Entrevista Kabengele Munanga

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    ARA O ANTROPLOGO Kabengele Munanga, professor-titular da Faculdadede Filosofia, Letras e Cincias Humanas daUSP, no fcil definir quem negro no Brasil. Em entrevista concedida a E STUDOS A VANADOS , no ltimo

    dia13 de fevereiro, ele classifica a questo como problemtica, sobretudo quando

    se discutem po lticas de ao afirmativa, como cotas para negros em universidadespblicas.Com os estudos da gentica, por meio da biologia molecular, mostran-do que muitos brasileiros aparentemente brancos trazem marcadoresgenticosafricanos, cada um pode se dizer um afro-descendente. Trata-se de uma decisopoltica, afirma.

    Kabengele Munanga atual-mente vice-diretor do Centro deEstudos Africanos e do Museu deArte Contempornea daUSP.

    Nasceu em 19 de novembro de1942 no antigo Zaire, onde recebeusua educao primria e secundria.Sua educao superior ocorreu emseu pas natal, de 1964 a 1969 . Foio primeiro antroplogo formadona ento Universit Officielle duCongo, em Cincias Sociais (Antro-pologia Social e Cultural).

    No mesmo ano em que se gra-duou, recebeu uma bolsa do gover-no belga, como pesquisador noMuseu Real da frica Central, emTervuren e comoaluno do programade ps-graduao na UniversidadeCatlica de Louvain, na Blgica.Essa bolsa foi interrompida em1971, por questes polticas, antesda concluso de seu doutorado.

    Em julho de1975, veio aoBrasil com uma bolsa daUSP, a fim

    P

    A difcil tarefa de definirquem negro no Brasil

    E N TR EVISTA DE K ABEN GELE M U N A N G A

    Andr Cypriano . Pai e filho , R io de Janeiro ,1999 . Fotografia P/ B , Coleo particular .

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    K aben gele Mun an ga Por ocasio dos trezentos anos da morte de Zumbidos Palmares, em1995, comeamos a discutir essa questo naUSP, numa comisso

    criada pela reitoria.Os movimentos negros, principalmente o Ncleo da Conscincia Negra,pleitearam o estabelecimento de cotas em nossa universidade. Contudo, afirmeique no poderamos discutir o sistema de cotas sem antes fazer uma pesquisapreliminar em pases que j tm experincia de cotas, como osEU A, o Canad, aAustrlia ou a ndia.

    Naquela ocasio, apresentei essa proposta, mas ela no foi levada adiante.No entanto, na base de um levantamento do Instituto de Pesquisa EconmicaAplicada(IPEA), um rgo do governo federal, conclui-se que realmente huma grande defasagem na escolaridade dos negros nas universidades brasileiras.

    Infelizmente, porm, comeamos a enfrentar a questo pelas cotas, a partirda deciso do governador Anthony Garotinho, do Rio de Janeiro, que provocouuma confuso muito grande, quando estabeleceu cotas nas universidades estaduais.No entanto, mesmo num pas com tantas desigualdades, as polticas universalistasno resolvem o problema do negro. Para isso precisamos formular polticas espe-cficas contra as desigualdades, mas o caminho no deve ser necessariamente pormeio de cotas.

    Essa discusso, todavia, importante, porque antes nem se tocava noassunto. Escutei outro dia algo muito positivo quando algum dizia que deveriahaver cotas para pobres. Ora, antes ningum apresentou esse ponto de vista. O

    que mais me surpreende que jamais o movimento negro se disse contrrio acotas para brancos pobres.A questo ainda est mal discutida, sendo formulada num tom passional,

    tanto pelos negros como pelos intelectuais. A questo no a existncia ou nodas cotas. O fundamental aumentar o contingente negro no ensino superior deboa qualidade, descobrindo os caminhos para que isso acontea.

