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ESPAÇO PÚBLICO E FRENTE DE ÁGUA [REPENSAR O LIMITE] O limite é o verdadeiro protagonista do espaço; como o presente, outro limite, é o verdadeiro protagonista do tempo. (Eduardo Chillida em Barañano, 1999: 31) No mapa físico – e também mental – das cidades de água, o seu limite é associado a uma linha: a linha de demarcação entre a cidade e a água. Pretende-se, no âmbito desta reflexão, questionar este limite. Partindo do pressuposto que o espaço público urbano possui um papel estruturante e definidor na cidade (invertendo assim a sua definição como vazio urbano, sugerindo antes considerá-lo como cheio urbano) e considerando que a própria água pode ser espaço público (como espaço percorrível, como via de transporte ou mesmo como espaço acessível fisicamente), podendo constituir-se ela própria como um prolongamento da cidade, propõe-se subverter todo um imaginário, segundo o qual a cidade termina, literalmente, onde começa a água. Do ponto de vista da cidade acessível – usufruível – por todos os seus cidadãos, onde termina o domínio urbano? Constatando as várias operações de regeneração urbana que se têm vindo a realizar nas frentes de água, utilizando como expressão chave a “aproximação das cidades à água”, pretende-se observar como é que a cidade se relaciona, de facto, com a água. Qual o grau de interacção entre estes dois meios? Na procura deste novo limite – assente na construção de cidade a partir do espaço público – propõem-se duas abordagens: Uma leitura horizontal, baseada na observação dos diferentes acontecimentos que se sucedem ao longo da frente de água – públicos ou de acesso restrito –, que configuram uma gradação/escala de valores de acessibilidade. Elaborando como que uma dissecação da frente de água – e considerando como exemplo a cidade de Lisboa, no seu âmbito metropolitano –, num extremo dessa escala de valores estarão provavelmente as frentes portuárias (acesso interdito à água), noutro extremo a praia (acesso físico à água) … Por outro lado, uma leitura vertical, assente na análise dos principais espaços públicos de ligação – física e simbólica – da cidade com a água, muitos deles com origem histórica, mas que, apesar da sua transformação, permanecem na cidade actual. A Arte Pública urbana constitui-se nesta abordagem como um indicador fundamental, elemento unificador das duas leituras e que irá tornar significativos os espaços charneira da cidade (rótulas). Por um lado, a sua localização/relação com o espaço envolvente traduz o grau de acessibilidade à água (leitura horizontal); se por vezes a sua implantação vai até à própria água (El Peine del Viento [Eduardo Chillida] nas rochas da praia de Ondarreta, em San Sebastián), em Lisboa, onde as infraestruturas portuárias ocupam a quase totalidade da frente de água, a localização das obras de Arte Pública irá revelar os espaços de acesso onde o porto é interrompido – as brechas (Chaline, 1994). Simultaneamente, a Arte Pública constitui-se também como reveladora dos eixos de ligação da cidade com a água (leitura vertical), acentuando esta ligação através do carácter simbólico que introduz nos espaços; paradigmático é em Barcelona o eixo da Rambla, que culmina, na Plaça Portal de la Pau, com o Monumento a Colón, cujos desenhos patentes na Memória Descritiva do Projecto revelam um interessante paralelismo (tanto na relação espacial do monumento com a envolvente, como no desenho da própria praça) com o Terreiro do Paço lisboeta…

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ESPAÇO PÚBLICO E FRENTE DE ÁGUA [REPENSAR O LIMITE] O limite é o verdadeiro protagonista do espaço; como o presente, outro limite, é o verdadeiro protagonista do tempo.

(Eduardo Chillida em Barañano, 1999: 31)

No mapa físico – e também mental – das cidades de água, o seu limite é associado a uma linha: a linha de demarcação entre a cidade e a água. Pretende-se, no âmbito desta reflexão, questionar este limite. Partindo do pressuposto que o espaço público urbano possui um papel estruturante e definidor na cidade (invertendo assim a sua definição como vazio urbano, sugerindo antes considerá-lo como cheio urbano) e considerando que a própria água pode ser espaço público (como espaço percorrível, como via de transporte ou mesmo como espaço acessível fisicamente), podendo constituir-se ela própria como um prolongamento da cidade, propõe-se subverter todo um imaginário, segundo o qual a cidade termina, literalmente, onde começa a água. Do ponto de vista da cidade acessível – usufruível – por todos os seus cidadãos, onde termina o domínio urbano? Constatando as várias operações de regeneração urbana que se têm vindo a realizar nas frentes de água, utilizando como expressão chave a “aproximação das cidades à água”, pretende-se observar como é que a cidade se relaciona, de facto, com a água. Qual o grau de interacção entre estes dois meios? Na procura deste novo limite – assente na construção de cidade a partir do espaço público – propõem-se duas abordagens: Uma leitura horizontal, baseada na observação dos diferentes acontecimentos que se sucedem ao longo da frente de água – públicos ou de acesso restrito –, que configuram uma gradação/escala de valores de acessibilidade. Elaborando como que uma dissecação da frente de água – e considerando como exemplo a cidade de Lisboa, no seu âmbito metropolitano –, num extremo dessa escala de valores estarão provavelmente as frentes portuárias (acesso interdito à água), noutro extremo a praia (acesso físico à água) … Por outro lado, uma leitura vertical, assente na análise dos principais espaços públicos de ligação – física e simbólica – da cidade com a água, muitos deles com origem histórica, mas que, apesar da sua transformação, permanecem na cidade actual. A Arte Pública urbana constitui-se nesta abordagem como um indicador fundamental, elemento unificador das duas leituras e que irá tornar significativos os espaços charneira da cidade (rótulas). Por um lado, a sua localização/relação com o espaço envolvente traduz o grau de acessibilidade à água (leitura horizontal); se por vezes a sua implantação vai até à própria água (El Peine del Viento [Eduardo Chillida] nas rochas da praia de Ondarreta, em San Sebastián), em Lisboa, onde as infraestruturas portuárias ocupam a quase totalidade da frente de água, a localização das obras de Arte Pública irá revelar os espaços de acesso onde o porto é interrompido – as brechas (Chaline, 1994). Simultaneamente, a Arte Pública constitui-se também como reveladora dos eixos de ligação da cidade com a água (leitura vertical), acentuando esta ligação através do carácter simbólico que introduz nos espaços; paradigmático é em Barcelona o eixo da Rambla, que culmina, na Plaça Portal de la Pau, com o Monumento a Colón, cujos desenhos patentes na Memória Descritiva do Projecto revelam um interessante paralelismo (tanto na relação espacial do monumento com a envolvente, como no desenho da própria praça) com o Terreiro do Paço lisboeta…

