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IX Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa
06 a 08 de julho – Florianópolis, Santa Catarina
Forças Armadas e Sociedade Civil: Atores e agendas da Defesa Nacional no Século
XXI
AT7 – Segurança Internacional e Defesa
GUERRA ÀS DROGAS – EMERGÊNCIA DE NOVOS DISCURSOS
Danillo Avellar Bragança
Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (RJ)
Pesquisador-líder do Núcleo de Análise de Conjuntura da Escola de Guerra Naval –
Marinha do Brasil
2016
Resumo:
A "Guerra às Drogas" ainda é o paradigma principal e a referência maior no combate
aos grupos narcotraficantes em todo o continente. Suas origens, como discurso de
poder, remetem a tempos e a postulados que hoje são sistematicamente contrariados
pela realidade e pelos resultados que esta iniciativa alcançou. A genealogia deste
conceito e a construção desta lógica como discurso de verdade ainda permanecem.
Mas uma série de iniciativas, que emergem praticamente em todos os países do
continente, servem de propulsor para o surgimento de novos discursos, novas
práticas, novas construções. Esta comunicação tem como objetivo concentrar alguns
destes novos que discutam a "Guerra às Drogas" propondo múltiplos pontos de vista,
sempre enviesando a discussão para o campo da Defesa e Segurança Internacional.
A ideia é propor reformas do paradigma tradicional, seus êxitos e seus fracassos, mas
também a emergência destas novas práticas, que reflitam sobre estes mesmos êxitos
e fracassos e que produzam novas compreensões sobre o tema. Iniciativas como
estas trazem novo fôlego para o campo da Segurança Internacional, e possibilitam que
outras áreas do conhecimento, como os Estudos Estratégicos, Defesa, Arquitetura e
Urbanismo, Ciência Política, Antropologia, entre outros, possam contribuir
decisivamente para o debate. O tema do narcotráfico hoje transborda o espaço
doméstico das políticas de segurança, passando a ser política de Estado e pauta de
integração internacional e de política externa e as soluções unicausais demonstram
esgotamento, dando espaço a novos discursos e novas práticas. O foco deste trabalho
será reduzido a quatro frentes principais, consideradas na argumentação desta
comunicação a mais promissoras: a liberalização em alguns estados norte-
americanos, o México, a confluência de esforços na UNASUL e o Brasil.
1. Introdução
“A violência não é patrimônio dos
exploradores, os explorados também podem
exercê-la” – Albert Camus
O título que se atribui a este trabalho dá conta dos dois processos que
pretendem se descortinar neste texto. Ambos se relacionam com o significado da
palavra “emergência”, e se referem ao estado em que a chamada guerra às drogas1 se
encontra hoje.
Assim, ao dizer “emergência”, o objetivo é dizer que emergem, que surgem
novos discursos para se lidar com o problema das drogas. Deste modo, deixa-se claro
que as relações de poder afirmam uma forma específica de combater o narcotráfico e
o consumidor, que passa pelo estatismo, pelo militarismo e pela marginalização do
adicto. Nesse processo, outros discursos são eliminados, desconsiderados, também
marginalizados, e se pode atribuir a isto as mesmas relações de poder que dão ao
discurso tradicional o seu protagonismo.
Nesta interação, a sensação é de que há um discurso principal e um único
discurso antagônico, o que deverá se mostrar falso ao final do texto. Este modo binário
de ver o problema também é reflexo da prevalência do discurso tradicional, e deve ser
logo controvertido. Em verdade, há uma série de formas diferentes, mais ou menos
tributárias da visão tradicional, de lidar com o problema do tráfico e com o adicto, e
que não convergem em um modelo único, capaz de ser transposto como uma cartilha
para todo e qualquer lugar. É preciso senso e avaliação para que políticas de
liberalização do consumo, da venda ou produção possam ser implantadas em
qualquer nível social.
1 Prefere-se a grafia guerra às drogas neste texto, sem aspas e sem diferenciação, por ser este um
fenômeno concreto. Ainda que o objeto da guerra não seja exatamente as substâncias em si, mas também o é, além da cadeia geral de produção das drogas.
