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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇAO EM ARTES VISUAIS - PPGAV ESCOLA DE BELAS ARTES - EBA . escrita de auto-paisagem . paula scamparini TEXTO PARA DEFESA DE TESE DE DOUTORAMENTO LINHA DE PESQUISA: POÉTICAS INTERDISCIPLINARES ORIENTAÇÃO : PROFA. DRA. MARIA LUISA FRAGOSO

escrita de auto-paisagem

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tese de doutorado

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. escrita de auto-paisagem .

universidade feDeRal do rio de janeiro - UFRJPrograma de Ps-Graduaao em Artes Visuais - PPGAVescola de belas artes - EBA

. escrita de auto-paisagem .

paula scamparini

texto para defesa de tese de doutoramentolinha de pesquisa: poticas interdisciplinaresorientao : profa. dra. maria luisa fragoso

rio de janeiro, maro de 2014

Eu quero ser sempre aquilo com quem eu simpatizoE eu torno-me sempre mais cedo ou mais tardeAquilo com quem eu simpatizoE eu simpatizo com tudo...Como eu sou rei absoluto na minha simpatiaBasta que ela exista para que tenha razo de ser...

Fernando Pessoa

(imagem-trecho retirado de Drama 3oato Maria Bethnia, LP 2:2 : Philips, 1973)

introduo04sobre inmeras introdues possveis a esta tese 11sobre o que se constri : no quase nada mas tudo o que tenho a oferecer 12

parte 1 . eis o processo 16.1 vento de terra : desejo 22.2 percursos em que me perco : cartografias ntimas32.3 colheita : arqueologias documentais 42

parte 2 de 1 . intimus modus operandis 44.1 o fazer . escolhas afetivas : descrio dos dias50.2 acionar . experincias nr. ou : matar a cobra e mostrar o pau60.3 anlise . narrativas monofnicas doadas polifonia : o escrito lido em realidade82

parte 2 . mundo em paisagem 90.1 nossa formulao de paisagem : s verdades acreditadas96.2 aprendizagem dos prazeres : o entre-lnguas108.2.1 o si representado : retrato111.2.2 o caminho em redes : do mostrar a lngua por a120

parte 3 . linguagem e paisagem . de quando a palavra escorre em direo ao fora132.1 em direo s palavras : sul le experinces sans numro136.2 a construo do ilegvel: legibilidade provisria 148.2.1 o verescrever em indecidibilidade torrente154.3 indcios de batlerby : da intimidade nasce o incmodo158

consideraes finais. palavra de horizonte (ou) para onde os passos levam 180

referncias bibliogrficas190lista de imagens196

introduo

O texto que se apresenta para defesa de tese de doutorado em Poticas Interdisciplinares pelo PPGAV-UFRJ, fruto de pesquisa terico-prtica desenvolvida no curso dos ltimos 4 anos. A discusso apresentada localiza-se na valorizao do trnsito entre produo e reflexo artsticas, e tem como proposio defender um processo artstico a partir da investigao do que aqui se nomeia auto-paisagem. Investigao esta que se d a partir da experienciao em deslocamento, de forma que suas resultantes peas ou obras artsticas finalmente conduzam a um corpo observvel e coerente de trabalho. Defendemos que o fazer artstico dedicado a investigar o termo auto-paisagem traga reflexes relevantes ao campo da arte e que, para alm deste processo, seja capaz de doar novos possveis significados a conceitos caros a este, tais como paisagem, linguagem e experincia. O fazer artstico acompanhado pelo estudo dos conceitos gera, por contaminao, o processo de trabalho que aqui descrevemos. A presente reflexo apresenta-se, portanto, a partir da descrio do processo empreendido neste perodo, e procura, em seu decorrer, para alm de contextualizar suas questes e buscar afirmar suas hipteses, explicitar a costura entre teoria e prtica artstica pelas vias do relato e da narrativa.No intuito de empreender uma forma possvel de auto-paisagem partimos da anotao de indcios da experincia cotidiana (via registro dos percursos cultivados) e procuramos disp-los em camadas (via escrita e documentao imagtica). Desta forma acreditvamos posteriormente sermos capazes de indicar um todo (corpo de trabalho) fragmentado mas moldado por pensamento e exerccio processual voltado discusso da auto-paisagem construda. Porm, assim como a linguagem s se oferece alteridade a partir da premissa de que o outro tenha as ferramentas para decifr-la e se dedique a faz-lo, o todo a qual nos referimos no se oferece em completude. A partir de tal recusa pudemos trazer tona o carter complexo e ilegvel de nossas trocas, e assim pudemos desvelar algo do domnio de nosso ntimo. Assumindo o carter ntimo como parte de nosso discurso, conduzimos ento este fazer para o exerccio da linguagem, num inicial entrelaar palavra e imagem. Procuramos, no intuito de produzir espaos de troca, criar dispositivos imago-lingusticos - que poderamos nomear conectivos-imagticos se remetendo-nos aos conectivos-lingusticos capazes de doar sentido escrita que, ofertados, fossem passveis de estabelecer formas de encontro, conduzindo ou desviando o possvel interlocutor num entre-assertivas. Pretendamos assim construir dispositivos dedicados a gerar extrato/imagem terceiros, derivados do encontro empreendido via obra artstica, que permitisse entrever o vis inacessvel da relao com o outro - questo que tanto nos interessa e que aqui se desenvolve em processo mais que em discusso e que garantisse, assim, uma legibilidade potica em potncia. Desta forma, ao ser ativado pelo interlocutor, afetando-o, alcanaria ou desvelaria substratos de um ntimo compartilhado (um originrio humano, talvez) substratos estes que ns mesmos desconhecemos caso nos mantenhamos ao nvel da conscincia[footnoteRef:1]. [1: Fica posto que no tratamos aqui de teorias psicanalticas que se possam aplicar a um estudo mais aprofundado dos aspectos da conscincia humana, mas nos debruamos em exercitar artisticamente e observar atentamente imagens da memria imediata, pela prtica de registros e colees.]

A investigao acerca da linguagem - tratada aqui em vieses eleitos (por ns) e (a ns) relevantes, sobretudo enquanto aprendizado de mundo - ou debate sobre nossas heranas culturais e visuais - se faz inevitvel caso queiramos dar novos significados a conceitos e termos caros ao campo da arte. Defendemos, portanto, que o domnio da prpria linguagem (termo aberto[footnoteRef:2] que se constri complexo neste caminhar, se desenha e redesenha continuamente nesta escrita) atravs da prtica artstica permita ao humano (e a ns artistas), formular mundo e a si mesmos de forma que seja capaz de estender tal exerccio ou aprendizado para alm de si, atravs de suas resultantes, obras ou aes artsticas. [2: No sentido em que Umberto Eco prope em seu clebre obra aberta (1993)]

Assim, voltados inicialmente para o manuseio de nossas linguagens, colocamo-nos diretamente s voltas com as suas formas, passando a utiliz-la e a acess-la propriamente, no apenas em reflexo mas tambm como matria do fazer-artstico[footnoteRef:3], atravs da criao de escritos (fabulares). Esta aproximao nos fora instintiva e ata desde o incio deste processo nossa implicao com a linguagem (literria, artstica...) , culminando finalmente na construo de um discurso prprio : o repertrio de obras artsticas, aes e idias, definidor de nosso campo de trabalho particular, do qual aqui apresentamos parte significativa. [3: A apreciao dos trabalhos/obras realizados deixa clara essa afirmao introdutria sobre a qual discutiremos longamente adiante.]

Ao longo deste processo de questionamento, ao procurarmos tornar conscientes conceitos adquiridos duma tradio histrico-cultural como paisagem, linguagem e retrato - , e movidos pelo desejo de sermos capazes de repensar tais conceitos, dedicamo-nos tambm investigao do que nomeamos ntimo, por meio de exerccios processuais e indcios de experincias que formam a (nossa) potica artstica. Apontamos para a construo de uma potica imagtico-textual a partir da investigao dos prprios processos de aprendizagem e da consequente formulao de reflexo e discurso artsticos - de mundo, atravs da experienciao da paisagem que culmina num conjunto que nomeamos verdades-acreditadas. Desta forma, torna-se inevitvel acessarmos espaos da intimidade (to sedutora quanto misteriosa) que em ns emerge potencialmente. Referimo-nos a um ntimo da ordem do impessoal, que age sobre nossa produo e pensamento e sobre o qual no temos controle (algo que indica o estudo das pulses, para adiante). Assim, a matria ntima que d corpo a este trabalho, e talvez sejam tambm ntimos os motivos desta investigao que finalmente se volta para o outro, a partir da suscitao do fora de si, de controle ou predefinio. ento, por nossa predisposio ao encontro, que o fazer aqui contemplado procura vislumbrar seu prprio sentido. Desta forma, possvel observar ao acompanhar este processo um movimento de oferta desta fala artstica no estender o processo de fazer artstico ao outro. Ressalta-se, assim, a importncia dos encontros, no apenas com as paisagens (que nos afetam e so inicialmente exteriores a ns), com o ntimo (que somos ns, o interior), e com a linguagem (que formulamos, nosso primeiro entre), mas com o interlocutor, para que o trabalho de fato se d, e para que esta potica em rede seja capaz de estabelecer algum tipo de afeto. Arriscamos dizer ento que uma vez que a linguagem nos formula, desdobrando-se, esta se constitui num acesso possvel ao originrio de cada um de ns e do outro. Caminhamos, portanto, pelas vias da ao investigativa do revelar os aprendizados (cultura, linguagem), as observaes e percepes (as paisagens) e finalmente a formulao singular e constante da prpria vida, a verdade de cada um de ns. Desta forma, a presente tese nomeia-se escrita de auto-paisagem: um todo investigativo voltado a, a fim de alcanarmos um corpo sensvel de trabalho (o nosso prprio), observarmos para alm de nossos limites, e cada vez mais atentamente, a paisagem (mundo) e o outro (a alteridade cultural), ou seja: aquilo que nos forma.

Considerando que a matria prima desta pesquisa so nossas dvidas, pelas quais valorizamos a incerteza em seu sentido salutar, ao ler o texto que se segue o leitor se deparar com um processo dedicado de trabalho, que apresenta muitas questes colocadas, algumas desenvolvidas e poucas concludas. Por considerarmos a prtica artstica como mola propulsora ou transformadora de tais questes, iniciaremos, portanto, nosso texto com uma espcie de relato narrativo, que ser aos poucos acrescido em ideias seminais, e que introduzir anlises intermedirias ao presente processo de pensamento. Assim, as partes do presente texto se complementam, desde os escritos em poca de qualificao aos posteriores a esta, que procuraram no desenvolvimento da prtica artstica indcios confirmadores de suas propostas, e atualmente indicam caminhos para investigaes num sequenciar inevitvel desta pesquisa.Porque a paisagem no seno um ponto de partida (SANTOS,2006:66)

Eis o processo, se inicia com uma breve introduo que apresenta alguns dos muitos conceitos ou termos que gravitam ao redor desta produo e reflexo, seguido de uma breve contextualizao do terreno sobre o qual acreditamos caminhar. Dada esta primeira introduo abrimos as portas para a leitura deste pensamento pelas vias das experincias artsticas que pudemos empreender nos primeiros anos deste processo. neste contexto que aqui damos as boas-vindas ao leitor, apresentando-nos sem pudores ou desvios atravs do relato do processo no apenas de produo das peas artsticas e aes, mas das reflexes imediatas ou anlises pelas quais passamos e que julgamos relevantes partilharmos com nossos interlocutores neste momento. Ainda, Nossa Parte 1 desmembra-se necessariamente em duas subpartes, uma vez que decidimos por incluir neste o memorial do processo propriamente dito (descrio dos passos), que nos parece enriquecedor leitura, pois traz implcitos muitos de nossos motivos elementares. Indicamos assim uma leitura corrida, descompromissada dos diversos trechos de carter ensastico, agrupados na Parte 2 de 1, nomeada intimus modus operandis, em que nos sentimos livres para usarmos uma escrita mais potica, ensastica, o que nos auxilia a apresentar nossas idias trazendo o leitor para o interior do processo. Os textos, muitos imagticos, convidam a caminhar conosco por nossos deslocamentos em direo ao desenvolvimento artstico e reflexivo proposto e apresentado. Desta forma, a Parte 1 apresenta tanto nossos pensamentos iniciais como os desdobramentos deste pensar e, pretendendo-se um ciclo expositivo, encaminha para o prximo terreno a ser enfrentado, o da formulao terica em desdobramento da prtica empreendida.

