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Espera - Visionvox · "Os lobos na floresta são estranhos, agora que conheço o segredo do bando. Bonitos, sedutores - mas ainda assim estranhos. Um passado humano desconhecido se

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EsperaMaggieStiefvaterScholastic(2010)

Tags: RomanceSobrenatural

EmEspera,GraceeSamdevemlutarparaficaremjuntos.Paraela,issosignificadesafiarseuspaisemanterumsegredomuitoperigosoarespeitodeseuprópriobem-estar.Paraele,issosignificalutarcontraseupassadodelobisomem...edescobrirumamaneiradesobrevivernofuturo.AdicioneaessamisturaumnovolobochamadoCole,cujopassadotemopotencialdedestruirtodaamatilha,eIsabel,quejáperdeuseuirmãoparaoslobos,e,apesardisso,sesenteatraídaporCole.

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"Oslobosnaflorestasãoestranhos,agoraqueconheçoosegredodobando.Bonitos,sedutores-masaindaassimestranhos.Umpassadohumanodesconhecidoseescondeatrásdecadapardeolhos.Saméoúnicoqueumdiaconhecideverdade,eotenhoameuladoagora.Éissoquequero,minhamãonamãodeleeseurostocoladoaomeupescoço.Masmeucorpometrai.Agorasoueuodesconhecido,aincógnita.Estaéumahistóriadeamor.Nuncaimagineiquehouvessetantostiposdeamor,nemqueoamorpudesselevaralguémafazertantascoisasdiferentes.Nuncaimagineiquehouvessetantasformasdiferentesdedizeradeus."

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PRÓLOGO•GRACE•

Estaéahistóriadeumgarotoquecostumavaserloboedeumagarotaqueestavacomeçandoasetransformaremum.

Poucos meses antes, era Sam a criatura mítica. Era dele a doençaincurável.Eradeleoadeusmaissigni icativo.Eletinhaocorpomisterioso,demasiadoestranho,maravilhosoeaterradorparaserentendido.

Mas chegou a primavera. Com o calor, os lobos remanescentes logodescartarão suas peles lupinas e voltarão a seus corpos humanos. SamcontinuaaserSam,Cole,aserCole;apenaseunãoestou irmeemminhapele.

No ano passado, era isso que eu queria. Tinha ummonte de razõesparadesejarserpartedaalcateiaquevivena lorestaatrásdaminhacasa.Agora, porém, em vez de observar os lobos, esperando que um delesvenhaatémim,sãoelesquemeobservam,esperandoqueeuváencontrá-los.

Seusolhos,olhoshumanosemcabeçasdelobo,melembramaágua:oazul-clarodaáguare letindoocéudaprimavera,omarromdeumcórregoagitadopelachuva,overdedo lagonoverão,quandoasalgascomeçamalorescer,o cinzadeumrio cobertodeneve.AnteseramapenasosolhosamarelosdeSamquemeobservavamporentreasbétulasensopadasdechuva,masagorasintoopesodoolhardetodaaalcateia.Opesodecoisasconhecidas,decoisasnãoditas.

Os lobos na loresta são estranhos, agora que conheço o segredo dobando. Bonitos, sedutores, — mas ainda assim estranhos. Um passadohumano desconhecido se esconde atrás de cada par de olhos. Sam é oúnicoqueumdia conhecideverdade, eo tenhoameu ladoagora.E issoquequero,minhamãonamãodeleeseurostocoladoaomeupescoço.

Masmeucorpometrai.Agorasoueuodesconhecido,aincógnita.

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Esta é uma história de amor. Nunca imaginei que houvesse tantostiposdeamornemqueoamorpudesselevaralguémafazertantascoisasdiferentes.

Nuncaimagineiquehouvessetantasformasdiferentesdedizeradeus.

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CAPÍTULO1•SAM•

MercyFalls,Minnesota, pareciadiferentequando sabíamosque, peloresto da vida, seríamos humanos. Antes, aquele era um lugar que existiaapenas no auge do verão, com as calçadas de cimento e as folhasapontando para o sol, tudo cheirando a asfalto quente e a fumaça doscanosdedescarga.

Agora, quando os ramos da primavera partilhavam babadinhos cor-de-rosatãoraramentevistos,MercyFallseraolugaraoqualeupertencia.

Ao longo dos meses seguintes à perda da minha pele lupina, tenteiaprender como ser novamente um rapaz. Consegui de volta meu velhoempregonalivrariaCrookedShelf,cercadoporpalavrasnovasepelosomde páginas sendo viradas. Troquei meu carro herdado, impregnado docheiro de Beck e da minha vida com os lobos, por um Volkswagen Golfgrandeosu icienteparaacomodaramim,Graceemeuviolão.Tentavanãome encolher quando sentia uma brisa fria entrar por uma portarepentinamente aberta. Tentava me lembrar de que não estava maissozinho.Anoite,Graceeeuentrávamos furtivamenteemseuquartoeeume enroscava em seu corpo, inspirando o aroma da minha nova vida ecombinandoasbatidasdomeucoraçãocomasdodela.

Embora sentisse um aperto no peito ao ouvir o vento trazer o lentouivodos lobos,euaomenostinhaobálsamodessavidasimplesecomumparameconfortar.PodiaanteciparváriosNatais comaminhagarotanosbraços, assim como o privilégio de envelhecer nessa minha pele poucoconhecida.Eusabiadisso.Eutinhatudo.

Domdotempoemmimguardado,

futurologodesvendado

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Euagoralevavaoviolãoparaalivraria.Osnegóciosandavamparados,e as horas se passavam sem ninguém para me ouvir cantar para asparedescheiasdelivros.OpequenolaptopqueGracecompraraparamimseenchialentamentedepalavras.Cadanovadatadigitadanoaltodeumapáginaeraumavitóriasobreoinvernoquesedespedia.

Aquele era um dia muito parecido com os anteriores, com as ruasamanhecendo molhadas de chuva e ainda desertas de consumidores.Pouco depois de abrir a loja, me surpreendi ao ouvir alguém entrar.Encostandooviolãonaparedeatrásdomeubanquinho,erguiosolhos.

—Oi,Sam—disseIsabel.

Era estranho vê-la sozinha, sem Grace por perto, e mais estranhoainda vê-la ali, na livraria, cercada pela realidade acolchoada da minhacaverna de livros baratos. A perda do irmão no inverno anterior tornarasuavozmaisdura,seusolhosmaisaguçadosdoquequandoaconheci.Elameolhou—umolharsagazeindiferente,quefezcomqueeumesentisseingênuo.

— Quais são as últimas? — perguntou, sentando-se no banquinhovazioaomeuladoecruzandoaspernascompridas.Graceteriaenroscadoas delas sob o tamborete. Isabel viumeu chá e tomou um gole antes desoltarumlongosuspiro.

Olheiparaocháviolado.

—Nadadeinteressante.Cortouocabelo?

Seus cachos louros e perfeitos haviam sumido, substituídos por umestilocurtoeseveroqueadeixoubonitaesofrida.

Isabelergueuumasobrancelha.

—Nuncaimagineiquevocêfosseumfãdoóbvio,Sam—disseela.

— E não sou — contestei, empurrando o copinho de papel do cháintocado para que Isabel o bebesse. Era como se beber depois delaescondesse um grande signi icado. — Se fosse, eu teria dito: "Você nãodeviaestarnaescola?"

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—Touché — disse Isabel, pegando minha bebida como se o tempotodo tivessesidodelae relaxandocomelegânciano tamborete.Euestavaencurvadocomoumabutrenomeu.Orelógiodeparededescartava,umaum,ossegundos.Láfora,pesadasnuvensbrancasqueaindalembravamoinvernoenchiamocéu.Observeiumagotadechuvaescorrerpelavidraçaecair,congelada,nacalçada.Minhamentedivagou,indodoviolãosurradoao meu exemplar de Mandelstam sobre o balcão (O que farei com estecorpo que me deram, tão meu, tão íntimo?). Finalmente me inclinei eaperteioPLAYdosistemadesomacomodadosobobalcão,restabelecendoamúsicaambiente.

—Tenhovistolobospertodaminhacasa—disseIsabel,balançandoolíquidonocopinho.—Istotemgostodeapara-dordegrama.

—Vailhefazerbem—falei.Euadorariaqueelanãotivessetomadoochá. O líquido quente parecia uma rede de proteção nesse tempo frio.Ainda que eu soubesse que já não precisava disso, tinha a impressão desermaisconsistentementehumanocomocopinhonamão.—Oquãopertodasuacasa?

Eladeudeombros.

—Doterceiroandar,possovê-losna loresta.Evidentemente,nãotêminstinto de preservação, senão evitariam meu pai, que não morre deamoresporeles.

Osolhosdelaencontraramacicatrizirregularnomeupescoço.

—Eumelembro—falei.Isabeltambémnãotinhamotivosparagostardelobos.—Se,poracaso,algumdelescruzarseucaminhocomohumano,meavise,certo?Antesqueseupaioempalheependurenofoyer.—Paraamenizaroimpacto,useiapalavrafrancesa.

OolhardesmoralizadordeIsabeltransformariaempedraumhomemmenosdestemido.

—Porfalaremfoyer—disseela—,vocêagoraestámorandosozinhonaquelacasaenorme?

Não,nãoestava.Partedemimsabiaqueeudeveriaestarnacasade

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Beck,recebendoosoutrosmembrosdaalcateiaconformesedespedissemdo inverno e retornassemà formahumana. Eu tambémdeveria vigiar osquatro novos lobos que provavelmente se encontravam à beira damudança. Porém, a outraparte odiava a ideia depermanecer por lá semqualqueresperançadevoltaraverBeck.

Detodamaneira,eunãoestavaemcasa.Grace,sim.

—Estou—respondiaIsabel.

— Mentiroso — rebateu ela, com um sorriso insinuante. — Gracementemuitomelhor que você.Mediga onde icamos livros demedicina.Nãomeolhecomtantoespanto.Vimaquiporummotivo.

—Seiquevocêveioaquiporalgummotivo—falei,apontandoparaocanto.—Sórestavasaberqual.

Isabeldesceudobancoetomouadireçãoqueindiquei.

—VimaquiporquetemcoisasqueaWikipédianãoresolve.

— Dá para escrever um livro sobre as coisas que não se podeencontrar na internet — con irmei, capaz de respirar novamente agoraque ela se levantara. Comecei a dobrar um boleto bancário paratransformá-lonumpássaro.

— Você que o diga — completou Isabel —, já que um dia foi umacriaturaimaginária.

Fiz uma careta e continuei a dobrar o papel. O código de barras doboleto estampou uma das asas do pássaro com listras monocromáticas,fazendocomqueaasalisaparecessemaior.Pegueiumacaneta,prestesapautaraoutraasaetorná-laperfeita,masmudeideideianaúltimahora.

— A inal, o que você está procurando? Não temos muita coisa demedicinamesmo.Épraticamentesóautoajudaecoisasholísticas.

Isabel,agachadaaoladodaestante,disse:

—Não sei. Vou saber quando vir. Como é o nomedaquele... daquele

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tijolaço?Aquelequetemtudoqueumapessoapodepegarderuim?

—Candide — respondi. Mas, como não havia mais ninguém na lojaparasacarapiada,fizumapausaesugeri:—OManualMerck?

—Essemesmo.

— Não temos no estoque, mas posso encomendar — disse eu, semprecisar veri icar para con irmar que estava certo. — Um novo não ébarato, mas provavelmente posso achar para você um exemplar usado.Felizmente,asdoençasnãocostumammudar.

Passeium iodelinhanascostasdopássarodepapelesubinobalcãoparapendurá-lonoteto.

— Um esforço exagerado, não é mesmo? A menos que você estejapensandoemsermédica.

—Andore letindoarespeito—disseIsabel,numtomtãosolenequenãome dei conta de que estavame fazendo uma con idência até ouvir osininhodaportaindicaraentradadeoutrofreguês.

—Jáestouindo—falei, icandonapontadospéssobreobalcãoa imde passar a laçada da linha por cima da luminária do teto. — Avise, seprecisardealgumaajuda.

Emboratenhasidomínimaapausaqueseseguiu,percebiqueIsabelsecalara,deixando-meumsilênciogritante.Baixeiosbraços,hesitante.

— Não pare por minha causa — disse o recém-chegado, num tomneutroeopressivamenteprofissional.—Euespero.

Algonoseutomdevozmelevouaperderogostopelabrincadeira,eentãome virei e vi umpolicial de pé ao ladodobalcão erguendoo olharparamim.Domeupostoprivilegiado,puderegistrartudooquehaviaemseucinto:arma,rádio,spraydepimenta,algemas,celular.

Quando se tem segredos, ainda que não sejam segredos de cunhoilegal, ver um policial no próprio ambiente de trabalho produz um efeitopavoroso.

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Lentamente, desci por detrás do balcão e disse, comumgesto poucoentusiasmadonadireçãodomeupássaro:

— Não estava funcionando muito bem, de qualquer forma. Posso...Posso ajudar?—Hesitei aoperguntar, pois logo vi que ele não estava aliatrás de livros. Sentimeupulso, rápido e ruidoso, ecoar nomeupescoço.Isabeldesaparecerae,paratodososfins,alojapareciavazia.

—Naverdade,sevocênãoestiverocupado,eugostariadetrocarumapalavrinha — disse o policial, educadamente. — Você é Samuel Roth,correto?

Assenti.

—SouooficialKoenig.EstouatuandonocasodeOlíviaMarx.

Olívia. Senti um aperto no estômago. Olívia, uma dasmaiores amigasdeGrace,foramordidacontraaprópriavontadenoanoanteriorepassaraosúltimosmesescomolobanoBosquedaFronteira.Afamíliaachavaqueelatinhafugido.

Grace devia estar ali. Se mentira fosse um esporte olímpico, elaganhariamedalha de ouro. Para alguém que odiava escrita iccional, ela,comcerteza,eraumamaravilhosacontadoradehistórias.

—Ah!—exclamei.—Olívia.

Fiqueinervosopelofatodeopolicialestaralifazendoperguntas,mas,estranhamente,estavamaisnervosoaindaporIsabel,quejásabiadetodaa verdade, estar ouvindo. Podia imaginá-la agachada atrás de uma dasestantes, erguendo zombeteiramente uma sobrancelha quando umamentirasaísse,transparente,dosmeuslábiosinexperientes.

— Você a conhece, correto? — O policial exibia uma expressãoamistosa, mas quão amistoso podia ser alguém que terminava cadaperguntacomcorreto?

— Ligeiramente — respondi. — Estive com ela algumas vezes nacidade,masnãofrequentamosamesmaescola.

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— Que escola você frequenta? — Mais uma vez, a voz dele soouperfeitamente agradável e natural. Tentei me convencer de que suasperguntaspareciamsuspeitasapenasporqueeutinhaalgoaesconder.

—Fuieducadoemcasa.

— Minha irmã também — disse Koenig. — Deixava a minha mãedoida.Mas,emcompensação,vocêconheceGraceBrisbane,correto?

Outravezaquelecorreto.Fiqueiimaginandoseeleestariacomeçandopelas perguntas cujas respostas já conhecia. Novamente tive a certezaagudadapresençadeIsabel,ouvindoemsilêncio.

—Conheço.Elaéminhanamorada.

Talvez ele não tivesse essa informação e provavelmente nãoprecisasseter,maseuqueriaqueIsabelaouvisseporalgummotivo.

FiqueisurpresoaoverKoenigsorrir.

—Dáparaver—disseele.

Emboraparecesse legítimo, seu sorrisomedeixou tenso, pois eunãosabiaseestavasendomanipulado.

— Grace e Olívia erammuito amigas— prosseguiu Koenig.— VocêpodemedizerquandofoiaúltimavezqueviuOlívia?Nãoprecisodeumadataprecisa,masomaispróximopossíveljáseriadeenormeajuda.

Entãoeleabriuumcaderninhoazulepreparou-separaescrevernelecomumacaneta.

— Hum... — re leti. Eu vira Olívia, com o pelo branco salpicado deneve,poucassemanasantes.Nãoachei,porém,queessainformaçãofossemuito útil para Koenig.— Vi Olívia no centro. Para ser mais exato, aquimesmo, em frente à loja. Grace e eu estávamos passando tempo, e Olíviaapareceu com o irmão.Mas isso deve fazermeses. Novembro? Outubro?Umpouquinhoantesdeelasumir.

—VocêachaqueGraceaviuhámenostempo?

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Tenteiencararoolhardele.

— Tenho certeza de que essa foi a última vez que ela viu Olíviatambém.

—Éumbocadodi ícilparaumadolescentesevirarsozinho,sejarapazoumoça—disseKoenig,edessaveztivecertezadequeelesabiadetudoameurespeitoedequeosigni icadodesuaspalavras foracalculadosobmedidaparamim,àderivasemBeck.—Umbocadodi ícilparaumfujão.Existemmuitosmotivosparaumadolescentefugir,eajulgarpeloqueouvidos professores e parentes de Olívia, talvez a depressão tenhain luenciado. Muitas vezes, os adolescentes fogem porque precisam seafastardecasa,masnãosabemsobrevivernomundo lá fora.Por isso,àsvezesafuganãooslevaalémdeumaoutracasadavizinhança.Asvezes...

Euointerrompiantesqueelepudesseiralém.

— Policial... Policial Koenig? Sei o que o senhor está querendo dizer,masOlívianãoestánacasadeGrace.Gracenãoanda fornecendocomidapara ela nem a ajudando de outra maneira. Quem dera, para o bem deOlívia,quearespostafossesimplesassim.EparaobemdeGrace,também.Eu adoraria dizer ao senhor que sei exatamente onde Olívia está. Mastambémnósnosperguntamosquandoseráqueelavaivoltar,exatamentecomoosenhor.

Perguntei-me se era assim que Grace compunha suasmentirasmaisúteis:transformando-asemalgoemqueelaprópriaacreditasse.

—Euprecisavaperguntar,entende?

—Seidisso.

—Bem,obrigadopeloseu tempoe,por favor,meavisesesouberdealgumacoisa.—Koenigjáiasevirandoquandoparou.—Oquevocêsabesobreafloresta?

Congelei.Eueraum lobo imóvelescondidoentreasárvores, rezandoparanãoservisto.

—Comoassim?—pergunteibaixinho.

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—AfamíliadeOlíviadissequeelatirouummontedefotosdoslobosna loresta e que Grace também se interessa por eles. Você compartilhadesseinteresse?

Sópudeassentiratônito.

— Você acha que existe alguma possibilidade de ela tentar se virarporlá,emvezdefugirparaoutracidade?

Opânicoagigantou-seemminhamentequando imagineiapolíciaeafamília de Olívia investigando hectares e mais hectares de loresta,buscandojuntoàsárvoresenoabrigodaalcateiaindíciosdevidahumana.Epossivelmenteencontrando.Tenteimanterminhavoztranquila.

—Olívianuncamedeua impressãodeserdotipoquegostade icaraoarlivre.Eurealmenteduvidomuito.

Koenigassentiu,comoseconcordasseconsigomesmo.

—Bem,obrigadodenovo—agradeceu.

—Denada—respondi.—Boasorte.

A portatilintou às suas costas. Assim que vi o carro de polícia seafastar,descanseioscotovelosnobalcãoepusorostoentreasmãos. MeuDeus!

—Belo trabalho,meninomaravilha—disse Isabel, surgindodomeiodos livrosdenão icção e fazendo comospésumbarulhono carpete.—Quasenãodeuparaverquevocêéumpsicótico.

Nãorespondi.Todasasperguntasqueopolicialme izerafervilhavamemminhacabeça,medeixandomaisnervosodoquenasuapresença.ElepodiatermeperguntadosobreoparadeirodeBeck.Ouseeuouvirafalarde três jovens desaparecidos no Canadá. Ou se eu sabia de algo sobre amortedoirmãodeIsabelCulpeper.

— Qual é o seu problema?— perguntou Isabel, bem mais próximadessa vez. Pousou uma pilha de livros sobre o balcão com o cartão decréditoporcima.—Vocêagiuperfeitamentebem.Issoaíéinvestigaçãode

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rotina. Ele não está descon iado de verdade. Nossa, sua mão estátremendo!

— Eu daria um péssimo criminoso— respondi. Porém, não era porisso queminhasmãos tremiam. SeGrace estivesse ali, eu teria lhe dito averdade:eunão falavacomumpolicialdesdequemeuspaishaviamsidopresosporcortaremmeuspulsos.AmeravisãodeKoenig,mil coisasnasquaiseunãopensavahaviaanosforamdesenterradas.

AvozdeIsabeldestilavadesdém:

—Aindabem,porquevocênãoestácometendonenhumcrime.Chegadehisteria.Façaseutrabalhodebalconista.Precisodorecibo.

Registreinocaixaos livroseospusnumasacola,olhandoparaaruavazia de vez em quando. Minha cabeça era uma mistura confusa deuniformespoliciais,lobosnaflorestaevozesqueeunãoouviahádécadas.

Quando entreguei a sacola a Isabel, as antigas cicatrizes nos meuspulsoslatejavamcomlembrançassepultadas.

Duranteuminstante,tiveaimpressãodequeIsabeliadizeralgomais,maselaapenasbalançouacabeçaeconcluiu:

—Temgentequenãonasceuparaenganar.Agentesevê,Sam.

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CAPÍTULO2•COLE•

Eunãopensavaemoutracoisaanãosernisto:permanecervivo.

Enãopensaremnadaalémdisso,diariamente,eraumabênção.

Nós, lobos, corríamos por entre os pinheiros esparsos, nossas patasleves sobre o solo úmido saudoso da neve. Andávamos tão próximos—nossoscorposseroçando,saltandounssobreosoutroscomopeixesnumrio—,quenãodavaparadizerondecomeçavaumloboeterminavaoutro.

Olimogrudadonaterranuaeossinaisnasárvoresnosorientavamnaloresta.Eupodiasentirocrescentecheirodepodreemanardolagoantesdeouviroruídodaágua.Umdosoutroslobosenviouum lashdeimagem:patos deslizando suavemente na fria super ície azul do lago. E, de umsegundo lobo, veio mais uma: uma corça e seu ilhote, sobre pernastrêmulas,acaminhodaáguaparamatarasede.

Paramim,nadahaviaalémdessemomento,dessasimagenstrocadasedessevínculosilencioso,potente.

Então,pelaprimeiravezemváriosmeses,me lembreide repentedeque,umdia,tiveradedos.

Vacilei, me afastando da alcateia, meu corpo corcoveando e secontorcendo. Os lobos se viraram, alguns dando meia-volta para meencorajar a permanecer no bando,mas não pude fazê-lo. Contorci-me nosolo, as folhas viscosas da primavera grudadas aomeupelo, e o calor dodiacoaguladoemminhasnarinas.

Meus dedos reviraram a terra negra e fresca, que se incrustoudebaixodeunhasrepentinamentecurtasdemaisparamedefenderequesujouosolhosqueagoraenxergavamcoresbrilhantes.

EueranovamenteCole,eaprimaverachegaracedodemais.

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CAPÍTULO3•ISABEL•

O dia em que o policial visitou a livraria foi a primeira vez que ouviGrace reclamar de dor de cabeça, o que provavelmente não soaria tãodigno de nota se, desde que a conheci, eu jamais a tivesse ouvidomencionar incômodo algum além de um resfriado. Ao mesmo tempo, eueraumaespéciedeespecialistaemdoresdecabeça.Paramim,tratava-sedeumhobby.

Depois de observar Sam em seupas de deux desajeitado com o tira,voltei para a escola, que a essa altura da minha vida se tornara meioredundante. Os professores não sabiam direito o que fazer comigo,divididosentreminhasnotasaltaseminha lamentávelassiduidade, razãopela qual eu costumava me dar bem. Nosso acordo incômodo consistiabasicamente no seguinte: eu frequentava as aulas, e eles me deixavamfazer o que bem entendesse, desde que eu não corrompesse os demaisalunos.

Por isso,aprimeiracoisaque izquandochegueiparaaauladeArteDigital foi ligarobedientementeomeucomputadore,desobedientemente,tirar da sacola os livros que comprara de manhã. Um deles era umaenciclopédia de doenças ilustrada— grossa, cheirando a pó e publicadaem 1986. O troço devia ser um dos primeiros livros adquiridos pelaCrooked Shelf. Enquanto o sr. Grant explicava o que esperava de nós,folheei aquele tijolão atrás das imagens mais grotescas. Havia uma dealguémcompor iria,outradeumpacientecomdermatiteseborreica,alémda foto de nematoides em ação que, paraminha surpresa, me revirou oestômago.

Então,passeiparaaletraM.Meusdedosdeslizarampáginaabaixoatémeningite bacteriana. Meu nariz ardia enquanto eu lia o item inteiro.Causas. Sintomas. Diagnóstico. Tratamento. Prognósticos. Taxa demortalidade na meningite bacteriana não tratada: 100%. Taxa demortalidadenameningitebacterianatratada:10%a30%.

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Eu não precisava consultar, já conhecia as estatísticas. Podia terrecitado de cor o verbete todo. Sabia mais do que essa enciclopédiapublicada em 1986, pois também lera todos os trabalhos existentes nainternetquefalavamdosmaisnovostratamentosedecasosincomuns.

Acadeiraaomeuladorangeuquandoalguémsesentou.Nãopreciseimedarotrabalhodefecharolivroquandoelaseacomodou.Graceusavasempreomesmoperfume.Ou,conhecendoGrace,omesmoxampu.

—Isabel—disseelanumavozrelativamentebaixa.Osoutrosalunosconversavam agora sobre o projeto em andamento. — Isso édefinitivamentemórbido,atéparavocê.

—Cortaessa—respondi.

—Vocêprecisadeterapia—emendouela,masnumtomleve.

— Jáestou fazendo.—ErguiosolhosparaGrace.—Sóquero sabercomo funciona a meningite. Não acho que seja mórbido. Você não quersabercomooprobleminhadeSamfoiresolvido?

Grace deu de ombros e se remexeu na cadeira giratória, o cabelolouro- escuro emoldurando as bochechas coradas, o olhar ixo no chão.Pareciasemgraça.

—Jáacabou.

—Claro—disseeu.

— Se você está a im de destilarmau humor, não vou sentar ao seulado—avisouGrace.—Aliás,nãoestoumesentindobem.Deviater icadoemcasa.

—Euacabeidedizer "claro". Issonãoémauhumor,Grace.Acredite,sevocêquiserqueeuponhaprafora...

—Mocinhas?—Osr.GrantsurgiuaomeuladoeolhouparaaminhatelaembrancoeparaateladesligadadeGrace.—Peloquesei,istoaquiéumaauladeArteDigital,enãoumaconfraternização.

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Graceergueuosolhosparaelecomseriedade:

—Seráquepossoiratéaenfermaria?Minhacabeça...Achoqueestoucomsinusiteoualgodogênero.

O sr. Grant olhou para as bochechas rosadas e para a expressãomelancólicadeGraceeconcordoucomacabeça.

—Me traga um bilhete da enfermaria— acrescentou ele, depois deGrace lhe agradecer e se levantar. A mim ela não disse nada ao sair;apenasdeuumabatidinhanascostasdaminhacadeiracomasjuntasdosdedos.

— E você... — começou o sr. Grant, baixando o olhar para aenciclopédia e a página ainda aberta e interrompendo o que ia dizer.Apenasassentiu,comoseparasimesmo,eseafastou.

Volteiparaomeuestudoextracurricularsobremorteedoenças,pois,independentementedoquepudessepensarGrace,eusabiaque,emMercyFalls,issonãoterminajamais.

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CAPÍTULO4•GRACE•

QuandoSamvoltouda livrariano inal dodia, eu fazia resoluçõesdeAno-novonamesadacozinha.

Eu estivera fazendo isso desde os nove anos. Todo Natal, eu mesentavaàmesadacozinha,sobaluzamarelamortiça,curvadanumsuéterdegolarulêporcausadacorrentedearquepassavapelaportadevidroque dava para a varanda. Então, redigia minhas metas para o ano numcadernopretoquemedeidepresente.Etodoano,navésperadeNatal,eume sentava nomesmo lugar e abria exatamente omesmo cadernonumanova página, anotando as minhas realizações nos 12 meses anteriores.Todoano,asduaslistaseramidênticas.

No último Natal, porém, eu não tomara resolução alguma. Passara omês tentando não olhar para a loresta do outro lado da porta de vidro,tentando não pensar nos lobos e em Sam. Sentar à mesa da cozinha eplanejar o futuro tinha soado, mais que qualquer outra coisa, como umengodocruel.

Mas agora que eu tinha Sam e um novo ano, o caderninho preto,acomodadonaprateleiraaoladodosmeuslivrosetrabalhosdaescola,meassombrava.Eusonhavaemmesentaràmesadacozinhaenvergandoumsuéterdegolarulê,sonhosNosquaiseuanotavaincessantementeminhasresoluçõessemjamaisencherapágina.

Hoje, enquanto eu esperava pela chegada de Sam, não conseguisuportar.Pegueiocadernonaprateleiraerumeiparaacozinha.Antesdemesentar,tomeimaisdoisanalgésicos.Osdoisqueaenfermeiradaescolamederamais cedohaviamacabado coma dor de cabeça,mas eu queriagarantir que ela não voltasse. Tinha acabado de acender a luminária emforma de lor acima da mesa e de apontar meu lápis quando o telefonetocou.Melevanteieestiqueiobraçosobreabancadaparaatender.

—Alô?

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—Oi,Grace.

Leveiuminstanteparamedarcontadequeeraavozdomeupai.Nãoestavahabituadaaouvi-la,comprimidaeimprecisa,dooutroladodalinha.

—Aconteceualgumacoisa?—indaguei.

—Oquê?Não,estátudobem.Sóligueiparaavisarquesuamãeeeuvamoschegarporvoltadas21h,depoisdeiràcasadePateTina.

—Falou — respondi. Eu já sabia. Mamãe havia me dito de manhã,quandonosdespedimos,eudesaídaparaaescola,ela,paraoestúdio.

Umapausa.

—Vocêestásozinha?

Entãoesseeraomotivodo telefonema.Poralgumarazão,aperguntamecausouumapertonagarganta.

—Não,oElvisestáaqui.Querfalarcomele?

Papaireagiucomoseeunãotivesserespondido.

—OSamestáaí?

Me deu vontade de dizer que sim, só para ver o que ele diria, masacabeidizendoaverdade,comumavozestranhaedefendida.

—Não.Estoufazendomeudeverdecasa.

Embora mamãe e papai soubessem que Sam era meu namorado—Sam e eu não escondíamos nosso relacionamento —, eles aindadesconheciam o que estava realmente acontecendo. Achavam que eudormiasozinhatodasasnoitesqueSampassavacomigo.Nãofaziamideiadasminhasexpectativasquantoaofuturo.Pensavamquesetratavadeummero relacionamento adolescente, inofensivo e fadado a acabar. Não queeuquisesseesconderdeles,mas,nomomento,essedesconhecimentotinhaalgumasvantagens.

— Muito bem — disse papai. Uma aprovação muda coloriu sua

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resposta,aprovaçãoporeuestarsozinhacomodeverdecasa.Eraissoqueas Graces faziam à noite, e Deus me livre de quebrar tal impressão. —Programandoumanoitecalma?

OuviaportadafrenteseabrireospassosdeSamnocorredor.

—E—assenti,enquantoeleentravanasala,segurandooviolão.

—Ótimo.Agentesevêmaistarde,então.Bomestudo.

Desligamosaomesmotempo.ObserveienquantoSamsilenciosamentedespiaocasacoesedirigiadiretoparaoescritório.

—Oi,maioral—saudei, quandoele voltou comoviolão sema caixa.Sorriuparamim,masapeleaoredordosseusolhosestavarígida.—Vocêparecetenso.

Desabouno sofá,meio sentado, e pôs os dedos nas cordas do violão.Umacordedissonantesefezouvir.

—AIsabelestevenalojahoje—disseele.

—Sério?Querendooquê?

—Unslivros,sóisso.Emedizerquetemvistolobospertodecasa.

Minhamente namesma hora focalizou o pai dela e a caça aos lobosqueeleliderouatrásdaminhacasa.PelaexpressãopreocupadadeSam,viqueseuspensamentosrefletiamosmeus.

—Issonãoénadabom.

— Não — concordou ele. Seus dedos se moviam, inquietos e semesforço, sobre as cordas do violão, tirando instintivamente delas um beloacorde.—Nemotiraqueapareceuporlá.

PouseiolápisemeinclineisobreamesaparameaproximardeSam.

—Oquê?Oqueumtirapoderiaquerer?

Samhesitou.

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—Olívia.Elequeriasaberse,naminhaopinião,elapodeestarvivendonafloresta.

—Oquê?—indagueidenovo, sentindoumarrepio.Nãohaviacomoalguémadivinharisso,semchance.—Comoéqueelesabia?

— Ele não achou que ela fosse um lobo, é óbvio, mas suponho queimaginou que nós podíamos estar escondendo seu paradeiro, ou que elaestivessemorandoporpertoeagenteaajudasse,algonogênero.Eudissequeelanuncamepareceugostardeficaraoarlivre,entãoeleagradeceuefoiembora.

—Uau!

Encostei-menacadeiraepensei.OsurpreendenteéquenãotivesseminterrogadoSamantes.Elesjáhaviamfaladocomigologodepoisda"fuga"deOlíviaeprovavelmentesóagoratinhamfeitoaligaçãoentremimeSam.Deideombros.

— Eles só estão sendo rigorosos. Acho que não há motivo parapreocupação, quer dizer, ela aparece quando aparecer, certo? Quandotempo você acha que vai levar até os novos lobos começarem a virarhumanosdenovo?

Samnãorespondeudeimediato.

— No início, eles não vão permanecer humanos. Serão totalmenteinstáveis.Dependedocalordodia.Variadepessoaparapessoa, também,àsvezesmuito.E igualaoqueacontecequando,nomesmodia, temgentede suéter e de camiseta, todos numa boa. Reações diferentes para amesmatemperatura.

Mas eu acho possível que alguns já tenham voltado a ser humanosesteano.

Imaginei Olívia correndo pela loresta em seu novo corpo de loba,antesdemeconcentrarnovamentenoqueSamestavadizendo.

—Sério?Já?Querdizerqueelapodetersidovista?

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Samfezquenãocomacabeça.

—Com este clima, ela será humana apenas durante algunsminutos.Duvidoquetenhasidovista.Esó...Ésóumensaiogeralparadepois.

Então, ele icou alheio, os olhos em algum lugar distante. Talvezrecordasse o que viveu no passado, quando era um lobo recente. Semquerer, estremeci. Pensar em Sam e em seus pais sempremexia comigo.Um friozinho desagradável brotou no meu estômago até Sam voltar adedilharoviolão.Duranteváriosminutos,elepasseouosdedosparacimaeparabaixonascordas,e,quando icouclaroquenãovoltariaa falartãocedo, desviei a atenção para as minhas resoluções. No entanto, minhacabeçanãoestavade fatoali.Emvezdisso,exploravaa ideiadopequenoSamsetransformandosempararenquantoospaisassistiamhorrorizados.Rabisqueiumretânguloem3Dnocantodafolha.

Finalmente,Samdisse:

—Estáfazendooquê?Pareceperigosamentecriativo.

—Levementecriativo—respondi.Olheiparaele,comasobrancelhaerguida, até receber de volta um sorriso. Dedilhando um acorde, elecantou:

—SeráqueGraceselivroudosnúmerosparasededicaràsletras?

—Issoaínemrima.

—Abandonouaálgebraeresolveupassaraosverbos?—concluiuSam.

Fizumacareta.

—Letras e verbosnão rimam.Estouanotandominhas resoluçõesdeAno-novo.

—Rimam,sim—insistiuele.

Semlargaroviolão,Samsentou-seàmesadiantedemimoviolãofezum barulho grave e musical ao bater de leve na quina da mesa — eacrescentou:

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—Vouassistir.Nuncanavida listei resoluções.Gostariadever comosedáoprocessodeorganização.

Virandoparasiocadernoeabrindo-oemcimadamesa,elefranziuassobrancelhas.

— O que é isto? — perguntou. — "Resolução número três: escolherumafaculdade."Vocêjáescolheuumafaculdade?

Puxeiocadernodevoltaparamimevireirapidamenteapágina.

— Não escolhi, não. Perdi a concentração por causa desse gato quevirava lobo. Este foi o primeiro ano em que não realizei todas asminhasresoluções,eaculpaétodasua.Precisoentrarnalinhadenovo.

Com o sorriso levemente desvanecido, Sam empurrou a cadeiraruidosamenteparatráseapoiouoviolãocontraaparede.Nabancada,aoladodotelefone,pegouumacanetaeumafichapautada.

—Muitobem,então.Anotemosnovasresoluções.

EscreviArrumar um emprego. Ele escreveu Continuar adorando omeu.EscreviPermanecerapaixonada.Ele,Permanecerhumano.

—Porqueeusempreestareiapaixonado—disseele,olhandoparaafichaemvezdeolharparamim.

Continueiaencará-lo,osolhosdeleescondidosatrásdoscíliosatéquetornasseaerguê-losparamim.

— Então você vai escrever novamenteEscolher uma faculdade? —indagou.

—Evocê?—pergunteidevolta,mantendoumtomdespreocupado.

Aperguntasooucarregada—pelaprimeiravez,tangenciávamosumaconversaquerealmenteabordavaaquestãodecomoseriaavidadoladode cá do inverno, agora que Sam podia viver uma existência real. Afaculdademais próximadeMercy Falls icava emDuluth, a umahora dedistância, e todas as minhas outras opções, pré-Sam, eram ainda mais

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distantes.

—Pergunteiprimeiro.

— Claro— respondi, parecendo sôfrega em vez de despreocupada.RabisqueiEscolherumafaculdade numacaligra ia totalmentediferentedaqueaparecianorestantedalista.—Evocê?

Meu coração começou, inesperadamente, a bater forte, quase empânico.

Emlugarderesponder,porém,Samselevantouefoiatéacozinha.Mevireiparaobservá-lopôrumachaleirano fogoe, emseguida,pegarduascanecas no armário em cima do fogão. Por algummotivo, a familiaridadecomessemovimentonaturalmeencheudeafeto.Luteicontraoimpulsodemelevantareabraçá-loportrás.

—Beck queria que eu estudasseDireito—disse Sam, acariciando abeirada daminha caneca favorita.— Ele nãome disse isso diretamente,masouviquandodisseaUlrik.

—Edifícilimaginarvocêcomoadvogado—comentei.

Samdeuumsorrisoautodepreciativoebalançouacabeça:

— Também não me imagino como advogado. Não me imagino comocoisaalgumaporenquanto,para falaraverdade.Seiqueparece...Parecehorrível, falta de ambição.—Mais uma vez, ele franziu as sobrancelhas,pensativo.—Mas a ideia de um futuro é realmente nova paramim. Atéestemês,nuncapenseiquepudesse fazer faculdade.Nãoqueroapressarascoisas.

Provavelmente continuei a encará-lo, pois ele acrescentou,apressadamente:

— Mas não quero que você ique esperando, Grace. Não queroimpedirquevocêsigaadianteporquenãoconsigomedecidir.

Sentindo-meinfantil,disse:

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—Podemosirparaomesmolugar.

Achaleiranofogoapitou.Samapagouofogoenquantodizia:

—Algomedizquevaiserdi ícilencontraruma faculdade idealparaum gênio promissor da matemática e para um rapaz apaixonado porpoesiamelancólica.Massuponhoquesejapossível.—Eleolhoupelajaneladacozinhaparaa loresta cinzentaegelada.—Sónão sei sevoumesmopoderpartir.Independentedodia.Quemvaitomarcontadobando?

—Acheiquefosseparaissoqueservissemosnovoslobosinterrompi.Aspalavrassoaramestranhasnaminhaboca.

Insensíveis. Como se a dinâmica do bando fosse algo arti icial,engendrado, o que, naturalmente, não correspondia à verdade. Ninguémsabiacomoeramosnovatos.ExcetoBeck,éclaro,maselenãopodiafalar.

Sam esfregou a testa e apertou a palma damão contra os olhos. Elefaziaissoumbocadodesdequevoltara.

—E,seidisso.Seiqueéparaissoqueelesservem.

— Ele gostaria que você fosse— insisti.— E continuo achando quepodemosirparaamesmafaculdade.

Samolhouparamim,osdedosaindaapertandoas têmporascomosetivesseseesquecidodeondeelesestavam.

—Seriaótimo.—Fezumapausa.—Eurealmentegostaria...Gostariade conhecer os novos lobos e de ver que tipo de gente eles são. Voumesentirmelhordepois.Talvez,então,eupossapartir.Depoisdemecertificardequetudoestásobcontrole.

RisqueicomumalinhatremidaEscolherumafaculdade.

—Vouesperarporvocê.

—Nãoparasempre—disseSam.

—Não.Sevocêsetornarinútil,vousemvocê.—Baticomolápisnosdentes. — Acho que devíamos dar uma procurada pelos novos lobos

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amanhã.EpelaOlívia.VouligarparaIsabeleperguntarsobreoslobosqueelaviunaflorestapertodacasadela.

—Ótimaideia—concordouSam.

Voltando à própria lista, ele acrescentou alguma coisa. Em seguida,sorriuparamimevirouafichaparaqueeupudesseler.

OuviroqueGracediz.

•SAM•

Mais tarde, pensei nas coisas que podia ter acrescentado à lista deresoluções,coisasqueeuqueriaantesdemedarcontadoquesigni icava,em termos de futuro, ser um lobo. Coisas do tipoEscrever um romance,Descobrirumabanda,ConseguirumdiplomaemtraduçãodepoesiaobscuraeDar a volta aomundo. Parecia indulgente e fantasioso considerar essascoisasagora,depoisdedizeramimmesmodurante tanto tempoqueelaseramimpossíveis.

Tentei me imaginar preenchendo o formulário de admissão de umauniversidade.Redigindoumasinopse.GrudandoumavisodePROCURA-SEBATERISTAnoquadrodecortiçaemfrenteàcaixadecorreiodeBeck.Aspalavras dançaram na minha cabeça, estonteantes em sua repentinaproximidade.Euqueria adicioná-las àminha listade resoluções,mas... eusimplesmentenãopodia.

Naquela noite, enquanto Grace tomava banho, peguei a icha e olheinovamenteparaela.Entãoescrevi:Acreditarnaminhacura.

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CAPÍTULO5•COLE•

Euerahumano.

Meus olhos lacrimejavam, eume sentia exausto e confuso.Não sabiaonde estava. Sabia que havia perdidomais tempodesde a última vez emque estivera acordado. Devia ter voltado a virar lobo. Gemendo, virei debarrigaparacimaeabriefecheiospunhos,testandominhaforça.

A loresta de manhã cedinho era absolutamente gélida, a brumapairando no ar, colorindo tudo de ouro claro. Perto de mim, os troncosúmidos dos pinheiros se destacavam na névoa, negros e solenes. Algunspassosadiante, tornavam-seazulpasteledepoissumiamporcompletonanévoabranca.

Eu estava deitado na maldita lama. Sentia meus ombros empapadospor ela, já seca. Quando ergui a mão para limpar a pele, meus dedostambémseachavamenvoltosnaquilo—umaargila ina,anêmica,parecidacom cocô de bebê. Minhas mãos fediam como o lago, e, sem dúvida, erapossível ouvir a água quebrando lentamentemuito próxima aomeu ladoesquerdo.Estendiamão,encontreimaislamaedepoissentiaáguamolharapontadosmeusdedos.

Como eu chegara ali?Me lembrava de ter corrido como bando e determe transformado em humano,mas não conseguiame lembrar de tervindopararnamargemdo lago.Devia terme transformadodenovo.Emlobo,edepoisemhumano.Alógicadisso—oumelhor,afaltadelógica—eradeenlouquecer.Beckhaviameditoqueastransformaçõesacabariamficandomaiscontroladas.Masondeestavaocontrole?

Fiquei ali deitado, os músculos começando a tremer, o frio mepinicando a pele, e percebi que logo me transformaria novamente numlobo.MeuDeus, euestava cansado.Esticandoasmãos trêmulasacimadacabeça, iquei maravilhado com a pele macia e sem marcas dos meusbraços,amaioriadascicatrizesdaminhavidaanteriorausente.Euestava

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renascendoaintervalosdecincominutos.

Ouvi,próximoamim,ummovimentona loresta,eentãovireiorosto,comabochechaencostadaàterra,paraveri icarsehaviaalgumaameaçaàvista.Bempertinho,umlobobrancomeobservavameioescondidoatrásde uma árvore, seu pelo tingido de dourado e de cor-de-rosa sob o solnascente. Os olhos verdes, estranhamente pensativos, encontraram osmeusduranteumlongomomento.Algumacoisasobreojeitocomoelemeolhava me soou estranha. Olhos humanos que não julgavam nemmostravaminveja,penaouraiva,apenasumaponderaçãosilenciosa.

Eunãosoubedizercomoissomeafetava.

—Estáolhandooquê?—rosnei.

Semumúnicosom,olobodeslizouparadentrodabruma.

Meucorpodeuumsalto involuntário,eminhapelesecontorceuparatomarumanovaforma.

***

EU NÃO SABIA QUANTO TEMPO passara como lobo nesse carrossel.Teriamsidominutos?Horas?Dias?Amanhãjáestavaterminando.Nãomesentia humano, mas também não me sentia lobo. Eu me encontravasuspenso em algum lugar ameio caminho,minha cabeça alternando daslembrançasparaopresenteedevoltaparaas lembranças,opassadoeopresenteigualmentevividos.

De alguma forma, meu cérebro saltou do meu décimo sé- limoaniversário para a noite em que meu coração parou de bater no ClubJosephine.Efoialiqueele icou.Nãoeraumanoitequeeuescolheriaparareviver.

Este era eu antes de virar lobo: Cole St. Clair, a NARKOTIKA empessoa.

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Do lado de fora, a noite de Toronto estava fria o bastante paracongelarpoçasesufocaralguémcomseuprópriohálitofrígido,masdentrododepósitoqueeraoClubJosephinefaziatantocalorquantonoinferno,eláemcimaestariaaindamaisquentedevidoàmultidão.

Equemultidão!

O dinheiro era bom,mas se tratava de um showque eu nemqueriafazer.Naquelaépocanãohavia,naverdade,nadadeoutro tipo.Todos seembaralhavamatéquetudodequeeumelembravaeradeshowsemqueeuestavadoidão,showsemqueeunãoestavadoidãoeshowsemqueeuprecisava fazer xixi o tempo todo. Mesmo enquanto estava no palco, euperseguia alguma coisa— uma noção de vida e de fama que imaginarapara mim aos 17 anos —, mas estava perdendo o interesse emefetivamenteencontrá-la.

EuiaentrandocomomeutecladoquandoumagarotaquechamavaasimesmadeJackienosdeuumaspílulasqueeununcaviraantes.

—Cole—sussurrouelanomeuouvido, comosemeconhecesse,emvezdeapenassabermeunome.—Cole, istovai levá-loa lugaresemquevocênuncaesteve.

— Benzinho — respondi, mudando o equipamento de posição paranão bater com ele no labirinto de paredes sob a pista de dança — , éprecisomuitoparaissoacontecerhojeemdia.

Ela sorriu, os dentes tingidos de amarelo sob a luz opaca, como sesoubessedealgumsegredo.Cheiravaalimão.

—Nãosepreocupe.Seidoquevocêprecisa.

Quase caí na gargalhada, mas, em vez disso, me afastei, abrindocaminhocomosombrosparapassarporumaportaentreaberta.OlheiporcimadocabelomechadodeJackieegritei:

—Vic,vamos!—Entãobaixeiosolhosparaela.—Vocêtomouisso?

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***

JACKIE CORREU UM DEDO PELO meu braço, subindo até a mangaapertadadacamiseta.

—Euestariafazendomaisdoquesorrirparavocêsetivessetomado.

Estendiamãoetoqueiadela,batendodeleveatéqueelaentendesseo que eu queria e abrisse amão. Estava vazia,mas ela tirou do bolso dacalça jeans uma bola de papel embrulhada em plástico. Dentro, vi umacoleçãodepílulasverde-limão,cadaumacomdoisTscarimbados.Tirariamdezemaparência,masquemsaberiadizerquediaboseraaquilo?

Nomeubolso,ocelularapitou.Normalmenteeudeixariacairnacaixapostal, mas Jackie, a dois milímetros de mim, respirando o meu ar, meincentivouainterromperaconversa.Pesqueiocelularnobolsoeogrudeinoouvido.

—Fala.

—Cole,aindabemquepegueivocê.—EraBerlin,omeuagente.Suavozsoavarascanteerápidacomosempre.—Ouçaisto:"NARKOTIKAtomaa cena à força com seuúltimodisco, 13all. Cole St. Clair, o líder brilhantemasfrenéticoquemuitos julgamestarperdendoamão",desculpe,cara,éo que diz aqui, "volta mais forte que nunca nesse novo lançamento,provandoqueoseuprimeiro,aos16anos,nãofoiumacaso.Ostrês..."Estámeouvindo,Cole?

—Não—respondi.

—Masdevia.QuemescreveufoiElliotFry—disseBerlin.Quandonãorespondi, ele continuou: — Lembra do Elliot Fry, que chamou você degarotinhoemburradoehiperativocomum teclado?EsseElliotFry.Agoravocêssãodeouro.Umaviradatotal.Vocêconseguiu,cara.

—Brilhante—falei,desligandonacaradele.Virei-meparaJackie.—Vouficarcomopacoteinteiro.AviseaoVictor,ele6meucaixa.

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Assim, Victor pagou os comprimidos. Mas fui eu que pedi, por issoachoqueaculpacontinuasendominha.

Ou talvez de Jackie, por não nos dizer do que se tratava.Mas o ClubJosephineeraassim.Eraolugarparaconseguirumnovobaratoantesquealguémsoubesseemquetipodeviagemseembarcavacomele.Pílulassemnome,pószerinho,néctaresmisteriososecristalinosempequenosfrascos.

NãofoiapiorcoisaquemandeiVictorfazer.

De volta ao lounge mal-iluminado, esperando para subir ao palco,Victorengoliuumadaspílulasverdescomcervejaenquanto Jeremy-meu-corpo-é-um-temploobservavaebebiachá-verde.TomeialgumascomumaPepsi. Não sei quantas. Eu estava bastante decepcionado com a compraquando chegou a hora de subir ao palco. O bagulho de Jackie medesapontou — eu não sentia absolutamente nada. Começamos nossonúmero,eamultidãoenlouqueceu,seamontoandonafrentedopalco,comosbraçosestendidos,gritandoonomedabanda.

Atrás da bateria, Victor gritava de volta. Estava para lá de doidão, oque signi icava que qualquer que fosse o troço que Jackie nos vendera,para ele tinha funcionado.No entanto, ele nunca precisou demuita coisapara icardoidão.Asluzesestroboscópicasiluminavampedaçosdaplateia—umpescoçoaqui,umvislumbredelábios,umacoxaenroscadaemoutrodançarino. Minha cabeça latejava ao ritmo produzido por Victor, meucoraçãobatiadisparado.Erguiamãoparapassarosfonesdopescoçoparaos ouvidos e rocei com os dedos a pele quente, enquanto as garotascomeçavamagritarmeunome.

Havia uma garota que meus olhos, por alguma razão, volta e meiaencontravam.Tinhaumapelealvaquecontrastavacomobustiêpreto.Elauivou meu nome como se isso lhe doesse isicamente, as pupilas de talmaneira dilatadas que seus olhos pareciam negros e abissais.Inexplicavelmente,elame lembroua irmãdeVictor,algonacurvaturadonarizounojeitocomoocósdojeanseratãobaixo,sustentadoapenaspelamera sugestão de quadris — embora não houvesse chance de Angiesequerpassarpelaportadeumlugarcomoesse.

Derepente,eunãopareciaestarlá.Eujánão icavaeufóricoaoouvirgritaremmeu nome, e amúsica não soava tão alta quanto as batidas do

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meucoração,razãopelaqualnãopareciatertantaimportância.

Essa era a hora em que eu devia entrar, cantando para cortar opadrãoincessantedabatidadeVictor.Porém,eunãotivevontade,eVictorestava viajando demais para reparar. Dançava alimesmo, preso ao chãoapenaspelasbaquetasemsuasmãos.

Bemàminhafrente,nomeiodamultidãodebarrigasdeforaebraçossuados erguidos no ar, havia um sujeito que não se mexia. Iluminadoesporadicamente pela luz estroboscópica e a laser, ele me fascinou pelaimobilidade, apesar da pressão dos corpos à sua volta. Conservou seulugaremeobservavacomaspálpebrassemicerradas.

Quando voltei a olhar para ele, novamenteme lembrei do cheiro daminhacasa,muitodistantedeToronto.

Pergunteiamimmesmoseeleseriareal.Pergunteiamimmesmosealgumacoisanessemalditolugarerareal.

O sujeito cruzou os braços sobre o peito, me observando enquantomeucoraçãosaltavatentandoescapar.

Eudeviameesforçarparamantê-lonopeito.Meupulsoseacelerouemeuouvidoselibertounumaexplosãodecalor.

Meu rosto bateu de encontro ao teclado, que soltou um gemido emformadenota.Tenteialcançaras teclas comamão,maselanãomaismepertencia.

Deitado no palco,meu rosto incendiando o chão, vi Victorme lançarum olhar intimidador, como se inalmente tivesse percebido que euperderaminhadeixa.

EntãofecheiosolhosnopalcodoClubJosephine.

DeixeideseraNARKOTIKA.DeixeideserColeSt.Clair.

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CAPÍTULO6•GRACE•

—Quersaber?—disseIsabel.—Quandofaleiparavocêmeligarnoim de semana, não era parame chamar para sair vagando nomeio dasárvoresnumfrioabaixodezero.

Ela franziu a testa para mim, parecendo pálida e estranhamente àvontade naquela loresta, sob o frio da primavera, vestindo uma parcabrancacomseucapuzforradodepelequelheemolduravaorostofinoeosolhosgelados:umaespéciedeprincesanórdica.

— A temperatura não está abaixo de zero — contestei, tirando umbolodenevemaciagrudadonasoladaminhabota.

—Apesardospesares,nãoestátãoruimassim.Evocêqueriasairdecasa,nãoqueria?

Realmente não estava tão ruim. A temperatura subira o su icientepara derreter o grosso da neve nos lugares alcançados pelo sol, e sóembaixo das árvores sobrara umpouco. Os parcos graus extras de caloremprestavam uma aparência mais suave à paisagem, colorindo os tonscinzentos do inverno. Embora o frio ainda deixasse insensível a ponta domeunariz,meusdedosestavamquentinhosnasluvas.

—Paraserfranca,vocêdeviaestarmemostrandoocaminho—falei.—Foivocêqueviuoslobosaqui.

AflorestaqueexistianosfundosdacasadospaisdeIsabelnãomeerafamiliar, com um monte de pinheiros e com umas árvores de cascocinzentoqueeudesconhecia.Comcerteza,Samsaberiaidentificá-las.

— Bom, não é como se eu tivesseme embrenhado na loresta atrásdeles — respondeu Isabel, que, no entanto, apressou o passo até mealcançar e começar a caminhar ameu lado, distante um ou doismetros,pisando em troncos caídos e na vegetação rasteira. — Só sei que elessempreaparecemdaquelelado,ejáouviseusuivoslápertodolago.

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—OlagoTwoIsland?—indaguei.—Ficalongedaqui?

— Parece — queixou-se Isabel. — A inal, o que estamos fazendo?Tentandoafugentaroslobos?ProcurandoOlívia?SeeusoubessequeSamiachoramingarcomvocêsobreissoquenemumagarotinha,nãoteriaditonada.

—Todasasopçõesacima—respondi.—Menosapartedo chororô.Samsóestápreocupado.Nãoachoquesejasemrazão.

—Certo.Queseja.VocêachaquehámesmoalgumachancedeOlíviajá terse transformado?Porque,senãohouver, talvezagentepossa fazerumacaminhadamatinalatémeucarroeirtomarumcaféemoutrolugar.

Empurrei um galho para tirá-lo do caminho e olhei de soslaio. Acheiquedavaparaverocintilardaáguaporentreasárvores.

— Sam disse que não é cedo demais para um lobo novato setransformar, pelo menos por um curto período. Quando esquenta, comohoje,quemsabe?

—Estábem,masvamostomarumcafédepoisdenãoacharOlívia,Ok?

—disseIsabel,queapontouàfrente.—Olhaolagoali.Satisfeita?

—Aham.

Franzi a testa, reparando de repente que as árvores ali eramdiferentes, mais afastadas umas das outras e obedecendo a intervalosregulares, com tufos de vegetação macia e emaranhada relativamenterecentes.

Parei ab-ruptamente ao ver algo colorido espreitando em meio aomatoqueimadosobnossospés.Açafrão—umdedinhoderoxo,comumalistrinhaamarelaquaseescondida.Algunscentímetrosàfrente,vislumbreimaisbrotosverdesbrilhantessurgindoentreasfolhasvelhas,assimcomomais dois botões de lor. Sinais de primavera—mais que isso, sinais depresença humana— nomeio da loresta. Me deu vontade de ajoelhar etocaraspétalasdoaçafrão,paracon irmarqueeramdeverdade.OsolhosvigilantesdeIsabel,porém,memantiveramdepé.

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—Quelugaréeste?

Isabelpulouporcimadeumgalhoparasepôrameuladoebaixouosolhosparaocanteirodeflorezinhasdestemidas.

—Ah, isto.Naépocagloriosadanossa casa, antesdenosmudarmospara cá, acho que os proprietários tinham um passadiço até o lago e umjardinzinhoaqui.Pertodaáguahábancoseumaestátua.

— Dá para ver? — perguntei, fascinada pela ideia de um mundoexuberanteescondido.

—Éaqui.Olhaumdosbancos.

Isabelmelevouparamaispertodolagoechutoucomabotaumbancode concreto que ostentava listras de musgo verde e um ou outro botãoachatadodelíquenalaranjado.EutalveznãoreparasseneleseIsabelnãoestivesse comigo.Umavez orientada, porém, foi fácil ver comohavia sidoaquela área de repouso— haviamais um banco, um pouco adiante, e apequenaestátuadeumamulhercomasmãossobreaboca, expressandoencantamento, com o rosto voltado para o lago.Mais botõezinhos de lor,combrotinhos de umverde brilhante e emborrachado, se insinuavamaoredordabasedaestátuacdosbancos,evialgunsoutrosaçafrõesnaneveirregular.Ameulado,Isabelmexianasfolhascomopé.

— E olha! Aqui em baixo tem uma pedra, tipo um pátio ou algo dogênero,achoeu.Descobrianopassado.

Chutei as folhas, como ela, e é claro quemeu dedão esbarrou numapedra. Esquecendo temporariamente o nosso real objetivo, remexi nasfolhas,revelandoumpedaçosujoeúmidodesolo.

— Isabel, não é só pedra. Olha!É um... um...—Nãome ocorreu quenomedaràspedrasqueformavamdesenhosintricados.

—Mosaico—terminouIsabel,baixandoosolhosparaosrebuscadoscírculossobseuspés.

Me pus de joelhos e limpei com um graveto algumas pastilhas depedra.Amaioria tinha cornatural,mashavia alguns fragmentos emazul

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brilhante,bemcomoumaspoucaspastilhasvermelhas.Desnudeimaisumpedaçodomosaico,revelando,nocentro,odesenhodeumsolsorridenteeaparentementearcaico.Foiumasensaçãoesquisitaessadedescobrirumafacebrilhanteescondidasobfolhasapodrecidas.

—Samadorariaistoaqui—falei.

—Cadêele?—indagouIsabel.

—Foiveri icara lorestanosfundosdacasadeBeck.Deviatervindoconosco.

Eu já estava imaginando suas sobrancelhas se franzindo sobre osolhos ao ver omosaico e a estátua pela primeira vez. Era o tipo de coisaparaaqualelevivia.

Um objeto sob o banco à minha frente chamou, contudo, minhaatenção,me trazendo de volta para omundo real. Um objeto ino, opaco,branco...umosso.Estendiobraçoeoapanhei,olhandoparaasmarcasdedenteali.Entãomedeicontadequehaviaoutrosespalhadosemvoltadobanco,meio enterrados entre as folhas. Parcialmente sob o banco estavaumatigeladevidro,manchadaetrincada,masqueobviamentenãoeraumobjetoantigo.Leveiapenasmeiosegundoparamedarcontadoquevia.

FiqueidepéeencareiIsabel:

—Vocêvemdandodecomeraeles,nãoé?

Isabelmelançouumolharameaçadorenãorespondeu.

Puxeiatigelaeasacudiparadeixarcairasduasfolhasquehaviamseenroscadonofundo.

—Oquetemdadoaelesparacomer?

—Criancinhas—respondeuIsabel.

Fulminei-acomosolhos.

—Carne.Nãosounenhumaidiota.Esóquandoestavarealmentefrio.Peloquemeconsta,osguaxininsidiotaspodemestarcomendotudo.

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O tom de Isabel foi desa iador, quase zangado. Eu pretendia fazerpiadadessagenerosidadeescondida,masaasperezaemsuavozmelevouadesistir.

Emvezdisso,falei:

— Ou cervos carnívoros, querendo incluir um pouco de proteína àprópriadieta.

Isabel deu um sorrisinho débil. Seu sorriso sempre parecia meioafetado.

—Vaiverfoiobicho-papão—disseela.

Nós duas demos umpulo quando um grito estridente, que lembravauma gargalhada sobrenatural, veio do lago, seguido pelo ruído de algocaindonaágua.

—MeuDeus!—exclamouIsabel,comamãonoestômago.

Respireifundo.

—Umpássaro.Nósoassustamos.

—Avidasilvestreandasuperestimada.Dequalquerforma,achoqueaOlívianãodeveestarporaqui, jáqueopássarolevouumsustoconosco.Uma loba virando gente provavelmente faria um poucomais de barulhoquenós.

Fui obrigada a admitir que essa teoria fazia sentido. Além disso, averdade é que eu ainda não sabia como iríamos lidar com o repentinoregressodeOlíviaaMercyFalls.Entãoumapartedemimsentiualívio.

—Podemostomaraquelecaféagora?

— Podemos — respondi, mas me afastei do pátio oculto e meencaminheiparaolago.Depoisdesaberqueomosaicoestavasobnossospés,era fácilpercebercomoasuper ícieera implacável,diferentedosolonaturalda loresta.Caminheiatéaestátuadamulherepusamãonabocaquandocontempleiavista.Sódepoisdeabsorveravisãodolagotranquilo

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emolduradopelasárvoresnuasedomergulhãodecabeçanegra lutuandona super ície, me dei conta de estar imitando inconscientemente aexpressãodeeternodeslumbramentodaestátua.

—Vocêviuisso?

Isabelsejuntouamim.

— A natureza — comentou, indiferente. — Compre o cartão-postal.Vamos.

Masmeuolharhaviasedesviado,indopousarnosoloda loresta.Meucoraçãodisparou.

—Isabel...—sussurrei,paralisada.

Do outro lado da estátua, um lobo jazia entre as folhas, seu pelocinzento quase da mesma cor da folhagem morta. Dava para ver ocontorno do focinho preto e a curva de uma das orelhas se destacandoentreasfolhas.

—Estámorto—disseIsabel,semsepreocuparemsussurrar.—Temumafolhaemcimadele.Jáestáláfaztempo.

Meucoraçãocontinuavaabaterforte.PreciseirecordaramimmesmaqueOlíviase tornarauma lobabranca,enãocinzenta.EqueSameraumrapaz, seguramente encarcerado em seu corpo humano. Esse lobo nãopodiasernenhumdosdois.