No entanto, há outro sentido da palavra “emergência” aqui que precisa ser
ressaltado, e que está no âmago deste texto. A conclusão mais comum é que todo
esforço de guerra às drogas é custoso, violento e pouco eficiente, e cada vez mais
países, sobretudo no Ocidente, se dão conta disso. Portanto, se faz imperativo que
mudanças de legislação, de tratamento, de controle sejam imediatas, com o efeito de
reduzir o impacto negativo da falência do discurso tradicional.
As formas principais de se medir esta falência estão nos a) custos
elevadíssimos que governos de todo mundo despendem para “enxugar gelo”, quer
dizer, combater o problema sem resolvê-lo, mas também no b) custo do
encarceramento em massa que esta visão preconiza, e que endossa a idéia de que o
discurso tradicional é racista, é elitista, mas, acima de tudo, é ineficaz, e, por fim, c) no
também muito elevado número de mortes que são relacionadas à guerra às drogas,
direta ou indiretamente. Não é que tudo se reduza ao problema do custo, como parece
estar aqui argumentado, mas é este o principal motor de muitas destas mudanças, e,
ao que parece, nas principais críticas daqueles que defendem outras formas de ação.
A Assembléia Geral das Nações Unidas esteve em sessão especial em abril do
ano de 2016 para discutir o tema. Existe um plano de ação traçado para 2019 e que
tinha o ano de 2016 como marco importante no êxito destas medidas. Este documento
definido em 2009 como “Political Declaration and Plan of Action on International
Cooperation towards an Integrated and Balanced Strategy to Counter the World Drug
Problem”, aprofunda a discussão sobre a falência da guerra às drogas tradicional e dá
espaço para que, da forma mais democrática possível dentro da Assembléia Geral,
múltiplas experiências possam ser compartilhadas entre os países-membros. A ênfase
na cooperação orienta que países ricos tenham maior importância no processo de
condução destas medidas, inclusive com apoio multilateral a países mais pobres. Uma
série de organizações da sociedade civil de todo mundo foram integradas neste
esforço, o que sugere uma variação na predominância de atores estatais envolvidos
no tema. O impacto desta contribuição pode ser questionado, porque ainda dependem
da implantação destas medidas em domínio nacional, o que necessariamente passa
pelo aparato estatal, mas trata-se de tendência interessante, mais presente,
entretanto, na Assembléia Geral do que no Conselho de Segurança2.
Poucos avanços foram de fato, definidos. Não é objetivo aqui fazer
comparações com documentos anteriores, mas a total ausência do termo “war”, ou 2 A resolução final, lançada no dia 04 de maio de 2016, está no link https://daccess-
ods.un.org/TMP/5381019.115448.html
guerra, pode sugerir articuladamente com a leitura dos itens da resolução, que a
ênfase está pendulando para outros focos de incidência. Deve-se salientar também
que o limite das resoluções criadas em Assembléia Geral são claros, mas deve-se
ressaltar que trata de plenária democrática, com a participação dos Estados-membros,
mas também de acadêmicos, organizações da sociedade civil, entre outros. Destas
redes que se formam nestes encontros que saem novas experiências a serem
implantadas em outras realidades, respeitando o espírito multilateral das propostas.
Aqui, entretanto, devemos ressaltar que a emergência de novos discursos em
fóruns como este ou em iniciativas que serão demonstradas nas próximas sessões
deste texto têm pontos em comum, e estes pontos denotariam a existência de padrões
específicos de ação – e portanto, de reação – para cada parte da cadeia produtiva do
narcotráfico internacional. É imperativo compreender estas diferenças, que se
acentuam e ao mesmo tempo uniformizam este mercado.