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LIMITE

Para Kevin Lynch, o limite é um dos elementos que compõem a imagem da cidade. Em A imagem da cidade, define: os limites são os elementos lineares não considerados como ruas: são normalmente as fronteiras entre duas áreas de espécies diferentes (1960/1989: 73). No âmbito das frentes de água urbanas constata: o rio Charles [Boston], como limite que é, faz a distinção clara de água e cidade, lado a lado (…). Esta é contudo uma característica rara nos limites. Assim, na frente de porto do mesmo rio, a noção de água não era tão clara, pois era apagada por muitas estruturas e pelo afastamento das actividades diárias da vida do porto (1960/1989: 74). Ao longo da frente de água existem uma série de acontecimentos espaciais e actividades (que Lynch denomina de acidentes) que impedem a definição de limite como uma linha contínua e evidente; não existindo, do ponto de vista das vivências urbanas (do espaço público), acessibilidade à água, nem continuidade ao longo dessa frente, trata-se de um limite fragmentário: em sentido abstracto é contínuo mas apenas visível em alguns pontos (1960/1989: 74). Nesta reflexão acerca do limite da cidade de água (ou da desconstrução da ideia do mesmo), a análise das obras urbanas do escultor Eduardo Chillida, mais especificamente aquelas colocadas em espaços que se relacionam com a água, torna-se aqui relevante. Chillida questiona o conceito de lugar e de limite; criar um lugar significa colocar limites, delimitar introduzindo um espaço ou esvaziando-o. Este questionamento do conceito de limite (e de espaço) e de vazio (e de silêncio) aparece frequentemente nas suas arquitecturas delimitadoras focando a exactidão das lonjuras, o horizonte que determina e fecha, na sua tradução etimológica1 (Barañano, 1999). Para Chillida, o material do escultor é o espaço mas é também o vazio, só com ambos se constroem lugares carregados. Da mesma forma que a matéria da música é o som mas também o silêncio. Todo o silêncio está feito de palavras que não se disseram (Marguerite Yourcenar em Barañano, 1999: 31). A colocação da obra tem uma importância fundamental; esta é erigida em diálogo com a envolvente, ganhando sentido em função da paisagem. Um claro exemplo é a obra, El Peine del Viento, em San Sebastián2, três peças para a contemplação que se relacionam directamente com o mar, as rochas e o horizonte desconhecido. Chillida afirma Lo que es de uno es casi de nadie, no sentido em que todos somos proprietários da obra de arte desde o momento em que estamos diante dela. A Arte Pública é pública porque usufruível. Ao introduzir esta obra nas rochas da Praia da Ondarreta, Chillida está a prolongar o usufruível – a própria cidade –, criando um lugar e carregando-o simbolicamente. Com Elogio del Horizonte, em Gijón3, o escultor abre um novo panorama aos habitantes da cidade. Esta obra criou um campo mental de contemplação que estendeu a cidade de Gijón até ao mar, aproximando a sua visão e dos seus limites. Chilida (…) deu à cidade: uma porta que se abre ao infinito; um limite para ver o que não tem limites; um lugar sem tecto onde nos centramos entre o céu e a terra para, ouvindo o rumor das águas, poder também vê-las; um marco que nos envolve o horizonte e a cidade e que nos devolve a medida do escultor, que não deixa de ser a sua escala humana (Matilla, 1991: 23). 1 Do grego horízon – o que limita (Dicionário Universal Texto Editores).