Mas podia ser Beck. Olívia e Sam eram os únicos com quem eu meimportava,masBeckeraimportanteparaSam.Eeraumlobocinzento.

Porfavor,nãosejaBeck.

Engolindo em seco, me ajoelhei junto ao animal, enquanto Isabel sepunhadepéaomeuladoeremexiaasfolhas.Retirandocuidadosamenteafolhaque cobriaparcialmente a carado lobo, senti o pelo áspero roçar alateral da minha mão, mesmo através da luva. Observei o pelo listradocinza,pretoebrancocontinuarabalançarumsegundodepoisqueretireiobraço. Então, delicadamente, abri o olho entrefechado no lado mais

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próximodemim.Umolhocinza,opacoesemvida,emnadaparecidocomodeumlobo, ixoualgumpontomuitoalémdemim.NãoeraoolhodeBeck.Aliviadaeaindaagacha-da,meafasteieolheiparaIsabel.

Ao mesmo tempo em que eu disse "Gostaria de saber quem era",Isabeldisse"Gostariadesaberacausadamorte".

Passei as mãos ao longo daquele corpo— o lobo estava deitado delado, as patasdianteiras cruzadas, o rabo estendidopara trás, comoumabandeiraameiomastro.Mordiolábio.

—Nãoestouvendosanguealgum—observei.

—Vireocorpo—sugeriuIsabel.

Cuidadosamente,segureiaspernasdoloboeovireiparaooutrolado.Ocorponãoestavainteiramenteduro—apesardafolhaquecaíraemsuacara, o lobo não morrera há muito tempo. Pisquei, antecipando umadescobertahorripilante,mastambémnãohaviaqualquerferimentovisíveldooutrolado.

—Talveztenhamorridodevelhice—falei.MinhaamigaRacheltinhaumcachorroquandoa conheci, umGoldenRetrievervelhoe acinzentadocujofocinhoficarabrancocomoaneveporcausadaidade.

—Olobonãoparecevelho—disseIsabel.

—Samdissequeoslobosmorremcercade15anosapóspararemdesetransformar—expliquei.—Talveztenhaacontecidoisso.

Levantei o focinho do animal para ver se conseguia detectar pelosgrisalhos ou brancos. Ouvi o som enojado de Isabel antes de descobrir oporquê.Osanguesecomanchavaofocinhodolobo—talvezpertencenteaumavítimamordidapor ele antesdemorrer, pensei. Foi quando repareiquea lateraldamandíbulapousadanosolotambémestavaempapadadesangue.Osangueeradolobo.

Torneiaengoliremseco,meioenjoada.Nãoqueria,porém,queIsabelmeconsiderasseumafresca,porissodisse:

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—Seráquefoiatropeladoechegouatéaqui?

Isabel fezumruídoquevinhado fundoda garganta, e eunão soubedizersetraduzianojooudesprezo.

—Não.Olhaonariz.

Elatinharazão.Haviadoisrastrosidênticosdesangueescorrendodasnarinasesejuntandoàmanchavelhaqueatravessavaoslábiosdolobo.

Eunãoconseguiaparardeolhar.Se Isabelnãoestivessecomigo,nãosei quanto tempo eu teria icado agachada ali, segurando aquele focinho,encarando o animal— a pessoa— , quemorrera com o próprio sangueemplastadonacara.

Mas Isabel estava comigo. Por isso, tornei a deitar com cuidado acabeça do lobo. Como dedo enluvado, afaguei o pelomacio na lateral desuacara.Morbidamente,euqueriaexaminarmaisumavezooutrolado,oladoensanguentado.

—Vocêachaquehaviaalgodeerradocomele?—perguntei.

—Vocêacha?—devolveuIsabel,antesdedardeombros.—Vaiverfoisóumahemorragianasal.Seráqueoslobostêmisso?Elaspodemfazervocêvomitarseolharparacimaenquantoestátendouma.

Sentinoestômagoumapertodemedo.

—Grace. Jáchega.Umtraumatismocerebral tambémpodetersidoacausa.Ououtrosanimais remexendoneledepoisdemorto.Ouummontede coisas nojentas para se pensar antes do almoço.O fato é que ele estámorto.Pontofinal.

Voltei-meparaoolhocinzasemvida:

—Talvezdevêssemosenterrá-lo.

—Talvezpudéssemosprimeirotomarumcafé—disseIsabel.

Mepusdepé, limpando as folhas grudadasnosmeus joelhos. Tive ainquietante sensação de estar deixando algo inacabado, uma incômoda

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ansiedade. Talvez Sam soubesse o que fazer. Mantendo um tom sereno,respondi:

—Estábem.Vamosnosaquecer,edepoiseuligoparaoSam.Elepodevirdarumaolhada.

—Espere—atalhouIsabel.Pegandoocelular,elamirouoloboetirouumafoto.—Vamostentarusaracabeça.Bem-vindaàtecnologia,Grace.

Olheiparaateladocelular.Acaradolobo,cobertadesanguenavidareal,parecianormaleincólumenaimagem.Senãootivessevistoemcarneeosso,eujamaissaberiaquehaviaalgodeerradocomele.

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CAPÍTULO7•SAM•

Eu estava sentado na lanchonete Kenny há uns 15 minutos,observando a garçonete atender os fregueses nas outrasmesas como sefosse uma abelha visitando e revisitando lores. Então Grace bateu nooutro ladodo vidro canelado. Ela não passava de uma silhueta recortadacontraaclaridadebrilhantedocéuazul,epudeapenasverocontornodoseu sorriso eobeijo sopradoparamimantesque ela e Isabel entrassemnalanchonete.

Uminstantedepois,Grace,comonarizeasbochechascoradosdefrio,sentou-seaomeuladonosofávermelho,acalçajeansrangendonoassentoeternamenteengordurado.Elajáiatocandomeurostoantesdemebeijar,quandomeencolhi.

— O que foi? Estou fedendo? — indagou ela, não parecendoespecialmente incomodada. Pôs o celular e as chaves do carro sobre amesa e estendeu o braço por cima de mim para pegar os cardápiospróximosàparede.

Desviando-medela,aponteiparaasluvas:

—Naverdade,está,sim.Suas luvasestãocomocheirodaquele lobo.Issonãoéumelogio.

—Obrigadapeloapoio,homem-lobo—disseIsabel.QuandoGracelheofereceuum cardápio, ela sacudiu enfaticamente a cabeça e acrescentou.—Ocarrotodoficoucheirandoacachorromolhado.

Nãosaqueidireitoahistóriadocachorromolhado,massenti,sim,nasluvas de Grace, o odor natural e almiscarado de lobo, embora houvessealgo mais ali — uma subcorrente desagradável que incomodava o meuolfatoaindaaguçado.

Gracedisse:

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—Chega. Vou deixar as luvas no carro. Não precisame lançar esseolhar cortante. Se a garçonete aparecer, peça para mim um café equalquercoisaquetenhabacon,certo?

Durante a sua ausência, Isabel e eu icamos ali num silêncio meioconstrangido,preenchidoporumamúsicaambienteepelotilintardalouçana cozinha.Estudei a formada sombradistorcidado saleiroprojetadanopotinho de envelopes de açúcar. Isabel examinou o punho elaborado dopróprio suéter e a maneira como ele pousava na mesa. Finalmente, eladisse:

—Vocêfezumoutropássarodaqueles.

Peguei a garça que izera com o guardanapo enquanto esperava.Estava encaroçada e imperfeita porque o papel não era propriamentequadrado.

—Fiz.

—Porquê?

Esfregueionariz,tentandomelivrardocheirodolobo.

—Seilá.Temumalendajaponesaquedizque,sevocê izermilgarçasdestasdepapel,umdesejoseuserealiza.

AsobrancelhaeternamenteerguidadeIsabel fezseusorrisoparecerinvoluntariamentecruel.

—Vocêtemalgumdesejo?

—Não—respondi,enquantoGracevoltavaasesentaraomeu lado.—Todososmeusdesejosjáforamatendidos.

—Oquevocêestavadesejando?—interrompeuGrace.

—Umbeijoseu—respondi.Elaseinclinou,meoferecendoopescoço,e o beijei logo abaixo da orelha, ingindo não mais sentir o odoralmiscaradodo lobona suapele.Osolhosde Isabel se cerraram, emboraseus lábios continuassema esboçarum sorriso. Constatei que, de alguma

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forma,elanotaraaminhareação.

Desviei o olhar quando a garçonete se aproximou e anotou nossopedido.Graceoptouporumcaféeumsanduíchedebacon,tomateealface.Pedi a sopa do dia e um chá. Isabel quis apenas café, tirando da suabolsinhadecouroumsaquinhodegranoladepoisqueagarçonetesefoi.

—Alergiaalimentar?—indaguei.

—Alergiaabreguice—respondeuIsabel.—Alergiaagordura.Ondeeumorava,tínhamoscafeteriasdeverdade.Quandodigopaniniaqui,todomundorespondeSaúde.

Grace riu epegouminhagarçadepapel, fazendo comqueopássaroabanasseasasas.

—VamoscomerpaniniemDuluthumdiadesses,Isabel.Atélá,baconvailhefazerbem.

Isabelfezumacaretacomosenãoestivessemuitodeacordo.

—Seoseubemforsinônimodeceluliteeestrias,vocêtemrazão.Eaí,Sam, qual é a desse cadáver, a inal? Grace disse qualquer coisa sobre oslobosteremmais15anosdevidadepoisqueastransformaçõesacabam.

—Legal, Isabel—murmurouGrace,meolhandode soslaioparaverminha expressão diante da palavra cadáver. Ela já havia me dito aotelefone,porém,queolobonãoeraBeck,PaulouUlrik,portantonãoreagi.

Isabeldeudeombros,impenitente,eabriuoflipdocelular.Empurrou-oparamimemcimadamesa.

—Recursovisualnúmeroum.

Ocelularroçouemmigalhas invisíveisquandoovireidecabeçaparacima.Sentiumapertonoestômagoquandoviolobo,nitidamentemortonatela, mas meu luto não foi intenso. Nunca havia visto aquele animal emformahumana.

—Acho que você tem razão— falei.—Porque só conheci este lobo

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comolobo.Devetermorridodevelhice.

—Achoqueelenão teveumamortenatural—disseGrace.—Alémdisso,nãohaviapelosbrancosnofocinho.

Corrigiminhapostura.

—SóseioqueBeckmefalou.Quenóstemos...tínhamos...—Luteicomo tempo verbal, já que não era mais um lobo. — ...dez ou quinze anosdepoisqueastransformaçõescessam.Otempodevidadeumlobonormal.

—Tinhasangueescorrendodasnarinasdele—insistiuGrace,quasezangada,comoselheaborrecessedizerisso.

Movimenteia telapara frenteepara trás,observandoatentamenteofocinho.Nãovinadanaimagemmeiodesfocadaquesugerisseumamorteviolenta.

—Nãoeraumasangueira—disseGrace,emrespostaàminha testafranzida.—Algumdosoutroslobosquemorreramtinhasanguenacara?

FizumesforçoparamelembrardosvárioslobosquehaviammorridoenquantoeumoravanacasadeBeck.As lembrançaseramumborrão—BeckePaulcomlonasepás,Ulrikcantando"Eleéumbomcompanheiro"aplenospulmões...

—Naverdade,nãome lembrodenenhumcommuitaclareza.Talvezesselobotenhalevadoumapauladanacabeça.

Propositadamente,nãomepermitipensarnapessoapor trásdapeledolobo.

Grace nada disse enquanto a garçonete nos servia as bebidas e acomida. Durante um longo intervalo, icamos todos em silêncio, eumexendomeucháeIsabelfazendoomesmocomocafé.Gracecontemplou,pensativa,osanduíchedebacon.

Isabeldisse:

—Paraumalanchonetecaipira,atéqueocaféémuitobom.

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Uma parte de mim agradeceu por ela sequer olhar para ver se agarçoneteseriacapazdeouvir.Dealgumaforma,eragrati icanteveressaabsolutafaltadesensibilidade.Amaiorpartedemim,porém, icoufelizdeestar ao lado de Grace, que lançou para a amiga um olhar que dizia:Àsvezesnãoseiporquesaiocomvocê.

—Ô-ôh!—exclamei,comumolhonaportaqueseabria.

Aívem...

EraJohnMarx,oirmãomaisvelhodeOlívia.

Eunãoestavapropriamenteansiosopara falarcomelee,aprincípio,mepareceuqueeunãoprecisaria fazer isso,porqueJohnaparentementenãonosviu.Ele foidiretoparaobalcãoepuxouumbanco,sentando-seecurvandoocorpoaltoaodescansá-losobreoscotovelos.Antes,sequer,defazerseupedido,agarçonetelhetrouxeumcafé.

—Johnéumgato—comentouIsabel,numavozquefaziaaquilosoarcomoumdefeito.

—Isabel—sibilouGrace.—Dáparadesacelerarumpouquinhoseumarcadordeinsensibilidade?

Isabelfezummuxoxo.

—Oquê?Olívianãomorreu.

—Vouchamá-loparasentarconosco—disseGrace.

— Ah, não, por favor!— pedi.— Vai ser preciso mentir, e não soubomnisso.

—Maseusou—atalhouGrace.—Eleestádedarpena.Jávolto.

E voltou, um minuto depois, acompanhada de John, sentando-senovamente ao meu lado. John icou em pé ao lado da mesa, parecendolevementedesconcertadoquando Isabeldemorouparaabrirespaçoparaelenosofá.

— E aí, como vamos? — perguntou Grace, solidária, apoiando os

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cotovelosnamesa.Talvezeuestivesseimaginandoumtompaternalistaemsuavoz,masacheiquenão.Eu jáouviraessesomantes, todavezqueelafaziaumaperguntacujarespostajáconheciaelheagradava.

John lançouumolharpara Isabel, que semantinha afastadadele, deum jeito bastante ostensivo, com o braço pousado no peitoril da janela.Depois,inclinou-separamimeparaGrace:

—Recebiume-maildaOlívia.

— Um e-mail? — repetiu Grace. Sua voz misturava, na dose certa,esperança, descrença e fragilidade. Exatamente o que se espera de umagarotaenlutadaquerezaparaqueaamigaaindaestejaviva.SóqueGracesabiaqueOlíviaestavaviva.

Disparei-lheumolhar.

Grace me ignorou, continuando a encarar John com uma expressãoinocenteeinteressada.

—Oquedizia?

—QueelaestavaemDuluth.Quevoltariaembreveparacasa!—Johnergueuasmãosnoar.—Nãosei sedeviameborrar inteiroougritarnafrente do computador. Como ela pode fazer uma coisa dessas com amamãeeopapai?Comosetivesseapenasidovisitarumaamigaepronto.Querdizer,estousuperfeliz,mas,Grace,queraivaestousentindodela!

Elerelaxounosofá,aparentementesurpresoporterseabertotanto.

Cruzeiosbraçoseosapoieinamesa,tentandosuperarapontinhadeciúmequeinesperadamentebrotouemmimquandoJohndisseonomedeGrace com tanta intimidade.É estranho como o amor nos familiariza comnossosdefeitos.

—Masquando?—insistiuGrace.—Quandoeladissequevaivoltar?Johndeudeombros.

—Claroqueelanãodissenadaalémde"embreve".

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OsolhosdeGracebrilharam.

—Maselaestáviva!

—É—disseJohn,eagoraeuviaqueosolhosdeletambémbrilhavam.

—Apolícianosdisseque...Bem,vocêssabem,queagentenãodeviatermuitaesperança.Enfim,opioreramesmonãosaberseelaestavaviva.

—Por falarempolícia—interveio Isabel.—Vocêmostrouaelaoe-mail?

Grace deu uma olhada rápida e nada amistosa para Isabel, mas seurostorecuperouaexpressãodelicadamente interessadaquandosevoltouparaJohn.Elepareciaculpado.

—Eunãoqueriaqueelesmedissessemqueoe-mailpodiaser falso.Achoque...Achoquevoumostrar.Porqueelespodemrastrearoendereço,nãoé?

—E—respondeuIsabel,olhandoparaGraceemvezdeJohn.—OuvidizerqueapolíciapoderastrearoIP,ousejaláquenomedãoaisso.Podedescobrirdequeáreaveiooe-mail.Quemsabeatémesmodaqui,deMercyFalls.

Numtomduro,Graceinterrompeu:

— Mas se tiver sido de uma lan house numa cidade grande comoDuluthouMinneapolis,nãovaiadiantarmuito.

— Não sei se quero realmente que Olívia seja arrastada até aquicontraaprópriavontade—atalhouJohn.—Elatemquase18anosenãoéburra.Sintosaudades,masalgumacoisaafezirembora.

Todos o encaramos— por motivos diversos, creio eu. No meu caso,pensei apenas que se tratava de uma coisa incrivelmente sensata ealtruísta para se dizer, ainda quemeio boboca.O olhar de Isabel pareciamaisindagar:seráquevocêéumcompletoidiota? OdeGracetransbordavaad-miração.

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—Vocêéumirmãomaravilhoso—disseela.

Johnbaixouosolhosparaaxícaradecafé.

— Bom, ora... Isso eu não sei. De qualquer maneira, preciso irandando.Tenhoaula.

—Nosábado?

—Etipoumao icina—respondeuJohn.—Créditosextras.Metiradecasa— justi icou, levantando do sofá e tirando alguns trocados do bolsoparapagarocafé.—Vocêentregaàgarçonete?

—Claro—respondeuGrace.—Agentesevêporaí?

John assentiu com a cabeça e se afastou. Nem bem saíra dalanchonete, Isabel deslizoupara omeiodo sofá para icar de frente paraGrace.

—Nossa,Grace,vocênuncamecontouquetinhanascidosemcérebro—disse ela.—Porque só assimconsigo explicarporquevocê fariaumacoisatãoidiota.

Eu não teria me expressado nesses termos, mas estava pensando omesmo.

Gracenãodeubola.

— Shh. Mandei o e-mail da última vez que estive em Duluth. Queriadar a eles alguma esperança. E, para ser franca, achei que isso pudesseevitar que a polícia se esforçasse tanto para encontrá-la, já queimaginariam ser mais uma fuga de uma garota chata e quase maior deidade,nãoumpossívelsequestrocommorte.Viu?Euuseimeucérebro.

Isabeldespejouumpouquinhodegranolanapalmadamão.

—Achoquevocêdeve icarforadisso.Sam,digaaelapara icarforadisso.

Tudoaquilomedeixavadesconfortável,masfalei:

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—Graceémuitoesperta.

—Graceémuitoesperta—repetiuGraceparaIsabel.

—Emgeral—acrescentei.

—Talvezagentedevacontaraele—disseGrace.

Isabeleeuaencaramosaomesmotempo.

—Oquê?Eleéirmãodela.AdoraOlíviaequerqueelasejafeliz.Alémdo mais, não entendo todo esse segredo, se é uma coisa cientí ica. Tudobem,omundoemgeraltalvezinterpretedeumjeitoerrado,masafamília?Provavelmente vão se sentir melhor se for algo lógico em vez demonstruoso.

Comefeito,nãomeocorrerampalavrasparadescreverohorrorquetal ideia provocou em mim. Nem mesmo tive certeza doporquê de umareaçãotãoveemente.

—Sam—disseIsabel,emedeicontadeestarsimplesmentesentadoali, passando um dedo nas cicatrizes emmeus pulsos. Isabel olhou paraGrace.— Grace, essa é a ideiamais idiota que já ouvi, amenos que seuobjetivosejaverOlívia carregadaparaomicroscópiomaispróximo,a imde ser virada do avesso. Além disso, dá para ver que John está tensodemaisparalidarcomessaideia.

Isso,aomenos,faziasentidoparamim.

—Nãoachocertocontaraele,Grace.

—VocêcontouaIsabel!

— Tivemos de contar — justi iquei, antes que Isabel des izesse aexpressão de superioridade. — Ela já adivinhara um bocado. Acho quedevemosdizerapenasoqueforpreciso.—Gracecomeçavaaostentarsuaexpressãovazia, oque signi icavaqueestava chateada.Por issoeudisse:—Mascontinuoachandovocêmuitoesperta.Emgeral.

—Emgeral— repetiu Isabel.—Agora, vou dar o fora. Estou quase

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ficandogrudadanestesofá.

—Isabel— falei,quandoela se levantou, fazendo-apararàbeiradamesaemelançarumolharestranho,comoseeujamaisativessechamadopelo nome. — Vou enterrá-lo. O lobo. Talvez hoje, se o solo não estivercongelado.

—Nãotenhapressa—disseIsabel.—Elenãovaifugir.

QuandoGraceseinclinouparamim,sentinovamenteaquelecheirodepodre. Queria ter olhado com mais atenção a foto no celular de Isabel.Queriaqueacausadamortedolobofossemaisclara.Eujátinhamistériossuficientesparaencherumavidainteira.

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CAPÍTULO8•SAM•

Euerahumano.

Odiaseguinteaoqueenterreio lobofoigélido,comtodooesplendorvolátildosmesesdemarçoemMinnesota:umdiaatemperaturasubiaaté0°C, no outro,mal chegava a -10°C. Era incrível como podia ser amena a0°C,depoisdedoismeses inteiroscomtemperaturasnegativas.Eununcaprecisara encarar tanto frio commeu corpo humano. Aquele era um diaterrivelmente gelado, o mais distante possível da primavera. Salvo pelasfrutinhasvermelhasbrilhosasgrudadasàbeiradadosramosdasárvores,nãorestaraqualquervestígiodecornomundo.Meubafocongelavadiantedemimemeusolhosestavamsecosporcausadofrio.Meuolfatoabsorviaoarcomoodeumlobo,maseunãoeraumlobo.

Essaconsciênciaaomesmotempomemaravilhavaefaziasofrer.

Apenasdoisfregueseshaviamaparecidonalivrariaaolongodetodoodia.Penseinoquefariadepoisdomeuturno.Namaioriadasvezesemqueele terminavaantesqueas aulasdeGraceacabassem, eu icavano sótãoda lojaemvezdevoltarparaa casavaziadosBrisbanes.NaausênciadeGrace,elanãopassavadeumlugarondeesperá-la,umadorsurdadentrodemim.

Naquele dia, a dorme acompanhara ao trabalho. Eu já havia escritoumacanção—umpedaçodecanção—Continuaasersegredoseninguémligar/se o fato de saber coisa alguma mudar/ em sua existência — esentimentos—noseujeitodelevaravida/mesmosabendooqueagorasabedemim.Maisquetudo,eraumaexpectativadecanção.Agora,empoleiradoatrás do balcão, lendo um exemplar de Roethke, meu turno prestes aterminareGraceocupadanaescolaaté tarde,meusolhos foramatraídospelos minúsculos locos de neve que caíam lá fora e se desviaram daspalavrasdeRoethke:"Escura,escuraéminhaluz,maisescuroaindaomeudesejo.Minhaalma,comoumamoscadeverãoenlouquecidapelocalor,nãoparadezumbirnopeitoril.Quemsoueu?" Baixeiosolhosparameusdedos

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napáginadolivro,tãomaravilhosos,tãopreciosos,emesenticulpadopelodesejosemnomequemeassolava.

Orelógiomarcoucincohoras,horárioemqueeucostumavatrancaraportadafrente,viraraplacaparao ladoondese liaFECHADO—VOLTOLOGO,esairpelaportadosfundosparapegarmeucarro.

Dessa vez, porém, não foi o que iz. Dessa vez, tranquei a porta dosfundos, peguei meu violão e saí pela frente, escorregando de leve nacamadadegelonovãodeentrada.PusogorroqueGracecompraraparamim numa tentativa fracassada de me deixar sexy e, ao mesmo tempo,proteger minha cabeça do frio. Chegando ao meio da calçada, observeiminúsculos locosdeneve lutuaremsobrearuaabandonada.Atéondeaminha vista alcançava, havia montes de neve velha transformados emesculturas encardidas. Sincelos faziam sorrisos cheios de dentes nasfachadasdaslojas.

Meus olhos doíam com o frio. Estendiminhamão livre com a palmaparacimaeobserveianevesederretersobreaminhapele.

Isso não era a vida real. Era uma vida vista através de uma janela.Vida assistida na televisão. Não pudeme lembrar de uma época em quenãoestivesseescondidoisso.

Euestavacomfrio,seguravaumpunhadodeneveeerahumano.

O futuro se estendia à minha frente, in inito, cada vez maior e meu,comonadajamaisofora.

Uma euforia repentina brotou emmim, um sorriso se abriu nomeurostoanteessaloteriacômicaemqueeuganhara.Eutinhaarriscadotudoeganhadotudo,ealiestava,domundoenomundo.Rialto,semninguémparame ouvir, exceto a plateia de locos de neve. Saltei da calçada paradentro do monte de neve encardida, inebriado com a realidade de meucorpohumano.Umavidainteiradeinvernos,degorros,degolaserguidascontraofrio,denarizesvermelhos,de icaracordadoatétardenanoitedeAno-novo. Deslizando nas marcas escorregadias de pneus no asfalto,atravesseia ruavalsando,balançandoemcírculoacaixadoviolão, comanevecaindoaomeuredor,atéumcarrobuzinarparamim.

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Aceneiparaomotoristaesubinacalçadaoposta,dandopetelecosnaneve fresca amontoada sobre cada parquímetro de que me aproximava.Minhacalçacongelaracomanevequemeenchiaossapatos,meusdedosestavamvermelhosedor-mentes,eeucontinuavaasereu.Sempreeu.

Contornei o quarteirão até que o frio perdesse o ar de novidade edepois retornei ao carro e consultei o relógio. Grace ainda estaria dandosua aula particular, e não quis correr o risco de chegar à casa dela eencontrar,emseu lugar,opaiouamãe.Oadjetivo"incômodo"erapoucopara descrever as conversas entre nós. Quanto mais óbvio se tornava orelacionamento entremim e Grace, menos coisas seus pais encontravamparamedizer.Evice-versa.Porisso,opteiporiratéacasadeBeck.Aindaque não tivesse a esperança de que algum outro lobo houvesse setransformado, eu poderia pegar alguns dos meus livros. As histórias demistérioqueenchiamasestantesdeGracenãomeagradavam.

Assim,seguipelaautoestradasobaclaridadecinzentado inaldodia,sentindoapressãodoBosquedaFronteiraàsmargensdoasfalto.AtéquemevinaruadesertaqueiadarnacasadeBeck.

Parandona entrada vazia, desci do carro e respirei fundo.A lorestaaquitinhaumcheirodiferentedaquelequesentíamosnacasadeGrace—aqui,oarexalavaoaromaforteeinvernaldasbétulas,assimcomooodorcomplexo da terra úmida próximo ao lago.Dava para identi icar o cheirodaalcateiatambém,almiscaradoepungente.

Ohábitome levouàportados fundos,aneve frescarangendosobasminhasbotas e se grudando àbarrada calça jeans. Passei os dedospelaneve em cima das trepadeiras que subiam de encontro à casa, enquantodava a volta por trás e esperava novamente o ataque de náusea quesinalizavaatransformaçãoiminente.Maselenãoveio.

Ao lado da porta dos fundos, hesitei, olhando em direção ao bosque,para além do quintal coberto de neve. Eu tinha mil lembranças quehabitavamaquelaregiãoentreaportaeamata.

Tornei a me virar para a porta e me dei conta de que, embora nãoestivesseescancarada,tambémnãoseencontravarealmentefechada,masapenasencostadaosu icienteparanãoserabertapeloventointermitente.Baixei os olhos para amaçaneta e notei umamancha vermelha. Um dos

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outroslobostransformando-semuito,muitocedo.Sópodiaserisso.Apenasumdos lobos poderia se tornar humano com tanta antecedência, e aindaassim sem esperanças concretas demanter essa forma enquanto a nevecongeladacontinuassearevestirosolo.

Abrindo a porta, proferi um "Olá?". Ouvi um movimento na cozinha.Alguma coisa sobre aquele som, que raspava e arranhava o ladrilho,meincomodou. Tentei pensar em algo tranquilizador para dizer a um lobo,masquenãoparecesseinsanoparaumserhumano.

—Quemquerquevocêseja,eumoroaqui.

Dobrei no corredor e entrei na cozinha mal-iluminada. Então, pareipróximoàilhacentral,aosentiromaucheirodaáguadolago.Estendendoamãosobreabancadaparaacenderaluz,indaguei:

—Quemestáaí?

Vi um pé — humano, descalço, sujo — projetando-se de trás dabancada central, e, quando ele se contraiu, eu também o iz, assustado.Contornando a bancada, vi um sujeito em posição fetal, tremendomuito.Seu cabelo castanho- escuro estava duro com a lama seca, e, nos braçosestendidos,noteiumadezenadepequenasferidas,provadeumajornadadesprotegidapelafloresta.Elefediaalobo.

Eu soube logo que tinha de ser um dos novatos de Beck, do anoanterior. Porém, senti um arrepio esquisito quando pensei em Beckescolhendo-o a dedo, ao me dar conta de que esse era um membronovinhoemfolhadaalcateia,oprimeiroemmuitotempo.

Elevoltouorostoparamim,e,emboraobviamentesentissedor—eume lembravamuito bem dela—, sua expressão permanecia composta. Emeerafamiliar.Algumacoisanalinharudedasmaçãsdorosto,descendoaté a mandíbula, e no formato estreito daqueles olhos verdes brilhantesera irritantemente familiar, associadaaumnomequeestavanapontadaminha língua. Em circunstâncias mais normais, eu me lembraria dele,pensei,masnaquelemomentoeraapenasumcutucãoescondidoemminhamemória.

—Voumetransformardenovo,nãovou?—perguntou,e iqueimeio

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desconcertadocomasuavoz.Nãoapenascomotimbre,queerabastantegravee sugeriamais idadedoqueeu esperava,mas tambémcomo tom.Totalmenteequilibrado,apesardotremornosombrosedoescurecimentodesuasunhas.

Ajoelhei-mejuntoàsuacabeça,experimentandoaspalavrasemminhaboca,mesentindoumacriançavestidanoternodopai.EmqualqueroutroanoteriasidoBeck,enãoeu,aexplicartudoissoaumlobonovato.

—E,vaisim.Aindaestámuitofrio.Olhe...Dapróximavezquevocêsetransformar,procureoabrigonafloresta...

— Já encontrei— emendou ele, numa voz que soavamais como umrosnado.

— Lá tem aquecimento central, um pouco de comida e algumasroupas. Tente a caixa com "SAM"OU a com "ULRIK" escritos.Devehaveralgonelasquesirvaemvocê.—Naverdade,porém,nãotivetantacertezadisso.Osujeitotinhaombroslargoseostentavamúsculosdegladiador.—Nãoétãobomquantoaqui,masaomenosvaievitarquevocêsearranhenamata.

Ele ixouoolharbrilhanteemmim,eaexpressãosardônicaquevialimefezperceberqueelejamaismederamotivosparacrerqueasferidasoincomodassem.

—Obrigado pela dica— agradeceu, e asminhas palavras restantesazedaramnaboca.

Beckme dissera que os três novos lobos que ele criara haviam sidorecrutados—que sabiamnoque estavam semetendo.Nãoponderei, naépoca, que tipo de pessoa escolheria esse tipo de vida. Alguém quevoluntariamente se disporia a perder umperíodo cada vezmaior do anoaté chegar a hora de dizer adeus a tudo. Era uma espécie de suicídio,pensandobem,e,assimqueapalavrameocorreu, fui levadoaencararosujeito de uma forma totalmente diferente. Enquanto o corpo do recém-chegado se contorcia no chão, com a expressão em seu rosto aindacontrolada—nomáximo,ansiosa—, tivetempoapenasdeverasvelhasmarcasdeagulhaemseusbraçosantesqueelesetransformasseemlobo.

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Corriparaabriraportadosfundosparaqueele,castanhoeescuroàpenumbra, pudesse escapar para a neve e se afastar do ambientedemasiadohumanodacozinha.Esselobo,porém,nãodisparouportaafora,comooutrosteriamfeito.Comoeuteriafeito,setransformadoemum.Emvezdisso,passoupormimdevagar,decabeçabaixa,detendo-separa ixarseus olhos verdes diretamente nos meus olhos. Não desviei o olhar, einalmenteeletranspôsaporta,parandomaisumaveznoquintalparamelançarumolharavaliador.

Bemdepoisdapartidadonovato,sua imagemaindameassombrava:as feridas de picadas nas dobras do antebraço, a arrogância no olhar, asensaçãofamiliardeseurosto.

Voltandoàcozinhaparalimparosangueeaterradopisoazulejado,viachavesobressalentecaídanochão.Devolvi-aaoseuesconderijo, juntoàportadosfundos.

Aofazê-lo,mesentiobservadoemevirei,esperandoverolobonovatonoslimitesdobosque.Emvezdisso,aliestavaumlobogrande,cinzento,deolhosfixosemmim,familiardeumjeitototalmentediverso.

— Beck — sussurrei. Ele não se mexeu, mas suas narinas, sim,sentindoomesmocheiroqueeusentira:ocheirodolobonovato.—Beck,oquefoiquevocêtrouxeparacasa?

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CAPÍTULO9•ISABEL•

Piquei na escola depois das aulas para uma reunião do grêmioestudantil. A reunião foi chata de doer— eu não estava nem um poucointeressada na forma como a Escola Estadual de Mercy Falls decidiu seorganizar—,mascumpriuadupla funçãodememanter longedecasaede me permitir sentar no fundo da plateia, com meu sorriso malicioso,meus olhos tingidos de negro, inatingível. À minha volta meu grupohabitual de meninas, com os olhos pintados como os meus, posava deinatingível—oquenãoéomesmoqueserinatingível.

Tornar-se popular numa cidade do tamanho de Mercy Falls éridiculamentefácil.Bastaacreditarqueseéomáximo.NadaparecidocomSan Diego, onde ser popular era uma espécie de carreira em tempointegral.Osefeitosdocomparecimentoàreunião—umcomercialdeumahora de duração para a marca de Isabel Culpeper — durariam umasemana.

Finalmente, porém, precisei ir para casa. Parameudeleite, os carrosdosmeuspaisestavamlá.Quasemorridealegria, iqueisentadanaminhacaminhonete na entrada da casa, abri o Shakespeare que supostamenteestava lendoe aumentei o volumedo somobastanteparaqueo espelhoretrovisor vibrasse com as notas do baixo. Passados mais ou menos dezminutos, a silhueta de mamãe surgiu numa das janelas, com um acenoexageradoparaeuentrar.

Eassimcomeçouanoite.

Na nossa cozinha de aço inoxidável, estava tendo início o CulpeperShowemtodaasuaglória.

Mamãe:

— Garanto que os vizinhos adoram essa sua música de pobre.Obrigadaportocá-laaosberrosparaelesouvirem.

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Papai:

—Ondevocêestava,afinal?

Mamãe:

—Reuniãodogrêmio.

Papai:

—Nãopergunteiavocê.Pergunteiàsuafilha.

Mamãe:

—Francamente,Thomas,fazdiferençaquemrespondeu?

Papai:

—Tenhoasensaçãodequeprecisoapontarumaarmaparaacabeçadelaparafazê-lafalarcomigo.

Eu:

—Existeessaopção?

Agora os dois me encaravam. Não que eu precisasse acrescentarminhasfalasaoCulpeperShow.Elesesustentavasemmimeerareprisadodurantetodaanoite.

—Eudisseavocêqueelanãodeviaestudarnumaescolapública—dissemeupaiamamãe.Eusabianoqueissoiriadar.

A fala seguinte demamãe seria: "Eu disse a você que não devíamosnosmudarparaMercyFalls",eentãomeupaicomeçariaaatirarcoisase,no inal, os dois acabariam dormindo em quartos separados, saboreandotiposdiferentesdebebidaalcoólica.

—Tenhodeverparafazer—interrompi.—Vousubir.Agentesevênasemanaquevem.

Quandomevireiparairembora,meupaidisse:

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—Espere,Isabel.

Esperei.

—Jerrymedissequevocêandasaindocoma ilhadeLewisHrisbane.Everdade?

Então me virei, a im de descobrir qual era a expressão dele. Debraçoscruzados,meupaiestavaencostadonabancadain-color,acamisae a gravata ainda impecáveis, uma sobrancelha erguidano rosto estreito.Erguiaminhaparacombinar.

—Edaí?

—Nãouseessetomcomigo—dissemeupai.—Sófizumapergunta.

—Entãotá.Everdade.SouamigadaGrace.

Pude ver uma veia saltar num de seus braços quando ele fechou asmãosempunhoetornouaabri-las,váriasvezes.

—Ouvidizerqueelatemumbocadodefamiliaridadecomoslobos.

Fizumgestonoar,dotipo:Doqueéquevocêestáfalando?

— Correm boatos de que ela dá de comer a eles. Tenho visto comfrequênciavários lobospor aqui—disse ele.—Parecemestranhamentebem- tratados. Acho que chegou a hora de enxugarmais um pouco essebando.

Porummomentonósapenasnosentreolhamos,eutentandodescobrirse ele sabia que era eu quem alimentava os lobos, usando um joguinhopassivo-agressivoparaarrancaralgodemim,eeletentandomeobrigarabaixaroolhar.

— Isso mesmo, pai — falei, a inal. — Você deveria matar algunsanimais.

Isso vai trazer Jack de volta. Ótima ideia. Quer que eu peça a Graceparaatraí-losparamaispertodecasa?

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Minha mãe me encarou, uma peça de arte congelada:Retrato dumamulhercomchardonnay.Meupaipareciaquerermebater.

—Terminamos?—indaguei.

— Ah, estou quase — respondeu ele. Virou-se e lançou um olharsigni icativo para mamãe, olhar que ela não viu por estar demasiadoocupadaemencherosolhosdelágrimasaindanãoderramadas.

Acheiquemeupapelnesseepisódioespecí icoestavade initivamenteencerradoedeixeiosdoisnacozinha.Ouvimeupaidizer"Voumatartodoseles" eminhamãe responder, coma voz embargada: "Façaoquequiser,Tom."

Fim.Provavelmenteestavanahoradeeuparardedardecomeraoslobos.

Quantomaispertoeleschegassem,maisperigososeriaparatodosnós.

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CAPÍTULO10•GRACE•

Quando Sam chegou em casa, Rachel e eu estávamos há meia lioratentando preparar um frango à parmegiana. Rachel não linhaconcentraçãoosu icienteparaempanarospedaçosde frango, razãopelaqual eua incumbidemexeromolhode tomateenquantoeupassavaumnúmerointermináveldebifes110ovoe,depois,nafarinhaderosca.Fingiestar chateada, mas na verdade a ação repetitiva proporcionava umaespécie de efeito relaxante, e havia um prazer sutil em manusear oselementostácteis:oredemoinhoviscosodagemadeovobrilhantesobreofrango e depois o suave roçar da farinha de rosca esfarelando em tornodele.

Se aomenos eunão estivesse comaqueladorde cabeçapersistente.Ainda assim, os preparativos do jantar e a presença de Rachel vinhamdesempenhandomuitobema tarefademe fazeresquecer tantoadordecabeça quanto o fato de ter escurecido e esfriado lá fora — com o friopedindopassagematravésdajanelasobreapia—edeSamnãoteraindachegado.Elenãovaisetransformar.Eleestácurado.Acabou.

Rachel bateu o quadril contra o meu e percebi, de repente, que elahaviaaumentadoinsanamenteovolumedamúsica.

Ela tornou a bater o quadril, no compasso da canção, e depoisrodopiou até o meio da cozinha, balançando os braços acima da cabeçanuma espécie de dança maluca do Snoopy. Sua roupa, um vestido pretosobre uma legging listrada, combinava com as duas marias-chiquinhas,basicamenterealçandooefeitoridículo.

—Rachel—chamei.Elaolhouparamim,mascontinuouádançar.—Eporissoquevocênãotemnamorado.

— Não há homem que saiba lidar com isto — me garantiu Rachel,apontandocomoqueixonaprópriadireção.Maisumrodopioe icoucaraa cara com Sam, parado na porta do corredor. O baixo grave deve ter

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abafadoosomdaportadafrente.Aovê-lo,meuestômagodespencouparaopé,numaestranhamisturadealívio,nervosismoeexpectativa,sensaçãoquejamaispareciamedeixar.

Ainda encarando Sam, Rachel fez um estranhomovimento de dançacom os dedos indicadores esticados, algo provavelmente inventado nosanos1950,quandonãosepermitiaquehomensemulheressetocassem.

—Oi, Rapaz!— gritou Rachel acima damúsica.— Estamos fazendocomidaitaliana!

Ainda segurandoumpedaçode frango, eumevirei e iz umbarulhodeprotesto.Racheldisse:

— Minha colega aqui está me dizendo que fui muito incisiva. EstouvendoGracefazercomidaitaliana!

Samsorriuparamim,comoeternosorrisotristonhotalvezumpoucomaistensoquedehábito,edisse:

Esforcei-meparabaixarovolumedorádiocomamãoquenãoestavasujadeovoefarinha.

—Oquê?

—Pergunteioquevocêsestãofazendo—repetiuSam.—Emseguida,disse:"Oi,Rachel"e"Possoentrarnacozinha,Rachel?"

Rachel abriu caminho com um movimento exagerado, e Sam foi seapoiar no balcão a meu lado. Seus olhos amarelos de lobo estavamcerrados,eaparentementeeleseesqueceradetirarocasaco.

—Frangoàparmegiana—anunciei.

Elepiscou:

—Como?

—Eoqueestoufazendo.Oquevocêandouaprontando?

—Eu...estava...Euestavanaloja.Lendo.—Comumrápidoolharpara

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Rachel, ele semicerrou os lábios e acrescentou:—Não posso falar.Meuslábios ainda estão congelados pelo frio de lá fora. Quando será que vaichegaraprimavera?

— Esqueça a primavera — interveio Rachel. — Quando vai sair ojantar?

Acenei com um peito de frango por empanar, e Sam olhou para abancadaatrásdele.

—Possoajudar?—indagou.

— Basicamente, preciso terminar de empanar estes oito milhões depeitos de frango — respondi. Minha cabeça latejava, e eu estavacomeçando a odiar amera visãodo frango cru.—Nunca reparei noqueacontececomumquilodepeitodefrangoquandoécortadoemfilés.

Samdelicadamentepassouseesgueirandopormimparachegaràpiae lavar asmãos, encostandoo rostonomeuaopegaropanodeprato àsminhascostas.

—Empanoorestoenquantovocêfrita.Dácertoassim?

—Eufervoaáguaparaamassa—ofereceu-seRachel.—Souótimaparafervercoisas.

—Apanelagrandeestánadespensa—avisei.

QuandoRachelsumiunapequenadespensaecomeçouaremexernaspanelas e tampas, Sam se inclinou, de modo a roçar os lábios na minhaorelha,esussurrou:

—ViumdosnovoslobosdeBeckhoje.Transformado.

Levouum instanteparaomeucérebro registraro signi icadodessaspalavras:novos lobos. Olívia estaria humana? Sam teria que encontrar osoutroslobos?Oqueaconteceriaagora?

Virei-me de repente para ele, que continuava su icientemente pertopara que nossos narizes se encostassem. O dele ainda estava gelado por

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causadofrioláfora.Viapreocupaçãoemseusolhos.

—Ei,nadadissoenquantoeuestiveraqui—disseRachel.—GostodoRapaz,mas não quero assistir a sessões de beijos entre vocês. Beijar nafrentedossem-amoréumatodecrueldade.Vocênãodeviaestarfritandoalgumacoisa?

Então terminamos os preparativos do jantar. Aquilo levou um tempodolorosamente enorme, pois eu sabia que Sam precisava dizer algo quenãopodia serditona frentedeRachel. Foraa culpa,que também faziaotempo se arrastar. Olívia também era amiga de Rachel. Se soubesse queOlíviatalvezestivesseprestesavoltar,Rachel icariaeufóricaeexigiriaummonte de respostas. Tentei não consultar o relógio. Amãe de Rachel iriaapanhá-laàsoito.

—Oi, Rachel. Hum! comida!— dissemamãe, borboleteando cozinhaadentro e largando o casaco no caminho, sobre uma das cadeirasencostadasàparede.

—Mãe!—exclamei, semmedaro trabalhodeescondera surpresa.—Oquefazemcasatãocedo?

— Tem comida para mim? Comi no estúdio, mas não me satis iz —disse ela. Não duvidei. Minha mãe era uma excelente queimadora dealimentos.Mexer-se o tempo todo faziamaravilhas quando se tratava degastar energia. Ela se virou e viu Sam. Sua voz adquiriu um tom sagaz enãomuitoagradável.

—Oi,Sam.Poraquidenovo?

Samcorou.

— Você praticamente mora aqui — prosseguiu mamãe. Tornou avirar- se eme encarou. Aquilo nitidamente signi icava alguma coisa,masnãoentendi.Sam,porém,desviouorosto,comoseparaeleestivessebemclaro.

Um dia, no passado,minhamãe realmente gostou de Sam, chegandomesmo a lertar com ele do seu jeito maternal e pedir que cantasse eposasseparaela.MasissofoinotempoemqueSameraapenasumgaroto

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com quem eu estava saindo. Agora que não havia dúvidas de que elechecara para icar, a afabilidade dela se evaporara, e nós duas noscomunicávamosna linguagemdo silêncio. A duraçãodas pausas entre asfrasesproviamaisinformaçãodoqueaspalavraspronunciadas.

Trinqueiosdentes.

—Comaumpoucodemassa,mãe.Vocêvaicontinuaratrabalhar?

—Estáquerendoselivrardemim?—indagouela.—Possosubir.—Ela bateu de leve na minha cabeça com seu garfo. — Não precisa melançarolharesfulminantes,Grace.Jáentendi.Vejovocêdepois,Rachel.

—Meuolharnão foi fulminante— falei,depoisqueela saiu,quandofuipendurarseucasaco.Algumacoisanaconversatodahaviamedeixadocomumgostoamargonaboca.

— Não mesmo— concordou Sam, com a voz meio chateada.— Elaestácomaconsciênciapesada.

Ele fez uma expressão pensativa e encolheu os ombros, como secarregasseumpesoquenãoexistiademanhã.Meperguntei,de repente,se ele já tivera dúvidas sobre a decisão que tomara— se tinha valido orisco.Euqueriaqueele soubessequeeuachavaque sim.Queriaqueelesoubessequeeuanunciaria issoaomundo.Foiquandoresolvicon iaremRachel.

—Emelhorvocêtirarseucarro—pediaSam.

Ele lançouumolharansiosoparao teto, comosemamãepudesse lerseus pensamentos através do chão de seu estúdio caseiro. Em seguida,olhou para Rachel e, depois, para mim, com a pergunta não formuladarefletidaemsuaexpressão:Vaimesmocontaraela?Deideombros.

Rachelmeencarouconfusa.FizumgestoparadizerCalma,euexplico,eSamgritouparaoaltodaescada.

—Nosvemosdepois,sra.Brisbane!

Fez-se uma longa pausa. Então mamãe respondeu, sem muita

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delicadeza:

—Tchau!

Sam voltou à cozinha. Não disse que se sentia culpado, mas nemprecisava.Estavaescritoemsuacara.

— Se eu não vir você quando voltar, Rach, até — falou, um poucohesitante.

—Voltar?—exclamouRachel,surpresa,quandoSamsaiupelaportadafrente,fazendotilintaraschavesdocarro.—Comoassim,voltar?Oqueelefoifazercomocarro?Espereaí...oRapaztemdormidoaqui?

—Shhhl—faleiapressada,dandoumaolhadanocorredor.PegandoRachel pelo braço, empurrei-a para o canto da cozinha e logo a soltei,olhandoparaosmeusdedos.—Nossa,Rachel,comovocêestáfria!

— Não, você é que está quente — corrigiu ela. — E aí, o que estárolandoaqui?Vocêsdoisestão,tipo...dormindojuntos?

Sentimeurostocorar,involuntariamente.

—Nãodessejeito.Esó...

Rachelnãoesperouqueeudescobrissecomoterminarafrase.

— Cacete, cacete, cacete... Não consigo nem pensar no que dizer,Grace!ésóoquê?Oquevocêsdoisfazem?Não,nãomediga!

—Shhh!—repeti,aindaqueRachelnãoestivessefalandotãoalto.—Dormimos,sóisso.E,pareceestranho,maseu...

Luteiparaencontrarpalavrasparaexplicar.NãotinhanadaavercomquaseterperdidoSamequerermantê-loporperto.

Não tinha nada a ver com sexo. Tinha a ver com adormecer com ascostas de encontro ao peito dele, de modo a poder ouvir seu coraçãodesacelerar para bater junto com o meu. Tinha a ver com crescer eperceberquea sensaçãodos seusbraçosemvoltademim,o cheirodelequandodormia,osomdasuarespiração—queissoeraaconchegoetudo

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oqueeusemprequisencontrar.Nãoeraamesmacoisaqueestarcomeleacordada. Sóqueeunão sabia comoexplicar issoaRachel.Mepergunteiporquequislhecontar.

—Nãoseiseconsigoexplicar.Dormirédiferentequandoeleestáaqui.

— Não tenho a menor dúvida — disse Rachel, com os olhosesbugalhados.

—Rachel...

— Desculpe, desculpe. Estou tentando ser sensata, mas a minhamelhor amiga acabou de me dizer que passa todas as noites com onamorado semospais saberem.Querdizerqueelevai voltar escondido?Vocêcorrompeuorapaz!

— Acha que estou agindo errado? — perguntei, me encolhendo deleve,porquecogiteirealmentetercorrompidoSam.

Rachelrefletiu.

—Achoincrivelmenteromântico.

Ri,umrisomeiotrêmulo,nummistodebrincadeiraealívio.

—Rachel,estouapaixonadaporele.

Porém, aquilo não sooureal quando falei. Pareceu falso, como umcomercial, pois não pude realmente pôr na voz toda a verdade eintensidadedoqueeusentia.

—Juraquenãoconta?

—Seusegredoestábem-guardadocomigo.Longedemimsepararosjovens amantes. Nossa! Não acredito que vocês sejam mesmo jovensamantes.

Meucoraçãobatiaforteporcausadacon issão,maseumesentibem—menos um segredo escondido de Rachel. Quando a mãe dela chegou,alguns minutos depois, estávamos ambas muito alegrinhas. Talvez fossehoradecontaralgunsoutrossegredostambém.

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•SAM•

Fazia -7°C do lado de fora. À luz brilhante da lua, um disco pálido echatoportrásdeumemaranhadodegalhosdespidos,cruzeiosbraçosnopeitoeolheiparaasminhasmeias,esperandoqueamãedeGracesaíssedacozinha.AmaldiçoeibaixinhoasprimaverasgélidasdeMinnesota,masaspalavrasalçaramvooembaforadasbrancasnaescuridão.Eraestranhoicaraliempénaquelefrio,tremendo,incapazdesentirosdedosdasmãosedospés,osolhosardendo,enãoestarprestesavirarlobocomoantes.

Pela porta rachada de vidro deslizante da varanda mal dava paraouvir a voz de Grace, que falava com amãe ameu respeito. Amãe, comdelicadeza, perguntou se eu voltaria na noite seguinte também. Gracerespondeu vagamente que era bem provável, que era assim que secomportavamosnamorados.Amãecomentouconsigomesmaquealgumaspessoas poderiam pensar que estávamos indo rápido demais. Graceperguntouseamãequeriamaisfrangoàparmegiana,antesdeguardaratravessanageladeira.Pudeouviraimpaciênciaemsuavoz,masamãenãopareceunotar,memantendoprisioneirodoladodeforacomsuapresençana cozinha. De pé namadeira gélida da varanda, vestido com uma calçajeans e uma camiseta ina dos Beatles, ponderei a sábia possibilidade demecasarcomGraceelevarumavidadejovenshippiesnobancotraseirodomeuVolkswagen,semrestriçõespaternas.Nuncaaideiatinhaparecidotãoboacomoagora,quandoeucomeçavaabaterosdentesemeusdedoseorelhasiamficandodormentes.

OuviGracedizer:

—Vocêmemostranoqueestavatrabalhando?

Amãepareceulevementedesconfiadaaodizer:

—Tudobem.

—Sóvoupegarumsuéter—disseGrace.Vindoatéaportadevidrodavarandaedestrancando-asilenciosamenteenquanto,comaoutramão,

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pegavaosuéternascostasdacadeiradacozinha,elaformoucomabocaapalavraDesculpeparamim.Umpoucomaisalto,falou:

—Estáumgeloaqui.

Conteiatévintedepoisqueasduassaíramdacozinhaeentrei.Estavatremendoincontrolavelmentedefrio,mascontinuavaaserSam.

Eutinhatodasasprovasnecessáriasdequeminhacuraerareal,mascontinuavaaesperarpelofimdapiada.

•GRACE•

Sam continuava a tremer de tal forma quando o encontrei em meuquartoquemeesqueciporcompletodadordecabeçaconstante.Fecheiaportasemacenderaluzemeguieipelosomdasuavozatéacama.

— A-a-acho que a gente deve repensar nosso estilo de vida —sussurrou paramim, com os dentes tilitando, quando deitei na cama e oabracei com força. Meus dedos roçaram os pelinhos arrepiados em seusbraços.Davaparasenti-losmesmoporbaixodotecidodacamisa.

Puxei o cobertor para cobrir nossas cabeças e colei o rosto contra apelegélidadopescoçodeSam.Mesentiegoístaaodizeremvozalta:

—Nãoquerodormirsemvocê.

Eleseenroscoucomoumabolinha—ospés,mesmodentrodasmeias,pareciamcongeladosdeencontroàsminhaspernasnuas—emurmurou:

—Nemeu,maste-temostoda...

Aspalavrasseamontoaramumassobreasoutras.Eleprecisouparardefalarparaesfregaroslábioscomasmãoseaquecê-los.

—Todaavidapelafrente.Paraficarmosjuntos.

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—Todaavida,apartirdeagora—repeti.Doladodefora,ouviavozdemeupai.Eledeviaterchegadoenquantoeuentravanoquarto.Ouviasvozes dosmeus pais se acotovelando, ruidosas, quando eles subiamparase deitar. Por um instante, invejei sua liberdade de ir e vir comoquisessem,semescola,sempais,semregras.

— Isto é, você não precisa icar se não se sentir à vontade, se nãoquiser—falei.—Nãoqueroparecertãodependente.

Sam se virouparame encarar. Sódavapara ver, no escuro, o brilhodosseusolhos.

—Nuncavoumecansardisto.Sónãoqueroarrumarproblemaparavocê. Sónãoqueroquevocêprecisemepedirpara ir embora, se a coisaficarfeiademais.

Toqueiseurosto friocomamão.Asensaçãocontraaminhapeleeragostosa.

— De vez em quando, você é um bocado burro para um cara tãointeligente.

Senti o sorriso dele na palma da minha mão quando ele aproximoumaisocorpodomeu.

—Ouvocêestáquenteàbeça—disseSam—,oueuestougelado.

—Estouquentemesmo—sussurrei.—Muuuuitoquente.

Sam riu sem fazer barulho—um sombreve, estremecido, enquantosoltavaarespiração.

Agarreiosdedosdeleeosentrelaceinosmeus.Ficamosassim,comasmãos atadas como um nó entre nossos corpos, até que os dedos dele seaquecessem.

—Mefaledolobonovato—pedi.

Samseaquietouaomeulado.

—Temalgumacoisaerradacomele.Nãotevemedodemim.

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—Queestranho.

—Me fezpensaremque tipodepessoaescolheriaserum lobo.Elesdevemserloucos,Grace,cadaumdosnovoslobosdeBeck.Vocêfariaessaescolha?

Foiaminhavezde icarquieta.Seráqueeleselembravadedeitaraomeu lado no ano anterior, exatamente como agora, e me confessar quegostaria que eu também me transformasse para poder partir com ele?Não, não apenas isso. Para sentir como era ser um dos lobos, como erasimples, mágico, natural. Pensei novamente em Olívia, agora uma lobabranca,correndoentreasárvorescomorestantedaalcateia,ealgodentrodemimpareceuumpoucocru.

—Talvezelessimplesmenteadoremlobos—falei,a inal.—Vaiver,avidadelesnãoeraláessamaravilha.

O corpo de Sam estava bem junto aomeu,mas suamão icou inertedentro da minha e vi que seus olhos se fecharam. Seus pensamentosestavamlonge,muitodistantesdemim,intocáveis.Porfim,eledisse:

—Não con ionele,Grace.Tenhoa sensaçãodequenadadepositivovirá desses novos lobos. Eu... eu queria que Beck não tivesse feito isso.Queriaqueeletivessesidopacienteeesperasse.

—Agora durma— falei, embora soubesse que isso não aconteceria.—Nãosepreocupecomoquepodevirporaí.

Maseusabiaqueissotambémnãoaconteceria.

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CAPÍTULO11•GRACE•

—Poraquidenovo,Grace?

A enfermeira ergueu os olhos quando entrei em sua sala. As trêscadeiras do outro ladode suamesa estavamocupadas—umdos alunostinhaa cabeça jogadapara trás, osolhos fechadose abocaaberta,numaposição constrangedorademais para ser ingida, enquanto os outros doisliam. A sra. Sanders era conhecida por permitir que o pessoal de sacocheio da vida icasse em sua sala, o que não fazia mal algum, excetoquando alguém com uma dor de cabeça lancinante quisesse apenas sesentarenãoencontrasseumaúnicacadeiravazia.

Me postei diante de sua mesa e cruzei os braços. Tive vontade decantarolarnoritmodasbatidasdeminhadordecabeça.Passandoamãono rosto— gesto que repentina e agudamenteme lembrou Sam— , eudisse:

—Desculpe incomodara senhoradenovocomumabobagem,masaminhacabeçaestámematando.

— É, você parece mesmo mal — concordou ela, que se levantou eindicouacadeiraderodasatrásdesuamesa.—Porquevocênãosesentaenquantoprocuroumtermômetro?Vocêestáumpoucocorada,também.

— Obrigada — agradeci com sinceridade, e me sentei à sua mesaenquantoelasedirigiaàoutrasala.

Era estranho estar ali. Não apenas naquela cadeira, com o jogo depaciência ainda aberto no computador e as fotos dos ilhos dela meencarando de seus porta-retratos, mas na enfermaria. Essa era a minhasegunda visita, e a última tinha apenas algunsdias. Eu já havia esperadona porta por Olívia algumas vezes, mas jamais entrara como paciente,piscandosobasluzesflorescenteseimaginandoseestariadoente.

Na ausência da sra. Sanders, achei que não precisava me fazer de

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forteeaperteiatestalogoacimadonariz,tentandopressionaronúcleodador. Essa era igual às outras dores de cabeça que eu vinha tendoultimamente, uma dor surda, que se irradiava e fazia arder asmaçãs dorosto.Essaseramasdoresdecabeçaquepareciammaisameaçadoras:eucontinuavaaesperarumresfriado,umatosse,algumacoisa.

A sra. Sanders voltou com um termômetro, e imediatamente tirei amãodorosto.

—Abraaboca,meubem—instruiuela.Emqualquerou-iraocasião,eu teria achado engraçado, já que a sra. Sanders nuncame parecera dotipo"meubem".—Desconfioquevocêpegoualgumavirose.

Aceiteiotermômetroeopusdebaixodalíngua.Acapadeplásticoqueo envolvia parecia a iada e viscosa em minha boca. Eu ia dizer queraramente icava doente, mas não consegui abrir a boca. A sra. Sandersconversou com os dois alunos acordados nas cadeiras, enquanto os trêsminutoslevaramséculosparapassar.Então,voltoueretirouotermômetro.

— Achei que existissem termômetros mais rápidos hoje em dia —observei.

—Napediatria.Supõe-sequevocês,alunosdoensinomédio, tenhampaciência su iciente para usar os mais baratos. — Ela checou otermômetro.—Vocêestácomumpoucode febre,gatinha.Deveserumavirose.Temummonteporaí,comessavariaçãodetemperatura.Querqueeuligueparaalguémvirpegarvocê?

Pensei,porummomento,nafelicidadedefugirdaescolaemeaninharnos braços de Sam pelo resto da tarde.Mas ele estava trabalhando e eutinhaprovadequímica,porissosuspireieadmitiaverdade:eunãoestavame sentindo su icientemente mal para justi icar a dispensa.— Não faltamuitoparaahoradasaída.Etenhoprova.

Asra.Sandersfezumacareta.

—Semfrescuras.Euaprovo.Olhe,eunãodeviafazerissosemavisarseuspais,mas...—Ficandoameu lado,elaabriuumadasgavetasdesuamesa. Havia um punhado de dinheiro trocado, as chaves do carro e umvidrodeanalgésicos.—Istovai livrarvocêda febree,provavelmente,da

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dordecabeçatambém—disseela,colocandodoiscomprimidosnapalmadaminhamão.

—Obrigada—agradeci,devolvendo-lheacadeira.—Nãoseofenda,masesperonãovoltarmaisestasemana.

—Esta sala éumpontode encontro cultural e social!—disse a sra.Sanders,fingindo-sechocada.—Cuide-se.

Engoli os comprimidos e, em seguida, tomei um pouco d'água nobebedouroaoladodaporta,voltandodepoisparaasaladeaula.Malsentiaadordecabeça.No inaldaúltimaaula,oremédiojátinhasurtidoefeito.Asra.Sandersdeviaestarcerta.Essasensaçãoteimosadehaveralgoamaisnãopassavadeumavirose.

Tenteimeconvencerdequeerasóisso.

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CAPÍTULO12•COLE•

Nãoacheiqueeraparaeuvirarhumanoagora.

Flocos de neve cortavamminha pele nua, tão frios que chegavam aqueimar.Aspontasdosmeusdedospareciamtacosdemadeira,totalmenteinsensíveis. Eu não sabia há quanto (empo estava deitado no solocongelado, mas sem dúvida havia sido tempo su iciente para derreter anevenabasedaminhacoluna.

Eutremiatantoquemalconseguia icardepé,semequilíbriosobreaspernas,enquantotentavaentenderporquedeixaradeserlobo.Atéentão,minhas transformações em humano haviam acontecido em dias maisquentesedurado,felizmente,poucotempo.Aquelafoiumanoitegelada—seisousetehoras,ajulgarpelosolcordelaranjavisívelentreosgalhosdeárvoresemfolhas.

Não tive tempo para ponderar a instabilidade da minha situação.Tremia de frio, mas não sentia sequer vestígios de náusea no estômagonem qualquer contração na pele que indicasse uma iminentetransformação em lobo. Sabia, com uma certeza deprimente, que meachava preso neste corpo, aomenos naquelemomento, o que signi icavaque era preciso encontrar abrigo—estava nu empelo e semdisposiçãoparaesperarqueagangrenaseinstalasse.Haviamuitasextremidadesqueeupreferianãoperder.

Abraçandoamimmesmo,examineiolugarondeestava.Atrásdemim,o lago re letia brilhantes raios de luz. Esforcei-me para enxergar algumacoisa na loresta sombria à frente e pude ver a estátua defronte ao lago,assim comoos bancosde concreto atrás dela. Isso queria dizer quedavaparachegarapéàcasaenormequeeuviramaiscedo.

Eutinhaumobjetivoagora.Torciparaquenãohouvesseninguémemcasa.

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Nãovicarroalgumnaentrada,oquemefezcrerqueasorteestavaaomeulado.

—Droga,droga,droga—sussurrei,semfôlego,enquantocaminhava,sobreocascalhoquemeferiaospés,atéaportadosfundos.Oquerestaradenervosem funcionamentonosmeuspésbastavaparaqueeu sentisseaspedrasrasgandoacarnefria.Osferimentossaravammaisrápidoagorado que antes, quando eu era apenas Cole, mas isso não tornava menosdolorosaaprimeiraincisãodapedranapele.