2. Divisão Internacional das Drogas
Quer dizer, estes novos discursos emergiriam de fontes diferentes e se
agregariam em torno destes aspectos comuns. A principal das características destes
novos discursos, como estará descrito abaixo, é o viés economicista. Estariam em
oposição, portanto, um discurso de guerra às drogas militarista, estatista e elitista-
racial, e outro, antítese deste, liberal, economicista e inclusivista – não por acaso,
George Soros é um dos seus maiores entusiastas.
Deve se esmiuçar melhor o que se está defendendo aqui. Quando se diz que
estes discursos emergentes são, em sua maioria, liberais, quer se dizer que a maioria
deles se orienta para uma flexibilização relativa, no consumo ou na produção. Há
casos mais liberais, como o de Portugal, onde o consumo de todas as substâncias
antes consideradas ilícitas foi permitido, mas há casos onde estas perspectivas
liberais caminham mais devagar, como no México.
Esta diferenciação se explicaria pelo posicionamento de cada um destes
países no que se designou aqui “divisão internacional das drogas”. A intenção é
separar, não definitivamente, o papel de cada um dos países na cadeia de produção-
circulação-consumo, entendendo que existem diferenças internas a cada um destes
níveis, e cada função desta representa problemas de natureza diferente. Estes graus
de liberalização tendem a ser maiores na ponta
consumidores. Entretanto, países com populações maiores tendem a regulamentar
mais ou andar mais vagarosamente no sentido da legalização do consumo ou da
produção, ainda que existam movimentos neste sentido. Países com populações
menores, como a Holanda, Portugal, entre outros, tendem a ser mais agudos neste
mesmo processo.
Assim, no que se refere ao primeiro ponto da cadeia, a produção, algumas
características principais são importantes. Geograficamente, estes países estão
próximos das zonas tropicais, onde os índices de desenvolvimento humano são
menores, onde há florestas em abundância e pobreza na mesma proporção. Destes
países partem as principais rotas, naturalmente, que têm como objetivo os países
consumidores.
A economia das drogas é muito importante para países desta fase da cadeia.
Populações tradicionais são inteiramente dependentes de culturas relacionadas ao
consumo de drogas nos países consumidores, como a produção da folha de coca na
Bolívia ou de papoula na região do Crescente Dourado ou do Triângulo Dourado, na
Ásia. Neste sentido, uma sinalização de mudança deste discurso é a implantação de
níveis, e cada função desta representa problemas de natureza diferente. Estes graus
de liberalização tendem a ser maiores na ponta da cadeia, nos mercados
consumidores. Entretanto, países com populações maiores tendem a regulamentar
mais ou andar mais vagarosamente no sentido da legalização do consumo ou da
produção, ainda que existam movimentos neste sentido. Países com populações
nores, como a Holanda, Portugal, entre outros, tendem a ser mais agudos neste
Assim, no que se refere ao primeiro ponto da cadeia, a produção, algumas
características principais são importantes. Geograficamente, estes países estão
das zonas tropicais, onde os índices de desenvolvimento humano são
menores, onde há florestas em abundância e pobreza na mesma proporção. Destes
países partem as principais rotas, naturalmente, que têm como objetivo os países
Fonte: Wikipedia; UNODC (2015)
A economia das drogas é muito importante para países desta fase da cadeia.
são inteiramente dependentes de culturas relacionadas ao
consumo de drogas nos países consumidores, como a produção da folha de coca na
Bolívia ou de papoula na região do Crescente Dourado ou do Triângulo Dourado, na
Neste sentido, uma sinalização de mudança deste discurso é a implantação de
níveis, e cada função desta representa problemas de natureza diferente. Estes graus
da cadeia, nos mercados
consumidores. Entretanto, países com populações maiores tendem a regulamentar
mais ou andar mais vagarosamente no sentido da legalização do consumo ou da
produção, ainda que existam movimentos neste sentido. Países com populações
nores, como a Holanda, Portugal, entre outros, tendem a ser mais agudos neste
Assim, no que se refere ao primeiro ponto da cadeia, a produção, algumas
características principais são importantes. Geograficamente, estes países estão
das zonas tropicais, onde os índices de desenvolvimento humano são
menores, onde há florestas em abundância e pobreza na mesma proporção. Destes
países partem as principais rotas, naturalmente, que têm como objetivo os países
A economia das drogas é muito importante para países desta fase da cadeia.
são inteiramente dependentes de culturas relacionadas ao
consumo de drogas nos países consumidores, como a produção da folha de coca na
Bolívia ou de papoula na região do Crescente Dourado ou do Triângulo Dourado, na
Neste sentido, uma sinalização de mudança deste discurso é a implantação de
alternativas ao desenvolvimento econômico destas populações, o que reforça a
natureza economicista destes novos discursos3.