2 Obra de 1976.

3 Obra de 1990.

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Tanto em El Peine del Viento como em Elogio del Horizonte, Chillida amplia o domínio urbano (o limite) criando um lugar, através da coordenação de dois planos opostos: o céu e o mar, que se unem no horizonte. TERRA MARÍTIMA/ÁGUA URBANA

A definição de limite como algo que estabelece uma separação entre duas realidades, poderá conduzir à contraposição entre terra e água, entre cidade e mar, entre cheio e vazio. O estuário do Tejo, na sua escala imponente, configura-se como o Grande Vazio, onde, pela sua própria natureza, estão ausentes as pessoas e a vida urbana, ou então ausentou-se, ele, da vida da cidade. E, ao mesmo tempo, caracteriza a cidade de Lisboa de uma forma única, a sua vacuidade a tornar significativo o cheio, numa relação singular de complementaridade (Sisti, 2007). Estas oposições não são lineares. Vítor Matias Ferreira, à expressão onde a terra acaba e o mar começa (ilustrando a natureza transfronteiriça daqueles territórios), contrapõe a terra marítima e a água urbana. A identidade das cidades de água é assim construída a partir de uma dupla projecção terrestre e aquática. Para este autor, a terra e a água, na sua qualificação urbana, são elementos que aparecem na sua intima e estreita interacção, de tal modo que a formulação de um deles é condição de enunciação do outro: como não constatar, então, que esta cidade de água e este mar urbano enunciam, conjuntamente uma metáfora fascinante? (Ferreira, 2004: 17). Cada um destes elementos encontra no outro uma complementaridade, senão mesmo uma razão de formulação e de existência. V. M. Ferreira refere-se à especificidade da frente estuarina do Tejo: o estuário supera os limites citadinos de Lisboa, criando frentes de água num território de configuração mais ampla que a cidade; existe em Lisboa uma dualidade fluvial e marítima, que vai a par com a sua dupla condição urbana e metropolitana. Desta forma, contraria a designação de frente ribeirinha, no sentido em que esta confina a sua frente de água a uma dimensão exclusivamente fluvial, o que constitui uma menorização de um posicionamento que aquele estuário nunca teve, bem pelo contrário. Lisboa, enquanto cidade de água, só assume plenamente uma tal projecção naquele envolvimento marítimo, seja na sua frente atlântica seja na frente estuarina do Tejo, que lhe acentua, assim, aquela condição de “mar mediterrâneo” (Ferreira, 2004: 26). Constata assim outra das suas ambiguidades: sendo uma cidade atlântica, é-o também de matriz culturalmente mediterrânea. Do ponto de vista das vivências urbanas, as fronteiras não são definíveis. Dentro desta diluição das fronteiras torna-se pertinente referir o espaço de praia. A praia urbana constitui-se como um prolongamento da cidade; sendo a própria água espaço público, fisicamente acessível, tanto as vivências urbanas (a cidade) são prolongadas até à água, como esta se estende também até à cidade – uma cidade com uma frente de praia possui uma relação completamente distinta com a água –, proporcionando uma continuidade física e visual entre dois meios distintos: o sólido e o líquido, a cidade e a água. As matérias urbanas fundem-se com as matérias naturais (areia, água…), não sendo perceptível um limite definido entre as duas. Bruttomesso (1998) refere-se ao espaço de praia como uma categoria especial de espaço público urbano, uma espécie de grande praça, que estende até à água a possibilidade de encontro e socialização, típica dos espaços colectivos.

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Várias cidades têm vindo a proceder à regeneração das suas praias e da sua relação com o espaço urbano, como estratégia geral de revalorização do espaço público. É o caso de Barcelona, na medida em que, para além de regenerar o espaço de praia (que se torna aqui um factor competitivo marcante), criou continuidades horizontais e verticais: tanto ao longo da frente de água, como dos espaços públicos que ligam a cidade à água, em direcção à praia, como por exemplo o percurso pedonal que liga a Rambla, passando por Port Vell, à Praia da Barceloneta. BARREIRA

Também a concepção da água como barreira pode ser errónea; sendo a água considerada como obstáculo, como um fim urbano, ela pode, no entanto, ser um elemento ligante. É o caso de cidades com 2 margens. Muitos limites são mais uma costura de união do que propriamente uma barreira isoladora (Lynch, 1960/1989: 77)4. Vítor Matias Ferreira define as frentes de água urbanas como fronteira territorial, a ser entendida não como um eventual obstáculo mas como uma demarcação de territórios, para além da sua natureza material e dos respectivos processos de (re) construção social e politica (…). Apresentando-se quase sempre como um obstáculo físico, que não propriamente de ordem espacial, é contudo na articulação daqueles distintos territórios, em estado permanente de transição, que acaba por se reconfigurar aquela dita barreira territorial (2004: 23). Muitas vezes a barreira física, o obstáculo propriamente dito, começa muito antes da frente de água. As duplas barreiras rodo ferroviárias, as superfícies ocupadas por infraestruturas ligadas ao sistema portuário, os vazios urbanos deixados pela desactivação dessas mesmas infraestruturas – espaços portuários ou de actividade industrial –, funcionam como impeditivos de um verdadeiro usufruto da água urbana, definindo assim um limite da cidade, no sentido da sua urbanidade, muito aquém da própria água. RELAÇÃO DA CIDADE COM A ÁGUA

A relação da cidade com a água é visível no seu espaço público; este constitui o lugar de encontro entre aquelas duas realidades e, para além de ser influenciado por factores externos (históricos, económicos, sociais), comuns a várias cidades, é-o também por condições específicas, que Ariane Wilson (2001) designa de factores de identidade. Em The city assembled, Spiro Kostof (1992) aborda a morfologia urbana das cidades de água, o seu crescimento e a particularidade das suas frentes de água. A especificidade do sítio, a maneira como este encontra a água (no seu espaço público), caracteriza a cidade: a sua forma, mas também a sua identidade. Kostof observa que em várias cidades o crescimento se deu ao longo da frente de água, originando em muitos casos uma rua paralela à água, e algumas ruas perpendiculares à mesma – uma espécie de Pente, que se torna também um paradigma da cidade de água.

