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ENSINAR E APRENDER/APRENDER E ENSINAR: O LUGAR DA TEORIA E DA PRÁTICA EM DIDÁTICA José Carlos Libâneo 1. Didática, campo de investigação e de exercício profissional A identificação da didática como campo investigativo e área profissional pode começar com uma boa pergunta: quais são as relações entre pedagogia e didática? As respostas remetem a diferentes entendimentos. Na tradição dos estudos em didática, fundada em boa parte em pedagogos alemães como Herbart, Dilthey e em teóricos russos, a didática é um ramo da pedagogia, esta compreendida como ciência da formação humana, compreendendo o fenômeno educativo em sua globalidade. Na década de 1960, primeiro na França e depois em outros países europeus, foi introduzida a denominação “ciências da educação”, colocando a educação como objeto de estudo de um conjunto de ciências humanas e sociais, de alguma forma recusando cientificidade e legitimidade epistemológica à pedagogia, provocando a dispersão no estudo da problemática educativa. Numa outra direção, também na França, estudiosos e investigadores da didática e das didáticas específicas iniciaram por volta dos anos .... um movimento de valorização da didática, e especialmente das didáticas específicas, situando didática e pedagogia como duas dimensões da docência, sem nenhuma relação hierárquica entre elas. À didática caberia o estudo dos processos de ensino e aprendizagem em sua relação imediata com os conteúdos dos saberes a ensinar, a organização das situações didáticas e a escolha dos meios de ensino, enquanto à pedagogia caberiam as questões gestão da classe em seus aspectos relacionais e na organização de situações pedagógicas (Altet, 1997, p.11). Ou seja, para esse grupo de autores, na didática, a aprendizagem é pensada com a lógica dos saberes, na pedagogia com a lógica da sala de aula, ou seja, a dinâmica das relações entre alunos. Esse movimento continua sendo bastante representativo na França, com repercussão em vários países. 1

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ENSINAR E APRENDER/APRENDER E ENSINAR: O LUGAR DA TEORIA E DA PRÁTICA EM DIDÁTICA

José Carlos Libâneo

1. Didática, campo de investigação e de exercício profissional

A identificação da didática como campo investigativo e área profissional pode começar com uma boa pergunta: quais são as relações entre pedagogia e didática? As respostas remetem a diferentes entendimentos. Na tradição dos estudos em didática, fundada em boa parte em pedagogos alemães como Herbart, Dilthey e em teóricos russos, a didática é um ramo da pedagogia, esta compreendida como ciência da formação humana, compreendendo o fenômeno educativo em sua globalidade. Na década de 1960, primeiro na França e depois em outros países europeus, foi introduzida a denominação “ciências da educação”, colocando a educação como objeto de estudo de um conjunto de ciências humanas e sociais, de alguma forma recusando cientificidade e legitimidade epistemológica à pedagogia, provocando a dispersão no estudo da problemática educativa. Numa outra direção, também na França, estudiosos e investigadores da didática e das didáticas específicas iniciaram por volta dos anos .... um movimento de valorização da didática, e especialmente das didáticas específicas, situando didática e pedagogia como duas dimensões da docência, sem nenhuma relação hierárquica entre elas. À didática caberia o estudo dos processos de ensino e aprendizagem em sua relação imediata com os conteúdos dos saberes a ensinar, a organização das situações didáticas e a escolha dos meios de ensino, enquanto à pedagogia caberiam as questões gestão da classe em seus aspectos relacionais e na organização de situações pedagógicas (Altet, 1997, p.11). Ou seja, para esse grupo de autores, na didática, a aprendizagem é pensada com a lógica dos saberes, na pedagogia com a lógica da sala de aula, ou seja, a dinâmica das relações entre alunos. Esse movimento continua sendo bastante representativo na França, com repercussão em vários países.

Em paralelo a esse movimento, surgiu outro grupo de investigadores denominado de “novos pedagogos”. Entre esses, Houssaye define a pedagogia como uma reflexão sobre a prática educativa, articulando na ação pedagógica a teoria e a prática: “o que deve haver em pedagogia é certamente uma proposta prática, mas ao mesmo tempo uma teoria da situação educativa referida a essa prática, ou seja, uma teoria da situação pedagógica” (2004, p.12). Para esse autor, a pedagogia e a didática, mais do que campos complementares, são uma e mesma coisa.

Desde os anos 1980 desenvolveram-se no âmbito anglo-americano, com difusão no Brasil, estudos sobre currículo numa perspectiva sociocrítica com forte peso em temas sociológicos e culturais, formando o campo da chamada teoria curricular crítica, em que os temas da didática são subsumidos no campo do currículo. A autonomização desse campo investigativo, antes vinculado à didática, acabou levando à formação de dois campos científicos paralelos, com objetos de investigação coincidentes, mas que atualmente buscam espaços de convergências.

No Brasil, onde vigora uma notória dependência do pensamento estrangeiro em educação herdado de várias culturas e de várias tradições epistemológicas, européias ou norte-americanas, certamente se fazem presentes todos esses significados de didática. É assim que em nossas instituições de formação de educadores incidem posições, em meio

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a conhecidas divergências, que identificam os estudos sobre o fenômeno educativo ora como pedagogia (ciência pedagógica), ciência da educação, ciências da educação, ora como docência, neste caso, identificando pedagogia e ensino.

Uma breve incursão na história da educação brasileira mostraria que até o início dos anos 1980, vigoravam principalmente dois entendimentos, o da pedagogia como ciência da educação, na visão católica e herbartiana, e o da ciência da educação na visão escolanovista normeamericana. A movimentação política iniciada no Brasil nessa mesma década provocou o questionamento do formato curricular dos cursos de formação de professores, provocado em boa medida pela introdução do pensamento marxista na educação associada à incorporação da teoria da reprodução de Bourdieu e Passeron e da teoria dos aparelhos simbólicos de Estado de Althusser (Cf. SAVIANI, 1983). Nesse momento a Pedagogia é criticada pelo seu lado “reprodutor”, conservador, razão que levou algumas instituições formadoras a assumir a formulação francesa de “ciências da educação”. Esse posicionamento, no entanto, logo cedeu espaço a movimentos propositores de reformas no sistema de formação de professor, nos quais os estudos pedagógicos sistematizados foram substituídos por um curso de formação de professores, conforme o mote de que “a base da formação de todo educador é a docência”. Essa concepção de pedagogia, praticamente identificada com a docência, colocando no mesmo plano a pedagogia e didática, acabou prevalecendo nos currículos de formação profissional e na própria legislação educacional em vigor desde 2006. Adversários dessa posição criticaram nas propostas da Associação Nacional pela Formação de Profissionais da Educação (ANFOPE) o enfraquecimento dos estudos pedagógicos, uma vez que os cursos de Pedagogia deixaram de formar o “pedagogo” em sentido estrito e passaram a formar exclusivamente o professor, ainda que em cursos denominados de pedagogia (Cf. LIBÂNEO, 2009; LIBÂNEO, 2006; LIBÂNEO E PIMENTA, 1999)

Uma visão ampliada de pedagogia

Neste texto, a pedagogia é assumida como um campo de estudos sobre o fenômeno educativo, portadora de especificidade epistemológica que, ao possibilitar o estudo do fenômeno educativo, busca a contribuição de outras ciências que tem a educação como um de seus temas. A pedagogia é vista como área de conhecimento que tem por objeto as práticas educativas em suas várias modalidades incidentes na prática social, investigando a natureza do fenômeno educativo, os conteúdos e os métodos da educação, os procedimentos investigativos. Entendemos que a educação se caracteriza como processo de formação das qualidades humanas, enquanto que o ensino é o processo de organização e viabilização da atividade de aprendizagem em contextos específicos para esse fim. Para além do dilema posto entre o pedagogo que faz escola e o pedagogo que pensa a educação, avançamos para um entendimento mais interativo dessas posições, aproximando-nos, ainda que parcialmente, da posição de Houssaye sobre o trabalho de pedagogo, em que a pedagogia é por um lado ciência, mas, por outro, arte e também uma orientação para a ação educativa (Houssaye, 2004). Em síntese, a Pedagogia é a teoria e a prática da educação, e a didática, o campo da pedagogia que trata das relações entre ensino e aprendizagem, em contextos específicos.