Fonte: UNODC (2015)
Por sua vez, países especializados na circulação apresentam outras
características importantes em comum. Esta é a parte mais lucrativa de toda a cadeia
(UNODC, 2015). As características geográficas são importantes, sobretudo porque
uma parcela importante das apreensões gerais em grandes quantidades de drogas
circulando pelo planeta é interceptada no mar, como demonstra o gráfico 3. Desta
maneira, estes países normalmente têm acesso fácil e privilegiado aos oceanos,
garantindo-lhe vantagem comparativa em relação a outros países.
Nesta fase da cadeia, a competição econômica é também mais acirrada. A
repressão concentrou-se, na década de 1990, em controlar estes fluxos, o que não foi
eficiente. Tome o exemplo de Colômbia e México, que revezaram a primazia do
fornecimento de drogas para os Estados Unidos, a partir da década de 1950
sobretudo. Ambos são países bioceânicos, com acesso ao Pacífico e ao Atlântico,
pelo mar do Caribe. Ambos são países com níveis acentuados de corrupção, e estão
3 Para mais referências sobre a natureza dos países produtores, ver BRAGANÇA (2015).
próximos de paraísos fiscais, onde as leis para lavagem de dinheiro e ocultação são
frágeis4, como Panamá e as Ilhas Virgens.
A - World Drug Report (2015)
Nesta categoria também poderiam ser enquadrados países como Itália,
Indonésia, que por sua capacidade e extensão ao mar, foram ocupando grandes
espaços nesta parcela do mercado. O que desponta como importante aqui é, além do
índice intermediário de desenvolvimento humano, é a tendência à cartelização. Os
índices de violência são altos nestes países, como sugerem os estudos sobre as
máfias italianas, as máfias do leste europeu, as máfias asiáticas e os cartéis
mexicanos e colombianos.
A existência destes grupos, a militarização do combate e a tendência a
monopolização do mercado projetou um cenário de violência entre os grupos, violência
entre o Estado e estes grupos, que é vista hoje como ineficiente no desmantelamento
geral destas máfias (GLENNY, ). Mesmo que se fragmentem – e esta fragmentação é
problemática em muitos aspectos – o mercado é sempre reocupado, em um efeito que
é conhecimento como balloon effect, que seria a relocalização geográfica dos grupos 4 Este é um ponto da cadeia que merece melhor explicação, mas que não comporta aqui mais
desenvolvimento. Fica aqui como sugestão de pesquisa para próximas oportunidades
narcotraficantes e que, dadas as condições amplamente internacionalizadas desta
cadeia, têm totais condições de operar estas redes de outros pontos do planeta. A
territorialização destes grupos tem sido substituída por uma moderna cultura
empresarial, que diminui os custos destes grupos a partir da utilização destas redes.
Estas estruturas ficaram mais flexíveis, mais maleáveis, ainda que permaneçam as
hierarquias e os grandes grupos, muitas vezes de natureza familiar5.
A liberalização da produção ou do consumo caminha em ritmo muito lento nos
países especializados na circulação, mais lento do que nas duas pontas da cadeia.
Quer dizer, as legislações ainda são mais duras, como na Indonésia, o combate ainda
mais concentrado no Estado, como no México, e a violência ainda permanece como
problema geral. A lógica liberal aqui é mais explorada pelos grupos do que pelo
Estado, até porque o maior dos problemas não é o consumo ou a produção – ainda
que a Colômbia e o México produzam drogas também em grandes quantidades. O
maior dos problemas é o domínio destas redes, e que estão muito ao largo do controle
do Estado.