4 Em A imagem da cidade, Kevin Lynch explora a relação entre limite e barreira, afirmando que nem sempre um limite é uma barreira; por exemplo os limites acima do nível do solo poderiam até, futuramente, ser bons pontos de orientação na cidade (1960/1989: 77).

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LEITURAS HORIZONTAIS: DINÂMICAS EM CONFLITO NA FRENTE DE ÁGUA

Na cidade de água existe todo um conjunto de acontecimentos que se sucedem ao longo da frente de água – praças de água, passeios marítimos, espigões, parques litorais, praias – e cuja maior ou menor apropriação proporciona diferentes graus de contacto da própria cidade com a água. Das frentes portuárias (acesso interdito à água) à praia (acesso físico à água), os diferentes perfis urbanos encerram também diferentes significados. Este contacto nem sempre foi privilegiado. O historiador francês Alain Corbin descreve como, no fim do século XVIII, a ideia de oceano como fonte de perigos, vapores nocivos, monstros e espíritos diabólicos começa a modificar-se, para dar lugar a uma ideia de oceano como majestoso elemento natural, invulnerável à urbanização. O Grande Vazio deixa de constituir um factor de insegurança para passar a ser um factor de admiração. Começa-se a olhar de maneira diferente para os espaços urbanos que se relacionam com a água, quer seja esta água de rio, estuário, mar, lago, baía, … A frente de água começa a ser considerada como espaço de múltiplas possibilidades, na medida em que representa a ligação a uma imensa rede de água, lugar de encontro entre a cidade e as vastas estruturas existentes na natureza (Meyer, 1999). A frente de água, como espaço de confronto/harmonização entre a cidade e natureza começa assim a ser um leitmotif no planeamento urbano, presente nas visões de Le Corbusier para as frentes de água de Argel, Barcelona, Buenos Aires ou Rio de Janeiro, nas promenades, nos piers e passeios marítimos (cria-se um novo vocabulário de espaços públicos nas frentes de água5), nas renovações de determinadas zonas nas cidades de água (a Exposição do Mundo Português em 1940 abrindo Lisboa ao Tejo), até ao actual conceito de waterfront e suas operações de reconversão urbanas. Mas a dupla condição de cidades de água e de frentes urbanas portuárias origina um conflito entre actividades. A monumentalização da frente de água é muitas vezes complicada por argumentos funcionais: two separate cultures… which have nothing to say to one another (Konvitz em Kostof, 1992: 41). Esta oposição de conceitos acentua-se no século XIX, nomeadamente a partir da industrialização, prolongando-se até hoje, criando na frente de água um campo de tensões entre duas valências aparentemente inconciliáveis: espaço público e infraestrutura6. Se a água se constitui como elemento iniciático da formação da maior parte das cidades, é também verdade que, em determinados momentos históricos, com a diminuição do papel atribuído à água, foram as próprias cidades que dela se afastaram. No início, a cidade mantinha com o seu porto uma estreita relação e uma interdependência funcional (os próprios portos funcionavam como espaço de passeio), no entanto, o modelo territorial da cidade industrial rompeu com o equilíbrio físico e simbólico entre as cidades e a água (Remesar, 2002). O processo repete-se em várias cidades: a frente de água começa a ser ocupada com infraestruturas (porto+indústria+redes rodo ferroviárias) cada vez mais complexas, constituindo-se como um bloco de território autónomo, distanciando-se das restantes

5 Sintomática é em Espanha a criação, em 1918, da “Lei dos Passeios Marítimos”.

6 Por outro lado, como afirma Hans Meyer, no início do século XX, as cidades portuárias eram vistas como centros de abertura e modernidade. Assim, eram também criadas estruturas para mostrar o “mundo fantástico do porto”: linhas através das áreas portuárias em Londres e Liverpool, a construção de um teleférico por cima do porto em Barcelona, terraços pedestres ao longo dos cais de desembarque em Génova e Antuérpia…

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vivências urbanas, que se desenvolvem noutras direcções, originando-se assim desigualdades e assimetrias na cidade7. Com a desindustrialização, esses espaços, entretanto absorvidos pela cidade em crescimento (contando portanto com uma localização privilegiada), transformam-se em extensas áreas obsoletas na cidade, vazios hoje considerados como oportunidades de valorização da cidade, através de operações de reconversão/substituição de tecidos, mas onde a “aproximação das cidades à água” acaba por se transformar muitas vezes numa frase de marketing urbano. Os espaços criados acabam muitas vezes por ser acessíveis apenas às classes privilegiadas, não constituindo lugares verdadeiramente democráticos: o usufruto da água é ilusório, o limite afasta-se cada vez mais da água. LEITURAS VERTICAIS: LIGAÇÕES DA CIDADE À ÁGUA