Mencionamos que o objeto de estudo da pedagogia são as práticas educativas, responsáveis pela atuação sobre a formação e o desenvolvimento do ser humano, em condições materiais e sociais concretas. Por isso, as investigações teóricas e empíricas da sociologia, da psicologia, da antropologia, da economia, da história da educação, ou da cultura, das políticas sociais, da gestão do sistema de ensino e das escolas, da didática, etc., devem ocorrer em função das ações e processos formativos propiciadas

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pelas várias modalidades de educação. Em outro texto proponho uma definição de educação em relação aos processos formativos do ser humano:

A educação é uma prática social, materializada numa atuação efetiva na formação e desenvolvimento de seres humanos, em condições socioculturais e institucionais concretas, implicando práticas e procedimentos peculiares, visando mudanças qualitativas na aprendizagem escolar e na personalidade dos alunos (LIBÂNEO, 2008).

É intrínseco às práticas educativas seu caráter de mediação mediante cultural o qual favorece o desenvolvimento dos indivíduos na dinâmica sociocultural de seu grupo, sendo que o conteúdo dessa mediação são os saberes e modos de ação, isto é, a cultura que vai se convertendo em patrimônio do ser humano. A pedagogia refere-se à teoria e à prática desses processos. Ela não restringe sua reflexão a práticas escolares, mas a estende a um imenso conjunto de outras práticas educativas existentes na sociedade sob variadas modalidades: na família, no trabalho, na rua, na fábrica, nos meios de comunicação, na política e, também, na escola. Ao mesmo tempo, a pedagogia tem um caráter social e político. A educação é uma prática social que busca realizar nos sujeitos humanos as características de humanização plena, mas ela ocorre em meio a relações sociais, ou seja, a pedagogia lida com o fenômeno educativo enquanto expressão de interesses sociais em conflito na sociedade. É por isso que a pedagogia expressa finalidades sócio-politicas, ou seja, uma direção explícita da ação educativa relacionada com um projeto de gestão social e política da sociedade. A pedagogia, portanto, é uma reflexão sobre a atividade educativa, é uma orientação para a prática educativa, uma direção de sentido das práticas de formação humana a partir de objetivos e valores necessários à humanização das pessoas numa sociedade concreta. Ela se refere não apenas ao “como se faz”, mas, principalmente, ao “por que se faz”, de modo a orientar o trabalho educativo para as finalidades sociais e políticas almejadas pelo grupo de educadores.

Nesse modo de compreender a pedagogia está inserida a didática, que é o modo de ser da pedagogia em situações específicas de ensino e aprendizagem. Pedagogia e didática formam uma unidade, se correspondem, mas não são idênticas, pois, se é fato que todo trabalho didático é trabalho pedagógico, nem todo trabalho pedagógico é trabalho didático. A didática tem como objeto de estudo o processo de ensino-aprendizagem em sua globalidade, isto é, suas finalidades sociais e pedagógicas, os princípios, as condições e meios da direção e organização do ensino e da aprendizagem, pelos quais se assegura a mediação docente de objetivos, conteúdos, métodos, formas de gestão do ensino, visando a apropriação consciente pelos alunos de conteúdos, métodos de pensamento e modos de agir.

2. A natureza do didático: Aprender e ensinar/ensinar e aprender

Na tradição da investigação pedagógica, a didática tem sido vista como um conhecimento relacionado a processos de ensino e aprendizagem que ocorrem em ambientes organizados de relação e comunicação intencional, visando a formação intelectual e moral dos alunos. Autores pertencentes à tradição da teoria histórico-cultural mostram a mediação didática como sendo a forma de ativação do processo de aprendizagem. L. Klingberg escreveu que o caráter científico do ensino é dado pela condução do processo de ensino com base no conhecimento das leis que governam o processo de conhecimento. Segundo ele:

O processo docente do conhecimento - embora somente em alguns casos se descubra o novo de forma objetiva – é um insubstituível campo de exercício para o desenvolvimento das forças cognoscitivas dos alunos, para sua curiosidade, sua alegria

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pela investigação e as descobertas, sua capacidade de poder perguntar, de ver problemas e chegar metodicamente à sua solução (1972, p. 47).

O didata russo, M. A. Danílov também antecipava um entendimento do trabalho de professor como mediação entre os aspectos externos e os aspectos internos da educação e do ensino, visando a consecução da aprendizagem dos alunos. Ele escreveu:

A didática estuda o processo de ensino, em cujo desenvolvimento tem lugar a assimilação dos conhecimentos sistematizados, o domínio dos procedimentos para aplicar estes conhecimentos na prática, e o desenvolvimento das forças cognoscitivas dos educandos. Seu objeto de investigação é o processo de ensino em seu conjunto e sua tarefa básica a revelação das regularidades gerais deste processo que têm caráter objetivo, colocando em primeiro plano as condições em que se manifesta (p.34).

Na mesma direção segue Lompscher (1999), para quem a organização didática visa a promover a atividade de aprendizagem dos alunos: “A organização didática dos processos de aprendizagem (...) deve ser orientada em direção à atividade dos alunos”. Desse modo, a efetividade do ensino se revela ao assegurar as condições e os modos de viabilizar o processo de conhecimento pelo aluno, ou seja, a aprendizagem.

Numa perspectiva socioconstrutivista, Yves Lenoir reconhece, na relação educativa escolar, a existência de dois processos de mediação: “aquele que liga o sujeito aprendiz ao objeto de conhecimento (relação S – O), chamado de mediação cognitiva, e aquele que liga o formador professor a esta relação S – O, chamado de mediação didática” (cf. LENOIR, 1996, p.29). Presume-se aí um professor que assegura os modos e condições da relação do aluno com o conhecimento.

Destaca-se nessas definições um entendimento explícito do ensino como atividade de mediação para promover o encontro formativo - afetivo, cognitivo, ético, estético - entre o aluno e o objeto de conhecimento, ou seja, a confrontação ativa do aluno com a matéria, destacando-se o papel das condições concretas para a realização dessa atividade. Em 1990 eu escrevia no livro Didática:

Definindo-se como mediação escolar dos objetivos e conteúdos do ensino, a didática investiga as condições e formas que vigoram no ensino e, ao mesmo tempo, os fatores reais (sociais, políticos, culturais, psicossociais) condicionantes das relações entre docência e aprendizagem. (...) O processo didático de transmissão/assimilação de conhecimentos, habilidades e valores tem como culminância o desenvolvimento das capacidades cognoscitivas dos alunos, de modo que assimilem ativa e independentemente os conhecimentos sistematizados1 (LIBÂNEO, 1990).