Experimentei a porta dos fundos — destrancada. Sem dúvida, ohomem lá de cima estava me tratando bem. Registrei mentalmente quedeveria lhemandarumcartão.Abrindoaporta, entreinumpequenohallentulhado,cheirandoamolhodechurrasco.Fiqueiuminstanteparadoali,tremendo,paralisadomomentaneamentepelalembrançadeumchurrasco.Meuestômago—bemmaisesbeltoemusculosodoquedaúltimavezemqueeuhaviasidohumano—roncava,eporumminúsculoinstantepenseiemacharacozinhaeroubarcomida.

Aideiadequerertantoalgumacoisafezmeuslábiosdesenharemumsorriso.Depois,meuspobrespés geladosme recordaramomotivode euestarali.Emprimeirolugar,roupas;depois,comida.Saídohalleentreiemumcorredormal-iluminado.

Acasaeratãogigantescapordentroquantopareciadefora,edavaaimpressão de ter saído de uma revista de decoração. Nas paredes, tudoparecia perfeito, em impecável harmonia ou charmosa assimetria. Umtapete imaculadamente limpo de uma cor provavelmente chamada"violeta"seestendiapelocorredordetábuacorrida,quepercorri.Olhandoparatrásparameassegurardequeocaminhocontinuavalivre,porpoucoeviteiderrubarumvasoquepareciasercaroequecontinhaumpunhadode galhos mortos artisticamente arrumados. Perguntei-me se osmoradoresseriamgentedeverdade.

De forma mais urgente, me perguntei se alguém do meu tamanhomorariaali.

Hesiteinolugarondeocorredorsebifurcava.Aminhaesquerda,maiscorredor na penumbra. A direita uma escada enorme, escura, quelembravaumacenadeassassinatonum ilmedeterrorgótico.Con litei-me

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porumbrevesegundocomalógicaedecidisubir.SeeufosseumcararicoemMinnesota,meuquartoficarianoandardecima.Porqueocalorsobe.

Aescadamelevouaumcorredorque,deumdoslados,seabriaparaas escadas abaixo. Meus dedos dos pés ardiam, à medida querecuperavamasensibilidade,deencontroaope-ludocarpeteverde.Adoreraumacoisaboa.Significavaqueosanguecontinuavaacircular.

—Nãosemexa.

Uma voz femininame imobilizou.Não soava amedrontada, apesar dehaver um homem nu no meio da casa, o que me fez imaginar que,provavelmente, havia um ri le apontado para as minhas costas. Me deiconta do ritmo normal das batidas do meu coração. Nossa, que falta mefaziaessaadrenalina!

Virei-me.

Era uma garota. Sua beleza era de cortar o coração, com enormesolhos azuis parcialmente escondidos atrás de uma franja irregular decabelo louro.Ummeneioemseusombrossugeriaqueelasabiadireitinhoo efeito que causava. Quandome olhou de alto a baixo, senti que estavasendoavaliadoereprovado.

Tenteisorrir.

—Oi.Desculpe,estounu.

—Prazer.MeunomeéIsabel.Oqueestáfazendonaminhacasa?

Nãohavia,comefeito,umarespostacorretaparaessapergunta.

Abaixodenós,ouvimosobarulhodeumaportasefechando,eIsabeleeudemosumpuloparaolhardeondevinha.Duranteumbrevemomento,meu coração martelou meu peito, e me surpreendi com a sensação depavor, com o fato de sentir alguma coisa depois de um longo período devazio.

Nãoconseguimemexer.

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— Meu Deus! — exclamou uma mulher ao pé da escada, olhandodiretamente para mim sob o corrimão da bancada. Seus olhos sedesviaramparaIsabel.—MeuDeus!Quediabos...

Eu ia ser morto por duas gerações de mulheres lindas. E ainda porcimapelado.

— Mãe — interrompeu Isabel. — Você se importa de não icarencarando?Quetara!

Tantoamãequantoeuficamosdesarmados.

Isabelseaproximoudemimesedebruçounabalaustradapara falarcomamãe.

—Dáparaseterumpoucodeprivacidade?—gritouláparabaixo.

Issodevolveuvidaàmãe,quegritoudevolta,comumavozaindamaisalta:

—IsabelRosemaryCulpeper,vocêpoderiamedizeroqueumrapaznuestáfazendonestacasa?

—O que é que vocêacha?— respondeu Isabel.—O que você achaqueestoufazendocomumrapaznunestacasa?Odr.Narigudonãoavisouqueeutalvezaprontassesevocêscontinuassemameignorar?Bom,éisso,mãe!Estouaprontando!Tudobem,continueencarando!Esperoquegoste!Nãoseiporquevocênosobrigaa fazer terapia senãoquernemouviroqueopsiquiatratemadizer.Vamos,mecastiguepelosseuserros!

—Filhinha—disseamãe,numavozmaissuave—,équeisso...

—Aomenosnão estou rodandobolsinhana esquina, vendendomeucorpo!—gritouIsabel.Virou-separamim,eaexpressãoemseurostonamesmahora se suavizou.Numavozmilhõesdevezesmais leve,disse:—Gato,nãoqueroquevocêmevejaassim.Porquenãovoltaparaoquarto?

Eueraumator,afinal.

Lá embaixo, amãe esfregava amão na testa, tentando não olhar na

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minhadireção.

— Por favor, pelo menos peça a ele para vestir alguma coisa .antesqueseupaichegue.Nessemeiotempo,voutomarumdrinque.Nãoqueroveresserapazdenovo.

Quando amãe virou as costas, Isabel agarroumeu braço— não seipor que foi um choque sentir suasmãos naminha pele eme guiou pelocorredor até uma das portas. O cômodo era umbanheiro, todo azulejadoem preto e branco, com uma banheira gigante que tinha pés de animalocupandoamaiorpartedoespaço.

Isabelmeempurrouparadentrocomtamanhaforçaquequasecaínabanheira,fechandodepoisaporta.

—Porquediabosvocêvirouhumanotãocedo?—exigiusaber.

—Vocêsabeoqueeusou?—indaguei.Perguntaidiota.

— Por favor! — disse ela, destilando um desprezo na voz queameaçoume excitar. Ninguém, ninguém, falava comigo nesse tom.— OuvocêéumdosnovatosdeSam,ouumtaradonuqualquercomcheirodecachorro.

—Sam?Beck—respondi.

—Beck, não. Agora é Sam— corrigiu Isabel.—Não importa. O queimporta é que você está nu naminha casa, e, na verdade, devia ser umlobonestemomento.Porqueraiosvocênãoé?Comosechama?

Porumúnicoeenlouquecidoinstante,quaselhedisse.

•ISABEL•

Poruminstante,orostodeleviajouparaalgumoutrolugar,umlugarindistinto,eaquelaeraaprimeiraexpressãogenuínaqueviemseurostodesdequeo lagrarabasicamenteposandojuntoàbancada.Então,otraço

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dezombariavoltouaseuslábioseeledisse:

—Cole.

Comosefosseumpresente.

Devolvinomesmotom.

—Eporquevocênãoestánapeledeumloboagora,Cole?

—Porquesenãoeunãoteriateconhecido—sugeriuele.

— Bela tentativa — comentei, mas senti um sorriso duro contorcermeu rosto. Por força do hábito, eu sabia o su iciente sobre paquera parareconhecer uma quando a via. E ele também era um safado pretensioso.Emvezde icarmaisconstrangidoàmedidaqueconversávamos,pegouahastedochuveirocomambasasmãos,alongando-sedeumjeitobastanteatraente,aomesmotempoemquemeestudava.

—Porquementiuparasuamãe?—perguntou.—Teriafeito issoseeufosseumcorretordeimóveisbarrigudotransformadoemlobisomem?

—Duvido.Generosidadenãoéomeuforte.—Omeuforteeraojeitocomo ele esticava os braços acima da cabeça, realçando osmúsculos dosombros e retesando o peito. Tentei manter os olhos no seu sorrisoarrogante.

—Ditoisso,vamostratardearrumarumasroupasparavocê.

Osorrisoseampliou:

—Porquetantapressa?

Abriumsorrisomalcriadoparaele.

—Ehoradetaparaspartesíntimasdaaberração.

Elefezumpequenomuxoxocomoslábios:

—Doeu.

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Deideombros.

—Fiqueaquiecomporte-se.Voltojá.

Fechando a porta do banheiro, atravessei o corredor a caminho dovelhoquartodomeu irmão.Hesiteido ladode foraapenasum instanteedepoisabriaporta.

Ele já havia morrido há tempo su iciente para que entrar no seuquartonãomaisparecesseinvasão.Alémdisso,naverdade,aquelequartonãodavamais a impressão de lhe pertencer.Minhamãe tinha embaladoem caixas um bocado de suas coisas, conselho de seu ex-terapeuta, edepois largado as caixas no quarto, conselho do atual. Toda a bagulhadaesportiva estava empacotada, assimcomoa enormeaparelhagemde sommontadaemcasa.Umavezremovidasessasduascoisas,nãosobraranadacomcaradeJack.

Adentrandoocômodoescuro,baticomacanelanaquinadeumadascaixas terapêuticas a caminho do abajur. Soltei um palavrão baixinho,acendialuze,pelaprimeiravez,penseinoqueestavafazendo:remexendonas coisas do meu irmão na tentativa de encontrar roupas para umlobisomem lindodemorrer,emborameiobabaca,queaguardavanomeubanheiro,depoisdedizeràminhamãequeestavadormindocomele.

Talvezelativesserazãoeeuprecisassedeterapia.

Contorneiascaixaseabriocloset.UmalufadaquecheiravaaJackmeatingiu — bastante desagradável, aliás. Camisas de nylon parcialmentelavadas,xampumasculinoesapatosvelhos.Mas,duranteumsegundo,umsegundoapenas, issomeimobilizou,eentão ixeioolharnassombrasdasroupaspenduradas.Depoisouviminhamãe,noandardebaixo,deixarcairalgumacoisaeme lembreidequeprecisava tirarColedecasaantesquemeu pai chegasse. Mamãe não contaria a ele. Nisso ela era ótima. Tantoquantoeu,nãogostavadeveramerdabaternoventilador.

Encontreiummoletomcaindoaospedaços,umacamiseta eum jeansdecente.Satisfeita,deimeia-volta...etrombeicomCole.

Engoli outro palavrão, com o coração aos pulos. Tive que inclinar acabeça um tantinho para trás a im de poder ver seu rosto tão próximo,

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poiseleeraumbocadoalto.Aluzmortiçadoabajurrealçavaseurostoemrelevo,comoumquadrodeRembrandt.

— Você estava demorando — disse Cole, recuando um passo poreducação.—Resolviversevocêtinhavindobuscarumaarma.

Atireiaroupanele.

—Vocêvaiterquedispensaracueca.

—Háoutraalternativa?

Jogandoacamisa,omoletomeacamisetanacama,eleseviroudeladoparaen iaro jeans,que icoumeio folgado.Davaparaverocontornodosossosdosquadrisfazendosombraaodesapareceremnacintura.

Desvieirapidamenteoolharquandoele icoudefrenteparamim,massabia que Cole me vira observando-o. Quis arrancar à unha aquelaexpressãopresunçosadeseurosto.Elepegouacamisetae,quandoelasedesdobrou em suas mãos, vi que se tratava da camiseta dos Vikingsfavorita de Jack, com a barra do lado direitomanchada pela tinta brancacom que ele pintara a garagem no ano anterior. Jack costumava usá-laváriosdiasseguidos,atéqueeleprópriotinhaqueadmitirquefedia.Euaodiava.

Coleesticouobraçoacimadacabeçaparavesti-la,e,derepente,tudoemquepudepensarfoiquenãodavaparaaguentarveralguémquenãoomeuirmãousandoaquelacamiseta.Sempensar,agarreiumpedaçodelaeColecongelou,baixandot>solhosparamimcomumaexpressãovazia.Ou,quemsabe,meioconfusa.

Puxei, indicando o que eu queria, e ainda com uma expressãovagamentecuriosa,elesoltou,medeixandotiraracamisetadesuasmãos.Tendorecuperadoapeça,eunãoquisexplicaroporquêdeterfeitoaquiloeporissobeijeiCole.Eramaisfácilbeijá-lo,pressionandoseucorpocontraaparede, saboreandocomos lábioso formatode seu risozombeteiro,doque identi icar por que a camiseta de Jack nasmãos de outrome deixoutãosensíveleexpostapordentro.

E ele beijavabem. Senti suabarrigamusculosa e suas costelas vindo

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deencontroamim,aindaquesuasmãosnãoseerguessemparametocar.Assimpertinho,elecheiravaaSamnanoiteemqueoconheci,aqueleodoralmiscaradodeloboepinheiros.NoteiumacertasofreguidãonojeitocomoColecolousuabocanaminha,oqueme fezpensarqueeleeramais realali,mebeijando,doquequandofalava.

Quando me afastei, Cole icou onde estava, encostado à parede, osdedos en iados nos bolsos do jeans, cujo zíper ele ainda não puxara, e acabeça inclinada para um lado, me estudando. Meu coração batiadisparadonopeitoeminhasmãostremiamcomoesforçoparanãotornara beijá-lo, mas ele não parecia desconcertado. Pude ver como seu pulsobatialentaeregularmenteatravésdapeledoabdome.

O fato de ele não se mostrar tão tenso quanto eu me enfureceu deimediato,eentãoeurecueiumpassoeatireiacamisetade Jackparaele.Coleesticouobraçoparapegá-laumsegundodepoisqueela ricocheteouemseupeito.

—Ruimassim?—indagouele.

—Foi— respondi, cruzando os braços para aquietá-los.—Como sevocêestivessetentandomorderumamaçã.

Suassobrancelhasseergueramcomoseelesoubessequeeumentia.

—Revanche?

—Achoquenão—respondi.Apertei comumdedoumadasminhassobrancelhas.—Estánahoradevocêirembora.

Tivemedode quemeperguntasse para onde,mas ele simplesmenteenfiouacamisetaepuxouozíperdacalçacomumardedecisão.

—Achoquevocêtemrazão.

Emboraeuvissequeassolasdeseuspésestavamseriamenteferidas,ele não me pediu um sapato e eu não ofereci. O peso de não lhe darexplicações sufocava as palavras emminha boca, por isso o acompanheiatéoandardebaixoenosdirigimosatéaportaporondeeleentrara.

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Vi que ele hesitou por um instante quando passamos pela porta dacozinha eme lembrei das suas costelas contra asminhas. Uma pequenaparte demim sabia quedevia lhe oferecer algo para comer,mas a partemaior só queria que ele partisse omais rápido possível. Por que era tãomaisfácildeixarumpratodoladodeforaparaoslobos?

Provavelmenteporquelobosnãoostentavamsorrisoszombeteiros.

Nohall,pareijuntoàportaecruzeinovamenteosbraços.

—Meupaiatiraemlobos—disseaCole.—Sóparasuainformação.Porissotalvezsejarecomendávelvocêficarlongedaflorestaatrásdacasa.

— Voume lembrar disso quando estiver no corpo de um animal dementemenosnobre—disseCole.—Obrigadopeladica.

— Vivo para agradar — respondi, escancarando a porta. A neve,entrandodelado,salpicoumeubraço.

Euesperavaaexpressãodeumvira-lata,oualgumaoutradestinadaadespertar solidariedade. Cole, porém, simplesmente olhouparamim, comum sorriso estranho e irme nos lábios, antes de sair direto na neve,puxandoaportadaminhamãoparafechá-laaopassar.

Depois de fechada a porta, iquei ali de pé um bom tempo,sussurrando impropérios e sem saber por que eume permitia estar tãoabalada.Então,fuiatéacozinha,pegueiaprimeiracoisaquevi—umpãodeformaembalado—evolteiàportadosfundos.

Programei mentalmente o que diria— algo do tipoNão espere maisnada—,mas,quandoabriaporta,Colejásumira.

Acendialuzdosfundos.Umaclaridadeamarelaemortiçaespalhou-sepelo pátio gelado, projetando re lexos estranhos na ina camada de nevedura.Acercadetrêsmetrosdaporta,viacalçajeanseomoletomsurradojogadosnochãoformandoumapilhaacidental.

Comasorelhaseonarizardendodefrio,meaproximeilentamentedaroupa, parando para estudar o formato. Uma das mangas do moletomestiradapareciaapontarparaospinheirosdistantes.Erguiosolhose,dito

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e feito, lá estava ele. Um lobomarromacinzentadoparado algunsmetrosatrásdemim,meencarandocomosolhosverdesdeCole.

—Meuirmãomorreu—eulhedisse.

Olobonãofezqualquermovimento.Anevecaíasobreseupeloenelesegrudava.

—Nãosouumapessoalegal—falei.

Ainda imóvel.MinhamenteseesforçounatentativadecompatibilizarosolhosdeColeeacaradaquelelobo.

Abriosacodopãoeovireiparabaixo,demodoqueasfatiascaíssemameuspés.Elenãorecuou—sómeencarousempiscar,olhoshumanosnacaradeumanimal.

— Mas eu não devia ter dito que seu beijo era uma droga —acrescentei, tremendo um pouco de frio. Depois, não soube mais o quedizersobreobeijoe,porisso,mecalei.

Virei-me para a porta de novo. Antes de entrar, dobrei a roupa eemborquei o vaso vazio ao lado da entrada para protegê-lo da neve. Emseguida,abandoneiolobonanoiteláfora.

Euaindapodiame lembrardosolhoshumanosnaquelacarade lobo;elespareciamtãovaziosquantoeumesentia.

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CAPÍTULO13•SAM•

Euestavacomsaudadedaminhamãe.

Nãopodiaexplicar issoaGrace,porque sabiaque tudooqueelaviaquandopensavaemminhamãeeramascicatrizesbrutaisdeixadaspelosmeuspaisnosmeuspulsos.Eeraverdade:aslembrançasqueeutinhadosdois tentando matar o monstrinho em que eu me transformara haviamicado de tal forma registradas em minha mente que, às vezes, dava aimpressão de que partiriam meu crânio. As velhas feridas eram tãoprofundas que eu sentia a lâmina sempre que me aproximava de umabanheira.

Maseutambémguardaraoutraslembrançasdaminhamãe,eelasseinsinuavam, de forma totalmente inesperada, entre as lacunas. Comoagora,queeuestavacurvadosobreobalcãodalivrariaCrookedShelf,comos livros a milímetros das minhas mãos vazias, olhando pela janela emdireçãoànoitemarromqueespreitava lá fora.Asúltimaspalavrasque lijaziamnaminha língua—Mandesltam,queescreveuameurespeitosemtersequercomomeconhecer:

Desangue,porém,lobonãosou.

Lá fora, a última réstia de sol fazia reluzir a quina dos carrosestacionadoscomumofuscantebrilhoâmbar,enchendo l.imbémaspoçasdaruadeourolíquido.Pordentro,a loja jiiseencontravaforadoalcancedodiamoribundo,sombria,vaziaesemiadormecida.

Faltavamvinteminutosparaahoradefechar.

Erameuaniversário.

Lembrei da minha mãe fazendo bolinhos individuais nos meusaniversários.Nuncaumbolo, já que éramos só nós três c eu comia comoumpassarinho,escolhendocomcuidadomeusdesa iosculinários.Umboloacabariaseestragandoantesdesercomido.

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Por isso,mamãe fazia bolinhos. Eume lembro do aromade baunilhadoglacê,rapidamentelambuzadosobreobolocomumaespátula.Porsisó,nada haveria de especial, mas esse bolinho especí ico tinha uma velaen iada no glacê. Umaminúscula chama brotava do pavio, uma conta deceraderretidatremelicandologoabaixo,transformandoaquelebolinhoemalgocintilante,bonitoeespecial.

Euaindaeracapazdeperceberocheirodeigrejanofósforoapagadocom um sopro, de ver o re lexo da chama nos olhos da minha mãe, desentir amaciezdaalmofadada cadeirada cozinha sobasminhaspernasmagrelas.Ouviminhamãepedindoqueeucolocasseasmãosnocoloeavipôrobolinhodiantedemim—elanãomedeixava seguraroprato, commedodequeeudeixassecairavelaemcimademim.

Meus pais sempre forammuito cuidadosos comigo, até o dia emquedecidiramqueeuprecisavamorrer.

Na loja, pus a cabeça entre as mãos e baixei os olhos para meconcentrarnocantinhodobradodacapadolivroqueestavaentreosmeuscotovelos.Davaparaverqueacapanãoera,naverdade,umúnicopedaçodepapel,que,comefeito,nãopassavadeumpedaçodematériaimpressacom uma camada protetora por cima, e que a camada superior haviadescascado, permitindo que um canto da capa verdadeira icassemanchado,amareladoegasto.

Pergunteiamimmesmoseestariadefatomelembrandodosbolinhosde mamãe ou se isso não seria algo que o meu cérebro roubara dosmilhares de livros que li. A lembrança de outra pessoa, discretamentecoladasobreaminhaparapreencherovazio.

Semlevantaracabeça,erguiosolhos,pondoascicatrizesgêmeasdosmeus pulsos diretamente no meu campo de visão. À luz baça doentardecer,minhas veias eramvisíveis por baixo da pele translúcida dosmeus braços, mas o ziguezaguear azul-claro desaparecia sob o tecidoirregularmentecicatrizado.Naminhacabeça,estendiaamãoparapegarobolinhonoprato combraçosmacios, semmarcas e ainda intactos, graçasaoamordosmeuspais.Minhamãesorriaparamim.

Parabénspravocê.

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Fecheiosolhos.

Nãoseiháquantotempoestavamfechadosquandoosininhodaportame deu um susto. Eu estava pronto para dizer ao recém-chegado que játínhamos fechadoquandoGrace sevirou, fechandoaporta comoombro.SeguravaumabandejadepapelãocombebidasnumadasmãoseumsacodoSubwaynaoutra.Eracomoseumaoutraluztivesseseacendidonaloja.Tudopareciamaisiluminado.

MinhasurpresafoidemasiadograndeparaqueeumelevantasseparaajudarGrace,e,quando isso inalmentemeocorreu,ela jádepositarasuapilhagem no balcão. Contornando-o em seguida, ela me envolveu com osbraçosesussurrounomeuouvido:"Meusparabéns."

Solteimeusbraçosdaqueleabraçoparaenlaçar-lheacintura.Apertei-acontramimecoleiorostoemseupescoço,escondendoasurpresa.

—Comofoiquevocêdescobriu?

—Beckme contou antes de se transformar— respondeu Grace.—Você devia ter falado. — Ela se afastou para me olhar. — No que vocêestavapensandoquandoentrei?

—EmserSam—respondi.

—Quecoisaboaparaser—disseGrace.Entãoelasorriu,umsorrisoque cresciamais emais até, inalmente, minha expressão re letir a dela,com nossos narizes se tocando. Grace a inal se afastou, apontando parasuas oferendasnobalcão, arrumadas à volta daminhapilha de livros deum jeito que sugeria grande intimidade.— Sintomuito por não sermaisincrementado.

Équenãoexiste lugaralgumemMercyFallsparaqueméromântico,e, mesmo se existisse, estou meio dura no momento. Será que podemoscomeragora?

Levantei, passei por ela e fui até a porta da frente, trancando-a evirandoaplacaondeseliaaberto.

—Estánahoradefechar.Querlevartudoissoparacasaoucomerlá

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emcima?

Gracedesviouoolharparaasescadasacarpetadas cordevinhoquelevavamaosótão,eviquejásedecidira.

—Vocêlevaasbebidascomseusbraçosmusculosos—disseelacomumaboadosedeironia.—Eulevoossanduíches,jáquesãoinquebráveis.

Apagando as luzes do térreo, eu a segui escada acima, segurando abandeja de papelão com as bebidas. Nosso pés arranharam o carpetegrosso enquanto subíamos para o sótão penumbroso de teto inclinado. Acadapasso,pareciaqueeu transcendia cadavezmais aquele aniversáriorecordado,rumoaalgoinfinitamentemaisreal.

—Oquevocêtrouxeparamim?—perguntei.

—Umsanduíchedeaniversário—respondeuGrace.—Dã!

Acendi o abajur antigo que icava na prateleira inferior da estante.Suas oito lâmpadas pequeninas projetaram um padrão errático de luzrosada sobre nós dois, quando sentei junto a Grace na surradanamoradeira.

Meu sanduíche de aniversário era de rosbife com maionese, assimcomo o de Grace. Abrimos os invólucros entre nós de modo que asextremidades icassem superpostas, e Grace cantarolou "Parabéns pravocê"numavozhorrivelmentedesafinada.

—Muitosanosdevida—arrematounumtomcompletamentenovo.

— Ora, obrigado — agradeci. Toquei seu queixo, e ela sorriu paramim.

Quando acabamos de comer os sanduíches — quer dizer, eu tinhaquase acabado omeu, e Grace comera só o pão— , ela apontou para osinvólucrosedisse:

—Jogueissofora.Euvoupegaroseupresente.

Observei-a com as sobrancelhas erguidas enquanto ela pegava a

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mochilanochãoeapunhanocolo.

— Você não devia ter comprado um presente para mim. Fico semgraçadeganhar.

—Euquis—disseGrace.—Nãoestraguetudodandoumadetímido.Tratedeselivrardolixo!

Inclineiacabeçaecomeceiadobraropapeldossanduíches.

— Você e suas garças! — exclamou ela, rindo, quando viu que eudobrava o menos amassado dos invólucros para formar um pássarograndeeflexívelcomologotipodaSubway.—Quemaniaéessa?

— Eu costumava fazer os pássaros em ocasiões alegres. Para melembrardessesmomentos.—AceneicomagarçadaSubway.Elabateuasasas frouxas e enrugadas. — Você sabe que nunca vai se esquecer deondeestesaiu.

Graceoestudou:

—Achoqueéumaafirmaçãosupercorreta.

—Missãocumprida—falei,pondoopássarodepapelnochãoaoladoda namoradeira. Eu sabia que estava adiando o momento de receber opresente.Medavaumestranhoapertonoestômagopensarqueela tinhacompradoalgoparamim.Porém,Gracenãoiadesistir.

—Agorafecheosolhos—comandou.

Sua voz tinha um ligeiro subtom — expectativa. Esperança. Emsilêncio, izumaoração:Queeugostedoquequerqueelamedê.Naminhacabeça, tentei imaginar a cara que combinava com uma satisfação total,paratê-laprontaparausarindependentedoqueganhasse.

Ouvi Grace fechando novamente a mochila e senti as almofadas semexeremquandoelaseacomodounosofá.

— Você se lembra da primeira vez que subimos aqui? — indagouenquanto eu permanecia parcialmente sozinho na escuridão dos meus

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olhosfechados.

Nãoeraumaperguntaqueexigisseresposta,porissoapenassorri.

— Você se lembra de quememandou fechar os olhos e leu aquelepoemadoRilkeparamim?—AvozdeGrace estavamais próxima. Sentiseu joelho encostar nomeu.— Como eu te amei naquelemomento, SamRoth.

Minhapelesearrepioueengoliemseco.Eusabiaqueelameamava,mas quase nunca sua boca dizia isso. Só essa declaração já me bastavacomopresentedeaniversário.Minhasmãoscontinuavamabertasnocolo.Senti quando ela pôs alguma coisa ali e fechou uma das mãos sobre aoutra.Papel.

—Achei que jamais poderia ser tão romântica quanto você— disseela.

—Vocêsabequenãosouboanisso,mas...—Eladeuentãoumrisinhoengraçado,dirigidoa simesma, tãoencantadorquequasemeesquecidavidaeabriosolhosparaverseurosto.—Bom,nãoaguentomaisesperar.Abraosolhos.

Eu abri.Havia, emminhasmãos, umpedaçodobradodepapel.Davaparaverasombradoqueestavaescritonapartededentro,masnãoparasaberdoquesetratava.

Gracemalpodia icarparada.Eradi ícilsuportarsuaexpectativa,poiseunãosabiaseseriacapazdecorresponder.

—Abra.

Tentei me lembrar da cara de felicidade. Sobrancelhas levementeerguidas,sorrisolargo,olhossemicerrados.

Desdobreiopapel.

Então,meesquecitotalmentedacaraquedeveriafazer.Simplesmenteiqueialiencarandoaspalavras,semacreditardeverdadenoquelia.Nãoeraomaiorpresentedomundo,embora,paraGrace,nãodevessetersido

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fácilcomprar.Oincríveléquetinhaaminhacara.Eraumaresoluçãoqueeunãohavia tido coragemdeanotar, algumacoisaquedemonstravaqueela me conhecia. Alguma coisa que tornava os eu te amo totalmentegenuínos.

Umanotafiscalpelopagamentodecincohorasdeestúdio.

ErguiosolhosparaGraceeviqueasuaexpectativasedissolveraemalgo muito diferente. Presunção. Absoluta e total presunção, o quesigni icavaque,qualquerquefosseela,aexpressãoquemeurostoadotaraporcontaprópriahaviameentregado.

—Grace—falei,comumavozmaisbaixadoqueplanejara.

O sorrisinho presunçoso dela ameaçou se abrir num sorri- são, eGraceperguntou,desnecessariamente:

—Gostou?

—Eu...

Elamepoupoudeconstruirorestantedafrase.

—Fica emDuluth.Marquei hora para umdos dias emque nós doistiramosfolga.Acheiquevocêpodiatocaralgumasdassuasmúsicase...Seilá,fazercomissooquevocêacharmelhor.

—Umafitademo—emendeibaixinho.

O presente eramais do que ela imaginava—ou talvez ela soubessedireitinho o quanto isso signi icava. Era mais do que um estímulo aproduzir minhas músicas. Era o reconhecimento de que eu podiaprogredir. De que haveria uma próxima semana, um próximomês e umpróximo ano para mim. Tempo de estúdio queria dizer que, se euentregasseaalguémaminha itaeelesmedissessem"Ligamosparavocênomêsquevem",euaindaseriahumanoquandoligassem.

— Nossa, Grace, como eu te amo! — falei. Ainda segurando a notaiscal,abracei-a, forte,comosbraçosaoredordeseupescoço.Coleimeuslábiosna lateraldesuacabeçaevolteiaapertá-laemmeusbraços.Puso

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papelaoladodagarçadaSubway.

—Vocêvaifazeroutropássarocomisso?—indagouGrace,fechandoemseguidaosolhosparareceberoutrobeijomeu.

Porém,eunãoabeijei.Simplesmenteafasteiseucabelodorostoparapodercontemplá-ladeolhosfechados.Elamefazia lembraraquelesanjosque icam sobre as sepulturas, de olhos fechados, rostos erguidos para océuemãospostas.

—Vocêestáquentedenovo—observei.—Estásesentindobem?

Grace não abriu os olhos, apenas permitindo que eu continuassecontornando o seu rosto com os dedos, como se eu ainda estivesseafastando o cabelo da sua pele. Meus dedos pareciam frios de encontroàquelapelequente.Eladisse:

—Hum,hum...

Por isso, continuei a provocar sua pele commeus dedos. Pensei emdizeroqueestavapensando, tipoVocêé lindaeVocêéomeuanjo ,masoestranhocomGraceéquepalavrasdessetiposigni icavammaisparamimdoque para ela. ParaGrace, não passavamde frases feitas, coisas que afaziamsorrirporumsegundo,masque...quesimplesmentepassavam,queerampiegasdemaisparaseremreais.Paraela,oque importavaera isso:minhasmãosemseurosto,meus lábiosemsuaboca.Os toquessutisquetraduziammeuamorporela.

Quando me inclinei para beijá-la, senti um vestígio breve daquelecheirodoce, denozes, pertencente ao loboqueela encontrara, tão ligeiroque bem podia ser imaginação minha. Mas mesmo a mera ideia bastouparamedistrairdomomento.

—Vamosparacasa—sugeri.

—Estáéasuacasa—retorquiuGracecomumsorrisobrincalhão.—Vocênãomeengana.

Mas me pus de pé, segurando as duas mãos dela para puxá-la,obrigando-aameseguir.

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—Querochegaremcasaantesdosseuspais.Elesandamvoltandoumbocadocedo.

—Vamosfugirjuntos—disseGracenumtomleve,abaixando-separarecolherorestodossanduíchesedasbebidas.Segureiosacoabertoparaqueelapusessetudodentroeobservei-apegaragarçadepapelantesdedescermosaescada.

De mãos dadas, atravessamos a loja agora escura até a saída dosfundos,ondeestavaestacionadoseuMazdabranco.Quandoelasesentouaovolante, leveiamãoaonariz, tentandosentirumvestígiodoaromadeantes. Não consegui, mas o lobo em mim não foi capaz de ignorar alembrançadaquelebeijo.

Era como uma voz grave sussurrando, numa língua estrangeira, umsegredoqueeunãoentendia.

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CAPÍTULO14•SAM•

Algumacoisameacordou.

Cercado pela escuridão seca e familiar do quarto de Grace, não tivecertezadoqueera.NãohaviasomalgumdoIndodefora,eorestantedacasa dormia no silêncio semi- consciente da noite. Grace também dormiaserena,afastadademim.Envolvi-acomosbraços,colandomeunarizatrásdopescoçocheirandoasabonete.Oscabelinhoslourosali izeramcócegasnomeunariz.Afasteiorosto,eGracesuspirounosono,curvandoascostasde encontro ao meu corpo. Eu também devia ter dormido — no diaseguinte, um inventário do estoqueme aguardava— , mas algo nomeusubconscientezumbianumavigilânciaincômoda.Porisso iqueialideitadojuntodela,nósdoispróximoscomocolheresnumagaveta,atéqueocalorexcessivodapeledelasetornoudesconfortável.

Afastei-me alguns centímetros, mantendo uma das mãos em seuquadril. Normalmente, quando nada mais surtia efeito, o suave sobe edesce das costelas de Grace sob a palma da minha mãome embalava osono.Masissonãoaconteceu.

Naquelanoite,nãoconseguiparardeme lembrardecomomesentiadiantedeuma transformação iminente.O jeito comoo frio se entranhavanaminha pele,me deixando arrepiado. O revirar do estômago, a náuseadolorosa.Olentoirradiardadornaespinha,àmedidaqueelasealongavasegundo lembranças de um outro formato. Meus pensamentos meescapando, esmagados e remodelados de modo a caber no meu crânioinvernal.

Osonome fugiu,escapouameualcance.Meus instintoscomichavam,sugerindo que eu me mantivesse alerta. A escuridão pressionava meusolhos enquanto o lobo dentro demim cantarolava:alguma coisa não estácerta.

Láfora,osloboscomeçaramauivar.

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•GRACE•

Eu estava quente demais. Os lençóis colaram nos meus tornozelosúmidos.Sentigostodesuornocantodaboca.Conformeoslobosuivavam,minha pele ardia de calor, centenas de agulhas pareciam perfurar meurostoeminhasmãos.Tudodoía:opeso incômododocobertor,amão friade Sam nomeu quadril, os uivos ululantes e agudos dos lobos lá fora, alembrançadosdedosdeSamcomprimidoscontraas têmporas,o formatodapeledomeucorpo.

Eu dormia. Sonhava. Ou estava acordada, saindo de um sonho. Nãosabiadizer.

Vi mentalmente todas as pessoas cuja transformação em lobo eutestemunhara: Sam, pesaroso e agoniado, Beck, forte e controlado, Jack,selvagemesofrido,Olívia,comrapidezefacilidade.Todosmeobservavamda loresta, dezenas de olhosmemonitorando: a forasteira, a que não setransformava.

Minha línguagrudouno céudaboca seca.Quis erguerminha cabeçado travesseiro molhado, mas o esforço pareceu extremado. Esperei,inquieta,pelosono,masmeusolhosdoíamdemaisparasefecharem.

Se eu não tivesse sido curada, me perguntei, como seria minhatransformação? Que tipo de lobo eu seria? Olhando minhas mãos, eu asimaginei cinza-escuro, riscadas de branco e preto. Senti o peso de umacoleiradepelossobreosombros,anáuseamesubindoàgarganta.

Duranteumúnicoebrilhantemomento,nadasentialémdoarfriodoquartonaminhapeleenadaouvialémdarespiraçãodeSamameulado.Em seguida, porém, os lobos recomeçaram a uivar, e meu corpoestremeceucomasensaçãodeser,aomesmotempo,novoefamiliar.

Euiametransformar.

Engasguei-mecomoloboquecresciadentrodemim,quepressionava

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o revestimento do meu estômago, dilacerando a minha pele por dentro,tentandomevirardoavesso.

Euqueriaaquilo,emeusmúsculosqueimavamegemiam.

Adormepartiuaomeio.

Eunãotinhavoz.

Euestavaemchamas.

Puleidacama,descartandoaminhapele.

•SAM•

Acordei de um salto, assustado pelo grito de Grace. Ela eslava comuma febre muita alta, próxima o bastante para me queimar, mas, aomesmotempo,distanteparameimpedirdealcançá-la.

—Grace—sussurrei.—Vocêestáacordada?

Os lençóis descobriram meu corpo quando ela se afastou de mim,tornando a gritar. Na penumbra, só podia ver seu ombro, e me estendiparapegá-lo,envolvendoobraçodelacomamão.Elaestavaensopadadesuor e sua pele tremeu quando a toquei, um estremecimento instável edesconhecido.

Grace,acorde!Estátudobem?

Meu coração batia tão forte que achei que não a ouviria se elarespondesse.

Ela se contorceusobaminhamãoedepois sentou-sedeumsaltonacama,ocorpovolátiletrêmulo.Nãoaconhecia.

—Grace,falecomigo—sussurrei,emborasussurrossoasseminúteisàluzdogritoanterior.

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Grace olhou para as próprias mãos com uma espécie de espanto.Encosteiascostasdamãoemsua testa.Elaestavaabsurdamentequente,mais quente do que jamais pensei que alguémpudesse icar. Encostei aspalmas das mãos em seu pescoço, e ela estremeceu como se fossem degelo.

— Acho que você está doente— falei, com o estômago revirado.—Estácomfebre.

Elaafastouseusdedoseestudouasmãostrêmulas.

—Sonhei...Sonheiquemetransformava.Acheique...

De repente, Grace soltou um grito terrível e se afastou de mim,envolvendooprópriocorpocomosbraços.

Eunãosabiaoquefazer.

—Oquehouve?—perguntei,semesperarumarespostaesemobtê-la.

—VoupegarumTylenolparavocê.Nobanheirotem?

Elaapenaschoramingou.Fiqueiapavorado.

Inclinei-meparaverseurostoe,então,sentiocheiro.

Elacheiravaalobo.

Lobo,lobo,lobo.

Grace.

Comodordelobo.

Não era possível. O cheiro devia sermeu. Rezei para que fossemeu.Encostei o rosto emmeu próprio ombro, cheirei. Levei amão ao nariz, amãoqueacabaradetocaratestadela.

Lobo.

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Meucoraçãoparou.

Entãoaportaseabriu,ealuzdocorredorpenetrounoquarto.

—Grace?—Avozdopaidela.Aluzdoquartoseacendeu,eosolhosdelemeencontraramsentadoaoladodafilha.—Sam?

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CAPÍTULO15•GRACE•

Nemvimeupaientrarnoquarto.Oprimeiromomentoemquemedeicontadequeeleestavaalifoiquandoouvisuavozdistante,comoseviessededentrod'água.

—Oqueestáacontecendoaqui?

A voz de Sam era uma trilha sonoramurmurada para a dor quemequeimava.Abraceimeutravesseiroeencareiaparede.Pudeverasombradifusa que Sam projetava e a domeu pai,mais nítida,mais próxima dasluzes do corredor. Observei-as se moverem para frente e para trás,formandoumasombragrandee,depois,novamenteduas.

—Grace.GraceBrisbane.—Ovolumedavozdomeupaisubiuoutravez.—Nãofinjaquenãoestouaqui.

—Sr.Brisbane...—começouSam.

—Não ouse, não ouse, começar com esse "sr. Brisbane"— retrucoumeu pai.— Não acredito que você tenha coragem de me olhar na cara,enquantopelasnossascostas...

Eunãoqueriamemexerporquecadamovimento faziao fogodentrode mim arder mais rápido, mas não podia deixá-lo falar assim. Meaproximeidosdois,meencolhendoporcausadosespinhosdedorqueseenterravamemmeuestômago.

—Pai.Não.NãofaleassimcomSam.Vocênãosabe.

—Nãopensequenãoestou furiosocomvocê também!—dissemeupai.—Vocêtraiutotalmenteanossaconfiança!

—Por favor—disseSam,eentãoviqueeleestavadepéao ladodacama,usandocalçademoletomecamiseta, fazendocomosdedosmarcasbrancasnosprópriosbraços.—Seiqueo senhorestá zangado comigo, e

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pode continuar assim, não o culpo, mas tem alguma coisa errada comGrace.

—Oqueestáhavendoaqui?—Agoraeraavozdemamãe.Depois,emumtomestranho,decepcionado,queeusabiasercapazdematarSam,elaacrescentou:—Sam?Eunãoacredito.

—Porfavor,sra.Brisbane—disseSam,emboraminhamãejátivesselhe dito antes para chamá-la de Amy, o que normalmente ele fazia. —Graceestárealmentequente.Ela...

— Afaste-se dessa cama. Cadê seu carro?— A voz de papai recuounovamenteparaumlugardistante,econtempleia formadoventiladordetetoacimademim,imaginando-oligadoesecandoosuordomeurosto.

O rosto demamãe surgiu diante demim, e senti suamão naminhatesta.

—Amor,vocêdeveestarcomfebre.Ouvimosvocêgritar.

— Minha barriga — murmurei, tomando cuidado para não abrirdemaisaboca,afimdeevitarqueoqueestavadentrodemimsaísse.

—Voupegarotermômetro.

Ela sumiu. Ouvi as vozes do meu pai e de Sam continuarem. Nãoconseguia imaginar o que os dois tanto tinham para conversar. Mamãevoltou.

—Tenteficarsentada,Grace.

Soltei um grito ao me sentar, com as garras rasgando o interior daminhapele.Minhamãemeentregouumcopod'águaenquantoveri icavaotermômetro.

Sam,depé juntoàporta,deuumsaltoesevirouparamimquandoocopoescorregoudaminhamãoflácidaecaiunochão,emitindoumbarulhosurdoeremoto.Mamãeolhouparaocopoedepoisparamim.

Com os dedos ainda formando um círculo para segurar o copo

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invisível,sussurrei:

—Mãe,estoumesentindomuitomal.

—Jáchega—dissepapai.—Sam,pegueocasaco.Voulevarvocêatéseu carro. Amy, tire a temperatura dela. Volto já. Estou com o celularligado.

DesvieimeuolharparaSam,esuaexpressãomecortouocoração.Elepediu:

—Porfavor,nãomepeçamparadeixá-laassim.

Minharespiraçãoficoumaisrápida.

—Nãoestoupedindo—dissemeupai.—Estoumandando. Se vocêpretende que um dia eu o deixe verminha ilha de novo, saia daminhacasaagoramesmo,estoumandando.

Sampassouasmãosnocabeloedepoisentrelaçou-asatrásdacabeça,fechandoosolhos.Duranteummomento,foicomosetodosparássemosderespirar, esperando para ver o que ele faria. A tensão em seu corpo eratãoevidentequeumaexplosãopareciaiminente.

Eleabriuosolhos.Quandofalou,quasenãoreconhecisuavoz.

—Não...Jamaisdigaisso.Nãomeameacecomisso.Euvou.Masnão...

Enãoconseguiudizermaisnada.Euoviengoliremseco,eachoquecheguei a chamar seunome,mas ele já estavano corredor, commeupaiatrás.

Um instante depois, achei ter ouvido o motor do carro de papai serligado,maseraodocarrodemamãe.Euestavanele,e tinhaa impressãode que a febre me comia viva. Do lado de fora do veículo, as estrelasnadavam no céu da noite fria enquanto seguíamos, e me senti pequena,sozinhaecomdor.Sam,Sam,Sam,Sam,cadêvocê?

—Amor—dissemamãe,atrásdovolante.—Samnãoestáaqui.

Engoliminhaslágrimaseobserveiasestrelasdesaparecerem.

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CAPÍTULO16•SAM•

AnoiteemqueGrace foiparaohospital semmimfoianoiteemquefinalmentevolteimeuolharparaoslobos.

Foiumanoitecheiadecoincidênciasminúsculasquesejuntaramparaformaralgomaior.SeGracenãoadoecesse,seseuspais icassemforaatétardecomocostumavamfazer,senãonosdescobrissem,seeunãovoltasseà casa de Beck, se Isabel não ouvisse Cole do outro lado da porta dosfundos de sua casa, se não me entregasse Cole, se Cole não fosseigualmentedrogado,idiotaegenial—comoavidateriasedesenrolado?

Rilkediz:"Verweilung,auchamVertrautestennicht,istunsgegcben" —"Nãonospermitemprotelar,nemmesmocomoque6maisintimo".

MinhamãojásentiafaltadopesodamãodeGrace.

Nadafoiigualdepoisdaquelanoite.Nada.

***

DEPOISQUEENTREINOCARROcomopaideGrace,elemelevouatéobeco atulhado atrás da livraria onde eu estacionara meu Volkswagen,manobrandocomcuidadoparanãoroçaroespelholateralnas lixeirasdeum lado e do outro. Parou logo atrás domeu carro, seu rosto iluminadopela luz bruxuleante do poste que pendia do segundo andar da loja.Estávamos sentados lado a lado, e o limpador de para-brisas raspou derepente o vidro, dando um susto em nós dois. Sem querer, ele ligara obotãode funcionamento intermitente ao sinalizarqueentrarianobeco.Olimpador secou o vidro já seco mais uma vez antes que o motorista selembrassededesligá-lo.

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Finalmente,semolharparamim,eledisse:

— Grace sempre foi perfeita. Em 17 anos, nunca teve problemas naescola. Nunca usou drogas nem bebeu. E uma aluna nota 10. Sempre foiabsolutamenteperfeita.

Eunãodissenada.

Eleprosseguiu:

—Atéagora.Nãoprecisamosqueninguémapareçaparacorrompê-la.Nãoconheçovocê,Samuel,masconheçominha ilha.Eseique issotudoéobra sua. Não estou tentando fazer ameaças, mas não vou deixar vocêarruinar minha ilha. Acho que você precisa rever seriamente as suasprioridadesantesdeencontrá-lanovamente.

Durante um breve momento, experimentei algumas palavrasmentalmente,mastudoquemeocorreuerademasiadomordazouhonestoparaqueeumeimaginassedizendo.Porisso,simplesmentedescidocarronaquelanoitegélidacomtudoaindarepresadodentrodemim.

Depoisqueelesefoi,esperandoapenasosu icienteparaseassegurardequemeucarropegasseantesdedarmarchaarénaruavazia,senteinoVolkswagen com as mãos entrelaçadas no colo e encarei a porta dosfundos da livraria. Tive a impressão de que fazia dias que Grace e eutínhamos passado por ela, eu ainda eufórico com a lembrança da notaiscaldoestúdioeelaaindaeufórica comaminha reaçãoe comoprazerdesaberexatamenteoquemedar.Nãoconseguia,agora,imaginaraqueleseu rosto presunçoso. A única imagem que me surgia era a dela secontorcendodedoremcimadoslençóis,comorostocoradoecheirandoalobo.

Ésóumafebre.

Era isso o que eu dizia amimmesmo enquantomedirigia à casa deBeck, tendomeus faróiscomoaúnicaclaridadea iluminaros troncosdasárvores, num e noutro lado da estrada. Várias vezes repeti isso, mesmoquandomeusexto sentido sussurravaquenãoeraassim, eminhasmãoscoçavam com o desejo de virar o volante e voltar direto para a casa dosBrisbanes.

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Ameio caminhoda casadeBeck,pegueio celular edigiteionúmerodeGrace.Mesmoenquantofaziaisso,viqueaquelaeraumamáideia,masnãoconseguidesligar.

Houveumapausa,eentãoouviavozdopai,enãoadela.

—Atendiapenasparadizeravocêquenãoligue—disseele.—Falosério,Samuel,sevocêtemalgumjuízo,esqueçaesseassuntoporhoje.Nãoquerofalarcomvocêestanoite.NãoqueroqueGracefalecomvocê.Só...

— Quero saber como ela está. — Pensei em acrescentar por favor,masnãoconseguimeforçaratanto.

Houveumapausa, comose ele estivesseescutandooutrapessoa.Emseguida,falou:

—Ésóumafebre.Nãoliguedenovo.Estoumeesforçandoaomáximoparanãodizercoisasdequevenhaamearrependerdepois.

Dessavezouvirealmenteavozdealguém—damãedeGrace— ,edepoisotelefoneemudeceu.

Eueraumbarcodepapelàderivanoimensooceanonoturno.

Nãoqueria irà casadeBeck,masnãohaviaoutro lugarpara ir.Nãohaviaoutrapessoaparaprocurar.Euerahumanoe,semGrace,nãotinhanada senão aquele carro, uma livraria e uma casa cheia de inúmerosquartosvazios.

PorissoseguiparaacasadeBeck—euprecisavaparardepensarnacasa como sendo dele — e estacionei o carro na entrada vazia. Vez ououtra,euhaviatrabalhadonalivrariaduranteoverão,quandoBeckaindaerahumanoeeuaindapassavameusinvernoscomolobo.Euparavaaliànoite,quandoaindaestavaclaro,porquenoverãonuncaanoitecia,edesciadocarrodeBeckouvindorisadasesentindoocheirodachurrasqueiranoquintal.Eraestranhodescerdocarronanoitesilenciosaagora,comofriopinicandominha pele e sabendo que todas aquelas vozes do passado seencontravamencurraladasnafloresta.Menosaminha.

Grace.

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Dentroda casa, acendi a luzda cozinha, revelandoas fotospregadasaqui e acolá nos armários, e depois acendi a luz do corredor. Na minhacabeça,ouviBeckdizeraomeninodenoveanosquefuiumdia:

—Porqueprecisamos acender todas as luzes da casa?Você está secomunicandocomalienígenas?

Por isso atravessei a casa naquela noite e liguei todas as luzes,desnudandouma lembrança emcadaumdos cômodos.Obanheiro, ondequasemetransformeiemlobodepoisdeconhecerGrace.Asala,ondePauleeuimprovisávamosaoviolão—seuFender,velhoesurrado,continuavaencostado à lareira. O banheiro do térreo, onde Derek icara com umanamoradada cidadeantesde levarumabroncadeBeck.Acendi as luzesda escada do porão e as da biblioteca lá embaixo e depois subi de novopara acender as do escritório de Beck, que eu tinha esquecido. Na sala,pareiapenasparaligarocarosistemadesomestéreo,queUlrikcomprouquandoeutinhadezanosparapoder"ouvirJehtroTulldojeitoquedeviaserouvido".

Láemcima,gireiobotãodoabajurnoquartodeBeck,ondeelequasenuncadormiaporpreferir guardar livros e papéis na cama e adormecernumacadeiradoporão,comalgumlivroemborcadonopeito.OquartodeShelby voltou à vida sob a luzmortiça do teto,mostrando-se impecável evirgem,sempertencespessoaissenãoovelhocomputador.Fuitentadoporum instante a quebrar omonitor,mas só porque tinha vontade de socaralguma coisa. Se alguémmerecia isso, esse alguémera Shelby,mas acheique aquilo não me traria qualquer satisfação sem ela ali, me vendoinalmenteemação.OquartodeUlrikpareciacongeladonotempo.Umdeseuspaletóscontinuavajogadonacamajuntoaumacalçajeansdobradaea uma caneca vazia na mesa de cabeceira. O de Paul vinha em seguida,ondeeleguardavaumpotedevidronacômodacomdoisdentesdentro—umdeleeooutrodeumfalecidocachorrobranco.

Deixei o meu quarto para o im. As lembranças jorravam emsequencia do teto. Havia livros encostados à parede, empilhados eamontoadosdeencontroàescrivaninha.Oquartocheiravaamofoeafaltadeuso;omeninoquealicresceranãolicarapormuitotempo.

Eu icaria ali agora.Umapessoa para fazer barulho nessa casa, para

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esperareparatorcerpeloretornodorestantedafamília.

Porém,quandoestendiamãoparaalcançaro interruptornaparede,ouvioruídodomotordeumcarroláfora.

Eunãoestavamaissozinho.

***

ESTÁ QUERENDO SERVIR DE AEROPORTO?—me perguntou Isabel.Elanãopareciareal,depénomeiodasala,vestindoumacalçadepijamadesedaeumcasacobrancoacolchoadocomgoladepele.Eununcaavirasemmaquiagem,eelaaparentavaserbemmaisjovem.

— Dá para ver a casa a um quilômetro de distância. Você deve teracendidotodasasluzes.

Nãorespondi.AindaestavatentandodescobrircomoIsabelforapararali às quatro da manhã com o rapaz que eu vira pela última vez setransformando em lobo no chão da cozinha. Ali estava ele, usando ummoletomsurrado;umjeansquesobravaemseucorpo,dandoaimpressãode pertencer a outra pessoa; os pés descalços assustadoramentemanchados;eosdedosdasmãosen iadosnosbolsos,comoseoinchaçoeadescoloraçãoquehaviaalinãooincomodasse.AformacomoolhavaparaIsabel e a forma como ela se esforçava para não olhar para ele sugeria,absurdamente,queosdoistinhamalgumtipodehistória.

—Vocêvaigangrenar—eudisseaele,poiseraalgoquenãoexigiagrande raciocínio.— Precisa aquecer esses dedos ou vai se arrependerprofundamentedepois.Isabel,vocêdeviasaberdisso.

—Nãosouidiota—replicouIsabel.—Mas,semeuspaisopegassemláemcasa,elemorreria,oqueodeixariaaindamaisinfeliz.Decidiqueeramaisfelizapossibilidaderemotadeambosperceberemaausênciadomeucarronomeiodanoite.—Se Isabelmeviuengoliremseco,nãosedeuotrabalhodeinterromperseudiscurso.—Apropósito,esteéSam.OSam.

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Levei umminuto para me dar conta de que agora ela falava com osujeitoarroganteeacometidopelofrio.

OSam.Oqueteriaelalhecontadoameurespeito?Olheiparaele.Maisumavezasensaçãodeconheceraquelerostomecutucou.Nãose tratavadeconhecerdeverdade,comonocasodealguémaquemfuipessoalmenteapresentado; eramais como quando encontramos alguém que se parececomumatordecujonomenãoconseguimosnoslembrar.

— Então você é o chefe agora?— indagou ele, com um sorriso queconsidereimordaz.—MeunomeéCole.

Ochefeagora.Eraassim,nãoera?

—Vocêjáviualgumdosoutroslobossetransformar?—perguntei.

Eledeudeombros.

—Acheiqueestavafriodemaisparaqueeumetransformasse.

Seus dedos grotescamente coloridos me incomodavam tanto que meafastei dele e de Isabel e fui até a cozinha, onde encontrei um vidro deanalgésicos.JogueiovidroparaIsabel,t|uemesurpreendeuaoagarrá-lo.

—Équevocêfoimordidohápoucotempo,querdizer,noanopassado.Atemperaturaaindanãotemmuitoavercomasuatransformação.Vaisersimplesmente...imprevisível.

—Imprevisível—ecoouCole.

Sam,porfavor.Denovo,não,pare.

Pisquei,eavozdaminhamãesecalou,voltandoaopassado,queeraoseulugar.

—Paraqueméisto?Paraele?—perguntouIsabel,segurandoovidrodeanalgésicoeindicandoColecomoqueixo.Maisumavez,tiveasensaçãodeexistiralgoentreosdois.

—É.Vaidoerpracarambaquandoeleaquecerosdedos.Issoaíajudaaaguentar.Obanheiroéali.

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•ISABEL•

Cole pegou o vidro da minha mão, mas vi logo que não usaria oanalgésico.Nãosabiaseeraporqueseachavaummachodurão,seerapormotivos religiosos, ou por outromotivo qualquer.Mas, quando entrou nobanheiro do térreo, ouvi quando acendeu a luz e pousou o vidro decomprimidossemabri-lo.Então,aáguacomeçouacorrernabanheira.Sammedeuastostas,comumaexpressãoestranhaedesaprovadoranorosto,epercebiquenãogostavadeCole.

— Então, Rômulo — falei, e Sam se virou para mim, com os olhosamarelosesbugalhados.—Porqueestáaquisozinho?AcheiqueteriamdeamputarGracedevocê.

Depoisdepassar aúltimahora comCole, cujo rosto revelava apenasas emoções que ele queria que eu percebesse, era estranho ver umsofrimentoindisfarçávelnodeSam.

As sobrancelhas escuras e bastas, sozinhas, já denunciavam suainfelicidade.MeocorreuqueeleeGracepudessemterbrigado.

— Os pais dela me expulsaram — disse Sam, que sorriu duranteapenas um segundo, como fazem as pessoas quando alguma coisarealmente não é engraçada e não querem contá-la, mas não têmalternativa. — Grace... Grace icou doente e eles, bem... Eles nosencontraramjuntosemeexpulsaram.

—Hoje?

Ele assentiu,muito abalado e honesto, e não consegui olharnos seusolhos.

—Foi.Chegueiaquipoucoantesdevocês.

A claridade feroz de cada luminária na casa de repente ganhou umnovosigni icado.Eunão soubeao certo seoadmiravapor sentir tudode

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formatãoduraeintensaouseodesdenhavaportertantaemoção,apontodeprecisarextravasá-laporcadajaneladacasa.Eunãofaziaideiadoqueeraisso.

—Mas,hum...—começouSam,ecomapenasessasduaspalavraseupercebiqueeleserecompunha,comoumcavaloquejuntaaspernassobocorpoantesdesepôrdepé.—Deixapralá.MefaledeCole.Comovocêfoipararaoladodele?

OlheiparaSammeiodanadaatéquemedei contadequeelequeriadizerComovocêfoipararaoladodeleaqui?

—Essaéumalongahistória,menino-lobo—respondi,desabandonosofá.—EunãoestavaconseguindodormireouviColedoladodefora.Nãotive dúvidas de que era ele, nem tive dúvidas de que logo iria setransformar. Não quis que meus pais vissem e tivessem um chilique, sóisso.

AbocadeSamfezummovimentoilegível.

—Muitobacanadasuaparte.

Sorrideleve.

—Issoacontece.

—Será?—indagouSam.—Achoqueamaioriadaspessoasdeixarianaruaumestranhonu.

— Eu não queria pisar numa pilha de dedos amanhã, quando fossepegar o carro — falei. Tive a impressão de que Sam desejava que eudissesse algo mais, como se, de alguma forma, soubesse que essa era asegundavezqueColeeeunosencontrávamos,equenaprimeiraaminhalíngua passeara pela boca do lobo novato e vice-versa. Usei o tópico dosdedosdeColepararedirecionaraconversa.—Por falarnisso,comoseráque ele está se saindo lá dentro?— indaguei, dando uma olhada para obanheiro.

Samhesitou.Poralgummotivo,me lembreidequea luzdobanheiroforaaúnicaapermanecerapagada.Finalmente,Samdisse:

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— Por que você não bate na porta e descobre? Vou preparar umquarto lá em cima para ele. Só preciso.... Só preciso de um minuto parapensar.

—Tudobem,comopreferir—assenti.

Justo quando Sam estava se virando para subir ao segundo andar,vislumbrei algum tipo de emoção pessoal em seu rosto que me levou apensarqueelenãoerao livroabertoqueeu imaginavaser.Tivevontadede chamá-lo e pedir que preenchesse as lacunas da nossa conversa —comoGrace adoecera, porquea luzdobanheironãoestava acesa, oqueele iria fazer agora... Porém, era tarde demais, e de qualquer forma euaindanãometornaraessetipodegarota.

•COLE•

Opiordador jáhaviapassado, e euestavadeitadonaágua, fazendominhas mãos lutuarem na super ície e me imaginando adormecido ali,quandoouviumabatidanaporta.

A voz de Isabel seguiu-se à batida, cuja força entreabriu a portadestrancada.

—Vocêseafogou?

—Meafoguei—respondi.

—Possoentrar?

Maselanãoesperouaresposta; simplesmenteentrouesesentounaprivadaaoladodabanheira.Ocapuzacolchoadocomforrodepeledoseucasaco criava a ilusão de uma corcunda. O cabelo caía irregular em seurosto.Isabelpareciaumanúnciodealgumacoisa.Deprivadas.Decasacos.De antidepressivos. Qualquer que fosse o produto, eu o compraria sempestanejar.Elameolhou.

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—Estounu—falei.

—Eutambém—retrucouela—,porbaixodaroupa.

Dei um risinho. Era preciso reconhecer o que merecia serreconhecido.

—Seuspésvãocair?—indagouela.

Devido ao tamanho da banheira, precisei levantar e esticar a pernaparavermeusdedosdopé.Estavammeiovermelhos,masconseguimexê-losesentirtodos,salvoomindinho,quecontinuavadormente.

—Achoquehojenão—respondi.

—Vocêvaificaraídentroparasempre?

—Provavelmente.—Mergulheimaisosombrosnaáguaparailustrarminhadecisão.Olheiparaela.—Querentraraquicomigo?

Isabelergueuumasobrancelha,sagaz.

—Essabanheiraparecemeiopequena.

Fechei os olhos e sorri de novo.Touché. De olhos fechados,me sentiaquecido, lutuante e invisível. Deviam inventar uma droga que causasseesseefeito.

—SintofaltadomeuMustang—falei,maisporqueeraotipodefrasequeafariareagir.

—Ficardeitadonunumabanheirafezvocêselembrardocarro?

— O aquecimento que eu tinha no carro era maravilhoso! Davarealmente para cozinhar os miolos lá dentro — respondi. Era tambémmuito mais fácil falar com ela de olhos fechados, icava menos parecidocomumacompetiçãoparaverquem icacomaúltimapalavra.—Quiseraeuqueeleestivessecomigonoiníciodanoitedehoje.

—Ondeeleestá?

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—Emcasa.

Ouviquandoela tirouo casaco,que roçou comumruídonabancadadobanheiro.Atampadaprivadarangeuquandoasesentou.

—Eessacasaficaonde?

—NovaYork.

—Acidade?

—Oestado.

Pensei no Mustang. Preto, lustroso e envenenado, estacionado nagaragemdosmeuspaisporqueeujamaisestavaemcasaparadirigi-lo.Elefoiaprimeiracoisaquecompreiaorecebermeuprimeirochequepolpudo.Mas,porironiadodestino,euexcursionavademaisparapoderguiá-lo.

—AcheiquevocêmoravanoCanadá.

— Eu estava em... — Parei quase a ponto de dizer turnê. Meuanonimato estava sendo bom demais — férias. Abri os olhos e vi, pelaexpressãoduraemseurosto,queela identi icaraamentira.EucomeçavaamedarcontadequeIsabelnãodeixavapassarmuitacoisa.

— E que férias, hein?— disse ela.— Devem ter sido um tremendosaco, para você optar por isto. — Isabel agora olhava as cicatrizes dasagulhas nos meus braços, mas não da forma como eu esperaria queolhasse.Elanão julgava.Era comoseestivesse faminta. Isso, alémdo fatodeestarusandoapenasumacamisetadecetimsobocasaco,mecriouumabaitadificuldadedeconcentração.

—É—concordei.—Evocê?Comodescobriusobreoslobos?

Os olhos dela denunciaram alguma coisa durante um único segundo,umtempotãobrevequenãoconseguidizeroquê.

Aquelacarinhalavada,jovemevulnerávelfezcomeumesentissemalporperguntar.

