudo, quando temos tal
situação, em um curso pensado, justamente, para preencher lacunas do
próprio mercado de trabalho. Isto confirma a importância da existência de
resoluções, como a CFE nº17/77, que exigia a real necessidade do mercado
por profissionais para a criação dos cursos e o Projeto Setorial 15 que
incentivava uma maior aproximação entre as instituições de ensino e o mundo
empresarial.
No subitem “A Educação Tecnológica na Legislação Atual”, o documento
apresenta seu embasamento, tendo como suporte a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, Lei Federal 9394/96. Também, no Decreto Federal
2.208/97, que “regulamenta o §2º do art. 36 e os artigos 39 a 42 da Lei 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional“, esse decreto, no seu Artigo 3º, divide a educação profissional em
três níveis:
I – básico - destinado à qualificação e reprofissionalização de trabalhadores, independente de escolaridade prévia; II – técnico - destinado a proporcionar habilitação profissional a alunos matriculados e egressos do ensino médio, devendo ser ministrado na forma estabelecida por este decreto;
77
III – tecnológico - correspondente a cursos de nível superior na área tecnológica, destinados a egressos do ensino médio e técnico (BRASIL, 1997).
O Plano Nacional de Educação aprovado pela Lei Federal 10.172/01 e
com vigência de 10 anos dedica um item à Educação Tecnológica e à
Formação Profissional:
Prevê-se que a educação profissional, sob o ponto de vista operacional, seja estruturada nos níveis básico – independente do nível de escolarização do aluno, técnico - complementar ao ensino médio e tecnológico - superior de graduação ou de pós-graduação (BRASIL, 2001).
O Parecer CNE/CP 29/2002 destaca cinco metas para a educação
profissional, ao consultarmos a Lei, verificamos que foram destacadas aquelas
que melhor se relacionavam com o ensino superior, por ser esse o objeto do
referido parecer.
O Parecer destaca as incongruências entre diferentes decretos que
tratam da educação profissional de curta duração, ou então a Educação
Tecnológica e preocupa-se com os rumos que essas contradições podem
tomar, porém, apresenta como caminho para a sua superação o Artigo 4º do
Decreto Federal 1.406/97, que define os objetivos dos Centros de Educação
Tecnológica (BRASIL, 2002a p.355).
Sobre a questão do enquadramento da formação, em tecnologia, no
ensino superior, o Conselho Nacional de Educação – CNE é bastante claro ao
expor: “A formação do tecnólogo requer desenvolvimento de competências
mais complexas que as do nível técnico, requer maior nível de conhecimento
tecnológico” (BRASIL, 2002a p.360) e, ao comparar os objetivos da educação
tecnológica presentes, no Decreto Federal 2.208/97 - “atender aos diversos
setores da economia, abrangendo áreas especializadas” - e o Inciso II do Artigo
43 da LDB para a Educação Superior: “formar diplomados nas diferentes áreas
de conhecimentos, aptos para inserção em setores profissionais e para
participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua
formação contínua”, realça a semelhança entre os objetivos. Assim, o CNE
define como objetivos dos Cursos de Graduação Tecnológica:
78
- desenvolver competências profissionais tecnológicas para a gestão de processos de produção de bens e serviços; - promover a capacidade de continuar aprendendo e de acompanhar as mudanças nas condições de trabalho, bem como propiciar o prosseguimento de estudos em cursos de pós-graduação; - cultivar o pensamento reflexivo, a autonomia intelectual, a capacidade empreendedora e a compreensão do processo tecnológico, em suas causas e efeitos, nas suas relações com o desenvolvimento do espírito científico; - incentivar a produção e a inovação científico-tecnológica , a criação artística e cultural e suas respectivas aplicações no mundo do trabalho; - adotar a flexibilidade, a interdisciplinaridade, a contextualização e a atualização permanente dos cursos e seus currículos; - garantir a identidade do perfil profissional de conclusão de curso e da respectiva organização curricular (BRASIL, 2002a p.357).
Em “Tecnologia, Educação Tecnológica e Formação do Tecnólogo”, há a
contextualização social e científica do próprio documento, argumentando que o
desenvolvimento tecnológico não é uma novidade recente, sendo possível
observá-lo na sociedade, desde os tempos mais antigos, com o surgimento dos
primeiros e rudimentares instrumentos em pedra lascada, sendo as
ferramentas seguintes, evoluções tecnológicas dessas técnicas anteriores. O
próprio parecer destaca a relação entre a tecnologia e a ciência, sendo a
evolução da ciência a genitora da tecnologia, porém, a segunda ganha maior
destaque na sociedade, sobretudo, por ser ela, a portadora das facilidades. O
Parecer atribui o status de recente às “aplicações sistemáticas intencionais da
tecnologia em si”, contribuindo esse uso para o atual cenário de
desenvolvimento econômico e social.
A sociedade atual convive com esse desenvolvimento que pode
melhorar sua qualidade de vida e também, gerar diversas outras aflições. No
cenário atual da contemporaneidade, há sempre a impressão de
desatualização diante do avanço tecnológico. A tecnologia gera benefícios,
mas ao mesmo tempo, gera exclusão e competição. O Parecer apresenta uma
citação de Rattner9, sobre a forma como a tecnologia, ao impactar nos meios
de produção, impacta no mercado. Porém, logo essa tecnologia “exclusiva” se
generaliza, criando a necessidade de novas tecnologias mais competitivas,
essas transformações impactam diretamente na forma como o trabalhador se
relacionará com o mercado de trabalho.
9 RATTNER, Henrique. Informática e Sociedade, São Paulo: Brasiliense, 1985, p.159
79
Sobre a função do poder público nesse contexto, o Parecer apresenta:
Além de atenuar e prevenir os efeitos danosos e perversos da tecnologia, garantindo e potencializando o seu lado positivo, os Poderes Públicos precisam adotar consistentemente políticas de desenvolvimento científico e tecnológico. Não significa acreditar em transferência e aproveitamento linear das descobertas científicas em inovações tecnológicas e, destas, para a produção de bens e serviços. Os estudos demonstram que essa cadeia não ocorre necessariamente nessa seqüência (BRASIL, 2002a p.359).
Assim, da necessidade de desenvolvimento científico e tecnológico
“assume papel especial a educação tecnológica”, entendendo educação
tecnológica, como requisito de formação básica para qualquer trabalhador e, de
forma menos ampla, como os processos formais e informais de formação
técnico-profissional.
O documento apresenta que “o dinamismo das novas tecnologias
demanda agilidade e flexibilidade em relação à mudança” exigindo do
trabalhador especializado “capacidade de aprender continuamente e de decidir
diante das situações imprevistas”, tal afirmação alinha-se com as afirmações
de Boutinet, já mencionadas neste trabalho.
Diferente de um cenário onde era fácil especificar as funções dos
trabalhadores mais e menos qualificados, na atualidade, essa definição torna-
se mais complexa, pois, há a sensação da necessidade de uma formação
tecnológica básica, segundo o Parecer:
Embora tenha pontos de atuação profissional situados nas fronteiras de atuação do técnico e do bacharel, o tecnólogo tem uma identidade própria e específica em cada área de atividade econômica e está sendo cada vez mais requerido pelo mercado de trabalho em permanente ebulição e evolução (BRASIL, 2002a p.362).
Sendo necessário, ao criar-se o curso de formação do tecnólogo, não
sobrepor as atribuições de cada modalidade de formação, para tanto, o
documento estabelece referenciais para a caracterização do tecnólogo:
a) Natureza: algumas áreas são essencialmente científicas como, por
exemplo, a matemática, já outras como a informática permeiam os
80
dois campos, sendo a primeira atribuída aos bacharelados e
licenciaturas.
b) Densidade: a formação do Tecnólogo tem um foco maior em
tecnologia, não excluindo os conhecimentos científicos, já o
Bacharelado foca mais os conhecimentos científicos e não exclui a
tecnologia “trata-se, de fato, de uma questão de densidade e foco do
currículo”.
c) Demanda: Ambas as formações devem atender as necessidades do
mercado de trabalho.
d) Tempo de formação: o tecnólogo pressupõe uma demanda mais
rápida para ser atendida, dessa forma pensa-se em uma formação
mais rápida que aquela do Bacharel.
e) Perfil: “o perfil profissional demandado e devidamente identificado
constitui a matéria primordial do projeto pedagógico de um curso,
indispensável para a caracterização do itinerário de
profissionalização, da habilitação, das qualificações iniciais ou
intermediárias do currículo e da duração e carga horária necessárias
para a sua formação.”
(BRASIL, 2002a p.362-363)
A relação entre a constante evolução tecnológica e conhecimento
científico e a grande velocidade, em que as transformações ocorrem exigem de
qualquer profissional flexibilidade. Ainda, exigem, do profissional tecnólogo, a
capacidade de contribuir para o desenvolvimento de novos conhecimentos e
novas tecnologias, “sendo esse profissional aquele capaz de fazer a ponte
entre o operário e o engenheiro”, nessa afirmação tem-se como engenheiro a
personificação dos bacharéis (BRASIL, 2002a p.362-363).