A caracterização da didática como mediação do processo de ensino-aprendizagem não abandona a clássica metáfora do triângulo didático, mas a amplia, já que a relação de mediação faz explicitar o papel do professor na orientação da atividade de aprendizagem do aluno, considerados o contexto e as condições do ensino e da aprendizagem. Com isso, a relação dinâmica entre três elementos constitutivos do ato didático – o professor, o aluno, a matéria – formam as categorias da didática: Para que ensinar? O que ensinar? Quem ensina? Para quem se ensina? Como se ensina? Sob que

1 Presentemente, para identificar esse processo tenho preferido utilizar os termos apropriação ou interiorização (também internalização), no sentido vygotskiano de que “atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas” são internalizadas na forma de reconstrução da atividade psicológica por meio de operações com signos (VYGOTSKY, 1984). Em outras palavras, ações externas (objetos, conhecimentos, conceitos, práticas sociais) se convertem gradualmente em internas, isto é, realizações do desenvolvimento histórico do ser humano, inclusive do conhecimento humano, são apropriadas e resignificadas pelos sujeitos com base nesse conhecimento. Embora tais significados sejam construídos internamente pelo aluno, eles não ocorrem espontaneamente, sua internalização depende de signos sociais, mediações culturais, implicando a intervenção do outro.

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condições se ensina e se aprende? (LIBÂNEO, 1994). Tais categorias formam, por sua vez, o conteúdo da didática.

O “para quê ensinar” põe o problema dos objetivos da educação geral: o que se espera da escola e do ensino em relação à formação humana, consideradas as demandas e exigências da sociedade, da localidade, do desenvolvimento científico e tecnológico, das exigências pela qualidade de vida? Que objetivos definir numa sociedade marcada por desigualdades sociais, econômicas, culturais, em que os grupos sociais dominantes exercem influência determinante sobre objetivos e conteúdos da educação escolar? O “para quê ensinar” consiste, assim, numa questão crucial, que antecede tudo o mais.

“O que ensinar” remete à seleção e organização dos conteúdos, decorrentes de exigências sociais, culturais, políticas, éticas, ação essa intimamente ligada aos objetivos,os quais expressam a dimensão de intencionalidade da ação docente, ou seja, as intenções sociais e políticas do ensino. A seleção dos conteúdos implica, ao menos, os conceitos básicos das matérias e respectivos métodos de investigação, a adequação às idades e ao nível de desenvolvimento mental dos alunos, aos processos internos de interiorização, aos processos comunicativos na sala de aula, aos significados sociais dos conhecimentos.

“Quem ensina” remete aos agentes educativos, presentes na família, no trabalho, nas mídias. Na escola, o professor põe-se como mediador entre o aluno e os objetos de estudo, enquanto os alunos estabelecem com o conhecimento uma relação de estudo. “Quem ensina” supõe, pois, “quem aprende”, incluindo aí as características individuais e socioculturais dos alunos implicadas no desenvolvimento e aprendizagem. A par disso, professores e alunos estão implicados numa relação social que se materializa na sala de aula mas, também, na dinâmica das relações internas que ocorre na escola em suas práticas organizativas e institucionais, o que remete ao “como ensinar” e aos contextos e condições em que se realiza o ensino.

O “como ensinar” corresponde aos métodos, procedimentos e formas de organização do ensino, em estreita relação com objetivos e conteúdos, estando presentes, também, no processo de constituição dos objetos de conhecimentos.

As condições das ações didáticas dizem respeito, no geral, ao contexto social, cultural, organizacional, coletivo em que se situam as situações pedagógico-didáticas concretas em que se realiza o processo de ensino-aprendizagem. Mais especificamente, referem-se, por um lado, às políticas educacionais e diretrizes normativas para o ensino; às práticas socioculturais, familiares, locais; por outro lado, ao funcionamento da escola como as práticas de organização e gestão, o espaço físico, o clima organizacional, os meios e recursos didáticos, o currículo, os tempos e espaços; às condições pessoais e profissionais dos professores; às características individuais e socioculturais dos alunos, às disposições internas para estudo e acompanhamento das atividades didáticas, necessidades sociais e aprendizagem; ao relacionamento entre professor e alunos, alunos e colegas.

Verifica-se que, a partir dos elementos constitutivos do ato didático, há uma intensa articulação com outros campos científicos tais como a teoria do conhecimento, a psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento, a sociologia, a teoria do currículo, a pesquisa cultural, etc., visando à compreensão do fenômeno ensino. Desse modo, a didática se assume como disciplina de integração, articulando numa teoria geral de ensino as várias ciências da educação e compondo-se com as metodologias específicas das disciplinas curriculares. Ou seja, combina-se o que é geral, elementar, básico, para o ensino de todas as matérias com o que é específico das distintas metodologias, em

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estreito vínculo com a teoria do conhecimento, a psicologia aplicada ao ensino e a sociologia das situações escolares e dos contextos socioculturais.

O processo ensino-aprendizagem na teoria histórico-cultural

A teoria histórico-cultural proposta por Vygotsky e seguidores é compatível com as noções de mediação didática, mediação cognitiva e práticas sociais. Para esses autores, a aprendizagem humana se caracteriza como mudanças qualitativas na relação entre a pessoa e o mundo, pela mediação de instrumentos ou ferramentas culturais envolvendo a interação entre pessoas, culminando com a internalização de significados sociais, especialmente saberes científicos, procedimentais e valorativos. Em síntese, o desenvolvimento das funções mentais superiores supõe a internalização de ferramentas culturais/formas culturais de comportamento/signos, já desenvolvidas na sociedade por meio da linguagem. Para Vygotsky, todas as funções mentais superiores são relações sociais internalizadas, ou seja, o desenvolvimento das capacidades mentais é engendrado no processo de apropriação e reconstrução da cultura.

Na educação escolar, o papel do ensino é, precisamente, promover o desenvolvimento mental por meio da aprendizagem, convertendo a aprendizagem em desenvolvimento. Tem-se, assim, a subordinação da mediação didática à mediação cognitiva, a serviço da qual está o processo de aprendizagem e ensino, num contexto espacio-temporal determinado. Sendo assim, a didática (e as didáticas específicas) consiste na sistematização de conhecimentos e práticas referentes aos fundamentos, condições e modos de realização do ensino e da aprendizagem dos conteúdos, habilidades, valores, visando o desenvolvimento das capacidades mentais e a formação da personalidade dos alunos.

Nesta definição aparecem importantes noções conexas à teoria histórico-cultural. Se o aspecto definidor da didática é a mediação da mediação cognitiva, ou seja, mediação das relações do aluno com os objetos de conhecimento, então, o conceito de referência da didática é a mediação das relações entre ensino e aprendizagem voltadas para o desenvolvimento humano. O trabalho dos professores consiste em ajudar o aluno, por meio dos conteúdos, a adquirir capacidades para novas operações mentais ou modificar as existentes, com o que se operam mudanças qualitativas em sua personalidade. Há, aqui, uma relação imediata da didática com os conteúdos dos saberes a ensinar, a ativação das capacidades intelectuais dos alunos e a organização das situações didáticas com os meios adequados.