Adiante, na Parte 2 buscamos desenvolver os termos e conceitos que julgamos essenciais a este pensar-fazer. Intitulado mundo em paisagem o texto vem conduzir o leitor por um terreno reflexivo no qual procuramos desemaranhar os fios tecidos, e indicamos solues hipotticas das palavras que necessitamos dispor para comunicarmos nossos questionamentos mais pungentes, atravs das quais fomos capazes de intensific-los pelas vias artsticas. Ressaltamos sobre esta parte que fixar os sentidos desta trajetria no foi nosso objetivo neste rol de aproximaes tericas e encontro de interlocutores que aqui desenvolvemos, mas elaborar desdobramentos da prtica artstica, que revelassem sentidos na tentativa de agravar os problemas para deles extrair o substrato desejado. Fica portanto posto que o desenrolar da srie de reflexes fragmentarias que compem este texto apresentado enquanto tese torna-se mais evidente e aproxima-se de alguma possibilidade de completude ou dilogo mais fundamentado por encontrar-se, em seu decorrer linear, com as imagens dos trabalhos artsticos realizados durante este perodo de investigao, os quais nos possibilitam oferecer algo da matria indizvel que nos forma e inquieta, e que so esclarecedores de muito do pensar inscrito tambm adiante, na Parte 3. na Parte 2, portanto, que trazemos, com algumas defesas destes, termos que nos pareceram possveis para nomear aquilo que no encontramos correspondncia nas palavras que conhecemos. Assim pudemos perceber cedo que nossas reflexes requeriam o exerccio da linguagem escrita, a ser alongada em neologismos que nos permitissem comunicar aquilo que desejvamos. Esclarecemos que partimos da idia de linguagem termo que se configura questo central nesta investigao - adquirida enquanto aprendizado de mundo (ou formulao do humano- AGAMBEN,1995), e que, por exercermos em nosso processo o uso da escrita, essas reflexes se entrelaam e definem o caminhar desta prtica, passando pela inevitvel formulao de narrativas e de discursos. Escolhemos, porm, narrativa como indicativa de experincia, conforme Benjamin (1993) prope. Experincia de vida que, partida aos pedaos, nos parece ser formatvel e manipulvel atravs da observao, e editvel e montvel enquanto sequncia. Dispondo de produtos fracionrios ao longo do texto, tratamos a narrativa escrita como ela mesma sequncia imagtica. Ao nos depararmos com a formao de nossas linguagens pelas vias perceptivas, so os olhos que nos guiam nossa questo mais afetiva: a Paisagem. Ao questionarmos o que a cultura calcifica em nossos corpos enquanto mundo, os olhos saltam e se colocam como medium para uma formulao de verdade, mais especificamente verdades-acreditadas. Assim, nos desgarramos duma narrativa que procura com dificuldade distanciar-se do entendimento imediato do prprio termo a assemelhar-se a experincia, e procuramos da mesma maneira aproximarmo-nos da paisagem em reformulao constante, tomada enquanto compreenso de mundo particular, ela mesma desde sua concepo j frao, recorte. Assim, nesta parte procuramos esclarecer de que maneira nossa paisagem em formulao passa pela apreenso da realidade, igualase experincia, e finalmente, a nossa compreenso de mundo.

A partir dos desdobramentos em fazer artstico mais recente, a Parte 3 configura-se nosso segundo ciclo expositivo do fazer e procura encaminhar concluses processuais delineadas em mundo em paisagem e encaminha para reflexes que se seguem, advindas e inerentes ao fazer artstico, e que vem se desvelar mais recentemente, muitas no exerccio da escrita deste mesmo texto. Tais inquietaes so aqui expostas a partir de um movimento inicial de retorno superfcie deste processo. Retorno necessrio para podermos enxergar os passos trilhados e sermos capazes de supor a direo adiante, ainda que anunciada enquanto potncia.Os mais recentes desdobramentos prticos desta investigao que so a esta altura contemplados, e que so apresentados em imagens, desvelam novos significados construo terica, e acrescem em sentido esta trajetria. A nosso modo de reflexo em escrita, lanamos mo mais uma vez de relatos e descries do fazer-artstico, procurando ressaltar os novos sentidos que estes puderam despertar neste pensar-fazer. apenas a partir da ressignificao alimentada pelo fazer artstico recente que, do uso da linguagem e de sua relao com nossas experienciaes em oferta ao outro, pudemos absorver a to determinante quanto contrasensual presena de um ilegvel. Ilegvel este que nos indica a um retorno ao talvez objeto (ou motivo) central de nosso estudo: a aproximao, ou, melhor dizendo, o encontro, com o originrio em ns, que passa pela experincia cotidiana (da paisagem outro em negociao com a linguagem), se modifica a cada olhar, e se instala no campo da nossa verdadeira face desejante e inalcanvel, transvestindo-se pois, final e inevitavelmente, em potncia.Desta forma, esta Parte 3 nos serve, e deve ser lida, como consideraes processuais, dedicadas a fechar este ciclo de pensar que conta com o tempo, o exerccio, e com a generosidade das trocas para prosseguirmos e nos desenvolvermos satisfatoriamente a partir deste doutoramento, e relevantemente em nosso processo pessoal de pro-cura como empresa humana. Nomeia-se, portanto: de quando a palavra escorre em direo ao fora.

Finalmente, por tratarmos da prpria produo artstica recente, colocamos ainda que a reflexo sobre esta se forma, atualiza e reestrutura no curso destes poucos anos de 2010 at agora. Desta maneira, este texto-ensaio-tese se coloca como relato pontuado por consideraes tericas, a serem apresentadas nas Partes que se seguem nesta introduo. Pode-se dizer que neste trajeto povoado de escrita, tambm este exerccio se torna cada vez mais corpo de trabalho, assim como pudemos exercita-lo, aproximando-nos de prticas de nossos caros predecessores Hlio Oiticica (1986)[footnoteRef:4] e Lygia Clark (1987). Indicamos ainda que, no decorrer desta leitura, devido ao carter artstico-processual desta reflexo, devaneios vezes se misturam nossa procura por clareza, e confundem-se, gerando uma escrita implicada, em vai-e-vem (como no poderia deixar de ser) de forma que poder ser melhor compreendida se possvel for se dedicar a esta como a uma sequncia editvel de imagens jamais finalizadas mas que indicam um centro em comum uma auto-paisagem, finalmente. Para auxiliar o leitor a navegar neste fluxo, ao longo deste texto figuram subttulos destacados em negrito que nos auxiliaram no processo de construo desta reflexo, e que nesta escrita final indicam para onde encaminham os trechos em tessitura, e quais parnteses (em desvio e apontar de desdobramento futuro) criam ao se adaptar forma narrativa que se impe a uma tese. [4: Escrita desenvolvida em teoria por COELHO (2010). ]

Ressaltamos novamente que, como evidncia do esforo criativo-reflexivo realizado, apresentam-se ao longo desta tese imagens essenciais a esta, processuais e resultantes do processo artstico construdo em nosso percurso neste perodo, enquanto corpo de texto alm de condutoras de nossas indagaes e empenho reflexivo. Optamos por no incluir imagens de outros artistas nesta verso da tese, acreditando que nossas menes em palavras possam ser suficientes ao carter em discusso de cada trabalho/artista que tenhamos eleito como par para nossa reflexo, e, tambm, que as nossas muitas imagens possam ser suficientes como complementares imagticas a esta construo. Escolha explcita, por tratarmos aqui mais de construo (e o terreno se requer limpo e aplainado nessas ocasies) que de mapeamento. Desta forma, e por no apresentarmos pares formais, mas poticos, preferimos de no[footnoteRef:5] , e optamos pelas nossas prprias imagens s de terceiros. [5: Do escrivo Batlerby, de Melville (2009), personagem que nos auxilia a ofertar um passo essencial ao desfecho deste pensar: a potncia (de no).]

Buscando no nos alongarmos demasiado nesta introduo, convidamos afinal o leitor para seguir nossa lgica dum emaranhar potico entre prtica e teoria, e agradecemos desde j pela dedicao em nos ler e pelas provveis contribuies a serem feitas, que nos valero para o mais justo caminhar adiante desta investigao.

sobre as inmeras introdues que seriam e so aplicveis a esta tese

Abro um primeiro parntese que se impe demasiado sedutor: Ao relermos o texto escrito para a qualificao, cujo corpo hoje se transpe em proposta de tese, aps um perodo de distanciamento que durou (com alguns parcos parnteses em consulta) desde a data da defesa da qualificao desta mesma pesquisa, at o momento de sua retomada recente, quase um ano depois. Percebemos a partir desta leitura que possvel passar uma (ou diversas) vidas a discorrer sobre as teorias possveis e aplicveis ao campo de reflexes que podem partir do termo-dispositivo auto-paisagem que sugerimos. As reflexes antes traadas por nossas inquietudes, e mais definidamente desenhadas pelas vias indicadas no decorrer do prprio fazer artstico, inclui em seu campo de discusso conceitos to extensos quanto determinantes/originrios do pensamento ocidental. A comear pela linguagem, e a relao que esta pesquisa artstica tende a construir no somente com, mas e inevitavelmente, nos parece - atravs dela. Como se no extensa suficientemente, a discusso se complementa pela reflexo acerca da idia de paisagem, termo bastante em voga na atualidade pelo simples fato de, a nosso ver, as paisagens humanas mais comuns da contemporaneidade: a polis, a megalpole, os no-lugares ou lugares de trnsito, os lugares virtuais, e assim por diante, constiturem um leque de espaos que transformam, para alm das determinantes modernas, no somente o cotidiano do humano mas potencialmente sua compreenso de mundo, e , portanto, de natureza, e aqui por recorte, paisagem. Ao passarmos pela reflexo acerca da relao humana de si e com si, aproximamo-nos de nossas prprias questes essenciais e, buscando cada vez mais acessa-las em essncia, acreditamos poder acercarmo-nos do que poderia ser uma questo extensvel para alm de nossas limitaes e ofertvel ao outro, em troca.Procurarmos ento indicar o processo (apenas um dos tantos caminhos) atravs do qual esta investigao artstica e terica se d, e oferecemos como resultante de uma construo intelectual os produtos artsticos, distribudos no corpo da tese que se concretiza nestas linhas que se seguem. Antes, retomando a abertura deste texto, deixamos claro que muitas das reflexes indicadas numa sequncia de introdues possveis ficam em aberto para um aprofundamento, talvez, no futuro que vem[footnoteRef:6]. [6: Indicamos desde aqui a proximidade em muitos momentos ao pensamento de Giorgio Agamben, e utilizamos seu clebre final de proposio, em indicao a um futuro, vezes a geraes.]