Dessa forma, “Os Cursos Superiores de Tecnologia surgem como uma
das principais respostas do setor educacional às necessidades e demandas da
sociedade brasileira”. Diferente do que se pensa, definir um currículo mínimo
não é o suficiente para a garantia da qualidade de formação do egresso. A
nova LDB “cria condições para quebrar as amarras que os burocratizavam,
flexibilizando-os e possibilitando a sua contínua adequação às tendências
contemporâneas de construção de itinerários de profissionalização e de
81
trajetórias formativas e de atualização permanente, em consonância com a
realidade laboral dos novos tempos” (BRASIL, 2002a p.365).
Para apresentar o item sobre “Princípios Norteadores e Objetivos da
Educação Profissional de Nível Tecnológico” o Parecer CNE/CP 29/2002 tem
como base pareceres do CNE sobre a organização do ensino superior no Brasil
e a LDB vigente.
Citando o Parecer CNE/CES 776/97 sobre o Ensino Superior, o Parecer
CNE/CP 29/2002 apresenta, sobre as novas diretrizes curriculares:
devem contemplar elementos de fundamentação essencial em cada área do conhecimento, campo do saber ou profissão, visando promover no estudante a capacidade de desenvolvimento intelectual e profissional autônomo e permanente, e também buscando reduzir a duração da formação no nível de graduação” (Parecer CNE/CES 776/97 apud BRASIL, 2002a p.365).
Continua:
O Parecer CNE/CES nº 776/97, procurou sinalizar a necessidade de se promover formas de aprendizagem que contribuam efetivamente para reduzir a evasão, bem como desenvolvam no aluno sua criatividade, análise crítica, atitudes e valores orientados para a cidadania, atentas às dimensões éticas e humanísticas. O assim chamado conteudismo é também apontado como característica superada pela proposta educacional em implantação, pela superação do enfoque em cursos reduzidos à condição de meros instrumentos de transmissão de conhecimento e informações. Doravante, devem orientar-se para oferecer uma sólida formação básica, preparando o futuro graduado para enfrentar os desafios decorrentes das rápidas transformações da sociedade, do mercado de trabalho e das condições de exercício profissional em situações cambiantes (BRASIL, 2002a p.366) (grifo nosso).
Os Pareceres apresentam a preocupação com a formação do
profissional que sairá do ensino superior, sobretudo, a atenção ao fato de estar
apto a habituar-se às transformações sociais, econômicas, científicas e
tecnológicas. Destacam-se, nessas situações, as palavras: autônomo,
dimensões éticas e humanísticas.
Os Pareceres deixam claros os problemas que um currículo engessado
pode causar para uma formação que se pretende alinhada com as evoluções
tecnológicas e seu impacto na sociedade. Assim se referencia, no Parecer
CNE/CES 146/02, que busca “superar essa situação de engessamento”,
possibilitando maior flexibilidade para as Instituições de Ensino estruturarem
82
seus currículos, permitindo à educação caminhos autônomos e um processo
contínuo de evolução. Dessa forma, estabelece como princípios norteadores da
Educação Profissional de Nível Tecnólogo aqueles “enunciados pelo Artigo 3°
da LDB, são eles” :
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância; V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; VII - valorização do profissional da educação escolar; VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; IX. garantia de padrão de qualidade; X.- valorização da experiência extra-escolar; XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.
(BRASIL, 1996)
Além dos princípios comuns à Educação Escolar, o Parecer define como
outros princípios para a Educação Superior de Nível Tecnológico:
A. Incentivar o desenvolvimento da capacidade empreendedora e da compreensão do processo tecnológico, em suas causas e efeitos; B. Incentivar a produção e a inovação científico-tecnológica, e suas respectivas aplicações no mundo do trabalho C. Desenvolver competências profissionais tecnológicas, gerais e específicas, para a gestão de processos e a produção de bens e serviços. D. Propiciar a compreensão e a avaliação dos impactos sociais, econômicos e ambientais resultantes da produção, gestão e incorporação de novas tecnologias. E. Promover a capacidade de continuar aprendendo e de acompanhar as mudanças nas condições do trabalho, bem como propiciar o prosseguimento de estudos em cursos de pós-graduação. F. Adotar a flexibilidade, a interdisciplinaridade, a contextualização e a atualização permanente dos cursos e seus currículos G. Garantir a identidade do Perfil Profissional de conclusão do curso e da respectiva organização curricular.”
(BRASIL, 2002a p.368-378)
A educação superior deve atingir seus objetivos de formação
profissional. Ela estará alinhada com a demanda do mercado, porém com
egressos capazes de se adaptarem às mudanças dos cenários sociais,
econômicos, científicos e tecnológicos. Os cursos superiores de tecnologia
podem ser organizados em módulos que, ao serem concluídos, proporcionam
83
ao aluno uma qualificação profissional. Esse fato proporciona “não apenas uma
maior flexibilidade, na elaboração dos mesmos (módulos), de modo que
estejam afinados com as demandas do setor produtivo, como contribui para
agilizar o atendimento das necessidades dos trabalhadores” (BRASIL, 2002a
p.381).
Sem a intenção de engessar o currículo dos cursos superiores de
tecnologia, mas com a idéia de melhor oferecer essa formação, há no Parecer
a proposta de passos para organização curricular dos cursos de Tecnologia:
1º passo: Concepção e elaboração do projeto pedagógico da escola, nos termos dos Artigos 12 e 13 da LDB; 2º passo: Definição do perfil profissional do curso, a partir da caracterização dos itinerários de profissionalização nas respectivas áreas profissionais; 3º passo: Clara definição das competências profissionais a serem desenvolvidas, à vista do perfil profissional de conclusão proposto, considerando, nos casos das profissões legalmente regulamentadas, as atribuições funcionais definidas em lei; 4º passo: Identificação dos conhecimentos, habilidades, atitudes e valores a serem trabalhados pelas escolas para o desenvolvimento das requeridas competências profissionais; 5º passo: Organização curricular, incluindo, quando requeridos, o estágio profissional supervisionado e eventual trabalho de conclusão de curso; 6º passo: Definição dos critérios e procedimentos de avaliação de competências e de avaliação de aprendizagem; 7º passo: Elaboração dos planos de curso e dos projetos pedagógicos de cursos, a serem submetidos à apreciação dos órgãos superiores competentes (BRASIL, 2002a).
Para uma melhor compreensão, apresentam-se os Artigos 12 e 13 da
LDB:
Art. 12º. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: I - elaborar e executar sua proposta pedagógica; II - administrar seu pessoal e seus recursos materiais e financeiros; III - assegurar o cumprimento dos dias letivos e horas-aula estabelecidas; IV - velar pelo cumprimento do plano de trabalho de cada docente; V - prover meios para a recuperação dos alunos de menor rendimento; VI - articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola; VII - informar os pais e responsáveis sobre a freqüência e o rendimento dos alunos, bem como sobre a execução de sua proposta pedagógica. Art. 13º. Os docentes incumbir-se-ão de:
84
I - participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; II - elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; III - zelar pela aprendizagem dos alunos; IV - estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; V - ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; VI - colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade.” (BRASIL, 1996)
Essas orientações contribuem para a estruturação dos cursos e servem
como alicerce para a construção dos projetos pedagógicos dos cursos. Não se
exclui, no Parecer, objeto de estudo da pesquisa, as orientações sobre
elaboração de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Superior,
Parecer CNE/CES 776/97. Entre as orientações, o Parecer CNE/CP 29/2002
destaca aquelas que dizem respeito ao não prolongamento desnecessário dos
cursos, ao incentivo de uma formação sólida, liberdade na composição dos
currículos, reconhecimento das competências adquiridas fora do ambiente
escolar, estimular a prática de estudos independentes pelos alunos, fortalecer a
articulação entre teoria e prática.
Nas últimas páginas do Parecer, o CNE destaca que não há
necessidade de especificar diretrizes curriculares específicas para cada
curso/área de formação, tendo em vista que essas se basearão nas
transformações do mercado para atenderem ao perfil profissional que pretende
formar. Estabelecem-se as “Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a
Organização e o Funcionamento dos Cursos Superiores de Tecnologia”.
Quanto aos cursos e as vagas, o Parecer deixa a cargo das necessidades do
mercado e da sociedade e, também, da capacidade da própria instituição de
ensino em viabilizar tal formação.
Quanto à duração dos cursos, estabelece que isto dependerá de:
a) do perfil profissional de conclusão que se pretende; b) da metodologia utilizada pelo estabelecimento de ensino; c) de competências profissionais já constituídas em outros cursos superiores de graduação ou de pós-graduação; d) de competências profissionais já desenvolvidas no próprio mercado de trabalho mediante avaliação da escola; e) de competências adquiridas por outras formas, como em cursos técnicos, em cursos seqüenciais por campos do saber, de diferentes
85
níveis de abrangência, e mesmo no trabalho, que devem ser criteriosamente avaliadas pela escola.