Desde Vygotsky e seguidores, formou-se o entendimento de que o ensino para o desenvolvimento constitui-se num principio humanístico, sendo a base do direito de todas as crianças e jovens à instrução, ou seja, à educação geral básica. A muitas pessoas causa estranheza o uso da palavra “instrução” no vocabulário da teoria histórico-cultural, associando-a à idéia de adestramento, transmissão de conhecimento. No entanto, a recorrência ao seu sentido na língua russa possibilita resolver mal-entendidos. Prestes (2010) traz um amplo esclarecimento sobre a palavra do russo obutchenie, largamente utilizada em textos de teóricos da teoria histórico-cultural e traduzida por instrução, ensino e, na maior parte das vezes, por aprendizagem. Em verdade, a palavra refere-se ao processo simultâneo de instrução, estudo, aprendizagem, ou seja, o processo ensino-aprendizagem implicado na instrução. Prestes esclarece que essa palavra, traduzida por aprendizagem, estaria indicando um processo psicológico próprio do sujeito (como corre em boa parte das teorias da aprendizagem), descartando ou

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secundarizando a transmissão intencional de conhecimento (ou seja, o ensinar por meio da atuação de uma outra pessoa no processo de aprendizagem)2. Escreve Prestes:

Para Vigotski, a atividade obutchenie pode ser definida como uma atividade autônoma da criança que é orientada por adultos ou colegas e pressupõe, portanto, a participação ativa da criança no sentido de apropriação dos produtos da cultura e da experiência humana. Isso é o mais importante. Poder-se-ia argumentar que a expressão ensino-aprendizagem seria a mais adequada para a tradução da palavra obutchnie. Todavia, em russo, essa palavra implica uma unidade desses processos e a mera junção por hífen de duas palavras não transmite a ideia que Vigotski atribui a ela: uma atividade autônoma da criança que é orientada por alguém que tem a intencionalidade de fazê-lo. Ou seja, obutchenie implica a atividade da criança, a orientação da pessoa e a intenção dessa pessoa. (...) Por tudo isso, a palavra que, a nosso ver, mais se aproxima do termo obutchenie de Vigotski é instrução (PRESTES, 2010, P. 188)

Estamos, pois, preparados agora para entender o ensinaraprender e o aprenderensinar, na perspectiva histórico-cultural. Vygotsky escreveu que somente é boa aquela instrução (ensino) que vai adiante do desenvolvimento, ao despertar e provocar “toda uma série de funções que se encontram em estado de maturação na zona de desenvolvimento próximo” (VYGOTSKY, 2007, p. 360), guiando o processo de desenvolvimento, envolvendo a atuação colaborativa de outras pessoas. Ou seja, a zona de desenvolvimento próximo (ou iminente, como prefere Prestes) define a condição da criança em relação a funções mentais ainda em maturação (funções que não concluíram o seu desenvolvimento), e que podem ser desenvolvidas com a ajuda do adulto. Escreve Vigotsky:

Vygotsky esclarece a noção de zona de desenvolvimento próximo na qual ocorre a compreensão consciente e o uso voluntário dos conceitos, em colaboração com o pensamento do adulto. Ele escreve:

A força dos conceitos científicos se manifesta em uma esfera integralmente determinada pelas propriedades superiores dos conceitos: a compreensão consciente e a voluntariedade. Justamente nesta esfera os conceitos cotidianos mostram sua debilidade, fortes na esfera da utilização espontânea, situacional e concreta, na esfera da experiência e do empirismo. O desenvolvimento dos conceitos científicos começa na esfera da compreensão consciente e da voluntariedade e continua mais além, crescendo para abaixo, até à esfera da experiência pessoal e do concreto. O desenvolvimento dos conceitos espontâneos começa na esfera do concreto e empírico e se move em direção às propriedades superiores dos conceitos: a compreensão consciente e a voluntariedade. A relação entre o desenvolvimento destas duas linhas opostas revela, indubitavelmente, sua verdadeira natureza: trata-se da relação entre a zona de desenvolvimento próximo e o nível atual do desenvolvimento (Ib., p. 377).

Está claro, nessa citação, o papel da escola na formação dos conceitos científicos a partir dos conceitos espontâneos, em que o aluno pode ultrapassar o nível de conhecimento que já possui para “ascender” aos conhecimentos científicos com a colaboração do adulto. Ao mesmo tempo, a aprendizagem é uma atividade do aluno, mas necessita de uma “intervenção” do outro, por meio da mediação, daí a idéia de

2 Em seu texto, Prestes recorre a dois autores, Rieber e Carton (p. 184), que destacam no termo “obutchenie” duas partes: o verbo “uchit” (ensinar) e o verbo reflexivo “uchi’sia” (ser ensinado, aprender pela instrução, estudar). Conforme me informa Achiles Dallari, preocupado em seus trabalhos com problemas de tradução do russo de textos de psicologia e educação, a palavra “utchénie” significa, mais propriamente, estudos, aprendizagem, aprendizado, mas, também, ensino, ensinamento, exercício tático; e que “obutchénie” significa ensino, instrução, neste caso, destacando a importância de se esclarecer o papel, nessa palavra, do prefixo “ob”, que pode significar: em face de, em troca de, diante de, para, por causa de, etc. O estudo de Prestes e a contribuição de Dallari deixam poucas dúvidas: obutchenie refere-se a instrução, isto é, processo intencional, sistemático, de ensino-aprendizagem em qualquer contexto social de educação.

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instrução, no entendimento de Prestes, como “uma atividade autônoma da criança que é orientada por alguém que tem a intencionalidade de fazê-lo”. Remetemo-nos, pois, ao entendimento de que o ensino e a aprendizagem formam uma unidade dentro de um mesmo processo, ainda que cada termo guarde sua especificidade, não podendo ser subsumido um no outro. A didática investiga esse processo no seu conjunto, buscando articular a interação entre o ensino e o estudo, entre o ensino e o desenvolvimento das capacidades intelectuais..

É assim que escola e ensino, pela mediação do professor, existem para promover e ampliar o desenvolvimento das capacidades cognitivas e a formação da personalidade. Por isso, o problema pedagógico-didático diz respeito às formas pelas quais práticas sociais formam o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos indivíduos sendo que os resultados social, pedagógico, cultural, da escola, expressam-se nas aprendizagens efetivamente consumadas. A atividade pedagógica somente é pedagógica se ela mobiliza as ações mentais dos sujeitos, visando a ampliação de suas capacidades cognitivas e a formação de sua personalidade global. Essa formação de ações mentais ou novos usos de uma ação mental requer, por parte dos alunos, uma atividade de estudo e, da parte dos professores, a mediação didática, precisamente a intervenção intencional na formação de processos mentais do aluno.

Algumas derivações desse posicionamento

Em outro texto (LIBÂNEO, 2010b), eu destacava algumas tarefas urgentes para o revigoramento teórico e profissional da didática: retomada do estudo aprofundado do campo teórico e investigativo da pedagogia, cujo objeto é a prática educativa visando a formação e o desenvolvimento humano em situações concretas; a retomada, na mesma direção, dos estudos em didática voltados às relações entre ensino e aprendizagem; aprofundamento das peculiaridades da pesquisa didática na escola, no ensino, nos processos cognitivos; ampliação das abordagens dos elementos constitutivos da didática visando clarear os contextos e as condições concretas do ensino e da aprendizagem, introduzindo questões socioculturais, antropológicas, lingüísticas, estéticas, comunicacionais, midiáticas. As considerações a seguir referem-se principalmente a esta última tarefa, uma vez que o ensino é uma prática social, portanto impregnado de várias dimensões: a social, a cultural, a política, psicológica, a biológica, etc. A didática necessita de outros campos de conhecimento para a compreensão do seu objeto de estudo e seu campo de prática, o ensino. As contribuições atuais têm vindo da sociologia crítica do currículo, da psicolingüística, da pesquisa cultural, da psicopedagogia, da teoria da ação comunicativa, das teorias holísticas, da teoria da complexidade, entre outras. A seguir, são abordadas algumas dessas contribuições.