Por fim, estão os países consumidores. Na maior parte dos casos, são países
com grandes dimensões geográficas e demográficas. São países com enormes
fronteiras terrestres e marítimas, e que naturalmente teriam problema para conhecer
todos os fluxos que chegam ao seu território. A consolidação de grandes comunidades
de países pode ser enquadrada nesta categorização, como a União Européia.
São países de índice de desenvolvimento econômico acentuado, com classes
médias com capacidade de consumo e hábitos culturais considerados avançados,
bastante homogêneos. A internacionalização dos hábitos da classe média mundial e
esta conseqüente uniformização pode indicar algumas pistas sobre o aumento das
apreensões de heroína e de drogas sintéticas, como apontam os relatórios das
Nações Unidas (UNODC, 2015)6.
O senso comum define como objetivo primordial para a proibição do consumo
de drogas como sendo a vontade dos governos em não quererem que as pessoas se
viciem em drogas. Mas quando se analisa a história, a construção do discurso da
guerra às drogas, o que se vê é que, em verdade, a principal motivação que emerge é
uma dada histeria racista e que afetava, por exemplo, grandes nomes da indústria
cultural como Billie Holiday, que era perseguida e linchada publicamente com o apoio
5 Para uma melhor apresentação desta parcela da cadeia, ver BRAGANÇA (2015).
6 Sobre isto, ver anexo I, II, III e IV.
do Federal Bureau of Narcotics e seu chefe de operações, Harry Ainslinger, o primeiro
homem a cunhar de fato o termo “war on drugs”7 (HARI, 2015).
Há outra motivação importante que se desdobra desta histeria racista, que é o
aprofundamento da adição como instrumento de controle social. A guerra às drogas foi
construída como objetivo desumanizatório, e explica grande parte das prisões em
países com características semelhantes, onde a “sanha punitivista” (SERRA, 2011)
prevalece de forma mais contundente em classes menos favorecidas, como os
Estados Unidos e o Brasil. O avanço de um Estado penalista é bastante convincente
quando se observam o aumento da população carcerária nestes dois países, o quanto
destas prisões são relacionadas ao consumo ou tráfico de drogas, e a porcentagem de
quantos destes homens e mulheres cativos são pobres e negros.
Uma observação importante sobre estas duas motivações encontradas no
discurso tradicional de guerra às drogas pode ser vista no efeito que este
aprisionamento tem sobre a sociedade em geral. Hari (2015) faz um paralelo entre a
prisão de um estuprador e a prisão de um traficante de drogas.
Se a polícia faz uma prisão de um estuprador, há de se concordar que o
número de estupros cairá em uma determinada sociedade naquele determinado
momento. Se você prende um traficante, não se acredita mesmo que o tráfico reduzirá
naquela determinada sociedade naquele determinado momento. Isto porque o custo
da droga não cai, quer dizer, a oferta não diminui. Alguém ocupará o lugar do
traficante preso, e a taxa de circulação de drogas não diminuirá também. Na verdade,
para ocupar o ponto de venda do traficante preso, disputas entre grupos, facções,
gangues, levarão necessariamente a mais violência, porque a violência é traço
fundamental da guerra às drogas, mas também do estabelecimento das redes de
oferta de drogas em comunidades. Os grupos mais violentos conseguem melhores
pontos de venda, e monopolizam mais o mercado. Para garantir este monopólio,
aumentam a dose de violência empreendida. Ou seja, é possível associar à prisão de
um traficante a um aumento de concentração de poder por parte dos grupos
traficantes.