(BRASIL, 2002a p. 385)
A elaboração de trabalho de conclusão de curso e a capacitação do
corpo docente é a mesma prevista pela LDB, respeitando, para o docente em
nível tecnólogo, a experiência profissional como tão importante quanto à
titulação acadêmica.
A organização das áreas de concentração dos cursos e sua
caracterização são estabelecidas por Parecer do CNE, de acordo com o
Cadastro Brasileiro de Ocupações e pelo Catálogo Nacional de Cursos
Superiores de Tecnologia, elaborados pelo MEC. O objetivo é “referenciar
estudantes, educadores, instituições ofertantes, sistemas e redes de ensino,
entidades representativas de classes, empregadores e o público em geral.” Tal
documento está alinhado com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Profissional de Nível Tecnólogo (Resolução CNE/CP 3/2002) e “em
sintonia com a dinâmica do setor produtivo e os requerimentos da sociedade
atual”, são as áreas expressas nesse documento: “Ambiente e Saúde”, “Apoio
Escolar”, “Controle e Processos Industriais”, “Gestão e Negócios”,
“Hospitalidade e Lazer”, “Informação e Comunicação”, “Infraestrutura”, “Militar”,
“Produção Alimentícia”, “Produção Cultural e Design”, “Produção Industrial”,
“Recursos Naturais”, “Segurança”. Essa divisão:
(...) não esgota todas as possibilidades de oferta destas graduações tecnológicas no país, admitindo-se, conforme estabelece o Decreto 5.773/06, em seu art. 44, cursos experimentais em oferta legal e regular, porém com outras denominações, as quais poderão futuramente – com base em análises contextuais – passar a integrar este instrumento (BRASIL, 2010).
As ideias, apresentadas por Boutinet, de que a sociedade atual exige do
sujeito adulto uma formação continuada, como uma possível forma de aquietar
a sua aflição de ser perecível às necessidades da empresa, aliadas às ideias
propostas por Hall, como uma identidade descêntrica do sujeito
contemporâneo, a liquidez da contemporaneidade, proposta por Bauman,
apresentam o cenário do momento em que vivemos na sociedade.
Anexo ao Parecer analisado, nesse item, está a proposta de Resolução
que estabelece “Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Organização e
86
o Funcionamento dos Cursos Superiores de Tecnologia”, aceita e que originou
a Resolução CNE/CP 3/2002.
3.2 A mobilidade social e a fluidez: a pertinência da formação estética do
tecnólogo
Pensar a formação humana do profissional tecnólogo, em uma
perspectiva estética se faz pertinente, ao nos referendarmos em Schiller, pela
forma como o belo e a beleza sensibilizam e contribuem para a socialização do
homem. Este pensamento cabe também, na perspectiva freiriana de libertação
e de opressão. O contexto atual de mobilidade social e fluidez se apresenta
como espaço perfeito para pensar a estética da formação de profissionais que
têm a busca pelo ensino superior como um projeto pessoal de
desenvolvimento.
A Resolução CNE/CP 3/2002 – que será chamada apenas de Resolução
- institui Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais, para a organização e o
funcionamento dos cursos superiores de tecnologia.
A Resolução apresenta em seu Artigo 1°:
Art. 1º A educação profissional de nível tecnológico, integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à tecnologia, objetiva garantir aos cidadãos o direito à aquisição de competências profissionais que os tornem aptos para a inserção em setores profissionais nos quais haja utilização de tecnologias (BRASIL 2002b).
Destaca-se, aqui, a preocupação da Resolução em focar tal nível de
ensino e suas relações com Trabalho , o conhecimento e domínio das
Tecnologias e a relação desses dois aspectos com a Ciência . Tais aspectos
apresentam-se na forma das seguintes expressões: Processo Tecnológico (Art.
2°); Mundo do Trabalho (Art. 2°, Art. 5°); Identida de Profissional (Art. 2°);
Inovações científico-tecnológicas (Art. 2°); Condiç ões de Trabalho (Art.2°);
Mercado de Trabalho (Art. 3°); Perfil Profissional (Art. 3°, Art.6°, Art. 9 §1, ARt.
10); Competências Profissionais (Art. 1°; Art. 2°, Art. 4° §1, Art. 5° §2, Art. 6°,
Art. 7°, Art. 8°, Art. 9°); Qualificações Profissio nais (Art. 5° §1); Fundamentos
Científicos e Humanísticos (Art. 6° §1).
87
Elegeu-se a expressão, Competências Profissionais, como objeto de
reflexão, entre as expressões selecionadas.
Art. 7º Entende-se por competência profissional a capacidade pessoal de mobilizar, articular e colocar em ação conhecimentos, habilidades, atitudes e valores necessários para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho e pelo desenvolvimento tecnológico (BRASIL 2002b).
Nessa afirmativa temos – como em quase todo o parecer – o foco no
trabalho, sinalizando que essa formação abrange apenas esse pedaço da vida
do sujeito, como se formar-se para o trabalho não tivesse relação com o
formar-se para a vida, dividindo o que é momento de formação profissional do
momento para a formação do ser. Schiller (2002) sobre a fragmentação do
homem afirma:
Embora saibamos que o gênio poderoso não faz dos limites de sua profissão os limites de sua atividade, é certo que o talento mediano consome no ofício que lhe tenham atribuído toda a parca soma de suas forças, e é preciso ser já uma cabeça incomum para conservar suas predileções sem prejuízo de sua profissão. (SCHILLER, 2002 p.37-38).
A outra citação de Schiller, já apresentada nesse trabalho, explicita o
risco que o homem corre, ao submeter-se, apenas, a esse aspecto profissional
de sua vida:
(...) eternamente acorrentado a um pequeno fragmento do todo, o homem só pode formar-se enquanto fragmento; ouvindo eternamente o mesmo ruído monótono da roda que ele aciona, não desenvolve a harmonia de seu ser e, em lugar de imprimir a humanidade em sua natureza, torna-se mera reprodução de sua ocupação, de sua ciência (SCHILLER, 2002 p.37).
A formação fragmentada do homem leva-o ao aprisionamento, a um
fazer sem sentido, contudo essa fragmentação não se apresenta, unicamente,
como uma mazela, ela possibilitou, ao longo da história, o desenvolvimento de
conhecimento e evoluções. Cabe ao homem se reintegrar, em uma totalidade,
para se re-humanizar (SCHILLER, 2002 p.41).
O espaço da educação deve apresentar-se como esse espaço de re-
humanização e não como um espaço desumanizador. Além das competências
88
profissionais, a educação é espaço para a criação de competências para a
vida. É, ainda, espaço, para a compreensão dos papéis de opressores e
oprimidos que representamos. Caso contrário, a educação afirma-se, como
indicado por Freire (1987, 1996), em instrumento de opressão.
As demais expressões selecionadas estão dispostas, no texto, sem
definição tangível dos conceitos que englobam. Torna-se necessário conhecer
o contexto em que são apresentadas para, possivelmente, compreender o
sentido que possuem e a relação com a formação humana e sua dimensão
estética.
Perfil Profissional , no Art. 6°, possibilita essa compreensão:
Art. 6º A organização curricular dos cursos superiores de tecnologia deverá contemplar o desenvolvimento de competências profissionais e será formulada em consonância com o perfil profissional de conclusão do curso, o qual define a identidade do mesmo e caracteriza o compromisso ético da instituição com os seus alunos e a sociedade (grifo nosso) (BRASIL, 2002b p.2).
O perfil profissional é apresentado como a identidade que o sujeito
obterá, na conclusão do curso. Essa identidade será formada, a partir das
competências profissionais desenvolvidas, ao longo dos estudos. No item VII
do Artigo 2°, há o objetivo dos cursos: “VII - gara ntir a identidade do perfil
profissional de conclusão de curso e da respectiva organização curricular”
(BRASIL, 2002b p.1).
A identidade dos pensamentos de Bauman (1998 e 2005) e o papel que
a formação continuada tem, para o adulto aflito, apresentado por Boutinet (s/d)
aproximam-se do ensino tecnológico. É possível que estes pensamentos se
tornem uma saída, para a obtenção de uma identidade que não diz respeito ao
aluno, uma falsa identidade, que ele acreditará ser a dele. É sabido que os
profissionais devem possuir conhecimentos condizentes com a área em que
atuarão. Esse fato é pressuposto ético para a execução de qualquer atividade
profissional, assim, espera-se que o uso da palavra identidade seja no sentido
de conjunto de saberes e não, no sentido de “consciência de si”.