Para além da ocupação paralelamente à linha de água, onde ocorriam as actividades marítimas e fluviais, verifica-se igualmente a necessidade de ligação do interior das cidades com a frente de água. Estas ligações configuram como que eixos de orientação da cidade em direcção à água, evoluindo para significativas artérias urbanas, nas quais a presença da água é sentida, mesmo sem a sua visualização. O simbolismo destes espaços torna-se mais evidente através da colocação de esculturas no espaço urbano, em enfiamentos que salientam a relação com a água. A relação com a água não se resume apenas à ligação cidade/água ou aos enfiamentos criados; muitas vezes estes eixos provêm de factores específicos das próprias cidades, o que é visível em alguns exemplos urbanos. Em Barcelona, a partir do sistema de linhas de água que drenava a água da montanha para o mar (ramblas) é criada, no século XV, uma avenida de passeio no espaço linear que separava a muralha e a zona do Raval (arrabalde), arquétipo de desenvolvimento urbano segundo os dados topográficos, autentico factor de identidade (Wilson, 2001). Com o tempo, esta avenida tornou-se um eixo central na cidade em expansão, constituindo-se como uma linha de orientação em direcção ao mar e como lugar de manifestação da vida pública8. Outro factor de identidade, este paralelo à frente de água, vem estabelecer com a Rambla uma relação estrutural de espaço público: o Passeig de Colom, criado no séc. XVII, funcionando como uma varanda urbana sobre o porto. Estes dois espaços, fisicamente antitéticos, mas ambos multifuncionais (como espaços comerciais, atractivos para várias instituições urbanas, representando também o papel de esplanadas urbanas), orientam a cidade, como um todo, em direcção à água (Meyer, 1999). O encontro destes dois espaços, a actual Plaça Portal de la Pau, é acentuado simbolicamente com a colocação do Monumento a Cristóvão Colombo, aquando da Exposição Universal de 1888.

7 Esta diferença entre duas áreas distintas na cidade é desenvolvida em estudos anteriores, a partir da observação das cidades de Lisboa e Barcelona (e Málaga como contra-exemplo) e foi designada como dialéctica nascente/poente: a ocorrência de um desequilíbrio físico e social entre duas partes da cidade, uma que parece acolher o desenvolvimento urbano de forma mais “natural” e outra que parece ser constantemente subestimada ao longo da história. Verifica-se que à zona mais deprimida correspondem determinadas actividades urbanas: áreas industriais relacionadas com infraestruturas portuárias e de transporte, em estado de inutilização. Mesmo existindo (ou tendo existido no passado) ocupação industrial noutro sector da cidade, é ali que esta se encontra mais concentrada. Estas zonas têm sido actualmente objecto de reconversões urbanas, com vista ao reequilíbrio físico e social da cidade (Ochoa, 2005: 30).

8 Neste sentido, Hans Meyer compara o papel desempenhado pela Rambla de Barcelona àquele desempenhado pelo Grande Canal em Veneza.

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A essência do espaço de Rambla tem sido reinterpretada em várias intervenções na Barcelona actual, tornando-se num modelo urbano a repetir9: Rambla del Mar, Rambla do Raval, Rambla de Prim… Também na recente intervenção do Moll de la Fusta, no âmbito da reconversão do waterfront de Barcelona, é recriado o conceito de varanda urbana já presente no Passeig de Colom, espaço público que permite gerir infraestrutura e simultaneamente usufruir da paisagem marítima. Também noutras cidades se verifica a presença destes eixos de ligação da cidade com a frente de água. Em Lisboa, todo o plano pombalino de reconstrução da Baixa é paradigmático desta orientação da cidade; ao contrário dos espaços urbanos existentes anteriormente ao Terramoto, as ruas principais convergiam para a Praça do Comércio, em frente o Tejo, na qual uma das fachadas é constituída pela própria água. Na cidade de Málaga verificou-se, logo após a reconquista, em 1491, a abertura da Calle Nueva, com a finalidade de unir, mediante um traçado regularizado, a Plaza Mayor (no centro da cidade) à zona portuária e proporcionando uma saída mais rápida do tráfego comercial gerado pelo porto. Esta cidade apresenta a particularidade de, ao contrário de Barcelona e Lisboa, onde os ensanches visaram o crescimento para Norte, no sentido oposto à água, o crescimento urbano se dar – com a inauguração da Alameda em 1785 –, para Sul, com a superação da barreira marítima (muralha) e em terrenos ganhos à praia. Esta começa assim a ser concebida como um espaço com possibilidades de ser embelezado e tratado em termos urbanísticos; uma vez assumida esta potencialidade, o passo seguinte foi a sua completa urbanização. Através do espaço público gerado pela Alameda, a cidade abre-se ao mar, com o qual passa a estabelecer uma forte relação; tratava-se de um espaço público sobre a areia, constituindo a praia a transição entre a cidade e o mar. A. Wilson (2001), no âmbito do que denomina tipos de integração (ligações entre a cidade e a água), refere, nos Estados Unidos, Frederick Law Olmsted e a sua procura, no final do século XIX, de uma âncora urbana para os portos e infraestruturas com ele relacionadas. Este arquitecto paisagista cria um conceito, baseado num sistema de parques estabelecendo ligações entre si, até à frente de água: os riverside parks, que vão estar na base do walk to the sea, criado nos anos 70 em Boston, sequencia de espaços públicos que liga a frente de água ao centro da cidade. Muitas vezes estes espaços públicos são como que tapados por pelas infraestruturas do sistema portuário; a prevalência destas ligações na cidade contemporânea influi na construção do limite, na medida em que favorece as permeabilidades da água à cidade, permitindo o usufruto da mesma, por parte da população. REPENSAR O LIMITE

OBSERVAÇÃO PARTICIPATIVA DO TERRITÓRIO "Marcas" (marchas) era o nome tradicional que se costumava dar aos lugares situados nos confins do território, perto das suas fronteiras. Do mesmo modo, o andar (marcha) designa um limite em movimento, que na realidade não é mais do que denominamos de fronteira. Esta vai a par com as franjas, os espaços intermédios, os contornos indefiníveis que só podemos ver quando andamos por eles. O andar coloca também em relevância as fronteiras

9 Como modelo de espaço público, a Rambla distingue-se do Boulevard pelo lugar de passeio, ao centro; no Boulevard a circulação automóvel têm um papel central, enquanto na Rambla esta se efectua lateralmente.