Então, me perguntei por queme sentia assim diante de uma garota

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queeumalconhecia.

— Sou amiga da namorada de Sam— respondeu Isabel. Eu já tinhacontado muitas mentiras, ou ao menos um bom numero de meiasverdades, para saber identi icá-las. Ainda assim, como ela deixou passarminhaomissão,retribuíofavor.

—Certo.Sam—ecoei.—Mefalemaisdele.

—Jáconteiqueeleécomoum ilhoparaBeck,ebasicamenteassumiuascoisas.Oquemaisvocêquersaber?Nãosoueuanamoradadele.

Suavoz,porém, transmitia admiração; ela gostavadele.EuaindanãosabiaoquepensardeSam.

Desembuchei aquilo que vinha me incomodando desde que oconhecera:

—Estáfrio.Elecontinuahumano.

—Edaí?

—Bom,Beckmelevouaacreditarqueissoeraumfeitoetanto,senãoimpossível.

Isabelpareceure letirsobrealgumacoisa—percebiumapequenaesilenciosa batalha sendo travada em seus olhos — e inalmente deu deombros,dizendo:

—Eleestácurado.Provocouemsimesmoumafebrealta,ecomissoficoubom.

Essa era uma pista. Para Isabel. Algo na sua voz soou esquisito aodizeraquilo,masnãofuicapazdeentenderissonocontextogeral.

— Achei que Beck quisesse que nós, os novatos, cuidássemos dobando,jáquesãopoucososqueaindapodemsetransformaremhumanospor tempo su iciente — falei. Na verdade, senti alívio. Eu não queriaresponsabilidades,queriaescorregarparaaescuridãodocorpolupinoeláficaromáximopossíveldetempo.—Porqueelenãocuratodomundo?

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—ElenãosabiaqueSamestavacurado.Sesoubesse,nãoleriacriadomaislobos.Eacuranãofuncionaparatodomundo.—AvozdeIsabeleraagoraostensivamentedura,esentiqueeu,seiláporquê,jánãofaziapartedaconversaquecomecei.

— Sendo assim, ainda bem que não quero me curar — falei, comleveza.

Elameolhou,esuavozeradedesprezo.

—Aindabem.

De repente, me senti meio cansado. Como se, no im, ela fossedescobrir a verdade a meu respeito independente do que eu dissesse.Porque era assim com ela. Ela veria que sem a NARKOTIKA, só restavaColeSt.Clair,dentrodequemnãohaviaabsolutamentenada.

Sentiaânsiaconhecidabrotaremmim,comoseminhaalmaestivesseapodrecendo.

Euqueriaumadose.Precisavaencontrarumaagulhaparaen iarsobapeleouumapílulaparadissolversobalíngua.

Não.Euprecisavaerametransformarnovamenteemlobo.

—Você não temmedo?— indagou repentinamente Isabel, e abri osolhos.Nãomederacontadetê-losfechado.Oolhardelaeraintenso.

—Dequê?

—Deseperderdevocê.

Respondiaverdade:

—Eexatamenteissoquequeroqueaconteça.

•ISABEL•

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Não achei o que dizer. Não esperava que ele fosse honesto comigo.Não sabia ao certoparaonde iríamosapartirdali, porqueeunãoestavapreparadapararetribuiragentileza.

Eletiroudaáguaumadasmãos,pingandoecomosdedos levementeenrugados.

Algoemmeuestômagodeuumsaltoquandopegueisuamãomolhadae tracei uma linha da palma até os dedos. Seus olhos estavamsemicerrados,e,quandoacabei,elerecolheuamãoesesentou,fazendoaáguachacoalhareondearàsuavolta.Pousouentãoasmãosnabeiradadabanheira e pôs o rosto nomesmo nível domeu. Eu sabia que íamos nosbeijarnovamenteesabiaquenãodevíamos,poiselejáestavanofundodopoço e eu, quase lá. Porém,não conseguime conter. Estava ansiandoporele.

Suabocatinhagostode loboesal,e,quandoelemepuxouparamaispertocomamãonabasedaminhanuca,aáguamornaescorreupelomeupescoçoepordentrodacamiseta,descendoentremeusseios.

—Ai—exclamouele,dentrodaminhaboca.

Meafastei.Ele,porém,nãomepareceuespecialmentepreocupadoembaixarosolhosparaopróprioombro,ondeminhasunhashaviamrasgadoapele.Eucontinuavaaarderporcausadobeijoe,aomenosdessavez,tivea impressão de que ele também sentia omesmo, porque quando levou amãoaindalevementeúmidaaomeupescoço,descendodepoisatépararaum milímetro do decote da camiseta, senti desejo na pressão de seusdedos.

—Fazemosoquê,agora?—perguntei.

—Procuramosumacama—respondeuele.

—Nãovoudormircomvocê.

A euforia do beijo começava a passar, e voltou a se repetir o queaconteceraquandooconheci.Porquedeixeiqueelemeimpressionasse?Oque havia de errado comigo? Fiquei de pé, peguei o casaco em cima dabancadaetorneiavesti-lo.Derepente,tiveummedoenormedequeSam

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descobrissesobreonossobeijo.

—Novamente icocomaimpressãodequenãoseibeijar—queixou-seCole.

— Preciso voltar para casa. Tenho aula amanhã, quer dizer, hoje.Precisoestarláantesquemeupaisaiaparatrabalhar.

—Nãoseibeijarmesmo.

—Agradeçapelosseusdedosdasmãosedospés—falei,comamãonamaçaneta.—Evamosdeixarcomoestá.

EradeseesperarqueColemeolhassecomoseeufosselouca,maselesimplesmentemeolhou.Comosenãoentendessequehaviasidorejeitado.

—Obrigadopelosmeusdedosdasmãosedospés—agradeceu.

Fechei a porta do banheiro ao sair e fui embora sem procurar porSam.

Só quando já estava na metade do caminho me lembrei que Coledisseraqueesperavaseperder.Senti-memelhorpensandoqueeleestavamal.

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CAPÍTULO17•COLE•

Acordei humano, embora os lençóis estivessem amarfanhados echeirandoalobo.

DepoisqueIsabelsefoinanoiteanterior,Sammeguiouporumapilhadelençóisqueacabaradeserretiradadeumacama,meacomodandoemum quarto do térreo. O cômodo era de tal forma amarelo que dava aimpressãodequeosolderrubaraasparedesedepoisenxugaraabocanacômoda e nas cortinas. No entanto, a cama, situada no centro, havia sidofeitahápouco,eeraissoqueinteressava.

—Atéamanhã—disseSam,numtomfrio,masnãohostil.

Não respondi. Já entrara debaixo das cobertas,morto para omundo,sonhandocomnada.

Agora,piscandoaosoldamanhãzinha,deixeiacamadesfeitaefuiatéasala,quepareciatotalmentediferenteàluzdodia.Todososvermelhosexadrezes cintilavam ao sol que se derramava pelas paredes de vidro àsminhas costas. Era confortável, em nada parecido com a arroganteperfeiçãogóticadacasadeIsabel.

Nacozinha,haviafotosa ixadasdetodasasformasnosarmários,umamistura de ita adesiva, tachinhas e rostos sorridentes. Imediatamente,localizeiBeckemdezenasdelas,assimcomoSam,quepareciaestarnumaanimação,àmedidaqueenvelheciaemcadadas imagens.NãohaviafotosdeIsabel.

Osrostos,emsuamaioria,ostentavamexpressões felizes, sorridentese à vontade, como se estivessem tirando omelhor proveito de uma vidaestranha. Vi fotos de churrascos, de canoagem e de rodas de violão,maserabastanteóbvioquetodosesseseventoshaviamacontecidonessacasaounosarredoresdeMercyFalls.Eracomoseexistissemduasmensagenstransmitidas pelos armários com fotos:Somos uma família e Você é um

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prisioneiro.

Foi você quem escolheu, lembrei amimmesmo. Na verdade, eu nãopensara muito nos intervalos entre ser e não ser lobo. I >e fato,praticamentenãopensaraemcoisaalguma.

—Comovãoseusdedos?

Meus músculos icaram tensos durante um segundo, antes que eureconhecesse a voz de Sam. Virei-me em sua direção e o vi de pé sob oamploarcoque iadarnacozinha,comumax ícaradechánamãoea luzàs suas costas formando um halo Nobre seus ombros. Tinha um olharvelado que se devia em partes iguais à insônia e à descon iança a meurespeito.

Era uma sensação estranha e surpreendentemente libertadora a deencontraralguémquenãonosjulgaàprimeiravista.

EmrespostaàperguntadeSam,levanteiasmãosaoladodacabeçaemexi os dedos, um gesto que sugeria indiferença e que, de início, não foiintencional.

OsamedrontadosolhosamarelosdeSam—nuncamehabitueiaeles— continuaram olhando, me encarando, travando uma batalha interior.Finalmente,eledissenumavozmonocórdia:

—Temleite,ovosecereais.

Erguiumasobrancelha.

OsombrosdeSamjáhaviamsecurvadoquandoelesepreparouparavoltaraocorredor,masminhasobrancelhaerguidaofezparar.Fechandoosolhosuminstanteetornandoaabri-losemseguida,eledisse:

—Muitobem,então.

Pousouacanecanabancadaentrenósecruzouosbraços.

—Muitobem.Porquevocêestáaqui?

O tombeligeranteme fez gostar um tantinhomais dele. Compensava

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seuridículocabelodesalinhadoeosolhos tristesearti iciais.Vestígiosdeumaespinhadorsalerambem-vindos.

— Para ser um lobo — respondi, com petulância. — O que,coincidentemente,não é o motivo de sua presença, se os boatos foremverdadeiros.

OsolhosdeSamviajaramatéasfotosatrásdemim,dasquaismuitascontinhamseurosto.Emseguida,elestornaramameencarar.

—Nãoimportaporqueestouaqui.Estaéaminhacasa.

— Entendo— respondi. Eu podia tê-lo ajudado, mas não vi sentidonisso.

Samre letiu.Erapossível,efetivamente,vê-loponderarquantoesforçopretendiapôrnaconversa.

— Olha, eu não costumo ser um babaca. Mas estou achando umbocadodi ícilentenderporquealguémescolheriaestavida.Sepudermeexplicarisso,chegaríamosbemmaispertodenosentendermos.

Estendi as mãos como se apresentasse alguma coisa. Quando usavaessegestonosshows,aplateiaenlouquecia,porquesigni icavaqueeuiriacantaralgonovo.

***

VICTOR,ENTENDENDOAREFERÊNCIA,teriarido.Samnãoconheciaocontexto,porissoapenasolhouparaasminhasmãosatémeouvirdizer:

—Pararecomeçardozero,Ringo.AmesmarazãoquemoveuBeck.

AexpressãodeSampassouàneutralidadeabsoluta.

—Masvocêescolheuisso.Depropósito.

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Evidentemente, Beck dera a Sam uma versão diferente da que medera sobre a própria gênese. Perguntei-me qual seria a verdadeira. Nãoestavaa im,porém,deentrarnumalongadiscussãocomSam,queolhavaparamimcomoseesperassequeeudesmitificassePapaiNoelemseguida.

— E, escolhi. Pense o que quiser. Que tal um café da manhã agora,hein?

Sambalançoua cabeça—não como se estivesse zangado,mas comoseafugentassemosquitosdaprópriamente.Consultouorelógio.

—Sim,tantofaz.Precisoirtrabalhar.—Emseguida,passoupormimsem me olhar nos olhos e depois mudou de ideia. Voltou à cozinha erabiscou alguma coisa num post-it, que depois grudou na porta dageladeira.—Onúmerodomeucelularedotelefonedotrabalho.Ligueseprecisardemim.

Ser gentil comigo lhe estava sendonitidamentemortal para ele,mas,apesar disso, foi o que ele fez. Uma noção arraigada de educação? Umsensodedever?Oquê?Eunãoerapropriamentefãdegenteboazinha.

Samsedispôsnovamenteasair,mastornouapararnaporta,comaschavesdocarrotilintando.

—Você,provavelmente,vaisetransformardenovologo.Quandoosolsepuser,detodojeito,ouse icarláforatempodemais.Porisso,tente icarporaqui,certo?Paraqueninguémassista.

Sorritimidamente.

—Podedeixar.

Samdeu a impressão de ter algomais a dizer,mas apenas encostoudois dedos na têmpora e fez uma careta. O gesto disse tudo o que Samcalara:problemasnãolhefaltavam,eeuerasómaisumdeles.

Euestavagostandomaisdoqueimaginaradeserumnãofamoso.

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•ISABEL•

QuandoGracefaltouàaulanasegunda-feira,meescondinobanheirofemininoeligueiparaelanahoradoalmoço.Amãeatendeu.Ouaomenospareciaseramãe.

—Alô.

AvozdefinitivamentenãoeraadeGrace.

—Hã...Alô?—Tenteinãosoardemasiado intoleranteparaocasodesermesmoamãedela.—EuligueiparaaGrace.

Tudo bem, não deu para limar toda a arrogância do meu tom. Masconvenhamos...

Aoutravozsoouamistosa.

—Quemestáfalando?

—Quemestáfalando?

Ouvi,finalmente,avozdeGrace.

—Mãe,medáissoaqui!—Edepoisdealgunsruídos:—Desculpe—disseGrace.—Estoudecastigoe,aparentemente,issosigni icaquepodemfiltrarmeustelefonemassemomeuconhecimento.

Caraca.SantaGracedecastigo?

—Oquefoiquevocêfez?

Ouvi uma porta se fechar do outro lado da linha, não propriamentecomforça,mascomumarebeldiamaiordoqueeuesperariadeGrace.

—MepegaramdormindocomSam—respondeuela.

Meu rosto, no espelho do banheiro à minha frente, demonstrousurpresa, com as sobrancelhas arqueadas e o delineador preto em torno

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dosmeus olhos fazendo com que eles parecessem aindamaiores emaisredondos.

—Essaéaparteboa?Vocêsdoisestãotransando?

— Não, não. Ele só estava dormindo na minha cama. Meus paisextrapolaram.

—Comcerteza—comentei.—Ospaisdequalquergarotaachariamnormalas ilhaspartilharemacamacomosnamorados.Tenhocertezadeque os meus adorariam. Quer dizer que, por causa disso, eles nãodeixaramvocêviràaula?Émeio...

—Não,foiporqueeuestavanohospital—explicouGrace.Tivefebre,emais uma vez eles extrapolaram eme levaram para a emergência, emvezdemedarumTylenol.AchoqueestãoquerendoummotivoparameafastardeSam.Dequalquerforma, levouumtempão,claro,comosempreacontece num hospital, e só cheguei em casa já tarde. Por isso,praticamenteacabeideacordar.

Por alguma razão, me lembrei imediatamente de Grace pedindolicençaaosr.Grantparaircuidardadordecabeça.

—Oquevocêtem?Oqueomédicodisse?

—Queéumavirose,oualgodogênero.Foi sóuma febrerespondeuGrace,tãorapidamentequemaltivetempodeterminarasperguntas.Deuaimpressãodenãoacreditarnoquedizia.

Aportadotoaleteseabriuatrásdemimeouvi:

— Isabel, eu sei que você está aqui — falou a sra. McKay, minhaprofessora de inglês. — Se continuar deixando de almoçar, vou ter quecontaraseuspais.Estouavisando.Aaulacomeçadaquiadezminutos.

Aportavoltouasefechar.Gracedisse:

—Vocêestásemcomerdenovo?

—Nãoseriamelhorvocêsepreocuparcomseusproblemasatuais?—

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retorqui.

•COLE•

Depois que Sam sumiu para o "trabalho", fosse este qual fosse, meservi de um copo de leite e voltei até a sala para remexer em algumasgavetas. Por experiência própria, eu sabia que gavetas e mochilas sãoformas ótimas de se conhecer alguém. As mesinhas da sala nadacontinham além de controles de TV e de PlayStation, razão pela qualmedirigiaoescritórioporondehaviapassadoacaminhodomeuquarto.

Acertei na mosca. A escrivaninha estava abarrotada de papéis, e ocomputadornãotinhasenhadeproteção.Pelovisto,ocômodoeraperfeitopara saqueadores, localizado no canto da casa com janelas em duasparedes,dasquaisumpar tinhavistaparaa ruaepermitiaqueeu fossealertado caso Sam voltasse. Pousei o copo de leite junto aomouse pad(alguém havia feito rabiscos nele com uma caneta Pilot e desenhado,inclusive, uma garota peituda de uniforme colegial) e me acomodeiconfortavelmente na cadeira. O escritório era como o restante da casa:aconchegante,masculinoeconfortável.

Sobreaescrivaninhahaviaalgumascontas,todasendereçadasaBecke carimbadas com Débito automático. Contas não eram interessantes. Aolado do teclado do computador, havia uma agenda de couro marrom.Agendas também não interessavam. Abri, em vez disso, a gaveta. Umpunhado de programas de computador, em sua maioria material deconsulta, mas também alguns jogos. Nada de interesse, mais uma vez.Passeiparaaúltimagavetaefuirecebidoporumanuvemdepoeira,queéoque seusapara encobrir osmelhores segredos.Vi umenvelope comaetiqueta Sam. Agora, sim, estava esquentando. Puxei a primeira folha.Documentosdeadoção.

Aívamosnós.

Despejeioconteúdodoenvelopesobreaescrivaninha,en iandoamãoneleparaextrairas folhasmenoresqueserecusavamasair.Certidãode

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nascimento: Samuel Kerr Roth. A data escrita ali mostrava que Sam eracercadeumanomaisnovoqueeu.Umafotodele,magrelaefranzino,masjácomomesmocabeloescurodesalinhadoeomesmoolharqueeuhaviareparado na noite anterior. A expressão era complexa. Na noite davéspera, o estranho amarelo lupino de seus olhos havia me chamado aatenção;quandoaproximeiafoto,vinoSambebêasmesmasírisamarelas.Por isso,nãose tratavade lentesdecontato.Sei láoporquê,mas issomefezgostarumpouquinhomaisdele.Pusafotonamesa.Debaixodelahaviaum maço de recortes amarelados de jornal. Meus olhos passaram emrevistaasmatérias.

GregoryeAnnetteRoth,umcasaldeDuluth,foramacusadosnaúltimasegunda-feirade tentar assassinar seu ilhode sete anos.As autoridadesentregaram o menino (cujo nome não divulgamos para proteger suaidentidade) à custódia do Estado. Seu destino será decidido após ojulgamento dos Roth. O casal supostamente imobilizou o ilho dentro deuma banheira e lhe cortou os pulsos com uma navalha. Logo após o ato,AnnetteRothconfessouoquefizeraàvizinha,dizendoqueofilhodemoroudemais para morrer. Tanto ela quanto Gregory Roth contaram à políciaqueofilhoestavapossuídopelodemônio.

Senti um bolo na garganta que não descia pormais que eu tentasseengolir.Eradi ícilparamimnãopensarnoirmãozinhodeVictor,quetinhaagoraoitoanos.Volteià fotodeSamsegurandoamãodeBecke torneiaolhar para o garoto, seus olhos semicerrados ixos num ponto além dacâmera, vazios. A posição da sua mãozinha na de Beck fazia com que opulso estivesse voltado para a câmera, mostrando nitidamente o recentecorteavermelhadoatravessado.

UmavozinhanaminhacabeçadisseEvocêsentepenadesimesmo.

En iei os recortes de jornal e a foto de volta no envelope, para nãoprecisarolharparaeles,emedediquei, emvezdisso,aexaminaromaçodedocumentos. Eles se referiamaum fundo, cujobene iciário era Samequeincluíaacasa,eaosvaloresdepositadosnumacontacorrenteenumacontapoupança,ambasconjuntas,deBeckedeSam.

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Coisa de peso. Me perguntei se Sam estaria ciente de que,basicamente, era proprietário daquela casa. Debaixo dos documentos,havia uma outra agenda preta. Folheando-a, vi várias anotações com acaligra ia típica de um canhoto. Voltando à primeira página, li: Se vocêestiver lendo isto, é porque me transformei de initivamente em lobo ouporquevocêéoUlrick,ébomvocêpararderemexernoqueémeu.

Deiumpuloquandootelefonetocou.Deixeitocarduasvezeseentãoatendi.

—Hã!

—Cole?

Meuânimomelhorouinexplicavelmente.

—Depende.Evocê,mamãe?AvozdeIsabelsoouríspida:

—Eunãoestavacientedequevocê tinhaumamãe.Samsabequeévocêqueatendeotelefoneagora?

—Vocêquer falar comele?—Fez-seumapausa.—Eonúmeronoidentificadordechamadasédoseutelefone?

—É—respondeu Isabel.—Masnão ligueparaele.Oquevocêestáfazendo?Continuasendovocê?

—Porenquanto.EstouremexendonascoisasdeBeck—falei,jogandooenvelopeetiquetadoSameseuconteúdodevoltanagaveta.

— Está brincando? — indagou Isabel, respondendo, em seguida, aprópriapergunta.—Não,nãoestá.Oquefoiqueencontrou?

—Venhaver.

—Estounaescola.

—Falandoaotelefone?Isabelrefletiu:

—Estounobanheirotentandoarrumarânimoparaaminhapróximaaula.Conteoqueencontrou.Umainformaçãoobtidapormeiosescusosvai

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mealegrar.

—OsdocumentosdeadoçãodoSamealgunsrecortesdejornalsobrea tentativa dos pais dematá-lo. Encontrei, também, um péssimo desenhode umamulher usando um uniforme de colegial. Vale realmente a penadarumaolhada.

—Porquevocêestáfalandocomigo?

Penseisaberoqueelaqueriadizer,masrespondi:

—Porquevocêligouparamim.

— É porque você quer dormir comigo? Porque não vou dormir comvocê.Nãoénadapessoal,masnãovouepronto,listoumeguardandoetc.etal.Então,seéporissoquevocêquerfalarcomigo,podedesligaragora.

Nãodesliguei.Nãosabiaaocertosehaviarespondidoapergunta.

—Vocêcontinuaaí?

—Continuo.

—Poracasovairesponderdeverdadeaminhapergunta?

Empurreiocopodeleiteparafrenteeparatrás.

— Eu só quero alguém com quem conversar — falei. — Gosto deconversarcomvocê.Nãotenhorespostamelhorqueessa.

— Conversar não foi o que izemos nas duas vezes em que nosencontramos—observouela.

— Conversamos, sim— insisti. — Contei do meu Mustang. Essa foiumaconversamuitoprofundaeparticularsobreumacoisamuitocaraaomeucoração.

— Seu carro. — Isabel não pareceu convencida. Fez uma pausa eentãodisse:—Querconversar?Ótimo.Converse.Conteparamimalgoquejamaiscontouaoutrapessoa.

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Penseiporuminstante.

—Astartarugastêmosegundomaiorcérebroentretodososanimaisdoplaneta.

Isabellevouapenasumsegundoparaprocessarainformação.

—Nãotêm,não.

—Eusei.Porissonãoconteianinguémantes.

Houveumruídodooutrolado,comoseelaestivessetentandoprenderorisoousofrendoumacrisedeasma.

—Conteparamimalgumacoisaquevocêjamaiscontouaalguém.

—Seeucontar,vocêfazamesmacoisa?

Elapareceucética.

—Faço.

Contorneiodesenhodacolegialnomousepadenquantore letia.Falarno telefone é como falar de olhos fechados. Ficamos mais corajosos esinceros,porqueécomofalarsozinho.Porissoeusemprecantavaminhasnovas composições de olhos fechados. Não queria ver o que a plateiaachavadelasatéterminar.Finalmente,falei:

—Passeiavidatodatentandonãosercomomeupai.Nãoporqueeleseja tão terrível,masporqueémuitobacana.Qualquercoisaqueeu faça,sejaelaoquefor,nãopodesecomparar.

Isabelsecalou.Talvezesperandoparaverseeudiriaalgomais.

—Oqueoseupaifaz?

—Euqueroouviralgoquevocêjamaiscontouaalguém.

—Não,vocêprimeiro.Vocêqueriaconversar.Issosigni icavocêfalar,euresponderevocêtornarafalar.Eumadasconquistasmaisfantásticasdaraçahumana.Chama-sediálogo.

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Eujáestavaficandoarrependido.

—Eleécientista.

—Cientistaespacial?

—Umcientistamaluco—respondi.—Muitobom.Mas, sabe,eunãoquerofalarsobreissoporumbomtempo.Tipo,atédepoisdaminhamorte.Possoouvirasuahistóriaagora?

Isabel respirou fundo, alto o bastante para que eu ouvisse do outroladodalinha.

—Meuirmãomorreu.

Aspalavrassoaramconhecidas.Comoseeujáastivesseouvidonavozdela mesmo, embora não conseguisse imaginar quando. Após ponderaressefato,falei:

—Vocêjácontouissoaalguém.

—Eununcadisse aninguémque a culpa foiminha, porque todos jáachavamqueeleestavamortoquandorealmentemorreu—disseIsabel.

—Issonãofazsentidoalgum.

—Nadamais faz sentido.Tipo, porque estou falando comvocê?Porqueestoulhecontandoisso,sevocênãodáamínima?

Paraessapergunta,aomenos,eutinharesposta.

—Maséporissoquevocêestámecontando.

Eu sabia que era verdade. Se tivéssemos a oportunidade de lazernossas con issões a alguém que realmente se importasse tom elas, nãohaveria jeitodeabrirmosaboca.Partilharrevelaçõesémais fácilquandoelasnãotêmimportância.

Isabelsecalou.Pudeouviroutrasgarotasfalandoaofundo,trechosdeconversas incompreensíveis em tons estridentes, seguidas pelo ruído deáguacorrendoe,depois,novamente,pelosilêncio.

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—Estábem—disseela.

—Oqueestábem?

—Vocêpodeligarparamim.Umdia.Agoratemomeutelefone.

Nãotivenemtempodemedespedirantesqueeladesligasse.

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CAPÍTULO18•SAM•

Eu não sabia do paradeiro da minha namorada, a bateria do meucelular tinha acabado, eumoravanuma casa comumnovo lobisomem—possivelmente louco que podia ser um suicida ou homicida— e estava amilhas de distância de tudo isso, contando lombadas de livros. Em algumlugarláfora,meumundocomeçava,lentamente,agirarforadeórbita,ealiestava eu, banhado por um lindo e corriqueiro raio de sol, escrevendo Avida fantásticadasabelhas (3ªEdição simples)emumbloquinhoamarelo,ondeseliaInventáriodeestoque.

—Deve chegarmercadoria hoje— observou Karyn, a dona da loja,voltandodasaladosfundos,precedidapelaprópriavoz.—Tome.

Virei-meedescobriqueelaseguravaumcopinhodeisopor.

—Aquedevoisso?—indaguei.

—Bomcomportamento.Écháverde.Tudobem?

Assenti, agradecido. Sempre gostei de Karyn, desde o momento emque a conheci. Cinquentona, tinha cabelo curto e revolto, totalmentebranco,emboraorostoe,sobretudo,osolhosfossemjovens,arrematadospor sobrancelhas ainda escuras. Ela escondia uma essência durona portrás de um sorriso agradável e e icaz, e dava para ver que os melhoresatributosquepossuíapordentroseencontravamapregoadosporfora.Eugostavadepensarqueelamecontrataraporeutambémserassim.

—Obrigado—falei,tomandoumgole.

O jeito como senti o líquido quente me descer garganta abaixo echegaraoestômagomelembroudequeeunãocomeranadaainda.Haviamehabituadoaos cereaismatutinos comGrace. InclineiobloquinhoparaKaryn,paraqueelavisseomeuprogresso.

—Ótimo.Descobriualgodebom?

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Apontei para a pilha de livros atrás de mim que haviam sidoequivocadamentearrumados.

— Maravilha — disse ela, tirando a tampa do seu copo de café,fazendo uma careta e soprando o vapor acima do líquido, antes de olharparamim.—Estáanimadoparadomingo?

Nãoentendi,egarantoquemeurostomedenunciou.Espereiquemeucérebrofornecesseumaresposta,mas,quandoissonãoaconteceu,repeti:

—Domingo?

—Estúdio?ComGrace?

—Vocêestásabendo?

Semlargarprimeiroocafé,Karynpegousemjeitometadedapilhadelivrosedisse:

—Gracemeligouparatercertezadequevocênãoiriatrabalhar.

Claro.Gracenãomarcariaumcompromissoparamimsemtercertezade que tudo estivesse certo. Senti um aperto no estômago, o apertoinsuportáveldasaudade.

—Nãoseiseissoaindaestádepé—comentei,hesitante,observandoasobrancelhaerguidadeKaryn,queesperavaqueeuacrescentassealgo.Então,conteiosdetalhesqueomitideIsabelnanoiteanterior,poisKarynse importaria e Isabel, não.— Os pais dela me pegaram em seu quartodepoisdahora— falei, sentindoo rubordeminhasbochechas.—Ela sesentiu mal e gritou, fazendo com que eles fossem ver o que estavaacontecendo. Me botaram na rua. Não sei como ela está. Nem sei se medeixarãovê-laumdia.

Karynnão respondeude imediato, oqueeraumadas característicasque eu mais apreciava nela. Ela não retrucava automaticamente Vai dartudocerto,antesdetercertezadarespostaapropriada.

—Sam,porquenãomedissequenãopodiavirtrabalharhoje?Eulhedariaodiadefolga.

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Respondi,impotente:

—Inventáriodeestoque.

— Isso podia esperar. Estamos fazendo inventário porque é março,está frioeninguémvai aparecerpara fazer compras—disseKaryn,quepensoumaisalgunsminutos,tomandogolesdecaféetorcendoonariz.—Paracomeçar,elesnãovãoimpedirvocêdevê-la.Vocêssãopraticamenteadultos,e,dequalquerforma,elesdevemsaberqueGracenãopoderiaterescolhidonamoradomelhor.Emsegundo lugar,oproblemadeladeveserumavirose.Quaisossintomas?

—Febre—respondi,surpresocomotomcalmodaminhavoz.

Karynmeolhoucomatenção.

—Seiquevocêestápreocupado,masummontedegente tem febre,Sam.

—Tivemeningite.Meningitebacteriana—faleibaixinho.

Não havia dito isso antes em voz alta, e, tendo conseguido, foi quaseuma catarse, como se admitir meus temores de que a febre de Gracepudesse ser algomais perigoso do que uma gripe comum tornassemaisfáciladministrá-los.

—Háquantotempo?

Recorriaoferiadomaisrecente.

—NaépocadoNatal.

—Ora, já não seriamais contagioso agora— disse ela.—Não achoque meningite seja dessas doenças que icam incubadas. Como ela estáhoje?

— O celular dava na caixa postal de manhã — falei, tentando nãodemonstrar muita pena de mim mesmo. — Eles licaram realmentezangados ontem à noite. Acho que talvez t enham con iscado o telefonedela.

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Karynfezumacareta.

—Vãoacabarsuperando.Tenteverascoisasdopontodevistadeles.

Karyn continuava trocando os livros demão para impedi-los de cair,porissopouseimeucopinhodecháverdeeostomeidela.

—Euentendoopontodevistadeles.Esseéoproblema.—Fuiatéaseçãodebiogra iasparaacomodarumadaprincesaDianaquehaviasidoposta na prateleira errada.— No lugar deles, eu estaria furioso. Achamquesouumgarotosafadoquesedeubemlevandoa ilhadelespracamaequelogo,logovaisumirdavidadela.

Karynriu.

—Desculpe,seiqueparavocênãotemgraça.

— Um dia vai ser hilariante, quando estivermos casados e sóprecisarmosvê-losnoNatal—respondi,meutommaissombriodoqueopretendido.

—Vocêsabequeamaioriadosrapazesnãofalaassim—disseKaryn.Pegandoalistadoinventário,elafoiparadetrásdobalcãoepousouocaféjuntoàcaixaregistradora.

— Sabe como consegui fazer com que Drew me pedisse emcasamento?Spraydepimenta,algumasdosesdebebidaeShoptime.

Elaolhouparamimatéverumsorrisoecompletou:

—OqueGeoffreypensadissotudo?

DemoreidemaisparamedarcontadequeelafalavadeBeck;nemmelembravadaúltimavezemqueouviraseuprimeironome.Eadescobertadequeprecisariamentirnovamentemeatingiuemcheio.

—Eleaindanãosabe.Estáviajando.

Minhaspalavrassaíramdemasiadoapressadas,poiseuqueriaacabarlogo com amentira. Virei-me para a prateleira para que ela não visse aexpressãoemmeurosto.

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— Tem razão. Eu tinha me esquecido dos clientes que ele tem naFlórida — disse Karyn, e eu pisquei para a prateleira, surpreso com aastúciadeBeck.

—Sam,vouabrirumalivrarianaFlóridaparaoinverno.Geoffreyestácerto,Minnesotaemmarçoéumapéssimaideia.

Eu não tinha noção de que história Beck contara a Karyn paraconvencê- la de que ele passava o inverno na Flórida, mas iquei bemimpressionado, já que Karyn não parecia uma boboca. Claro que ele lhederaalgumaexplicação—Beckpassaramuitotemponalivraria,primeirocomofreguêsedepois,quandoconseguiempregoláeantesqueeutirassecarteira demotorista, comomeumotorista.Karynobviamentenotara suaausência durante o inverno. Fiquei ainda mais impressionado com anaturalidade com que ela empregava o seu nome. Devia conhecê-losu icientementebemparaqueGeoffreysaíssedeseuslábiosdeformatãoautomática,masnãobemobastanteparasaberquetodosqueoamavamochamavampelosobrenome.

MedeicontadequehaviaumalongapausanaconversaequeKaryncontinuavaameolhar.

—Elevinhamuitoaqui?—indaguei.—Semmim?

Atrásdobalcão,elaassentiu.

— Bastante. Comprava ummonte de biogra ias— disse, calando-seemseguidapararefletir.

Ela me dissera certa vez que era completamente possível analisarpsicologicamente uma pessoa com base no tipo de livro que ela lê. Meperguntei que signi icado a preferência de Beck por biogra ias— haviaprateleirasemaisprateleirasdelasemcasa—teriaparaKaryn.

—Eume lembrodireitinhodaúltimacoisaqueele comprou,porquenãofoiumabiografiaefiqueisurpresa.Foiumaagenda—emendouela.

Franziatesta.Nãomelembravadetervistoagendaalguma.

— Daquelas que têm espaços para escrever comentários e fazer

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anotações diárias. Ele disse que anotaria ali seus pensamentos paraquandonãoselembrassemaisdecomopensarneles.

EntãopreciseimeVirarnovamenteparaasprateleiras,porcausadaslágrimasrepentinasquemarejarammeusolhos.Tenteimeconcentrarnostítulos àminha frente para impedir queminhas emoções extravasassem.Toqueiumalombadacomumdosdedos,enquantoaspalavrasalternavamentreborradasenítidas.

—Aconteceualgumacoisacomele,Sam?—indagouKaryn.

Olheiparaochão,paraaformacomoasvelhastábuasdemadeiraseachavam levemente vergadas no ponto em que encontravam a base dasestantes.Me senti seriamente fora de controle, como seminhas palavrasestivessemcrescendo,prestesaentornar.Porisso,nadadisse.Nãopenseinosquartosvaziose cheiosdeecoda casadeBeck.Nãopensei emcomoagora era eu quem comprava o leite e a comida enlatada para estocar oabrigo. Não pensei em Beck, prisioneiro num corpo de lobo, meobservando por trás das árvores, sem memória, sem pensamentoshumanos.Nãopenseique,noverão,nãohaverianada—ninguém—porquemesperar.

Olhei ixamenteparaumnóescuronatábuadebaixodomeupé,umapresençasombriaesolitárianomeiodamadeiraclara.

EuqueriaGrace.

—Desculpe—disseKaryn.—Não foiminha intenção... Eunãoquisxeretar.

Mesentimalpordeixá-laconstrangida.

—Seidisso.Vocênãoxeretou. Ésóque...—Aperteiarainhatestacomosdedos,noepicentrodeumadordecabeçafantasma.—Eleestádoente.Éumadoença...Umadoençaterminal.

As palavras saíram devagar, uma mistura dolorosa de verdade ementira.

—Ah,Sam,sintomuito.Eleestáemcasa?

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Semmevirar,balanceiacabeça.

—Epor issoquea febredeGracepreocupatantovocê—adivinhouKaryn.

Fechei os olhos.Na escuridão,me senti zonzo, como senão soubesseondeestavaochão.Fiqueidivididoentreavontadedefalareodesejodeguardar meus medos, mantendo controle sobre eles ao escondê-los. Aspalavrasescaparamantesqueeupudesseponderá-las.

— Não posso perder os dois. Eu sei... Sei quanta força tenho, e nãosou...nãosoutãoforteassim.

Karyndeuumsuspiro.

—Vire-se,Sam.

Com relutância,me virei e a vi segurando o bloquinhodo inventário.Apontoucomum lápisparaas letrasSR,escritascomaprópriacaligra ianofinaldasminhascontas.

— Está vendo as suas iniciais aqui? E porque estoumandando vocêparacasa.Ouparaqualqueroutrolugar.Várefrescarasideias.

Minhavozsaiufraca.

—Obrigado.

Ela despenteou meu cabelo quando fui pegar o violão e o livro queestavasobreobalcão.

—Sam—disseela, justoquandoeu já iameafastando—,achoquevocê

émaisfortedoquepensa.

Obrigueimeurostoaformarumsorrisoquenãodurouatéaportadosfundos.

Ao abri-la, dei de cara com Rachel. Graças a um tremendo golpe desorte ou de destreza pessoal, não derramei o chá verde em sua echarpe

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listrada.Rachelafastou-adomeucaminhobemdepoisdepassadooperigoemelançouumolhardealerta.

—ORapazdeveolharporondeanda—aconselhou.

— Rachel não devia se materializar do outro lado de portas —retruquei.

—Gracemedissepara entrar por aqui!—protestouRachel.Diantedo meu olhar confuso, explicou: — Meus talentos naturais não incluemestacionar emvagasperpendiculares, por issoGracemedisseque, se euparasse nos fundos da loja, era só encostar junto ao meio- io, e queninguémse importaria se eu entrassepelaportade trás.Aparentementeelaerrou,porquevocêtentoumeimpedircomóleoferventee...

—Rachel—interrompi.—QuandofoiquevocêfaloucomGrace?

—Daúltimavez?Fazdoissegundos—respondeuRachel,recuandoafimdemedeixarbastanteespaçoparasairefecharaporta.

Meualívio foi tão imediatoquequasegargalhei.Derepente,eupodiainspirar o ar frio temperado com cheiro de escapamento de motor,apreciar o verde cansado das lixeiras e sentir o vento gélido tentandopenetrarpelocolarinhodaminhacamisa.

Eunãoesperavavê-ladenovo.

A ideia parecia melodramática agora que eu descobrira que Graceestavasu icientementebemparafalarcomRachel,eeunãosabiaporquechegava tão rápido a essa conclusão; porém, isso não a tornava menosverdadeira.

—Está congelando aqui fora— falei, indicandomeuVolkswagen.—Vocêseimporta?

— Imagine! — respondeu Rachel, que esperou enquanto eudestrancavaasportas. Ligueiomotor eo aquecimentoe apertei asmãosde encontro às grades da ventilação, atéme sentirmenos ansioso com ofrioquenãopodiamefazermal.Rachelestavaconseguindoencherocarrocom um aroma muito doce e altamente arti icial, que provavelmente

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deveria ser de morango. Ela precisou dobrar sobre o banco as pernasenvoltasemmeiasafimdeabrirespaçoparaabolsaabarrotada.

—Muito bem, agora fale— disse eu.—Me fale da Grace. Ela estábem?

—Está.Ontemànoite foi pararnohospital,mas já voltoupara casa.Nemdormiu fora. Estava com febre, por isso a entupiramdeTylenol, e atemperatura melhorou. Ela me disse que melhorou. — Rachel deu deombros.

—Pediuparaeuapanharodeverdecasadela.Daí...—acrescentou,chutandoamochilaatopetada.—Tambémdevoentregarissoavocê.

Estendeu paramim, então, um celular cor-de-rosa com o adesivo deumacarinhasorridentegrudadoatrás.

—Esteéoseucelular?—perguntei.

—E.Eladissequeoseucaidiretonocorreiodevoz.

Dessavezeuri,umrisodealívio,semsom.

—Eoquehácomodela?

—Opaicon iscou.Nãoacreditoquevocêsforampegos.Ondeestavamcomacabeça?Vocêpodiatermorridodehumilhação!

Eu apenas a olhei com a expressãomais sofrida que pude produzirisicamente. Agora que sabia que Grace estava viva e gozando de boasaúde,eupodiamedaraoluxodeumpoucodehumormelancólico.

—PobreRapaz—disseRachel, comum tapinha emmeu ombro.—Nãosepreocupe.Elesnãovãopassarorestodavidafuriososcomvocê.Dêumtempoevoltarãoaesquecerquetêmuma ilha.Tomeocelular.Ela játempermissãopararecebertelefonemas.

Grato, aceitei o telefone, digitei o númerodeGrace— "o segundonaagenda",deacordocomRachel—euminstantedepoisouvi:

—Oi,éaRach.

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—Soueu—esclareci.

•GRACE•

Nãoseiqueemoçãofoiaquelaquemetomoudeassaltoquandoouviavoz de Sam em vez da de Rachel. Só sei que foi forte o bastante paratransformarminha respiração num longo e trêmulo suspiro. Passei comoumrolocompressoremcimadasensaçãonãoidentificada.

—Sam.

Ouviseususpiro,queme fezdesejarardentementeverseurosto.Eudisse:

—Rachelcontouqueestoubem?Foisóumafebre.Jávolteiparacasa.

—Possoiratéaí?—AvozdeSamsoouestranha.

Puxei o edredom mais para cima, chutando-o quando ele não seesticou do jeito que eu queria e tentandonão invocar novamente a raivaquesentiramaiscedo,quandofaleicompapai.

— Estou de castigo. Não vou poder ir ao estúdio no domingo. —Seguiu-seumsilênciofúnebredooutroladodalinha.Fiqueiimaginandoacara de Sam, e isso doeu de uma forma meio dormente, pois eu haviapassado tempo demais inquieta, e essa inquietaçãome exaurira.—Vocêaindaestáaí?

AvozdeSamsooucorajosa,oquedoeumaisqueoseusilêncio.

—Possoremarcar—disseele.

— Ah, não!— objetei com veemência. E de repente a raiva a lorou.Tentei falar mesmo assim. — Vou com você no domingo, mesmo quepreciseimploraraeles.Dane-seseeutiverquesairescondida.Sam,estoutão furiosa que não sei o que fazer. Tenho vontade de sair correndo,agorinha.Nãoquero icaremcasacomeles.Deverdade,mefaçadesistir.

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Medigaquenãopossoirmorarcomvocê.Medigaquevocênãomequernasuacasa.

— Você sabe que não vou dizer isso — disse Sam com carinho. —Vocêsabequeeunãoteimpediria.

Fixei o olhar na porta fechada do quarto. Minha mãe — minhacarcereira— estava do outro lado. Dentro demim, eu ainda sentia umafebredoentia.Eunãoqueriaestarali.

—Entãoporquenãofaçoisso?—indagueinumtomagressivo.

Samficoucalado.Finalmente,emvozbaixa,falou:

—Porquevocêsabequenãoéassimquequerencerraressahistória.Vocêsabequeeuadorariatervocêcomigoequeumdiaissovaiacontecer.Masnãodessejeito.

Por algum motivo, meus olhos se encheram de lágrimas. Surpresa,enxuguei-ascomopunho.Eunãosabiaoquedizer.EstavahabituadaaserapragmáticaeverSamcomoimpulsivo.Senti-mesolitáriaemminhafúria.

—Eumepreocupeicomvocê—disseSam.

Eutambémmepreocupeicomigo,pensei,masemvezdissofalei:

—Estoubem.Realmentequerosairdacidadecomvocê.Quemderajáfossedomingo.

•SAM•

FoiestranhoouvirGracedaquelejeito.Eraestranhoestarali,sentadono carro com sua melhor amiga, enquanto Grace estava em casa,precisandodemimpelaprimeiravez.Eraestranhoquererdizeraelaquenãoprecisava ir comigoaoestúdioatéa situação seacalmar.Maseunãopodia lhedizernão.Nãopodia, isicamente,dizernãoaela.Ouvi-laassim,diferente de tudo que eu já a vira ser, me fez vislumbrar um futuro

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perigosoeadorávelsussurrandosegredosemmeuouvido.

—Eutambémqueriaquejáfossedomingo.

—Nãoqueroficarsozinhaestanoite—disseGrace.

Senti uma pontada no coração. Fechei os olhos e tornei a abri-los.Penseiementrarnacasadelaàsescondidas;penseiemlhedizerparasairàsescondidas.Meimagineideitadonomeuquarto,sobasgarçasdepapel,com o corpo morno dela colado ao meu, sem precisar pensar em meesconder de manhã, icando juntos conforme nos apetecesse. Então asaudadedoíaedoíacomaintensidadedessedesejo.

—Eutambémestoucomsaudade—ecoei.

—Ocarregadordo seucelular icouaqui—sussurrouGrace.—MeliguedenoitedacasadeBeck,viu?

—Estábem.

Depoisqueeladesligou,devolviotelefoneaRachel.Nãosabiaaocertooquehaviadeerradocomigo.Faltavamapenas48paraeuvoltaravê-la.Não era tanto tempo assim. Uma gota no oceano do tempo que seria anossavidajuntos.

Agora tínhamos todo o tempo do mundo. Eu precisava começar aacreditarnisso.

— Sam, você sabia que está com a cara mais triste que já vi? —perguntouRachel.

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CAPÍTULO19•SAM•

Depois queme despedi de Rachel, voltei para a casa de Beck. O diacomeçara ensolarado, não exatamente quente, mas promissoramenteestival.Eunãoconseguiamelembrardeumtempocomoesse.Faziatantosanosqueessaquaseprimaveramemantinhaprisioneirodeumcorpodeloboqueeradi ícil convenceramimmesmodequenãoseriaprecisomeagarraraoabrigodeumcarroaquecido.

Eunãoteriamedo.Acrediteemsuacura.

Fechei a porta do carro, mas não entrei na casa. Se Cole aindaestivesseali,eunãoestariapreparadoparaencará-lo.Emvezdisso,deiavolta até os fundos da casa, passei pela viscosa grama morta do anoanterior e entrei na loresta. Achei que era meu dever checar o abrigoparaversehavia lobos ládentro.Oprédio,enterradoaalgunsmetrosdaentrada da loresta atrás da casa de Beck, era um porto seguro para osnovos lobos e suas múltiplas transformações. Ali havia roupas, comidaenlatadae lanternas, alémdeumaparelhodeTV comvideocassete eumaquecedorquepodiafuncionarcomabateriadobarco.Tudoqueumnovolobovolátilprecisariaparasesentirconfortávelatéseassegurardequeamanutençãodesuaformahumanaestivessegarantida.

Às vezes, porém, um novo membro da alcateia voltava a setransformar em lobo ainda dentro do abrigo, rápido demais até mesmopara abrir a porta. Assim, um animal selvagem, escravo do instinto,acabava encurralado entre quatro paredes que cheiravam a humanos,mudançaeincerteza.

Eumelembreideumaprimaveraquandoeutinhanoveanoseaindame sentia relativamente inseguronapeledeum lobo.Odia amenohaviamedespidodapelelupina,medeixandonueenvergonhado,enrascadoemmimmesmona loresta comoumnovobrotodevegetação.Depoisdemecerti icar de que estava sozinho, tomei o rumo do abrigo, como Beckmeorientara a fazer. Meu estômago ainda doía, como acontecia entre as

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transformaçõesnessaépoca,oque fez comqueeumedobrasseemdois,com as costelas proeminentes grudadas às coxas, enquanto, agachado,mordimeudedoatéoespasmopassareeuconseguirmepôrdepéparaabriraportadoabrigo.

Levei um susto tremendo ao ouvir uma voz ao entrar. Passado umminuto,meucoraçãosossegouosu icienteparaqueeumedessecontadequeavozcantava.Quemquerque tivesseestadoaliporúltimodeixaraorádioportátil ligado.EnquantoElvis perguntava se eume sentia solitário,meocupeiemremexernacaixacomorótuloSam.En ieiumacalça jeans,masnãomedeiaotrabalhodeencontrarumacamisaantesdeiratrásdecomida.Abriumsacode salgadinhos, comabarriga roncando, agoraquesabia que logo estaria cheia. Sentado ali, com os joelhos ossudosencostadosaoqueixo,escuteiElviscantareconcluíqueasletrasdemúsicanãopassavamde outro tipodepoesia.No verão anterior,Ulrikme izeraaprender de cor poemas famosos— eu aindame lembrava da primeirametade de "Stopping by the Woods on a Snowy Evening". Tentei merecordar da segunda metade enquanto devorava o pacote inteiro desalgadinhosdemilho,naesperançademelivrardacólicanoestômago.

Noespaçodetempoqueleveipararepararqueamãoqueseguravaopacote de salgadinhos tremia, a dor na minha barriga evoluiu para oespasmodatransformação.Nãodeutempodealcançaraportaantesquemeus dedos se tornassem inúteis e rombudos e as minhas unhas,ine icazes contra a madeira. Meu último pensamento humano foi umalembrança: meus pais batendo a porta do meu quarto, a tranca sefechando com um ruído metálico, enquanto o lobo escapava de minhasentranhas.

Minhas lembranças lupinas erammaisdi íceisde identi icar,masmelembroqueleveihorastentandosairdoabrigonaqueledia.

FoiUlrikquemmeencontrou.

—Ah,Junge—exclamounumavoztriste,passandoamãonacabeçaraspadaenquantoolhavaao redor.Pisquei semexpressãoparaele,meiosurpresopornãosetratardaminhamãeoudomeupai.

—Háquantotempoestápresoaqui?

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Eu estava enrolado no canto do abrigo, encarando meus dedosensanguentados, o cérebro emergindo lentamente dos pensamentos deloboeidenti icandofragmentosdeideiashumanas.Lixeirasesuastampasse achavam espalhadas pelo abrigo, o rádio jazia no piso, com o ioarrancado da parede. Havia sangue seco no chão, e, nele, pegadashumanas e de lobo. Os salgadinhos e o revestimento da porta tinhamviradoumaespéciedeconfete,cercadosdepacotesrasgadosdebiscoitosesalgados,cujoconteúdopermaneciaabandonadoeintacto.

Ulrikatravessouoaposento,asbotas rangendode levesobreaareiaina das batatinhas, e parou a meio caminho quando me encolhi. Minhavisão dançou, me mostrando alternadamente o abrigo revirado e o meuvelhoquarto,repletoderoupasdecamaespalhadaselivrosrasgados.

Ulrikestendeuumadasmãosparamim.

—Vamos,levante.Vamosentrar.

Mas não me mexi. Olhei novamente para minhas unhas rombudas,com farpas ensanguentadas. Eu estava perdido no pequeno mundo dosmeus dedos, no desenho formado pe- l.is espirais delicadamentedestacadasemvermelho,tendoumúnico iodepelo lupinopresonomeusangue.Meuolhardesviou-separaasnovascicatrizesempoladasemmeuspulsos,manchadasdeescarlate.

—Sam—disseUlrik.

Não ergui os olhos. Eu gastara todas as minhas palavras e toda aminhaforçatentandosaireagoranãoconseguiameobrigaraficardepé.

—NãosouBeck—acrescentou,numtomimpotente.—Nãoseioqueele fazpara tirarvocêdisto,Ok?Nãosei falara sua língua, Junge.Noquevocêestápensando?Olheparamim.

Ele estava certo. Beck tinha um jeito de me trazer novamente àrealidade, mas não estava ali. Ulrik inalmente me pegou no colo, meucorpo inerte como o de um cadáver em seus braços, e me carregou devoltaparacasa—mesmoentão,euaindanãosabiasehaviamsepassadohorasoudias.

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Becknãoveiodiretoatémim.Emvezdisso, foiàcozinhaemexeuemalgumaspanelas.Quandovoltouàsala,ondeeumeesconderanocantodosofá,trazianamãoumpratocieovos.

—Prepareialgoparavocê—disseele.

Os ovos estavam do jeito que eu gostava. Olhei para eles, em vez defitarBeck,esussurrei:

—Desculpe.

—Não temporque sedesculpar—disseBeck.—Vocênão sabiaoque estava fazendo. EUlrik era o único que gostava daquela porcaria deDoritos.Vocêfezumfavoratodosnós.

Elecolocouopratoaomeu ladonosofáesedirigiuaoseuescritório.Passado um minuto, peguei os ovos e atravessei, silenciosamente, ocorredor, atrás dele. Sentado no chão do outro lado da porta aberta doescritório, ouvi, enquanto comia, o errático tamborilar dos dedos deBecknoteclado.

Issofoinaépocaemqueeuaindaestavamuitomal.NaépocaemqueeuachavaqueteriaBeckparasempre.

—Oi,Ringo.

AvozdeColemetrouxedevoltaàrealidade,anosmaistarde,eeunãoeramaisummeninodenoveanosorientadoporguardiõesbenevolentes.Eleestavaaomeuladoquandoolheiparaaportadoabrigo.

— Vejo que você continua humano — falei, mais surpreso do queexpressavaestar.—Oqueestáfazendoaquifora?

—Tentandometransformaremlobo.

Um arrepio desagradável percorreu minha pele, à medida querecordavaa lutaparacontero lobo interior;obolonoestômagoantesdatransformação; a sensação doentia no instante em que me perdia. Nãorespondi. Em vez disso, empurrei a porta do abrigo e procurei ointerruptorde luz.O lugar cheiravaamofo, a faltadeuso. Lembranças e

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partículas de pó pairavam no ar viciado. Atrás de mim, um passarinhorepetiuváriasvezesseupiocantante,mas,foraisso,nãohaviasomalgum.

—Entãoestaéumaótimahoraparasefamiliarizarcomestelugar—disseeu.

Entrei no abrigo, meus sapatos fazendo o barulho de quando secaminhanapoeirasobreochãodemadeiragasta.Tudocontinuavaemseudevidolugar—oscobertorescuidadosamentedobradosaoladodaTVnostand-by, o bebedouro cheio até a borda, com canecas alinhadasobedientemente atrás, à espera da sua vez. Tudo aguardando lobosprestesasetransformarememhumanos.

Cole entrou atrás de mim, olhando para as caixas e suprimentos aoseu redor com um interesse vago. Tudo nele transmitia desdém e umaenergiainquieta.Tivevontadedelheperguntar:OquefoiqueBeckviuemvocê?Emvezdisso,indaguei:

—Eraistoquevocêesperava?

Cole abrira uma das caixas e examinava o conteúdo. Não desviou oolharparaperguntar:

—Oquê?

—Serumlobo.

—Euesperavaque fossepior—respondeuele, olhandoagoraparamimesorrindosorrateiramentecomose soubesseoqueeusofreraparadeixardeserum.—Beckmedissequeadorerainsuportável.

Pegueidochãoumafolhasecaquehavíamostrazidonospés.

—Bom,adornãoéapartedifícil.

—Ah,não?—OtomdeColefoimordaz.Eracomosequisessequeeuoodiasse.—Então,qualéapartedifícil?

Virei-lheascostas.Nãoerameudesejoresponder.Acheiqueelenãoseimportariacomapartedifícil.

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Beck o escolhera. Eu não iria odiá-lo.Não iria. Beck com certeza viraalgoali.Finalmente,falei:

—Teveumanoemqueumdoslobos,Ulrik,decidiuqueeraumaboaideia plantar ervas italianas em vasos. Ulrik vivia fazendo esse tipo demaluquice.

Eu me lembrei dele cavando buracos na terra do vaso e jogandosementes ali — coisinhas minúsculas, com aparência de mortas,desaparecendona terranegra. "Isso temque funcionar, droga",medissecerta vez, num tom amistoso. Eu passara o tempo todo grudado nele,observando,atrapalhando,meafastandoapenasquando,semquerer,seucotovelo me cutucava o peito. "Nossa, Sam, você está em cima de mim!",diziaele.

— Beck achou que Ulrik tinha enlouquecido. Argumentou que ummolhodemanjericãocustavadoisdólaresnamercearia—conteiaCole.

Cole ergueuumadas sobrancelhas, deixando claro que estava sendoindulgentecomigo.

Ignoreiaexpressãoedisse:

— Vigiei as sementes de Ulrik diariamente durante semanas,esperandoverumpouquinhodeverdesurgirnaterra,qualquercoisaqueindicassequealihaviavidaprestesanascer.Estáaí,essaéapartedi ícil.Estou aqui no abrigo, esperando para ver se as minhas sementes vãoemergirdaterra.Nãoseiseécedodemaisparaprocurarsinaisdevidaouse,destavez,oinvernoterálevadoparasempreaminhafamília.

Colemeencarou.Odesprezosumiradoseurosto,maselenadadisse.Suaexpressãotinhaumquêdevazio,algoquemedeixousemreação,eeutambémfiqueicalado.

Não fazia sentido continuar ali. Dei o último passo, enquanto Colepermanecianoabrigo,checandoascaixasdecomidaparaseassegurardeque nenhum inseto entrara nelas. Fiquei um instante parado, os dedosenganchados na beirada da caixa de plástico, ouvindo. Não sabia o queesperavaouvir,poissóhaviasilêncio,silêncioemaissilêncio.Atéopássarodoladodeforadaportaaindaabertasecalara.

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Fingindo que Cole não estava ali, agucei meus ouvidos como faziaquandoeralobo,tentandocriarummapadetodasascriaturasexistentesnaflorestapróxima,bemcomodossonsqueelasfaziam.Masnadaouvi.

Emalgumlugar,havialobosnaquela loresta,masparamimeleseraminvisíveis.

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CAPÍTULO20•COLE•

Hucomeçavaaperderocontrolesobremeucorpohumano,eissomedeixoufeliz.

Sammeincomodou.Eutinhaumpunhadodepersonasdiferentesque,bemoumal,acabavamservindoparatodasaspessoasqueeuencontrava,mas nenhuma delas parecia correta para Sam. Ele era dolorosa eaborrecidamentehonesto.Comoeudeveriareagiraisso?

Assim,sentialívioquandovoltamosdoabrigoeeleavisouqueiasair.

—Euconvidariavocê,maslogovocêvaisetransformar.

Não informou, porém, como chegara a essa conclusão, mas suasnarinas estremeceram de leve, como se pudessem me farejar. Algunsinstantesdepois,omotoradieseldoseuVolkswagenroncouruidosamenteao passar pelo portão, me deixando sozinho numa casa cujo humor sealteravacomopassardodia.Atarde icounubladaefria,e,derepente,acasa já não era um refúgio confortável, mas um agourento labirinto dequartos sombrios, que pareciam saídos de um delírio febril. Da mesmaforma,meucorponãoeraconsistentementehumano—mas tambémnãoera de lobo. Em vez disso, não passava de um território estranho,intermediário: corpo humano, cérebro de lobo. Lembranças humanasvistas pelos olhos de um lobo. A princípio, vaguei pelos corredores, asparedes se fechando sobre mim, sem acreditar por completo nodiagnóstico de Sam. Quando inalmente senti um vislumbre detransformação no âmago dos meus nervos, parei diante da porta dosfundos escancarada e esperei que o frio me levasse. Mas ainda não erahora.Porisso,fecheiaportaedeiteinaminhacamaemprestada,sentindooataquedanáuseaeoarrepioemminhapele.

Graçasaodesconforto,meviintensamentealiviado.

Eutinhacomeçadoaacharquenãovoltariaametransformaremlobo.

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Masaqueleintervaloinfernal...Melevantei,caminheinovamenteatéaporta, iquei de pé no vento gélido. Passados dezminutos, desisti e volteipara o sofá, me enroscando ao redor do torvelinho do meu estômago.Minha mente disparou através dos corredores cinzentos, embora meucorpopermanecesseimóvel.Atravesseimentalmenteocorredor,passandoporquartosdesconhecidosemtonsdepretoebranco.SentiaclavículadeIsabel sob a minhamão, vi minha pele perdendo a cor enquanto eu metransformavaem lobo, sentiomicrofoneentremeusdedos,ouviavozdomeupaieoviameencarardooutroladodamesadejantar.

Não. Qualquer lugar, menos a minha casa. Eu deixaria que minhaslembrançasmelevassemaqualquerlugar,menosesse.

***

AGORAEUESTAVANOESTÚDIO fotográ icocomosdemaismembrosda NARKOTIKA. Era a nossa — quer dizer, minha — primeira grandematériaderevista.Otema:"Históriasdesucessodemenoresdeidade".Opôster:eu.OrestantedaNARKOTIKAnãopassavadeelencodeapoio.

Não estavam nos fotografando no estúdio propriamente dito. Ofotógrafo e sua assistente haviam nos levado até uma escada do velhoprédio, tentando captar o clima damúsica da banda ao arrumar o gruponas sacadas e em diferentes degraus da escada. A escada cheirava aoalmoçodeoutrapessoa—pedaçosdebacon falsoeummolhode saladaque ninguém jamais pediria, além de um tempero misterioso que podiamuitobemnãopassardechulé.

Eu estava saindodeumaviagem.Não tinha sido aprimeira,mas eratudo bastante recente. Essas viagens novinhas em folha me faziamembarcar num voo de euforia que ainda me deixavam meio culpadodepois.Acabaradeescreverumatiasminhasmelhoresmusicas—"BreakmyFace(andSellthePieces)",queviriaasetornarosinglemaisvendido—e estava de ótimo humor.Meu humor estariamelhor ainda se eu nãoprecisasse estar ali, pois meu desejo era inspirar o ar lá fora, denso depoluição,decheirodecomidaedetodososaromasurbanosexcitantesque

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mecomprovavamqueeueraalguém.

— Cole. Cole. Ei, espertalhão. Dá pra icar parado? Junto do Jeremy,olhando para cá. Jeremy, você olha pra ele — instruiu o fotógrafo, umsujeito pançudo, demeia-idade e com um cavanhaque irregular, que iriame incomodar o dia todo. A assistente era uma ruiva de vinte e poucosanosquejásedeclararaparamime,porisso,tornara-sedesinteressante.Aos 17 anos, eu ainda não havia descoberto que um sorriso sarcásticopodiafazerasgarotastiraremaroupa.

— Continuo olhando— falou Jeremy. Parecia semiadormecido, comosempre. Victor, do lado oposto, sorria para o chão, exatamente comomandaraofotógrafo.

Eunãoestavacurtindoa foto.ComoéquefotografaragenteolhandodeumbalcãocomoemqualquerdisquinhodosBeatlesiriacombinarcomosomdaNARKOTIKA?Por isso,balanceia cabeçae cuspi ládecima.Emseguida, o lash do fotógrafo pipocou, e ele e a assistente consultaram ovisor da câmera, icando chateados. Mais um lash. Mais uma carachateada.Ofotógrafoveioatéondeestávamose icouseisdegrausabaixo.Numtomadulador,disse:

— Tudo bem, Cole, que tal alguma coisa mais animada? Que tal umsorriso?Pensenumacoisaboa.Umsorrisocomooquevocêdariaparaasuamãe.

Erguiumasobrancelhaemepergunteiseeleestavafalandosério.

Aparentemente,ofotógrafoteveuminsight,poisalteouavozaodizer:

—Imaginequeestánopalco...

—Vocêqueranimação?—perguntei.—Porquenãoénadadisso.Avidaé inesperada.Feitaderiscos.ANARKOTIKAé issoaí,enãoumafotodaturmadeescoteiros.É...

Esalteiemsuadireção.Voeidaescada,comosdoisbraçosestendidos.Vi o pânico se instalar em seu rosto no instante em que a assistentelevantouacâmeraeoflashmecegou.