sobre o que se constri : no quase nada mas tudo o que tenho a oferecer No falaria tanto de mim mesmo se houvesse outra pessoa que eu conhecesse to bem. Lamentavelmente, a escassez de minha experincia restringe-me a esse tema. De mais a mais, eu, de minha parte, exijo de todo escritor, cedo ou tarde, um relato simples e sincero da prpria vida, e no apenas o que ouviu da dos outros; algo assim como um relato que de um pas distante enviaria aos parentes, porque se viveu com autenticidade deve ter sido num lugar bem distante daqui. (THOREAU,2007:17)Certa vez, recentemente, li um pequeno romance contemporneo que se iniciava com o anncio da morte da protagonista: E no final ela morre [footnoteRef:7] afirma, de sada, o autor. Inicio esta breve narrativa apropriando-me de sua forma, no ainda - da afirmao. Assim, explico um pouco de sopeto: Auto-paisagem, grosso modo, o recorte na natureza que cada um de ns coleciona e produz constantemente. Desta coleo se d o que cada um compreende enquanto real, composio de mundo, seja de ordem lingustica, imagtica, ou qualquer imaginativa trans-ordem. compreenso de mundo irracional (HALL,1989), impessoal (AGAMBEN,2007), ntima (NS),: a verdade acreditada de cada um. Atravs destas pretendemos em prtica artstica tocar nosso originrio, e qui atingir o do outro, estabelecer troca ou, pela ao de ofertar, compreender-se a si mesmo, ou melhor: formular-se. [7: Bonsai do argentino Alejandro Zambra (2013).]

Da implicao com a vida se trata esta tese, que se prope pesquisa artstica em processo e que, mais que um ponto final, sugere uma multiplicidade de caminhos a trilhar a partir da fagulha[footnoteRef:8] que nomeamos auto-paisagem. Caminhos que passam por aprendizados de vida compartilhada, acompanhada por tantas Clarices (Lispectors) e Carlos (Castanhedas), talos (Calvinos), e Lgias (tantas), entre muitos outros, e que sugerem proposies em imagens e linguagem, ainda que estes mesmos em reformulao constante. As proposies aqui so sobretudo os trabalhos, os escritos mais poticos, as imagens produzidas nesta frao do trilhar j realizada, mais que quaisquer escritos que se pretendam tericos ou cujo referente seja externo e que aqui se possam encontrar. Estes existem enquanto contextualizao e pontuam os momentos em que alguma clareza se faz necessria, clareza que outras bocas, mos e olhos foram capazes de oferecer com mais eficcia e para alm das nossas possibilidades, que nossos olhos quase sempre semicerrados. Sugerimos ento que esta leitura se d desta mesma maneira: com os olhos semicerrados, permitindo-os oscilar entre a busca de uma coerncia esperada e o acompanhar dos passos de uma experincia de in-fncia (AGAMBEN,2005) que faz com que vez por outra os ps mal toquem o cho. [8: Apontamos a contribuio de Gaston Bachelard ao associarmos a seus efeitos em ns a brasa acesa pela fagulha ofertada.]

eis o processo

Porque melhor que no os ler (CALVINO,2001:03) (em resposta pergunta: porque ler os clssicos?) A fora-motriz deste trabalho o desejo. Desejo de experincia, que pode ser lido como desejo de vida, desejo de troca e transformao, via percepo e afeto, na observao atenta da existncia que se d no que conhecemos como mundo, num recorte que nomeamos auto-paisagem[footnoteRef:9]. O que faz com que esta pesquisa caminhe a inquietao diante dessa existncia transitria destinada a se apagar, sem dvida, mas segundo uma durao que no nos pertence (FOUCAULT,2003:08). O tempo, durao potente em todos os instantes e que tambm se esvai a cada um deles, o seu maior agente. Diz-se que a escrita faz livrar-se da perda e, acreditando nessa afirmativa, buscamos suspender o cotidiano diante de nossos olhos e direcionarmo-nos para a reflexo em silncio que possibilite um ver-a-vida, um saturar cada tomo do tempo (DELEUZE E GUATTARI,1992:227)[footnoteRef:10] em demora em contemplao e coleo de nossos transitrios passos. Questionamo-nos a esta altura se seria possvel manejar trata-se inevitavelmente de controle este deslocar-se no tempo da prpria existncia, e ser capaz de traar a prpria inevitvel auto-paisagem via fazer artstico. A via que encontramos para isso a construo de uma espcie de tessitura de nossas linguagens (escrita e imagtica), sempre atentos aos entremeios desta complexa e sutil trama exercitada. [9: Retomamos nossa introduao ao termo: Auto-paisagem, grosso modo, o recorte na natureza que cada um de ns coleciona e produz constantemente. Desta coleo se d o que cada um compreende enquanto real, composio de mundo, seja de ordem lingustica, imagtica, ou qualquer imaginativa trans-ordem. compreenso de mundo irracional (HALL,1989), impessoal (AGAMBEN,2007), ntima (NS),: a verdade acreditada de cada um.] [10: Virginia Woolf em resposta pergunta: Como tornar um momento do mundo durvel ou faz-lo existir para si?]

Tendo arte e vida inegavelmente amalgamadas[footnoteRef:11], e associando-nos a uma j tradio artstica, a busca do processo artstico aqui engendrado se d via experincia em conferir ao espao-tempo dirios plataformas para o silncio, criando cortes ou interrupes via deslocamento, que conduzam observao atenta e plena de sentidos e sensaes dos momentos de vida, vistos aqui enquanto um observar da paisagem, que nomeamos experienciao[footnoteRef:12]. Esta observao se desdobra muitas vezes via a documentao escrita ou imagtica dos momentos em deslocamento[footnoteRef:13] O corpo de trabalho em formao, ou as partes que se constituem enquanto resultantes desta caminhada e ao mesmo tempo enquanto frases de uma narrativa estendida, se dedicam a criar e oferecer imagens em troca com o outro, almejando originar um particular silncio coletivo: um emaranhado de vivncias e pensamentos que reverberem por tempo indeterminado e deem linha crena legtima da arte enquanto vida, e vice-versa, que se instaura neste processo em movimento circular: uma espcie oscilao do da paisagem paisagem", via experienciao. [11: O pensamento e o trabalho de Joseph Beyus, investidos na arte-vida nos inspiram. Expresso muito empregada na contemporaneidade , da qual nos apropriamos por acreditarmos intrnsecas a nosso pensar-fazer. ] [12: O termo experienciao utilizado por ns para indicar uma experincia em ao, geralmente consciente, sobretudo implicada. Este termo, descrito em diversos momentos neste texto, dever melhor se esclarecer no decorrer da leitura a partir de: a ser definido adiante, mais oportunamente, como: experincia via movimento, desejo, e risco. Experienciao para ns o parntese no tempo em que se habita em silncio na experincia. Experincia em ao. Por este motivo aplicamos este termo apenas quando nos referimos ao prprio processo, e no ao de terceiros. Desde j nos vemos s voltas com o pessimismo do filsofo Giorgio Agamben em relao perda da in-fncia, ou seja, da possibilidade de experincia no contemporneo, e da afirmao de nossa condio no-natural mas cultural: lingustica. Condio tambm explorada pelo antroplogo Edward Hall em Beyond Culture (1988), que desenvolveremos adiante. ] [13: Explicitaremos nossa ideia de deslocamento adiante, desdobrando seus vieses conforme oportuno no decorrer do texto, e oferecendo ao leitor suas possibilidades. Por ora reproduzimos nossas prprias palavras: nossa definio mais acertada de deslocamento: todo e qualquer movimento que indique um espao-entre em condio de silncio; um estar entre dois pontos, ainda que os pontos de partida e chegada convirjam entre si. Ou seja: a pausa no espao e no tempo que define o deslocamento de que falamos, relacionada ou no com um percurso que a gere e que a torne evidente. ]

Na prtica, o olhar para os prprios ps (ou para o prprio nariz ) ao simultaneamente propulsora e indicadora deste percurso. Nosso j familiar interesse por narrativas se observa na prtica cotidiana da escrita e na montagem de fotogramas em sequncia. Como que numa circularidade intuda, voltamos a ateno quilo que mais naturalmente flui e inquieta: escritas dirias, anotaes corriqueiras, a banal gravidade dos pequenos relatos que nos habitam. Decidimos trabalha-los enquanto imagem, proposio, processo, e a palavra, assim, passa a nos acompanhar, se faz presente pelas vias sequenciais. A partir da moldam-se os percursos que apresentamos adiante.a poucos passos da caminhada : uma observao lingustico-formalA primeira observao atenta que se faz necessria ao desenvolvimento desta fase da escrita que trata de processo o olhar sobre a pesquisa ela mesma, sobre seu trajeto particular, e sobre os diversos passos necessrios para que esta alcanasse suas resultantes atuais, tomando-as sempre como intermedirias por definio. Desta forma fazemos, ainda antes de iniciar nosso discurso propriamente dito, uma anlise breve sobre a amostragem de alguns dos elementos que indicaram o caminho desta investigao desde sua primeira demarcao, ou apontamento, em 2010. Assim, numa espcie afetiva das prticas do cuidado de si (FOUCAULT,1985)[footnoteRef:14], iniciamos o exerccio de observao sobre um mtodo em formao que desenvolvemos, e que pode ser nomeado o cuidado dos prprios passos. Assim como no cuidado de si este se d sempre mediante observao concomitante da natureza[footnoteRef:15], natureza esta j nomeada mundo ou, mais particularmente nesta pesquisa, paisagem. [14: Foucault prev o cuidado de si atividade anterior ao que nomeia conhecimento de si que remonta era pag greco-romana quando a pilotagem de si teria sido praticada e estudada enquanto cincia (tekhn), e cujas aes esto muito prximas do que Rudolf Steiner prope enquanto prtica espiritual: A Cincia Espiritual o meio de experincia consciente direta com o mundo espiritual, no se tratando, portanto, de uma forma de misticismo. denominada cincia pois seus resultados podem ser verificados por qualquer um que se dispuser a se preparar neste sentido por meio do trabalho interior. Trata-se, por isso, de um conhecimento exato possvel de ser acessado pelo pensar, desde que ele seja desenvolvido para tal pelo trabalho dirio (exerccio de concentrao, reviso da memria, ao pura, percepo pura, etc.) (FOUCAULT,1985:183).] [15: Fazemos aqui referncia ao texto transcrito da Aula nr. 17 de Foucault (1994) sobre Sneca: ...do que se deve fazer quando se um idoso e que se deve agilizar-se em trabalhar para si e sobre si mesmo,...de que modo Sneca pode resolver o paradoxo que ele prprio experimenta ..., quando dissera: pois bem, quero percorrer o mundo, quero extrair as causas e os segredos deste mundo, e no entanto sou um idoso....todos estes objetivos da moralidade estoica tradicional, no somente so compatveis, como s podem ser efetivamente atingidos, efetivamente alcanados e completados a preo do conhecimento, do conhecimento da natureza que ao mesmo tempo conhecimento da totalidade do mundo. S se pode chegar a si percorrendo o grande ciclo do mundo. ]