A teoria curricular crítica traz importantes aportes à problemática investigação da didática ao ajudar a compreender as relações entre os processos de seleção, distribuição, organização e ensino dos conteúdos curriculares e a estrutura de poder do contexto social. Especialmente nos últimos anos, por influência da sociologia da educação desenvolvida na Inglaterra, França e Estados Unidos, a investigação no campo do currículo tem destacado temas como as culturas particulares, a diferença, a pluralidade das linguagens, as relações de poder. Tais temas são, sem dúvida, muito relevantes e podem perfeitamente ser incluídos na problemática teórica e prática da didática, desde que sejam conectadas aos esforços de melhoria da escola pública, de focar nas questões de aprendizagem e desenvolvimento de processos cognitivos. A concordância de teóricos da didática e do currículo em torno de alguns pontos comuns relacionados com a prática docente, ainda que não anulem divergências teóricas, concorre para evitar a presença de posições imobilistas entre os professores que atuam

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nas escolas. Em texto de 1988, apresentei as divergências mas, também, as possibilidades de convergências entre os campos da didática e do currículo (LIBÂNEO, 1988)

Outra interface diz respeito às relações entre didática e epistemologia, temática que tem motivado estudos entre didatas franceses, conforme há mencionado aqui, com forte inspiração do pensamento de Bachelard e, também, presente da teoria do ensino para o desenvolvimento de V. Davílov, mencionada mais adiante neste texto (LIBÂNEO, 2010a). A didática, à medida que lida com o processo mental do conhecimento, está em íntima relação com questões lógicas e psicológicas. Ou seja, a apropriação de saberes supõe os procedimentos investigativos de constituição dos saberes, e isto é um problema eminentemente epistemológico. Nesse sentido, a didática não pode prescindir dos conteúdos específicos das disciplinas ensinadas para desenvolver suas investigações. Sendo assim, não se pode falar de uma didática geral, nem de métodos gerais de ensino aplicáveis a todas as disciplinas. A didática somente faz sentido se estiver conectada à lógica científica da disciplina que é ensinada. De sua parte, ela oferece às disciplinas especificas o que é comum e essencial ao ensino. Ao efetuar essa tarefa de generalização, a didática se converte em uma das bases essenciais das didáticas específicas. “Em uma das bases” porque a didática recorre a outros tipos de conhecimento além daqueles da matéria ensinada, por exemplo, da psicologia, da sociologia, da antropologia.

Outra fonte de enriquecimento do conteúdo da didática são os temas da cultura e das práticas socioculturais, pois incidem diretamente na escola, no ensino e na aprendizagem dos alunos. A cultura é um conjunto de conhecimentos, valores, crenças, moral, costumes, modos de agir e de se comportar, adquiridos pelos seres humanos enquanto membros de uma sociedade, de uma comunidade e que caracteriza o modo como as pessoas vivem e agem. É claro que esses elementos da cultura convertem-se, em primeiro lugar, nas mediações culturais que mobilizarão o ensino e a aprendizagem dos alunos. Com efeito, as escolas se defrontam com características socioculturais dos alunos, trazidas dos seus contextos de vida cotidiana, que afetam sua participação nas aprendizagens. Também os professores são portadores de características culturais, cujos saberes, valores, quadros de referência, formas com que lidam com a profissão, marcam fortemente suas práticas docentes. A própria escola tem uma cultura, que é o modo como atuam as pessoas que nela trabalham. Além disso, atravessam a escola a cultura científica, a cultura social, as culturas juvenís, a cultura das mídias, constituindo uma transversalidade de culturas. Escrevem Davydov e Markova que as características psico-fisiológicas das crianças são mediadas, desde o nascimento, pelo entorno social, o qual atua no desenvolvimento mental.

Dessa forma, o verdadeiro papel das características psicofisiológicas no desenvolvimento mental da criança pode, a nosso ver, ser verificada apenas no curso da educação, o qual "intensifica" as características psicofisiológicas (plasticidade, dinamicidade) que promovem o desenvolvimento e "atenuam" as propriedades , que poderiam prejudicar o desenvolvimento integral da criança. (DAVYDOV e MARKOVA, 1983, p.5).

Portanto, a contribuição da pesquisa cultural é imprescindível para a didática porque práticas socioculturais e institucionais estão por detrás de mudanças no desenvolvimento e na aprendizagem dos alunos. Este tema será retomado em vários capítulos deste livro, especialmente no terceiro e oitavo.

As tecnologias da comunicação e da informação já não podem ser tomadas apenas como “recursos audiovisuais”. As mídias fazem parte das mediações culturais

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que caracterizam o ensino. Como qualquer conteúdo, são portadoras de idéias, emoções, atitudes, habilidades, portanto, instrumentos de mediação cultural, ferramentas pedagógicas, ou seja, são elementos didáticos propiciadores e mobilizadores da relação do aluno com os conhecimentos, habilidades, atitudes, valores.

A valorização da experiência subjetiva e da pluralidade de linguagens realça a importância das relações comunicativas, do diálogo, do entendimento lingüístico e da busca de consenso nos processos de tomada de decisão. Associado com o forte impacto das mídias na vida da escola, o tema da comunicação provoca mudanças no trabalho do professor, já que a aula deve ser cada mais uma prática interativa onde se desenvolve o diálogo, a capacidade de ouvir o outro, de reconhecer as diferenças.

As perspectivas das teorias holísticas e da teoria da complexidade trazem substantivas contribuições à didática em temas como a unidade entre o sujeito e o mundo, a mente e a atividade, o equilíbrio dinâmico entre o homem e o meio biofísico em que a sociedade e a natureza formam um único ecossistema, o sistema da vida. Nesta linha também está a noção de pensamento complexo. A inteligibilidade complexa, ou o pensar mediante a complexidade, significa buscar as inter-relações das coisas, uma idéia muito próxima da reflexão dialética em que se buscam as relações essenciais entre os fenômenos, ou seja, o modo geral como situações da realidade vão se dispondo entre si no espaço e no tempo, em que o sistema vai se constituindo a partir de suas relações externas e interna.

3. A perspectiva da teoria histórico-cultural: a didática para o desenvolvimento de V. Davidov

Vasili Davídov, pertencente à terceira geração de pedagogos da Escola de Vygotsky, formulou a teoria do ensino desenvolvimental ou ensino para o desenvolvimento. Denomina-se desenvolvimental aquele ensino que impulsiona e amplia o desenvolvimento das capacidades cognitivas mediante a formação de conceitos e o desenvolvimento do pensamento teórico-científico (LIBÂNEO, 2004).

A teoria de ensino de Davídov teve origem em investigações sobre a organização do ensino em escolas russas onde constatou a predominância da concepção tradicional de aprendizagem baseada na formação do pensamento empírico, descritivo e classificatório. Segundo ele, conhecimentos que se adquirem por métodos transmissivos e de memorização não se convertem em ferramenta para lidar com a diversidade de fenômenos e situações que ocorrem na vida prática. Um ensino mais duradouro e que se dirige à formação da personalidade dos alunos deve basear-se no desenvolvimento do pensamento teórico-científico, ao qual se chega pelo método da reflexão dialética. Trata-se de um processo pelo qual se revela a essência e desenvolvimento dos objetos de conhecimento e, com isso, a aquisição de métodos e estratégias cognitivas gerais de cada ciência, em função de analisar e resolver problemas e situações concretas da vida prática. O pensamento teórico se forma pelo domínio dos procedimentos lógicos do pensamento que, pelo seu caráter generalizador, permite sua aplicação em vários âmbitos da aprendizagem. Desse modo, Davídov propõe a superação de um tipo de pensamento empírico, que tem sido o mais freqüente nas escolas, pelo pensamento teórico-científico, que é o que ajuda efetivamente a formar o pensamento.

Há três idéias básicas da didática para o desenvolvimento: a) O bom ensino é o que promove e amplia o desenvolvimento humano por meio da apropriação de conhecimentos, habilidades e capacidades cognitivas; b) Ensina-se para que os alunos formem o pensamento teórico, isto é, formem e atuem com conceitos em sua relação

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com a realidade; c) Formar conceitos é o mesmo que formar e desenvolver ações mentais, capacidades de pensar.

a) O ensino para o desenvolvimento do pensamento e da personalidade.