No Art. 5°, há o uso da expressão Qualificações Profissionais como a
aptidão para executar algo, tais qualificações tornam-se presentes no
Certificado de Qualificação Profissional de Nível Tecnológico, entende-se que o
89
sentido da qualificação é de apresentar o que esse profissional saberá fazer
para “agradar” ao mercado de trabalho.
É no Artigo 2°, sobre os objetivos dos cursos tecnó logos que existe o
primeiro uso da expressão Mundo do Trabalho no sentido de: “II - incentivar a
produção e a inovação científico-tecnológica, e suas respectivas aplicações no
mundo do trabalho ;” (BRASIL, 2002b p.1). No Artigo 5°, há também:
“Art. 5º Os cursos superiores de tecnologia poderão ser organizados por
módulos que correspondam a qualificações profissionais identificáveis no
mundo do trabalho .” (BRASIL, 2002b p.2)
Observando o contexto no qual surgem outras duas expressões:
Condições de Trabalho que aparece no Art. 2°. Item V - promover a
capacidade de continuar aprendendo e de acompanhar as mudanças nas
condições de trabalho , bem como propiciar o prosseguimento de estudos em
cursos de pós-graduação; (BRASIL, 2002b p.1).
Mercado de Trabalho que surge no Art. 3 item I - o atendimento às
demandas dos cidadãos, do mercado de trabalho e da sociedade. (BRASIL,
2002b p.2)
O mercado, o mundo e as condições de trabalho são dados em
contextos históricos iguais: um está entrelaçado ao outro. Se na atualidade o
profissional tem a sensação de estar constantemente em situação de
fragilidade (BOUTINET s/d), ele é oprimido pela forma como se relaciona com
o conhecimento, com os outros e com a libertação (FREIRE 1987, 1996). Ele
reflete e é reflexo, simultaneamente, da sociedade e do mercado de trabalho.
O mercado de trabalho é decorrente da sociedade que subordina o impulso
formal ao impulso sensível. Como vimos em Schiller (2002), o impulso sensível
é mutabilidade e o formal é a tentativa de tornar real o imutável, é esse
desequilíbrio entre os dois impulsos que impede a estética na forma do impulso
lúdico.
Pensar que o mercado, o mundo, as condições são sempre e apenas
mudança, não havendo nada fixo e que, para isso, é preciso estar, sempre,
confinado ao movimento de mudança, exclui desse processo educativo a sua
beleza de estabelecer algo sólido no sujeito. A partir dessa solidez, talvez, ele
possa, autonomamente, criar mudanças. Essas expressões Mercado, Mundo,
Condições são concentrações de sujeitos que co-habitam um mesmo tempo
90
social, se o encararmos apenas como sistema, como coisa e não como
humanos, fica impossível pensar em humanizá-los, a natureza possui beleza,
transformações (mutabilidade), fixações (imutabilidade), mas, não é humana.
Para ser humano é necessário possuir a tomada de consciência da
possibilidade de aprender o sensível, de ser sensível e de viver o sensível,
também, de forma racional.
Há, na Resolução, a preocupação com o entendimento do mundo pelo
sujeito, sendo esse, pressuposto para a humanização, como vemos no item I
do Art. 2°: “I - incentivar o desenvolvimento da ca pacidade empreendedora e
da compreensão do processo tecnológico, em suas causas e efeitos.” E,
também, no §1 do Art. 6°:
§ 1º A organização curricular compreenderá as competências profissionais tecnológicas, gerais e específicas, incluindo os fundamentos científicos e humanísticos necessários ao desempenho profissional do graduado em tecnologia. (BRASIL, 2002b p.2).
A “compreensão do processo tecnológico, em suas causas e efeitos” é
essencial para que o sujeito, egresso da educação tecnológica, não se torne
escravo da tecnologia e a exalte acima de tudo. Ele pode transformá-la em
mecanismo de alienação e opressão. Espera-se que o sujeito, ao possuir o
conhecimento da tecnologia e de seus impactos, tenha capacidade de usá-la
de forma benéfica, não utilizando o seu saber, como vantagem em relação aos
outros e, assim, transformar-se em opressor.
No Art. 2° item IV, há uma complementação da preo cupação com o
coletivo, que o conhecimento das tecnologias propicia: “IV - propiciar a
compreensão e a avaliação dos impactos sociais, econômicos e ambientais
resultantes da produção, gestão e incorporação de novas tecnologias”
(BRASIL, 2002b p.1). Essa compreensão dos impactos da tecnologia da
sociedade demonstra uma preocupação ética com o bem estar coletivo, com o
todo em que se está inserido.
Espera-se que “os conhecimentos científicos e humanísticos”, embora
apreendidos utilitariamente, para o uso no trabalho, sejam absorvidos e
replicados, também, em suas práticas sociais. Ser humano é uma forma de
formar-se que vai além do escolher um lugar para utilizar.
91
Encontrar o sentido da educação estética na formação humana do
profissional tecnólogo não é tarefa fácil. O processo educativo é sempre
espaço para humanização, sobretudo se ponderarmos o papel representado
pelo professor.
3.3 O mundo contemporâneo: a essencialidade da libe rdade na
construção da autonomia do sujeito
O próprio carvalho afirmava : só este crescer pode fundar o que dura e frutifica. Crescer significa abrir-se à amplidão dos céus . Mas também deitar raízes na escuridão da terra. Tudo o que é maduro, só chega à maturidade, se o homem for, ao mesmo tempo, ambas as coisas: disponível para o apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra, que tudo sustenta. É o que o carvalho diz sempre ao caminho do campo, que lhe passa ao lado seguro de sua via.” ( O “Caminho do Campo”, 1948, Martin Heidegger).
No mundo em constantes mudanças, vê-se que a identidade do ser
humano oscila entre ser diet, soft, light, moderno, descolado adjetivos que o
levam ao esquecimento de Ser Humano.
A reflexão sobre a identidade do ser humano fabricada, pela mídia, por
teorias, não é suficiente para aquilo que permanece no humano, a condição de
sua liberdade para criar. Quando excluído dessa condição ele cria para o bem
ou para o mal.
Dussel (2000), ao compreender o sistema de materialidade da vida,
para construir seu conceito de ética da libertação, apresenta a categoria da
vitima. Leva-nos à reflexão de que a vitima que sofre a opressão, não é apenas
o oprimido. Todos somos vitimas, diante da fragilidade de um sistema social,
que fere a dignidade humana. O ser ferido é tragado pelo gosto da morte, não
da vida. Coloca em risco o todo e não apenas partes desse todo. Lembrando
Morin:”o todo é tecido de partes”.
A liberdade é essencial para a autonomia, porém, para ser autônomo é
preciso que se tenha consciência de responsabilidade pelos próprios atos. “A
autonomia vai se construindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que
vão sendo tomadas.” (FREIRE, 1996 p.40-41).
92
A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre com data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centra em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas de liberdade (FREIRE, 1996 p.41).
Tal pressuposto da pedagogia da autonomia está alinhado com a
pedagogia do oprimido, tendo em vista que, para tal, é necessária a liberdade.
A educação é um espaço, mas, não só ela, para a formação do sujeito, pela
sua busca de Ser Mais. Os mecanismos de opressão são, muitas vezes,
formas de reproduzir comportamentos já aceitos socialmente, de forma a
constranger aqueles que pretendem contestá-los. Os educandos e todos
aqueles que, de alguma forma, se relacionam com os outros são responsáveis
pela tomada de consciência da opressão que o oprimido sofre. Infelizmente,
somos todos oprimidos, muitas vezes, ingenuamente, acreditamos que essa
tomada de consciência basta para a transformação, pura ingenuidade, a
transformação exige ações éticas, para assim atingir um outro bem estar.
A educação, do ponto de vista das forças dominantes, é objeto de
repetição de assuntos interessantes aos opressores, no seu espaço, não há a
possibilidade de se pensar as mazelas da sociedade, essa função deve ficar a
cargo dos educadores que devem ter noção da sua situação de oprimidos. A
educação não pode ser posta a favor do mercado ou do capital como um
espaço formador de mão de obra apenas (FREIRE, 1996 p.39).
É reacionária a afirmação segundo a qual o que interessa aos operários é alcançar ao máximo a sua eficácia técnica e não perder tempo com debates ideológicos que a nada levam. (...) O empresário moderno aceita, estimula e patrocina o treino técnico de seu operário. O que ele necessariamente recusa é a sua formação (FREIRE, 1996 p.39).
A formação que o empresariado permite e apoia é a da técnica, a da
capacidade de produzir mais e melhor. Não há necessidade de que esse
sujeito pense sobre as infinitas possibilidades que a vida lhe oferece. A
subordinação, aos meios de produção, é o seu único caminho. Muitas vezes,
esse caminho soa até como liberdade, liberdade para consumir, liberdade para
comprar e liberdade para ascender profissionalmente e oprimir outros. No
93
entanto, é importante entender que os “empresários” e os “meios de
produção” são conjuntos de ser humanos, pois, embora redundante, é
importante reafirmar que se não personificados, não podem ser humanizados.