Para uma melhor compreenso de nossas intenes, sintetizamos em 3 lugares a largueza de mundo (a academia, o ateli e o arquivo morto) em que se d a observao aqui empreendida, e os indcios de formao do trabalho artstico construdo at o momento. Cada um destes momentos comentados brevemente trouxe ao trabalho a conscincia de que a amlgama deste com a vida cotidiana e com os fluxos de pensamentos eram patentes, factuais, inevitveis, alm de desejados.a academia e as trocas H pouco um filsofo acadmico, com muitos anos acumulados de pesquisa e produo de pensamento, nos apresenta a pergunta: De que serve a academia a um artista? Aps um ou dois meses, ocorre-nos sanar, ainda que tmida e parcialmente, a sua dvida. Respondemos pessoalmente ao Prof. Dr. Manuel Antnio de Castro, como que numa reflexo sobre o processo de produo de arte e conhecimento que percorremos: Diria que a resposta pertence a duas ordens, para mim, hoje em dia (isso pode e deve mudar com o passar do tempo).A ordem prtica: possibilita lecionar pois o mercado concorrido e nem sempre o desejo se dispor ao que ele solicita, e o lecionar faz pensar e generoso. Mas isso no deve te interessar. Acredito que queira saber da ordem pessoal, dedicada prtica artstica.O doutorado serve como uma forma de organizar pensamento e mergulhar mais conscientemente no processo de criao, que muito um trabalho de pesquisa de si, das prprias 'narrativas' (de vida), das prprias escolhas. A dedicao pesquisa terica e a necessidade de escrita de textos acadmicos - ou vezes no tanto fazem ntidas as prprias escolhas e promovem sua continuidade num crescente, e o abandono do superficial. Funciona como autoanlise de certa forma e, ao prever a produo de conhecimento, promove um distanciamento de olhar que inibe um mergulho cego, a loucura. Mergulha-se e convive-se com o profundo, mas retorna-se tona para observar o conjunto, o universo no qual o corpo est imerso. Vezes as guas so claras e transparentes, mas a maior parte do tempo se deixam ver apenas por camadas, aos poucos, num contnuo ondular do corpo que modifica o fundo incessantemente... enfim, isso penso eu. (junho.2012)Como primeiro sintoma, diramos que possvel que a necessidade acadmica de colocar em ordem as palavras tenha trazido tambm para a obra artstica as palavras em si, muitas guardadas h tempos nos cadernos de anotaes espalhados por caixas e gavetas.

o ateli Atuando na zona de interseco entre a academia e o atelier, para alm da desejada contaminao conceitual e terica, foi-nos to necessria quanto inevitvel a contaminao fsica de um espao no outro. E as palavras em cadernos deram lugar a palavras em esquema de pensamento que nomeamos mapas mentais. Expomos as imagens abaixo com o libi do tempo, que carregou j para longe dessa pesquisa muitos dos termos ou temas colocados nestes mapas. Inclumos este material neste texto como indcios de formao visual de corpo de trabalho, numa afirmao do processo como parte essencial do encaminhamento desta investigao, e mesmo da produo prtica, e do desejo de continuidade deste atravs de sua documentao, que hoje realizamos sistematicamente. No ateli, a rotina de corte de palavras para uma espcie de edio terica no se sabe mais se antecedeu ou se foi posterior deciso de colocar as palavras no mundo atravs do corte uma vez que mesmo nas peas em que o corte no o protagonista elas passam por ali. Os cortes nos possibilitam ressaltar do texto seu carter visualizvel, ainda que incompleto; permitem criar edies talvez no pensveis de outra forma, prever as dimenses das palavras que pretendem dar corpo a uma ideia-fixa que, quanto menos se doa ela mesma compreenso, mais longa e inalcanvel se materializa. o arquivo mortoA edio trabalhada em fotos, a edio de roteiros, o constante contato com a palavra e sobretudo o apreo por esta, e a conscincia de continuidade, fazem com que desde o inicio deste percurso as sobras editadas de escritos no sejam descartadas, mas mantidas em arquivo morto, como se daquela caixa cheia de papis a qualquer momento pudesse emergir um corpo. Indicao de colecionismo que estendemos produo via documentao colecionstica de imagens, histrias, personagens, objetos, leituras, enfim: peles em camadas que compem corpo com o passar dos passos.

A partir deste breve relato imagtico, pretendemos deixar clara a construo deste percurso, que se d sempre em ocorrncia incessante de escambo entre obra e vida, em fluxo constante de formulao e transformao de uma e de outra, e entre uma e outra. Assim, da mesma forma apresentamos a construo deste texto-pensamento via linguagem em corso-ricorso (COHEN,2006:13)[footnoteRef:16]: em idas e vindas que possibilitem interiorizar o todo terico e artstico, indistinguindo-os afinal. No processo engendrado, a continuidade, o movimento de construo, desconstruo e reformulao so patentes, uma vez que a cada pea produzida o que resta o desejo de um passo adiante, ainda que em crculos. Compreendemos desta forma as peas produzidas a partir deste fazer enquanto obras no acabadas, submetidas a variveis externas, mas sobretudo processuais, mutveis em formas e conceitos a partir destas mesmas inmeras variveis que procuramos sobrepor. Concordamos que a anlise posterior produo das peas[footnoteRef:17] e das aes[footnoteRef:18] delineia inevitavelmente suas razes de acordo com os desejos primeiros que as criaram, enquanto partes de um todo ainda invisvel. [16: Renato Cohen utiliza o termo literrio ao propor work in progress enquanto modo de trabalho e vida, e aponta como cone do conceito corso-ricorso a construo literria em Ulisses de James Joyce.] [17: Vezes me referirei a trabalhos artsticos, quando formulados em objetos, simplesmente peas, e raramente obras, por no desejar neste processo carregar a carga histrica do termo obra de arte .] [18: De quando os trabalhos ou proposies artsticas assumem alguma performatividade, em relao a carteres desta, tal qual o prprio acionar (ativo = ao), e a consequente durao. ]

Ressaltamos que, ao desenvolver uma pesquisa que se orienta pela experincia, o nico processo de escrita que nos parece aceitvel aquele que permite modulaes, malevel e transforma-se conforme a sucesso de tais experincias e consequentes reflexes que se do no decorrer do trabalho. Logo, o processo de entropia e posterior conceituao aqui relatado admite e prev a superposio de estruturas, de procedimentos gerativos, a hibridizao de contedos em que o processo, o risco, a permeao, o entremeio criador-obra, a interatividade de construo e a possibilidade de incorporao de acontecimentos no percurso so as ontologias da linguagem (COHEN,2006:02). Desta forma, o texto a seguir dedica-se a explicitar nossos passos, intercalando trechos de contextualizao e conceituao tericas, e relatos e memoriais do processo, alm de breves anlises dos trabalhos em questo. Tentamos suavizar a leitura indicando, no uso das 1a e 3a pessoas, tais atravessamentos inevitveis das camadas de pensamento que ora se sobrepem neste processo de pesquisa terico-prtica.

.1 vento de terra : desejoGostaria que fosse ao meu redor como uma transparncia calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu no teria seno de me deixar levar, nela e por ela, como um destroo feliz. (FOUCAULT,2009:48) O desejo de verdade do qual fala Foucault o mesmo desejo de que aqui falamos, ainda que de uma verdade ntima, colecionada, observada e construda. Vendo-nos diante da impossibilidade de entrega plena e imediata a qualquer verdade[footnoteRef:19], somos obrigados a atirarmo-nos ao mar desconhecido, dia aps dia, e sofrermos por etapas as ondulaes desestabilizadoras tanto quanto goz-las no contato com nossos corpos. Assim, o medo explicitado no escrito sobre o nadador: No sei o que mais prazeroso, contemplar de longe os braos dourados em movimento, ou l estar[footnoteRef:20] engolido aos poucos pelo desejo inquietante que nos coloca a cada instante em outro lugar, em busca de aprendizado e transformao, propriamente l, diante de condies to amedrontadoras quanto prazerosas que o mergulho capaz de oferecer. A esta via de aprendizado e transformao pelo deslocamento e silncio chamamos experienciao, ou seja: experincia via movimento, desejo, e risco. Experienciao para ns o parntese no tempo em que se habita em silncio na experincia. Experincia em ao. [19: No pretendemos aqui discutir o conceito de verdade. Este poderia ser o trabalho de uma vida. Para nos ajudar, indicamos adiante nossa perspectiva de verdade, ao discorrermos sobre as verdades acreditadas.] [20: O nadador, autoria prpria, 2010.]

Assim como durante geraes a vontade de verdade (FOUCAULT, 2009) vem propiciando descobertas e criaes ao longo da histria, ousamos dizer que nosso desejo pela descoberta seja suficiente para que nos movamos em investigao. Desta forma, ao promover e cultivar o encontro atravs do deslocamento, ainda que de um deslocamento em nossa prpria direo, optamos por um aprendizado em experincia, buscando no nos servirmos de um universo tranquilizador, mas visualizarmos o risco do desconhecido e assum-lo. O deslocamento, indicado por Foucault (2009) sob a tica do deslocar-se para si, nos parece permitir estabelecermos olhares despidos, via distanciamento. Como se uma limpeza de apriores fosse possvel aos nossos olhos e linguagem pr-apreendida sobre si e sobre o mundo, em direo ao de raspar as tintas com que me pintaram os sentidos de que fala o poeta portugus Alberto Caiero. Finalmente, se observar aquilo que sempre foi visto e transmut-lo em no-antes-visto possibilita que aquilo que experienciamos se torne mais prximo de ns, constituindo mesmo uma parte de nossos corpos, esse parte de nosso processo. Ainda, no sentido inverso a este, que cabe ao artista - o de colocar no mundo o mesmo exerccio que toma sua singularidade - o sabor da ao que aqui propomos : ao apresentarmos ao mundo nossa viso particular deste - emprestando assim nossos olhos - sermos capazes de criao ou ativao de imagens para alm de nossos corpos, que intervenham pontualmente no cotidiano de outros em suas relaes com o mundo e consigo.

deslocamentos H um tempo em que preciso abandonar as roupas usadas, que j tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. o tempo da travessia: e, se no ousarmos faz-la, teremos ficado, para sempre, margem de ns mesmos. (PESSOA,1966:59) Sabemos que ao deslocar-se do lugar de costume a possibilidade ou potncia de desvios se torna frequente, e mesmo insistente a ns: ao dirigir um carro sonho que posso a qualquer momento criar um desvio, e, o que seria dali pra frente no seria o mesmo. O deslocar-se no caminhar , para ns, a acesso a um desvio natural que o medo impede de acionar intencionalmente. Se a experincia constitui-se de um material cheio de incertezas, movendo-se em direo a sua consumao atravs de uma srie de variados incidentes (DEWELL,2009:237) podemos assumir que o deslocamento ativado, o caminhar para o fora da zona de conforto que habitamos nosso atelier, a mesa de trabalho, a casa nos permita experienciar uma srie de incidentes mais relevantes que o nosso banal cotidiano seria capaz de proporcionar. observvel que estes incidentes por si s, vivenciados em experincia face ao acaso e ao desconforto caractersticas prprias a um deslocar-se - possam alcanar em algum momento, geralmente atravs de processos de documentao, o carter de arte (DEWELL,2009). do carter edificante que ambicionamos lanar mo, carter que caminha ao lado de nossa compreenso por arte em processo. Exercitemos pois o uso da palavra deslocamento colocando em questo a pesquisa artstica cujo processo se d via experienciao. Diramos que, ainda que diante de cicatrizes causadas por acidentes domsticos que nos marcam definitivamente o corpo, pode-se defender que sejam as experincias vividas em deslocamento mais relevantes que as, assim ditas, cotidianas? Questionamento banal, pode-se julgar, mas que nos auxilia a esclarecer o deslocamento que enfatizamos e promovemos, e a relevncia das memrias fsicas que se esclarecer ao tratarmos o retrato, adiante - nesta construo de pensamento. Muitas vezes mais facilmente exemplificados (e mesmo frequentemente vividos) entre dois pontos fisicamente distantes entre si, ou em paisagens desconhecidas[footnoteRef:21], o deslocamento aqui indicado no prev necessariamente destas condies para se dar, pois trata-se sobretudo dum retorno de ateno, do deslocamento que se d via silncio, silncio que por sua vez constitui matria de reflexo e discusso entre quaisquer caminhantes ou elogiosos do caminhar. [21: Abrimos mo aqui de definir o conhecido e desconhecido de nosso cotidiano para no nos alongarmos, e j quase citamos Clarice Lispector, mas deixemos para adiante.]