Para Davídov, na tradição da teoria histórico-cultural, a principal tarefa da escola consiste em ensinar os alunos a orientar-se independentemente na informação científica e em qualquer outra, ou seja, ensiná-los a pensar mediante um ensino que impulsione o desenvolvimento mental. Desse modo, a atividade escolar consiste na apropriação de conhecimentos, capacidades intelectuais, métodos da atividade formados historicamente os quais, por sua vez, impulsionam o desenvolvimento. Mudanças qualitativas no desenvolvimento mental geram capacidade para a apropriação de novos conhecimentos e habilidades de conteúdo mais complexo. A instrução ou ensino (obutchenie) é um sistema de organização e métodos para assegurar o processo de apropriação da experiência socialmente formada, promovendo mudanças qualitativas no desenvolvimento mental (Cf. DAVYDOV e MARKOVA, 1983, p. 5). Escrevem esses autores:

Enquanto a apropriação é a reprodução pela criança da experiência socialmente desenvolvida e a instrução formal é a forma de organização desta apropriação em condições históricas determinadas, em uma determinada sociedade, o desenvolvimento é caracterizado principalmente por alterações qualitativas no nível e na forma das capacidades, tipos de atividade, etc, apropriados pelo indivíduo. (...) A apropriação é o resultado da atividade empreendida pelo indivíduo quando ele aprende a dominar métodos socialmente desenvolvidos de lidar com o mundo dos objetos e a transformar esse mundo, os quais gradualmente tornam-se o meio da atividade própria do indivíduo (Ib.)

O caminho dessa apropriação por meio do ensino é a formação de conceitos científicos pelos quais os alunos podem ter o domínio do modo geral pelo qual o objeto de conhecimento é construído, interiorizando os modos de atividade anteriores aplicados à investigação dos conceitos e modos de agir vinculados a esses conceitos. A interiorização desses modos de atividade da experiência social permite criar no sujeito dispositivos auto-reguladores das ações e comportamentos dos indivíduos, ou seja, tal como mencionado acima, “tornam-se meios da atividade própria do indivíduo”.

Esta formulação realça a atividade humana sócio-histórica e coletiva na formação das funções mentais superiores, portanto o caráter de mediação cultural do processo do conhecimento e, ao mesmo tempo, a atividade individual de aprendizagem pela qual o indivíduo se apropria da experiência sociocultural como ser ativo. Considerando-se que os saberes e instrumentos cognitivos se constituem nas relações intersubjetivas, sua apropriação implica a interação com outros já portadores desses saberes e instrumentos. Em razão disso, a educação e o ensino constituem formas universais e necessárias do desenvolvimento mental, em cujo processo se ligam os fatores socioculturais e as condições internas dos indivíduos.

b) A formação do pensamento teórico-científico pelos conceitos

Se pensamento é a faculdade de formular conceitos, aprender é formar o pensamento teórico-científico, isto é, formar conceitos teóricos apropriados de um objeto de estudo. A didática para o desenvolvimento põe em primeiro plano a apropriação pelos alunos de conceitos, competências e habilidades do pensar, modos de ação que se constituam em “instrumentalidades” para lidar praticamente com a realidade, ou seja, resolver problemas, enfrentar dilemas, tomar decisões, formular estratégias de ação. Davídov propõe uma adequada solução para a questão do domínio dos conteúdos e da formação dos processos mentais: enquanto forma conceitos

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científicos, o individuo incorpora as ações mentais, capacidades e procedimentos lógicos ligadas a esses conceitos e vice-versa. Ele escreve:

Os conhecimentos de um indivíduo e suas ações mentais (abstração, generalização, etc.) formam uma unidade. (...) É legítimo considerar o conhecimento, de um lado, como o resultado das ações mentais que implicitamente abrangem o conhecimento e, de outro, como um processo pelo qual podemos obter esse resultado no qual se expressa o funcionamento das ações mentais. Conseqüentemente, é totalmente aceitável usar o termo “conhecimento” para designar tanto o resultado do pensamento (o reflexo da realidade), quanto o processo pelo qual se obtém esse resultado (ou seja, as ações mentais). (DAVYDOV, 1988, p. 21)

Para Davídov, o conteúdo da atividade de aprendizagem escolar é o conhecimento teórico. A referência básica do processo de ensino são os objetos científicos (os conteúdos), que precisam ser apropriados pelos alunos mediante a descoberta de um princípio interno do objeto e, daí, reconstruído sob forma de conceito teórico na atividade conjunta entre professor e alunos. A reconstrução e reestruturação do objeto de estudo constituem o processo de interiorização, a partir do qual se reestrutura o próprio modo de pensar dos alunos, assegurando, com isso, seu desenvolvimento mental.

A formação dos conceitos e do pensamento teórico-científico ocorre por meio da ascensão do abstrato ao concreto. Para isso, trata-se inicialmente de ir ao cerne dos conceitos, buscando a determinação primeira de relações por meio da análise do conteúdo trabalhado, o que corresponde ao percurso do método da reflexão dialética. Em seguida, os alunos vão verificando como esta relação geral se manifesta em outras relações particulares do material estudado, seguindo o caminho da abstração à generalização. Esse modo de estruturação das disciplinas escolares contribui para formar nos escolares um pensamento científico-teórico, condição para o desenvolvimento mental. Ele escreve:

Quando os alunos começam a usar a abstração e a generalização iniciais como meios para deduzir e unir outras abstrações, eles convertem as estruturas mentais iniciais em um conceito, que representa o “núcleo” do assunto estudado. Este “núcleo” serve, posteriormente, às crianças como um princípio geral pelo qual elas podem se orientar em toda a diversidade do material curricular factual que têm que assimilar, em uma forma conceitual, por meio da ascensão do abstrato ao concreto. (Ib., p. 22)

O procedimento didático a ser seguido na interiorização de conceitos de uma disciplina escolar depende do exame das condições históricas em que foram originados e que os levaram a se tornar essenciais, ou seja, os conceitos não se dão como “conhecimentos já prontos”, devendo ser deduzidos a partir do modo geral de sua constituição e do abstrato. Por sua vez, a formação dos conceitos e a generalização em relação ao material estudado dependem da realização de tarefas de aprendizagem que possibilitem o exercício de operações mentais da transição do universal para o particular e vice-versa.

Resulta daí a importância da análise do conteúdo como base para o ensino de uma disciplina, a partir da busca do desenvolvimento histórico que vai levando à constituição do objeto de estudo ligada, bem como a consideração dos motivos do aluno (já que se trata de um ensino para o desenvolvimento humano).

Em síntese, podemos dizer, em primeiro lugar, que aprender a pensar teoricamente é pensar e atuar com conceitos, ou seja, formar ações mentais. Trata-se de internalizar, apropriar-se de um modo geral de ação mental próprios da ciência ensinada, que possibilita a apropriação da realidade, aplicando um conceito geral a situações

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particulares. Em segundo lugar, formam-se conceitos por meio da formação de ações mentais (procedimentos lógicos), que permitem representar coisas no nosso pensamento. Em terceiro lugar, o caminho para a formação de ações mentais está nos processos de investigação e constituição de uma ciência (aprender o processo de origem e desenvolvimento das coisas e acontecimentos) decorrendo, daí, a relação mútua entre conteúdos e ações mentais. Davídov recomenda a aprendizagem baseada em problemas e o ensino com pesquisa, em que o professor intervém ativamente nos processos mentais das crianças e produz novas formações da atividade mental por meio dessa intervenção.

c) O caminho da aprendizagem

O planejamento de ensino começa com a análise de conteúdo, em que primeiramente se buscam as relações fundamentais, essenciais, ou seja, a formulação de uma idéia que expressa o princípio interno do tema em estudo (que é o conceito nuclear), e descobrir como esta relação aparece em muitos problemas específicos.O princípio interno é a relação geral estabelecida entre os vários elementos que constituem um objeto de estudo, captada no processo de desenvolvimento e constituição desse objeto na prática social e histórica. Essa análise tem a ver com a identificação do caminho percorrido pelo cientista para apreender o objeto de investigação. Segundo Chaiklin:

O propósito da atividade de aprendizagem é ajudar os alunos a dominarem as relações, abstrações, generalizações e sínteses que caracterizam os temas de uma matéria. Este domínio é refletido na sua habilidade para fazer reflexão substantiva, análise e planejamento. A estratégia educacional básica para dar aos alunos a possibilidade para reproduzir pensamento teórico é a de criar tarefas instrucionais cujas soluções requeiram a formação de abstrações substantivas e generalizações sobre as idéias centrais do assunto. Esta aproximação é fundamentada na idéia de Vygotsky da internalização, isto é, alguém aprende o conteúdo da matéria aprendendo os procedimentos pelos quais se trabalham os temas específicos da matéria” (Chaiklin 1999. p. 191).