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Caísobreumpésóeroleideencontroàparedede tijolosdaescada,às gargalhadas. Ninguém me perguntou se eu estava bem. Jeremybocejava,

Victor me fez um gesto obsceno, e o fotógrafo e a assistente davamgritosdiantedovisor.

—Umpoucode inspiração— faleipara todos, antesdeme levantar.—Denada.

Nemdorsenti.

Depoisdisso,deixaramqueeu izesseoquequeriaduranteorestodasessão.Assoviandoecantandominhamúsicanova,euos izsubiredesceraescada,empurrandocomosdedosaparede,comoseestivesseprestesaderrubá-la; desci comeles até o lobby, onde subi numvasode plantas, edepois saí para o beco, onde pulei no teto do carro que nos trouxera dohotel,deixandomarcasparaqueoveículoselembrassedemim.

Quandoofotógrafoencerrouotrabalho,aassistenteseaproximoudemimepediuparaeulhedaramão.Estendi-acomapalmaparacima,eelaa puxou de forma a apontá-la para o céu. Depois anotou seu nome etelefoneali,enquantoVictorassistiaatudologoatrásdela.

Victormeagarroupeloombroassimqueamoçavoltouparadentrodoprédio.

— E a Angie?— perguntou, com ummeio sorriso no rosto, como sesoubessequeeulhedariaarespostacerta.

—Oquetemela?

O sorriso desapareceu, e ele segurou com força a mão onde estavaanotadootelefone.

—Achoqueelanãovaigostarnadadisso.

—Cara,issonãoédasuaconta.

—Elaéminhairmã.Edaminhaconta,sim.

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Aconversarealmentecomeçavaaestragarmeubomhumor.

—Então, é o seguinte:Angie e eu terminamos. Terminamoshá tantotempo que o fato já faz parte da História. E continua não sendo da suaconta.

—Canalha—disseVictor.—Vocêvaidaroforanelaassim?Arruinaavidadaminhairmãesimplesmentesemanda?

Meu bom humorjáera. Comecei a achar que estavanahorade umaagulha,umacervejaouumagilete.

—Olhaaqui,eupergunteiaela,eeladissequepreferiaacabar.

—Evocêacreditou?Quersaber?Vocêseachaomáximo.Vocêeasuamalditagenialidade.Achaquevaiviverassimparasempre?Ninguémvaise lembrar da sua cara quando você tiver vinte anos. Ninguém vai selembrardevocê.

Apesar da discussão, Victor estava se acalmando. Já tinhapraticamente dado im à conversa. Se eu tivesse pedido desculpas ou aomenosficadocalado,provavelmenteeledariameia-voltaeiriaparaohotel.

Espereiumsegundoe,então,falei:

—Aomenosasgarotasmechamampelomeunome,cara.—Observeio rosto dele, com uma expressão de desprezo nomeu.—Aomenos nãosousempreo"bateristadaNARKOTIKA".

Victormedeuum soco. Foi umbom soco,mas não o seumelhor.Dequalquer forma, continuei de pé, embora achando que meu lábio haviasido cortado. Ainda conseguia sentir meu rosto e me lembrar do queestávamosfalando.Olheiparaele.

Jeremy surgiu a seu lado, provavelmente atraído pelo somdo punhode Victor encontrando minha cara, o que não fazia parte das nossasdiscussõeshabituais.

— Não ique parado aí! — gritou Victor, desferindo um novo soco,agoranamandíbula.Dessavez,euperdioequilíbrio.—Vempracimade

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mim,seubabaca,vem!

—Rapazes...—disseJeremy,semsemexer.

Victor investiu sobre o meu peito com o ombro, noventa quilos deraiva reprimida, e dessa vez desabei no chão, a umpedacinho de asfaltopinicandoasminhascostas.

—Vocêéumdesperdíciodeespaço.Vocêachaqueomundogiraaoseuredor,seumauricinho.

Eleagoramechutava,eJeremyassistiadebraçoscruzados.

—Jáchega—falouJeremy.

—Eu.Quero.Arrancar.Esse.Sorriso.Da.Cara.Dele—insistiuVictorentre os chutes. Ele já estava sem fôlego, e, inalmente, um dos golpes odesequilibrou,derrubando-onochãoaomeulado.

Levantei os olhos para o retângulo de céu branco acinzentado acimadenós,emolduradopelosedi íciosescuros.Então,sentiosangueescorrerdomeunariz. Pensei emAngie ena sua expressãoquandomedissequepreferia icarsozinha,edesejeiqueelativessevistoVictormedaraquelasurra.

Acimademim, Jeremy apontou a câmerado celular e tirouuma fotodenósdoisdeitadosnoasfaltodeumacidadequalquerde cujonomeeunemconseguiamelembrar.

Três semanas depois, a foto em que eu voava da escada, enquantoJeremyeVictormeobservavam,chegouàsbancaseàcapadarevista.Meurostoestavapor todo lado.Ninguémiriameesquecer tãocedo.Euestavaemtodososlugares.

***

MAIS PARA O FINAL DA tarde, deitado no chão da casa de Beck, a

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transformação tornou-se urgente dentro de mim. Sua insistência era tãogrande que me dei conta de que a náusea anterior não passara de umingimento em nada semelhante à verdadeira, que isgava e rasgavaminhasentranhas.Volteiatéaportadosfundoseaabri, icandodepéalicontemplando a grama. A temperatura do lado de fora eslavasurpreendentemente amena, sem muitas nuvens no céu, embora aeventualbrisacortantemelembrassedequeaindaeramarço.Dessavez,quando uma lufada gélida de vento soprou, ela transpassou meu corpohumano, chegando ao lobo em seu interior. Minha pele se arrepiou porcompleto.Saíparaavarandadeconcretoehesitei, imaginandosedeviairatéoabrigoedeixarminharoupa lápara facilitaraminhavidadepois.Alufadaseguinte,porém,fezcomqueeumedobrassecomtremores.Eunãoconseguiriachegaraoabrigo.

Meuestômagoroncavaesecontraía.Meacocoreieaguardei.

A transformação, porém, não foi imediata, como acontecera antes.Tendo permanecido humano durante quase um dia inteiro, meu corpoestava mais seguro de sua forma e aparentemente não pretendia abrirmãodelacomfacilidade.

Vamos,mude,pensei,enquantooventomeprovocavamaisumacrisedetremores.Meuestômagoserevolveu.Tenteimelembrarseeraapenasuma reação ao processo de transformação. Eu não precisava vomitar. Seresistisseaoimpulso,dariatudocerto.

Apertei os dedos de encontro ao concreto frio, ansiando para que ovento me transformasse em lobo. Do nada, me lembrei do telefone deAngieesentiumdesejoirracionaldevoltarláparadentroeligarparaela,só para ouvi-la dizer alô e depois desligar. Imaginei o que Victor estariapensandoagora,apóstudoisso.Meupeitodoía.

Metiredestecorpo.MelivredeCole,pensei.

Masessaeraapenasmaisumacoisaforadomeucontrole.

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CAPÍTULO21•GRACE•

Naquela noite, não vi nenhuma diferença na minha cama sem Sam.Não vi nada estranho na forma do colchão. Os lençóis não pareciammaiores semele.Nãomesentimenos cansada semo somregularda suarespiração e, no escuro, não dava para identi icar a ausência dos seusombros espadaúdos a meu lado. O travesseiro ainda conservava seucheiro,comoseeletivesseselevantadoparapegarumlivroeseesquecidodevoltar.

Masissofaziatodaadiferença.

Meuestômagodoía,umecodadordanoiteanterior.Encosteiorostono travesseiro de Sam e tentei não me lembrar das noites em que eupensaraqueelehaviasumidoparasempre.Imaginando-onacasadeBeck,me virei na cama e peguei o celular. Porém, não digitei seu número,porque, estupidamente, só conseguia pensar emnós dois deitados lado alado e em Sam, trêmulo, dizendo: Talvez tenhamos que repensar o nossoestilodevida.Então,penseinelemepedindopara icaremcasa,paranãocorreraoseuencontro.

Talvez Sam se sentisse contente por estar na casa de Beck, por terumadesculpapara icarsozinho.Talveznão.Eunãosabia.Mesentiamal,mal, mal, de um jeito novo e terrível, indescritível. Queria chorar e meachavabobaporisso.

Boteiocelulardevoltanamesinha,torneiadeitarnotravesseirodeleefinalmenteadormeci.

•SAM•

Eueraumaferidaaberta.

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Inquieto, vagueipelos corredoresda casa, querendo ligarnovamenteparaela,mascommedodecausarproblemas,medodealgumacoisasemnome e monstruosa. Andei para lá e para cá até me sentir demasiadoexaustopara icardepé,eentãofuiparaomeuquarto.Semacenderaluz,caminheiatéacamaemedeitei,obraçoestendidosobreocolchão,amãodoendopornãoestarpousadaemGrace.

Meuspensamentos supuravamemmim.Não conseguidormir.Minhamentedesviou-sedolugarvazioaomeuladonacamaetransformoumeuspensamentosemletrasdemúsica,meusdedos imaginandoascordasqueprecisavamdedilharparaacharamelodia.

Sou uma equação cuja solução só ela sabe/feita de Xs e Ys por outrosnomes chamados/Meu talento para dividir está de initivamentecomprometido/quandosemultiplicamosdiassemqueelaestejacomigo.

Com o passar vagaroso daquela noite interminável, enquantoinúmeros minutos se amontoavam sem chegar a lugar algum, os loboscomeçaram a uivar e minha cabeça a latejar. Essa era uma das dorescrônicasqueameningitemedeixaradeherança.Ali,nacasavazia, iqueideitado ouvindo os uivos do bando crescerem e diminuírem no ritmo dapressãonomeucrânio.

Eu arriscara tudo e, com isso, nada ganhara além de minha mãoaberta,estendidaevazia,comapalmavoltadaparaoteto.

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CAPÍTULO22•GRACE•

—Voudarumavolta—disseeuamamãe.

Nenhum dia da minha vida custara tanto a passar quanto aquelesábado. Vez ou outra, quando eu era mais nova, desfrutar de um diatodinho com aminhamãe em casame enchia de euforia. Agora issomedeixava inquieta, como se estivesse recebendo um hóspede. Na verdade,elanãomeimpediadefazercoisaalguma,mas,poroutrolado,eutambémnãosentiavontadedecomeçarnadacomelaporperto.

Nomomento,mamãeseencontravaadoravelmenteenros-cadanumapontadosofá,lendoumdoslivrosqueSamesqueceraláemcasa.Quandoouviuminhavoz,suacabeçavirou-sedeprontoeocorpotodoenrijeceu.

—Vocêoquê?

— Vou dar uma volta— repeti, tentada a lhe arrancar das mãos olivrodeSam.—EstoudesacocheioequerofalarcomSam,masvocêsdoisnãodeixam.Alémdisso,precisofazeralgumexercício,senãovoucomeçaraatirarcoisasnomeuquartocomoummacacoenfurecido.

A verdade é que, sem aulas e sem Sam, eu precisava sair. Semprehaviafeitoissonosverõesantesdele—escapadoparaobalançodepneuno quintal, com um livro em mãos, precisando que som da lorestapreenchesseoespaçovazioerevoltodentrodemim.

—Sevocêderumademacaco,nãovouarrumarseuquarto—avisouela.—Evocênãopodesair.Hádoisdiasestavanohospital.

—Porcausadeumafebrequejápassou—observei.Logoatrásdela,dava para ver o céu intensamente azul e cálido, e, sob ele, os ramosprenhesdasárvoresseerguendoparaoazul.Todoomeuseransiavaporestar do lado de fora, sentindo o aroma da primavera iminente. Emcomparação,asalapareciacinzentaemuda.

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— Além disso, vitamina D é ótimo para quem está doente como eu.Nãodemoro.

Como ela não disse nada, encontrei minhas galochas onde as haviadeixado e as calcei. Enquanto isso, o silêncio pairava entre nós duas,abordando demaneiramais intensa o que acontecera do que as poucaspalavrasquehavíamostrocado.

Mamãepareciaprofundamenteconstrangida.

—Grace,achoqueprecisamosconversar.Sobre...SobrevocêeSam.

—Ah,não.

Minhavoztraduziuexatamenteomeuentusiasmocomasugestão.

— Também não quero fazer isso— disse ela, fechando o livro semmarcar a página, o que novamenteme fez lembrar de Sam, que semprechecava a paginação ou fechava temporariamente o livro com um dedo,antesdeerguerosolhosparafalar.

Mamãeprosseguiu:

—Masprecisoconversarcomvocêsobre isso.Alémdomais,sevocêconversar comigo, eudigo a seupai que vocênão vai precisar conversarcomele.

Nãoviporqueeuprecisavaconversarcomqualquerumdosdois.Atéagora,ambos jamaishaviamse importadocomoqueeufaziaouaonde iana ausência deles, e, dali a um ano, eu entraria na universidade ou, nomínimo, deixaria demorar sob omesmo teto. Pensei emdar no pé;mas,emvezdisso,cruzeiosbraçoseaencarei,aguardando.

Mamãefoidiretoaoassunto.

—Vocêsestãoseprotegendo?—indagouela.

Meurostocorou.

—Mãe!

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Maselanãoseintimidou.

—Estão?

—Estamos,masnãosetratadisso.

Mamãeergueuumasobrancelha.

—Ah,não?Trata-sedequê,então?

—Euquisdizerquenãoésóisso.E...—Luteiparaencontrarpalavrasparameexplicar,parafazê-laentenderporquesuasperguntaseseutommedeixaraminstantaneamenteenfurecida.—Querdizer,elenãoésóumgaroto,mãe.Nós...

Porém, não soube como terminar meu pensamento com ela meolhando ixamentecomasobrancelhaerguida, incrédula.Nãosoubecomopoderia falarde coisas comoamoreparasempre, emedei conta, então,dequenãoqueriamesmofalardissocomela.Essetipodeverdadeéalgoqueseescutapormerecimento.

—Vocês o quê? Estão apaixonados?—O jeito como ela falou aquiloamesquinhou tudo.—Você tem17 anos, Grace. Ele temquantos, 18?Háquantotemposeconhecem?Meses.Olhe,vocênuncatevenamorado. Issoédesejo.Dormirjuntonãosignificaestarapaixonado.Significaterdesejo.

—Vocêdormecomopapai.Vocêsnãoestãoapaixonados?

Mamãerevirouosolhos:

—Nóssomoscasados.

Porqueeumedavaaessetrabalho?

—Toda essa conversa vai parecerumbocado tolaquandoSame euvisitarmosvocêsnasdatasfestivas—faleicomfrieza.

— Sinceramente, espero que sim— respondeumamãe. Em seguida,sorriude leve,comoseaconversanãopassassedeumpapobanal, comoseestivéssemosapenascombinandoumprogramademãee ilha.—Masduvido que algum dia nos lembremos disso. Sam provavelmente será

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apenas uma foto de formatura. Lembro de como eu era aos 17 anos.Acredite, não era amor o que pairava no ar. Felizmente para mim, tivejuízo.Docontrário, talvezvocê tivesse irmãozinhos.Eume lembrodequenasuaidade...

—Mãe!—gritei,orostovermelho.—Nãosouvocê.Nãotenhonadaaver comvocê. Vocênão faz ideia do que se passa naminha cabeça ou decomoelafunciona,nemseestouounãoapaixonadaporSamevice-versa.Porisso,nemtenteteressaconversacomigo.Nem...Argh!Quersaber?Pramimchega.

Peguei omeu celular proibido em cima da bancada da cozinha, vestimeu casaco e saí. Fechei a porta dos fundos ao passar e fui embora semolharpara trás.Gritar commamãedeveria termedeixado comsensaçãodeculpa,maseunãosentiaumátimodearrependimento.

MinhasaudadedeSameratãograndequechegavaadoer.

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CAPÍTULO23•SAM•

Quandoencerreioexpedientenalivraria,odiaestavaestranhamentequente, mais quente ainda do que na véspera. O sol aqueceu minhasbochechasquandovolteiparaacasadeBeckeabriaportadocarro.Descie estiquei as mãos o máximo que consegui, fechando os olhos até ter aimpressão de estar caindo. Entre lufadas de vento, o ar à minha voltaparecia teramesmatemperaturadomeucorpo,easensaçãoeradequeeunãotinhapeleeestavasuspensonoar,umespírito.

Nos arbustos em torno da casa, os pássaros, convencidos de queaquela tarde representava a volta de initiva da primavera, estridulavamanimadas canções de amor uns para os outros. Uma canção cresceutambém em mim e esbocei a letra silenciosamente com a boca,experimentandoseusabor.

Sejaqualforaestação,ouçoospássaros

cantaremearrulharemcelebrandooamor

Quandoestoucomvocêpareceinsensato

invejarqualquerpassarinhocantor.

Lembrei-medosdiasamenosdeprimaveraqueantescostumavammedespir da pele de lobo, dias emque eu exultava de alegria por termeusdedosdevolta.

Nãopareciacertoestarsozinhonaquelemomento.

Euiriachecaroabrigodenovo.AindanãotinhavistoColenaqueledia,massabiaqueeledeviaestaremalgumlugar,humano,porcausadaquela

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temperatura. Aliás, fazia calor su iciente para ao menos um dos novoslobos ter se transformado também. Além disso, tratava-se de algopragmático a se fazer, em vez de vagar em círculos dentro de casa,esperandopelodiaseguinte,imaginandoseeuiriamesmoaoestúdioeseGracerealmentemeacompanharia.

Para completar,Grace iriagostarde saberqueeuestavadeolhoemOlívia.

Assim queme aproximei, vi que havia alguém no abrigo. Pela portaescancarada, ouvi o movimento lá dentro. Meu olfato não chegava nemperto do que havia sido quando era lobo,masmeu nariz aindame diziaquequemquerqueestivesseali eraumdenós.Oaromaalmiscaradodobando era apenas parcialmente disfarçado pelo odor de suor humano.Comolobo,euseriacapazdedizerexatamentequemembrodaalcateiaseencontravanoabrigo.Agora,comohumano,estavacego.

Porisso,fuiatéaportaebatitrêsvezescomasjuntasdosdedos.

—Cole?Tudobemaídentro?—perguntei.

—Sam?—AvozdeColesoou...aliviada?Aquiloeraestranho.Ouvioruído de garras arranhando alguma coisa e depois um gemido. Senti ospelinhosatrásdomeupescoçosearrepiarememalerta.

—Está tudo bem?— indaguei, empurrando cautelosamente a porta.Noabrigo,ocheirodelobodominavaoambiente,comoseescorressepelasparedes.PrimeiroviCole,vestido,empéaoladodascaixas,umdosdedosnos lábios em um gesto hesitante. Depois, segui seu olhar até o canto doabrigoeviumsujeitoenroscado,cobertoparcialmenteporumacolchadelãazulforte.

—Queméaquele?—sussurrei.

Coleafastouodedodabocaedesviouoolhar.

—Victor—respondeucomapatia.

Aosomdeseunome,osujeitovirouorostoparanosolhar.Tinhaumcabelo castanho-claro, cacheado e embaraçado emoldurando o rosto.

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Talvez alguns anos mais velho que eu. Minha cabeça imediatamenteretornouàúltimavezemqueovira:sentadonatraseiradoTahoedeBeck,os pulsos amarrados, o olhar ixo em mim e os lábios silenciosamenteformandoapalavrasocorro.

—Vocêsseconhecem?—indaguei.

Victorfechouosolhos,seusombrosestremecerameeledisse:

—Eu...Esperem...

Enquanto pisquei, ele se transformou em um lobo cinza-claro commanchas escuras. Aquela era a mudança mais rápida que eu játestemunhara em algum de nós. Não foi propriamente tranquila, masfuncionou naturalmente, como uma cobra descartando sua pele ou umacigarra saindo da concha frágil que antes a abrigava. Sem vômitos. Semdor.Semaagoniadetodasastransformaçõesqueeujáviraouvivenciara.

Olobosesacudiu,afofandoopeloemeolhandobelicosamentecomosolhoscastanhosdeVictor.Comeceiameafastardaportaparalhefacilitarasaída,masColeinterveio,numavozestranha:

—Nãosedêotrabalho.

Então, como se programado, o lobo sentou-se pesadamente sobre aspatas, com as orelhas tremendo. Bocejou, choramingando, e todo o seucorpoestremeceuviolentamente.

Cole e eu desviamos o rosto aomesmo tempo, bem nomomento emque, ruidosamente, Victor engoliu em seco e voltou a assumir sua formahumana. Simples assim. Eu não conseguia entender. Pelo canto do olho,percebi que ele puxava a colcha. Mais pelo calor do que porconstrangimento,supus.

—Cacete!—exclamouVictorbaixinho.

Olhei para Cole, cujo rosto estampava uma expressão absolutamentevazia.Peloqueeupercebiaagora,essaexpressãocostumavaacompanharqualquerassuntoimportante.

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—Victor?—chamei.—SouoSam.Vocêselembrademim?Eleestavaagachado agora, balançando-se para frente e para trás nos calcanhares,comosenãosoubesseaocertosesentavaouseajoelhava.Isso,juntocomoformatodesuaboca,meindicaramqueelesentiador.

—Nãosei.Achoquenão.Talvez—falou.LançouumolharparaCole,quepiscoudeleve.

—Bom, sou o ilho deBeck—expliquei. Razoavelmente próximodaverdadeemaisdiretoaoponto.—Vouajudá-lo,sepuder.

•COLE•

SamestavalidandocomVictorbemmelhorqueeu.Eusó icavadepéàporta,esperandoparadeixá-losairseeleconseguissepermanecerlobo.

—Issofoi...Comovocêsetransformoutãorápido?—perguntouSamaele.

Victor fezumacareta,olhandoparaSam,depoisparamimedenovoparaSam.Davaparaverqueele faziaumenormeesforçoparamanteravozfirme.

—Épiorquandometransformoemhumano.Demimparaloboéfácil.Fácil demais, cara. Fico virando lobo mesmo quando está quente. E issoqueprovoca,certo?

—Atéagora,esteéodiamaisquentequetivemos—respondeuSam.—Nãodevecontinuarassimduranteorestodasemana.

—Credo!—exclamouVictor.—Nãoacheiqueseriadessaforma.

Samolhouparamimcomoseeu tivessealgumacoisaavercom isso.PegouumacadeiradobrávelesesentoudiantedeVictor.Derepente,eleme lembrou Beck. Tudo nele transparecia interesse, preocupação esinceridade, da curva dos ombros à posição das sobrancelhas acima dos

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olhospestanudos.NãomeocorreusehaviasidoessaaexpressãocomqueSammeolharadaprimeiravez.Nãomeocorreuoqueeu lhedisseraemprimeirolugar.

—Essaéaprimeiravezquevocêvoltouaserlobo?—perguntoueleaVictor.

Victorassentiu.

—Aomenosqueeumelembre.

Então ele olhou para mim, e me descobri muito consciente do meucorpo humano. Eu estava meramente ali, sem dor, sem ser lobo,simplesmenteali,depé.

Sam prosseguiu, como se a coisa toda não passasse de um passeiosimples,perfeitamentenormal.

—Estácomfome?

—Eu...—começouVictor.—Espere,eu...

Evoltouaserumlobo.

Pude ver, pela expressão chocada de Sam e pela forma como eleapertouumadas sobrancelhas comumdedo, que aquilonãoeranormal.Issofezcomqueeumesentisseligeiramentemelhorquantoaacharqueasituaçãotodaestavapra láde ferrada.Victor,o lobo,observavaaporta,amimeaSam,comasorelhasalertaseaposturarija.

Encarei Victor e me lembrei de ter dito, sentado no quarto do hoteldepoisdeconhecerBeck:Estáprontoparaopróximograndepasso,Vic?

—Cole—disseSam,semdesviaroolhardeVictor.—Quantasvezesforam?Háquantotempovocêestáaqui?

Deideombros,tentandoparecernãomeimportarmuito.

—Meia hora. Ele não parou de se transformar o tempo todo. Isso énormal?

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—Não—respondeuSam,enfaticamente.Aindaobservavaolobo,quese agachara e olhava para ele. — Não, não é normal. Se estásu icientementequenteparaquepermaneçahumano,eledeviasercapazdepermanecerhumanodurantemaistempo.Nãoisso...Querdizer...

Suavozdesvaneceuquandooloboficounovamentedepé.

Sam afastou-se de Victor, para o caso de ele querer fugir, mas, derepente,asorelhasdeVictorpenderam,eelecomeçoua tremerdenovo.Same eu desviamos o rosto, até que ele voltasse a ser humano e tivessetempodeseenrolarnumcobertor.

Victorgemeu,deleve,eapertouatestacontraamão.

Samtornouasevirar.

—Dói?

— Não muito. — Depois de uma pausa, ele ergueu os ombros atéquaseencostá-losnasorelhasepermaneceuassim.—Cristo,passeiodiatodofazendoisso.Sóquerosaberquandovaiparar.

Elenãoolhavaparamim.SuasinceridadesedirigiaaSam,quedisse:

— Quem dera eu tivesse uma resposta, Victor. Alguma coisa estáimpedindoquevocêmantenhaumadasformas,enãoseioqueé.

— Não melhora?— perguntou Victor. — Quer dizer, estou ferrado,certo?Foinissoquedeuouvirvocê,Cole.Hámuito tempoeu jádevia terpercebidoqueésempreissooqueacontece.

Maselecontinuavaanãoolharparamim.

Melembreidaqueledialánohotel.Victortinhavoltadomaldeumadesuasviagens.Aquelassuasúltimas fossaseramtãoruinsqueatéeu,commeudesinteresse calculado, podia ver queumdianãohaveria como sairdelas.Minhaintençãoeraajudá-loquandooconvenciasetransformaremlobo comigo. Não era por puro egoísmo, nem porque eu não queriaexperimentarsozinhoanovidade.

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SeSamnãoestivessepresente,euteriaditoissoaVictor.

Sambateunoombrodelecomopunho.

—Olha, é diferente quando se é novato. Todomundo começadeumjeito instável, depois estabiliza. Tudo bem, é uma bosta agora, uma bostaelevadaàúltimapotência,mas,quandoesquentardeverdade,issonãovaiserepetir.

VictorolhouparaSamcomumaexpressãogelada,aqualeujáviraummilhão de vezes antes, simplesmente porque eu mesmo a tinha criado.Finalmente,eleolhouparamim:

— Devia estar acontecendo com você, safado— disse ele, antes devirarlobonovamente.

Sam ergueu as mãos abertas em súplica e exclamou, no auge dafrustração:

—Como...Como...

Percebi,então,comquecuidadoeleestiveracontrolandoaexpressãoe a voz. Assistir a Sam passar de uma calma absoluta para um surtocompletodeuumnónaminha cabeça, omesmonóprovocadopela visãodastransformaçõesdeVictor.Issosigni icavaqueSampoderiamuitobemtermemostradoumamáscarabenevolenteotempotodo,masqueoptarapor não fazê-lo. De certa forma, minha opinião sobre ele mudouradicalmente.

Talveztenhasidoissooquemefezfalar.

—Algumacoisaestásuplantandoatemperatura,éoqueacho.Ocaloro transforma em gente, mas algo diferente manda seu corpo setransformaremlobo.

Sam me encarou. Não com descrença, mas também não totalmenteconvencido.

—Queoutracoisapoderiafazerisso?—indagou.

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Olhei para Victor, desprezando-o por complicar a situação. O quãodi ícilseriameacompanharnastransformaçõesdehomemparaloboedelobo para homem, como ele deveria fazer? Como eu queria não teraparecidonaquelemalditoabrigo.

—Alguma coisanaquímicado cérebrodele?—perguntei.—Victortem um problema na hipó ise. Talvez isso inter ira no seu processo detransformação.

Sam me lançou um olhar estranho, mas, antes que pudesse abrir aboca, as patas claras do lobo começarama estremecer.Desviei o olhar, eVictorvoltouaserhumano.Semmaisnemmenos.

•SAM•

Asensaçãoeradetestemunharatransformaçãodeduaspessoas:adeVictoremloboeadeColeemoutrem.Eueraoúnicoacontinuaromesmo.

Não consegui me convencer a deixar Victor sozinho daquele jeito, e,por isso, eu iquei, e Cole também, os minutos virando horas enquantoesperávamosqueasituaçãoseestabilizasse.

—Nãohácomovoltaratrás—disseVictornumavozneutraenquantoodiacomeçavaadecair,oquenãoeraexatamenteumproblema.

Tentei não icar tenso quandominhamente voltou ao inverno, antesqueeumereencontrassecomGrace.Deitadonosoloda loresta,osdedosenterrados na terra, a cabeça rachando de dor. De pé, com a neve notornozelo, vomitando até não podermais. Sofrendo convulsões por causada febre, de olhos fechados para evitar a agonia da claridade, rezandoparamorrer.

—Não—respondi.

OsolhosdeColeestavam ixosemmim,eeleouviaaminhamentira.Medeuvontadedeperguntar:Seeleéseuamigo,porquesoueuquemestá

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aoladodeleenãovocê?

Enquanto aguardávamos a próxima transformação de Victor, umabrisamaisfriaeaclaridademortiçapenetrarampelaporta,provandoqueatemperaturaestavacaindocomopôrdosol.

— Victor, não sei como fazer você permanecer humano— falei. —Mas acho que está su icientemente frio para que, icando lá fora, vocêpermaneça lobo. Quer tentar? Quer uma folga dessas transformações,aindaquenãosejaparacontinuarvocêmesmo?

— Deus, quero sim— respondeu ele, com uma emoção tão grandequedoía.

—Quemsabe—acrescentei—,quandovocêseestabilizar...

Mas não vi sentido em terminar a frase, pois Victor já voltara a serlobo,mexendoocorpoparasedistanciardemim.

—Cole!—griteidepressa,dandoumsalto.

Cole despertou para a realidade e abriu a porta. Fui recompensadocomuma lufadade vento frio queme fez piscar, e o lobo fugiu correndoparaa lorestacomoraboencolhidoeasorelhasachatadasdeencontroàcabeça.

Juntei-me a Cole na entrada do abrigo, observando enquanto Victorcorriaemmeioàsárvores,antesdepararaumadistânciaseguraparanoscontemplar.Osramosdesnudosacimadelebalançavamaosabordabrisainclemente que tocava as pontas de suas orelhas, mas seu olhar nãodespregou de nós. Nós três nos encaramos durante vários e longosminutos.

Ele permaneceu lobo. Acho que, no fundo, senti alívio por ele, mastambémumaperto.Eu já começavaapensarnopróximodiaamenoenoqueaconteceriaentão.

MedeicontadequeColepermaneciaameu lado,acabeça inclinada,deolhoemVictor.

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Sempensar,falei:

—Seéassimquevocêtrataseusamigos,nemquerosaberoquefazcomosinimigos.

Colenãochegoupropriamenteasorrir,masoscantosdesuabocaseenrijeceram numa expressão vaga, misto de desdém e desinteresse. ElenãodesviouoolhardeVictor,masnãohaviacompaixãoali.

Lutei contra a vontade de dizer algo mais, qualquer coisa que oobrigassearesponder.QueriaqueelesofresseporcausadeVictor.

— Ele tem razão— disse Cole aomeu lado, os olhos ainda ixos emVictor.—Deviaestaracontecendocomigo.

Quasenãoacrediteiquetivesseouvidodireito.Euosubestimara.

Porém,Coleentãoacrescentou:

—Soueuquequeromelivrardestemalditocorpo.

Decertaforma,Colejamaisdeixavademesurpreender.

Encarei-oedissecomfrieza:

—EeuquechegueiapensarquevocêseimportavacomVictor.Vocêsó pensa nos seus problemas, na sua transformação em lobo. Mal podeesperarparadeixardeservocê,nãoé?

—Sevocê fosseeu,você tambémquereria—respondeuCole,dessavezcomumsorrisocrueletorto,quepegavaumladodorostomaisdoqueooutro.—Nãopossoseroúnicoquedesejaserlobo.

Enãoera.

Shelby também desejava. Pobre Shelby, que mal conseguia serhumana,mesmoquandousavaorostodeumagarota.

—E,sim—falei.

OsorrisodeColetransformou-senumrisosilencioso.

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—Vocêétãoingênuo,Ringo.QuãobemvocêconheciaBeck?

Olhei para ele, para sua expressão condescendente, e desejei quesumisse, que Beck nunca o tivesse trazido. Ele devia ter deixado Cole eVictornoCanadáounolugardeondehaviamsaído,sejaláqualfosse.

—Osu icienteparasaberqueeleeraumserhumanomelhordoquevocêjamaisserá—respondi.AexpressãodeColenãosealterou.Foicomoseaspalavrasdurasnãochegassemaseusouvidos.Trinqueiedestrinqueiosdentes,furiosoportê-lodeixadometirardosério.

—Quererserlobonãonecessariamentefazalguémserruim—disseColenumtomneutro.—Equererserhumanonãofazalguémserbom.

Volteiaos15anos,sentadoemmeuquartonacasadeBeck,osbraçosenvolvendoaspernas,escondidodo lobodentrodemim.O inverno jámeroubara Beck na semana anterior, e Ulrik logo desapareceria também.Então, eu, meus livros e meu violão permaneceríamos intocados até aprimavera,assimcomoos livrosdeBeck.Esquecidosnoesquecimentodesimesmoqueeraprópriodolobo.

EunãoqueriateraquelaconversacomCole.

—Vocêestáprestesasetransformar?—indaguei.

—Semchance.

— Então, por favor, volte para casa. Vou limpar isto aqui. — Emseguida,paraconvencertantoamimquantoaCole,acrescentei:—EoquefezaVictorquetornavocêumapessoaruim,nãoodesejodeserlobo.

Colemeolhou,comamesmaexpressãoindiferentenorosto,edepoispartiuacaminhodecasa.Virei-lheascostasetorneiaentrarnoabrigo.

ComoBeck izeraantesdemim,dobreiacolchaqueVictorlargaraalie varri o pó e os pelos do chão, veri iquei depois o bebedouro e, apósexaminar as caixas de comida, anotei o que precisava ser comprado. Fuiatéoblocoque icavaao ladodabateriadebarco—uma listadenomesrabiscados, às vezes com uma data ao lado, às vezes com uma descriçãodasárvores,pois elas contavamo tempoquandoéramos incapazesdisso.

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Esse era o jeito que Beck encontrara demanter um inventário de quemerahumanoequandooera.

A página aberta ainda correspondia aos nomes do ano anterior,terminando com o de Beck. Era uma lista bem menor do que a do anoprecedente. Engoli em seco e virei a página. Escrevi o ano no alto eacrescentei o nome de Victor e a data. O nome de Cole decerto deveriaigurar ali também,masduvidei dequeBeck tivesse explicado a ele todoesse processo. Não tive vontade de acrescentar o nome de Cole.Equivaleriaaadmiti-loo icialmentenaalcateia,naminhafamília,e issoeunãoqueria.

Duranteumbom tempo, iquei ali olhandopara a página embranco,que continha tão somente o nome de Victor. Em seguida, acrescentei omeu.

Sabiaqueali nãoeramaisomeu lugar,masaquela erauma listadehumanos,certo?

Equempodiasermaishumanoqueeu?

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CAPÍTULO24•GRACE•

Tomeiadireçãodasárvores.

A loresta continuava adormecida e desfolhada,mas o armais cálidodespertou uma cacofonia de cheiros úmidos de primavera até entãomascarados pelo frio. Os passarinhos trinavam entre si lá em cima,alternandoentreavegetaçãorasteiraeosgalhosmaisaltosebalançandoosramosemsuasinvestidas.

Sentiprofundamente:euestavaemcasa.

Apenas uns poucosmetros bosque adentro, ouvi a vegetação estalaràsminhascostas.Meucoraçãodisparouquandohesitei,interrompendoosruídosdaterra fofasobmeuspés.Maisumavez,ouviomesmofarfalhar,nemmaisperto,nemmaislonge.Nãomevirei,emborasoubessequedeviaserumlobo.Nãosentimedo,apenascompanheirismo.

Ouvi o eventual ruídodas folhas quandoo lobopassoume seguindo.Ainda não muito perto — apenas me observando a uma distânciacautelosa. Parte de mim queria ver que lobo era, mas a outra estavademasiado excitada pela presença dele para se arriscar a assustá-lo.Assim, caminhamos juntos, eu avançando com constância, o lobo emmovimentosintermitentes,afimdemeacompanhar.

O sol que penetrava por entre os galhos ainda nus aquecia meusombros,eestiqueiosbraçosparaosladosenquantoandava,absorvendoomáximoquepudedele, tentandoapagara sensaçãoda febredavéspera.Tive a impressão de que quanto mais descartava a raiva, mais me davacontadequehaviaalgodeerradodentrodemim.

Em meio à vegetação, lembrei de Sam me levando para a clareiradouradana loresta, edesejei que ele estivesse comigoagora, ouvindoasbatidas desconhecidas do meu coração. Não que passássemos o tempotodo juntos ou que eu não soubesse me ocupar sem ele— Sam tinha o

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trabalhonalivrariaeeu,aescolaeasaulasparticulares—,mas,naqueleexatomomento, eumesentiapoucoàvontade.A febrepassara,masalgome dizia que acabaria voltando. Eu parecia ainda senti-la cantandoincansavelmente em meu sangue, esperando para ressurgir quando oslobosachamassem.

Continuei andando. Naquele ponto, as árvores eram esparsas,brotinhos novos desencorajados pela presença de enormes pinheiros. Ocheirodolago icoumaisforte,eviapegadadeumlobonosolomaciodaloresta.Soboverdeopacodospinheiros,abraceimeucorpo,sentindofrionasombra.

Aminha esquerda, percebi ummovimento brusco: um pelomarromacinzentado, da mesma cor que o tronco dos pinheiros. Finalmente, vi oloboquevinhameacompanhandoquandoeleparouportemposu icientepara que eu lhe desse uma boa olhada. Não reagiu quando avaliei seusolhos verdes brilhantes e humanos, nem a posição peculiar de suasorelhas.Atrásdele,viobrilhodaáguadolagoporentreasárvores.

Você é um dos lobos novatos?, indaguei mentalmente, mas não dissenada,pormedodequeaminhavozoassustasse.Eleergueuacabeçaeviseu focinho farejar na minha direção. Pensei saber o que ele queria:lentamente, estendiumadasmãos, oferecendo-a comapalmaaberta.Elerecuoucomose reagisseaoodor, enãoaomovimento,porque,depoisdeseafastar,ofocinhocontinuouativo.

Não precisei levar amão ao nariz para saber que cheiro ele sentira,porqueeumesmapodiasenti-lo.Oodordoceepodredeamêndoas,presoentremeusdedosesobasunhas.Pareciaaindamaissinistroqueafebre.Issoémaisqueumasimplesfebre.

Meucoraçãotrovejavanopeito,emboraeucontinuasseanãotemerolobo marrom. Agachei-me na terra e envolvi os joelhos com as mãos, aspernas repentinamente trêmulas, não sei se devido à febre ou àconstatação.

Ouviumaexplosãodesomquandováriospássarosalçaramvoo.Tantoolobomarromquantoeunosassustamos.Umlobocinza,responsávelpelosusto dos pássaros, se aproximou. Eramaior do que omarrom,mas nãotãocorajoso.Seusolhosmostravaminteresse,masaposiçãodoraboedas

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orelhas demonstrava cautela à medida que ele chegava mais perto. Seufocinhotambémestremecia,farejandooar.

Imóvel, observei um lobo preto— que reconheci ser Paul— surgiratrás do cinzento, seguido por outro que me pareceu desconhecido.Moviam-se como um cardume de peixes, se locando e esbarrandoconstantemente, comunicando-se sem palavras. Em pouco tempo, haviaseis lobos, todos mantendo distância, todos me observando, todosfarejandooar.

Dentro demim, zumbiu o algo sem nome queme causara a febre eimpregnara meu corpo com esse odor. Não doía, não naquele momento,mastambémnãoerabom.EusabiaporqueprecisavatantodeSam.

Euestavacommedo.

Os lobos me cercaram, receosos da minha forma humana, mascuriosos com o cheiro. Talvez estivessem aguardando a minhatransformação.

Maseunãopodiame transformar.Aqueleeraomeucorpo,quisesseeu ou não, por mais que a coisa dentro de mim gemesse, ardesse eimplorasseparaserlibertada.

Na última vez em que eu havia estado naquela loresta, cercada delobos, a presa era eu. Estava impotente, presa ao chãopelo pesodomeupróprio sangue, contemplando o céu invernal. Eles eram animais e eu,humana.Agora,essafronteira jánãoeratãonítida.Nãohouveameaçadeataqueporpartedeles,apenasumacuriosidadealarmada.

Mexi-me com cuidado, a im de alongar os braços tensos. Então, umdoslobosganiu,numtomaltoeansioso,comoumacadelaparaumfilhote.

Senticomoseafebreacordassedentrodemim.

Isabel me dissera que a mãe, médica, lhe contara uma vez que écomum os pacientes terminais terem uma noção meio sobrenatural daprópria doença,mesmo antes do diagnóstico.Na época, zombei dela,masagoraentendiaoqueelaquisdizer,porquepodiasentirisso.

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Haviaalgoprofundamenteerradoacontecendocomigo,algoqueparamim os médicos não seriam capazes de curar, e aqueles lobos sabiamdisso.

Encolhi-mesobasárvores,osbraçosemtornodaspernasnovamente,eobserveios lobosmeobservarem.Passadoumbocadode tempo,o lobocinzentoegrandalhão,semjamaisdeixardeme itarnosolhos,sentou-selentamente sobre as patas, como se pudessemudar de ideia a qualquermomento.Eratotalmenteantinatural.Totalmenteantilupino.

Prendiarespiração.

Então o lobo preto olhou para o lobo cinzento e tornou a olhar paramim, deitando-se também e descansando a cabeça sobre as patas. Eladesviou os olhos na minha direção, com as orelhas ainda alertas evigilantes. Um por um, os lobos todos se deitaram, formando um círculofolgado à minha volta. A loresta permaneceu tão silenciosa quanto oslobos,protetoresepacientes.Esperandocomigoalgumacoisaquenenhumdenósseriacapazdeexpressarempalavras.

À distância, ummergulhão piou, lúgubre, lento. Paramim, seu cantosempre soou como um lamento, como se chamasse alguém cuja respostanãoesperassedevolta.

O lobo negro — Paul — aproximou de mim o focinho, com suasnarinassemovendo ligeiramente,euivou.Osom foiumecosuavedopiodomergulhão,ansiosoehesitante.

Sob a minha pele, algo se esticou e retesou. Meu corpo parecia ocampodebatalhadeumaguerrainvisível.

Cercada de lobos, permaneci sentada na loresta enquanto o sol sepunha no céu e as sombras dos pinheiros cresciam. Perguntei a mimmesmaquantotempoeuteria.

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CAPÍTULO25•GRACE•

Porfim,oslobosmedeixaramsozinha.

Fiqueiali,sentada,tentandosentircadacéluladomeucorpo,tentandoentenderoqueaconteciadentrodele.Otelefonetocou;eraIsabel.

Atendi. Precisava voltar ao mundo real, ainda que ele não fosse tãorealquantoeugostaria.

— Rachel adoroume dizer que você pediu a ela, e não amim, parapegarseudeverdecasaeanotarasaulasparavocê—disse Isabel, logoapósomeualô.

—Asmatériasqueelafazsãoasmesmas...

—Mepoupe.Nãodouamínima.Eunãoqueriamesmoterotrabalhode pegar suas coisas.Mas achei engraçado o fato de ela pensar que issoera sinal de status. — Isabel realmente parecia estar se divertindo. MesentimeiomalporRachel.—Enfim,ligueiparasaberdasuainfecção.

Comoexplicarcomoeumesentia?EcomoexplicaraIsabel?

Nãodava.

Respondisinceramentecomumameiaverdade.

—Achoquenãoestoucominfecçãoalguma.Porquê?

— Eu quero que você vá comigo a um certo lugar, mas não queropegarpestebubônicaficandopertodevocê.

—Váatéoquintal—sugeriaela.—Estounafloresta.

A voz de Isabel conseguiu transmitir nojo e descrença na mesmamedida:

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—Na loresta.Claro.Eudeviateradivinhado,éparaláqueosdoentessempre vão. Pessoalmente, eu preferia distrair a cabeça fazendo umaterapia boa e improdutiva, mas suponho que a loresta seja umaalternativa grati icante e socialmente aceitável. A garotada toda virouadepta.Devolevaresquis?Umabarraca?

—Não,sóvocê.

—Não sei se quero saber o que você estava fazendo na loresta.—disseela.

—Estavapasseando—falei.Eraaverdade,porémnãoioda.

Nãosoubecomolhecontaroresto.

***

MAIS TARDE, ISABEL PRECISOU GRITAR por mim algumas vezes eesperaralgunsminutosparaqueeusaíssedamatasombria,masnãomesenti culpada por isso — estava desnorteada demais por causa darevelaçãoquetiveraquandofiqueicercadapeloslobos.

—Nãoeraparavocêestarmorrendo?—perguntouIsabelassimquemeviu tomandoocaminhodevoltaparacasa.Eume impuseradiantedemamãe; agora era hora de voltar, e achei que ela não tentaria começarumaconversasériaseeuaparecesseacompanhada.

Isabelparou juntoaopotedecomidadospássaros, asmãosen iadasnos bolsos, o capuz forrado de pele abaixado e lhe aconchegando asorelhas. Quando me aproximei, seus olhos oscilaram entre mim e umamancha branca desbotada de cocô de passarinho na beira do pote.Nitidamente isso a incomodava. Seu visual era totalmente Isabel — ocabelo cortado à navalha emoldurando-lhe o rosto de um jeito aomesmotempo severo e encantador, os olhos dramaticamente acentuados pelodelineador. De fato, ela planejara ir a algum lugar comigo. Senti umtantinhodeculpa,comosetivesserecusadoseuconvitepormotivosfúteis.

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Suavozsooualgunsgrausmaisfriaqueoar.

— Que parte do seu tratamento envolve você se embrenhar naflorestaquandoatemperaturaédequasezerograu?

Estavarealmente icando um bocado frio. As pontas dosmeus dedosficaramrosaescuro.

—Zero?Nãoestavatãofrioquandosaí.

— Bom, agora está— atalhou Isabel.— Encontrei sua mãe quandochegueie tenteiconvencê-laadeixarvocê ircomerumsanduíchecomigoemDuluthhojeànoite,maselanãocedeu.Estoumeesforçandoparanãoficarofendida.

Elatorceuonarizquandoaalcanceie,juntas,nosdirigimosparacasa.

— Eu estou tentando ignorar minha raiva dela neste momento —confessei. Isabelesperouqueeuabrisseaportados fundosparaela.Nãocomentou minha raiva, algo que eu não esperava mesmo que izesse.Isabelviviazangadacomospais,oquemelevavaacrerqueaminharaivasequer soava estranha a seus ouvidos.—Posso fazer sanduíches fajutosaqui.

Naverdade,eunãoestavanadaafimdisso.

—Pre iroesperarparacomeroverdadeiro—disseIsabel.—Vamospedirpizza.

"Pedirpizza"emMercyFallssigni icava ligarparaapizza-ria local,aMario's,epagarumataxadeentregadeseisdólares,umpreçodemasiadocarodepoisdeeutercusteadoasessãodeSamnoestúdio.

—Estoudura—falei,chateada.

—Eu,não—disseIsabel.

Ela estava dizendo isso quando entramos, e mamãe, que continuavaestacionada no sofá com o livro de Sam, ergueu os olhos rispidamente.Ótimo.Torciparaquepensassequefalávamosdela.

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OlheiparaIsabel.

—Vamosparaomeuquarto?Agentevai...?

Isabel fez um gesto para que eu me calasse. Já estava no telefoneencomendando uma pizza no Mario's, grande, de queijo e champignon.Descalçou asbotasde salto grossono capachodaportados fundos emeseguiu até o quarto, lertando com desenvoltura com quem quer queestivessedooutroIndodalinhatelefônica.

Noquarto,faziabastantecaloremcomparaçãoaofriodoladodefora.Comeceiatirarosuéter,enquantoIsabeldesligavaocelularedesabavanacama.

— Quer apostar como vamos ganhar queijo extra de cortesia? —desafiou.

—Não preciso apostar— respondi.— Isso aí foi praticamente sexotelefônicosobreumamassaultrafina.

— Minha especialidade — concordou Isabel. — Olhe aqui. Eu nãotrouxeomeudeverdecasa.Praticamentetermineitudonaescola,durantemeutempolivre.

Encarei-acomumaexpressãoséria.

—Sevocêlevarbombanaescola,nãovaiconseguirentrarnumaboafaculdadeevai icarpresaparasempreemMercyFalls.—AocontráriodeRachele Isabel, tal ideianãomehorrorizava,maseu sabiaquenenhumadasduasreceavaumdestinopiorqueesse.

Isabelfezumacareta:

—Obrigada,mamãe,vouprestaratenção.

DeideombrosepegueiolivroqueRachelmetrouxeramaiscedo.

— Bom,eu tenho dever para fazer, e quero entrar na faculdade.PrecisoaomenosleromaterialdeHistóriahojeànoite.Tudobem?

Isabelencostouorostonomeuedredomefechouosolhos:

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— Você não precisa fazer sala para mim. Já estou satisfeita de tersaídodecasa.

Me sentei na cama, junto à cabeceira. Omovimento balançou Isabel,maselamanteveosolhos fechados. SeSamestivesseali—e seele fosseeu—,perguntariaaIsabelseasituaçãoeramesmofeiaecomoelavinhasesaindo.Nãomeocorreriafazeressaperguntaantesdeconhecê-lo,mastantasvezeseuoouviraperguntaressetipodecoisaqueagorajásabiaoquefazer.

—Comovão as coisas?— indaguei. A frase soou esquisita naminhaboca, comosenãopassasseamesmasinceridadedequandoeraditaporSam.

Isabeldemonstrouostensivamentesuachateaçãoeabriuosolhos.

— Essa é a pergunta que a terapeuta da minha mãe faz. — Então,espreguiçou-sedeum jeitoque traduziacomexatidãooadjetivo lânguido,dizendo:—Voupegaralgumacoisaparabeber.Temrefrigerante?

Fiquei até certo ponto aliviada por me livrar da saia justa comtamanha facilidade, e me perguntei se deveria repetir a pergunta. Samfaria isso. No entanto, eu não conseguia pensar como ele durante muitotempo,razãopelaqualdisseapenas:

—Naportadageladeiraenoarmárioàdireita.

—Você vai querer?— indagou Isabel. Umdosmeusmarcadores delivrocaíranochãoegrudaranopédescalçodela.Formandoumtriângulocomumadaspernas,elaodesgrudou.

Pareiparapensar.Meuestômagoestavameioembrulhado.

—Soda,setiver.

Isabelsaiudecididadoquartoevoltoucomumalataderefrigeranteeoutra de soda, que me entregou. Ligou o rádio-relógio na mesinha decabeceiraecomeçamosaouviraestaçãoalternativaprediletadeSam,comum certo chiado porque ela icava emDuluth. Suspirei. Não era aminhamúsica favorita,masme fez lembrar dele,mais ainda do que o livro que

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icara na mesinha ou a mochila esquecida no chão, ao lado da minhaestante.Asaudadepareciamaioragoraqueosoljáhaviapraticamenteseposto.

—Parecequeestounumkaraokê—disseIsabel,trocandodeestaçãopara uma mais popular. Esticou-se de bruços ao meu lado, ondenormalmentesedeitavaSam,eabriualataderefrigerante.

—Estáolhandooquê?Leia.Estousórelaxando.

Elapareceufalarsério,portantonãohaviamotivoparaeunãoabrirolivro de História. Só que eu não queria ler. Queria apenas envolvermeucorpocomosbraços,deitarnacamaesentirfaltadeSam.

•ISABEL•

Noinício,foibacanasimplesmente icarali,deitadanacamasemfazernada, sem a intromissão de pai, mãe ou lembranças. O rádio tocavabaixinhoaomeulado,eGraceliaatentamenteseulivro,virandoaspáginase,voltaemeia,voltandoparareleraanteriorcomatestafranzida.Amãefaziaruídosempontosdiferentesdacasa,eocheirodetorradaqueimadapenetrouporbaixodaporta.Eusentiaoconfortodavidadeoutrapessoa.Eera legal teracompanhiadeumaamigasemprecisarconversar.QuasedavaparaignoraraexistênciadadoençadeGrace.

Passadoumtempo,estendiamãoparaamesinhadecabeceira,ondeum livro com as beiradas meio gastas disputava espaço com o rádio-relógio. Jamais imagineiquealguémpudesse lerum livro tantasvezesdemodoadeixá-lonaqueleestado.Parecialersidoatropeladoporumônibusescolar depois de ser jogado numa banheira. A capa dizia se tratar depoemasdeRainerMariaRilke,emediçãobilíngue.Nãopareciafascinante,e,paramim,poesiaeraalgopertencenteaoscírculosinferioresdoinferno;porém,nafaltadeoutracoisaparafazer,peguei-oeoabri.

A página em que caí, bastante gasta, continha anotações à mão emazul, além de algumas linhas sublinhadas:"Ah! A quem recorrer quando

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sucumbimos?Nãoaosanjos,nemaoshomens,eatéomaissagazdosanimaisvê que decerto não estamos à vontade em nosso mundo interpretado". Aolado estava escrito, numa caligra ia ruim que não reconheci: indigen =sagaz,gedeuteten=interpretado ?,alémdeoutrasnotasetermosaleatóriosemalemão.AproximeiapáginadosolhosparalerumaminúsculaanotaçãonocantoemedeicontadequeolivrodeviaserdeSam,porquecheiravaàcasa de Beck. O odorme trouxe de volta uma onda de lembranças: Jackdeitado numa cama, transformando-se em lobo diante dos meus olhos,morrendonaminhafrente.

Meu olhar baixou novamente para a página . "Oh! E à noite, à noite,quandooventoprenhedeespaçosinfinitoscorróinossorosto."

Nãopassei,achoeu,agostarmaisdepoesiadoqueantesdepegarolivro,quecoloqueidevoltanamesinha.Encosteiorostonacolchadacamaquecobriaotravesseiro.EssedeviaseroladoemqueSamdormia,porquereconheci seu cheiro. Que coragem a dele, indo para lá noite após noiteapenaspara icarcomGrace. Imaginei-odeitadobemali,comGraceaseulado. Eu já vira os dois se beijando — o jeito como as mãos de Samapertavam as costas dela quando achava que ninguém estava olhando, ojeitocomoaseveridadedaexpressãodeGracesumiaporcompletonessasocasiões. Era fácil imaginar os dois deitados juntos ali, trocando beijos,enroscados,partilhandoarespiração,lábiosansiososgrudadosnopescoço,nosombrosededosumdooutro.Derepente,mevi famintaporalgoqueeunãotinhaecujonomesequersabia.MevipensandonamãodeColeemmeu corpo e em como seu hálito era quente naminha boca. De repente,tive certeza de que ligaria para ele ou de que iria procurá-lo no diaseguinte,seissofossepossível.

Me apoiei nos cotovelos, tentando afastar as imagens de mãos equadris,bemcomoocheirodeSamnotravesseiro.

—OqueseráqueSamandafazendo?—falei.

Grace segurava uma página entre dois dedos. Não estavapropriamente de testa franzida — minhas palavras haviam substituídoessaexpressãoporoutra,maishesitante.Mearrependide terditooqueefetivamenteestavapensando.

Gracesoltouapáginaeaalisou.Entãoapertoucomosdedosumadas

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bochechascoradaseacariciouapelecomumgestosemelhante.

—Eledissequetentariameligarhojeànoite—disseela,finalmente.

Continuava a me encarar com aquele olhar meio vazio, meiodesconfiado,razãopelaqualacrescentei:

—Eusóestavapensandosealgumdos lobos,alémdele, teriaviradohumano.Euconhecium.

Tratava-sedealgotãopróximodaverdadequenenhumbispobotariadefeito.

OrostodeGracesedesanuviou.

—Eusei.Sammecontou.Chegouaconhecê-lobem?

Dane-se.Resolvicontaraela.

—Euo leveipara a casadeBecknanoite emquevocê foi pararnohospital.

Osolhosdelasearregalaram,masantesqueabrisseabocaparafazermaisperguntas,acampainhadaportasoou—umacampainhaestridente,detestável,quepareciaumcarrilhão.

— Pizza! — gritou a mãe dela, numa voz demasiado animada.QualqueroutrapalavraqueGraceeeupudéssemostertrocadoseperdeu.

•GRACE•

ApizzachegoueIsabeldeuumpedaçoàmamãe—oqueeunãoteriafeito—,queserecolheuaoestúdioeliberouasalaparanós.Aessaaltura,o céu estava negro do lado de lá da porta de vidro que se abria para avaranda,enãodavaparasaberseeramseisdatardeoumeia-noite.Senteinumdos cantosdo sofá comumpratono colo eumaúnica fatiadepizzaolhando paramim, e Isabel sentou-se no outro extremo, com duas fatias

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emseuprato.Comcuidadoparanãoamassaroschampignons,elaretirouoexcessodegorduracomumatoalhadepapel.Aofundo,ouvia-seatrilhasonoradeUmalindamulher,comJuliaRoberts fazendocomprasemlojasnas quais Isabel se sentiria em casa. A pizza estava em sua caixa namesinhadecentroentrenósduaseaTV.Haviaumaquantidadeabsurdadequeijo.

— Coma, Grace — insistiu Isabel, me oferecendo o rolo de papeltoalha.

Olheiparaapizzae tentei imaginá-la comocomida.Eracuriosocomoumaúnicafatiadepizza,contendoqueijo,champignonetirasdemussarelapingandogordura,eracapazdeprovocaroqueomeupasseiona lorestanãoprovocara:umenjoodedoer.Avisãodacomida,meuestômagoviroudo avesso. Não se tratava apenas de náusea; era amesma coisa quemeconsumira antes: a febre que não era febre. A doença que eramais queumadorde cabeça,maisqueumadorde estômago.Adoençaque, sei lácomo,eraeu.

Isabel continuava me olhando, e vi logo que faria alguma pergunta.Porém,não tiveamínimavontadedeabriraboca.Aquelacoisavagaqueeu sentira na lorestame corroía as entranhas agora, e iquei commedodaspalavrasqueeupoderiadizer.

A pizza estava ali, naminha frente, com a aparência de algo que eusequerconseguiameimaginarengolindo.

Me senti muito mais vulnerável do que na loresta, com os lobos àminha volta. Não queria a presença de Isabel naquelemomento.Nemdaminhamãe.EuqueriaSam.

•ISABEL•

Graceestavaverde.Encaravaapizzacomoseesperassesermordidaporela,efinalmentedisse,comamãonoestômago:

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—Jávolto.

Levantou-sedosofá,meioletárgica,efoiatéacozinha.Quandovoltou,segurando mais uma soda e trazendo vários comprimidos na palma damão,perguntei:

—Estásesentindomaldenovo?

Baixei um pouco o volume da TV, ainda que estivesse passando aminhapartefavoritadofilme.

Gracepôsoscomprimidosnabocaeosengoliucomumgolerápidoeeficazdesoda.

—Umpouco.Ecomumomal-estarpiorarànoite,nãoé?Foioqueli.

Encarei-a. Achei que ela provavelmente soubesse. Achei queprovavelmente já estava pensando o mesmo que eu, mas não queriaadmitiremvozalta.

—Oquedisseramnohospital?—perguntei.

— Que era só uma febre, uma gripe— respondeu Grace, e do jeitocomo falou, vi logoque estava se lembrandode terme contado amesmacoisaquandofoimordidapelaprimeiravez.Quedeviaserumagripe.Nósduassabíamosquenaquelaocasiãonãohaviasidoumavirose.

Assim,acabeidizendooquevinhameincomodandodesdeahoraemquepiseinacasadela:

—Grace,vocêestáfedendo.Comoaqueleloboqueagenteencontrou.Vocêsabequeissotudotemavercomoslobos.

Elapassouumúnicodedo,paraláeparacá,nabordadoprato,comosequisesseapagaroarrematedecorativo.

—Eusei.

Justo então, o telefone tocou, e nós duas soubemos na mesma horaquem era. Grace olhou para mim e seus dedos se imobilizaram porcompleto.

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—NãoconteaoSam—disseela.

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CAPÍTULO26•SAM•

Comonãoconseguiadormirnaquelanoite,fizpão.

Omaiormotivo daminha insônia era Grace. A ideia de subir para oquarto e me deitar sozinho na cama, esperando pelo sono, me pareciatotalmente intolerável.Mas umoutromotivo era o fato de Cole continuarna casa. Sua inquietude era tão grande — andando de um lado para ooutro, testando o sistema de som, sentando-se no sofá, assistindo à TV,levantando-sedeumsalto—queacabeicontagiado.Eracomoestar juntodeumaestrelaemexplosão.

Por isso, fui fazer pão, algo que aprendera com Ulrik, que era umtremendochatocomisso.Eleserecusavaacomerpãoindustrial,eeu,poroutro lado, quando tinha dez anos, não comia nada alémde pão. Isso fezcom que muito pão fosse produzido naquele ano. Beck nos achavainsuportáveis e não queria se meter com as nossas neuroses. Por issopassamos muitas manhãs juntos, eu sentado no chão com as costasapoiadasnoarmáriodacozinhaeoviolãoqueganharadePaulnocolo,eUlrik socando amassa e soltando palavrões de brincadeira, por eu estaratrapalhando.

Um dia, logo no início do ano, Ulrik me botou de pé e me obrigou afazeramassa.FoinessemesmodiaqueBeckdescobriuaconsultamédicadele,umalembrançaquenãomesaíadacabeçadepoisqueviastentativasempregadas por Victor para permanecer humano. Nitidamente furioso,Beckentrouàtodanacozinha.TinhaPaulnasuacola,aparentandomenospreocupaçãodoquedesejodeassistiraumconfrontointeressante.

—MedigaquePauléummentiroso—começouBeck,enquantoUlrikme entregava uma lata de fermento. — Me diga que você não foi aomédico.

Paulpareciaprestesaterumacessoderiso,eUlriktambém.

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BeckergueuasmãoscomosepretendesseestrangularUlrik.

—Vocêfoi.Vocêrealmentefoiaomédico.Seulouco.Euaviseiquenãoadiantarianada.

Paulfinalmentecomeçouarir,enquantoUlriksorria.

— Diga a ele o que o médico lhe deu, Ulrik. Diga o que o médicoreceitou.

Aparentemente, porém, Ulrik percebeu que Beck não acharia graçaalguma.Porisso,aindasorrindo,apontouparaageladeiraedisse:

—Leite,Sam.

— Haldol — esclareceu Paul. — Ele vai se consultar por causa delicantropiaesaicomumareceitadeantipsicótico.

—Vocêachaengraçado?—indagouBeck.

Ulrik inalmenteolhouparaBecke fezumgesto comamão, comosedissesse:Edaí?.

—Ora,Beck.Eleachouqueeuestavalouco.Conteitudo.Queeuviravalobonoinverno,conteido...oqueéaquilo?Enjoo?Náusea?Edisseadataemquevireihumanoesteano.Descrevitodosossintomas.Faleiaverdadeverdadeira,eocaraouviu,assentiuemereceitouumremédioparadoidos.

—Aondevocêfoi?—indagouBeck.—Aquehospital?

—St. Paul.—Ele ePaul izerampiada coma expressãopreocupadadeBeck.—Oquê?VocêachouqueeuiaentrarnoHospitaldeMercyFallsedizerquesouumlobisomem?