    Para mim, as cotas so uma medida transitria, para acelerar o processo.No entanto, julgo que no somente os negros, mas tambm os brancos pobrestm o direito s cotas. Se as cotas forem adotadas, devem ser cruzados critrioseconmicos com critrios tnicos. Porque meus filhos no precisam de cotas,assim como outros negros da classe mdia.

    E STUDOS A VANADOS O sr. iniciou suas declaraes dando uma opiniocont ra as cotas, mas agora aponta para o problema da urgncia. As cotas aparecemcomo uma medida de urgncia?

    K aben gele Mu n an ga Sim. Ao menos que o pas diga que tem hoje umaoutra proposta emergencial melhor, que no abra mo de uma poltica universalistacom vistas ao aperfeioamento do nvel do ensino bsico. bom lembrar que aescola pblica j apresentou melhor qualidade, mas o negro e o pobre no entra-vam nela.

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    Melhorar a escola p blica E STUDOS A VANADOS O sr. acha que a mdio prazo a alternativa seria uma

    transformao mais profunda do ensino bsico e secundrio? Um nmeroconsidervel de alunos negros faz o segundo grau em escolas pblicas. No falodeles como negros, mas sim como pobres. Ser que as cotas no resolvem oproblema porque o enfrentam no fim da linha, em vez de atac-lo no comeo?

    K aben gele Mu nan ga Sim. Porm, vivo aqui h 28 anos e desde que chegue iescuto esse discurso. Mas nunca vi luta poltica e social alguma para a melhoriada escola pblica. S h o discurso. Mas o que fazer com a vtima? Esperar queisso acontea por milagre, ou pressionar a sociedade atravs de uma proposta:como pelo menos cuidar da escola pblica?

    A dvida que tenho a seguinte: num pas onde a privatizao do ensino

    cada vez maior e no qual olobby das escolas particulares to forte, s possoantever uma melhoria a longo prazo. Lembro-me de que o primeiro processocontra as propostas de cotas no Rio de Janeiro veio do sindicato das escolasprivadas.

    Devido a essa tendncia para a privatizao das escolas pblicas, no acreditonuma rpida melhoria delas. A desigualdade social que existe h quatrocentosanos no pode ser resolvida por meio de polticas universalistas. preciso,por tanto, traar polticas especficas para se encontrar uma soluo.

    A discriminao r acialA palavra social incomoda-me muito. Quando dizem que a questo do

    negro uma questo social, o que quer dizer social? As relaes de gnero souma questo social; a discriminao contra o portador de deficincia uma questosocial; a discriminao contra o negro uma questo social. Ora, o social temnome e endereo. No podemos diluir, retirar o nome, a religio e o sexo e aplicaruma soluo qumica. O problema social tem de ser atacado especificamente.

    A discriminao racial precisa ser urgentemente enfrentada. Ns, negros,tambm temos problemas de alienao de nossa personalidade. Muitas vezes tra-balhamos o problema na ponta do iceberg que visvel. Mas a base desse icebergdeixa de ser trabalhada.

    Estou aqui, como disse, h28 anos. Vou a restaurantes utilizados pela clas-se mdia e a centros de alimentao nosshoppings . Encontro famlias brancas co-mendo (homem, mulher e filhos), mas dificilmente esto ali famlias negras. H uma classe mdia negra, mas que se autodiscrimina e que tambm discriminada.Desafio vocs a me dizerem que encontraram quatro famlias negras em cincorestaurantes de classe mdia em So Paulo. Vejamos o meu caso: em meu segundocasamento (que interracial) percebia aquelas olhadas mulher branca, filhosnegros do primeiro casamento e filhos mestios do segundo. Ningum meexpulsava desses lugares, mas eu via as olhadas...