7 A história de Billie Holiday é bastante conhecida, mas uma passagem é lembrada por Johann Hari,
quando da prisão de Holiday e do nome comum dado às disputas judiciais nos Estados Unidos: “United States vs. Billie Holiday”. Holiday foi presa, condenada e teve sua licença como cantora suspensa, o que a fez submergir ainda mais no vício em heroína. A associação aqui é entre a punição, o vício e o impedimento de trabalhar, que se torna um ciclo permanente. A morte de Holiday é associada a este processo. Como efeito de comparação, a atriz Judy Garland foi descoberta pelo mesmo Harry Ainslinger como viciada na mesma heroína de Holiday, mas nunca teve sua licença cassada, e na verdade, nunca gerou a mesma comoção negativa e linchamento público.
A anarquia que isto promove é prejudicial. Quer dizer, o consumo não diminui,
e ele é sustentando por químicos não credenciados, vendendo substâncias não
avaliadas, consumidas por pessoas que também não são fiscalizadas, em lugares
diversos. O local influencia. Não pela quantidade maior disponível, mas pela falta de
opção e pela falta de uma rede de serviços – públicos ou privados – de apoio ao
consumidor. Afundar-se no vício é provadamente mais fácil em locais onde o ambiente
é menos fiscalizado, mais violento, onde as opções são menores e o apoio é
praticamente inexistente8.
Isto sugere que a adição é um instrumento de adaptação ao ambiente em que
se vive. Hari (2015) cita o exemplo do consumo de heroína em soldados na Guerra do
Vietnam – cerca de 20% da tropa usava o opiáceo com a conivência do Departamento
de Estado norte-americano. A extensa maioria destes soldados não continuou a
consumir heroína quando voltaram para casa, e o fizeram sem reabilitação.
O caso português é emblemático nesta virada. Portugal era um dos países com
maior consumo de droga na Europa, por volta dos anos 2000, com cerca de 1% da
população sendo viciada em heroína – ou seja, 100 mil pessoas, numa população total
de 10,36 milhões de pessoas. Todos os anos, o número de prisões aumentava, assim
como o total geral da população carcerária. A estrutura da guerra às drogas tradicional
era aplicada como regra.
Um painel se constituiu, formado por especialistas, cientistas, juízes, o partido
do primeiro-ministro José Sócrates, o Partido Socialista, e o partido de oposição
principal, o Partido Social-Democrata, e em julho de 2001, e o consumo de todas as
drogas foi descriminalizado. O orçamento do combate ao consumo e ao tráfico foi
revertido para políticas de reconexão de adictos à sociedade, inclusive com promoção
ao emprego e pequenos empréstimos, estimulando o micro-empreendedorismo.
O consumo de drogas injetáveis diminuiu em 50%. A adição está
sensivelmente menor, além da redução drástica no número de mortes por overdose,
assim como de transmissão de HIV por mau uso de seringas compartilhadas. O
tratamento, à base de metadona, é financiado pelo Estado português.
8 É conhecida a experiência do professor canadense Bruce Alexander, chamada “Rat Park”. Um rato,
colocado numa gaiola, com dois suprimentos de água e nada mais. Um desses bebedouros é água misturada com cocaína ou heroína, e o outro com água filtrada normal. Na maioria das vezes em que foi reproduzida, o efeito foi o mesmo: o rato se viciava na água misturada. Alexander então criou o “Rat Park”, que tinha além dos dois recipientes com água, comida à vontade, atrativos sexuais, outros ratos, bolas coloridas, ou seja, um ambiente bastante melhor. No “Rat Park”, o consumo da água misturada era muito menor, não havia obsessão, não havia overdose de consumo da água misturada, somente uso recreacional.
De muitas formas, a política de drogas se espalhou pela Europa. Na Alemanha,
por exemplo, há salas de controle para uso de drogas injetáveis, o que fez
praticamente zerar o número de mortes por overdose. Países como a Holanda têm leis
mais tolerantes quanto ao uso, e acompanham os adictos com médicos, assistentes
sociais, psicólogos, representantes das secretarias de trabalho. Articulam-se medidas
individuais a medidas gerais, como investimento em melhores cidades, em educação
de melhor qualidade, melhores serviços públicos.