Becknãoviugraçanenhuma.

—Assim,dessejeito?Elenãoacreditou?Nãocolheusangue,nada?

Ulrikbufoue,esquecendo-sedequeeraeuquemestavapreparandoamassa,começouaadicionarfarinhadetrigo.

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—Osujeitosóqueriamebotarparafora,comose loucurafosseumadoençacontagiosa.

—Queriaestarláparaverisso—comentouPaul.

Beckbalançouacabeça.

— Vocês são dois idiotas.— Sua voz, porém, tinha um tom afetuosoquandoelepassouporPaul, saindoda cozinha.—Quantas vezesprecisorepetirque,sevocêsquiseremconvencerummédico,vãoterquemordê-lo?

PauleUlriktrocaramolhares.

—Eleestáfalandosério?—indagouPaul.

—Achoquenão—respondeuUlrik.

Aconversa tomououtrorumo,enquantoUlrik terminavaamassaeapunha para crescer, mas jamais esqueci a lição daquele dia: médicosprovavelmentenãoajudariamnessabatalhaespecífica.

Minhamente voltou a Victor. Eu não conseguiame livrar da imagemdelesetransformando,fácileincessantemente,deloboemhumanoevice-versa.

AparentementeColetambémnão,porqueentrounacozinhaesentou-senabancadacentralcomumaexpressãoaborrecida.Torceuonarizparaofortecheirodefermentoquepairavanacozinhaedisse:

—Eudevia icarsurpresoaovervocêcozinhando,masnãoestou.Porisso,continuocismadocomainjustiçadeVictornãoconseguirpermanecerhumanoenquantoeunãoconsigopermanecerlobo.Deviaserocontrário.

Tentei não deixar que minha irritação transparecesse quandorespondi:

—Entendo.Vocêquerser lobo,nãoquerserCole.Querserumlobo.Já deixou isso bem claro. Bom, não tenho uma fórmula mágica paratransformar você de initivamente em lobo, lamento. — Percebi que ele

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estavacomumagarrafadeuísqueaseulado.—Deondesaiuisso?

— Do armário — respondeu ele, num tom agradável. — Por queincomodatantoavocê?

—Nãoachonenhumamaravilhavocêtomarumporre.

—Eeunãoachonenhumamaravilha icarsóbrio—atalhouCole.—Quer dizer, você nuncame contou o que há de errado com o fato de euquererserlobo.

Dei-lhe as costas eme virei para a pia para lavar asmãos cheias defarinha. Os restos entre os dedos icaram grudentos com a água. Re letisobreoquequeriadizerenquanto,lentamente,esfregavaasmãos.

— Sofri um bocado para permanecer humano. Conheço uma pessoaquemorreu durante uma tentativa dessas. Eu daria qualquer coisa paraterorestantedaminhafamíliadevolta,agoramesmo,maselesterãoquepassaro restodo invernonaquela loresta, semsequer se lembraremdequemsão.Serhumanoéum...—Euiadizerprivilégioextraordinário,masacheiquesoariademasiadosolene.—Nãohásentidoemvivercomolobo.Você não tem lembranças, é como se nunca tivesse existido. Não podedeixarnadaparatrás.Querdizer...comopossodefendera humanidade?Esóoqueimporta.Porquevocêquerjogarissofora?

Não mencionei Shelby, a única pessoa além de Cole que queria serlobo. Eu sabia por que ela abandonara a vida humana. O que nãosigni icava, porém, que eu concordasse. Torci para que o desejo delativesseserealizadoequefosseumalobaparasempre.

Coletomouumagoladadeuísqueepiscouaoengolir.

— Você já respondeu à pergunta. Aquela parte de não se lembrar.Fugaéumaterapiamaravilhosa.

Virei-me para olhá-lo. Cole parecia irreal naquela cozinha. Amaioriadas pessoas possuía uma espécie de beleza adquirida — quanto maisconhecíamos e amávamos alguém,mais esse alguém se embelezava.MasCole havia trapaceado nesse jogo, chegando direto ao inal, todo bonitão,comcaradeastrodeHollywood,semprecisardeamoralgumparaisso.

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—Nãoacho—discordei.—Nãoachoqueessesejaumbommotivo.

—Não?—indagouele,curioso.Fiqueisurpresoaoverquenãohaviamalícia em sua expressão, mas apenas um interesse vago. — Por que,então,vocêfazxixinobanheirodecima?

Olheiparaele.

—Ah,vocêachaquenãonotei?Poissim.Vocêsemprevailáemcimapara fazer xixi. Quer dizer, podia ser porque o banheiro de baixo éhorrível,maselemepareceótimo.—Coledesceudabancada, levementetrôpego.—Por isso,me parece que você está fugindo daquela banheira.Acertei?

Nãovicomoelepoderiasaberdaminhahistóriapregressa,masacheique não se tratava de um segredo. Talvez Beck tivesse contado, emboraessahipótesefizessecomqueeumesentissemeioesquisito.

—Issoéumbocadoinofensivo—comentei.—Fugirdeumabanheiraporque seus pais tentarammatar você não é omesmoque fugir de umavidainteiratransformando-seemlobo.

Coleabriuum largosorrisoparamim.Graçasaoálcool, eleestava setransformandonumColeextremamenteanimado.

— Vamos fazer um acordo, Ringo. Você para de fugir daquelabanheiraeeuparodefugirdaminhavida.

—Certo,tudobem.—Aúnicavezemqueeuentraranumabanheiradepois da tentativa dos meus pais havia sido para o banho quentepreparado por Grace no ano anterior. Porém, naquela ocasião eu já eraquaseumlobo.Malsabiaondeestava.EconfiavaemGrace.EmCole,não.

—Estoufalandosério.Souumapessoamovidaametas—disseCole.—Achoquea felicidadederivadocumprimentodemetas,nãoémesmo?Nossa,estetroçoébomàbeça—elogiouele,pondoouísquenabancada.—Dáumcalorzinhobomeumazonzeiragostosa.Então,você topa?Vocêpula naquela banheira e eu me dedico a fazer com que Victor e eupermaneçamos humanos. Aliás, vocêmesmo disse que a banheira é algoinsignificante,certo?

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Dei um sorriso tristonho. O tempo todo ele sabia que não havia omenorperigodeeusequerchegarpertodaquelabanheira.

—Touchê—falei,poralgumarazãoconscientedaúltimavezemqueouvira essa expressão: da boca de Isabel, na livraria, tomando meu cháverde.Pareciafazeranos.

•COLE•

Dei um amplo sorriso para Sam. Eu estava com aquela agradávelsensação de conforto que só se adquire através do consumo de bebidasalcoólicas.Entãodisseaele:

— Sabe, nós dois estamosmuito ferrados, Ringo. Muito. Sam apenasolhou paramim.Na verdade, ele não se parecia realmente comRingo—para ser exato, estava mais para um John Lennon sonolento e de olhosamarelos, mas "John" não tinha a mesma graça como apelido. Senti umapena repentina dele. O pobrezinho não podia nemmijar no banheiro debaixoporqueospaishaviamtentadomatá-lo.Quehorror!

—Quetalumaajudinha?—perguntei.—Achoqueomomentopedeumaajudinha,cara.

—Obrigado,prefirolidarcommeusproblemassozinho—disseSam.

—Ora,vamoslá.—Ofereci-lheagarrafadeuísque,maselebalançoua cabeça.— Vai fazer você relaxar— informei.— Uma boa quantidadedistoaquievocêvainavegarnaquelabanheiraatéaChina.

AvozdeSamsoouligeiramentemenosamistosa.

—Hoje,não.

— Babaca — falei. — Estou tentando criar um vínculo com você,tentandolheajudar.Tentandoajudaramim.

Pegueiseubraçonumgestodecompanheirismo.Samsedesvencilhou,

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masnãodeumjeitoindelicado.Empurrei-onadireçãodaportadacozinha.

—Cole,vocêestátotalmentebêbado.Chega.

—E garanto a vocêque todo esseprocesso seriamuitomais fácil sevocêtambémestivesse.Nãoestáconsiderandoouísque?

Estávamosnocorredor.Samresistiunovamente:

—Não,Cole.Qualé?Vocêestáfalandosério?

Faltavamenosdeummetroparaaportadobanheiro.Samempacou,eprecisei usar ambos os braços para obrigá-lo a continuar andando. Suaforça me surpreendeu. Achei que alguém mirrado como ele não seriacapazdelutarassim.

— Eu ajudo você e você me ajuda. Pense só em como vai se sentirmelhordepoisqueencararseusdemônios—falei.

Não estava absolutamente seguro de que aquilo fosse verdade, masassimparecia. Tivede admitir, também, queboapartedemimmorria decuriosidadeparaveroqueSamfariaaosedefrontarcomatoda-poderosabanheira.

Meespremi juntoaeleparapassarpelaportaeuseiocotoveloparaacenderaluz.

—Cole—disseSam,numavozrepentinamentemaissuave.

Era apenas uma banheira. Apenas uma banheira vazia, do tipomaiscomumqueexiste:revestidadeazulejoscordemar imecomumacortinabranca puxada para a lateral. Uma aranha morta jazia junto ao ralo. Derepente,àvisãodabanheira,Sam lutoucontraosmeusbraçoscomtantaveemênciaquepreciseiusartodaaminhaforçaparaprendê-lo.Sentiseusmúsculostensossobmeusdedos,tentandoresistir.

—Porfavor—implorou.

— E só uma banheira— insisti, apertando os braços em torno dele.Masfoidesnecessário,poiseleseentregouporcompleto.

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•SAM•

Por um breve segundo, vi o lugar como ele era de verdade, do jeitocomo devo tê-lo visto ao longo dos primeiros sete anos da minha vida:apenas um banheiro normal, desbotado e cômodo. Mas meus olhosencontraramabanheiraenãopudesuportar.Euestavasentadoàmesadejantar,meupaiameu lado.Hásemanasminhamãenãosesentavapertodemim.Eladisse:

—Achoquenãotenhomaiscondiçõesdeamá-lo.EsteaínãoéoSam.Eumacoisaqueàsvezesseparececomele.

Havia ervilhas no meu prato. Eu não gostava de ervilhas. Fiqueisurpreso,porqueminhamãesabiadisso.Eunãoconseguiaparardeolharparaelas.Meupaifalou:

—Seidisso.

EuestavasendosacudidoporColeagora.

— Você não está morrendo — disse ele. — E só impressão. Entãomeus pais segurarammeus braços inos. Àminha frente, uma banheira,emboranão fossehoradobanhoeeuestivessevestido.Elesmepedirampara entrar na banheira e eu não quis, e acho que eles gostaram disso,porque a minha recusa era mais fácil de encarar do que a obediênciaconfiante.Meupaimeergueuemepôsnaágua.

—Sam—chamouCole.

Eu estava sentadonabanheira, vestido, a água fazendo a calça jeansmudar de cor, empapando minha camiseta azul favorita, com a listrabranca, fazendo-a grudar nas minhas costelas e me levando a pensar,duranteumminuto,umúnicoebem-vindominuto,quesetratavadeumabrincadeira.

—Sam—repetiuCole.

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Nãoentendinahora,apenasdepois.

Não foi enquanto minha mãe evitava me olhar, simplesmenteencarando a beirada da banheira e engolindo em seco, sem parar. Ouquandomeu pai estendeu o braço e disse o nome dela para obrigá-la aolhar para ele. Nemmesmo quando ela pegou uma das lâminas da mãoestendidadomarido,comocuidadodequemescolheumbiscoitodelicadonumpratodeiguarias.

Foiquandoelafinalmenteolhouparamim.

Nosolhos.Nosmeusolhosdelobo.

Videterminaçãoemseurosto.Ofimdaluta.

Efoientãoqueelesprecisarammeimobilizar.

•COLE•

Samestava longedali.Essaéaúnica formadedescreveracena.Seuolhar...Seuolhareravazio.Arrastei-oparaasalaeosacudi.

— Acorda! Não estamos mais lá! Olhe em volta, Sam. Saímos dobanheiro!

Quando soltei seus braços, Sam desabou no chão, as costas deencontro à parede, a cabeça entre as mãos. De repente, ele era só umamontoadodecotovelos,joelhosearticulações,deixando-osemrosto.

Nãofuicapazdede inirmeusentimentoaovê-loassim,sabendoqueoresponsávelpor issoeraeu, fosseaquilooque fosse.Comeceia ter raivadele.

—Sam?—chamei.

Passadoumbom tempo, ele respondeu sem levantar a cabeça,numavozestranha,baixaefina:

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—Medeixeempaz.Medeixeempaz.Quemaleufizavocê?

Sua respiração tornou-se irregular. Não eram propriamente soluços;pareciamaisfaltadear.

Baixei o olhar para ele e, de repente, a raiva me dominou. Ele nãodeviaterreagidotãomal.Eraapenasadrogadeumbanheiro.Eraelequeestavame tornando tão cruel— eu nada linha feito senão lhemostrar adrogadeumabanheira.Eunãoeraessapessoaqueeleimaginava.

— Beck fez a mesma escolha — disse, porque ele não iria mecontradizer.—Foioquemecontou.ElemedissequedepoisdeseformaremDireitotevetudooquequiseera infeliz.Contouque iasematar,masumsujeitochamadoPauloconvenceudequehaviaoutrasaída.

Sampermaneceuemsilêncio,excetoporsuarespiraçãoirregular.

— Ele me ofereceu a mesma coisa — falei. — Mas não consigopermanecer lobo.Nãomedigaquevocênãoquer saber.Vocêé tão ruimquantoeu.Olhebempravocê.Nãovenhamefalardeprejuízos.

Ele não se mexeu, e por isso o iz. Fui até a porta dos fundos e aescancarei. A noite tornara-se inclemente e gélida enquanto eu tomavameuporre,efuirecompensadocomumdolorosonónasentranhas.

Fugi.

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CAPÍTULO27•SAM•

Fuiadiantecomopreparodopão,socandoamassa,moldandoabroae botando-a no forno para assar. Minha cabeça ruminava palavrasdesconexas demais para se transformarem numa letra de música. Euestava meio ali, meio em outro lugar, de pé na mesma velha cozinha deBeck,numanoitequepodiaestaracontecendoagoraoudezanosantes.

Os rostos nas fotos do armário sorriam para mim, dezenas devariações diferentes deBeck e eu, Beck eUlrik, Paul eDerek, Ulrik e eu.Rostosaguardandoparaseremrevisitados.As fotospareciamdesbotadase velhas à claridade opaca da cozinha. Lembrei de Beck grudando-as aliquandoeramnovinhas,provasconcretasdosnossoslaços.

Pensei na forma como meus pais decidiram tão facilmente não meamar,sóporqueeueraincapazdemantermeuprópriocorpo.Eemcomoeu havia tão rapidamenteme esquivado de Beck quando pensei que eletinha infectadoos três lobosnovatos contraavontadedeles.Era comosepudessesentiroamorimperfeitodemeuspaiscorrendonasminhasveias,julgandotudotãorápido.

Quando inalmente notei que Cole havia partido, abri a porta dosfundoserecolhisuasroupasnoquintal.Fiqueiali,segurandoatrouxafrianasmãos,edeixeioarnoturnopeneirar,cortante,paraalémdascamadasdetudooquemefaziaserSameserhumano,chegandoatéoloboqueeuimaginava continuar à espreita dentro de mim. Mentalmente, passei emrevistaaspalavrasdeCole.

Seráqueeleestavamesmopedindoaminhaajuda?

Dei um pulo quando o telefone tocou. Ele não se encontrava nacozinha,emsuabase,por isso fuiatéa salaemesenteinobraçodosofáenquantoresgatavaoaparelho.Grace,torciintensamente.QuesejaGrace.

—Oi.

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Me ocorreu, tarde demais, que para Grace ligar tão tarde da noitedeveriahaveralgodeerrado.

MasnãofoiavozdeGracequerespondeu,emborasetratassedeumamulher.

—Quemestáfalando?

—Comoassim?—retorqui.

—Alguémligoudaíparaomeucelular.Duasvezes.

—Quemestáfalando?—perguntei.

—AngieBaranova.

—Ligaramquando?

—Ontem.Maiscedo.Nãodeixaramrecado.

Cole.Tinhaqueserele.Canalhadescuidado.

—Provavelmentefoiengano—falei.

— Provavelmente — repetiu ela. — Porque apenas quatro pessoastêmestenúmero.

ReviaminhaopiniãosobreCole.Canalhaburro.

—Comoeudisse—insisti—,devetersidoengano.

—OuCole—disseAngie.

—Comoassim?

Eladeuumrisinhofeioso,semamenorgraça.

— Quem quer que você seja, sei que não diria nada, mesmo se eleestivesse aí ao seu lado. Porque Cole é bom à beça nisso, concorda? Emconseguirquevocê façaoqueelequer.Bom,seeleestiveraíe se foielequemme ligou, diga que troquei de celular. O número é 9117-some-da-

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minha-vida.Obrigada.

Eentãoeladesligou.

Aperteiatecla"talk"novamenteparadesligarotelefoneemeinclineiparadevolvê-loàbase.OlheiparaapilhadelivrosdeBecknamesinha.Aolado,haviaumporta-retratoscomumafotosuatiradaporUlriklogodepoisdePaul ter jogadomostardaneleenquanto fazíamosumchurrasco.Beckmeolhavacomosolhossemicerrados,exibindomanchasamarelas irreaisnassobrancelhasetambémnoscílios.

—Parecequevocêescolheuumverdadeirovencedor—faleiparaafotodeBeck.

•GRACE•

Naquelanoite, iqueideitadanacamatentandoesquecero jeitocomoos lobos haviam me olhado e tentando ingir que Sam estava comigo.Pestanejandonoescuro,puxeio travesseirodeleparapertodemim,maseu já gastara todo o seu cheiro e agora o objeto não passava de umtravesseiro comum. Empurrei-o de volta para o seu lugar e levei, em vezdisso, a mão ao nariz, tentando descobrir se eu ainda cheirava como oslobos na loresta. Imaginei o rosto de Isabel quando ela disse Você sabeque isso temavercomos lobose tentei interpretarsuaexpressão.Nojo?Comoseeupudessecontagiá-la?Ouseriapena?

Se Sam estivesse comigo, eu teria sussurrado:Você acha que osmoribundossabemqueestãomorrendo?

Fizumacaretaparamimmesmanaescuridão.Sabiaqueestavasendomelodramática.

Queriaacreditarqueestavaapenassendomelodramática.

Pousando a mão sobre o meu ventre, pensei na dor torturante quemorava poucos centímetros abaixo dosmeus dedos.Naquelemomento, a

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dorpareciaanestesiada,letárgica.

Aperteiosdedoscontraapele.

Seiquevocêestáaí.

Eraumapenaeuestarsentadanacamaacordada,re letindosozinhasobre a minha mortalidade, quando Sam se encontrava a uma distânciapequena e facilmente percorrida de carro. Lancei um olhar inútil nadireção do quarto dosmeus pais, irritada por eles teremme privado dacompanhiadomeunamoradoquandoeumaisprecisavadele.

Seeumorresseagora,jamaisiriaparaafaculdade.Jamaisviveriaporconta própria. Jamais comprariaminha própria cafeteira (eu queria umavermelha).JamaismecasariacomSam.JamaischegariaaseraGracequedeveriaser.

Eutinhasidotãocuidadosaavidatoda.

Penseinomeupróprioenterro.Nãodavaparaimaginarmamãetendojuízo su iciente para planejá-lo. Papai faria isso em meio a telefonemaspara investidores e para os membros do Conselho da Associação deProprietários de Imóveis. Vovó! Ela talvez assumisse o encargo quandodescobrissequepéssimotrabalhoo ilho izeranacriaçãodaneta.Rachelapareceria,eprovavelmentealgunsdosmeusprofessores.Asra.Erskine,que queria que eu fosse arquiteta, semdúvida estaria lá. Isabel também,embora di icilmente chorosa. Me lembrei do enterro do irmão dela— acidade inteirapresente,porcausada idadedogaroto.Talvezeu reunisseuma boa plateia, mesmo sem nunca ter sido famosa em Mercy Falls,apenaspor termorrido cedodemais para ter realmente vivido. Seráquecostumam levar presentes nos enterros, como nos casamentos e chás debebê?

Ouvi um ruído do lado de fora do quarto. Em seguida, um estalorepentino,umpénoassoalhodemadeiraedepoisaportaseentreabrindodevagarzinho.

Durante um único e ín imo momento, pensei que pudesse ser Sam,entrando furtivamente sabe-se lá como. No entanto, do meu ninho decobertores, vi a silhueta dos ombros e da cabeça domeu pai quando ele

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entrou. Fiz o possível para ingir que estava dormindo, aomesmo tempoemquemantinhaosolhoslevementeentreabertos.Meupaiseaproximoucompassoshesitantesepensei,surpresa:Eleveiochecarseestoupassandobem.

Porém, tudo o que fez foi erguer o queixo um tantinho só, a im deolhar para algum lugar atrás de mim. Então me dei conta de que nãoestavaaliparaseassegurardequea ilhaestavabem.EstavaaliparaseassegurardaausênciadeSam.

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CAPÍTULO28•COLE•

Agachadonosolo frioda loresta, comespinhosenterradosnapalmada mão e os joelhos nus manchados de sangue, eu não conseguia melembrarháquantotempovirarahumano.

Me encontrava suspensonumamanhãpálida, a bruma tingindo tudodeumtompastelàmedidaquesefechavalentamenteaomeuredor.Oarfediaasangue,fezeseáguaestagnada.Bastouolharparaasminhasmãosparaverdeondevinhaofedor.Olago icavaaalgunsmetros,eentremime a água jazia um cervo morto. Uma dobra de pele se soltara de suascostelas,desnudando-lheasentranhascomoseestasfossemumpresentegrotesco.Eraosanguedelequemanchavameusjoelhose,comoagoraerapossível perceber, também as minhas mãos. Nos ramos lá em cima,invisíveisnabruma,corvossecomunicavamentresi,ansiososparaqueeuperdesseointeressepelaminhapresa.

Deiumaolhadaaoredor,procurandoosoutros lobosquedeviamterme ajudado a abater o animal, mas eles haviam me abandonado. Ou,falando mais francamente, eu os abandonara, transformando-me numrelutanteserhumano.

Um levemovimento chamouminha atenção. Olhei de soslaio em suadireção.Leveiuminstanteparaperceberoquesemexera—ocervo.Seuolho. Ele piscou, e ao fazê-lo vi que olhava diretamente para mim. Nãoestavamorto,masmoribundo.Engraçadocomoduascoisaspodemseraomesmo tempo tão semelhantese tãodistintas.Algonaexpressãodaqueleolhopretoelíquidofezdoeromeupeito.Era...paciência.Ouperdão.Eleseconformaracomodestinodesercomidovivo.

—MeuDeus—sussurrei, levantandodevagar,tentandonãoassustá-lomaisainda.Elesequerestremeceu.Apenaspiscou.Euquisrecuar,abrirespaço, deixá-lo fugir, mas os ossos expostos e as tripas espalhadas mediziamqueafugalheeraimpossível.Eujádestruíraseucorpo.

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Sentiumsorrisoamargodeformarmeuslábios.LáestavaomeuplanobrilhantededeixardeserColeemergulharnoesquecimento.Láestavaoplano.Nuemanchadodemorte,comoestômagovaziosecontorcendodefome,euencaravaumarefeiçãodestinadaaalgoquejánãoeramais.

O cervo piscou novamente, trazendo consigo uma expressãoextraordinariamentesuavequereviroumeuestômago.

Eu não podia deixá-lo daquele jeito. Sabia que não.Me certi iquei deondeestavacomumrápidoolharaoredor:avinteminutosapédoabrigo,talvez.E,senadahouvesseparamataroanimallá,maisdezatéacasa.Dequarentaminutosaumahoradeitadoali,comasentranhasexpostas.

Eu podia simplesmente ir embora. Ele estavamorrendo,mesmo. Erainevitável. Além disso, quanta importância pode ter o sofrimento de umcervo?

Ele piscou novamente, calado e tolerante. Muita — essa era aimportânciadosofrimentodeumcervo.

Procurei com os olhos alguma coisa que pudesse servir como arma.Nenhumadaspedrasnabeiradolagoerasu icientementegrandeparaterutilidade,e,dequalquerforma,nãopudemeimaginargolpeandoo infelizatématá-lo.Penseiemtudoquesabiasobreanatomiaesobreacidentesdecarroecatástrofes.Depois,olheidenovoparaascostelasdesnudas.

Engoliemseco.

Levei apenas um instante para encontrar um galho com umaextremidadeafiada.

Oolhome itou,negroevazio,eumadaspatasdianteirasestremeceu,lembrando de corridas passadas. Havia alguma coisa terrível naqueleterroraprisionadoemsilêncio,naquelasemoçõeslatentesquenãopodiamserexpressas.

—Sintomuito—eudisseaele.—Nãopretendosercruel.

Transpasseisuascostelascomogalho.

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Umavez.

Duasvezes.

Elegritou,umgritoagudoquenãoerahumanonemanimal,masalgoterrível entre ambos, o tipo de som que jamais se esquece, não importaquantas coisas bonitas se venha a escutar depois. Então calou-se, porqueospulmõesperfuradosficaramvazios.

Eleestavamorto,eeuqueriaestartambém.Iriadescobrirumjeitodepermanecerlobo.Nãoconseguiriapassarporissodenovo.

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CAPÍTULO29•GRACE•

Acheiquenãotinhadormido,masumabatidanaportadomeuquartome acordou eme indicou que talvez tivesse pego no sono. Abri os olhos.Meuquarto continuavaescuro.O relógiodiziaque já amanhecera.Quase.Osnúmerospiscavam5:30.

— Grace— dissemamãe, num tom demasiado alto para as 5:30 damanhã.—Precisamosfalarcomvocêantesdesair.

—Parairaonde?—indagueinumavozrouca,aindasemiadormecida.

— St. Paul — respondeu minha mãe, agora parecendo impaciente,comoseeudevessesaberaresposta.—Vocêestávestidadireito?

—Comopoderiaestar, a estahora?—resmunguei,masaceneiparaqueentrasse,jáquetinhadormidocomumablusaeumacalçadepijama.

Mamãeacendeualuzeeupisqueiantearepentinaclaridade.Maltivetempo de ver que ela vestia sua blusa branca plissada antes que papaisurgisse às suas costas. Ambos entraram no quarto. Os lábios delaostentavamumsorrisopro issionaleacaradomeupaipareciaesculpidaemcera.

Acheiquejamaisviraosdoiscomumaexpressãotãoconstrangida.

Eles trocaram olhares. Quase dava para ver balõezinhos de diálogopairandoacimadesuascabeças.Vocêcomeça.Não,começavocê.

Porissocomeceieu:

—Comoestásesentindo,Grace?

Mamãe fezumgestocomamão, comosedissessequeeraóbvioqueeuestavabem,jáquepodiamedaraoluxodesersarcástica.

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—HojeéaexposiçãodosArtistasAmadores.

Ela fez uma pausa para ver se eu precisava de maioresesclarecimentos. Não. Minha mãe comparecia ao evento todo ano —partindo ainda de madrugada com o carro cheio de obras de arte evoltandopor voltadameia- noite, exausta e como carrobemmais vazio.Papaiaacompanhavasemprequepodiatirarfolganotrabalho.Houveumanoemque fui comosdois. Eraumprédio enorme, cheiosdemães edegentecomprandoquadroscomoosdemamãe.Nãovolteimais.

—Certo—disse.—Edaí?

Elaolhouparaopapai.

—Daíquevocêcontinuadecastigo—disseomeupai.—Mesmonanossaausência.

Mesenteiumpoucomaiseretanacama,acabeçaprotestandocontraessemovimento.

—Podemoscon iaremvocê,nãoé?—prosseguiumamãe.—Nãovaifazernenhumabesteira,vai?

Minhas palavras saíram devagar e demasiado articuladas devido aoesforçoquepreciseifazerparanãogritar.

—Vocêsestão...Vocêsestãotentandosevingar?Porqueeu...—MinhaintençãoeracompletarcomeconomizeiàbeçaparadarissoaSam,mas,poralgummotivo,aideiadeterminarafrasetravouminhagarganta.Fecheiosolhosetorneiaabri-los.

-— Não — respondeu meu pai. — Você está sendo castigada.Dissemos que icaria de castigo até segunda-feira, e 6 isso que vaiacontecer. E uma pena que a sessão de Sam seja durante esse período.Quemsabenumoutrodia...

Elenãopareciaacharasituaçãodignadepena.

—Eprecisomarcarhoralácomváriosmesesdeantecedência,pai—argumentei.

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Achoquenuncahavia visto a boca domeupai se fechar numa linhatãofeia.Elerespondeu:

—Bom,talvezvocêdevesseterpesadomelhorsuasações.

Davaparasentirumadordecabeça latejandoentreassobrancelhas.Fizpressãocontraapeleeerguioolhar.

— Pai, era um presente de aniversário. Foi a única coisa que eleganhou,maisnada.Eimportanteparaele.—Avozsimplesmentemefugiu.Pareide falar.Preciseiengoliremsecoantesdeprosseguir.—Por favor,precisoir.Meponhadecastigonasegunda-feira.Meobrigueaesfregarobanheirocomaminhaescovadedentes.Masmedeixesair.

Os dois se entreolharam e, por um minuto, um minuto simples eimbecil,acheiquerefletiam.

Então,mamãedisse:

— Não con iamos em vocês dois sozinhos durante esse tempo todo.Nãoconfiamosmaisnele.

Nememmim.Falemlogo.

Maselespararamporaí.

— A resposta é não, Grace — concluiu papai. — Você pode seencontrarcomeleamanhã,edêgraçasaDeusporpermitirmosisso.

—Permitir isso?— atalhei. Minhasmãos se fecharam em punho decada lado do meu corpo. A raiva cresceu dentro de mim. Pus a mão norosto,quentecomooverão,e,derepente,nãoaguenteimais.

— Vocês têm controlado isso à distância durante a maior parte daminhaadolescência,eagorasimplesmentesurgemaquidizendo:Desculpe,Grace,masestepedacinhodevidaquevocêconseguiuconstruir,essapessoaquevocêescolheu...DêgraçasaDeuspornãotirarmosissodevocêtambém.

Mamãeergueuasmãos,desanimada.

—Francamente,Grace.Chegadetantoteatro.Comoseprecisássemos

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demaisprovasdequevocênãoémadurao su icienteparapassar tantotempocomSam.Vocêtem17anoseorestodavidapelafrente.Isso nãoéofimdomundo.Daquiacincoanos...

—Não...—intervim.

Paraminhasurpresa,elaparou.

—Nãovenhamedizerquedaquiacincoanostereiesquecidoonomedele, ou o quer que fosse dizer. Pare de me tratar como criança.—Melevantei, afastando as cobertas para os pés da cama. — Vocês doispassaram muito tempo longe para ingir que sabem o que se passa naminhacabeça.Porquenãosaempara jantarouparapassarodia inteirona inauguraçãodealgumagaleriaouexposição, torcendoparaestar tudobem comigo quando voltarem? Ah, isso mesmo. Vocês já estão saindo.Escolham:paisoucolegas.Nãodáparaserumacoisaederepentequererseraoutra.

Fez-seumalongapausa.Mamãeolhavaparaocantodoquarto,comose houvesse uma música fantástica tocando em sua cabeça. Papai meencaravacomatestafranzida.Finalmente,elebalançouacabeça.

—Vamos terumaconversasériaquandochegarmosemcasa,Grace.Não acho justo da sua parte começar um debate quando sabe que nãoseremoscapazesdeficaratéofim.

Cruzei os braços, as mãos fechadas. Ele não faria com que eu meenvergonhassedoquehaviadito.Nãomesmo.Eujátinhaesperadotempodemaisparadizertudoisso.

Mamãeconsultouorelógio,eoencantosequebrou.

Papaijáseencaminhavaparaaportaquandodisse:

—Agenteconversadepois,precisamosir.

Mamãe,parecendorecitaralgumacoisaouvidadomeupai,concluiu:

—Temoscertezadequevocêrespeitaráanossaautoridade.

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Masnãoerabemassim,porquedepoisquesaíram,fuiatéacozinhaedescobriquehaviamlevadoachavedomeucarro.

Nãome importei. Eu tinha outra, da qual eles não sabiam, naminhamochila.Dentrodemim,haviaalgumacoisainvisíveleperigosaàespreita,eeujáestavafartadeserboazinha.

***

CHEGUEIÀCASADEBECKlogoapósoamanhecer.

— Sam?— chamei, mas não houve resposta. Claramente não havianinguémno andar de baixo, por issome dirigi ao de cima.Não demorounadinha para eu encontrar o quarto de Sam. O sol ainda não começaradireito sua escalada no céu, e apenas uma claridade anêmica penetravapela janeladocômodo.Eraosu iciente,porém,paraqueeuvisse indíciosdevida:oslençóisatiradosdeladonacamaeumacalçajeansemboladanochão, ao ladodeumpardemeias escuras, do avesso, edeuma camisetadescartada.

Durante um longo momento, simplesmente permaneci junto à cama,olhandoos lençóis emaranhados. Então,medeitei.O travesseiro cheiravaao cabelo de Sam, e depois de dormir mal várias noites sem ele, aquelacamapareciaoparaíso.Eunãosabiadoseuparadeiro,mas tinhacertezade que ele voltaria. Já me sentia novamente na sua companhia. Minhaspálpebrasficaramrepentinamentepesadas.

Portrásdosolhos fechados,sentiumasériedeemoções,sentimentose sensações con litantes. A dor onipresente nomeu estômago. A pontadade invejaquandopensavaemOlí-via transformadaem loba.Acruezadaraivacontraosmeuspais.A ferocidadeavassaladoradasaudadedeSam.Otoquedelábiosnaminhatesta.

Antes que me desse conta, adormeci— ou melhor, acordei. Pareciaque não havia se passado tempo algum, mas quando abri os olhos, euestavadefrenteparaaparede,comoedredommecobrindoosombros.

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Emgeral,quandoeuacordavaemalgumoutrolugarquenãoaminhacama—nacasadaminhaavóounaspoucasvezesemquemehospedeiem hotéis, quando era menor — , havia um momento de confusãoenquanto meu corpo descobria por que a claridade era diferente e otravesseiro não era o meu. Mas abrir os olhos no quarto de Sam foi...apenasabrirosolhos.Comosemeucorpofosseincapazdeesquecerondeestavamesmoduranteosono.

Por isso, quandome virei para examinar o resto do cômodo e vi ospássarosdançandoentremimeoteto,nãofiqueisurpresa,masencantada.Dezenas de pássaros de origami, de todo tipo, i amanho e cor, dançavamlentamente com a brisa que saía das grades do aquecedor: era vida emcâmera lenta. A luz agora brilhante que entrava pela janela projetava assombrasdospássarosdançantespor todooquarto:no teto,nasparedes,sobre aspilhas e asprateleirasde livros, no edredom,nomeu rosto. Eralindo.

Imaginei quanto tempo teria dormido. E também por onde andariaSam.Aoesticarosbraçosacimadacabeça,percebiquedavaparaescutaro barulho monótono do chuveiro através da porta aberta. Ouvi a vozabafadadeSamseimporsobreosomdochuveiro:

Aquelesdiasperfeitosdevidro

Naprateleiramantidos

Dançandosombrasperfeitas,crescentes

Nosdiasfalhosdagente.

***

ELE CANTOU o MESMO VERSO duas vezes, mudandoperfeitas,crescentes paramutantes, reluzentes e, depois, paramutantes, crescentes.

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Suavozecoavaúmidanobanheiro.

Sorri, embora não houvesse ninguém para ver meu sorriso. A brigacom meus pais parecia ter acontecido com uma Grace do passado.Chutandoascobertas, iqueidepé,minhacabeçafazendoumdospássarosentraremórbita.Erguiamãoa imdepará-loedepoispasseientreeles,examinando o material de que eram feitos. O que havia esbarrado naminhacabeçasaíradeumapáginadejornal.Haviaoutrofeitocomacapabrilhosa de uma revista. Mais um, de um bonito papel estampado comloresefolhaselaboradas.Umpássaropequenininhoemeiotortoconsistiadeduasnotasdeumdólarcoladascomdurex.Umboletimescolardeumcurso por correspondência em Maryland. Tantas histórias e lembrançastransformadas para serem seguramente eternizadas. Era bem típico deSampendurá-losacimadacamaondedormia.

Passeiodedonoque icavadiretamenteacimadoseutravesseiro.Eraum pedaço amassado de um bloco de notas coberto com a caligra ia deSam, ecoando a vozque eu acabaradeouvir.Umadas estrofes falavadeumagarotadeitadananeve.

Dei um suspiro. Havia, dentro de mim, uma sensação estranha devazio.Nãoumvaziodesagradável,esimumaespéciejdefaltadesensação,comoacontecedepoisqueagentesentedorduranteumbomtempoe,derepente,sedácontadequeadorpassou.Asensaçãodeterarriscadotudoparaestaraquicomumrapazeperceber,então,queeleeraexatamenteoqueeuqueria.Deserumquadroe,derepente,perceberquenaverdadesouumquebra-cabeças,depoisdeencontrarapeçaquesupostamenteseencaixaaomeulado.

Sorridenovo,eosdelicadospássarosdançaramàminhavolta.

—Oi—disseSamdaportadobanheiro.Suavozeracautelosa,incertapor não saber que lugar ele ocupava hoje, depois de tantos dias deseparação.Ocabeloestavaarrepiadoporcausadobanho,eelevestiaumacamisa social que o deixava estranhamente formal, apesar da calça jeansamarfanhada.Minhamentegritou:Sam,Sam,finalmente.

—Oi—respondi,enãoconseguiconterumsorriso.Mordiolábio,maso sorriso continuou ali, crescendo ainda mais quando o rosto de Sam odevolveu paramim. Lá estava eu entre seus pássaros, o formato domeu

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corpo ainda impresso nos lençóis da cama, o sol me banhando e a eletambém. As minhas preocupações da noite anterior pareciamincrivelmenteinsignificantescomparadasaoimensobrilhodaquelamanhã.

De repente me vi extasiada diante daquele rapaz incrível de pé àminhafrente,etambémcomofatodeelesermeueeu,dele.

—Neste exatomomento— disse ele, e vi que segurava a fatura dasessãonoestúdio,dobradaparaformarumpássarocomasasbanhadasdesol—,édifícilimaginarqueestejachovendoemalgumlugardomundo.

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CAPÍTULO30•COLE•

Eunãoconseguialivrarminhasnarinasdocheirodosanguedele.

Samjátinhaidoemboraquandocheguei.Nãohavianenhumcarronaentrada,eointeriordacasaestavacheiodeecosedevazio.Entreiàtodanobanheirodotérreo—o tapetinhocontinuavaemboladodepoisda lutaentreSamemimnanoiteanterior—eabriatorneiradeáguaquentenamaisalta temperatura suportável.Depois, iqueidepénabanheiraeviosangue escorrer pelo ralo. Parecia negro à luz baça que a cortina dochuveiro iltrava. Esfregando as mãos e arranhando os braços, tenteiapagar do meu corpo até o último vestígio do cervo, mas por mais queesfregasse a pele, continuava a sentir seu cheiro. E cada vez que issoacontecia, euviaoanimal.Aqueleolhoescuroe conformado ixoemmimenquantoeuolhavafixamenteparasuasentranhas.

Então me lembrei de Victor me olhando, deitado no chão do abrigo,amargo,aomesmotempoVictorelobo.Minhaculpa.

Meocorreuentãoqueeueraoopostodomeupai.Porqueeramuito,muitobomparadestruircoisas.

Me inclinei e girei a torneira para o frio máximo. Por um brevemomento, enquanto havia água quente su iciente para igualar atemperaturadomeucorpo,mesenti invisível.Depois,aágua icougélida.Solteipalavrõeseluteicontraoimpulsodepularforadabanheira.

Imediatamente, minha pele se arrepiou. A reação foi tão rápida quechegouadoer,edeixeiqueaminhacabeçaseinclinasseparatrás.Aáguamedesceupelopescoço.

Transforme-se,transforme-seagora.

Mas a água não estava fria o bastante para obrigarmeu corpo a setransformar.Erafriaobastanteapenasparamerevirarasentranhasemedeixarenjoado.Useiopéparafecharatorneira.

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Porqueeucontinuavahumano?

Não fazia sentido. Se virar lobo era algo cientí ico e não mágico, oprocesso deveria obedecer a regras e à lógica. E o fato de que os lobosnovatos se transformavam em temperaturas distintas e em momentosdistintos... Não fazia sentido. Minha cabeça só pensava em Victor setransformando de lobo em gente, de gente em lobo, o lobo branco meobservandosilenciosamente,seguroemseucorpolupino,enquantoamimrestavavagarpeloscorredoresdacasaeaguardaraminhatransformação.Peguei a toalha de rosto na pia e usei-a para me enxugar, enquantoremexia nos armários do térreo em busca de roupas. Encontrei ummoletomazul-marinhocomapalavramarinhaeumacalçajeansque icoumeiofolgada,masquenãomecaiupelaspernas.Durantetodootempoemque procurei algo para vestir, minha cabeça zumbia, investigandopossibilidadesparaumalógicanova.

Talvez Beck estivesse errado sobre o frio e o calor causarem astransformações.Talveznãosetratasse,realmente,decausas.Talvezofrioe o calor fossem apenas catalisadores, talvez existissem outrasmaneirasdedesencadearatransformação.

Eu precisava de papel. Não conseguia pensar sem anotar meuspensamentos.

Peguei algumas folhas no escritório de Beck, juntamente com a suaagenda. Sentei-me àmesa da sala de jantar, canela emmãos, a calefaçãosoprando suavemente pelas grades do aquecedor e me deixandoaconchegado e sonolento. Minha mente, na mesma hora, viajou para amesade jantardosmeuspais.Todamanhã,eumesentavaalicomomeucaderninhodeideias—sugestãodomeupai—efaziameudeverdecasa,escrevia letrasdemúsicaou comentava alguma coisaqueha via vistononoticiário. Isso foinopassado,quandoeu tinhacertezadequemudariaomundo.

Pensei em Victor, de olhos fechados enquanto embarcava em outraviagem.O rosto daminhamãe quando eu lhe dissipara ir para o infernocom meu pai. As inúmeras garotas que acordavam e descobriam terdormidocomumfantasma,porqueeu jánãoestavamais lá—aindaquede corpo presente— depois de embarcar numa viagem promovida por

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umagarrafaouumaseringa.AformacomoAngieapertouopeitoquandoeulheconteiqueatraíra.

Ah,semdúvidaeuhaviamudadoomundo.

Abriaagendaefolheeisuaspáginas,semsequerlê-las,apenasdandoumaolhada,procurandopistas.Havia,aquieacolá,peçassoltasquetalvezfossem úteis, mas que, sozinhas, não faziam sentido algum:Achei um doslobosmorto hoje; olhei em seus olhos,mas paramim ele não era ninguém.Pauldissequeelehaviaparadodesetransformarhá14anos.Orostoestavaensanguentado.O fedoreraterrível.Derektransformou-seemloboduranteduas horas em pleno verão; Ulrik e eu passamos a tarde toda tentandoentenderisso.E:PorqueSampossuiumnúmeromuitomenordeanosqueorestante de nós? Ele é o melhor de todos. Por que a vida precisa ser tãoinjusta?

Baixei o olhar para a minha mão. Ainda havia um pouquinho desangue sob a unha do polegar. Não achei que o sangue iceasse na peledepoisda transformação;elemanchariameuspelos,nãominhapele. Issosigni icava que o sangue devia ter entrado ali depois que me torneihumano.Naquelesminutosnãocronometradosemquemeucorpohumanomefoidevolvido,masantesdeeumetornarnovamenteCole.

Descanseiacabeçanamesa.Amadeirapareciageladadeencontroàminhapele.Aparentemente,eraumesforçodemasiadograndedestrinchara lógica do lobisomem. Ainda que eu conseguisse — ainda que eudescobrisse o que realmente ocasionava as transformações e para ondeiamnossasmentesquandonãoacompanhavamosnossoscorpos— ,porque faria isso? Para me transformar em lobo para sempre? Todo essetrabalho apenas para preservar uma vida da qual eu nãome lembraria?Preservarumavidaquenãovaliaapenapreservar?

Eu sabia por experiência própria que havia meios mais fáceis paraalguém se livrar do raciocínio consciente. Conhecia um, que até então aminha covardia excessiva me impedira de experimentar, cujo resultadoseriapermanente.

EucontaraaAngieumavez.Muitoantesqueelapassasseameodiar,creioeu.Eubrincavano teclado,devoltadaminhaprimeira turnê,épocaemque omundo todo se jogava ameus pés como se eu fosse aomesmo

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tempo rei e conquistador, cheio de possibilidades. Angie ainda não sabiaqueeuatraíraduranteaturnê.Outalvezsoubesse.Quandopareidetocar,comosdedosaindasobreasnotas,eudisseaela:

—Andopensandoemmematar.

De onde estava, na velha espreguiçadeira que tínhamosna garagem,Angienãoergueuoolharnaminhadireção.

—E,foioqueimaginei—disseela.—Eoqueestáachandodaideia?

—De initivamente, tem lá suasvantagens—respondi.—Só consigopensaremumadesvantagem.

Elanãodissenadaduranteumlongomomento,edepoisfalou:

—A inal, por quedizer uma coisa dessas?Você quer que eu te façadesistir? A única pessoa capaz disso é vocêmesmo, Você é o gênio. Sabedisso.Oquesignificaquevocêsóqueichocar.

— Chocar, uma ova!— discordei.— Eu realmente estava querendoumconselho,masdeixapralá.

— O que você acha que vou dizer?"Você é meu namorado, vá emfrente,semate.Eumótimojeitodeescapar."Claroqueeudiriaisso.

Na minha cabeça, eu estava num hotel, deixando minha calça sertiradaporumagarotachamadaRochelle,queeu jamaisverianovamente.Era algo automático, sem qualquer signi icado. Fechei os olhos e deixei oautodesprezomeseduzirsuavementecomseucantodesereia.

—Nãosei,Angie,nãosei.Eunãopensei,Ok?Sódisseoquemepassoupelacabeça.

Ela mordeu a articulação de um dedo e olhou para o chão por uminstante.

— Certo. Pense nisto: redenção. Essa é a maior desvantagem queconsigoimaginar.Vocêsemata,éo im.Éassimqueserálembrado.Issoeoinferno.Vocêaindaacreditanoinferno?

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Eu perdera aminha cruz em algum ponto da estrada. A corrente serompeueelaagoraprovavelmenteestavanobanheirodealgumpostodegasolina, enrolada nos lençóis de umhotel ou cintilando como lembrançanamãodealguémcomquemeunãopretenderadeixá-la.

—Acredito—respondi,porqueaindaacreditavano inferno.Sobreocéuéqueeujánãotinhatantacerteza.

Não voltei ao assunto com ela. A inal, ela tinha razão: a única pessoacapazdemefazeriremfrenteoudesistireraeumesmo.

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CAPÍTULO31•GRACE•

AcadaminutonosdistanciávamosmaisdeMercyFallsedeludooquehavialá.

Pegamos o carro de Sam porque era movido a diesel e consumiamenos combustível, mas ele me deixou dirigir porque sabia que eugostava. O aparelho de CD ainda continha um dos meus CDs de Mozartquando começamos a viagem, mas troquei para a estação de rockpreferida de Sam, que piscou, surpreso. Tentei não parecer convencidademaisporestaraprendendoasualinguagem.Maislentamente,talvez,doque ele estava aprendendo a minha, porém com rapidez su iciente paramedeixarimpressionadacomigomesma.

O dia estava bonito e ensolarado, os trechos baixos da estradacobertos com uma bruma ina e pálida que começou a se dissipar assimque o sol se ergueu acima das árvores. Um cantor de voz melosa,acompanhado por um violão persuasivo, soltava a voz pelos alto-falantes.Ele me lembrou Sam. A meu lado, Sam estendeu o braço por sobre oencostodomeubancoparabeliscarcarinhosamenteumadasvértebrasdomeupescoço,aomesmotempoemquecantarolavaaletradamúsicanumavoz que soava afetuosa e familiar. Apesar dasminhas pernas levementedoloridas,foidi ícilignorarasensaçãodequeomundoeraabsolutamenteperfeito.

—Vocêjásabeoquevaicantar?—perguntei.

Sam encostou a bochecha no braço esticado e traçou círculospreguiçososnapartedetrásdomeupescoço.

—Nãosei.Vocêmepegoudesurpresa.E iqueiumpoucopreocupadocom o meu ostracismo dos últimos dias. Acho que vou cantar... algumacoisa.

Podeserumfiasco.

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—Nãoacho.Oquevocêestavacantandonochuveiro?

Elenãodemonstroutimidezaoresponder,oqueeraaomesmotempoincomum e encantador. Comecei a me dar conta de que a músicarepresentavaaúnicapelenaqualSamsesentiarealmenteàvontade.

Umamúsicanova.Talvezeucanteumamúsicanova.É...talvez.

Entrei na rodovia interestadual. Aquela hora do dia, a pista estavavaziaepertenciaexclusivamenteanós.

—Umacantigadeninar?

—Umacantigadeninar.Maisparaumacançãofetal.Achoqueaindanãotemnembraçosnempernas.Epa,achoqueestouconfundindobebêscomgirinos.

Luteiparame lembrardequeparteosbebêsdesenvolviamprimeiroefracasseiredondamenteemproduzirumarespostarápida.Porisso,faleiapenas:

—Sobremim?

—Todassãosobrevocê—respondeuSam.

—Sempressão.

— Não precisa se sentir pressionada. Basta lutuar pela vida sendoGrace, e eu é que tenho de correr para acompanhar suas mudanças deformacriativaelírica.Vocênãoéumalvomóvel,sabia?

Franzi a testa. Semprepensei emmimmesma como frustrantementeimutável.

— Sei no que está pensando. Mas você está bem aqui, não ó? —indagou Sam, usando a mão livre para apontar com o dedo o bancoestofadodocarro.

—Vocêlutouparavircomigo,semaceitarocastigodeumasemana. Énissoquediscosinteirossebaseiam.

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Elenão sabiadamissaametade.Euestava tomadaporumaemoçãomulticolorida, ummisto de culpa, autopiedade, incerteza e nervosismo, enãosabiaoqueerapior:esconderdelequeocastigocontinuavaemvigorequehaviadentrodemimumadoençaquesócresciaoumeabrirdevez.Sabia, porém, de uma coisa: que não seria capaz de fazer nada daquilo.Alémdisso,tambémnãoqueriaestragaraqueledia.Oaniversárioperfeito.Quemsabeànoite,quemsabeamanhã.

Eueramaiscomplexadoque imaginara.Continuavasemsabercomoserviriadematerialparaumdisco,emborameagradasseaideiadeter,defato,feitoalgocapazdeimpressionarSam,quemeconheciamelhorqueeumesma.Mudei,ligeiramente,deassunto.

—Comovaisechamaroseuálbum?

—Bom,nãovougravarumálbumhoje.Voufazerumademo.

Dispenseicomumgestooesclarecimento.

—Quandovocêgravarumálbum,comovaiseronome?

—ApenasSam—respondeuSam.

—Detestoálbunsassim.

—Brinquedosquebrados.

— Parece mais o nome de uma banda — comentei, balançando acabeça.

Elebeliscouumpedacinhodaminhapelecomforçasuficienteparamefazersoltarumai.

—PerseguindoGrace.

—Nadacomomeunome—falei,séria.

—Ora,vocêestádificultandodemais.Lembrançasdepapel.Quetal?

Refleti.

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—Porquê?Ah,ospássaros.Pareceestranhoeununcatersabidodospássarosnoseuquarto.

—Eunão iznenhumdepoisde teconhecer—esclareceuSam.—Oúltimoédoverãoretrasado.Todososnovosestãonalojaounoseuquarto.Aquelequartoécomoummuseu.

—Nãoémais—falei,olhandoparaele.Samestavapálidoeinvernalàluzdamanhã.Mudeidepistaapenaspornãoteroquefazer.

—Temrazão—admitiuele.Afastando-sedemime retirandoamãoda parte de trás da minha cabeça, ele correu os dedos pela grade dacalefaçãoàsuafrente.Quefaltamehaviamfeitoseusdedos.—Quetipodesujeitoseuspaisesperamquevocêescolhacomomarido?Alguémmelhorqueeu?

Adoteiumaexpressãozombeteira.

—Quediferençafazoqueelespensam?—perguntei.

Percebi,tardedemais,oqueelehaviadito,eàquelaalturanãosoubeoque retrucar.Não consegui concluir se elepensavamesmoassimounão.Samnunca tinhamepedido, realmente, emcasamento.Nãoera amesmacoisa.Eunãosoubedizercomomesenti.

Sam engoliu em seco e continuou abrindo e fechando a grade dacalefação.

— Eu me pergunto o que teria acontecido se você não tivesse meconhecido. Se, depois de formada, arrumaria uma bolsa para setransformarnumgêniodamatemáticaemqualquerquesejaa instituiçãoonde estudam os gênios. E acabasse conhecendo um supercérebroextremamentecharmoso,bem-sucedidoedivertido.

De todas as coisas que me deixavam intrigada em Sam, essa erasempre amais intrigante: asmudançasdehumor súbitas e demeritórias.Maseujáouviramuitasvezesmeupaitentandodesmisti icarosmedosdamamãe,quenãoerammuitodiferentesdosdeSam.Seráqueessaeraumadascaracterísticasdaspessoascriativas?

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—Nãosejabobo—disseaele.—Nãosaioporaí imaginandooqueaconteceriasevocêtivesseresgatadooutragarotadaneve.

—Não?Sintoumcertoalívio—disseSam,aumentandoacalefaçãoedescansando os pulsos na grade. O sol que entrava pelo para-brisa jáestava nos cozinhando, mas ele parecia um gato, jamais aquecido osu iciente.—Edi ícilmehabituarà ideiade serumgarotopara sempre.Preciso de fato crescer. O que me faz pensar que devo arrumar outroemprego.

—Outroemprego?Emoutrolugarquenãonalivraria?

—Nãoseiexatamentecomofuncionamas inançasdacasa.Seiquehádinheirodepositadonobancoequeelerende.Seitambémquedevezemquandoentradinheirodealgumfundooucoisaassim,masdesconheçoosdetalhes.Nãoquerogastarodinheirotodo,porisso...

— Por que você não fala com alguém do banco? Garanto que eles,depoisdechecaremamovimentação,vãopoderdarumaorientação.

—NãoquerofalarcomninguématétercertezadequeB...

Samparou.Nãofezapenasumapausa,maspôsumponto.

Otipodepontoqueémaisde initivoqueumponto inal.Olhou,então,pelajanela.

Leveiumminutoparadescobriroqueelepretendiadizer.Beck.Samnão queria falar comninguém sobre esse assunto até ter certeza de queBecknãosetransformariamais.Seusdedosestavambrancosdetantoqueeleospressionavacontraagradedaventilação,eseusombrosdenotavamumaenormetensão.

—Sam—disse,encarando-otantoquantopossívelsemtirarosolhosdaestrada.—Estátudobem?

Sampôsasmãosfechadasnocolo,umasobreaoutra.

—Porqueeletevequearrumaresseslobosnovos,Grace?—indagoufinalmente.—Issotornatudomuitomaisdifícil.Agenteestavaindobem.

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—Ele não tinha como saber o que aconteceu com você— retorqui,olhandodesoslaioparaSam,quetraçavacomodedoumalinhaqueiadatestaàpontadonarizevoltavaà testa.Busqueinaestradaumasaídaoualgum lugar onde parar o carro. — Ele achou que... — Não conseguiterminarafrasedaformacomopretendia:fosseseuúltimoano.

—MasCole...NãoseioquefazercomCole—confessouSam.—Sintoqueexistealgonelequeeudeviaestarsacandoenãoestou.Sevocêvisseos olhos dele, Grace, nossa, se você visse os olhos dele, saberia que temalgomuitoerradoali,algoquebrado.Eosoutrosdois...EOlívia...Euqueroquevocêváparaafaculdadeepreciso...Alguémprecisa...Nãoseioqueseesperademim,masparecedemais.NãoseiotantoqueBeckgostariaqueeufizesseenãoseiotantoqueeumesmoesperodemim.Estoutão...

Eleparoucomumsuspiro,eeunãosoubecomoconsolá-lo.

Percorremos uma boa distância em silêncio, com acordes breves deum violão ao fundo, enquanto listras brancas in indáveis se estendiam àfrente. Os dedos de Sam pressionados contra o lábio superiordemonstravamseuespantocomaadmissãodaprópriaincerteza.

—Aindaacordando—falei.

Elemeencarou.

—Seudisco.Aindaacordando.

Eleme lançouumolhar intenso.Talvez surpreso,poreu ter chegadotãoperto.

— E precisamente isso que eu sinto. Precisamente. Cedo ou tardeacabomehabituandoà ideiadeque édemanhã edequevou continuarsendogentepelo restododia. Pelo restode todososdiasdaminhavida.Masatélá,vouandaraostropeços.

Olheinasuadireçãoenossosolharessecruzaram.

—Acontececomtodomundo.Todosumdiasedãocontadequenãoserão crianças para sempre, de que vão crescer. Você só está passandopor esse momento um pouco mais tarde do que a maioria de nós. Vai

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acabardandoumjeito.

OlentosorrisodeSamfoitriste,porémsincero.

—VocêeBecksãofeitosdomesmíssimomaterial—concluiu.

—Deveserporissoquevocêamaanósdois—observei.

Samesticouocintodesegurançacomosefosseumacordadeviolãoeassentiu.Passadosalgunsmomentos,disse,pen-sativo:

— Ainda acordando. Um dia, Grace, vou escrever uma música paravocêevoudaraelaessenome.Evoubatizarodiscocomomesmotítulo.

—Porquesousábia—disse.

—Isso—disseSam.

Olhou,então,pelajanela,oquemedeixousatisfeita,porquetivetempoderemexeremmeubolsoparapegarumlençodepapelsemqueelevisse.Meunarizcomeçaraasangrar.

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CAPÍTULO32•ISABEL•

A cada passo da minha corrida, minha respiração saía como umatorrente. Um passo para inspirar mais um pouco de ar frio. Outro paraexpirar.Umpassosemrespirar.

Faziatempodemaisqueeunãocorria,emaistempoaindaqueeunãocorria uma distância tão grande. Sempre gostei de correr porqueaproveitavaparapensar,bem longedecasaedosmeuspais.MasdepoisdamortedeJack,eunãoquismaispensar.

Issoestavamudando,agora.

Daí eu ter voltado a correr, embora estivesse frio demais para seragradável e eu me encontrasse fora de forma. Apesar do tênis novo edeslumbrante,minhascanelasestavammematando.

EucorriaparaCole.

Mesmo que eu estivesse em ótima forma, a distância entre a minhacasaeadeBeckseriagrandedemaisparaumacorrida,porissoestacioneia cinco quilômetros de lá,me alonguei sob a bruma transparente e dei alargada.

Cinco quilômetrosme dariam tempo su iciente paramudar de ideia,masaliestavaeu,jávendoacasaeaindacorrendo.

Provavelmenteminha aparência era terrível, mas e daí? Se a minhaintençãoeraapenasconversar,aaparêncianãofariadiferença,certo?

A entrada de carros estava vazia. Sam já havia saído. Não soube aocertoseaminhasensaçãofoidealíviooudedecepção.Issosigni icava,nomínimo, que era grande a probabilidade de encontrar a casa totalmentevazia,porqueColedeviaestaremseucorpodelobo.

Maisumavez,nãosoubedizersemesentiaaliviadaoudesapontada.

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Aalgunsmetrosdacasa,diminuíopasso,pressionandoopontodedorna altura das costelas. Praticamente já recuperara o fôlego ao chegar àportadosfundos.Experimenteiamaçaneta,quegirou.Aportaseabriu.

Entrei na casa e relutei junto à porta. Já estava prestes a gritar "oi"quandomedeicontadequetalvezColenãofosseoúnicohumanoali.Porisso iquei no cantinho escuro ao lado da entrada, olhando para a áreamais iluminadadacozinhaeme lembrandode terobservadoali,naquelacasa,meuirmãomorrer.

Era fácil paraGrace dizer que a culpa não foiminha. Palavras dessetiponãosignificavamcoisaalguma.

Um barulho repentino e trovejanteme fez dar um pulo. Fez-se umalongapausae,depois,maisruídosdecoisascaindoebatendo,seguidosporalgum tipo de comoção em outra parte da casa. Era uma espécie dediscussão semvozes.Durante umbom tempo, iquei ali parada, tentandoresolver se devia ou não simplesmente voltar lá para fora e correr até omeucarro.

Vocêjáficoudebraçoscruzadosumaveznestacasa,pensei,pesarosa.

Por isso, avancei para o interior do aposento, passandopela cozinha.Hesiteinocorredor,dandoumaolhadanasala,sementenderdireitooqueviaàminhafrente.Euvia...água.

Trilhas irregulares de água cintilavam em desenhos inos pelo chão,tãoperfeitosquepareciamgelo.

Ergui os olhospara registrar o restanteda sala.Destruição total.Umabajur estava caído sobre o sofá, a cúpula torta, e havia porta-retratosespalhados por todo o chão. O tapete da cozinha fora atirado contra alateral de uma das mesinhas, encharcado de um dos lados, e uma dascadeiras caíra de banda, como um transeunte chocado demais para icardepé.Entreipassoapassonasaladeestar,atentaamaisbarulhos,masacasaemudecera.

A destruição, de tão bizarra, só podia ter sido intencional — livroscaídosdecabeçaparabaixoempoçasd'água,aspáginasarrancadas;latasamassadas de comida encostadas na parede; uma garrafa vazia de vinho

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incada ao contrário num vaso de plantas; a pintura arrancada dasparedes.

Entãovolteiaouvirossonsdepassospesadoseencon-trões,e,antesqueeupudessereagir,umloboseaproximoucambaleandopelocorredor,chocando-se contra a parede à medida que andava. Comecei a entendercomoasalaficaraemtalestado.

—Caram...—exclamei,recuandoparaacozinha.Nãoparecia,porém,que o lobo estivesse interessado em atacar. Escorria água de seu corpodurante aquele passeio errático pelo corredor. O animal aparentava serestranhamentepequenonaquelecontexto,comopelomarromacinzentadoempapadoegrudadonocorpo,nãometendomaismedoqueumcachorro.O loboseafastoualgunsmetrosedepoismeencaroucomolhosverdeseinsolentes.

— Cole — exclamei bem baixinho, com o coração na boca. — Seulouco.

Paraminhasurpresa,eleestremeceuaoouvirminhavoz, lembrando-me de que era apenas um lobo e de que seus instintos deviam estar lheavisandoqueminhapresençabarravasuasaída.

Recuei,mas antes que pudesse decidir se devia tentar abrir a portaparafacilitarsuafuga,Colecomeçouasecontorcer.Quandoestavaapenasa algunsmetros demim, entrou em convulsão, torcendo-se e vomitando.Dei alguns passos para trás, a im de poupar meus belos tênis novos, ecruzeiosbraçosparaobservarsuatransformação.

Cole deixou mais algumas marcas de garra na parede — Sam iriaadorarisso—quandoteveumaespéciedeconvulsão.Entãoseucorpofezmágica. A pele se encheu de bolhas e esticou, e vi sua comprida boca deloboseabrirdedor.Elerolounochão,resfolegando.

Recém-transformado em humano, icou deitado no chão como umabaleiaqueomar jogana areia, osbraços exibindo lembranças róseasdeferidas.Abriuentãoosolhosemeencarou.