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    As pesqu isas na U niversidade de So P aulo E STUDOS A VANADOS AUSPest completando setenta anos e gostaria que

    o sr. falasse sobre as principais linhas de pesquisa sobre gnero e raa na Faculdadede Filosofia, Letras e Cincias H umanas.Kabengele Munanga At onde eu saiba no h uma linha de pesquisa

    sobre gnero e raa. H um n cleo de estudo da mulher, dirigido pela professoraEva Blay. D e vez em quando ela convida alguma jovem pesquisadora negra. Talvezexista uma explicao h ist rica para isso, po rque normalmente qu em estuda essetema so as mulheres. Mas, no temos professoras negras de sociologia ou deantro pologia na U niversidade de So Paulo. En trei nela em 1980 , como professor,e nun ca mais houve um outro pro fessor negro no Departamento . Lembro-me dodia em que Florestan Fernandes recebeu o ttu lo de pro fessor emrito e eu estava

    na fila para cumpriment-lo. Eu no sabia que ele me conhecia. Po r isso assustei-me qu ando ele me disse que estava muito contente com a minha presena naquelasolenidade. Po is fora informado de q ue ali estava um negro que nem era brasileiro.

    U m antroplogo em dois mun dos E STUDOS A VANADOS O sr. poderia descrever um pouco sua trajetria at

    chegar no Brasil?K aben gele Mu nan ga Nasci no antigo Zaire, que hoje se chama Repblica

    Democrtica do Congo, numa aldeia no centro do pas. Estudei num colgiointerno de jesutas e fiz graduao em Antropologia. Alis, fui o primeiroantroplogo formado naquela universidade e o nico aluno que teve aulas comprofessores franceses, belgas e americanos convidados, pois no havia ainda profes-sores africanos na Universidade quando eu entrei L, ns acabvamos a graduaocom um tipo de dissertao que se chamava Mmoire . O sistema belga dava odireito de se entrar diretamente no doutorado. Em razo disso, comecei odoutorado em Louvain, na Blgica, em1969. Dois anos depois, voltei parapesquisas de campo. Mas houve complicaes polticas. Cortaram a bolsa e nopude fazer mais nada.

    Por coincidncia, encontrei no Congo, em1973, o professor FernandoMouro, que ali estava realizando palestras sobre as contribuies africanas paraa cultura brasileira. Conversamos e ele me disse que aUSPpossua um projeto de

    cooperao com as universidades africanas e que nela eu poderia completar odoutorado. Cheguei aqui em1975e me inscrevi no doutorado, sob a orientaodo professor Joo Batista Borges Pereira. Como eu estava bastante adiantado,em dois anos defendi minha tese. Trabalhei sobre o processo de mudanas socio-econmicas numa comunidade no sul do Congo. Voltei correndo militnciapara colocar meus conhecimentos disposio de meu pas. Mas quando chegueil, tive de fugir para o Brasil.

    Quando houve a independncia do meu pas, o antigo Zaire (em30 de junho de1960), eu estava com dezoito anos. A Faculdade foi criada pela Blgica,

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    seis anos antes da independncia, em conseqncia de presses internacionais.Fui alfabetizado na minha lngua materna, mas no fim do primeiro grau comeou

    o ensino em francs. O resto do curso foi em francs. Isso porque, com mais deduzentas lnguas, no era possvel escolher uma para ser a lngua nacional. Todosos alfabetizados falam francs.

    E STUDOS A VANADOS Alguma dessas lnguas africanas hegemnica?K aben gele Mu n an ga O suahili que uma lngua falada em muitos pases

    africanos, em parte do Zaire, Tanznia, Burundi, Qunia e Uganda. E STUDOS A VANADOS Suahili tem alguma coisa a ver com o rabe?K aben gele Mu n an ga Cerca de vinte por cento do vocabulrio, porque

    desde a Antigidade os rabes tiveram muita influncia no continente, a partirdo oceano ndico, alm de terem sido responsveis pelo trfico oriental e

    transaariano (entre os anos de600-1600). Mas a estrutura da lngua totalmentebantu (africana). E STUDOS A VANADOS Muito obrigado.