Os casos de sucesso a serem pinçados da Europa guardam proporções
devidas com a emergência de discursos contrários à guerra às drogas no continente
americano. É preciso avaliar cada um dos casos, analisar os pontos positivos e
negativos e conduzir de fato discussões verdadeiras sobre o tema. Os primeiros
experimentos foram realizados em cidades canadenses. Vancouver abre o primeiro
centro de consumo controlado há dez anos atrás, e este é o marco inicial deste texto
quanto à emergência de novos discursos na América.
3. Conclusão
Tom Wainwright, em “Narconomics: How to Run a Drug Cartel”, condensa bem
a parte econômica da emergência destes novos discursos. Não há, no que se refere
ao custo enorme do investimento no combate direto a estes cartéis, uma justificativa
econômica que sustente o esforço, tanto no que se refere à precificação quanto no
que se refere à eficiência do gasto público. Só em relação à cocaína, são 90 bilhões
de dólares que circulam anualmente entre os grupos narcotraficantes em todo o
mundo, e assim como o mercado de maconha e heroína, este é um mercado em
expansão.
O “efeito balloon” é muito evidente neste domínio. A repressão tornou os
cartéis mais flexíveis, mais parecidos com grandes empresas multinacionais. Ao longo
de toda a história da guerra às drogas o que se viu foi a multiplicação de estratégias
econômicas para driblar a fiscalização e o controle aduaneiro, como já se antecipou no
primeiro item deste texto. A internacionalização dos mercados tem este impacto sobre
o mercado de drogas, e evoluiu mais rápido em suas estratégias de ocupação deste
mercado do que o Estado em sua tentativa de limitar o poderio econômico destes
grupos.
Por exemplo, quando um determinado governo aumenta a estrutura de controle
econômico destes cartéis, seja rastreando o dinheiro, combatendo lavagem, entre
outras coisas, estes grupos simplesmente se movem para outro lugar, menos
repressivo. O “efeito balloon” não é, portanto, só um resultado da repressão político-
militar, mas também da repressão econômica, que é algo que Wainwright não levanta
na sua argumentação. A conclusão, no entanto, é a mesma: as políticas de mano dura
não inibem e nem são eficientes economicamente.
Enquanto os governos gastam fortunas no combate aos grupos
narcotraficantes, Wainwright (2016) aponta que há um aspecto na relação econômica
que rege o mercado de drogas e que, de fato, causa algum efeito em seu poderio
econômico: a competição. Há uma relação direta entre este combate e o surgimento
de vendedores paralelos, que modifica o mercado geral.
A violência entre gangues se explica por este contexto. Em um mercado de
natureza liberal, onde prevaleceriam as leis puras da mão invisível do mercado, os
agentes disputam de forma bastante agressiva o controle de grandes parcelas do
mercado. Como se tratam de grupos que agem já às margens do legal, a violência se
dissemina, afetando o mercado, mas também o resto da sociedade. Como se pode ver
em muitos mercados tidos como liberais, onde prevalece a competição pelo
consumidor através do preço, também o mercado de drogas tende a monopolização,
quer dizer, o controle quase total de grandes fatias deste mercado9.
Outro foco de competição que os cartéis podem enfrentar é precisamente o
Estado. Ao dar espaço para o debate e para novas formas de lidar com a cadeia do
consumo de entorpecentes, criam-se novas dinâmicas neste mercado. O consumidor
deixa de utilizar a oferta que vem da boca de fumo próxima, normalmente em um lugar
periférico da cidade, com alto índice de violência. Novos vendedores surgem em
bairros de classe média e classe média alta, dentro de grandes condomínios, que se
utilizam de mídias sociais e contatos para comercializar seu produto. Por vezes, a
“biqueira” tradicional e o traficante de classe média são complementares, e o primeiro
vende para o segundo, adicionado ao “frete”. Em outras vezes, redes de porte médio
são formadas em academias, condomínios de bairros de classe média e classe média
alta, em relação não mais de simbiose, e sim de competição.