Parte da arte como vida, via experincia, o refletir sobre o caminhar como ao simultaneamente disparadora e fundadora da obra. Caminhar que se faz processo para artistas como Hamish Fulton (FULTON,1989) - que faz de suas experincias em caminhada solitria por paisagens geralmente pr-definidas matria para seus trabalhos, e que destas apresenta enquanto obra nada mais que painis de ndices, com datas, percursos percorridos e por vezes alguma imagem ou grafismo que remetam experincia vivida, alm das sucintas palavras diagramadas que tal percurso despertara - e de pensadores como Henry David Thoreau (THOREAU,1989) - que em seu elogio solido e ao silncio prprios do caminhar, aponta diretamente para um sentido do fazer artstico, ou da arte. Da trajetria de ambos os criadores, nos toca o prazer[footnoteRef:22] pelo e no deslocamento. O sentido que o deslocamento possibilita alcanar, o desejo pelo novo, a necessidade do abandono (especfica e explicitamente defendida por Thoreau e que, em nosso caso, se remete ao abandono ou busca de abandono de nossas linguagens pr-estabelecidas), e a abertura experincia solitria, ao acaso e s descobertas e trocas com as paisagens que nos formam, so comuns a estes e a outros amantes do caminhar, ou simplesmente do deslocar-se . [22: Sempre que usarmos a palavra prazer deve-se compreend-la indissociada de necessidade. Nas breves menes que pudemos acessar a este respeito 2005) atravs de Giorgio Agamben e de Felix Guattari (1992), encontramos prazer e necessidade como antagnicos, instintos (ou pulses) de extremos opostos, e cuja confuso na percepo de um e de outro pelo homem causaria algumas tenses psicanalticas entre outros danos nos quais por ora no nos aprofundamos.]

Sendo assim, a definio mais acertada de deslocamento para ns seria: todo e qualquer movimento que indique um espao-entre em condio de silncio; um estar entre dois pontos, ainda que os pontos de partida e chegada convirjam entre si. Ou seja: a pausa no espao e no tempo que define o deslocamento de que falamos, relacionada ou no com um percurso que a gere e que a torne evidente. O tempo em movimento constante quando minimamente apreendido no manejo das pausas possveis possibilita atravs do silncio o caminhar para a observao atenta, e desta pausa caminhamos para a contemplao, a relevante)s palavras chaves..l, cor, algo que te desse a liberdade de pular do seu memorial para o texto reflexivo)eriam os quexperienciao e o aprendizado de linguagem ou da matria que substitui as tintas de outrora - agora sim diramos que mais profundo que o aprendizado desconcentrado do trnsito rotineiro. Se o senso comum diz nunca se o mesmo aps uma viagem, a afirmativa nada mais nos acrescenta que a confirmao emprica desta misteriosa experincia espao-temporal que o deslocamento e o silncio so capazes de proporcionar, possibilitando que o aprendizado que os olhos, os sentidos e as sensaes colecionam em seu decorrer, nos faam retornar modificados, exercitados em novas apreenses de mundo. Afinal, so mundos que se espalham por a. Isso to desestabilizador quanto apaziguante pra mim.[footnoteRef:23] [23: Anotao prpria, de breve e recente passagem em visita a Castellucio di Norcia, povoado onde habitavam apenas 13 pessoas durante o inverno nem to rigoroso quanto o abandono lhe pintava, quando pude compreender algo que ainda no sei bem colocar em palavras que no sejas estas, que enviei para um mestre e amigo um ms depois, ainda vivenciando aquela experincia.]

desvios quando se do em palavras ou (20.07.2013) recebo de alunos a proposta de uma caminhada coletiva. tal proposio torna-se outra no decorrer dos dias que a encaminham. de caminhadas solitrias rumo ao encontro num ponto da cidade, para a qual encaminho os membros do grupo a realizar um movimento no guiado por nada alm de desejos. as aulas e as propostas de pensares imagino tenham j aberto um espao qualquer em cada uma de nossas cabeas, um rasgo mnimo, uma estria que seria suficiente para ativar o caminho desejado. e assim foi. pela manh, ao invs de me organizar para juntos caminharmos ou encontrarmo-nos e trocarmos impresses apressadas sobre cada uma das caminhadas, e termos um desfecho coletivo, resolvo aceitar um convite raro e por acaso neste mesmo dia de um grupo outro para uma caminhada de 7 horas. a ideia coletiva: chegar ao cume de um monte, uma pedra, a mais de dois mil metros de altitude. minha inteno: caminhar em meio mata, num ritmo compartilhado com o grupo, perceber a relao de coexistncia entre os elementos do grupo, as trocas e os abandonos. o primeiro abandono ao adentrar a mata: esttico. ramos nossas pernas e respiraes rumo ao topo. o segundo abandono: corpo. abandono solitrio das necessidades e cansaos do corpo em prol dum objetivo que estava ao longe. algo que no abandono: conscincia de que a trilha era preciosa e o cume necessrio para este trilhar, mas no necessariamente desejado. entre silncios compartilhados duma ansiedade inicial, o medo (sempre ele) o cansao inevitvel, o verde incessante. As folhas que voltam a no incomodar quando roadas ao corpo, os troncos e pedras que do amparo ao corpo exausto, o vento que ressuscita uma conscincia prestes a desistir. o corpo como paisagem. aos poucos as pernas temerosas nas primeiras pedras, riachos, passam a marchar com certa autonomia. os olhos atentos ao cho. a paisagem mais frequente: terra, pedras, galhos, lama, sob meus ps. no enxergo ps mas solo, ainda ao escurecer, diante das nfimas luzes das lanternas abaixo da luz duma lua cheia enegrecida pela densidade das folhas e galhos, se mantm o foco do olho. o esforo para na passagem perceber o entorno se torna outro: o silncio que busca sons (o pssaro saudade, o vento nos galhos, as cachoeiras e rios, os passos) e odores (a terra molhada, o cheiro de mata. a cor verde tem um cheiro prprio. odores do prprio corpo e dos corpos) as sensaes: o vento quando um descampado presenteia com uma vista do vale, o vento em meio ao altiplano que quase nos pe ao cho e parece evitar nossa queda, o vento gelado que nos faz encolher diante da mais bela vista (o cume) as folhas que roam delicadamente a cara (voc est passando o rosto nas folhas?) , os pingos duma chuva desejada e temida, as mos a ajudar a atravessar as piores reas, os obstculos, as pedras molhadas que do energia a cada apoiar de mos, os troncos que fazem o corpo voltar a ter domnio de seus movimentos, e finalmente as pedras do topo. uma escultura num topo que o prprio dedo do deus aponta. o corpo vivo diante da mata, o suprir necessidades bsicas fome, sede, xixi com certa tranquilidade e preparo se mortificam a qualquer pensar de erro pela j escura noite. a viso da volta o reverso da viso da caminho ao cume: amedronta, incerta na escurido, escorregadia. basta um instante de dvida e o horror assola: me perco neste breu que tanto delicio, e que me apavora. o prazer e o horror de borges me atacam. castanheda diante do invisvel de seus prprios monstros me acalma. um movimento qualquer, uma demarcao em terra me tranquilizam: estou no caminho certo. tenho desejo de parar e ali no breu iluminado pela lua ficar a observar. s me permito faz-lo em sonho, devaneio solitrio, ento apago a lanterna e passo a pisar em falso, toro os ps, tropeo. A viso necessria para que o corpo cumpra a tarefa. o desejo continua aquele que no alcancei. lembro do jardim no qual passei luas geladas a olhar as estrelas entre os pinheiros. a segurana, a passividade do corpo em relao paisagem que crio e recrio incessantemente enquanto houver pgina em branco, tempo, sempre ele, e um meio qualquer de fabulao.

passagens em transformao da pequeno-nmade . o trem A surpresa daquilo que voc deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, no nos conhecidos. (CALVINO,2003:28) O desejo de deslocamento no novidade em nossa trajetria, e a percepo alongada que o deslocamento capaz de nos proporcionar, tampouco. do trem que falaremos agora, cone imediato de deslocamento visvel que elegemos a partir de aprendizado flmico e literrio, transformador do olhar e da concepo de mundo desde sua inaugurao at os dias de hoje. Dispensaremos, porm, a anlise sobre as demais formas de comunicao e meios de transporte que diariamente transformam nosso olhar e concepo de mundo, para deter-nos em demora nas sedues deste trem. Quando em deslocamento em trem nada nos detm, assim como nada se interrompe. O trem possibilita natural silncio em demora via contemplao da paisagem propriamente dita. Permite acessarmos o entre dois lugares, a viagem em si, o percurso. Tambm o caminhar permite a contemplao, mas o caminhar relaciona-se facilmente com a fuga de um estado de intranquilidade - os loucos caminham[footnoteRef:24] - , a qual no nos interessa discutir no momento. Na obra de Proust[footnoteRef:25], assim como em diversas peas literrias, as viagens de trem ocupam um lugar importante, onde sucedem as reflexes e decises mais marcantes das vidas dos personagens, que sempre se remetem ao desejo: o viajante que se desloca de trem no busca exatamente tranquilidade, mas reflexo, troca, encadeamento de ideias, memria, construo. [24: Tendo louco como inquieto, e referindo-nos superficialmente esta nomenclatura que sabemos complexa e moldvel de acordo com o entorno poltico. Para um estudo mais aprofundado Foucault A historia da loucura na idade clssica (1961), pelo qual passamos os olhos mas que merece leitura alongada.] [25: No caminho de Swann (1972) ]