O mesmo acontece, quando pensamos os “professores” . Se forem tratados
apenas como uma categoria e não como sujeitos de suas ações, são reduzidos
apenas a máquinas reprodutoras dos comportamentos dos opressores. Eles
oprimem os alunos, com a intenção de reafirmar seus pensamentos, mesmo
que, para a libertação deles, são pensamentos que não pressupõem
autonomia, mas exigem uma tomada de consciência de que estão sendo
oprimidos. Nessa perspectiva, o ensino superior tecnólogo deve formar egressos
capazes de compreender as relações dominantes da sociedade e pensar em
uma forma de humanizá-la e de se humanizarem, enquanto homens. Nesta
análise buscam-se elementos para isso, nas Diretrizes Curriculares Nacionais,
de acordo com Freire (1987 p.29) “os oprimidos, nos vários momentos de sua
libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação ontológica e
histórica de Ser Mais.”
Comumente tratado de forma impessoal, o “Mercado de Trabalho”
deve ser entendido como uma estrutura, ou um sistema, criado por pessoas
que, ao mesmo tempo em que oprimem, são oprimidos. O mesmo acontece,
quando despersonificamos o “Capitalismo” , esses termos, quando tratados
assim, impossibilitam o pensamento de um diálogo e uma humanização. Não é
viável humanizar sistemas, se não pensarmos que são formados por humanos,
pessoas, indivíduos e sujeitos. Para Freire (1987), os oprimidos devem lutar
contra homens e não contra coisas.
Para Freire (1987), a educação é um espaço importante para a
compreensão da situação dos oprimidos, porém, ao mesmo tempo, pode servir
de espaço de opressão, sobretudo, na sua concepção bancária. Para o mesmo
autor, também é necessário pensar que a educação é uma forma de
intervenção no mundo (Freire, 1996), suas obras se complementam nesses
pensamentos.
A educação apresenta-se como um espaço de dissertação ou narração
da realidade, como algo estático, uma realidade distante da realidade do
educando. A aula é sonorizada, são os sons das palavras que importam e não
94
seu sentido. O educador é o único ativo no processo, sendo o educando
passivo para recebimento desses conteúdos sonorizados. Não há o diálogo,
condição inerente para a libertação. Na perspectiva bancária da educação, “o
saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber” e
tem, como pressuposto, que o outro nada sabe e que apenas o saber do
educador e importante impedindo, assim, uma constatação e um diálogo com a
realidade ficando o educando à disposição do educador e de seus mecanismos
de opressão (FREIRE, 1987 p.33).
Dessa forma, a educação torna-se uma encenação distorcida da
realidade e não um debruçar sobre a realidade propriamente dita, como
conseqüência, a realidade ali atuada não se aproxima, nem minimamente, da
realidade do educando. Torna-se uma realidade na sombra.
O formar estético pressupõe a formação de um sujeito autônomo e
sensível, ou seja, um sujeito estético. No contexto da sociedade
contemporânea, onde o sujeito é policêntrico e tem a sua identidade construída
como um caleidoscópio de múltiplos fragmentos e pedaços, a Educação traz
luz e movimento a esses fragmentos, para que haja possibilidade de
transformação e construção de imagens.
Essa construção de imagens se dá, através da possibilidade de contato
com a sensibilidade, o lúdico, a liberdade e, consequentemente, com o que
acreditamos como educação estética. Essa só fará sentido para o educando,
se fizer parte da sua vida, se for contextualizada e esse contexto apresentado
tiver significado para ele.
Nessa sociedade, onde não há uma rigidez da identidade e não
sabemos, exatamente, quem somos e em que acreditamos, diante das
inúmeras possibilidades, pensar uma educação padronizada descaracteriza
sua estética e impede as possibilidades de autonomia e libertação, é com se
impedíssemos um calidoscópio de girar, ou fechássemos seu orifício para a
entrada da luz, é o mesmo que censurar as emoções de um ator.
Compreender a dimensão estética da formação humana é compreender
o sentido da formação como um processo de libertação, humanização e
autonomia. Isto ocorre em espaços formais e informais, para tanto, é
necessário compreender o tempo presente (a contemporaneidade) e as
95
aflições dos indivíduos. Esses indivíduos se tornarão sujeitos de sua formação,
possibilitando assim a compreensão do “ser sujeito estético”.
Pereira (2007) apresenta:
“Convém observar que tudo repousa sobre o sujeito na época em que vivemos, uma vez que sem ele não haveria o que se considera denominar pensamento moderno. Porém, a leitura que fazem os filósofos sobre o sujeito não é unívoca; há aqueles que o admitem e o defendem e há aqueles que não o admitem e se posicionam contrariamente à sua existência.” (PEREIRA, 2007 p.180)
O termo sujeito, como é conhecido, provém da tradução de expressões
gregas que significam, também, suporte, substrato ou substância. Usualmente,
encontra-se, no cotidiano, o uso da palavra sujeito como sinônimo de homem,
de indivíduo e de pessoa. Tais usos, pela filosofia, são manifestações da
necessidade que os seres humanos têm de conhecerem a si próprios.
(PEREIRA, 2007 p.180).
O desenvolvimento do que é ser homem, pessoa, individuo e sujeito está
alinhado ao processo de desenvolvimento da filosofia. Sobre Descartes,
Pereira (2007 p185) afirma: “Transforma, pois, Descartes, a Filosofia, ao
valorizar o sujeito, a interioridade, a consciência e a imanência.”
Conveniente reafirmar, pois, que a filosofia, inicialmente, considerou o sujeito apenas numa perspectiva, isto é, enquanto aquele que conhece – sujeito cognoscente -, concepção esta adotada principalmente por pensadores que viveram o período de Descartes a Fichte. Ao perder a noção de sujeito, preferiu substituí-la, principalmente, pela noção de homem, ou de indivíduo, bem ao feitio da Ciência Moderna (PEREIRA, 2007 p.189).
Pereira (2007), então, alega que, no processo de desenvolvimento da
filosofia, houve a “morte do sujeito”.
Compartilho a idéia de retorno do sujeito. Mas, não nego que o mundo das ideias carece de uma teoria do sujeito. De um sujeito concebido de modo a refletir o momento em que vivemos, um sujeito não fragmentado e não dicotomizado (PEREIRA, 2007 p.190).
É interessante que se destaque o uso da expressão “não fragmentado”,
escolhida pelo autor porque, na metáfora que emergiu da narrativa de vida do
autor dessa pesquisa o ‘fragmento” também surge e é, na metáfora do
caleidoscópio que se encontram possibilidades de transformação positiva do
fragmento em unicidade, é a luz do conhecimento que unifica os fragmentos
96
em única imagem. O fragmento deixa de ser um pedaço isolado, tornando-se
um todo.
A experiência estética que arrebata é a soma dos impulsos sensíveis,
racionais e lúdicos. É a possibilidade de tomada de consciência de si e de (re)
nascimento do sujeito em perspectiva estética, ou seja, de um sujeito estético.
(...)é imprescindível que cada um de nós se construa e se reconheça sujeito. Construir-se sujeito nada mais é do que se construir, construindo as dimensões que são do sujeito. (...) O sujeito emerge num limiar – o da interioridade e o da exterioridade (PEREIRA, 2007 p. 192).
Pereira (2007) demonstra a relação da anulação do sujeito com o “mal-
estar generalizado no cotidiano”, conforme foi visto em Boutinet (s/d) autor que
aponta as aflições do sujeito na modernidade.
Para ser sujeito, é necessário ter consciência de si e do outro que
também é eu, a tomada de consciência que pode surgir pelas experiências
sugeridas por Boal (2008) que possibilitam libertação, ser livre é, então, ser
sujeito.
Assim, diz-se que aquele que tem consciência de si sabe de suas possibilidades, de seu valor ou da importância de suas ações. Que fique claro que se trata de uma determinação que designa ou caracteriza uma relação entre um eu e um outro (que é um eu) (PEREIRA, 2007 p.193).
A formação do tecnólogo, ao relacionar-se diretamente com o mundo do
trabalho (composto por outros que também são eu), considera apenas um
quadrante do caleidoscópio, retira e isola um fragmento que é menos do que a
parte. A beleza das imagens formadas pela dissolução da luz só se dá, quando
todos os fragmentos estão em movimento, formando imagens maiores que o
todo. Ao focalizarmos uma educação prioritariamente tecnicista, ignoramos a
parcela humana que o contato com a educação permite, não há espaço para a
tomada de consciência do lugar social que ocupamos.
Ao utilizar a técnica de estudo de caso, ou em inglês, case, o professor
apresenta, ao aluno, uma realidade que não lhe pertence, um cenário que não
encaixa com os papéis dos atores. Na lacuna, existente entre o estudo de caso
padronizado e produzido fora da realidade do educando e a necessidade de
humanização dos sujeitos, surge a possibilidade de se pensar a valorização
97
das narrativas autobiográficas como possibilidade de fio condutor para uma
educação estética e a humanização que, daí, advém.