Meuestômagodeuumsalto.Cole recuperaraseurosto,masosolhostinhamumaexpressãoselvagem,perdidosemseuspensamentos lupinos.

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Por im, ele piscou e suas sobrancelhas adotaram, por conta própria, umarqueadoquemefezperceberqueeuestavasendorealmentevistaagora.

—Umtruqueetanto,não?—disseelenumavozmeiorouca.

—Jávimelhores—respondicomfrieza.—Oqueestáfazendo?

Colenãosemexeu,salvopelomovimentodeabrirasmãoseesticarosdedos.

— Experiências cientí icas. Me usando como cobaia. Existe umhistóricograndeerespeitáveldisso.

—Vocêestábêbado?

—Ébempossível—admitiuCole,comumsorrisoindo- lente.—Nãoseiaocertoseatransformaçãometabolizapartedoálcooldosangue.Masnãomesintomuitomal.Porquevocêestáaqui?

Aperteioslábios.

—Nãoestou.Querdizer,jávouembora.

Coleesticouosbraçosnaminhadireção.

—Nãová.

—Ah,claro,porqueistoaquiparecesuperdivertido—falei.

—Me ajude a entender— disse ele.—Me ajude a descobrir comopermanecerlobo.

Na minha cabeça, eu estava sentada no pé da cama do meu irmão,aquele que arriscara tudo para permanecer humano. E observavaenquantoeleperdiaasensibilidadedosdedosdospésedasmãosegemiacom a dor do próprio cérebro explodindo. Não tive palavras paradescrevermeuhorrordiantedeColenaqueleinstante.

—Descubrasozinho—respondi.

— Não posso — disse ele, ainda deitado de costas, me olhando de

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baixoparacima.—Possoapenas forçaraminha transformação,masnãoconsigo torná-la duradoura. O frio é um detonador, mas a adrenalinatambém é, acho. Tentei um banho gelado, mas não funcionou até eu mecortar, também para produzir adrenalina. Mas não dura. Eu sempre metransformodevolta.

—Samvai icar danadoquando vir o que você fez comesta casa—disseeu,mevirandoparasair.

—Isabel,porfavor.

AvozdeColemeseguiu,aindaqueseucorponãotenhasemexido.

—Seeunãoconseguirserumlobo,voumematar.

Parei,masnãomevirei.

— Não estou tentando manipular você, viu? E a verdade. — Elehesitou.

—Preciso escapar de algum jeito, é uma coisa ou outra. Não posso...Preciso descobrir como, Isabel. Você sabemais sobre os lobos. Por favor,meajude.

Virei-meparaele,quecontinuavadeitadonochão,comumadasmãosnopeitoeaoutraestendidanaminhadireção.

—Oquevocê estámepedindoépara ajudá-lo a sematar.Não injaqueéoutracoisa.Oquesignifica,afinal,serumloboparasempre?

Colefechouosolhos:

—Entãomeajudeafazerisso.

Soltei uma gargalhada. Ouvi a crueldade em meu riso, mas não aamenizei.

— Vou lhe dizer uma coisa, Cole. Fiquei aqui nesta casa, nestamesmíssima casa—disse eu, apontandopara o chão àmedida que seusolhos se arregalavam—,naquele quarto, e vimeu irmãomorrer.Não iznada. Você sabe como ele morreu? Ele havia sido mordido e estava

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tentandoimpediraprópriatransformaçãoemlobisomem.Conseguiinjetarnele meningite bacteriana, que provocou uma febre absurda e,basicamente,fundiuseusmiolos,destruiuseusdedose, inalmente,causousua morte. Não o levei para o hospital porque sabia que ele preferiamorreraserumlobisomem.E,nofim,elerealizouessedesejo.

Cole icou me olhando com o mesmo olhar morto que me lançaraantes.Euesperavaumareaçãosua,maselanãoveio.Seusolhosestavambaços.Vazios.

—Sóestoulhecontandoissoparaquevocêsaibaquedesdeentãojátenteiescaparcemmilvezes.Penseiembeber,algoquefuncionamparaaminhamãe;penseiemdrogas,quetambémfuncionaparaaminhamãe;epensei em pegar uma das armas do meu pai, que tem milhões delas,encostarnaminhacabeçaeestourarosmiolos. Sabeoqueémais triste?Nãoéo tamanhoda saudadequesintode Jack,nãoé isso,masamalditaculpaquesintoquantoàmaneiracomoomatei.Euomatei.Etemdiasemque não consigo conviver com isso. Mas convivo, porque a vida é assim,Cole.Dói.Eprecisosuperar,namedidadopossível.

—Nãoquero—disseele,simplesmente.

Eracomoseelesempredespejassehonestidadesobremimquandoeumenos esperava. Sabia que eu estava me solidarizando com ele, mesmosem querer, mas não dava para evitar, assim como antes não conseguievitar beijá- lo. Cruzei os braços outra vez. Senti que ele estava tentandoextorquirdemimumaconfissão.Eeunãosabiasehaviamaisaconfessar.

•COLE•

Eu estava ali deitado, em frangalhos, no chão. Logo hoje, quando euestiveradecididoatercoragemeacabardevezcomtudo.

Mas não foi assim. Porque, sei lá como, contemplando o rosto delaenquanto a ouvia falar do irmão, simplesmente não senti mais aquelaurgência. Era como se eu fosse um balão de ar enchendo, enchendo,

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esperandoparaestourar,eelachegasseanteseestourasseasimesma.Dealgumjeito,aquilofezescaparoardenósdois.

Pareciaquetodosnaquelacasatinhammotivoparafugir,equesóeuestavatentando.Euestavaextremamentecansado.

— Não percebi que você era humana de verdade — falei. — Comemoções,sabe?

—Infelizmente.

Olheiparaoteto.Nãosabiacomocontinuar.

Eladisse:

—Vocêsabeoqueeunãoqueromaisfazer?Ficarolhandoparavocêaí deitado, nu.— Voltei o olhar para ela.— Parece que você jamais usaroupa. Está sempre nu quando nos encontramos. Será que está mesmopresoaumcorpohumano?—acrescentou.

Assenti.Osomdomeucrânioroçandooassoalhofoicomoumgritonaminhacabeça.

— Ótimo, quer dizer que não vai me envergonhar quando sairmos.Vista-seevamostomarumcafé.

Lanceiumolharquenitidamentedizia:Ah,claro,issovaiajudarmuito.Eladeuseusorrisinhoardilosoecruel,eretorquiu:

—Se você ainda estiver comvontadede sematardepoisda cafeína,vaitertempoàbeçaparaisso.

—Ahhh — grunhi, me pondo de pé. Fiquei desconcertado ao olhardaquela perspectiva para o corredor e para a sala que eu destruíra. Eunão esperava voltar a fazer isso. Minha coluna doía depois de tantastransformaçõessucessivas.—Emelhorquesejaumcafépraládebom.

— Não é nenhuma maravilha — admitiu Isabel. Seu olhar eraestranho,agoraquemeviadepé:alívio?—Masparaessefimdemundo,émelhorqueoesperado.Vistaumaroupaconfortável.Vamosterqueandar

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cincoquilômetrosatéomeucarro.

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CAPÍTULO33•SAM•

Oestúdionãoimpressionavaporfora.Eraumranchoatarracadoedeaparência desgastada, em cuja entrada havia umaminivan de aparênciatambém desgastada estacionada. Um labrador imóvel escarrapachado napartedesocupadadaentradaobrigouGraceaestacionardo ladode fora.Eladeuumaespiadanoânguloinclinadodaruaepuxouofreiodemão.

— Aquele cachorro está morto? — perguntou. — Você acha queestamosnolugarcerto?

Apontei para os adesivos no paralamas daminivan, todos de bandasindependentes populares em Duluth: Finding the Monkey, The Wentz,AlienLifeForms.Eununcaouviranenhumadelas—eramtodaspequenasdemaispara teremsuasmúsicas tocadasnas rádios— ,mas seusnomesfrequentavamosanúncios locaiscomregularidadesu icienteparaqueeuosreconhecesse.

—Achoquesim.

— Se formos sequestrados por hippies esdrúxulos, a culpa é sua—disse ela, abrindo a porta do seu lado. Um gelado bafo de ar matutinopenetrou no carro, juntamente com os cheiros urbanos: escapamento demotores, asfalto e o odor inde inível de ummonte de gentemorando emummontedeprédios.

—Foivocêquemescolheuolugar.

Grace fezumcaretadedesdémparamimedesceudocarro.Poruminstante,pareceumeioinstávelsobreaspernas,masrecuperou-serápido,nitidamentesemquererqueeunotasse.

—Vocêestábem?—perguntei.

—Nãopodiaestarmelhor—respondeuela,abrindooporta-malas.

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Quandomeabaixeiparapegaroestojodoviolão, sentiumapertonoestômago— nervosismo— que me surpreendeu. Não era por estar ali,masporterdemoradotantoachegar.Agarreiaalçadoestojoetorciparanãoesqueceroquesabia.

Caminhamosatéaportaprincipal.Ocachorronemlevantouacabeça.

—Achoqueestámorto—comentouGrace.

— Vai ver é um desses troços sob os quais se escondem chaves—sugeri.

Grace enganchou os dedos no bolso da minha calça jeans. Eu já iabateràportaquandoviumaminúsculaplacademadeiracontendo letrasindeléveis:

ENTRADADOESTÚDIOPELOSFUNDOS.

Entãodemosavoltanorancho,ondeosdegrausdeconcretorachadoeramlargosobastanteparaacomodarnossospés,echegamosaumporãoaparenteeaumaoutraplaca:ANARQUIAESTÚDIOS,INC.entrada.Debaixoda placa havia um vaso com alguns amores-perfeitos expostosprematuramenteaoarlivreedestruídospelogelo.

Virei-meparaGrace:

—AnarquiaEstúdios.Queironia.

Gracemelançouumolharfulminanteebateuàporta.Enxugueiamãorepentinamentesuadanacalça.

Aportaseabriu,revelandomaisumlabrador,essevivinhodasilva,eumamoçadeunsvinteepoucosanoscomumafaixavermelhaemvoltadacabeça.Tãointeressanteeraasuafaltadebelezaqueconseguiasuperarafeiuraechegaraooutroextremo,quasetão louvávelquantoabeleza:umnarizaduncoeenorme,olhos castanhosescurose sonolentosemaçãsdo

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rosto protuberantes. O cabelo preto puxado para trás estava preso emtranças entrelaçadas que se juntavam no alto da cabeça, como umaPrincesaLeamediterrânea.

—SameGrace?Vamosentrar.

Avoz,defumante,erafantásticaecomplicada,emboraoodorvindoládedentrofossedecaféenãodecigarro.Grace,repentinamenteanimada,entrou no estúdio, seguindo o aroma da cafeína como um rato atrás dequeijo.

Umavezfechadaaporta,nãosetratavamaisdoporãodeumranchocaindo aos pedaços,mas de ummódulo espacial de fuga de algum outrouniverso. Diante de nós havia uma parede com painéis de mixagem emonitores de computador. O cômodo todo estava escuro e silencioso,graças a um revestimento à prova de som. Uma iluminação embutidailuminava os teclados e um sofá preto chique. Uma das paredes era devidroedavaparaumasalaescuraàprovadesomequipadacomumpianoverticaleumasériedemicrofones.

—MeunomeéDmitra—disseamoçadastranças,estendendoamãodireitaparaserapertada.Olhouparamimsempiscar,enquantoeuerguiaoolhardoseunarizparaosolhos.Dessa forma, selamosumpacto tácito:elanãoolhariaparaosmeusolhosamarelos e eunãoolhariaparao seunariz.

—VocêéSamouGrace?

Sorriparaaabordagemostensivaeapertei-lheamão.

—SamRoth.Prazer.

DmitraapertouamãodeGrace,que faziaamizadecomo labrador,edisse:

—Oquefaremoshoje,crianças?

Graceolhouparamimeeurespondi:

—Umafitademo,acho.

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—Vocêacha?Quetipodeinstrumentaçãotemosemmente?

Levanteioestojodoviolãoalgunscentímetros.

—Beleza—disseela.—Vocêjáfezissoantes?

—Não.

—Virgem.Àsvezeséoideal—comentouDmitra.

Ela me lembrou um pouco Beck. Embora sorrisse e brincasse, davaparadizerqueelaobservava,julgavaedecidiaoquepensarsobreGraceemim.Beckfaziaomesmo.Passavaaimpressãodeintimidadeenquanto,naverdade,decidiasealguémvaliaounãootempoinvestido.

— Entrem ali, então— prosseguiu ela.— Que tal um café antes decomeçar?

Grace partiu direto para a quitinete indicada por Dmitra. Enquantoisso,elameperguntou:

—Quetipodemúsicavocêcostumaouvir?

Pousei o estojo no sofá e tirei dele o violão. Tentei não parecerpretensiosodemais.

— Um bocado de rock independente: The Shins, Elliott Smith, JoséGonzález,DamienRice,GutterTwinsecoisasdogênero.

—Elliott Smith— repetiuDmitra, como se eu só tivessedito isso.—Entendi.

Grace reapareceu segurando uma caneca feiosa com um cervopintado,enquantoDmitra faziaalgonocomputadorque tantopodiacomonão podia ser útil como ela tentava aparentar. Finalmente, ela me levouparaaoutrasalaemeentregouumaplateiademicrofones—umparaavoz,outroparaoviolão,ambosmeencarandoatentamente—,bemcomoumpardefonesdeouvido.

— Para eu me comunicar com você— disse, voltando para a outrasala.Graceficou,afagandoacabeçadolabradoraseulado.

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Meusdedospareciamenferrujadoseimprópriosparaatarefaqueosaguardava.Ocheirodosfonesdeouvidosugeriamqueelesjáhaviamsidousados por um número demasiado grande de cabeças. Do meu lugar,empoleiradonacadeira,olheimelancólicoparaGrace,lindaedoentiasobaestranha iluminação embutida, parecendo uma modelo de revista comexpressãodistante.Percebiquenão lheperguntaraseestavasesentindobemousecontinuavadoente.Lembreiqueelahaviasedesequilibradoaodescer do carro e feito questão de disfarçar o fato. Engoli em seco, agargantaparecendoumpapel.Emvezdisso,perguntei:

—Agentepodeterumcachorro?

—Pode— concordou ela,magnânima.—Mas não vou passear comeledemanhã,porquegostodedormir.

—Nãodurmonunca—falei.—Eupasseio.

DeiumpuloaoouviravozdeDmitranofonedeouvido.

— Dá para você cantar e tocar um pouquinho para eu ajustar osníveis?

Grace se inclinou e beijou o alto daminha cabeça com cuidado paranãoderramarcafénomeucolo.

—Boasorte.

Eumeioquequeriaqueela icassecomigo,paramerecordarporqueestávamosali.Aomesmotempo,porém,nãoseriaamesmacoisacantaraminhasaudadedelaolhandoparaoseurosto.Porisso,deixeiquesaísse.

•GRACE•

Assumi meu lugar no sofá e tentei ingir que Dmitra não meintimidava. Ela não trocou amenidades comigo enquantomexia no painelde mixagem, e como eu não sabia se falar a atrapalhava, iquei apenas

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sentada,quieta,observando-atrabalhar.

Para ser franca, agradeci pela interrupção da conversa, pelaoportunidadede icarcalada.Minhacabeçacomeçavaadarsinaisdaquelelatejar lento de antes, e aquele calor estranho voltava a se espalhar portodo o meu corpo. Falar com dor de cabeça me dava dor de dente. Asensaçãodadorsurdasere letianagargantaenasnarinas.Tenteiassoaronariz,masestavaseco.

Seguraabarraporhoje,exigidemimmesma.Hojeodiaédele.

EunãoestragariaodiadeSam.Porisso,sentadanosofá,meesforceiparaignorarmeucorpoeouvir.

Sam virara as costas de tal forma que não dava para ver seu rostoduranteaafinação.Seusombrospareciamaninharoinstrumento.

— Cante paramim agora— pediu Dmitra, e Sam virou a cabeça aoouviravozdelanosfones.Atacouumamúsicadeacordesrápidosqueeujamaisouviraecomeçouacantar.Naprimeiradasnotas, suavozvacilou,sinaldenervosismo,masdepoisseestabilizou, intensae franca.Acançãoera um de seus nostálgicos lamentos sobre perdas e despedidas — noinício achei que a inspiração fosse Beck, ou até mesmo eu, mas depoispercebiquesetratavadeSam.

Milformasdeseafastar

Milformasdelamentar

Milformasdeprepararsuapartida

Digoadeusadeusadeus

Gritoaltoamedespedir

Poistalveznãosaibamaisfalar

quandoavozeuvoltarasentir

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Ouviraquelavozatravésdealto-falantes,enãovindadabocadeSam,tornavatudodiferente,comoseeu jamaisa tivesseescutado.Pelamesmarazão, eu só sentia vontade de sorrir sem parar. Parecia errado tertamanho orgulho de algo que de forma alguma erameumérito,mas nãopudemecontrolar.Diantedopaineldemixagem,Dmitraestavaimóvel,osdedospousadosnosdeslizadoresdeequalização.Coma cabeça inclinada,elaouvia.

—Eprovávelqueagentefaçaalgomuitobomaquihoje—disseela,semsevoltarparameencarar.

Euapenascontinueiasorrir,porquenuncahaviaduvidadodisso.

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CAPÍTULO34•ISABEL•

Às três horas da tarde, a lanchonete Kenny era toda nossa. Aindapairava no ar o cheiro das opções gordurosas do café da manhã: baconbarato, bolinhos de batata solados e um leve odor de cigarro, apesar denãohaveráreadefumantes.

Coleestavajogadonosofádiantedemim,aspernascompridasvoltaemeia atingidas pelos meus pés. Ele não parecia mais à vontade naquelalanchonete brega do que eu. Dava a impressão de ser a criação de umdesigner competente e so isticado— as feições peculiares eram rudes edecididas, com arestas su icientes para ferir alguém. A cabine em queestávamos icou, de repente, desbotada à sua volta. Por comparação, eraantiquada e provinciana de maneira quase cômica, como se alguém otivesse despejado ali para uma sessão de fotos estapafúrdias. Eu estavameio fascinada pelas mãos dele — mãos másculas, cheias de ângulosagudoseveiasproeminentesnascostas.Observeiadestrezadosdedossemovendoparaexecutartarefasbanais,comoadoçarocafé.

—Vocêémúsico?—indaguei.

Cole me olhou por baixo das sobrancelhas. Alguma coisa naquelaperguntaoincomodou,maseleeraummestrenaartedodisfarce.

—Sou—respondeu.

—Etocaoquê?

Elefezacaraqueosmúsicosdeverdadefazemaoouviremamesmapergunta.

—Um pouco de tudo. Teclados, acho— respondeu ele como se nãofossegrandecoisa.

—Naminhacasatemumpiano—observei.

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Coleolhouparaasprópriasmãos.

— Na verdade, não toco mais — acrescentou ele, calando-se emseguida.

O silêncio, daqueles pesados, crescentes e venenosos, icou na mesaentrenós.

Fiz uma careta que ele não viu porque não se deu ao trabalho deerguer os olhos. Eu não era boa em conversas de salão. Pensei em ligarparaGraceparaperguntaroquedizeraumlobisomemsuicidareticente,mastinhaesquecidoocelularemalgumlugar.Nocarro,provavelmente.

—Estáolhandooquê,afinal?—perguntei,semesperarresposta.

Para minha surpresa, Cole esticou uma das mãos na minha direção,abrindoosdedosde formaadeixaropolegarmaispróximo.Emseguida,contemplou-o com uma expressão de encantamento e repulsa. Sua vozecoousuaexpressão.

—Hoje demanhã, quando voltei a ser eu, vi um cervomorto. Aliás,nãopropriamentemorto.Estavaolhandoparamim.

—Agoraeraelequemeobservava,checandoaminhareação.

—Masnãoconseguimelevantar,porqueantesdemetransformar,euhaviaabertoabarrigadele.Eacho...Bem,euachoquecomeceiacomê-lovivo. E acho que continuei depois, porque as minhas mãos... As minhasmãosestavamsujasdesangue.

Ele baixou os olhos para o dedão, e então vi que havia um pequenosulcomarromsobaunha.Aextremidadedodedotremeu,demaneiratãolevequequasenãovi.Eleacrescentou:

—Nãoconsigolimpar.

Pouseiminhamão namesa, com a palma para cima. Ao ver que elenão entendera o que eu queria, estiquei um pouco o braço e peguei osdedosdele.Comaoutramão,tireiatesou-rinhadeunhadabolsa.Abrialâminaeapasseidebaixodaunha,raspandoaquelepedacinhomarrom.

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Soprei a sujeira que caiu na mesa, guardei a tesourinha na bolsa edevolviaColesuamão.

Ele a deixou onde estava, entre nós dois, a palma para baixo e osdedos abertos e apertados contra o tampo damesa, como se fossem umanimalprontoparaafuga.

—Achoqueseuirmãonãofoiculpasua—disseCole.

Revireiosolhos.

—Obrigada,Grace.

—Hã?

—Grace,anamoradadeSam.Eladizamesmacoisa.Masnãoestavalá. De qualquer maneira, o cara que ela tentou salvar desse jeitosobreviveu. Ela pode se dar o luxo de ser generosa. Por que estamosfalandodisso?

—Porquevocêmeobrigouaandarcincoquilômetrosparatomarumaxícaradecafévelho.Medigaoporquêdameningite.

—Porquemeningitedáfebre.—Oolharsemexpressãodelemedisseque eu escolhera ummau começo.—Grace foimordida quando criança.Porém, nunca se transformou, porque o idiota do pai dela a deixoutrancada no carro num dia de verão e ela quase fritou. Concluímos quetalvezfossepossívelreproduziresseefeitocomumafebrealta,eomelhorquenosocorreufoimeningite.

—Comumataxadesobrevivênciade35%—acrescentouCole.

—De10%a30%—corrigi.—EeujálheconteiqueissocurouSam.MasmatouJack.

—Jackeraseuirmão?

—Era.

—Evocêdeuainjeçãonele?

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—Não,foiaGrace,maseuconseguiosanguecontaminado.

Coledeusinaisdeimpaciência.

— Não preciso nem dizer a você, então, por que sua culpa éautocondescendente.

Umadasminhassobrancelhasseergueudeumsalto:

—Eunão...

—Shhh— fez ele, levando amão esticadade volta à canecade café.Encarou,então,osvidrinhosdesalepimenta:

—Estoupensando.QuerdizerqueSamnuncamaissetransformou?

—Não.Afebrecozinhouolobodentrodele,algoassim.

Colebalançouacabeçasemerguerosolhos.

—Issonãofazsentido.Nãodeveriaterfuncionado.Seriaomesmoquedizer que no frio se treme e no calor se transpira, e que para parar detremer pelo resto da vida basta entrar no forno de pizza durante algunsminutos.

—Bom,nãoseioquedizer.EstesupostamenteseriaoúltimoanodeSam,eelejádeviaserumloboaestaaltura.Afebrefuncionou.

Colefranziuatesta.

— Eu não diria que a febre funcionou, mas que alguma coisa nameningitefezcomqueeleparassedesetransformar.Ediriatambémquealguma coisa que tem a ver com icar trancado num carro fez com queGrace não se transformasse. Isso pode ser verdade. Mas dizer que foi afebre...Nãodáparaprovar.

—Olhasóparavocê,dr.Ciência.

—Meupai...

—Ocientistamaluco—intervim.

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—E, o cientistamaluco. Ele costumava contar umapiada aos alunos.Sobre um sapo. Acho que era um sapo. Talvez fosse um gafanhoto.Suponhamos que seja um sapo. Um cientista tem um sapo e diz: "Pula,sapo."Osapopulatrêsmetros.Ocientistaescreve sapospulamtrêsmetros.Aí o cientista corta uma das pernas do sapo e diz: "Pula, sapo." Então osapo pula um metro e meio. O cientista escreveCortada uma perna, umsapopulaummetroemeio.Então,elecortamaisumapernaediz"Pula",eo sapopula60centímetros.O cientistaescreve:Cortadasduaspernas,umsapo pula 60 centímetros. Então ele corta todas as pernas do sapo e diz"Pula",eosaponãosemexe.Ocientistaanotaaconclusãodoteste:Cortartodasaspernasdeumsapoproduzsurdeznomesmo. —Eleolhouparamimeperguntou:—Sacou?

Fiqueiindignada.

—Não sou uma completa idiota. Você acha que tiramos a conclusãoerrada.Masfuncionou.Quediferençafaz?

— Para Sam, acho que nenhuma, já que funcionou— disse Cole.—Mas acho que Beck estava errado. Ele me falou que o frio nostransformavaemloboseocalor,emhumanos.Porém,sefosseverdade,oslobos novatos como eu não seriam instáveis. Não é possível estabelecerregrasedepoisdizerqueelasnãocontamporqueseucorpoaindanãoasconhece.Aciêncianãofuncionaassim.

— Então você acha que a situação é mais parecida com aquela dosapo?

— Não sei — respondeu ele. — Era nisso que eu estava pensandoquando você apareceu. Estava tentando ver se era capaz de provocar atransformaçãodeumaoutramaneiraquenãofossepelofrio.

—Comadrenalina.Eburrice.

—Exatamente.Eoqueestoupensando,etalveznãosejaassim.Achoquenãoépropriamenteofrioquedesencadeiaatransformação.Achoqueé a maneira como o cérebro reage ao frio que induz o corpo a setransformar. Duas coisas bem diferentes. Uma é a temperatura real; aoutra, a temperatura medida pelo seu cérebro. — Os dedos de Colecomeçaram ri se dirigir para o guardanapo, mas pararam. — Acho que

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pensomelhorcompapel.

—Nãotenhopapel,mas...—disseeu,entregando-lheumacanetaquetireidabolsa.

Seurostomudouporcompleto.

Ele se inclinou sobre o guardanapo e desenhou um pequenofluxograma.

— Olhe... O frio baixa a sua temperatura e manda seu hipotálamomantê-la aquecida. E por isso que você treme, t) hipotálamo faz outrascoisas bem divertidas também... Como dizer para sermos ou não umapessoamatutina,mandaronossocorpofabricaradrenalinaedeterminaronossopeso...

—Nãoéverdade—atalhei.—Vocêestáinventandoessahistória.

—Nãoestou,não—disseColecomumaexpressãograve.—Issoerapapodemesade jantarquandoeu era garoto—a irmou, acrescentandomaisumquadroao luxogramadoguardanapo.—Vamos ingirqueaquiexisteumoutroquadrocomcoisasqueofriomandaohipotálamofazer.

Ele escreveutornar-se lobo no novo quadro que desenhou. Umpedacinho do guardanapo se rasgou nesse processo. Virei ao contrário oguardanapo de modo que a caligra ia — letras arestadas, erráticas,trepandoumassobreasoutras—ficassedecabeçaparacima.

—Eondeameningiteentranisso?—indaguei.

—Nãosei,mastalvezexpliqueporqueestouhumanonestemomento—respondeuele,balançandoacabeça.

Sem desvirar o guardanapo, Cole escreveu em grandes letrasmaiúsculasatravessadassobreoquadrodohipotálamo:META.

Olheiparaele.

Elenãodesviouoolhar.Seusolhosestavammuito,muito,verdesàluzdatarde.

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— Você já ouviu dizer que as drogas dão um nó no cérebro? Bom,achoqueéverdade.

Continuei a olhá-lo e vi que, obviamente, ele esperavaque eu izessealgumcomentáriosobreseupassadodedrogado.Emvezdisso,falei:

—Mefaledoseupai.

•COLE•

Não sei por que contei a ela sobre meu pai. Aquela não eraexatamenteaplateiamaisreceptiva.Poroutro lado, talvez tenhasidoporissoquelhecontei.

Omiti a primeira parte: era uma vez, antes de ser um lobo novatoamarrado na traseira de um Tahoe, antes do Club Josephine, antes daNARKOTIKA,ummeninochamadoColeSt.Clair,quepodiafazerqualquercoisa. E o peso dessa possibilidade, de tão insuportável, acabou poresmagá-lo antes que tivesse a oportunidade de praticá-la. Em vez disso,contei:

—Eraumavezummenino,eu, ilhodeumcientistalouco,umalenda,quehaviasidoumacriança-prodígio,passouagênioadolescentee,então,asemideus da ciência. Seu ramo era a genética. Ele tornava os bebêsmaisbonitos.

IsabelnãodisseNãohánadademaunisso,apenasfranziuatesta.

—Atéaítudobem—prossegui.

Eraverdade.Eumelembreidefotosminhasemseucangoteenquantoas ondas do mar lhe molhavam os tornozelos. Me lembrei dos jogos depalavrasquefazíamosnocarro.Melembreidepeçasdexadrez,daspilhasdepeõesaoladodotabuleiro.

— Ele viajava um bocado, mas eu não ligava para isso. Tudo era

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maravilhosoquandomeupaiestavaemcasa,emeusirmãoseeutivemosumaótimainfância.Tudoeramaravilhosoatécomeçarmosacrescer.

Tive di iculdade para me lembrar da primeira vez em que a minhamãedisseraaquilo,mastenhocertezadequefoinessemomentoquetudocomeçouadesmoronar.

—Nãofaçasuspense—disseIsabelcomsarcasmo.—0queelefez?

—Elenão—respondi.—Eu.Oqueeufiz.

O que eu havia feito? Devo ter feito algum comentário inteligentesobre algo no jornal,me saído su icientemente bemna escola para pularumano, resolvidoalgumquebra-cabeçaqueelesnão imaginaramqueeufosse capazde resolver.Umdia,mamãedissepelaprimeira vez, comummeio sorriso sem graça em seu rosto que sempre parecia cansado —talvezporsercasadacomumgêniodurantetantotempo:

—Adivinheaquemelepuxou?

Foiocomeçodofim.

Deideombros.

—Saídaescolaondeestudavacommeuirmão.Meupaiqueriaqueeufosseparaolaboratóriocomele.Queriaqueeutivesseaulasnafaculdade.Queriaqueeufosseele.

Parei,pensandoemtodasasvezesemqueodesapontei.Osilêncioerasempre,sempre,piorqueosgritos.

—Eunãoeraele.Meupaieraumgênio,eunãosou.

—Grandecoisa.

—Paramim,não.Masparaeleera.Elequeriasaberporqueeunemtentava.Porqueeuestavacorrendonadireçãooposta.

—Quedireçãoeraessa?—perguntouIsabel.

Encarei-a,calado.

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—Nãomeolhedessejeito.Nãoestoutentandodescobrirquemvocêé.Nãomeinteressa.Sóquerosaberporquevocêédojeitoqueé.

Justo então, a ponta damesa balançou, e ergui o olhar para o rostobrilhanteecheiodeespinhasdetrêsmeninaspré-adolescentes,trêsparesde olhos amendoados ostentando amesma expressão animada.Os rostosnãomeeramfamiliares, inassuasposturas,sim.Imediatamenteantecipei,comumacertezasinistra,oqueelasiriamdizer.

Isabelolhouparaastrês.

—Oi,sevocêssãoescoteiraseestãovendendodoces,podemdesistir.Naverdade,podemdesistirindependentedoqueseja.

Apré-adolescentelíder,queusavabrincosdeargolas—tornozeleiras,comochamavaVictor—,enfiouumcaderninhorosadebaixodomeunariz.

— Eunão acredito. Eu sabia que você não tinha morrido. Eu sabia!Podemedarumautógrafo?Porfavor!

Asoutrasduasexclamaramcarambabaixinho.

Achoqueoqueeudeviaestarsentindoeramedodeserreconhecido.Porém, tudo o que pude pensar olhando as garotas foi que, emboraagonizasse num quarto de hotel para compor aquelas canções duras,intensas,abasedomeufã-clubeseresumiaatrêsgarotasdedezanosdevozesganiçadavestindocamisetasdoHighSchoolMusical.EraNARKOTIKAparacrianças.

Olheibemparaelasedisse:

—Como?

Ostrêsrostosseentristeceramumpouco,masagarotacomosbrincosdeargolanãorecolheuocaderninho.

—Porfavor—disseela.—Podeautografarparamim?

Nãovoumaisincomodar,juro.Morriquandoouvi"BreakmyFace".Eotoquedomeucelular.Amodepaixão.E,tipo,amelhormúsicadetodosos

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tempos.Eboteiminhaassinaturanalistadetodosqueacreditamquevocêaindaestávivo.MeuDeus,nemacredito.Vocêestávivo.

Uma das garotas estava efetivamente chorando, transbordando deemoçãoaoterasortedemeencontrarcomocoraçãoaindabatendo.

—Ah, entendi—disse eu,me aprontandoparamentir com amaiortranquilidade. — Nossa, isso acontece um bocado comigo. Já faz algumtempo.Masnão,nãosouele.

SentiosolhosdeIsabelpousadosemmim.

—Oquê?—Agoraorostodadonadasargolasempalideceu.—Vocêéigualzinhoaele.Umgato.

Elaenrubesceutantoquedeveterdoído.

—Obrigado.—Porfavor,vãoembora.

Agarotadaargolainsistiu:

—Vocênãoémesmoele?

—Realmentenãosou.Vocênãosabequantasvezesjáouviissodesdeque a notícia saiu no jornal — emendei dando de ombros, como seestivessepedindodesculpas.

—Pelomenospossotirarumafotocomocelular?—pediuela.—Prapodercontaràsminhasamigas?

—Nãoéumaboaideia—falei,constrangido.

—Issosignificadeemofora—esclareceuIsabel.—Agora.

As garotas dispararam olhares de fúria para Isabel antes de sevirareme fazeremumarodinha.Aindadavaparaouvir claramenteavozdastrês.

—Ocaraéigualzinhoaele—falou,esperançosa,umadelas.

—Eu acho que é ele— emendou a das argolas.— Só não quer ser

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incomodado.Fugiuparaescapardostabloides.

OsolhosdeIsabelmequeimaramcomosefossemfogo.

—Pessoaerrada—falei.

Asmeninashaviamvoltadoparaseuslugares.Adasargolasolhouporcimadoencostodosofáedisse:

—Amovocêmesmoassim,Cole!

Asoutrasduassoltaramgritinhos.

—Cole?—indagouIsabel.

Cole.Euestavadevoltaaoinício.ColeSt.Clair.

Quando saímos, as meninas bateram uma foto minha com o celular,apesardetudo.

O.Começo.Do.Fim.

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CAPÍTULO35•SAM•

Eununcameesforçaratantomusicalmentequantonasprimeirasduashorasnoestúdio.DepoisdeconcluirqueeunãoeraumpostulanteaElliottSmith, Dmitra engrenou a segunda. Repassamos trechos uma, duas, trêsvezes, algumas delas apenas para experimentar novos arranjos, outrasgravando um acompanhamento adicional de violão para acrescentar aomeu solo e, outras, para acrescentar ainda efeitos de percussão. Emalgumasfaixas,graveiharmonizaçõesemcimadaminhavoz,àsvezesmaisde uma vez, até formar meu próprio pacote de Sams cantando numesplendorpolifônico.

Foi brilhante, surreal, exaustivo. Comecei a perceber como haviadormidopouconanoiteanterior.

— Por que não tira cinco minutos? — sugeriu Dmitra passadasalgumashoras.—Voutrabalharnamixagemdoquegravamosatéagoraevocê pode esticar as pernas, fazer xixi, tomar um café. Sua voz já estáficandomeioopacaesuanamoradaparecesentirsaudades.

Pelosfones,ouviGraceexclamar,indignada:

—Eusófiqueisentadaaqui!

Sorrietireiosfonesdeouvido.Larguei-oslá,juntamentecomoviolão,e fui até a salaprincipal.Grace, parecendo tão exaustaquanto eu, estavaestirada no sofá como cão a seu lado. Fiquei de pé junto a ela enquantoDmitramemostravaoformatodaminhavoznateladocomputador.Graceabraçoumeusquadriseencostouorostoemminhaperna.

—Suavozémaravilhosaouvidadaqui.

Dmitra apertouumbotãoe aminhavoz, comprimida,harmonizadaeembelezada, escapou dos alto-falantes. Parecia... Não parecia ser eu. Não,nadinha.Eracomoseeumeouvissenorádio.Comosemeouvissedeforadomeucorpo.En ieiasmãossobasaxilaseescutei.Seeratão fácil fazer

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umcaraparecerumcantorde verdade, todomundodevia correrparaoestúdio.

— E brilhante — elogiei. — O que quer que você tenha feito icoubrilhante.

Dmitra não se virou, continuando a apertar botões e a mexer nosdeslizadores.

—Ésóvocê,meubem.Aindanãofizgrandecoisa.

Nãoacrediteinela.

—Certo.Falou.Ondeficaobanheiro?

Graceapontoucomoqueixonadireçãodocorredor.

—Aesquerda,depoisdacozinha.

PasseiamãopelacabeçadeGraceetorciolóbulodasuaorelhaentreos dedos, até que ela me soltasse. Então, me dirigi para o labirinto decorredores além da quitinete. Agora, no saguão cheio de capas de discoautografadaseemolduradas,senticheirodecigarro.Navoltadobanheiro,não me apressei para retornar ao estúdio, olhando os discos e asassinaturas.Karynpodiaatéjulgarpossívelsabertudosobrealguémpelotipode livrosqueela lê,maseu sabia serpossível saber aindamaispelotipodemúsicaqueelaouve.Ajulgarporaquelaparede,ogostodeDmitrapareciatenderparamúsicaeletrônicaemúsicadance.Eraimpressionanteasuacoleção.Euseriacapazdeadmirá-laaindaqueasbandasnãofossemasminhasprediletas.Registreimentalmenteque,aovoltarparaoestúdio,deveria brincar com ela sobre sua incrível seleção de capas de discossuecos.

Asvezes, osolhosveemalgoqueo cérebronão registra.Pega-seumjornal,eacabeçanossugereumaexpressãoque, conscientemente,aindanãolemos.Entramosnumasalaepercebemosquealgoestáforadolugarantesdenosdarmosaotrabalhodeolhardireito.

Foi o que me aconteceu ali. Vi o rosto de Cole, ou algo que me fezlembrar dele, embora não soubesse onde. Voltei à parede e novamente

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passeiosolhospelascapas.Maisdevagardessavez.Examinandoaarte,ostítulos impressos e os artistas, procurando o que havia feito brotar aimagem.

Eláestava.Maiorqueasoutras,porquenãosetratavadacapadeumdisco, mas da capa brilhosa de uma revista. Nela, um sujeito saltava nadireção do visor, com os membros de sua banda atrás, a observá-lo. Melembrei de reparar no jeito como o sujeito saltava para a câmera, combraços e pernas totalmente estendidos, como se o voo fosse a coisamaisimportante e ele não ligasse para a aterrissagem. Lembrei, também, damatéria de capa: — ARREBENTANDO: o LÍDER DA NARKOTIKA FALASOBREFAZERSUCESSOANTESDOS18ANOS.

Porém,nãomelembraradequeosujeitotinhaacaradeCole.

Fechei os olhos por um único instante, a capa gravada em meucérebro.Por favor, pensei. Por favor, que seja apenas uma semelhançaextraordinária.Porfavor,queBecknãotenhainfectadoalguémfamoso.

Abriosolhos,eColecontinuava lá.Atrásdele,porqueacâmerasóseimportavacomCole,estavaVictor.

Lentamente, caminhei de volta ao estúdio. As duas ouviammais umadasminhas faixas, que parecia aindamelhor do que a última. Porém, elanãotinhanadaavercomaminhavida.

Minha vida real, aquela ditada pelo aumento e pela diminuição datemperatura,mesmoagoraqueminhapeleeradefinitivamentehumana.

—Dmitra...—chamei,eelasevirou.Grace tambémergueuosolhos,franzindoa testadiantedomeutomdevoz.—Comosechamao líderdaNARKOTIKA?

Eu já tinha a prova de que precisava,mas achei que não acreditariarealmenteatéalguémpronunciaronomeemvozalta.

O rosto de Dmitra se abriu num sorriso, mais meigo do que emqualqueroutromomentodetodaasessãonoestúdio.

—Poxa, cara, que show. Ele é doido de pedra,mas a banda era...—

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Ela balançou a cabeça, parecendo se lembrar de que eu izera umapergunta.—ColeSt.Clair.Estádesaparecidohámeses.

Cole.

ColeeraColeSt.Clair.

Eeuqueachavadifícilmantermeusolhosamarelosnoanonimato.

Isso signi icava que havia milhares de olhos procurando por ele,aguardandoparareconhecê-lo.

Equandooencontrassem,encontrariamtodosnós.

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CAPÍTULO36•ISABEL•

—Ondevocêquerficar?NacasadeBeck?

Estávamos sentados nomeu carro, estacionado no canto extremo doestacionamento da Kenny's para que nenhum caipira abrisse a porta docarro em cima dele. Tentei não olhar para Cole. Ele parecia enorme nobanco dianteiro, e sua mera presença ocupava bem mais espaço que ocorpo.

—Nãofaçaisso—pediu.

Desvieimeusolhosnasuadireção.

—Issooquê?

—Nãofinjaquenadaaconteceu.Façaperguntas.

A claridade da tarde morria rapidamente. Uma nuvem comprida eescura cortava o céu ao oeste. Não era uma nuvem de chuva para nós.Apenasmautempoemalgumoutrolugar.

Solteiumsuspiro.Nãosabiaaocertosequeriasaber.Mepareceuquesaber daria mais trabalho do quenão saber. Mas não dava para pôr ogêniodevoltanagarrafaagora,certo?

—Fazdiferença?

—Queroquevocêsaiba.

Olhei então para ele, para seu rosto letalmente bonito que mesmoagoraclamava,numtomperigosoemelado:Isabel,mebeije,venhaseperderem mim. Era um rosto triste, a partir do momento em que se sabiacontemplá-lo.

—Temcerteza?—insisti.

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— Preciso saber se alguémmais além de garotas de dez anos sabequemeusou.Ousetereimesmoquemematar.

Lancei-lheumolharfulminante.

— Quer que eu adivinhe? — indaguei. Sem esperar a resposta,lembrei- me dos dedos hábeis e pensei naquele rostinho bonito. —Tecladistadeumabandadegarotos—falei.

—LíderdaNARKOTIKA—disseCole.

Espereiumbocado,espereiqueeleacrçscentasse brincadeirinha.Masissonãoaconteceu.

•COLE•

O rosto dela não se alterou. Talvezmeupúblico-alvo realmente fossedepré-adolescentes.Foiumgrandeanticlímax.

—Nãome olhe desse jeito—disse ela.— Só porque não reconhecivocê não quer dizer que nunca ouvi suas músicas. O mundo inteiro jáouviu.

Nãofaleinada.Oquehaviaparaserdito?Todaaconversa jápareciater acontecido, soava familiar, como se o tempo todo eu soubesse queíamostê-laali,nocarrodela,comatardeesfriandosobocéunublado.

—Oquê?— indagou Isabel, inclinando-separaolharnaminhacara.—Oquê?Vocêachaqueeumeimportoporvocêserumastrodorock?

—Nãotemnadaavercomamúsica—respondi.

Isabel pressionou com o dedo a dobra do meu cotovelo, sobre asmarcasdepicada.

—Deixe-me adivinhar: drogas, garotas, palavrões.O que há de novoemvocêquevocêaindanãomedisse?Hojedemanhã,deitadonunochão,

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vocêmedissequequeria sematar. Está achandoqueo fatode eu saberquevocêéolíderdaNARKOTIKA,uau,vaimudaralgumacoisa?

—Estou.Não.

Eu não sabia. Seria alívio? Decepção? Será que eu queria mudar ascoisas?

—Oquevocêquerqueeudiga?—perguntou Isabel.—Você vaimelevarparaomau caminho, desçadomeu carro? Tardedemaispra isso. Jáestoupraládeimuneàsuainfluência.

Ouvindo isso, eu ri, embora me sentisse mal porque sabia que elaencarariaaquilocomoofensa,mesmonãosendo.

— Acredite em mim, não está, não. Existem arapucas minúsculas eimundasqueeujáencareievocênão.Jáarrasteigentecomigoparaessesburacos,eessaspessoasnãosaírammaisdeles.

Acertei.Elaestavaofendida.Achouqueeuaconsideravaingênua.

— Não quero deixar você irritada, só estou lhe dando um avisosincero. Soumuito mais famoso por isso do que pela música.— O rostodela icara gelado e, por isso, achei que estava conseguindo fazê-laentender.— Sou completamente incapaz de tomar uma decisão que nãosejaexclusivamenteemproveitopróprio.

Isabelentãodesatouarir,umrisocrueleestridente, tãoseguroque,decertaforma,meexcitou.Elaengatouamarchaaré.

—Continuoesperandoquevocêmecontealgumacoisaqueeuaindanãosaiba.

•ISABEL•

LeveiColeparaminhacasa,totalmentecientedequeessaeraumamáideia—etalvezprecisamenteporserumamáideia.

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Quando chegamos lá, o entardecer se tornara deslumbrante, de umabelezaquasecafona,eocéupareciatodopintadodeumtomderosaqueeusóviraaonortedeMinnesota.

Estávamos de volta ao lugar onde nos conhecêramos, só que agorasabíamosonomeumdooutro.Haviaumcarroestacionadonaentrada:aBMWcinza-azuladadomeupai.

—Nãosepreocupecom isso— falei,quandoparamosdooutro ladoda entrada circular e estacionei o carro.—E omeu pai. Como é inal desemana,eledeveestarnoporãocomumagarrafadebebidaparalhefazercompanhia.Nãovainemrepararqueestamosemcasa.

Colenão fez qualquer comentário, apenasdesceudo carropara o argelado. Esfregou os braços e olhou para mim, os olhos sem expressão eescurosnasombra.

—Vamoslogo.

Sentiofriopenetrantedoventoeentendioqueelequisdizer.Nãomeinteressava vê-lo virar um lobo naquele exatomomento, razão pela qualagarreiseubraçoeovireinadireçãodaportalateral,aqueseabriadiretoparaaescadasecundária.

—Paralá.

Eletremiaquandofecheiaporta,prendendoanósdoisnumaescadado tamanhodeumarmário.Coleprecisouseabaixar, comumadasmãosapoiada à parede, durante uns dez segundos, enquanto eu permaneciajuntoàporta,segurandoamaçanetaeesperandoparaverseteriadeabri-laparadeixarpassarumlobo.

Finalmente ele se empertigou, cheirando a lobo,mas ainda usando oprópriorosto.

—Éaprimeiravezquetentonãovirarlobo.

Dito isso, virou-se e subiu a escada semesperar que eu lhe dissesseaondeir.

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Seguiatrásdelepelaescadaestreita,semenxergarnadasenãoovultoda sua mão se apoiando no corrimão. Tive a sensação de que ele e eu,naquelemomento,éramosumcarroprestesabater,eemvezdepisarnofreio,euinsistiaempressionaroacelerador.

No alto da escada, Cole hesitou, mas eu não. Peguei sua mão e,passando por ele, puxei-o atrás de mim na direção de uma segundaescada,que levavadiretoaomeuquartono só- tão.Cole seabaixouparanãobateracabeçanasparedesemânguloagudo;eumevireieoagarreiportrásdopescoçosemlhedartempoparaseesticar.

Seu odor de lobo era incrível, o que a minha mente leu como umamisturadeSam,Jack,GraceeacasadeBeck.Porém,nãomeimporteicomaquilo, porque sua boca foi como uma droga. Ao beijá-lo, tudo o quemeocorreu foi a necessidade de sentir aqueles lábios nos meus e aquelasmãos puxandomeu corpo. Tudo emmim vibrava, vivo. Eu não conseguiapensarsenãonojeitofamintocomoeleretribuíaomeubeijo.

Láembaixo,algumacoisacaiuesepartiu.Papai trabalhando.Masaliemcimaestávamosnumplanetadistinto,quepertenciaamimeaCole.Sea boca de Cole me transportava para tão longe da minha vida, a quedistânciame levaria o restante dele?Estendi amãopara sua calça jeans,meus dedos procuraram o cós e a desabotoaram. Cole fechou os olhos eengoliuemseco.

Descoleimeucorpododelee recueiatéacama.Meucoraçãobatiaamilporhora,observando-o, imaginandoseupesome imprensandocontraocolchão.

Elenãomeseguiu.

—Isabel—falouCole,comasmãospendendoaoladodocorpo.

—O quê?— indaguei.Me vi sem fôlegomais uma vez, e ele sequerpareciaestar respirando.Penseiemcomoeucorreranaquelamanhã,emcomo ainda não retocara amaquiagemnempenteara o cabelo. Seria porisso?Meapoieinoscotovelos.Meucorpotremia.Algumacoisaqueeunãoconseguia identi icar marolava dentro de mim. — O que foi, Cole?Desembucha.

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Cole continuouali simplesmenteameolhar,depé, coma calça jeansdesabotoadaeasmãos,empunho,pendendojuntoaocorpo.

—Nãopossofazerisso.

Minhavozsaiudesdenhosaenquantoeuoolhavadealtoabaixo.

—Nãoparece.

— Não posso mais fazer isso — esclareceu, enquanto abo- toava acalçasemtirarosolhosdemim.

Desejei que não me olhasse. Desviei o rosto para não ver suaexpressão.Pareciacondescendente,querfosseounãoessaaintenção.Nãohavianadaqueeledissessequenãosoassecondescendente.

— Isabel — prosseguiu Cole —, não ique emburrada.Eu quero.Mesmo.

Fiqueicalada.Fixeioolharnumaplumadeumdosmeustravesseiros,aqualescaparaparapousarnacolchalilásclarinho.

—Nossa, Isabel,nãotorneascoisasmaisdi íceis,Ok?Estoutentandome lembrar de como alguém decente age, entende? Estou tentandolembrardequemeueraantesdenãoaguentarmaisconvivercomigo.

— Como assim? Você não trepava naquela época? — rosnei. Umalágrimagrossaescorreudeumdosmeusolhos.

OuviColesemexer.Quandoerguioolhar,eleseviraraparaobservarpelajanela,osbraçoscruzadossobreopeito.

—Acheiterouvidovocêdizerqueestavaseguardando.

—Quediferençaissofaz?

—Vocênãoquerdormircomigo.Nãoquerperdersuavirgindadecomum cantor fodido. Isso vai fazer você se odiar pelo resto da vida. O sexotemesseefeito.Eumtroçocurioso.—Seutomsetornouamargo,então.—Vocêsimplesmentenãoquersentircoisaalguma,edurantemaisoumenosumahora,vaifuncionartranquilo.Depoispiora,acrediteemmim.

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—Bom,oespecialistaévocê—falei.Maisumalágrimaroloupelomeurosto. Eu não chorava desde a semana em que Jack morreu. Só queria,agora,queColefosseembora.Entretodasaspessoasqueeugostariaquemevissemchorar,ColeSt.Clair,oreidomundo,nãoseincluía.

Cole apoiou os braços na janela, um de cada lado. O restinho declaridadequepassavapor entre asnuvensmal iluminava seu rosto. Semolharparamim,eledisse:

— Eu traí minha primeira namorada. Um bocado. Durante a turnê.Quando voltei e a gente brigou por alguma outra coisa, eu lhe disse quetinhasidoin ielcomtantasgarotasquenemlembravaseusnomes.Disseaela que tinha visto o su iciente para saber que ela não era especial.Terminamosonamoro.Achoqueeuterminei.Elaerairmãdomeumelhoramigo, por issobasicamente forcei osdois a escolheremamimouumaooutro.—Eleriu,então.Eraumrisoterrível,semgraçaalguma.—EagoraVictorestáemalgumlugarlána loresta,presoaumcorpodelobo.Presoaumcorpodegentevirandolobo.Souumótimoamigo,nãosou?

Fiqueicalada.Nãodavaamínimaparaasuacriseética.

— Ela também era virgem, Isabel — falou Cole a inal, olhandonovamenteparamim.—Elameodeia.Odeiaasimesma.Nãoquerofazerissocomvocê.

Euoencarei.

— Não pedi sua ajuda, pedi? Por acaso convidei você para vir aquifazerterapia?Nãoprecisoquevocêmesalvedemimmesma.Nemdevocê.Vocêachaquesouumapateta?—Duranteumbrevemomento,nãoacheique fosse dizer o que disse a seguir, mas foi o que iz: — Eu devia terdeixadovocêsematar.

E mais uma vez, vi aquele rosto, sempre aquele rosto. Aquele olharquedeviameencararcheiodemágoa...Masnãohavianadaali.

As lágrimas queimavam meu rosto, pinicando ao descerem peloqueixo.Eusequersabiaporqueestavachorando.

— Você não é essa garota — disse ele, parecendo cansado. —

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Acredite. Já vi um número su iciente delas para saber. Olhe aqui. Nãochore.Vocêtambémnãoéessagarota.

—Ah,é?Quegarotaeusou?

—Eulhecontoassimquedescobrir.Masnãochore.

O fato de ouvi-lo mencionar o meu choro tornou repentinamenteinsuportáveldeixarqueelemevissechorando.Fecheiosolhos.

—Saidaqui.Saidomeuquarto.

Quandotorneiaabri-los,elesefora.

•COLE•

Aodescerasescadas,depoisdedeixaroquartodela,fuitentadoasaire descobrir se o tremor de revirar o estômago queme assaltara quandoentrei signi icava de fato o que eu estava pensando. Porém, permanecidentro de casa. Senti como se soubesse a meu respeito algo que antesdesconhecia,algumtipodeinformaçãotãonovaque,semetransformasseem lobo agora, talvez perdesse e não recordasse ao me transformarnovamenteemCole.

Desciaescadaprincipaldevagar,cientedequeopaiestavaemalgumlugarnasentranhasdacasa,enquantoIsabelpermaneciasozinhaemsuatorre.

Como seria crescer numa casa como aquela? Se eu respirasse fortedemais,talvezderrubassealgumenfeitedaparedeou izessecairalgumaspétalas das lores mortas impecavelmente arrumadas. Sem dúvida, aminha família tinha dinheiro— em geral isso acontece com os cientistasmalucos—,masjamaishaviasidoassim.Anossavidaparecia...usada.

Fiz uma curva errada a caminho da cozinha e me vi no Museu deHistóriaNaturaldeMinnesota:umasala imponente, comopédireitoalto,

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povoadaporumexércitodeanimaisempalhados.Haviatantosqueeuteriadescon iadodequefossemreaissenãosentisseaquelecheiroalmiscaradodecurralquepairavanoar. Seráquenãohavia leis contraaextinçãodeanimais em Minnesota? Alguns daqueles ali expostos pareciam em sérioriscodeextinção.AomenosemNovaYork,eununcaosvira.Examineiumaespéciede gato selvagemcomumdesenhoexóticonopelo, que retribuiumeu exame.Me lembrei do trecho de uma conversa anterior com Isabel,logo que a conheci — qualquer coisa sobre a inclinação do pai para aartilharia.

Lógico que havia um lobo, fadado a rastejar para sempre numa dasparedes, os olhos de vidro cintilando na sala sombria. Sam devia termecontagiado,porque,derepente,medeuaimpressãodeaqueleserumjeitoterrível de morrer, afastado do próprio corpo real. Como um astronautaquemorrenoespaço.

Dei uma olhada nos animais — a linha divisória entre nós pareciamuito estreita—e empurrei umaporta no outro ladodo cômodo, a qualtorciparaquemelevasseàcozinha.

Me enganei novamente. Aquele era um cômodo elegante,so isticadamente iluminadopelosolpoentequeentravapelas janelasquecompunhammetadedasparedescurvas.Nocentrohaviaumbelopianodecauda—emaisnada.Apenasopianoeasparedes curvas, cordevinho.Tratava-sedeumasalademúsica.

Medeicontadequenãomelembravadaúltimavezemquecantara.

Nãomelembravadaúltimavezemquesentirasaudadedecantar.

Toqueiabeiradadopiano.Oacabamentolustrosoerafriosobapontados meus dedos. Não sei como, naquele exato momento, com a tardinhageladatentandoentrarpelasjanelas,eenquantoeuesperavaparamudardepele,fuihumanocomohámuitotemponãomesentiaser.

•ISABEL•

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Fiquei de cara feia durante algum tempo e depois me obriguei alevantardacamaea lavarorostonomeuminúsculobanheiro.Depoisderetocar a maquiagem, fui até a janela pela qual Cole havia olhado, meperguntando aquantasmilhasdedistância estaria ele agora. Paraminhasurpresa,pudeveraluzdeumalanternadesenhandoumatrilhaerráticano entardecer azul marinho, na direção da loresta e da clareira demosaico.SeriaCole?Elenãopermaneceriahumanonaquele frio todo,nãodepoisdetertremidoeseaproximadotantodatransformação.Seriameupai?

Franzi a testa ante a luz enigmática, imaginando se signi icariaproblemas.

Então,ouviopiano.Soubenahoraquenãoeraomeupai,quejamaisouviamúsica,nemminhamãe,quehámesesnão tocava.Alémdisso,nãose tratava do jeito de tocar, delicado e preciso, de mamãe, mas de umamelodiaarrepiante,repetidaincessantementenasnotasaltas,umaespéciede passa tempo de alguém esperando que outros instrumentospreenchessemorestante.

AquilopareciatãoincompatívelcomColequetivedevê-lotocar.Descisilenciosamente até a sala de música e hesitei antes de entrar, meaproximandoapenasosuficienteparaversemservista.

Eláestavaele.Nãosentadodemaneiraapropriadadiantedoteclado,masapoiadoemumdosjoelhoscomosenãopretendessesedemorarporali. Os dedos demúsico emque eu reparara antes nãome eram visíveis,maseunãoprecisavamesmovê-los.Tudooqueeuqueriavereraaquelerosto. Sem a consciência de uma plateia, perdido no ritmo repetitivo dosacordesdopiano,iluminadopelo inaldetarde,foicomoseaarmaduradeColetivessesidodespida.Aquelenãoeraosujeitoagressivamentebonitoearrogantequeeuconheceraalgunsdiasantes,masumrapazaprendendoumamelodia.Pareciajovem,inseguroeencantador,emesentitraídapor,dealgumaforma,constatarqueeleconseguirasecomporeeunão.

De um jeito ou de outro, ele voltava a ser honesto e partilhava umsegredo,enquantoeunãomedispunhaadarnadaemtroca.Paravariar,vialgumacoisaemseusolhos.Viqueelevoltaraasentir,eoquequerquefossequeestavasentindodoía.

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Eunãoestavaprontaparaador.

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CAPÍTULO37•SAM•

A volta de Duluth para casa foi uma colagem de faróis traseirosvermelhos, placas de autoestrada surgindo repentinamente na escuridão— e desaparecendo tão rápido quanto haviam aparecido— , minha vozsaindodosautofalantesedaminhabocaeflashesdefaróisdianteiros.

OsolhosdeGraceestavampesadosdesono,maseumesentiacomosejamais fossevoltaradormir.Comoseaquele fosseoúltimodiadaminhavida e eu precisasse estar acordado para isso. Eu já contara a ela sobreCole, sobre quem ele era, mas parecia ainda faltar algo a dizer.Provavelmente eu a estava aborrecendo,mas ela semostrava delicada obastanteparanãoreclamar.Repeti,maisumavez:

—Acheiqueacaradeleeraconhecida.SónãoentendoporqueBeckfariaumacoisadessas.

Graceen iouasmãosnasmangasdablusaeasfechoucomosdedos.Suapelepareciaazuladasobaluzdovisordorádio.

—TalvezBecknãosoubessequemeleera.Querdizer,eusóconheciaaNARKOTIKAdenome.Sóconheciaumaúnicamúsicadeles,aquefaladequebrarcarasoualgoassim.

— Mas ele devia ter alguma ideia. Beck o encontrou no Canadá.Enquanto Cole estava em turnê. Em turnê. Quanto tempo vai levar paraalguém em Mercy Falls reconhecê-lo? E se vierem resgatá-lo e ele virarlobo?Quando chegar o verão e ele permanecer humano, será que vai seescondernacasaetorcerparaqueninguémoreconheça?

—Talvez—disseGrace.Elaenxugouonarizcomumlençodepapel,amassou-o e o en iou no bolso do casaco.— Vai ver ele quer continuarperdidoenãohaveráproblemas.Achoquevocêdeviaperguntaraele.Oueupossoperguntar,jáquevocênãogostadocara.

—Equenãoconfionele—falei.

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Passei os dedos pelo volante, para frente e para trás. De soslaio, viGraceencostaracabeçacontraaportadocarroesoltarumsuspiro.Nãopareciaelamesma.

Imediatamente, fui tomado pela culpa. Ela dera duro demais paratornaraquelediaperfeito,eláestavaeuestragandotudo.

—Olha, desculpa. Sou um ingrato. Não voume preocuparmais comisso,viu?Possoadiaroproblemaparaamanhã.

—Mentiroso.

—Nãofiquezangada.

—Nãoestouzangada,sócomsono.Equerovervocêfeliz.

Tireiumadasmãosdovolante e toquei adela, pousadaemseu colo.Graceestavapelando.

—Estoufeliz—afirmei,emboramesentisseaindapiordoqueantes.

Fiqueidivididoentreavontadedelevaramãodelaaonarizparaversecheiravaaloboeadedeixá-laondeestava, ingindoquenãoeraesseocaso.

—Estaéaminhapreferida—disseelabaixinho.Nãomedeicontadoquesetratavaatéelaretornaraoiníciodamúsicaassimquesoouoúltimoacorde.

NoCD,ooutroSam,agoraimutáveleparasemprejovem,cantavaMeapaixonei por ela no verão, minha linda namorada solar, enquanto umoutroSamimutávelcantavaharmonizaçõesemcimadavozdoprimeiro.

Meu coração batia forte no peito enquanto os faróis trespassavam ointerior do carro, antes de mergulhá-lo novamente na escuridão. Nãoconseguideixardemelembrardaúltimavezemquetinhacantadoaquelamúsica.Nãonoestúdio,masnaocasiãoanterior.Sentadonumcarroescurocomobreu,exatamentecomoaqueleemqueeuestava,comaminhamãoenrascada nos cabelos de Grace enquanto ela dirigia, pouco antes de opara-brisaexplodiretransformaranoitenumadeus.

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Supostamente, era uma música alegre. Parecia errado contaminá-lacom aquela lembrança, independentemente do rumo que as coisastomassemdepois.

Ameu lado, Grace virou a cabeça para descansar o rosto no banco.Davaaimpressãodeestarcansadaedistante.

—Vocêvaipegarnosonoseeunão tedistrair?— indagou, comumsorrisovago.

—Estouótimo—respondi.

Grace sorriu para mim e aconchegou o casaco à sua volta, como sefosse um cobertor. Beijou o ar na minha direção e fechou os olhos. Aofundo, minha voz cantava:Eu me contentaria com este verão se fosse eletudooquenosrestasse.

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CAPÍTULO38•SAM•

Acasaestavaumcaos.Quandoentreinasala,aprimeiracoisaquevifoiColecomumavassouraeumapá—umavisãomaisabsurdadoqueadele se transformando em lobo— , e então avistei os cacos de vidro e amobíliaquebrada.

Graceexclamou"Oh"atrásdemim,numtommeioansioso,eaoouviravozdela,Colesevirou.Teveadignidadededemonstrarsurpresa,emboranemtantoparaparecercontrito.

Não sabia o que lhe dizer. Toda vez que eu me achava capaz dedesenvolver alguma emparia e delicadeza em nosso relacionamento, eleaprontavaalguma.Seráqueorestodacasatambémestavadaquelejeito?Ouapenascadamilímetrodasala?

Grace,porém,olhouparaCole,mantendoasmãosen iadasnosbolsosedizendodeumjeitoleve,comumsorrisonavoz:

—Problemas?