...o prazer especfico da viagem no o de poder descer na estrada e parar quando estamos cansados, o de tornar a diferena entre a partida e a chegada no to insensveis, mas tanto mais profunda quanto possvel, de senti-la em sua totalidade, intacta tal como estava em ns quando nossa imaginao nos levava do lugar onde vivamos para o centro do lugar desejado... (PROUST, 1999:512-13)Sabemos que ainda hoje regies remotas continuam no acessveis ou pouco acessveis para muitos. A distncia, o tempo corriqueiro (ou a falta dele), a ignorncia ou desinteresse, as desigualdades sociais e culturais, alm das dificuldades geogrficas de acesso, continuam nos distanciando dos lugares que poderamos desejar. Num breve parntese, arriscamos dizer que se romance antigamente fora encontrar o par, a metade, hoje talvez seja encontrar o lugar, este outro potente que nos se apresenta to prximo pelos meios, ou telas, ou trnsitos. Como tantos, tambm Clarice Lispector (1993) dispara a transformao de sua personagem em concomitncia com a viagem de trem: Em A lngua do P, Maria Aparecida sofre uma transformao to irrevogvel quanto houvera sido todo o decorrer de viagem de trem: de mulher casta descobre-se puta. Quanto a ns, em viagem noturna nos ocorrem os pensamentos a seguir:Quando a paisagem o negro, o que resta a imaginao. Potncia e angstia se misturam: o que poderia ter sido e no foi. Algo discretamente parecido se d com a paisagem banal : torna-se pouco a pouco breu. No preenche, tampouco chama a ateno para seus pormenores. Chateia. Aborrece. Mas o banal de que agora falamos, este sim, extremamente potente e bvio, nos contorce a espinha. O negro da noite, ao invs de nos proporcionar uma nova imagem, paisagem apaziguadora, nos devolve o que j sabemos: a imensa escurido se faz reflexo num puto vidro. Todas as cidades ou vilas por que passo me arrasam, escondidas no breu. Tapo meus prprios olhos. Tento enxergar nessas condies. Detesto-me pelo incmodo causado. A dor de abrir mo da paisagem a mesma de deixar de lado o conhecimento e mnimo controle do que se apresenta a mim, ou fazer deste minha posse. Se o mar azul, que limite, acalma, a noite enfurece, reduz um possvel imenso mar a si mesma, noite escura. Engole-nos todos. Seria bom saber que no h nada alm do que se v. Caar paisagem dar a elas o tempo para que existam, para que traduzamse em rugas na minha face. Uma vez sacrificada sou capaz das maiores gentilezas. Trabalho : no h horizonte sem mar, no h paisagem sem horizonte, no h olhos sem paisagem, no h corpo sem olhos, no h um corpo sequer aqui, agora. (relato pessoal 29.01.12. percurso Porto-Lisboa )

caminhar pela paisagem colhendo mundos : corpos colecionados entre renncias e afetos A minha parece uma paisagem vista dos vages de um trem: Eu correndo para ver se consigo enxergar a mesma paisagem, e ela correndo de mim. E as outras me chamando a ateno. Quase um filme de sci-fi (autoria prpria, 2010)Numa viagem de trem se avana pela paisagem - tempo, espao, como quisermos do mesmo modo definitivo que se abandona esta mesma paisagem. Se escrever considerado por alguns livrar-se da perda, a presena demarcada das constantes anotaes neste processo de trabalho, tal qual a prpria escrita, a dedicao sobre o cotidiano, a exposio das pequenas intimidades como pensamentos fugazes de momentos de silncio, tornam-se imediatas fugas desta pressentida perda. Gostaramos porm de aplicar um filtro eufemizante para palavra fuga, e desprov-la da usual compreenso pejorativa, buscando utiliz-la em seu sentido mais abrangente: um estado constante de movimento, ao e abandono. Ao de busca: pro-cura. Para ns, antes da perda, h o abandono (renncia). Se a perda se d pela escolha do outro e o abandono por nossa escolha, o ltimo nos parece ser capaz de evitar a dor brusca da perda em troca duma espcie de dor de cicatriz: longa, delicada, porm constante. Nossa necessidade de deslocamento e a voraz busca pela experienciao vezes nos torna aquela que passa pelas vidas e se vai.. deixando aos que ficam rastros a serem seguidos ou apagados[footnoteRef:26]. Nosso interesse por novas paisagens parece vir do mesmo desespero da perda: uma vez que perder torna-se insuportvel, o abandono surge enquanto desvio, caminhar adiante, ainda que acompanhado de um pesar: a renncia. [26: Frase enviada por e-mail por um ex-namorado com quem dividi a vida por conturbados 7 anos.]

Como aps uma pausa para tomada de flego, e a promessa de voltarmos a esta ausncia que se coloca, retornemos a nosso campo de interesse: uma paisagem que nasce sabidamente a ser deixada para trs e vive enquanto momento pode ser alada em nossa memria, e consequentemente nesta produo artstica, com o mesmo peso que a paisagem da casa em que se vive ou viveu, da cama em que se dorme ou dormiu por anos. A este ponto somos ento capazes de definir a ideia de afeto que nos habita: o afeto (do latim affetare) que, experienciado, deposita marcas definidoras em/de nossos corpos, e que se d por constncia mas sobretudo por intensidade.Se partirmos de Deleuze e Guattari(1992:211-256), os afectos se remetem paisagem: os afectos so precisamente estes devires no humanos do homem, como as paisagens (entre elas a cidade) so as paisagens no humanas da natureza(idem:220), mas , porm, o desfecho da relao construda entre perceptos e afectos que, por grandiosa, potente, nos interessa: Ahrab que tem as percepes do mar, mas s as tem porque entrou numa relao com Moby Dick, que o faz tornar-se baleia(idem:220). Tal tornar-se baleia assemelha-se, para ns, a: tornar-se paisagem, ou: tornar o si atravs da paisagem, uma vez que acreditamos que no estamos no mundo, tornamo-nos com o mundo, ns nos tornamos contemplando-o (idem:220). A partir da nos dada a plataforma ao salto para o encontro. So afinal as relaes, as trocas, ou os encontros que nos fazem tornarmo-nos paisagem, seja ela qual for. Nossos passos em caminhada nos levam a crer que so as relaes homem-natureza, homem-paisagem essenciais para que o sentido, se d.

.2 percursos em que me perco: cartografias ntimas "Os mapas da memria, do eu e da cidade se sobrepem, e no possvel perceber um sem o outro" (BENJAMIN,1985:122)Guattari (1992:170) afirma as cidades enquanto fundantes de subjetividades ao reunir o corpo ao espao e, ao afirmar a inseparabilidade destes atravs do poder subjetivador destes espaos, prope a urgncia das cidades subjetivas - cidades construdas voltadas interao com subjetividades. Nossa inteno no exerccio de deslocamento em construo-troca com a paisagem onde o corpo mesmo se insere e transita a prpria via de acesso reelaborao deste corpo colecionado: o encarnar um fragmento do personagem nmade[footnoteRef:27] (DELEUZE E GUATTARI,1992) e MAFFESOLI,2001) vezes travestido em flanur baudelairiano, viajante ou peregrino (BAUMAN, 2007), caracterizado sobretudo pela ressignificao subjetiva que se pretende e se efetua nos deslocamentos aos quais se prope, e a partir dos quais aciona o corpo indivisvel pelo espao-tempo e permite a experienciao de algo de paisagens-subjetivas[footnoteRef:28]. [27: Podemos, aqui, citar como texto essencial para a compreenso do interesse contemporneo para um nomadismo, o artigo de Hal Foster O artista como etngrafo onde, calcando-se a partir de "O autor como produtor" de Walter Benjamin, de 1934, discute e revisa a posio do artista como sujeito da obra em sua relao com o outro. Texto do qual retiramos este trecho, que nos contextualiza em termos gerais enquanto o que Foster nomeia quasi-antropologia: A virada etnogrfica na arte contempornea tambm direcionada por desenvolvimentos no internos a uma genealogia mnima da arte dos ltimos trinta e cinco anos. Estes desenvolvimentos constituem uma sequncia de investigaes: primeiro relativos aos materiais constitutivos do meio artstico, depois, sobre as suas condies espaciais de percepo, e ento das bases corpreas dessa percepo mudanas marcadas pela arte minimalista no comeo dos anos 60 at a arte conceitual, da performance, do corpo e a arte de site-specific j no incio da dcada de 70. Assim, a instituio de arte no pde mais ser descrita somente em termos espaciais (estdio, galeria, museu, etc...); pois era tambm uma rede discursiva de diferentes prticas e instituies, outras subjetividades e comunidades. O observador tambm no podia mais estar delimitado apenas em termos fenomenolgicos, ele ou ela era tambm um sujeito definido em uma linguagem e marcado pela diferena (econmica, tnica, sexual e etc...). Obviamente a crise das descries restritivas da arte e do artista, identidade e comunidade, foi pressionada tambm por movimentos sociais (direitos civis, feminismos variados, polticas estranhas, multiculturalismo) da mesma forma que os desenvolvimentos tericos (a convergncia do feminismo, psicanlise e a teoria cinematogrfica; a redescoberta de Antonio Gramsci e o desenvolvimento dos estudos culturais na Gr-Bretanha; as aplicaes de Louis Althusser, Lacan e Foucault, especialmente no jornal ingls Screen; o desenvolvimento do discurso ps-colonial com Edward Said, Gayatri Spivak, Homi Bhabha, e outros; e assim por diante). Portanto, a arte deslocou-se para o campo ampliado da cultura, espao este pensado pela pesquisa antropolgica.(p.12) - de 1992. Em continuidade a este, o texto de Kosuth O artista como antroplogo, in The return of the real (MIT Press). ] [28: Alongamento prprio e certamente leviano sobre a proposio de Guattari a respeito das cidades-subjetivas, que pretende contar com o acesso ao gnius (o impessoal em ns) de Agamben, discutido aqui adiante.]

A importncia do percurso : algo percorre por mim, posso me aquietar em inrcia. Cria-se o vo, a passagem para exerccio tranquilo das imagens e memrias. O silncio vem apenas com o percurso, no percurso. O flanur em mim descobre as imagens contidas ao observar o outro. Antes de imagens ou histrias dos lugares por que passo, crio relatos de lugares recheados por memrias e imagens afetivas. Em meu percurso, tanto as paisagens experienciadas quanto as trocas inspiram construo de uma cartografia precedente, ou antes formuladora, da paisagem-ntima paisagem-retrato, talvez - desejada. Para isso trao, encaminhando-me escrita da cartografia ntima, um desenho-corpo que desenvolvo no contexto individual atravs dos deslocamentos pequeno-nmades. afinal na manuteno das paisagens experienciadas em corpo presente que exercito trocas em cartografia e as mapeio em vestgio. (mar.2011)Como todas as cidades grandes, era feita de irregularidade, mudana, avano, passo desigual, choque de coisas e acontecimentos, e, no meio disso tudo, pontos de silncio, sem fundo; era feita de caminhos e descaminhos, de um grande pulsar rtmico e do eterno desencontro e dissonncia de todos os ritmos, como uma bolha fervente pousada num recipiente feito da substncia duradoura das casas, leis, ordens e tradies histricas. (MUSIL,1989:18)Para caminhar adiante se deve partir em prtica da observao da paisagem real - dum real enquanto corpo inserido - e da experincia corprea dos sentidos com essa paisagem. Tais contatos se do muitas vezes em caminhadas guiadas pelo acaso, durante as quais colecionam-se paisagens, tempos, sons, espaos e personagens que passam a frequentar nosso universo de imagens mentais, uma vez mesclados em imaginao ou sonhos. Ou seja, as imagens colhidas imediatamente se transformam atravs do corpo aberto a interaes e ativaes, e o transformam em novas realidades, ou verdades acreditadas[footnoteRef:29]. De cada um de ns. Assim se d o processo de formao da formulao auto-paisagem que perseguimos, tal qual a compreendemos. Em direo escrita da auto-paisagem, so criadas a partir da relao com da paisagem experienciada pequenas narrativas que nomeamos cartografias ntimas e que constituem mapeamento escrito em exaustiva e ilimitada construo. [29: Que definiremos adiante, ao tratar paisagem e auto paisagem mais especificamente. Termo (ou conceito) que se constri como nossos tantos outros no decorrer deste texto e que, aos poucos, apresenta seus vieses possveis a partir de uma definio central ou uma indicao aglutinadora de suas especificidades. ]

cartografia ntima de um alter-si . personagemA produo de cartografias ntimas norteia e gera nossos escritos mais poetizados em criao de narrativas que sustentam a ambiguidade entre o espao da fico e as referncias extratextuais(ARFUCH,2002:16). Essas fices de si constituem-se como narrativas hbridas, ambivalentes, tendo como referente o autor, mas no como pessoa biogrfica, e sim o autor como personagem construdo discursivamente(idem:52). Exercitamos uma cartografia feita de demarcaes cognitivas, mas tambm mticas, rituais, sintomatolgicas, a partir do qual (o si) se posiciona em relao a seus afetos, suas angstias, e tenta gerir suas inibies e suas pulses (GUATTARI,1992:28)[footnoteRef:30]. [30: O que Guatarri nomeia sistema de modelizao da subjetividade ]