O segundo passo consiste em identificar os conceitos básicos ou noções-nucleares, a partir da análise de conteúdo, de modo a organizar os tópicos do plano de ensino. Esses tópicos precisam estar adequados aos motivos dos alunos, pois os conteúdos devem mobilizar motivos, forma pela qual atuam no desenvolvimento da personalidade.

O terceiro passo do caminho da aprendizagem é a identificação das ações mentais a desenvolver, ou seja, o que se deseja que os alunos internalizem (ou se apropriem) em relação a conceitos que serão utilizados como ferramentas mentais.

O quarto passo é a formulação de tarefas de aprendizagem em que a relação geral aparece em problemas específicos, em casos particulares. As tarefas são, por exemplo, exploração de materiais, planejamento de experimentos, exercícios de análise e síntese, comparação, dedução, resolução de problemas, correlações de causa e efeito, formulação de hipóteses, etc.

Finalmente, é preciso formular procedimentos de avaliação formativa e somativa em relação à interiorização de conceitos (formação de ações mentais).

Verifica-se que o caminho didático implica conteúdos e objetivos, mas estes somente fazem sentido se os alunos são ajudados na formações de suas ações mentais. Na verdade, o grande objetivo é construir dispositivos didáticos sólidos que permitam a identificação das operações mentais a realizar e prever as situações pedagógico-didáticas em que será posta em prática. Meirieu escreve que “nenhum conteúdo existe

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fora do ato que permite pensá-lo, da mesma forma que nenhuma operação mental pode funcionar no vazio”, ou seja, a formação de ações mentais supõe os conteúdos, pois as ações mentais estão já presentes nos processos investigativos e procedimentos lógicos da ciência ensinada. Em concordância com a perspectiva teórica de didática trazidos neste texto, escreve sabiamente Meirieu:

Na verdade, mais do que a elaboração de instrumentos, o quer párea nós importa é o procedimento didático que tentamos promover, aquele consiste não simplesmente em proclamar o que queremos que o aluno saiba, mas sim, em questionar a respeito do que deve se passar em sua cabeça para que chegue onde queremos, e criar, a partir daí, o dispositivo que dá corpo e vida à operação mental identificada. O que importa é a capacidade do professor de traduzir os conteúdos de aprendizagem em procedimentos de aprendizagem, isto é, em uma seqüência de operações mentais que ele procure compreender e instituir na sala de aula. O que importa é fazer de um objetivo programático um dispositivo didático, e isso só é possível através da análise da atividade intelectual a ser desenvolvida e através da busca das condições que garantem seu êxito (MEIRIEU, 1998, p. 117)

Para ilustrar a noção de caminho didático para formar e atuar com conceitos, podemos dar um exemplo sobre ensinar e aprender em tópicos de educação ambiental. A educação ambiental ocupa-se de processos intencionais de comunicação e interiorização de saberes – conhecimentos, experiências, habilidades, valores, modos de agir – cabendo ao ensino organizar os conteúdos, prever objetivos na forma de ações mentais e desenvolver e formas metodológicas e organizativas do ensino. O resultado esperado desse ensino é o desenvolvimento de capacidades de pensar e agir ambientalmente, para o que se vai em busca da origem e desenvolvimento histórico dos conteúdos, processos de investigação e modos de agir da educação ambiental. Isso implica apropriar-se de modos de aplicação de modos de investigação e processos de pensamento aplicados na análise de problemas e situações concretas relacionados com o ambiente. Desse modo, a correta didática da educação ambiental consistiria em ajudar os alunos a captar o percurso da investigação pelo qual vai se constituindo o saber ambiental e descobrir o caminho metodológico pelo qual podem interiorizar esse percurso, para que aprendam a pensar e a agir autonomamente em relação a práticas sócio-ambientais. Assim, o aluno internaliza o modo geral de ação menta, ou seja, adquire um método teórico geral sobre a educação ambiental, para aplicá-lo a situações particulares da realidade. Está é a idéia que está por detrás da expressão “conhecimento teórico-científico”.

4. O papel da didática na formação de professores: teoria e prática

Os professores realizam um trabalho que se caracteriza por uma atividade humana peculiar, a atividade pedagógica. Toda atividade humana está dirigida a um objeto que, no caso da atividade pedagógica, é outra atividade, a atividade de aprendizagem. A noção de atividade assumida na teoria histórico-cultural implica o princípio da unidade entre a mente e a atividade, ou seja, uma atividade de mentalizar e uma atividade material, objetiva, uma referida à outra, uma impregnando a outra, de modo a podermos dizer que, no nosso comportamento, no nosso ser, há uma unidade indissolúvel das duas dimensões da existência humana, a teoria e a prática. Essa relação define a natureza da práxis pedagógica: a atividade humana prática fundamentada teoricamente. Em sentido mais específico, a atividade interna do sujeito possui uma estrutura constituída pelas necessidades, motivos, finalidades e condições de realização. Por sua vez, a realização da finalidade posta para a atividade, em determinadas condições, depende da realização de diversas ações, cada ação composta por uma série de operações em correspondência com as condições peculiares da tarefa (Cf. LEONTIEV, p.82). Assim, atividade surge de necessidades, que impulsionam motivos

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orientados para um objeto. O ciclo que vai de necessidades a objetos se consuma quando a necessidade é satisfeita, sendo que o objeto da necessidade ou motivo é tanto material quanto ideal. Para que estes objetivos sejam atingidos, são requeridas ações. O objetivo precisa sempre estar de acordo com o motivo geral da atividade mas são as condições concretas da atividade que determinarão as operações vinculadas a cada ação. Segundo Leontiev:

(A atividade se refere) “àqueles processos que, realizando as relações do homem com o mundo, satisfazem uma necessidade especial correspondente a ele. (...) Por atividade, designamos os processos psicologicamente caracterizados por aquilo que o processo, como um todo, se dirige (i.e, objeto), coincidindo sempre com o objetivo que estimula o sujeito a executar essa atividade, isto é, o motivo”.(1988, p.68).

Com base nesse entendimento, o professor realiza uma atividade pedagógica no decurso da qual são realizadas ações e operações, tendo em vista o objetivo. Desse modo, o trabalho do professor é uma atividade teórico-prática, nem só teoria nem só prática, mas uma atividade prática que é sempre teórica, sempre pensada, um movimento do pensamento, do que resulta uma prática pensada. Ou seja, a prática profissional de professores não é uma mera atividade técnica, ou seja, não se constitui como mero fazer resultante de habilidades técnicas, mas como atividade teórica e prática.