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interiores da cidade e revela as zonas, identificando-as. Daí o belo nome de Walkscapes, que define muito bem o poder revelador desta dinâmica, pondo em movimento todo o corpo – o individual, mas também o social – com o fim de transformar o espírito de quem, a partir de agora, já sabe olhar. Um propósito como este pressupõe um autêntico posicionamento “político” – no sentido primordial da palavra –, um modo de considerar a arte, o urbanismo e o projecto social a uma distância igual e suficiente entre eles, com o fim de melhor compreender estes vazios de que tanta necessidade temos para viver bem. (Tiberghien em Careri, 2002: 10)

Para compreender o grau de relação que determinada cidade (os cidadãos) mantém com a sua água propõe-se como fonte primária essencial o contacto com o território e sua observação directa, numa experiência de confronto do espaço urbano com as suas práticas vivenciais. Este conhecer a cidade através do chão, simultaneamente cartografando e avaliando, será aplicado nas leituras das cidades de água (leitura horizontal e leitura vertical – o Pente) e redefinição do seu limite. Como âmbito temporal interessa a cidade actual – o hoje; tendo em conta as transformações que já se efectuaram no território (as quais, sempre que necessário se identificarão historicamente, com vista ao melhor entendimento determinados espaços), pretende-se construir uma metodologia de análise que permita aferir, em determinada cidade, em que “grau” da relação com a água esta se encontra. RELEVÂNCIA DA ARTE PÚBLICA

Ignasi de Lecea (2000) refere a necessidade de uma reinterpretação dos monumentos à luz da contemporaneidade, ultrapassando o que é representado e assumindo o seu carácter de produtores de identidade. Assim, no âmbito deste estudo, pretende-se olhar para a Arte Pública – na sua relação com o espaço urbano e com as suas vivências –, como um indicador, um instrumento de reinterpretação da cidade actual, elemento unificador das duas leituras e que irá tornar significativos os espaços charneira da cidade (rótulas). Javier Maderuelo afirma que o cidadão, como actor e usuário da cidade é o destinatário final dos trabalhos urbanísticos e das obras de arte que se colocam no espaço público (2001: 46). Considerando a Arte Pública como um indicador, várias questões podem ser colocadas: Quando se instala uma determinada obra de Arte Pública o que isso significa? O que representa a colocação de determinados monumentos ao longo da frente de água? Qual a última obra na frente de água de Lisboa, onde foi colocada e porquê? Retomando o pensamento de Eduardo Chillida, para quem o material do escultor é o espaço mas também o vazio e que só com ambos se constroem lugares carregados (Barañano, 1999: 31), verificamos que a Arte Pública representa, de certa forma, um barómetro dessa carga dos lugares, constituída igualmente por todos os elementos que estão presentes num determinado espaço. Esta postura pressupõe a abertura do próprio conceito de Arte Pública. Quando falo de Arte Pública utilizo o conceito de uma forma muito geral, entendendo-a como o conjunto de “artefactos” de características eminentemente estéticas que mobilam o espaço público. (…) Esta acepção do conceito supõe conceber a Arte Pública como um “agente de co-produção” do sentido do lugar e não exclusivamente como uma manifestação “artística” localizada no espaço público. Como co-produtor na geração de sentido do lugar, a Arte Pública seria um dos elementos chave para a colocação em marcha dos processos sociais de apropriação do espaço, através da sua capacidade simbolizadora e geradora de “identidade”. Assim quando falo de Arte Pública refiro-me a coisas tão díspares como o desenho do espaço público, o paisagismo, a escultura, as performances, etc. (Remesar, 2000: 67).

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A paisagem urbana da frente de água potencia abordagens à Arte Pública que não passam necessariamente pela produção de obras de raiz ou de eventos artísticos. Poder-se-ão assim considerar presenças que, embora não tendo sido produzidas intencionalmente para ser Arte Pública, constituem-se como tal, pois ganharam, num sentido mais amplo, significados próprios, pela carga simbólica que possuem e pelo sentido que conferem à frente de água, ao próprio perfil da cidade. Em Lisboa, objectos como os Gasómetros da Fábrica da Matinha10 (e outros, pertencentes à memória industrial e portuária da cidade), a presença na margem sul do Tejo do Pórtico da Lisnave (elemento aliás já catalogado como Arte Pública), as próprias Pontes, poderão ser, dentro deste ponto de vista, consideradas como Arte Pública, abrindo portanto também leituras sobre a cidade. A cidade produz e segrega arte através da sua linguagem orgânica. Manifestações, greves, engarrafamentos, encontros programados ou improvisados, acontecimentos populares, festas, celebrações, eventos religiosos ou desportivos; a cidade, um organismo vivo produz arte ao ritmo dos seus impulsos psicossociais (Restany, 2001:120). Com esta afirmação, também Pierre Restany abre o conceito de Arte Pública; sendo a frente de água o paradigma da cidade de água – o seu lugar mais representativo –, será também palco de diversas manifestações artísticas. Como hipótese de trabalho, poder-se-á assim propor que, quanto mais essa frente de água é pertença da cidade, mais essas expressões se irão revelar. ARTE PÚBLICA NA FRENTE DE ÁGUA DE LISBOA