Para alm da apropriao do si pela observao do si, Guattari prope, por ressingularizao, a ativao da autopoiese em produo de subjetividade (1992:17-18)[footnoteRef:31]. Num sistema em que o conjunto das condies torna possvel que instncias individuais e/ou coletivas estejam em posio de emergir como territrio emergencial auto-referencial, em adjacncia ou em relao de delimitao com uma alteridade ela mesmo subjetiva (GUATTARi,1992:20), infere-se inevitvel estado de potncia diante do outro. Na noo de divduo de Guattari a relao consigo deriva da relao com o outro. Elegemos nosso outro a paisagem, ainda que indivduos (sujeitos) a constituam. [31: No se est mais diante de uma subjetividade dada como um em si, mas face a processos de autonomizao e autopoiese]

A esta altura interessante sublinhar que eu, auto, si, prprio e sujeito se confundem em muitos momentos desta escrita, uma vez que trechos de terceiros so teis e respaldam nossas ideias, ainda que seu objeto possa ter uma inclinao diversa da nossa. Assim julgamos ser importante explicitar as escolhas formais desta escrita. Consideramos nossos textos poticos, que entrecortam este texto do inicio ao fim, imprescindveis, por algumas razes: primeiramente por constiturem sentido no encaminhamento de nossas reflexes, e por oferecerem, ao lado das imagens, relevncia artstica s discusses tericas que desenvolvemos ou apontamos aqui. Dessa forma, procuramos, num ir e vir entre nosso ns e nosso eu, deixar claro, alm de nossos temas, os nossos porqus e nossas questes que desembocam em um ou outro conceito, um ou outro assunto a ser discutido. So os porqus, hoje mais claramente colocveis pelo texto potico, a matria deste estudo, e os a respeito de os trechos mais acadmicos, formais.No presente texto, assim como em nossas narrativas, o personagem-autor reside nas imagens advindas de memria e experincia, sensaes e imagens subjetivas construdas pelos afetos ativados por quilo que v e presencia. Distanciamo-nos, portanto, de um personagem representativo, uma vez que a procura aqui encaminhada pela experienciao, e nos vestimos com os prprios trajes do banal cotidiano. Assim, em nossos escritos o personagem sempre outro, ainda que em reflexos prprios dedicados escrita em descrio do outro: traa-se uma parbola, de forma que toda a descrio tenha impregnada em si elementos ntimos, ainda que imaginativos, em coleo de auto-outros, auto-fantasias, auto-projees, etc., que possibilitam traar uma silhueta discursiva do personagem-em-desenho. Considerando a experienciao a nica forma de devolver alguma aura ao cotidiano e na irrepetibilidade de uma road trip em que os pontos de parada so determinantes para a experincia vivida, definimos para ns mesmos uma espcie de alter-si. Em trabalhos como Suitte vienense(2007) , a artista francesa Sophie Calle planeja e determina os personagens a serem interpretados por si mesma, vividos e documentados distantes do seu cotidiano (ainda que numa distncia-deslocamento delimitados pela mscara), e organiza-se para isso. Em seu relato, o que a move e a interrompe parece ser sempre o olhar do outro. De outra forma, ainda movida pelo olhar via um mecanismo do alter-si que se coloca em ao a partir dos olhares alheios, posicionamo-nos entregues sem planejamento, disposio para personificaes passageiras via olhar. o mximo de personagem e o mais prximo de representao que se aproximam desta produo, e que se oferecem em trabalho apenas via palavras, que elegemos nossas condutoras de realidades e fices mescladas, indiscernveis.

Sou outra quando estou num bar beira de estrada. Sou aquela que os olhos dos outros imaginam que eu seja. Deleito-me com essa personagem, debruo-me no balco e peo algo alcolico, ou uma fanta-laranja, conforme os aguados olhos que me observam desejam. Coloco-me disposio da fantasia que o olhar do outro instaura em mim, e assim me mostro quele que me acompanha, e essa a forma de experienciar-me efemeramente enquanto fruto imediato da paisagem. (autoria prpria, set.2011)Nos parece que no somente a estrada - enquanto cone de imagem libertria da road trip ou o deslocamento em si, possibilita a experincia do si diante da paisagem. Milan Kundera incita reflexo sobre a representao de personagens diante da vida-paisagem real quando no conto O jogo da carona (KUNDERA,1985:71-91), o companheiro da personagem que instaura o jogo durante uma viagem de carro, deixa aos poucos de perceb-la enquanto sua companheira, e calcifica em seus olhos a imagem da outra representada, para muito alm do jogo primeiro. Assim, superficialmente introduzindo o conceito de identidade por contraposio ao de personagem, conceitos que se fundem na fico, afirmo (em 1a pessoa inevitvel neste trecho) procurar pelo trabalho distanciar-me da idia de identidade rigorosa, na qual me enquadrariam: mulher, paulista, branca; artista, mulher, latino americana, parda; profissional-liberal, amarela, classe mdia, etc. -, conceito que Amelia Jones (1998) privilegia, alinhavando trajetrias de artsticas que investigam a subjetividade carnalizada, encarnada no corpo fsico e em seus limites e especificidades. Assumo-me encarnada nesta identidade de padronagem social, mas opto por dedicar-me a limites identitrios mais tnues, impalpveis, e portanto a mim mais misteriosos. Assim, fundindo-me paisagem - que pode, e outro - uso a matriz da frase de Alberto Pucheu[footnoteRef:32]: Veja como quando eu escrevo eu j sou outro[footnoteRef:33]; e acrescento veja como quando voc me olha eu j sou outra, ou quando eu me vejo de fora, ou quando a paisagem muda eu j sou outra. A personalidade-identidade respeita e paisagem ao redor: definida e redefinida por ela via jogo, oferta. [32: Trecho retirado do dilogo estabelecido com Alberto Pucheu e Roberto Correa dos Santos, com mediao prpria, por ocasio da mesa Dilogos Transdisciplinares, realizada no Laboratrio NANO, UFRJ em 22.11.2011.] [33: Idem.]

Alguns personagens que vivem em mim e que so ativados vez por outra tornam-se constantes por desejo, outros por necessidade: Num trem, da mesma forma, desprovida da linguagem verbal, me vejo merc da comunicao e tambm de minha imagem: voc muito educada e muito bonita e pode ficar aqui vindos de uma senhora alem soam assustadores, de forma a me transformar em outra pessoa, assim como o fez minha resposta garonete que me enxotava do restaurante com meu sanduiche comprado no bar do mesmo vago: quando eu terminar eu saio me torna outra. Na experincia relatada, em questo de segundos fui a que botou as botas sujas das andanas em cima da mesa e aquela que cruzou as pernas cobertas por um tecido fino e levou a xcara de loua boca delicadamente, enojada, porm. necessrio contemplar a esta altura o carter autobiogrfico deste processo. Leonor Arfuch(2002:27) discute o lugar da autobiografia na contemporaneidade, e formula o termo espao biogrfico para caracterizar a articulao entre os diversos gneros discursivos contemporneos ligados aos relatos de experincias pessoais e exposio pblica da intimidade. Sob esta perspectiva possvel estender a ideia de espao biogrfico a trabalhos como o da artista britnica Tracey Emin, que faz de sua intimidade o objeto de sua arte como com em My bed[footnoteRef:34], da mesma forma que seria possvel identificar esta produo como pertencente ou formuladora de uma espcie de espao biogrfico. [34: Em 1998 a artista expe, tal qual em seu prprio quarto, porm em meio galeria, a sua prpria cama, desarranjada, rodeada por seus objetos pessoais como cinzeiro, roupas, livros, etc.]

Utilizamos aqui tal termo por assumirmos a demarcao de razes biogrficas presente no trabalho, porm agora menos em demarcao de um espao, mas de um corpo em construo e ressignificao. Para Arfuch a narrativa das experincias vividas, mais que um simples devir de relatos, constituinte da identidade de quem narra e parte essencial no processo de subjetivao, e o indivduo indissociado que torna o relato impessoal uma impossibilidade, por povoado de linguagem e memria, inaugura o termo autofico, cunhado pelo escritor francs Serge Doubrowski (ROBIN,1997:45-59) em 1977, que traz dados reflexo que engendramos. A escrita em autofico permite que fantasias e sonhos se manifestem em escrita autobiogrfica. Em nossas narrativas - cuja forma instintiva parte de leituras assduas de fbulas, literatura infantil, e de autores como talo Calvino, Jorge Lus Borges, Dostoievski[footnoteRef:35] e Oscar Wilde[footnoteRef:36] - figuram sobretudo imagens que se mesclam em memria (afetos), em geral de carter visual (os elementos, a natureza) e, apropriando-nos do termo dirigido ao ficcionalizvel, procuramos afirmar a naturalidade do carter ficcional de nossas construes mentais que alinhavam paisagens vivenciadas linguagem prpria, via memria e desejos. Numa ao mais manifesta que a nossa, e positivamente leviana, a artista francesa Laurie Anderson assume: H o que aconteceu e h o que eu disse e escrevi sobre o que aconteceu[footnoteRef:37], em afirmao direta de um autoficcional em sua produo. O que nos chama a ateno em trajetrias de artistas que se pretendem autobiogrficas e auto ficcionais [footnoteRef:38] a utilizao da escrita ela prpria enquanto forma artstica. [35: Um relato afetivo me toma de assalto: descubro o conto favorito da infncia a pequena vendedora de fsforos ter razes em Dostoivski atravs de uma coletnea de contos russos j desfolhados que compro como nico artigo da visita enorme feira da ladra, em Lisboa, e cujo nico conto de Dstoivski este.] [36: Em historias de fadas, escrito para sua filha.] [37: Laurie Anderson sobre a possibilidade de iluso na prtica de autobiografia em seu trabalho. in Goldberg (2006).] [38: Sophie Calle, Tracey Emin, Laurie Anderson, entre tantas.]

silncio e ensimesmamento : sobre a escrita de si A nica finalidade aceitvel das atividades humanas a produo de uma subjetividade que enriquea de modo contnuo sua relao com o mundo (GUATTARI,1992:30)Segundo Foucault (1994) a escrita vem desde a antiguidade atuando diretamente enquanto tcnica no cuidado de si. A genealogia que Foucault traa da ideia de si da Antiguidade ao Imprio nos interessa, pois demonstra a passagem do observar o si ao pensar o si: a prtica de escrita dos perodos helensticos e imperial diferem da monstica mais tardia, porque recordam e descrevem o que o indivduo fez, e no o que ele pensou. (FOUCAULT,1994:7)[footnoteRef:39] Este refere-se ao si prprio, a ser observado em formulao e atualmente em ressingularizao: um si que posteriormente exercita o exame de conscincia, que comea com a escrita de cartas e expande-se com o dirio inaugurado na poca crist. O exerccio empreendido nesta pesquisa se coloca assim genealogicamente em retomada, e remete mesmo j mencionada Antiguidade. A busca aqui se destina ao observar o si pelo filtro da paisagem, observao esta desvencilhada do pensamento do si, e sobretudo da anlise deste pensamento tcnica de conhecimento de si que fora instaurada formalmente pela psicanlise. [39: Foucault define si como conjunto de o mesmo e identidade .]