A inclusão da Narrativa (Auto) Biográfica, no processo de formação, na
Educação Superior no Curso Tecnólogo, pode somar esforços na formação
humana e na profissional, com base em valores da estética, de respeito pela
vida como obra de arte. Algo que se tece e que se constrói dentro de um
contexto ético.
As habilidades reflexivas, para tratar de questões da Educação Estética,
demandam tempo e preparo. A formação para o pensar e para o sentir
responsáveis de si, do outro e do contexto, não aborda apenas a introdução da
narrativa (auto) biográfica, como atividade de formação, nas disciplinas do
Ciclo Básico dos Cursos de Tecnólogos. Trata-se de refletir sobre o pensar, em
seus diferentes matizes: sentimento, emoção, razão, como essenciais na
maneira de viver, como processo de conscientização de ser e estar no mundo.
Narrar é um ato mais responsável do que a simples ação de proferir um
discurso. Para abrirmos esse espaço de reflexão, tomamos uma citação que
fecha a obra de Benjamin que contribui para expandirmos nossa visão sobre o
ato de narrar e sua importância, enquanto forma de apresentar suas vivências
aos outros: “Saber narrar a sua vida é a sua vocação (do narrador), a sua
grandeza é narrá-la inteiramente. O narrador – eis um indivíduo capaz de
permitir que o pavio de sua vida se consuma inteiramente na suave chama de
sua narração” (BENJAMIN, 1969:81).
Essa vocação do narrador é justificada, ao longo de sua obra, sobretudo,
quando apresenta o narrador, enquanto artesão de experiências. Ao narrar
uma história existe a possibilidade de tomada de consciência sobre o que se
narra. Ao ouvirmos uma história, ela passa a fazer parte da nossa própria
história. O educador, ao ouvir as narrativas dos alunos e ao narrar a sua, pode
esculpir conhecimentos com base nas suas vivências e nas dos discentes.
A narrativa, tal como se desenvolveu durante muito tempo (...) é, por assim dizer, uma forma artesanal de comunicação. Sua intenção primeira não é transmitir a substância pura do conteúdo, como o faz uma informação ou uma notícia. Pelo contrário, imerge essa substância na vida do narrador para, em seguida, retirá-la dele próprio. Assim a narrativa revelará sempre a marca do narrador, assim como a mão do artista é percebida, por exemplo, na obra da cerâmica” (BENJAMIN, 1969:69).
98
Essa citação sinaliza para uma reflexão sobre a diferença entre o
conteúdo passado pela narração e pelas outras formas de difusão de
informações e conteúdos. O professor, enquanto mediador da construção do
conhecimento, e narrador de suas vivências, enquanto pesquisador ou
estudioso, banha os conteúdos apresentados em aula com sua ideologia e
suas experiências de vida, sendo inevitável tal relação.
Dessa forma, o conhecimento exposto leva as impressões digitais do
professor e não apenas nas formas de expressá-las. Para Benjamin (1969:80),
tais formas vão além da expressão da voz, estendendo-se por todo o gestual
do corpo, mas, também, na forma de contextualizá-las, tanto com base em
suas experiências, como naquelas ouvidas de seus discentes. Essas últimas
são pouco valorizadas, pelo distanciamento proposto, como necessário, para a
construção da relação docente / discente.
O processo de escolha do tema a ser explanado, em aula, já é balizado
pelas experiências e ideologias do professor, contribuindo para imprimir sua
vivência nessa modelagem de um novo conhecimento, embora o educador
deva também considerar as vivências e experiências do discente trazendo o
conhecimento para mais próximo da realidade dele, possibilitando uma maior
apropriação e familiarização. As atitudes do professor, nesse processo de
construção e seleção de conhecimentos, já expressa a posição em que ele se
percebe no jogo social, se se percebe oprimido ou opressor, modificará as
formas de se relacionar com esses conhecimentos.
Benjamin (1969. página.) trata a existência humana como a matéria
prima do narrador e indaga se a tarefa do narrador “não se resume exatamente
em trabalhar a matéria-prima das experiências – próprias e estranhas – de
forma sólida, útil e única?”
Essa pergunta é mais uma afirmação provocativa do que uma dúvida,
portanto, sua resposta é afirmativa. No contexto educacional, tomamos como
matéria prima do professor narrador, a existência e experiência dos alunos e a
sua própria, para serem trabalhadas e modificadas na aula como espaço para
a construção e a troca de saberes.
Benjamin, comentando sobre as diferenças entre a narrativa e as outras
formas de expressão literária, afirma:
99
Quem presta atenção em uma estória, está em companhia do narrador, mesmo aquele que a lê participa dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. É mais solitário que qualquer outro leitor. Pois mesmo o leitor de um poema está pronto a emprestar voz às palavras lidas. E nesta sua solidão o leitor de romance apodera-se do assunto com ciúmes mais intensos do que qualquer outro” (BENJAMIN, 1969, p. 75).
O professor, em momento algum, é um solitário leitor ou escritor e não
pode ter ciúmes dos seus conhecimentos, tendo em vista que sua profissão
exige a entrega de suas vivências para que outros as trabalhem.
Em todos os momentos, o professor está cercado pelas histórias e
vivências de seus alunos: no momento em que a aula acontece, nas
interjeições dos alunos que contribuem para comprovar que existe
compartilhamento concomitante da autoria da história e do conhecimento
criado, a partir da relação docente / discente que utiliza o espaço da aula, como
facilitador e integralizador de interesses.
“A experiência propicia ao narrador a matéria narrada, quer esta
experiência seja própria ou relatada. E, por sua vez, transforma-se na
experiência daqueles que ouvem a estória” (BENJAMIN, 1969, p.66). À medida
que o docente narra os conhecimentos adquiridos, ao longo de sua vida, ele
transforma os discentes em participantes dessa história e, automaticamente,
transforma-os em narradores.
Aquela descoberta ocorrida, em determinada aula, passará a fazer parte
da vida de todos os envolvidos. O papel do professor, como orientador na
pesquisa e na composição dos conhecimentos, é reafirmado. Já, ao observar-
se o papel do narrador, enquanto ”conselheiro”, ressaltado por Benjamim,
pode-se entender que o professor é um orientador das pesquisas dos seus
discentes e um conselheiro. Leva-se em conta a capacidade de transmitir,
oralmente ou por escrito, alguma experiência envolta no ato de aconselhar e no
ato de educar, pois, “dar conselho significa muito menos responder a uma
pergunta do que fazer uma proposta de continuidade de uma estória que neste
instante está a desenrolar” (1969:65).
Porque é necessário, para a criação de um conhecimento uma dúvida ou
inquietação, o papel do professor, enquanto orientador e conselheiro, contribui
para que essa dúvida seja contextualizada e passe a fazer parte da história de
100
vida do discente e do docente, criando espaço para a vivência de uma nova
história coletiva que terá reflexos individuais.
As vivências e experiências coletivas, ocorridas no ambiente
educacional, resultam em diversas formas de conhecimento, tanto um
conhecimento formal e acadêmico, quanto aquele voltado às experiências de
vida individuais, porém, por mais que a forma que as absorvamos seja
individual e subjetiva, ela tem suas raízes no coletivo. Da obra de Bosi,
destaca-se:
Uma memória coletiva se desenvolve a partir de laços de convivência familiares, escolares e profissionais. Ela entretém a memória de seus membros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a limpo (BOSI, 1994, p. 411).
e
É preciso reconhecer que muitas de nossas lembranças, ou mesmo de nossas idéias, não são originais: foram inspiradas nas conversas com outros. Com o correr do tempo, elas passam a ter uma história dentro da gente, acompanham nossa vida e são enriquecidas por experiências e embates (BOSI, 1994, p.407).
A partir do contato com as narrativas alheias, vai-se construindo as
próprias histórias e ideias. Das narrativas dos alunos, o professor constrói suas
narrativas, das narrativas dos professores o aluno constrói seus
conhecimentos, esses conhecimentos, ao serem hermeneutizados,
transformam-se em outros que são novamente narrados, essa relação ciclínica,
infinita, de movimento de narrativas abre espaço para a construção de novos
conhecimentos.
A escola é espaço de contatos entre diversas narrativas e olhares para o
mundo. Há aí terreno fértil para o nascedouro de ideias e a criação de uma
memória coletiva.
É no ambiente educacional, onde há a mediação do professor, enquanto
orientador, narrador e conselheiro e há o discente, enquanto narrador e
conselheiro, apresentando suas vivências que, unidas, resultarão em
conhecimentos novos e/ou reformulados.
A forma, pela qual a memória de cada um dos indivíduos vai trabalhar as
informações coletivas, resultará em novos conhecimentos ou conhecimentos
101
transformados “por muito que deva a memória coletiva, é o indivíduo que
recorda” (BOSI 1994:411).