Para o registo de elementos artísticos na frente de água na frente de água de Lisboa foi utilizada como base de trabalho a actividade de inventariação no âmbito do projecto Monere – sistema integrado de informação e gestão de Arte Pública. Seguindo as mesmas coordenadas já utilizadas para Barcelona, efectuou-se o registo dos elementos artísticos referentes a toda a cidade de Lisboa11. Foi também tida como referência a publicação Estatuária e escultura de Lisboa, na qual são apresentadas e descritas, por zonas (com enfoque nos principais eixos de expansão da cidade, bem como em determinados núcleos escultóricos), cerca de 100 peças, instaladas na via pública, não integradas no edificado. A partir destes dois estudos elaborou-se uma filtragem das peças presentes em espaços relacionados – física ou simbolicamente – com a frente de água. Foram ainda tidos em conta, como obras auxiliares, dois trabalhos que focam especificamente algumas manifestações artísticas presentes na frente de água de Lisboa. Manuela Synek, em A arte escultórica voltada para o rio Tejo, elabora um levantamento dos monumentos escultóricos existentes na frente de água de Lisboa. Percorrendo a cidade de oriente para ocidente, a autora enumera 16 peças, relacionando-as com as diferentes épocas

10 Prevendo-se a destruição da Fábrica da Matinha, em lugar da qual deverá surgir uma nova urbanização, assiste-se à vontade de preservação dos seus quatro gasómetros, testemunhos da indústria de produção e distribuição de gás de cidade.

11 Este estudo foi realizado em 2003 por membros da equipa do Centro de Investigação POLIS da Universidade de Barcelona e por alunos do Doutoramento em Espaço Público e Regeneração Urbana – Arte e Sociedade.

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em que foram produzidas. Synek refere o Mar, a Terra e o Céu como as três grandes superfícies que exercem um papel cenográfico importante naquelas obras. Sendo este trabalho anterior ao evento da Expo’98, verifica-se uma predominância das obras a ocidente da cidade (a peça mais a oriente é o Emigrante Português, localizada em Santa Apolónia). Verificando a grande concentração de obras na zona de Belém, o trabalho de Helena Elias, A emergência de um espaço de representação – Arte Pública e transformações urbanas na zona ribeirinha de Belém, incide na contextualização das manifestações artísticas e urbanísticas ali existentes. Procurando uma visão mais abrangente, o estudo incide na relação dos elementos de Arte Pública com os estudos urbanos e o compromisso que estas duas vertentes estabelecem nos seus espaços públicos mais emblemáticos: Praça do Império e envolvente, Jardins da Torre de Belém e Praça Afonso de Albuquerque. Dado que o mais recente destes estudos data de 2005 e não abrange todas as peças relativamente à frente de água, foram realizados percursos de forma a registar os exemplos mais recentes e aferir a sua relação com o espaço urbano. PARA ALGUMAS POSSÍVEIS CONCLUSÕES/CONSTATAÇÕES

O levantamento e registo da Arte Pública na frente de água de Lisboa permitirá a identificação dos possíveis pontos nevrálgicos, a estudar posteriormente. Fica assim criada uma base que permitirá analisar a relação cidade/água na sua leitura horizontal e vertical, do ponto de vista dos vazios públicos. O estudo permanece em aberto. No entanto, poder-se-ão avançar desde já algumas constatações. Em Lisboa, a frente de água é ocupada quase na sua totalidade por infraestruturas portuárias. Existem no entanto alguns pontos de contacto com a água, “brechas” interrompendo a linearidade árida e permitindo uma acessibilidade dos cidadãos à frente de água (Chaline, 1994: 112). Numa leitura horizontal – ao longo da frente de água –, a Arte Pública vem precisamente revelar estas “brechas”, os poucos espaços de uso público que existem. A evolução da implantação da Arte Pública (também indicada pelo projecto Monere) revela os espaços que foram sendo libertados. Os mais paradigmáticos são Belém, com a Exposição do Mundo Português e o Parque das Nações, com a Expo’98 (até aos anos noventa simplesmente não existem exemplos a oriente). Estes dois espaços constituem assim, juntamente com o núcleo do Terreiro do Paço, os principais contentores de Arte Pública na frente de água. As colocações mais recentes vêm revelar novos focos de desenvolvimento. O principal espaço onde se verificam intervenções, desde 2003, é em Alcântara, o que se constata ser sem dúvida sintomático das renovações urbana que se prevêem para esta zona. De atestar ainda as colocações associadas a novos espaços ligados à acessibilidade: na Estação Fluvial do Cais do Sodré e na nova Estação de Metro do Terreiro do Paço. Uma das “brechas” que revela particular interesse é o espaço relvado na Av. Ribeira das Naus, no qual a Arte Pública – o Monumento ao Metropolitano do escultor Charters de Almeida12 –, revela a sua possível acessibilidade. Esta obra confere àquele espaço uma