Na presente prtica do exerccio de traduo de paisagem vivenciada para paisagem prpria, dedicamo-nos observao do banal cotidiano e escrita e documentao fotogrfica. O uso da escrita, e sobretudo da escrita em relato dos acontecimentos cotidianos, se faz enquanto aprendizado de mundo. Nesse exerccio, a relao se forma entre a escrita e a vigilncia: presta-se ateno s nuanas da vida, aos estados da alma, leitura, o ato de escrever intensifica e aprofunda a experincia de si. (idem:8) O exerccio de tomar notas sobre si mesmo, conserv-las, escrever relatos aos amigos, reler e reativar as verdades das quais precisaram(ibidem:12) constri uma espcie de coleo de observaes e relatos, um mapeamento fruto da ao mais completa, que ultrapassa a escrita e inclui captao de sons e imagens, que nomeamos como um todo arqueologia documental. Estes relatos simultaneamente do corpo e acrescentam sentido ao corpo do trabalho. Sendo assim, uma vez que um novo cuidado de si implica uma nova experincia de si (ibidem:8), procuramos aqui desdobrar a relao introspectivo-afetiva com o si que experimentamos ao viver a paisagem, ao criar as narrativas e ao oferecer o trabalho em aes em alteridade. Assim, julgamos poder construir peas e aes que reverberem como subjetividade que se faz coletiva, e que se desenvolve para alm do indivduo... derivando de uma lgica dos afetos... (GUATTARI,1992:20).

laperitif . vdeo em loop e instalao de mesa. 2012/13Conjunto de retratos em movimento, que ilustro com as fotos (cujos frames de vdeo seriam idnticos) a seguir. Cada um dos vdeos de trs minutos a serem mostrados j editados em loop so nada alm de retratos destes personagens que, durante meses, e deslocada, me acompanharam. Laperitif oferece porm um retrato desconcertante das trocas afetivas. Esperadas dvidas e dificuldades de comunicao aparecem uma vez que postos mesa os retratos dos personagens. Retratos que exibem o desconforto desta reunio de gentes. mesa, ao invs de comes e bebes, as palavras, os papis escritos, colocados sobre pratos, copos, travessas. Tal erro do que seria um encontro agradvel ao redor duma mesa de aperitivo (que ofereo quando do incio de minha residncia artstica no La CourDieu, contemplada adiante) faz ver um pouco do que adiante nomearemos ilegvel. O ilegvel, neste caso, de cada retrato, ou a falha em cada relao. De cada afeto.

re-apreende-se a escrita o roteiro, o romance, a fbulaToda fabulao fabricao de gigantes (DELEUZE E GUATTARI,1992:223)Na prtica, nos parece possvel definir de imediato trs mtodos de escrita de si que nos interessam e so exercitados desde as anotaes dirias escrita de pequenas narrativas, escrita reflexiva posterior ao trabalho: o relato puro; o relato infectado de pensamento, e o relato reformulado. Para introduzir estas formas de relato servimo-nos de correlaes com artistas que tm processos similares em procedimento, ou melhor, cujos procedimentos se podem nomear destas mesmas formas, ainda que possivelmente com lacunas nossas. relato puroO que nomeamos relato puro remete diretamente descrio: descrio de aspectos prticos onde o envolvimento pessoal no se faz visvel em texto, apenas em contedo a presena do artista no fato descrito, a rotina, a caminhada. O artista Hamish Fulton, j citado, faz de imagens em sntese seu relato puro de caminhada. Tambm On Kawara, em seu trabalho I am still alive, relata dia aps dia sua experincia humana da forma mais pura e sinttica que encontra: pinta seus dias, as datas especficas, em telas de dimenso nica, e escreve assim, dia a dia, sua existncia. Ainda que partindo de sistemas de produo para estes trabalhos, estes artistas nos sugerem afinal que o relato puro no existe, infectados de cultura[footnoteRef:40], memrias[footnoteRef:41] e linguagem[footnoteRef:42] que somos e que so detonadas a toda e qualquer escolha que fizermos . [40: Que tratamos via Edward Hall (1989)] [41: Agamben (1995) sobre memria nos auxilia : Benjamin expressou uma vez a tarefa de redeno, que confiava memria, na forma de uma experincia teolgica que a recordao faz com o passado. O que a cincia estabeleceu, escreve ele, pode ser modificado pela recordao. A recordao pode fazer do inconcludo (a felicidade) um concludo, e do concludo (a dor) um inconcludo. Isto teologia: mas, na recordao, ns fazemos uma experincia que nos impede de conceber de um modo fundamentalmente a-teolgico a histria, assim como nem sequer nos consentido escrev-Ia directamente com conceitos teolgicos.] [42: Que trataremos longamente adiante a partir de Foucault, passando por Calvino e Agamben.]

relato reformuladoCindy Sherman, artista americana, nos permite discorrer sobre o que poderia ser o relato (visual neste caso) reformulado. Esta forma de relato cria a personagem a partir da prpria imagem-corpo da artista, e a apresenta como tal. Ainda que algumas de suas sries, como Untitled Film Stills[footnoteRef:43], remetam a algo de uma realidade, ainda que uma inexistente realidade flmica, por recriar cenas que no existiram, num apelo memria ficcionalizante, se pauta nas falsas memrias de quem v, ou melhor, na qualidade que a memria tem de recriar fatos e cenas e t-las enquanto verdade. Sua produo como um todo se dedica a criar, ou recriar, personagens ficcionais que remetam a personagens reais, via caricatura ou ironia, e lida com a imagem fotogrfica enquanto meio de escambo de realidades. [43: Srie de fotografias de Cindy Sherman que representam stills de filmes, mas cujas cenas foram produzidas to somente pela artista que, inclusive, se coloca enquanto personagem em todas elas.]

relato infectado de pensamentoSophie Calle, artista francesa, exercita o relato infectado de pensamento quando, em seus trabalho j citado, Suite Vienense, descreve a perseguio a seu objeto observado e entrecorta tal relato descritivo de seus passos, e dos passos e seu alvo, com interjeies que dizem sobre suas impresses, seu estado de esprito. Os anseios da artista em processo de trabalho tm para o leitor o mesmo peso, e se misturam ao decorrer da leitura, tornando vezes imperceptveis tais naturalidades no cotidiano de construo de uma pea: estou cansada, ser que ele vai me reconhecer, fundem-se aos pensamentos estratgicos da artista: amanh devo aguard-lo depois das 10. A este que se pode chamar estilo de escrita se deve proximidade do leitor com a personagem artista, familiaridade com esta via concatenao de pensamentos: como se estivssemos lendo seus pensamentos. dessa escrita que fazemos uso mais frequente este processo, em fluxo de pensamento, e que ousamos sugerir a imagem das lousas do artista e professor Joseph Beyus, que poderiam em forma se aproximar das nossas[footnoteRef:44]. [44: Projeto de fotografia jamais realizado, mas h muito planejado.]

.3 colheita: arqueologias documentais

Durante todo o presente processo de criao, sobretudo no decorrer da experienciao das paisagens, o colecionismo se faz presente. Colecionamos imagens em movimento o trajeto, a ponte, o trem colhemos sons os sinos , anotaes, vozes coletamos afetos bilhetes, marcas produzimos escritos - dirios, recados e reunimos alguns poucos objetos livros[footnoteRef:45], folderes, selos e envelopes locais. Essas colees do forma produo, instauram sentido e criam necessidades. H uma infinidade de trabalhos decorrentes de cada pequeno trajeto, dos percursos e dos afetos despertados. a arqueologia dos passos que d aqui o sentido construo e reaprendizado de mundo perseguido: os aprendizados no se findam, mas se transformam com o tempo. Quando se retorna a uma cidade, esta jamais ser a mesma diante de olhos renovados e com apriores apreendidos das mais recentes andanas. Sobre este colecionismo, aspecto processual desta produo que organiza elementos formuladores desta mesma, acrescenta-se que deixar e trazer marcas de aes a cada deslocamento a que nos propomos alonga seus significados: a coleo em andamento no requer posse, mas lida com memria e vestgio. [45: Como Batlerby o escrivo, de Herman Melville (1995), livro que encontrei no quanto depois que minha hspede no quarto de 2 camas e por 3 noites (com quem s me comuniquei via bilhetes, e documentao fotogrfica de seus pertences) se foi.]

No apenas em deslocamento, mas tambm as coisas do cotidiano so colecionadas, seja objetualmente ou via imagens e relatos: as colees de corpos se organizam pelo desejo por perceber no entorno o desenho do prprio corpo. A todo esse entorno que nomeio paisagem incluo o rosto no espelho, este papel, o mar. Tudo o que os olhos veem, o corpo sente, se torna paisagem; as imagens que a memria recria, ou a fantasia cria: so paisagens. As paisagens so meu reflexo, dizem quem sou a meus olhos descrentes que tm por mim uma memria difusa, incerta e romntica. As paisagens deixam de existir apenas no breu. Assim, a manuteno do retrato se faz do tempo. O tempo a mais decretada das perdas, e para no esquecer-nos de quem somos, o que fomos, o que so as coisas e o mundo, buscamos registrar esses momentos. A fotografia desnuda a presena de corpo nas ditas paisagens que nomeamos. Em nosso caso o desejo de presena exercitado com as fotos dos quartos em que dormi, e a estante de escritos de amigos e de amantes afirmam a memria tornada presena. Memrias de minha prpria presena como se fosse esta memria j fruto da fantasia e eu qualquer uma.Assim, partimos do espao aberto pelos afetos e nos destinamos escrita mais diretamente dedicada ao processo artstico, durante a qual lanaremos mo dos termos e das formas de relato aqui introduzidas.

em Arthur Bispo do Rosrio que encontramos referncia afetiva neste momento. Ainda que interno de um hospital psiquitrico, por longos anos Bispo desenvolvera uma espcie de coleo cujo desejo disparador era tanto de afeto quanto de controle, assim como os nossos parecem ser. Os nomes que bordava em