Refletindo acerca dos conhecimentos produzidos e aprimorados, durante
a vivência educacional, é possível pensarmos que é, no aluno, que as
impressões do professor ficarão fixadas mais fortemente, embora, de certa
forma, o professor também carregue consigo influências dos alunos, mesmo
que inconscientemente ou já elaboradas e formalizadas.
É, no ambiente educacional, mais especificamente no espaço físico da
escola, que as vivências dos alunos e dos professores se encontram, suas
lembranças serão remetidas para dois polos: a um espaço físico onde aquele
momento único aconteceu e às pessoas que dele participaram.
No ensino superior, a faculdade representa um status e, em alguns
casos, um centro criador de novos conhecimentos e preenchedor de faltas.
Oliveira (in Pucci, 1994) faz uma reflexão sobre o ambiente educacional
bastante pertinente e aplicável à atual realidade do ensino superior no Brasil,
onde a disputa por alunos tem reduzido as instituições de ensino superior,
estritamente, a ambientes mercantilistas, que buscam um maior número de
alunos, vendendo a imagem do ensino superior, enquanto salvação, e a do
professor, enquanto salvador.
A venda dessa imagem não leva em conta a realidade e a história de
vida desse novo “consumidor”. Não se pensa quanto e como será o impacto
dessa atividade na vida desse indivíduo e quanto o ensino superior é realmente
necessário nessa vida. Muitas vezes, é o professor quem se depara com o
aluno que “comprou” a idéia mercantilizada da necessidade de cursar o ensino
superior.
Essa ampliação do ‘saber escolar’, coincidente com os tempos da hegemonia do capital, atrai as imensas legiões de filhos de trabalhadores (...) Uma época de “democratização” do ensino: uma época de indústria cultural e de semicultura. Situação complicada encontrarão os novos hóspedes no sentido etimológico original, que indica também o forasteiro, o “estranho” (OLIVEIRA in PUCCI, 1994, p.125).
e
Diferenciados numa sociedade diferenciada, até fragmentada, os estudantes trarão à escola as marcas e os estigmas da diferenciação social, em todos os aspectos (OLIVEIRA in PUCCI, 1994, p.125).
102
Boutinet (s/d) também apontou essa necessidade de estar em contato
com os saberes escolares, para uma tentativa de confortar as aflições do
mundo contemporâneo. Assim, a escola vira um local de enfrentamento de
diferenciações sociais, essas irão chocar-se no ambiente educacional, no
espaço físico da sala de aula. São diversas vivências que resultaram na
escolha pelo mesmo curso, são diferentes objetivos e valores dados a um
mesmo objeto.
Na escola, várias informações, valores e valorações se entrecruzam, se contaminam e se combinam ou se repelem quando observamos o processo manifesto da aula, no qual o professor, embora orientado por um movimento de elevar os estudantes a uma formação (‘Bildung’), tende a aderir às idéias e valores da classe dominante transmitindo-os como idéias e valores absolutos (OLIVEIRA in PUCCI, 1994,p.126).
Ideias e valores foram elaborados na história de vida do educador e são
influenciados pela sociedade e, consequentemente, por suas memórias
coletivas. De forma subjetiva, são absorvidas e, também, pela forma como o
educador se vê, enquanto opressor ou oprimido, nesse jogo de cena.
A ideologia do educador é resultado, também, da sociedade em que ele
está inserido. Sua formação profissional, que pouco motiva a contestação e a
reflexão sobre essa realidade e a forma como influi, na sua relação com os
educandos, tendo como resultado a imposição, por parte do educador, de seus ideais aos alunos, em uma estranha relação de poder e autoridade, um fazer-
se opressor para não ser um oprimido, através de um “ar professoral” conforme
comentado por Oliveira:
(...) devemos acrescentar que na deformação profissional do magistério torna-se evidente o chamado ‘ar-professoral’, um misto de conhecimentos válidos e conhecimentos simplesmente pedantes, uma mescla de conteúdos e simples fórmulas, tudo com determinadas posturas e num tom de voz característico por suas entonações e ênfases” (OLIVEIRA in PUCCI, 1994, p.131).
Vê-se, na ação do docente, uma narração do conhecimento, enquanto
interpretação de um papel social exigido para sua valorização. Para que esse
ocupe algum papel de autoridade, em uma sociedade, em que a força da
narração e a valorização do individual perdem espaço para uma cultura
103
padronizada, industrializada e instrumental, à qual o professor se rendeu e não
combateu, resultando na sua desvalorização.
Nesse contexto, alguns educadores acreditam no posicionamento
autoritário de suas narrações como solução, esquecendo que suas narrações
podem coexistir às narrações de seus alunos, resultando em um conhecimento
mais democrático, mais autônomo e mais tátil, um uso racional não
instrumental das narrativas de vida e do seu papel de narrador
Finalizando, cita-se Oliveira (PUCCI, 1994 p.31): “É preciso reforçar
sempre que as relações autoritárias contrariam o fim da educação: como
contribuir para criar seres autônomos, críticos e democráticos utilizando-se
meios autoritários, estimuladores do etnocentrismo?”
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Revolução Industrial iniciou-se, nos fins do século XVI. Atingiu seu
auge, no século seguinte, com a crescente automatização das indústrias.
Surgiram os grandes centros urbanos; os camponeses abandonam o campo,
em busca de melhores salários nas grandes cidades.
As marcas da contemporaneidade relacionam-se com a Revolução
Industrial: há o crescimento da produção e do consumo e o mundo vive um
processo de intensa aceleração. Há a crença na onipotência do homem, que se
deixa guiar quase que exclusivamente pela razão. No Ocidente, com o
aceleramento e a difusão dos processos de racionalização, surgem inovações
em cadeia, destruindo as bases da sociedade tradicional.
O intenso desenvolvimento industrial está aliado ao desenvolvimento
científico e, consequentemente, ao desenvolvimento tecnológico.
Assim, neste contexto, no Brasil, a ênfase recai sobre o ensino
tecnológico. Proliferam os Cursos Superiores de Tecnologia.
O Ensino Superior de Graduação em Tecnologia apresenta algumas
especificidades que lhe são próprias. Tais especificidades são decorrentes das
oscilações que caracterizam o mercado de trabalho, na contemporaneidade. O
processo de formação do tecnólogo caracteriza-se pela rapidez com que se
realiza, justamente, para atender às exigências do mercado de trabalho.
Esta nova conjuntura torna paradoxal a tarefa de formação dos sujeitos.
Há dois lados: a formação humana demanda tempo e preparo; a motivação do
aluno, ao buscar um curso superior, é a rápida ascensão social. No Ensino
Superior Tecnológico, não há tempo para que se estabeleçam processos de
conscientização ou habilidades reflexivas.
Para atenuar os possíveis malefícios oriundos dessa rapidez e da
formação, exclusivamente, voltada para a ciência e para a tecnologia, fez-se,
neste estudo, uma proposição: a introdução da educação estética, como
fundamento da formação humana dos profissionais tecnólogos. Ela seria, neste
contexto, uma possibilidade de humanização dos sujeitos.
A educação estética seria um caminho, visando à aquisição da
capacidade de pensar de forma crítica, reflexiva e criativa. Estes são aspectos
105
legítimos e necessários para uma educação de autonomia e emancipação dos
sujeitos.
Estabeleceu-se, na proposta de realização deste trabalho, um objetivo
para ser atingido. Propôs-se a reflexão sobre a possibilidade de formação
humana, nos cursos para tecnólogos, sob a ótica da educação estética, nas
Diretrizes Curriculares Nacionais, no Nível Tecnológico, do Ensino Superior.
Considerou-se, neste estudo, que, na nova ordem econômica mundial,
com ênfase no saber-fazer imediato, a compreensão do ser e não, apenas, do
fazer e do saber, na formação do tecnólogo, torna-se relevante.
Esta proposta requer, dos participantes do processo educacional, uma
atitude de reflexão ininterrupta sobre os fenômenos da pós-modernidade, e o
distanciamento do homem dos valores morais, éticos e estéticos. Este reflexão
constante conduz o homem à liberdade.
A instauração da formação humana, no Curso Superior de Tecnologia,
visa à reflexão sobre as ações de prazer ou desprazer, que são um caminho
para a aquisição da consciência crítica do homem. Esta aquisição seria um
modo de obtenção de liberdade e autonomia. O homem agiria como sujeito de
seu destino. A construção do ser humano, como sujeito estético em formação,
pode ser um fator emancipatório, considerando-se que a autonomia é um
caminho para a libertação e para que a incorporação do pensamento crítico.
A justificativa para a escolha da proposta contida, neste trabalho, recaiu
sobre a história de vida do autor deste trabalho e sobre o seu percurso
profissional, como professor e coordenador em cursos de Graduação
Tecnológica em Turismo, Hotelaria, Gestão Hospitalar e Gestão Ambiental.