12 Obra de 1995.

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identidade própria, congregando actividades e situações de vivência informal na frente de água. Apesar destas situações pontuais, a continuidade ao longo da frente de água afigura-se hoje como algo difícil. Para além da ocupação portuária, a dupla barreira rodo ferroviária permanece ao longo de praticamente toda a frente de água13, contribuindo fortemente para a exclusão do peão, dificultando o seu acesso à água, nos pontos em que este é possível. É interessante verificar que, em algumas partes (particularmente a partir de Alcântara), existem continuidades ao longo da frente de água, sendo esta utilizada e vivenciada por parte dos cidadãos (a presença de Arte Pública acentua esta vivência); no entanto esse espaço constitui como que uma ilha isolada pela dupla barreira, sendo as continuidades verticais praticamente inexistentes. Já fora da cidade, o enterramento da linha férrea, no sentido de Cascais, relaciona-se com uma frente de água mais permeável, nomeadamente na relação com os espaços de praia que começam entretanto a surgir. A obra Lisboa (homenagem aos Construtores da Cidade), de José de Guimarães14, na Praça 25 de Abril, no fim da Avenida Marechal Gomes da Costa, colocada após a Expo’98, já fora do recinto da Exposição, traduz a maior relevância que passou a ter a zona oriental da cidade e sublinha a importância deste eixo de ligação à frente de água. É no entanto uma importância predominantemente viária. A escultura situa-se numa rotunda – para ser usufruída a partir do automóvel – e o acesso à água, apesar de permitido, não é assumido, pois tratam-se de terrenos pertencentes à Administração do Porto de Lisboa. A Arte Pública revela outros eixos de ligação da cidade à água (muitos deles não chegam à frente de água, consequência mais uma vez do fechamento provocado pelas infraestruturas portuárias), cujo estudo se revela pertinente: de oriente para ocidente, várias são as ligações que configuram como que eixos de orientação da cidade em direcção à água, tendo evoluído, em muitas situações para importantes artérias, nas quais se revela a presença da água no espaço urbano. Nesta alternância entre o aberto e o fechado, entre uma maior ou menor acessibilidade à frente de água, assentará a definição de um novo limite. Se por um lado se verificam alguns acontecimentos de espaço público ao longo da frente de água, verifica-se por outro lado uma elitização deste acesso. A tendência que se tem vindo a verificar para a construção de condomínios fechados nesta zona da cidade, funciona como uma negação das potencialidades espaciais de toda a frente de água e simultaneamente potencia a sua gentrificação. Dentro das leituras que a Arte Pública possibilita torna-se relevante o número de obras que surgiram num determinado momento no Parque das Nações (conferindo como que um excesso de carga a uma zona onde anteriormente não existiam praticamente intervenções), coincidindo com a predominância de habitação de alto custo nesta mesma zona. Se por um lado esta é uma zona bastante utilizada pela população de Lisboa, torna-se inevitável constatar que este uso se revela apenas nos espaços públicos criados, sendo a habitação apenas acessível à classe alta15.

13 A barreira ferroviária interrompe entre Santa Apolónia e Cais do Sodré, mas a barreira rodoviária permanece.

14 Obra de 1999.

15 Torna-se interessante estabelecer aqui o paralelismo com a reabilitação efectuada em Barcelona no âmbito dos Jogos Olímpicos de 1992, nomeadamente na zona da Villa Olímpica.

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A água funciona como elemento polarizador e estruturante da realidade social nos seus vários níveis, adquirindo especial relevância nos processos identitários da cidade (Ferreira, 2004). Proporcionando espaços de lazer, transmitindo sentimentos de relaxamento e repouso, a sua própria riqueza paisagística imprime uma dinâmica particular às cidades. Funciona como espaço de descompressão (como Grande Vazio), na medida em que é um contraponto físico mas também psicológico ao cheio urbano. A frente de água, espaço paradigmático da cidade de água, simultaneamente de conquista e resistência, assume um papel emblemático na articulação entre a terra e a água; verificando-se hoje novos modos de habitar a cidade, surgem, consequentemente, novos modos de apropriação social e ambiental das frentes de água. Estas apresentam-se por sua vez como espaços através dos quais – tendo em conta a sua história económica, a sua identidade cultural e as respectivas formas de apropriação social – parece possível refazer cidade. Mas, as tentativas de regeneração urbana das cidades são-o também de regeneração económica (Fabre, 1992). Num contexto de cidades em competição, as frentes de água desactivadas constituem espaços ideais para atraentes operações de reconversão urbana que anunciam espaços públicos de qualidade, mas que constituem, no fundo, uma certa remissão à inacessibilidade efectiva das populações às funções criadas, ao carácter de “ilha”, ou de “gueto de luxo” que acaba, muitas vezes, por prevalecer. As tensões entre vários sistemas espaciais não dizem apenas respeito à obsolescência e reconversão das áreas relacionadas com os sistemas portuários – é uma característica geral da cidade moderna e relaciona-se com uma nova concepção de espaço público (Meyer, 1999). Constata-se a necessidade da existência de espaço para o domínio público, como lugar de sociabilização e de expressão da cidadania. No âmbito que aqui se discute – a relação da cidade com a água – a questão passará então por compreender, em cada cidade, o seu grau de interacção com a água: como uma “miragem” ou como um espaço realmente usufruível, ao qual todos os cidadãos podem realmente aceder?

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