9 É bastante conhecida a história da repartição dos mercados norte-americanos da Costa Oeste, Costa
Leste e a região concentrada em Nova York entre os grandes cartéis colombianos, na década de 1980. A verdade é que o mercado foi abastecido, os níveis de violência diminuíram, e o mercado se acomodou em torno destes três grupos. Sobre isto, ver SAVIANO (2014).
Quando o Estado se apropria de parte destas redes, o mercado tende a mudar
diametralmente. É o que se percebe em países onde a liberalização da produção e do
consumo avança, onde as políticas sociais de redução de danos e tratamento de
adictos melhoram os índices de violência e de desagregação social. Este é o efeito
que se vê, por exemplo, na política de drogas conduzida no estado norte-americano
do Colorado, que causou impacto direto nos cartéis mexicanos.
A tática de prender grandes chefes de grandes cartéis até logrou certo êxito,
mas esbarra sempre no fato de que, por conta da prisão de um chefe, a atividade
criminal do cartel não reduz. Os níveis de violência até aumentam, como argumento
aqui, dependendo do grau de lealdade ao cartel e das disputas que podem eclodir no
interior destes grupos.
Se por um lado, a política de prisão de grandes chefes trazia a sensação de
que o combate ao narcotráfico avançava, pelo outro, reforçava as fraquezas evidentes
da guerra às drogas. Citando o México como exemplo, onde o discurso tradicional
ainda é majoritário, vemos que os custos voltam a ser tema central. A manutenção de
um preso em prisão federal mexicana é de, aproximadamente, 140 pesos por dia, o
equivalente a 30 reais, ou 4200 pesos por mês, ou 900 reais10. Este preço deve
aumentar sensivelmente quando se trata de um preso de segurança máxima, que
precisa de todo um aparato para sua proteção e reclusão.
Há números semelhantes no Brasil e nos Estados Unidos, em proporções
maiores. O México, por exemplo, têm 250 mil presos, número que dobrou em menos
de dez anos, em uma população de 120 milhões de habitantes. O Brasil tem 620 mil
presos, em uma população de 200 milhões de habitantes. Os Estados Unidos tem
uma população carcerária de 2 milhões e 200 mil pessoas, em uma população de 320
milhões de pessoas (WALMSLEY, 2015). Os números não são muito precisos, mas
cerca de 25% deste contingente está preso por crimes relacionados à produção,
consumo ou tráfico de drogas (CARSON, 2015). No Brasil11 e no México12 esta
proporção se repete.
Somente os Estados Unidos gastam US$ 51 bi por ano na guerra às drogas, e
gastaram mais de US$ 1 trilhão em 40 anos. Estes números exorbitantes não se
10
Fonte: http://www.animalpolitico.com/2015/07/cuanto-cuesta-mantener-a-un-reo-en-mexico/ 11
Fonte: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/com-lei-de-drogas-presos-por-trafico-passam-de-31-mil-para-138-mil-no-pais.html 12
Fonte: http://www.animalpolitico.com/2015/07/cuanto-cuesta-mantener-a-un-reo-en-mexico/; http://archivo.eluniversal.com.mx/nacion-mexico/2014/impreso/penas-por-drogas-llenan-las-carceles-213582.html
repetem em países com orçamentos muito menores, como o México e o Brasil. Mas
são igualmente absurdos (DRUG POLICY ALLIANCE, 2016).
O que interessa aqui é argumentar que a profusão destes números, de
pesquisas quantitativas, mais do que uma coincidência, representa a emergência de
novas percepções sobre a guerra às drogas. De forma geral, esta tendência pode
levar a mudanças mais profundas, e que tornem obsoletos os princípios do discurso
tradicional, ou pelo menos os relativize. Não há outra saída, contudo. Nos termos
atuais, o mercado de drogas global só cresce, e o problema também.
5. Anexos
Anexo 1 – Opiáceos (UNODC – 2015)
Anexo 2 – Cocaína (UNODC – 2015)
Anexo 3 – Canabinídeos (UNODC, 2015)
Anexo 4 - Drogas sintéticas (UNODC, 2015)
6. Bibliografia
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