Esta atuação profissional possibilita uma observação minuciosa das práticas de
docentes e de discentes, que privilegiam a racionalidade técnica, em
detrimento da formação humana, no ensino superior de tecnologia.
Por isso, problematizou-se, neste estudo, a possibilidade da implantação
de práticas voltadas para a educação estética e para a formação humana nas
Diretrizes Curriculares Nacionais, no Nível tecnológico, do Ensino Superior,
para os cursos de formação do Tecnólogo.
Como hipótese, foi proposto que o espaço, nos Cursos Tecnológicos,
seja um espaço de formação. Haveria oportunidades para a formação do
sujeito estético. Constrói-se o saber estético, a partir da manifestação de
106
encantamento ou desencantamento dos alunos e professores, inseridos no
processo de ensino, aprendizagem e formação. Esta nova postura evitaria o
reforço do individualismo, do consumismo, da busca desenfreada das
novidades. O esvaziamento humano, que priva o ser da atribuição de sentido à
própria vida, poderia ser atenuado, caso houvesse uma outra tendência
educacional, nos cursos para tecnólogos.
Neste trabalho, foi realizado um estudo documental, na abordagem
hermenêutica, na perspectiva de Gadamer (2000). As possibilidades de
compreensão e de interpretação dos discursos apoiam-se em bases que
conduzem à apreensão dos significados explícitos e dos significados implícitos
no texto.
Analisou-se a Resolução CNE/CP 3 de 18 de dezembro de 2002 e como
apoio a essa análise o Parecer CNE/CP nº.29/2002 que trata das Diretrizes
Curriculares Nacionais de Nível Tecnólogo que deu origem a Resolução
CNE/CP 3/2002.
Para que houvesse a compreensão da Resolução, recorreu-se ao
referencial teórico, relacionado à estética em Freire (1987, 1996), a Boal
(2008), a Valcárcel (2005), a Schiller (2002) e Perisse (2009), à construção
histórica do conceito de Educação Estética em Wojnar (1967).
A pesquisa, voltada para os referenciais teóricos destes autores,
proporcionou a percepção do sentido da educação estética para pensar a
formação, no nível tecnólogo.
Para a elucidação do contexto da contemporaneidade utilizou-se Hall
(2006), Bauman (1998, 2005), Harvey (2010) e Boutinet (s/d), visando à
reflexão do caminho da construção do sujeito estético em formação.
Estruturalmente, organizou-se a dissertação em três capítulos:
No primeiro capítulo, apresentaram-se a narrativa autobiográfica do
autor da pesquisa, seu trajeto e as justificativas para a escolha dos temas e
dos eixos teóricos. Neste capítulo, há, ainda, a fundamentação da escolha da
hermenêutica, como forma de análise do trabalho, e um olhar teatral sobre a
relação com a autonomia. A análise hermenêutica da história de vida permitiu
identificar a forma como os fragmentos da história do pesquisador compõem-se
em momentos de luz e sombra, os novos momentos de luz somados aos
fragmentos vividos compõem novas imagens.
107
No segundo capítulo, estabeleceu-se a reflexão sobre os efeitos do
tempo liquefeito na formação humana. Recorreu-se à aproximação entre
Schiller (2002), Freire (1987; 1996), Boal (2008), para explicitar a educação
estética e a formação humana. Refletiu-se, aqui, sobre a transformação e a
composição das imagens fragmentadas do sujeito esvaziado do sentido
humano, na sociedade contemporânea.
No terceiro capítulo, apresentou-se a análise hermenêutica da
Resolução CBE/CP 3/2002. Esta análise possibilitou a visualização dos
fragmentos da composição do profissional, como autor e ator do jogo da
formação. Possibilitou, ainda, a percepção do fio da construção do sujeito
estético: as narrativas (auto) biográficas, como possibilidade de fio condutor
para uma formação mais humana.
No documento analisado, buscou-se o sentido da educação estética,
através do uso da hermenêutica. Concluiu-se que, constatado este sentido, há
prenúncios de novas práticas para professores, coordenadores e
mantenedores de instituições que objetivem formar o profissional tecnólogo em
uma dimensão mais humana.
Observou-se, no processo da análise hermenêutica da Resolução, a
preocupação em relacionar o ensino, nos cursos de formação de tecnólogos,
com três áreas distintas: o curso e suas relações com o Trabalho; o
conhecimento e o domínio das Tecnologias; a relação do Trabalho e da
Tecnologia com a Ciência.
A constatação da prevalência destes temas apóia-se na presença das
seguintes expressões: Processo Tecnológico (Art. 2°); Mundo do Trabalho (Art.
2°, Art. 5°); Identidade Profissional (Art. 2°); In ovações científico-tecnológicas
(Art. 2°); Condições de Trabalho (Art.2°); Mercado de Trabalho (Art. 3°); Perfil
Profissional (Art. 3°, Art.6°, Art. 9 §1, ARt. 10); Competências Profissionais (Art.
1°; Art. 2°, Art. 4° §1, Art. 5° §2, Art. 6°, Art. 7°, Art. 8°, Art. 9°); Qualificações
Profissionais (Art. 5° §1); Fundamentos Científicos e Humanísticos (Art. 6° §1).
Houve uma reflexão minuciosa sobre cada uma destas expressões,
privilegiando a expressão: Competências Profissionais. Esta expressão
significa a capacidade pessoal de mobilizar, articular e colocar em ação os
conhecimentos, as habilidades, as atitudes e os valores, para implementar o
trabalho na área tecnológica.
108
Selecionou-se, também, a expressão Perfil Profissional. O perfil
profissional define a identidade do tecnólogo, caracterizando o compromisso
ético da instituição com os seus alunos e com a sociedade.
No decorrer da análise hermenêutica, refletiu-se sobre outras
expressões do documento. Há menções sobre Qualificações Profissionais,
considerada como a aptidão para executar algo, tais qualificações tornam-se
presentes no Certificado de Qualificação Profissional de Nível Tecnológico.
Mencionam-se, ainda, a expressão Mundo do Trabalho e Condições de
Trabalho. Estas expressões relacionam-se à promoção da capacidade de
continuar aprendendo e de acompanhar a transitoriedade do mundo da Pós
Modernidade. A expressão, Mercado de Trabalho, é mencionada no
documento. Percebe-se um entrelaçamento entre mundo do trabalho,
condições de trabalho e mercado de trabalho – as três expressões vinculam-se
a termos como: transitoriedade, efemeridade, opressão, libertação. O mercado,
o mundo e as condições caracterizam-se pelos mesmos fenômenos,
relacionados ao efêmero e ao provisório.
Na Resolução, através da afirmação de que as competências
profissionais tecnológicas incluem “os fundamentos científicos e humanísticos,
necessários ao desempenho profissional do graduado em tecnologia”, fica clara
a preocupação com a humanização.
Ainda na Resolução, observou-se, através da complementação, no
Art.2º, Item IV: “propiciar a compreensão e a avaliação dos impactos sociais,
econômicos e ambientais resultantes da produção, gestão e incorporação de
novas tecnologias”. Constatou-se, portanto, aqui, a preocupação com o coletivo
e com os impactos da tecnologia da sociedade.
Na contemporaneidade, a inserção da educação estética, na formação
do profissional, embora não seja uma tarefa fácil, é uma proposição sugerida
pela Resolução. Ela se constituiria no estabelecimento do equilíbrio necessário,
na atuação social do tecnólogo. Isto pôde ser constatado por meio das leituras
efetuadas, no decorrer da elaboração deste trabalho. Tais leituras são os
recortes das abordagens escolhidas, em cada autor. Compreendeu-se, nos
movimentos interpretativos das obras escolhidas, que a arte oferece, a todos,
inúmeras possibilidades. Entretanto, a arte inovadora se dará à margem da arte
que pode ser comercializada. No contato com Adorno, ficou clara a percepção
109
de que a indústria cultural impossibilita a ruptura com o existente. Já, Bauman
(1998, 2005) constatou não ser possível a distinção entre o novo e o obsoleto.
Essas contradições nas reflexões sobre a contemporaneidade representam a
dificuldade de se definir o sujeito pós-moderno e as multiplicidades de centros
e lugares de conforto que ele pode habitar.
Considera-se que sua classe social não irá definir a arte que apreciará, a
família que nasceu não definirá a tradição que seguirá, o seu padrão de
consumo será regido em uma perspectiva global de produtos e não na
semelhança com o vizinho. Os grandes centros urbanos como São Paulo,
Nova Iorque, Paris, Tóquio se assemelham, mais que capitais brasileiras e
cidades do interior, do nordeste.
A sociedade atual apresenta-se como plural e diversa. Um profissional
alinhado com essa fluidez da sociedade precisa ter uma formação humana. Tal
formação exige uma compreensão da estética, da arte, da vida, nesse mundo
caleidoscópico.
110
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