Da consideração de que o objeto de trabalho da atividade pedagógica é a atividade de aprendizagem, resultam três coisas: a) a atividade de aprendizagem refere-se à apropriação pelo aluno de conhecimentos, habilidades e modos de ação; b) os modos de realizar a atividade pedagógica precisam ser aprendidos, ou melhor, apropriados por quem vai desempenhar essa atividade; ou seja, na formação profissional, a atividade pedagógica converte-se em atividade de aprendizagem, de modo que as diretrizes de formação profissional precisam orientar sobre os modos pelos quais deve ser conduzida a atividade de aprendizagem; c) a atividade pedagógica tem como centro (núcleo) a tarefa de aprendizagem (ou tarefas cognitivas como análise e síntese, comparação, solução de problemas, formulação de hipóteses, etc.) que mobilizam a atividade de aprendizagem dos alunos em relação à apropriação de conceitos científicos3.

Verifica-se, assim, que a formação profissional de professores, na perspectiva adotada aqui, baseia-se num pressuposto ineludível da teoria histórico-cultural: a educação escolar tem uma influência decisiva no desenvolvimento mental e essa formação escolar só é boa se essa influência acontece. Ora, a formaçao do aluno depende principalmente da apropriação dos conhecimentos cientificos. Esta posição não admite a ideia corrente, principalmente em documentos do Banco Mundial e com larga influência na educação brasileira, de que crianças de estratos sociais empobrecidos não conseguem entender o conceito e, portanto, o ensino fundamental deve ser limitado ao domínio de conhecimentos elementares, práticos, tais como ler, escrever, contar. Nessas condições, alunos acabam tendo um descompasso em seu desenvolvimento mental,

3 Sobre isso, Dayidov e Markova escrevem que a tarefa de aprendizagem representa a operacionalização da abordagem do ensino voltado para o desenvolvimento. Segundo eles, “o principal conteúdo da atividade educativa é a assimilação (apropriação) de métodos generalizados de ação no domínio dos conceitos científicos e as mudanças qualitativas que vão ocorrendo, em decorrência disso, no desenvolvimento mental da criança. (...) A aprendizagem não é apenas a aquisição de um domínio do conhecimento... é, principalmente, um processo de mudança, de reorganização e enriquecimento da própria criança” (p.6). Ou seja, a tarefa de aprendizagem como centro da atividade pedagógica é o procedimento peculiar que possibilita a participação ativa do aluno no processo de aprendizagem.

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passando toda o período do ensino desenvolvimental sem formar no nivel desejado suas capacidades, compromentendo toda a aprendizagem escolar posterior. Para contrapor a essa situação, será preciso pensar a formação para a atividade pedagógica com base em outro conceito de atividade de aprendizagem, ou seja, aquele que a compreende como apropriação de conceitos científicos e, através deles, a formação de capacidades intelectuais.

Os elementos constitutivos da didática e as categorias que formam seu conceito, bem como as considerações sobre a mediação didática no processo ensino-aprendizagem, possibilitam dimensionar a configuração da atividade pedagógica, condição básica para definir o conteúdo da formação profissional dos professores. Se se trata de priorizar na escola a apropriação de conceitos científicos, está claro que o objeto de investigação da didática é o processo de ensino-aprendizagem em relação à assimilação de conhecimentos e modos de ação. Tem-se, então, como pressuposto, que a questão central do ensino é o conhecimento, ou melhor, o processo mental do conhecimento ou, ainda, o desenvolvimento das capacidades mentais dos alunos por meio dos conhecimentos sistematizados nos conteúdos escolares. Assim, a atividade de ensino volta-se para a aprendizagem desse conhecimento em função da formação da personalidade dos alunos.

Sendo assim, para que um professor transforme as bases da ciência em que é especialista, em matéria de ensino, e com isso oriente o ensino dessa matéria para a formação da personalidade do aluno, é preciso que ele tenha, pelo menos: a) domínio do conteúdo da matéria, como condição imprescindível para fazer análise dos conceitos, organizá-los em função dos motivos dos alunos e do desenvolvimento de suas capacidades intelectuais, e manejá-los com competência; b) conhecimento pedagógico do conteúdo, ou seja, saber ligar os princípios gerais que regem as relações entre o ensino e a aprendizagem com problemas específicos do ensino de determinada matéria; c) responsabilização pelo papel educativo do processo docente, ou seja, orientar o ensino dos conteúdos para a formação da personalidade (ensino para o desenvolvimento humano); c) conhecimento das características individuais e sociais dos alunos; d) conhecimento das práticas socioculturais e institucionais em que os alunos estão envolvidos e as formas como atuam na aprendizagem; e) provimento das condições que propiciam o trabalho ativo e criador dos alunos, nos processos de seu desenvolvimento intelectual.

Esses requisitos da formação profissional indicam muito claramente que a aprendizagem da profissão requer, aos menos, quatro características profissionais do professor. Em primeiro lugar, a apropriação teórico-crítica de conhecimentos, sejam aqueles de fundamentos da educação sejam aqueles relacionados como conhecimento profissional específico (a didática, as metodologias específicas, o conteúdo das matérias quem irão ensinar). São conhecidas as deficiências na formação de professores, especialmente das séries iniciais do ensino fundamental, em relação ao domínio de conteúdos e à apropriação de ferramentas cognitivas (Cf., por ex., LIBÂNEO, 2010c).

Uma segunda característica da formação é a apropriação de metodologias de ensino e de formas de agir que dêem melhor qualidade e eficácia ao trabalho docente. A atividade pedagógica se caracteriza por ações que impulsionam a atividade de aprendizagem e, para isso, são requeridas capacidades e habilidades específicas, providas pelo conhecimento pedagógico do conteúdo. Pela sua natureza, o trabalho educativo é um trabalho prático, entendendo “prático” no sentido de envolver uma ação intencional, pensada, dirigida a objetivos. O professor aprimora o seu trabalho apropriando-se de instrumentos de mediação desenvolvidos na experiência humana, que

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tornam mais eficaz o ensino das matérias e a formação de ações mentais pelos alunos. Não se trata de tecnicismo, mas de associar de modo mais efetivo o modo de fazer e o princípio teórico-científico que lhe dá suporte. A reflexão sobre a prática não resolve tudo, a experiência refletida não resolve tudo. São necessárias estratégias, procedimentos, modos de fazer, com o suporte do conhecimento teórico, que ajudam a orientar com mais competência a aprendizagem dos alunos.

A terceira característica é o conhecimento das características individuais e socioculturais dos alunos, pois a atividade de aprendizagem é, tipicamente, uma atividade do aluno, visando mudanças qualitativas no aluno, no seu desenvolvimento. O conhecimento dos alunos é necessário para a análise dos conteúdos e organização do plano de ensino. É o momento em que o professor formula tarefas de aprendizagem com suficiente atrativo para canalizar os motivos dos alunos para o conteúdo. Esta é a maneira de ligar o conteúdo e o desenvolvimento da personalidade

A quarta característica diz respeito ao conhecimento do papel das práticas socioculturais e institucionais na motivação e aprendizagem dos alunos. Não basta obter o conhecimento teórico e os meios pedagógico-didáticos de melhorar e potencializar a aprendizagem dos alunos, é preciso considerar os contextos concretos em que se dá a formação. Não se pode separar as pessoas que atuam e o mundo social da atividade.

Permeando estes quatro aspectos da formação de professores, estão as convicções ético-politicas. É preciso que no processo de formação os estudantes vão aprendendo a colocar-se frente à realidade, apropriar-se do momento histórico de modo a pensar historicamente essa realidade e reagir a ela, numa direção emancipadora. A dimensão crítica da atividade profissional permeia todo o processo de formação, já que o processo do conhecimento é histórico, implicando uma cultura crítica em relação aos objetos de conhecimento e à atividade profissional.

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