Paraminha profunda surpresa, Cole retribuiu com um sorriso triste,encantadore,agora,contrito.

—Umamanadadegatos—respondeu.—Estoucuidandodoestrago.

A última frase foi proferida comuma olhadela naminha direção; elahaviasidoditaparamim.Gracemelançouumolharquedizia,claramente,queeudeveriasermaissimpáticocomele.Tenteimelembrarsealgumdialhehaviademonstradoalgumasimpatia.Muitoprovavelmente,nocomeço.

Devolvi o olhar de Grace. A luz mais forte da cozinha, ela pareciapálida e cansada, a pele ina como uma pétala deixando entrever assombras sob a super ície. Sem dúvida, ela deveria estar na cama. Talvezdevesseestaremcasa.Mepergunteioqueseuspaisestariampensandoeaquehorassupostamentevoltariam.

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— Será que é melhor eu pegar o aspirador? — perguntei a ela,querendodizer:Tudobemseeudeixarvocêsozinhacomele?Graceassentiucomveemência:

—Boaideia.

•GRACE•

EntãoaqueleeraColeSt.Clair.Eununcaconheceraumastrodorock.Também não iquei propriamente decepcionada. Mesmo segurando umavassoura e uma pá, ele parecia um astro de rock, irreal, inquieto earriscado. Mas não concordei com Sam quanto aos olhos vazios de Cole.Para mim, eles eram su icientemente expressivos. Não que eu fosseespecialistaeminterpretarpessoas.

Olhei-onosolhosedisse:

—EntãovocêéoCole.

—E você, aGrace—emendou ele, embora eunão imaginasse comochegaraaessaconclusão.

— É— falei, me encaminhando para uma das poltronas da sala, naqualdesabeiagradecida.Eucomeçavaasentirqueomeucorpohaviasidoapedrejado, de dentro para fora. Olhei novamente para Cole. Quer dizerque esse era o sujeito que, para Beck, deveria assumir o lugar de Sam.Obviamente, Beck demonstrara bom gosto com Sam,motivo pelo qual euestava disposta a conceder a Cole o bene ício da dúvida. Dei uma olhadaparaaescada,demodoamecertificardequeSamaindanãovoltaracomoaspirador,eperguntei:

—Eaí,eraissooquevocêesperava?

•COLE•

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GosteidanamoradadeSammesmoantesde ela abrir aboca emaisainda depois que falou. Grace não era o que eu, por alguma razão,imaginara como a namorada de Sam.Bonita,mas de um jeito despido dedramaticidade, ela tinha uma voz fantástica: muito calma, objetiva epeculiar.

Inicialmente, não entendi a pergunta. Quando não respondi comprontidão,elaesclareceu:

—Esperavaqueserlobofosseisso?

Eumeioqueadoreiojeitosemrodeioscomoelafalou.

— E melhor do que eu esperava— respondi, admitindo a verdadeantes de poder censurá-la. Grace não se mostrou horrorizada, comoacontecera com Isabel. Por isso, olhei-a nos olhos e contei o restante daverdade.—Eumetransformeiemloboparameperder,e foiexatamenteisso o que consegui. Tudo o que penso quando sou lobo é estar com osoutros lobos.Nãopensono futuroounopassado, nememquem fui.Nãofazdiferença.Tudooqueinteressaéomomento,estarcomosoutrosloboseserumfeixedesentidosaguçados.Semcompromissos.Semexpectativas.Éfantástico,amelhordetodasasdrogas.

Gracesorriuparamim,comoseeutivesse lhedadoumpresente.Foiumsorriso tãobonito,sagazegenuínoqueacheinaquele instantequeeufaria qualquer coisa para ser seu amigo e o merecer novamente. Melembrei do que Isabel dissera sobre Grace ter sidomordida,mas jamaishaver se transformado.Meperguntei seGrace icava feliz com issoou sesentia-setrapaceada.

Entãoaquestionei:

—Vocêsesentetrapaceadapornãosetransformar?

Ela olhou para a própria mão, pousada cuidadosamente sobre oestômago,etornouaolharparamim:

—Sempre imagineicomoseria.Sempremesentideslocada.Nomeio.

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Semprequis...Seilá.—Fezumapausa.—Vocêfoilevaroaspiradorparapassear,Sam?

Então Sam apareceu, arrastando um aspirador industrial. Ele seafastaraporapenasdoissegundos,masasala icoumaisbrilhantecomosdois juntos, como se fossem, cada um, elementos que a proximidadeabrilhantava. Diante das estabanadas tentativas de Sam de carregar oaspirador, Grace deu um novo sorriso, que supus somente ele ganhasse.Emseguida,elelançou-lheumolhardevastadorepletodeumsubtextoquesó se adquire depois de um monte de conversas sussurradas após oanoitecer.

Aquilome fezpensar em Isabel, lána casadela.Não tínhamosoquehavia entre SameGrace.Não estávamosnempertode tê-lo.Achei queoquetínhamosjamaispoderiachegaraisso,nemdepoisdemilanos.

Derepente,mealegreipor terdeixadoIsabelemsuacamae,depois,sozinhaemcasa.Doíamedeixar levarpela lembrançadequeeueraumvenenoparatodosquetocasse,mas,sódaquelavez,foilegalasensaçãodesaberdisso. Eunão era capazde evitarminhas explosões,mas aomenospodiaaprenderaimpedirasconsequências.

•GRACE•

EumesentiamalsentadanapoltronaenquantoSameColefaxinavam.Em circunstâncias normais, teriame posto de pé num salto para ajudar.Limparum lugar tãoreviradoeragrati icanteporque,no inal, realmentedavaaimpressãodeseterconseguidorealizaralgumacoisa.

Naquelanoite,porém,nãopude.Omáximoqueconseguiaeramanteros olhos abertos. Era como se tivesse passado o dia lutando contra algoinvisívelqueagoraestavaganhandoaluta.Meuestômagopareciafebrileempanzinado sob a minha mão. Imaginei o sangue se revolvendo alidentro.Eaminhapeleestavaquentequentequente.

Do outro lado da sala, vi Sam e Cole trabalhando numa silenciosa

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harmonia: Cole agachado com a pá e Sam varrendo os pedaços grandesdemaisparaseremaspirados.Poralgumarazão, iqueisatisfeitaaoverosdois trabalhando juntos.Maisumavez,penseiqueBeckdevia ter achadoalgumacoisaemCole.Nãoseriapuracoincidência trazerparacasaoutromúsico. Ele não teria feito algo tão arriscado como infectar um roqueirofamososenãohouvesseumbommotivoportrásdisso.TalvezachassequeseSamconseguissepermanecerhumano,eleeColepudessemseramigos.

SeriabomparaSamterumamigoseeu...

Naminha cabeça, revio rostodeColequandoeleperguntou:Você sesentetrapaceadapornãosetransformar?

Quandoeueramaisnova,chegueiame imaginarcomo loba.FugindocomSam,olobo,parauma lorestadourada,longedosmeuspaisdistantesedaconfusãodavidamoderna.Edepoismaisumavez,quandopenseiqueo perderia para o bosque, sonhei em me perder com ele. Sam icarahorrorizado.Masagora, inalmente,Colehaviamemostradoooutroladodamoeda. Tudo o que interessa é omomento, estar comos outros lobos e serapenasumfeixedesentidosaguçados.

Sim.

Não seria de todo ruim. Havia uma compensação. Sentir o solo dobosque sob as patas, enxergar e cheirar tudo com sentidos novinhos emfolha.Conhecera sensaçãode fazerpartedobando,partedos selvagens.Seeuperdesseessabatalha,talveznãofossetãohorrível.Viverna lorestaqueeuamava...Seriaesseumsacrifíciotãograndeassim?

Irracionalmente, pensei na pilha de livros de mistério largados pelametadenaestantedomeuquarto.Penseiemdeitarnaminhacama,comaspernas vestidas de jeans enrascadas nas de Sam — ele lendo o seuromanceeeuterminandoodeverdecasa.Ouemandarnocarrodelecomas janelas abertas.Nósdois demãosdadas emum campusuniversitário.Em um apartamento cheio de quinquilharias, numa aliança na palma damãodele,navidadepoisdeformada,navidacomoGrace.

Fecheiosolhos.

Como eu doía. Tudo em mim doía, e não havia nada a fazer. A

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promessa do bosque soava diferente quando não se tratava de umaescolha.

•SAM•

Acheiqueelaestavacansada.Tinhasidoumdia longo.NãocomenteinadaatéColereparar.

—Eladormiucomoaspirador ligado?—perguntouele, comoseelafosse um bebê ou um cachorro e esse, mais um de seus hábitosencantadores.

Fuiassaltadoporumaondairracionaldeansiedadeaoverseusolhosfechados,arespiraçãolentaeasbochechascoradas.Então,Graceergueuacabeçaemeucoraçãovoltouabater.

Consultei o relógio. Os pais dela logo estariam de volta. Eu precisavalevá-laparacasa.

—Grace—chamei,porquetivea impressãodequeelaadormeceriadenovo.

— Hummm? — disse ela, que continuava enrascada de lado napoltrona,emcujobraçoseurostodescansava.

— A que horas você disse que seus paismandaram você voltar?—perguntei. Os olhos de Grace, repentinamente acordada, cravaram-se emmim.Vi,pela suaexpressão,queelanãohavia sidohonestacomigo.Sentiumapertonopeito.—Elessabemquevocêsaiu?

Gracedesviouoolhar,enrubescida.Eununcaaviraenvergonhada,eporalgumarazãoaquiloaumentousuaaparênciademal-estar.

—Precisoestaremcasaquandoeleschegaremdaexposição.Ameia-noite.

—Agora,então—observouCole.

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Porumúnico, impotente e silenciosomomento, achei queGrace e eupensamos a mesma coisa: que não queríamos que aquele dia acabasse.Que não queríamos nos separar e deitar cada um numa cama fria,distantesumdooutro.Masnãoadiantavadizer issoemvozalta,por issofalei:

—Vocêparecerealmentecansada.Achoquedevedormirumpouco.Aquiloestavalongedeseroqueeuqueriadizer.Euqueriapegarsuamão,levá-laparaomeuquartoláemcimaesussurrar:Fica,porfavor,fica.

Masentãoeuseriaapessoaqueopaimejulgavaser,não?

Elasuspirou.

—Nãoqueroirembora.

Ajoelhei-mediantedeGraceparaficarcomosolhosnaalturadosdela.Seu rosto continuava apoiado no braço da poltrona. Sua aparência erajovem e desprotegida. Não me dei conta do quanto me habituara à suaexpressãointensaatéseusumiço.

—Tambémnãoqueroquevocêvá,masaomesmo temponãoqueroquevocêarrumeproblemas.Vocêestábem...Estábemparadirigir?

—Tenhoqueestar—disseGrace.—Precisodocarroamanhã.Ah,é.Não tem aula amanhã; reunião de professores. Mas depois de amanhã,tem.

Elase levantoudevagar,cambaleando.Percebique tantoColequantoeuapenasaobservávamosenquantoelaencontravaachavedocarroeasegurava,parecendoindecisaquantoaoquefazercomela.

Eunãoqueriaqueelafosseembora;maisqueisso,nãoqueriaqueeladirigisse.

—Eulevoocarro—sugeriuCole.

Pisqueiparaele.

Coledeudeombros.

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—Eu levo o carro dela e ela vai com você. Você podeme trazer devoltaou...

Eledeudeombrosdenovo.

Gracemeolhavadeumjeitoquepareciaquererqueeuconcordasse,eporissoofiz.

—Obrigada—agradeceuaCole.

—Denada.

Estava sendodi ícil acreditarnametamorfosedeCole embommoço,mas,desdequeelenãoacabassecomocarrodeGrace,euagradeceriaunsmomentos extras com ela e a paz de espírito de saber que chegaria emcasasãesalva.

Então fomos embora, Cole uma igura solitária dirigindo o carro deGraceatrásdenós,eeueGracenomeu, comamãodelaseguranomeucolo.QuandochegamosàcasadospaisdeGrace,Coleestacionouoveículocom destreza, de ré, enquanto ela se inclinava para me beijar. O beijocomeçou casto, até que a minha boca se abriu, os dedos dela mesegurarampelacamisaeeuquisficar—ai,meuDeus,comoeuquisficar...

... mas Cole bateu na janela. Ele tremia no vento frio, e euobedientementebaixeiajanela.

—Achoquevocênãovaiquererprolongaressebeijodelíngua.Opaidela estáolhandoda janela. Poroutro lado, émelhorvocê se apressar—prosseguiu,olhandoparaGrace—,porqueemdoissegundosvouprecisarquevocê—disseele,agoraolhandoparamim—apanheminhasroupas,esuponhoquevocênãodesejeumtestemunhopaternodisso.

OsolhosdeGraceseesbugalharam.

—Elesestãoemcasa?

Cole apontou com o queixo o outro carro estacionado. Gracecontemplou-o, con irmando minha suspeita anterior de que o nossoencontronãoforaaprovado.

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—Elesdisseramqueiamchegartarde.Essaexposiçãonuncaterminaantesdemeia-noite.

— Vou entrar com você— falei, embora realmente preferisse subirnumcadafalso.Colemeolhavacomoselessemeuspensamentos.

Gracebalançouacabeça.

—Não. Vai sermais fácil sem você. Não quero que eles gritem comvocê.

—Grace—insisti.

—Não.Nãovoumudardeideia.Eudouconta.Issoprecisaacontecer.

E, trocando em miúdos, aquela era a minha vida. Dar um beijo dedespedidaapressadoemGrace,desejar-lhesorte,deixá-laentraredepoisabrir a porta do meu carro para esconder a transformação de Cole dosolhoscuriososdavizinhança.

Coleseagachou,tremendoefixandoosolhosemmim.

—Porqueelaestádecastigo?—indagou.

Olheiparaeleedepoistorneiaolharparaacasa,meassegurandodequeninguémnosobservava.

— Porque seus pais omissos decidiram me odiar. Provavelmenteporquemepegaramnacamadela.

Coleergueuassobrancelhassemfazercomentários.Re letiu.Baixouacabeçaenquantoseusombrosestremeciam.

—Éverdadequeelesadeixaramtrancadanumcarro,assandoaosol?

—É.Essemomentoéumametáforaparatodoorelacionamentodeles.

— Bacana— disse Cole. Passado ummomento, acrescentou:— Porqueseráqueestádemorandotanto?Vaivermeenganei.

Elejácheiravaalobo.Balanceiacabeça.

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—Éporquevocêestáconversandocomigo.Paredelutar.

Eleagoraestavaabaixadotalqualumvelocista,comosdedosabertossobreoasfalto,umjoelhodobrado,comoseprestesadarapartida.Entãodisse:

—Ontemànoite...Eunãoachei...

Euointerrompi.Edisseoquejádeviaterditoantes.

— Eu não era ninguém quando Beck me acolheu, Cole. Estava tãodestruídoquenãoconseguiafuncionar.Malconseguiacomer,ecostumavagritarquandoouviaáguacorrendo.Nãome lembrodenadadisso.Tenhoenormesburacosnamemória.Aindaestouperdido,masnãotantoquantoantes. Quem sou eu para questionar o fato de Beck ter escolhido você?Ninguém.

Cole me lançou um olhar estranho e depois vomitou na rua.Contorcendo-se e tremendo, deixou sua forma humana, rasgando acamiseta enquanto se debatia contra a lateral do meu carro. Cole, agoralobo, estremeceu no concreto durante um bom tempo antes que euconseguisseconvencê-loaseguirparaobosqueatrásdacasadeGrace.

Depoisqueelepartiu, iqueiali,paradoaoladodocarro,olhandoparaa casa de Grace, esperando que a luz do seu quarto se acendesse, meimaginandolá.Senti faltadobarulhoqueelafaziapreparandoodeverdecasaenquantoeuouviamúsicadeitadoemsuacama.Senti faltadosseuspés gelados de encontro às minhas pernas quando ela se deitava. Sentifaltada formadasuasombraseprojetandosobreapáginadomeu livro.Senti falta do cheiro do cabelo dela, do som da sua respiração, do meuRilke na mesinha de cabeceira, da toalha molhada jogada nas costas dacadeiradaescrivaninha.Talvezeudevesseestarsaciadodepoisdepassarumdiainteirocomela,masissosómefaziasentirmaissaudade.

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CAPÍTULO39•GRACE•

Eraestranhamente libertadorsaberqueeu iriaenfrentarproblemas.Percebiquedurantetodoodiaeu imaginarase iaounãoserpega,oqueaconteceriaseelesviessemadescobrir.Agorajánãoeraprecisoimaginar.Eusabia.

Fecheiaportada frenteeentreinocorredor.No inaldele,pudevermeupaidepécomosbraçoscruzadossobreopeito.Minhamãeestavaauma certadistância, parcialmente escondidapelaportada cozinha, numaposturaidêntica.Elesnadadisseram,nemeu.

Euquisquegritassemcomigo.Estavaprontaparaosgritos.Meucorpotodopareciatremerpordentro.

—Eentão?—perguntoumeupaiquandochegueiàcozinha.

Só isso.Semgritos.Apenas"Eentão?", comoseesperasseacon issãodeváriospecados.

—Comofoiaexposição?—perguntei.Meupaimeencarava.

Minhamãefalouprimeiro.

—Nãofinjaquenadaaconteceu,Grace!

—Nãoestou ingindo.Voudizer emvozalta: vocêsmeproibiramdesaireeusaí.

As articulações dos dedos de mamãe estavam brancas nas mãosfechadasjuntoaocorpo.

—Vocêestáagindocomosenãotivessefeitonadadeerrado.

Estava sentindo uma calma mortal dentro de mim. Tinha sido bomdizer a Sam que não entrasse. Eu não seria capaz de me mostrar tão

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decididacomeleameulado.

—Enão iz.FuiaumestúdioemDuluthcommeunamorado, janteiedepoisvolteiparacasaantesdemeia-noite.

—Nósdissemosparavocênãofazerisso—faloumeupai.—Éissooque torna tudo errado. Você está de castigo, e mesmo assim saiu. Nãoacreditoquetenhatraídoanossaconfiançadessaforma.

— Vocês estão fazendo uma tempestade num copo d'água! —retorqui.Torciparaqueaminhavozsaíssemaisaltaqueadele,masissonão aconteceu.O fôlego extra ganho ao voltar para casa comSam sumiu.Davaparasentirmeupulsonoestômagoenagarganta,quenteedoente,masignoreiemantiveavoz irme.—Nãoestouusandodrogas,faltandoàescolaoufazendopiercingsemalgumaparteescondidadocorpo.

—Equantoa...—começouele,masnãoconseguiuterminar.

—Transar?—completoumamãe.—Nanossacasa?Equantoafaltartotalmentecomorespeito?Demosavocêespaçodemanobrae...

Aliestavaocombustívelparasubirotomdevoz.

—Espaçodemanobra?Vocêsmederamumplanetaparaviver!Fiqueisozinha nesta casa centenas e centenas de noites, esperando vocês doischegarem. Atendi ao telefone ummilhão de vezes para ouvir: "Meu bem,vamos chegar tarde."Me virei para voltar da escola sozinhamais demilvezes. Espaço demanobra. Finalmente tenho alguém que escolhi e vocêsdoisnãoconseguemdarconta.Vocês...

— Você é uma adolescente — disse papai com um ar desuperioridade.Comoseeunãotivesseacabadodegritar.

Teria sido impossível altear a voz se meu sangue não estivessetrovejandoemmeusouvidos,doendocomoumcastigo.Eleprosseguiu:—Oquevocêsabesobreumrelacionamentoresponsável?Eleéseuprimeironamorado.Sequerqueacreditemosquevocêéresponsável,prove.Eissonão tem nada a ver com fazer sexo antes da hora e desdenhar de umaordemdadapelospais.Quefoioquevocêfez.

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—Fiz—afirmei.—Nãomearrependo.

Orostodepapai icourubro,acorsubindodocolarinhoatéaraizdoscabelos. Sob a luz da cozinha, isso lhe dava uma aparência muito, muitobronzeada.

— Que tal isto, Grace? Você nunca mais vai vê-lo. Será que searrependeagora?

—Ora,mepoupe—falei.Suaspalavrascomeçavamasoardistantesesemimportância.Euprecisavamesentar.Medeitar.Dormir.Precisavadealgumacoisa.

Aspalavrasdomeupaipareciampregosnasminhastêmporas.

— Não, você me poupe. Não sou eu que ando vagando por aí. Nãogosto da pessoa que você é com ele. Esse rapaz claramente não nosrespeitacomopais.Nãovoudeixarvocêarruinarsuavidaporcausadele.

Cruzeiosbraçosparadisfarçarofatodeelesestaremtremendo.Partedemimseencontravana cozinha tendoaquela conversa, epartedemimrefletia.Oquehádeerradocomigo? Minhasbochechaspinicavam,ardendo.Finalmenteencontreiminhavoz.

—Vocêsnãopodemfazerisso.Nãopodemmeimpedirdevê-lo.

—Posso,sim—dissepapai.—Vocêtem17anosemoradebaixodomeuteto,eenquantoessasduascoisascontinuaremassim,comcertezaeuposso.Quando izer18 anos e se formar, nãovoupodermais lhedizer oque fazer,masneste exatomomento, todoo estadodeMinnesota estádomeulado.

Meu estômago fez algo estranho, tipo um nó, como se fosse denervosismo. Aomesmo tempo,minha cabeça latejava. Encostei o dedo nonarizeele icoumanchadodevermelho.Eunãodeixariaqueelesvissemisso, não icaria novamente na berlinda. Pegando um lenço de papel damesaeapertando-ocontraasnarinas,eudisse:

—Elenãoésóumrapaz.

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Mamãe se virou, acenando contra o ar como se estivesse cansadadacenatoda.

—Certo.

Naquelemomento,euaodiei.

Papaidisse:

—Bom,duranteospróximosmeseséoqueeleserá.Vocênãovaivê-lo de novo enquanto eu tiver a última palavra. Não haverá mais noitescomoesta.Epontofinal.

Eu, não aguentava mais icar no mesmo cômodo que eles. Nãoaguentava ver o jeito como minha mãe olhava para mim por sobre oombro, a sobrancelha arqueada como se esperasse meu próximomovimento.Enãoaguentavamaisador.

Corri para o meu quarto e bati a porta com força o su iciente parasentirtudodentrodemimestremecer.

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CAPÍTULO40•GRACE•

Morreréumanoiteloucaeumanovarota.

Eu tinha na cabeça palavras, e não uma canção. Não conseguia melembrardequemasescrevera,apenasdequehaviaouvidoSamlê-lasemvozalta,erguendoosolhosdolivroeexperimentando-asnabocaparavercomosoavam.Eume lembravaatémesmodomomento:sentadanovelhoescritório de papai lá em casa, folheando notas para uma apresentaçãooral enquantoSam, jogadono sofá, liaum livro.Noconfortodaquela sala,comachuvagélidaescorrendopelasjanelas,editasnavozsuavedeSam,elaspareciaminocentes.Inteligentes,talvez.

Agora, no silêncio vazio e sombrio do meu quarto, as palavrasfebrilmenterepetidasemminhacabeçapareciamaterradoras.

Omal-estarqueeusentiapordentronãopodiaser ignorado.Espereium bom tempo para que omeu nariz parasse de sangrar, usando papelhigiênicoparaestancarosanguedepoisqueacabaramoslençosdepapel.Aparentemente,aquelahemorragianãopararia jamais.Minhasentranhaseramcomoumnóeminhapeleescaldava.

Tudo o que eu desejava saber era o que realmente havia de erradocomigo. Quanto tempo levaria. O que aconteceria no inal. Se soubessetodasessascoisas,setivessealgoconcretoemquemeagarrarnolugardador,euconseguiriadarconta.

Maseunãotinharespostaalguma.

Porisso,nãoconseguiadormir.Nãoconseguiamemexer.

Mantiveosolhosfechados.Oespaçoaomeulado,quepertenciaaSam,era enorme. Antes de tudo isso, quando eu o tinha comigo, davasimplesmenteparaeumevirareafundaro rostoemsuascostasquandoacordavanomeiodanoite.Deixavasuarespiraçãomeembalaratédormirnovamente. Mas Sam não estava ali, e o sono parecia longínquo e

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irrelevantediantedocalorquemeardiapordentro.

Mentalmente, revi meu pai me proibindo de voltar a vê-lo. Minharespiraçãotravounagargantacomalembrança.Elemudariadeideia.Nãopodia estar falando sério. Desviei meus pensamentos para outra coisa.Minhacafeteiravermelha.Eunãosabiase issoexistiadeverdade,masseexistisse, eu compraria. Imediatamente. Parecia de suma importânciatransformar essa compra num objetivo. Arrumar dinheiro, comprar umacafeteiravermelha,sairdecasa.Encontrarumlugarnovoparaligá-la.

Fiquei de barriga para cima e pousei a mão no estômago, tentandodescobrirsedefatopodiasentirsobosdedosorevirardomeuestômago.Eu voltara a arder de febre, e minha cabeça estava estranha e zonza,desconectadadocorpo.

Senti gosto demetal na boca. Pormais que engolisse, não conseguiamelivrardele.

Mesentierrada.

Oqueestáacontecendocomigo?

Não havia ninguém a quem perguntar, por isso segui as pistas porcontaprópria.Adordeestômago.Afebre.Hemorragiasnasais.Cansaço.Ocheiro de lobo. A maneira como os lobos haviam me olhado; a maneiracomoIsabelhaviameolhado.OsdedosdeSamnomeubraçoantesqueeume afastasse, virando-se paramedar umúltimo abraço. Pareciam tantasdespedidas...

Finalmente,minhanegaçãoruiu.

Aindaquepudesse se tratarapenasdeumvírus, aindaquepudesseseralgograve,masremediável,aindaqueeunãopudessesaberdefato...

Eusabia.

A dor que eu estava sentindo— aquela dor era omeu futuro. Umamudança incontrolável.Eupodiasonharoquantoquisessecomcafeteirasvermelhas,masmeucorpoteriaapalavrafinal.

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Mesenteinacamanaescuridão,lutandocontraolobodentrodemim,puxandooscobertoresparaaninhá-losnocolo.EuqueriaestarcomSam.Oar friopinicavameu rostoemeusombrosnus.Meudesejo era continuarnacasadeBeck,nacamadeSam,debaixodocéucheiodepássarosdoseuquarto. Engoli a dor em seco, empurrei-a para longe. Se eu estivesse lánaquelemomento,elemeenvolverianosbraçosemediriaquetudodariacerto,eaomenosporumanoitetudodariacerto.

Imaginei-mevoltandoparalá.Imagineiaexpressãonorostodele.

Esfreguei as solas nuas dosmeus pés, uma contra a outra. Era umabobagem,claro.Haviamilrazõesparaficar,mas...

Luteicontraaestáticanaminhacabeça.Concentrada.Fizmentalmenteumalistadoqueprecisava.Pegariaumacalçajeansnagavetadomeiodaminha cômoda e en iaria um sué- ter e algumas meias. Meus pais nãoouviriam. O assoalho não costumava ranger muito. Era possível. Já faziaalgum tempo que eu não ouvia nenhum movimento lá em cima. Se nãoacendesseosfaróis,talvezosdoisnãomevissemsairdoestacionamento.

Meucoraçãobatiaforteagoracomaideiadafuga.

Eusabiaquenãovaliaapenaarrumarmaisconfusãocommeuspais,furiosos como estavam. Sabia que não ia ser fácil dirigir com o sanguefervilhandonosouvidos,comafebreassaltandoaminhapele.

Mas,naverdade,eunãopodiaarranjarmaisproblemas.Meuspais jáhaviammeproibidodevê-lo.Oquemais,alémdisso,lhesrestavafazer?

Eeunãosabiaquantasnoitesaindateriapelafrente.

Meus pensamentos se voltaram para mamãe, discorrendo sobre adiferençaentreamoredesejo.Omeupasseiona loresta,depois,tentandodragar a culpa por gritar comela. Pensei nomeupai abrindo a porta domeu quarto em busca de Sam. Quanto tempo fazia que eles nãoperguntavamondeeuestivera,comoeuia,seprecisavadealgumacoisa.

Euvirameuspaisjuntos;eleseramumafamília.Cadaumdelesaindase preocupava com os pequenos detalhes da vida do outro. Vi Becktambém, e o jeito como ele conhecia Sam. O jeito como o amava. E como

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Sam ainda orbitava em torno da lembrança de Beck, como um satéliteperdido. Aquilo era uma família. Meus pais e eu... Morávamos juntos, àsvezes.

Seriapossívelamadurecermaisqueosprópriospais?

Lembrei da maneira como os lobos haviam me olhado. Lembrei depensaremquanto tempoeu tinha.QuantasnoitesmerestavamcomSam,quantasnoiteseuestariadesperdiçandoalisozinha.

Euaindasentiaogostodemetal.Adoençaquemecorroíapordentronãodiminuíra.Elamedevastava,maseueramais forte.Haviacoisasquecontinuavamsobomeucontrole.

Melevanteidacama.

Uma espécie de calma mortal me invadiu enquanto eu andava peloquarto, pegando minha calça jeans, minha roupa de baixo, algumascamisasedoisparesextrasdemeias.Oolhodo furacão.En iei as roupasnamochilajuntocomomeudeverdecasaecomoexemplardeRilkequeSam amava e que icara na mesinha de cabeceira. Toquei a beirada dacômoda, segurei meu travesseiro, cheguei à janela de onde certa vezencararaum lobo.Meucoraçãobatianopeito,esperandoqueaqualquermomentomeupaiouminhamãeabrissemaportaemeencontrassememmeioaospreparativos.Decertoalguémperceberiaaseriedadedoqueeuestavafazendo.

Porém,nadaaconteceu.Antesdeatravessarmosocorredor,pegueinobanheiro a escova de dentes e a de cabelo, e a casa permaneceu emsilêncio.Hesiteijuntoàportadafrente,comossapatosnasmãos.Escutei.

Nada.

Euestavamesmofazendoaquilo?

—Adeus—sussurrei.Minhasmãostremiam.

Aportaroçounocapachoquandoafecheidepoisdesair.

Eunãosabiaquandoestariadevolta.

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CAPÍTULO41•SAM•

SemGrace,eueraumanimalnotívago.Persegui formigasnacozinha,aguardandojuntoàluzinsu icientedaslâmpadasembutidas,comumcopoeumpedaçodepapel,demodoatransportá-lasparafora.PegueioviolãoempoeiradodePauljuntoàlareiraeoa inei.Primeironaa inaçãopadrão,depoiscomasextacordaemré,depoisnoesquemaDADGADedevoltaàpadrão. No porão, remexi nos livros de não icção de Beck até encontrarumsobreimpostos,outroensinandoafazeramigosein luenciarpessoasemaisumsobremeditação.Empilhei-osjuntoaummontãodevolumesquejamais pretendia ler. Lá em cima, no meu banheiro, sentei no chãoladrilhadoe izexperiênciasvisandoamelhormaneiradeapararasunhasdos pés. Pôr amão em concha sob os pés só recolhia as unhas voadorasparcialmente,eseeuasdeixassevoarparaondequisessem,sóconseguiaencontrar metade delas nos ladrilhos brancos. Por isso, aquela era umabatalhaperdida,com50%debaixasdeumjeitooudeoutro.

Emmeioaoprocesso,ouviosloboscomeçaremauivaraltoatravésdajanela do quarto de Beck. O barulho diferia de noite para noite,dependendo de como eu me sentia. Podia ser sonoro, belo, um corocelestial de animais pesados, cheirando a selva. Ou então uma sinfoniasobrenatural, solitária, com notas despejadas na noite, umas contra asoutras,jubilosas,voltadasparaocéuechamandoalua.

Naquela noite, o que ouvi foi uma cacofonia coletiva, uivos querendochamar a atenção, latidos entremeados. Inquietação. Uma matilhadissonante. Umamatilha dispersa. Os lobos costumavam uivar assim nasnoites em que Beck ou Paul vestiam sua pele humana, mas naquelemomentoambososlíderesestavamcomeles.Eueraoúnicoausente.

Me levantei, as tábuas do assoalho frias sob a sola dos meus péshumanos, e cheguei até o peitoril. Hesitei um instante e depois abri atrancaeajanela.Ofrígidoarnoturnoentrouagalope,masnãomeafetou.Euerahumano.Eraeu.

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Ouivodoslobostambémpenetroupelajanelaaberta,meenvolvendo.

Vocêssentemfaltademim?

Os gritos desorganizados prosseguiram, protestando mais do quecantando.

Eusintofaltadevocês.

E,comumasurpresadormente,percebiqueaquiloeratudo.Eusentiasaudade deles. Não sentia falta daquilo. Isso— essa pessoa debruçada àjanela, cheia de lembranças, esperanças e medos humanos, essa pessoaque envelheceria— era a minha pessoa, e eu não queria perdê-la. Nãosentia falta de estar no meio do bando, uivando, algo que jamais secompararia à sensação dos meus dedos nas cordas do violão. O cantopotentedoslobosjamaisseriatãotriunfalquantoosomdonomedeGracenaminhaboca.

—Temgente aqui querendodormir!—gritei para a escuridão, queengoliuamentira.

A noite se aquietou. O silêncio congelou a escuridão. Nenhum pio deaveousussurrodefolhasnaquelanoitemuda.Apenasoruídodistantedepneusnumaestradalongínqua.

—Uuuuuu!—griteidajanelaparachamaromeubando,mesentindoumpalhaço.

Houve uma pausa. Uma pausa tão comprida que me fez percebercomoeuqueriaqueelesprecisassemdemim.

Então, todos começaram a uivar novamente, tão alto quanto antes,suasvozesseatropelandocomumadeterminaçãonova.

Sorri.

Uma voz familiar atrás de mim me sobressaltou. Parei já prestes aestenderamãoporentreateladajanela.

—Acheiquevocêteriaumaaudiçãoaguçadaobastanteparaescutar

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umalfinetecairaumquilômetrodedistância.

Grace.AvozdeGrace.

Quando me virei, ela estava de pé junto à porta, com uma mochilapenduradanoombro.Seusorrisoera...tímido.

—Eaquiestoueu,chegandosorrateiramente,enquantovocê...Oquevocêestavafazendo,afinal?

Fecheiajanelaedeimeia-volta,piscando.Graceestavaali,naentradado quarto de Beck. Grace, que deveria estar em casa, na própria cama.Grace, que assombrava meus pensamentos quando eu não conseguiasonhar. Senti como se não devesse estar surpreso. A inal, eu não sabia otempo todo que ela apareceria ali?Não estivera o tempo todo esperandoencontrá-laàminhaporta?

Finalmente recuperei o controle dos meus músculos e atravessei ocômodo para recebê-la. Aproximei-me o bastante para beijá-la, mas, emvez disso, estendi amão para a alça frouxa damochila e corri o polegarpela super ície irregular. A presença da mochila respondia uma dasperguntas que deixei de fazer. Outra delas foi respondida pelo odor deloboaindapresentenarespiraçãodeGrace.Easériededúvidasquemerestavam, —Sabeoque vai acontecer quando eles descobrirem?Você sabeque isso vaimudar tudo?Vocênão se importa coma imagemque terãodevocê? E com a imagem que terão demim? — já haviam sido respondidasa irmativamente, ou elanãoestaria aqui. Elanão teriapostoopé foradopróprioquartosemrefletirsobretudoisso.

Oquesignificavaqueeutinhaapenasumaperguntaafazer:

—Vocêtemcerteza?

Graceassentiu.

E,deumahoraparaoutra,tudomudou.

Puxeicomdelicadezaaalçadamochilaedeiumsuspiro.

—Ah,Grace.

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—Vocêestázangado?

Pegueiasmãosdelaebalancei-assuavementeparafrenteeparatrás,dançandosemtiraropédochão.MinhacabeçaeraumamisturadeRilke—Você que nunca chegou aosmeus braços, Amada, que esteve perdidadesdeoinício—comavozdopaidela—Estoumeesforçandoaomáximopara não dizer algo de que me arrependa depois — e a saudadepersonificadanaqueleserfísicoali,finalmentenasminhasmãosansiosas.

—Estoucommedo—falei.

Massentiumsorrisonomeurosto.Equandoelaoviu,umanuvemdeansiedade que eu sequer havia reparado no dela se dispersou, deixandosomenteumcéuazule,finalmente,osol.

— Oi— disse eu, abraçando-a. — Minha saudade era maior agora,quandoeuatinha,efetivamente,nosbraços.

•GRACE•

Eumesentiazonzaelenta,memovimentandonumsonho.

Essa era a vida de outra pessoa, uma vida na qual a garota foge decasaaoencontrodonamorado.EssanãoeraaGracecon iável,quejamaisentregava um dever depois da data, icava na rua até tarde da noite ouandava fora dos contornos. E, no entanto, lá estava eu, no corpo daquelagarotarebelde,pousandocuidadosamenteminhaescovadedentesaoladodaescovadedentesnovinhaemfolhadeSam,comoseaquelefosseomeulugar. Como se eu fosse passar algum tempo ali. Meus olhos doíam decansaço,masmeucérebrocontinuavaamil,totalmentedesperto.

Adorestavamaisfracaagora,maiscalma.Eusabiaquehaviaapenasseescondido,afastadapelacertezadaproximidadedeSam,masagradecioalívio.

No chão do banheiro, vi a meia lua de uma unha do pé caída no

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ladrilho,juntoaopédaprivada.Suaabsolutabanalidademefezperceber,com total isenção,queeumeencontravanobanheirodeSam,nacasadeSam,planejandopassaranoitenoquartodeSamcomSam.

Meus pais iam me matar. O que fariam primeiro, logo de manhã?Ligariam para omeu celular? Para ouvi-lo tocar no lugar onde o haviamescondido? Podiam ligar para a polícia, se quisessem. Como disse omeupai, eu ainda era menor de idade. Fechei os olhos e imaginei o policialKoenig batendo à porta com meus pais atrás dele, esperando para mearrastardevoltaparacasa.Meuestômagoserevirou.

Sambateudelevenaportadobanheiro.

—Tudobem?

Abriosolhoseoencarei,paradoàporta.Eletrocaraderoupaeagorausava uma calça de moletom e uma camiseta estampada com um polvo.Aquilotudo,afinal,talvezfosseumaboaideia.

—Tudobem—respondi.

—Você ica uma gracinha de pijama—me elogiou, a voz hesitandocomoseadmitissealgoquenãopretenderaadmitir.

Estendi a mão e a pousei em seu peito, sentindo sua respiraçãoatravésdotecidofino.

—Vocêtambém.

Sam abriu a boca, formando um sorriso triste. Em seguida, tirando aminhamão do seu peito,me guiou pelo corredor, tendo antes apagado aluzdobanheiro,seuspésdescalçosbatendonatábuacorrida.

Aúnica iluminação em seuquarto vinhado corredor edo re lexodaclaridadedavaranda,quepenetravapelajanela;eumaldistinguiaaformabranca do cobertor cuidadosamente esticado na cama. Soltando minhamão,Samdisse:

—Apagoaluzdocorredorassimquevocêentrar,paraevitarquesaiatrombandonosmóveis.

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Ele então desviou o rosto com uma expressão tímida, e vi, mais oumenos, como se sentia. Era como se estivéssemos nos encontrandonovamentepelaprimeiravez,comosenuncativéssemostrocadoumbeijoou passado uma noite juntos. Tudo parecia novinho em folha, tinindo eaterrorizante.

Me en iei na cama com os lençóis sob as mãos e me arrastei pelocolchãoatéaparedecontraaqualelaestavaencostada.Ocorredor icouescuro,eouviSamsuspirar—umsuspiropesadoetrêmulo—antesqueastábuasdoassoalhorangessemsobseuspassos.Oquartotinhaclaridadeapenasparaqueeudistinguisseos contornosdos seusombros àmedidaqueelesedeitavaaomeulado.

Durante um instante, icamos ali deitados, sem nos tocar, doisestranhos.

Então Sam se aproximou de mim e deitou a cabeça no mesmotravesseiro.

Quandomebeijou,seuslábiosforammaciosecuidadosos,misturandoa emoção do primeiro beijo à familiaridade praticada da lembrança detodos os seguintes. Pude sentir a batida do seu coração através dacamiseta,umrápidobumqueseaceleroumaisaindaquandoentrelaçamosnossaspernas.

—Nãoseioquevaiacontecer—disseelebaixinho.Seurostoestavajuntoaomeupescoço,aspalavrasditasdiretamentenaminhapele.

—Nemeu—falei.Onervosismoeacoisadentrodemimmederamumapertonoestômago.

Lá fora, os lobos cantavam intermitentemente, seus gritos subindo edescendo,difíceisdeouviragora.Sam,aomeulado,ficoumuitoquieto.

—Vocêsentefaltadisso?—indaguei.

— Não — respondeu ele, tão rápido que não acreditei que tivesserealmente pensado na pergunta. Passado um momento, veio ocomplemento da resposta, trôpego e hesitante.— É isto o que eu quero.Quero saber o que estou fazendo. Quero me lembrar. Quero fazer

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diferença.

Ele estava errado, porém. Sam sempre havia feito diferença, mesmoquandoeraumlobonaflorestaatrásdaminhacasa.

Virei rapidamente o rosto para enxugar o nariz num papel quetrouxera do banheiro. Não precisei olhar para saber que ele icaramanchadodevermelho.

Samrespiroufundoemeenvolveuemseusbraços.Enterrouacabeçaem meu ombro e senti quando agarrou um pedaço da blusa do meupijama,aomesmotempoemqueinspiravameuaroma.

— Fique comigo, Grace — sussurrou ele, e eu encostei meu punhotrêmulodeencontroaseupeito.—Porfavor,fiquecomigo.

Senti o cheiro da minha própria pele, o cheiro de amêndoasexcessivamente doce que exalava dela, e entendi que Samnão se referiaàquelanoiteapenas.

Aninhadaemmeusbraços,vocêéumaborboletaaocontrário

abrindomãodesuasasas,herdandominhasina

desistindodemim

Desistindo

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CAPÍTULO42•SAM•

OdiamaislongodaminhavidacomeçoueacaboucomGracefechandoosolhos.

Namanhã seguinte, quando acordei, Grace não estava propriamenteemmeus braços, e sim espalhada sem cerimônia por cima demim e domeutravesseiro,meimprensandocontraacama.Aluzdosolemolduravanós dois; o retângulo de claridade projetado através da janela delineavaperfeitamente os nossos corpos. O dia havia avançado enquanto ogastávamos dormindo. Tive a impressão de nunca ter dormido assim,mortoparaomundo,indiferenteàclaridadedodia.Meapoiandosobreoscotovelos, fui invadidoporuma sensaçãoestranha, dequeda, comopesodemilharesdediasnãovividosempilhadosunssobreosoutrosenquantoolhavaparaGrace.Elaresmungouaoacordar.Quandosevirouparamim,vialgovermelhoantesqueelapassasseamãopelorosto.

—Oi—disseela,abrindoosolhosparaolharopulso.

—Querumlençodepapel?—perguntei.

—Eupego—rosnouGrace.

—Nãoprecisa.Jámelevantei.

—Levantouumaova.

—Levantei.Estouapoiadonoscotovelos,viu?Milvezesmaisacordadoquevocê.

Normalmente, a essa altura, eu me inclinaria para ser beijado, parafazerumcarinhonela,parapassaramãopelasuacoxaouparadescansarminhacabeçaemseuestômago.Naqueledia,porém,tivemedodequebrá-la.

Gracemeolhoucomoseaausênciadecontatofossesuspeita.

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—Eubemquepodiaenxugarmeunariznasuacamiseta.

— Saquei!— disse eu, levantando da cama para pegar um lenço depapel. Quando voltei, o cabelo dela se espalhava em torno do rosto,escondendo sua expressão. Sem comentários, Grace limpou o braço eamassouo lenço rapidamente,masnão comrapidezo su icienteparameimpedirderepararnosanguequeneleseencontrava.

Fiqueitenso.

Entregandoaelaummaçodelenços,falei:

—Achomelhorirmosaomédico.

— E inútil — contestou Grace. Ela enxugou o nariz, mas nada maishaviaali.Emvezdisso,passouolençonobraço.

— Quero ir mesmo assim — insisti. Alguma coisa tinha de aliviaraquelaansiedadeemmeupeito.

—Odeiomédicos.

— Sei disso— concordei. Era verdade. Grace já divagara sobre issoantes. Pessoalmente, eu achava que tinhamais a ver com sua aversão aperdertempo,enãocommedodemédicoseenfermeiros.Acheiqueoqueaincomodavadeverdadeeraumaaversãoasalasdeespera.—Vamosaocentrodesaúde.Láémaisrápido.

Gracefezumacaretaedepoisdeudeombros,concordando.

—Estábem.

— Obrigado — agradeci, aliviado, quando ela desabou novamentesobreumtravesseiro.

Gracefechouosolhos.

—Achoquenãovãoencontrarcoisaalguma.

Supus que provavelmente ela tinha razão. Mas o quemais eu podiafazer?

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•GRACE•

Partedemimqueria iraomédico, casoelepudesseajudar.Masumapartemaior tinhamedo, caso ele não pudesse. Que opçãome restaria seessafalhasse?

Visitar o centromédico contribuiu para o aspecto surreal do dia. Eununca estivera lá, embora Sam parecesse conhecer bastante o lugar. Asparedestinhamumtompútridodeverde,easaladeexamesostentavaummuralretratandoquatrobaleiasassassinasmaldesenhadasbrincandoemondas esverdea- das. Todo o tempo emque a enfermeira e omédicomeizeram perguntas, Sam en iava e tirava asmãos dos bolsos. Quando lhelanceiumolhar,eleparouporalgunsinstantes,eentãocomeçouaestalarasarticulaçõescomopolegar.

Minha cabeça estava zonza, o que eu disse ao médico, e meu nariz,felizmente, comprovou seu sangramento diante da enfermeira. A dor deestômago, porém, pude apenas descrever, e ambos me olharamaparvalhados quando tentei fazê-los cheirar a minha pele (o médico, noentanto,cheirou).

Noventa e cinco minutos depois, saí de lá com uma receita pararemédios contra alergia sazonal; com a recomendação de comprar semreceitaumsuplementodeferroespraynasalsalino;ecomalembrançadeum sermão sobre adolescentes e falta de sono. Ah! E Sam saiu sessentadólaresmaispobre.

—Estásesentindomelhoragora?—pergunteiaSamquandoabriuaporta do Volkswagen para mim. Ele parecia um pássaro curvado nesseclima de primavera, negro e despojado contra as nuvens plúmbeas. Nãodava para dizer, olhando o céu carregado, se o dia estava começando outerminando.

—É—disseele,quecontinuavaaserumpéssimomentiroso.

—Ótimo—falei,semdeixardeserumamentirosafantástica.

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Então a coisa no interior dos meus músculos gemeu, se alongou edoeu.

Sam me levou para tomar um café, que não tomei. EnquantoestávamossentadosnaKenny's,ocelulardeletocou.SamvirouotelefoneparaqueeuvisseonúmerodeRachel.

Voltando à posição anterior, ele me entregou o celular. Seu braçoenvolviaomeupescoçoportrásdeumjeitobastantedesconfortável,masmuitocharmoso,demodoqueeunãopodiamemexer.Encosteiorostoemseubraçoeabrioflipdotelefone.

—Alô.

—Credo,Grace,vocêpirou?

Sentimeuestômagoserevirar.

—Vocêdeveterfaladocommeuspais.

—Elesligaramparaaminhacasa.ProvavelmenteparaadaRainhadeGelo também. Queriam saber se você estava lá, porque:aparentementevocê não dormiu na sua cama a noite passada e não estava com o seucelularhoje,eeles foram icandocadavezmaispreocupados,deum jeitobastantedesagradávelparaapobrezinhaquevosfala!

Apertei a testa comumadasmãos e apoiei o cotovelo namesa. Sam,educadamente, ingiu não estar escutando, embora a voz de Rachelpudesseserclaramenteouvida.

—Desculpe,Rachel.Oquevocêdisseaeles?

—Vocêsabequenãosouboaparamentir,Grace!Nãoconseguidizerquevocêestavanaminhacasa!

—Seidisso—falei.

—EntãodissequevocêestavanacasadeIsabel.

Pisquei.

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—Vocêdisseisso?

— O que você queria que eu dissesse? Que você estava na casa doRapaz,paraelesmataremvocêsdois?

Minhavozsaiuumpoucomaisbelicosadoquepretendi.

—Elesvãoacabardescobrindo,detodojeito.

— Como assim? Grace Brisbane, você não está dizendo que não vaivoltarparacasa,está?Falapramimqueésóporqueestáfuriosaporelesterem colocado você de castigo. Ou atémesmo porque não podia passarmaisumanoitesequersemosadereçosfantásticosdoRapaz.Masnãomedigaqueéparasempre!

O rosto de Sam contorceu-se de forma estranha à menção dosadereçosdoRapaz.

— Não sei. Não pensei tão pra frente. Mas não pretendo voltar tãocedo.MinhamãemeajudoudizendoqueachavaqueeueSaméramossóumcasodepaixoniteequeeuprecisavaaprenderadiferençaentreamore desejo. E ontem à noite, meu pai me disse que eu estava proibida deencontrarcomSamatéfazer18anos.

Sampareceuabalado.Essaparteeunãolhehaviacontado.

— Uau. A compreensão limitada do modelo parental jamais para deme surpreender. Principalmente porque o Rapaz é... Bom, o Rapaznitidamenteéincrível.Qualéoproblemadeles?Dequalquerforma,oquevocêquerqueeufaça?Vocêvai...Bom,oquevaiacontecer?

— Vou acabar cansando de usar as mesmas duas camisas o tempotodoevoltandoláparaenfrentá-los—respondi.—Masatélá,acho...Achoquenãovoufalarcomeles.

Soou estranhíssimo dizer isso. Eu estava furiosa com eles pelo quehaviam dito, tudo bem. Mas sabia que essas coisas, por si só, nãojusti icavamaminhafuga.Erammaiscomoapontadoiceberg,eeutalveznão estivesse realmente fugindo, mas tornando o icial a distânciaemocional entre nós. Agora, os dois hoje não estavam mais distantes de

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mimdoquenamaioriadosdiasdaminhaadolescência.

— Uau — exclamou Rachel. Dava para saber quando ela estavaperplexaquandotudoqueconseguiadizerera"Uau".

—Cansei,chega—falei,emesurpreendiaoouvirminhavoz falseardeleve.TorciparaSamnãoternotado.Fizquestãodemanteravoz irmeao prosseguir.— Não vou mais ingir que somos uma família feliz. Paravariar,voucuidardemimagora.

Omomentosoourepentinamenteprofundocomigoali,sentadanosofádesbotadodaKenny's,oporta-guardanaposdemetalre letindoa imagemde Sam encostado em mim e a minha sensação de ser uma ilha seafastando cada vez mais da terra irme. Pude sentir meu cérebrofotografar a cena, a claridade desbotada, a beirada lascada dos pratos, acanecadecaféaindacheiaàminhafrente,ascoresneutrasdascamisetasqueSamusavaemcamadas.

—Uau—repetiuRachel.Edepoisdeumapausaacrescentou:—Vocênãoestáfalandosério,Grace...Tomecuidado,viu?Querdizer...nãomagoeo Rapaz. Essa parece ser o tipo de guerra que deixamuitosmortos e asaldeiaspróximasexauridas,depoisdetantapilhagem.

— Pode acreditar que o Rapaz é a única coisa nisso tudo que façoquestãodeconservar.

Rachelsoltouumenormesuspiro.

—Estábem.Vocêsabequefaçotudooquevocêprecisarqueeufaça.Talvezsejamelhorvocê fazercontatocomadonadasbotasbicudasparaavisaraelaoqueestárolando.

—Obrigada—agradeci,eSamdeitouacabeçanomeuombro,comosederepenteestivessetãoexaustoquantoeu.—Agentesevêamanhã.

Rachel concordouedesligou.Pusdevoltao celularnobolsoda calçacargodeSamantesdeencostaracabeçanadele.Fecheiosolhose,poruminstante, simplesmenteme permiti inalar o aroma do seu cabelo e ingirque já estávamos de volta à casa de Beck. Queria apenas poder meenroscar nele e dormir sem precisar me preocupar em enfrentar meus

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pais, Cole ou o cheiro de amêndoas e de lobo que começava a brotarnovamentenaminhapele.

—Acorde—disseSam.

—Nãoestoudormindo—retruquei.

Samapenasolhouparamim.Emseguida,voltouosolhosparaomeucafé.

—Vocênãobebeunadinhadasuaenergialíquida,Grace.

Sem esperar pelaminha resposta, simplesmente tirou algumas notasdacarteiraeasen iousobsuacanecavazia.Pareciacansadoemaisvelho,com círculos escuros sob os olhos, e de repente me enchi de culpa. Euestavadificultandoascoisasparaele.

Minha pele estava estranha e latejava. Mais uma vez, senti gosto demetalnaboca.

—Vamosparacasa—falei.

Sam não me perguntou a que casa eu me referia. A palavra agorasignificavaumúnicolugar.

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CAPÍTULO43•SAM•

Eudeviateradivinhadoqueacabariaassim.Etalvez,dealgumaforma,tenha adivinhado mesmo, porque não me surpreendi quando vi umacaminhonete azul na entrada da casa de Beck, uma daquelas lustrosas eenormes, mais parecendo uma pequena loja de conveniência. Na placaestavaescritoCULPEPR,eTomCulpeperseencontravaempédiantedele.Gesticulava ensandecido para Cole, que parecia profundamenteindiferente.

EunadatinhacontraTomCulpeper,salvoaantipatiageradapelofatodeeleterlideradoumacaçadaaoslobosemeacertadoumtironopescoço.Porissomeuestômagosecontraiuaovê-lo.

— Aquele é Tom Culpeper? — indagou Grace, numa voz quetransmitia todaa faltadeentusiasmoqueeusentia.—VocêachaqueeleveioporcausadeIsabel?

Enquanto estacionava na rua, senti um latejar esquisito me descerpelaspernas.

—Não,achoquenão.

•COLE•

TomCulpepereraumsacana.

Por tambémser,eupodiamepermitirpensarassim.Ele jáestavahácincominutos tentandoextrairdemim informações sobreoparadeirodeBeckquandooVolkswagencinzadeSamparoujuntoaomeio- io.Sam,nobanco do motorista, desceu do carro com uma expressão carrancuda.Nitidamenteeleeaquelebabacatinhamsuasdiferenças.

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Tom Culpeper calou a matraca quando Sam atravessou o gramado,semprojetarsombraalgumasobaluzdatardesemsol.

—Possoajudar?—indagouSam.

Culpeperen iouospolegaresnosbolsosdacalçadebrimeexaminouSam.Derepente,adotouumaexpressãoalegre,confiante.

—VocêéofilhodeBeck.Oadotado,não?

OsorrisodeSamfoidébil.

—Sou.

—Sabeseeleestáporaí?

—Infelizmente,não—respondeuSam.Gracesejuntouanós, icandoentre mim e ele. Seu rosto estampava uma expressão vaga, como seouvisse,sóela,algumamúsicaquenãolheagradava.AdisposiçãoamistosadeCulpeperseanuviouaovê-la.—Vouavisaraelequeosenhoresteveaqui—completouSam.

—Elenãovoltahoje?—quissaberCulpeper.

—Não,senhor—respondeuSam,conseguindosoaraomesmotempoeducadoeinsolente,talvezsemquerer.

—Éumapena,porquetenhoalgoquequeriaentregarpessoalmenteaele. Mas acho que você talvez possa receber em seu lugar. — Com oqueixo,então,indicouatraseiradoutilitário.

O rosto de Sam tinha omesmo tom cinzento do céu quando ele e eufomosemfrente,seguidosporGrace.

—Vocêachaque issopode serdo interessedo sr.Beck?— indagouCulpeper,abrindoatraseiradocarro.

Aquelemomento.Hámomentosquenostransformamparasempre,eaquelefoiumdelesparamim.

Natraseiradocarro,entresacolasdeplásticodesupermercadoeuma

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lata de gasolina, estava um lobo morto. Jazia de lado, com as pernascruzadasumassobreasoutras,apóstersidoempurradoparacaberali.Opelo estavamanchadode sangueno pescoço e na barriga.Damandíbulalevementeaberta,pendia,inerte,alíngua,entreoscaninos.

Victor.

Samlevouasmãosàboca,baixando-aemseguida.ContempleiacaracinzapálidadeVictor, comsuasmanchasescuraseseusolhoscastanhos,encarando,vazios,alateralacar-petadadoautomóvel.

Cruzando os braços, fechei asmãos para impedi-las de tremer. Meucoraçãobatiadeumjeitofrenético,desesperado.Euprecisavameafastar,masnãoconsegui.

—Oqueéisto?—indagouSamcomfrieza.

Culpeper agarrou uma das patas traseiras do lobo e, com um únicotranco, puxou o corpopor cimado para-choque, deixando-o cair comumbaquedoentionaentradadacasa.Gracegritou,avozcheiadohorrorquecomeçavaacrescerdentrodemim.

Eu precisava me virar. Minhas entranhas pareciam estar sedesfazendo.

—Digaoseguinteaoseupai—rosnouCulpeper.—Digaeeleparaparardealimentaressascoisas.Seviroutrodelesnaminhapropriedade,voumatá-lo.Voumatar todoequalquer loboemquepuserosolhos. IstoaquiéMercyFalls,nãooNationalGeographic.

Olhando para Grace, que dava a impressão de estar tão enjoadaquantoeu,acrescentou:

— Achei que você sabia escolher melhor suas companhias, sendo oseupaiquemeleé.

—Melhorcompanhiaqueasuafilha?—conseguiurebaterGrace.

Culpeperlhedeuumsorrisoconstrangido.

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Sam havia icado muito, muito, quieto, mas a voz de Grace o trouxenovamenteàvida.

—Sr.Culpeper,tenhocertezadequeosenhorsabequaléapro issãodomeupaiadotivo.

— E verdade. Trata-se de uma das poucas coisas que temos emcomum.

AvozdeSammostrou-seperturbadoramenteneutra.

—Garantoqueexistemimplicaçõeslegaisparaofatodedespejarumanimalselvagemmortonumapropriedadeprivada.Acaçadamaioriadosanimais é proibida nesta época, e, que eu saiba, os lobos estão incluídos.Imagino que se existe alguém que esteja a par dessas implicações, essealguéméele.

Tombalançouacabeçaesedirigiuparaaportadomotorista:

—Muitobem.Desejeboa sorte a elepormim.É precisopassarmaisdametadedoanoemMercyFallsparacontarcomobeneplácitodojuiz.

Era tamanha aminha vontade de feri-lo que chegava a doer. Queriaarrancardaquelabocaaquelesorrisodecera.

Acheiquenãoconseguiriameconter.

Senti um toque em meu braço e, baixando os olhos, vi os dedos deGrace envolvendomeu pulso acima do punho. Elame olhou emordeu olábio. Pela sua expressão e pela posição dos seus ombros, pude ver quetambémansiavaporacabarcomocara,efoiissoquemefreou.

—Emelhor tiraresse troçodo caminho, senãoquiserqueeupassecomo carropor cimadele—avisouCulpeper enquantobatia a portadoveículo.

NóstrêscorremosparaafastarocorpodeVictor,enquantoomotordoutilitárioeraligadoeamarchaaré,engatada.

Há séculos eu não me sentia tão infantil, tão impotente contra um

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adulto.

Assimqueocarrosumiudevista,Gracedisse:

—Elefoiembora,obabaca.

Desabei no chão junto ao lobo e levantei seu focinho. Os olhos deVictordevolveramomeuolhar,opacosesemvida,perdendoosigni icadoacadasegundodaqueleladodamorte.

Então,eudisseoquedeveriaterditomuitotempoantes—"Desculpe,Victor.Sintomuitomesmo"—àúltimapessoaqueeudestruirianavida.

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CAPÍTULO44•SAM•

Tiveasensaçãodejátercavadocovasdemaisnaqueleano.

Juntos, Cole e eu pegamos a pá na garagem e nos revezamos paracavarosoloparcialmentecongelado.Eunãosabiaoquedizeraele.Minhaboca aparentemente se entupira comas palavras que eudevia ter dito aTomCulpeper, e quando tentei encontrar alguma restanteparaCole, nãoconsegui.

QueriaqueGraceesperassedentrodecasa,masela insistiuem icarconosco. Observou-nos do meio das árvores, com os braços irmementecruzadoseosolhosvermelhos.

Eu escolhera aquele lugar, íngreme e árido, por causa da sua belezano verão.Quando chovia, as folhas se abriam, revelandoo interior alvo ebrilhante que se agitava ao vento. No entanto, eu jamais estivera ali naformahumanaparaapreciarocenário igualmentebelonaquelaépocadoano. Enquanto cavávamos, o cair da tarde transformou a loresta,espalhando raios de solmornosno chãoda loresta e pintando listras desombras azuis em nossos corpos. O conjunto de pinceladas amarelas eazuis resultava num quadro impressionista que retratava trêsadolescentesemumfuneralvespertino.

Colemais uma vez sofrerá uma transformação em relação ao sujeitoqueeuviradaúltimavez.Quandopasseiapáparaele, trocamosolhares.E, pela primeira vez desde que o conhecera, sua expressão não mepareceu vazia. Quando nossos olhares se encontraram, vi dor, culpa... eCole.

Finalmente,viCole.

O corpo de Victor jazia a alguns metros de nós, parcialmenteembrulhadonumlençol.Enquantocavava,compusemminhacabeçaumaelegiaparaele.

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Velejandoparaumailhaignorada

incapazdeencontrarocaminhoparacasa

vocêandasobumoceano

léguasabaixodenós

Gracecaptoumeuolhar,comosesoubesseoqueeuestavafazendo.Acanção também podia dizer respeito a ela, por isso a espantei do meupensamento. Cavandoe esperandopara cavar. Eranissoque eupensavaenquantoosolsepunha.

Quando a cova já estava su icientemente funda, nós dois hesitamos.DalieupodiaverabarrigadeVictoreoburacodabalaqueomatara.Nofinal,elemorreucomoumanimal.

Podia muito bem ter sido o corpo de Beck ou de Paul aquele queCulpeper tirara da traseira do carro. No ano anterior, poderia ter sido omeu.Porpouconãofoi.

•GRACE•

Colenãoconseguiudarconta.

Quandoacova inalmente icouprontaeele inalmentesepôsaoladode Sam, olhando para o corpo à beira dela, vi que Cole não daria conta.Reconheci a máscara de controle, a respiração entrecortada, irregular obastanteparafazerseucorpobalançaracadaexpiração.

Jáaconteceracomigo.

— Cole — falei, e ambos olharam para mim. Tiveram de baixar os

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olhos, porque há muito eu não conseguia mais icar em pé, tamanho ocansaço.Dolugarondeeuestava,emmeioàsfolhasfriasesecas,gesticuleinadireçãodeVictor.

—Porquevocêsnãodizemalgumaspalavras?ParaVictor.

Sampiscouparamim,surpreso.Achoquetalveztivesseseesquecidode que eu já lhe dera adeus uma vez. Aquela sensação não me eraestranha.

Cole não olhou para nenhum de nós. Apertou as juntas dos dedoscontraatestaeengoliuemseco.

—Nãoposso,eu...

Fezumapausa, então, pois sua voz falhou.Vi sua garganta semoverenquantoengoliaemseconovamente.

Estávamos deixando as coisas mais di íceis para ele. Estávamosobrigando-oacombaterolutoeaslágrimas.

Sampegouadeixaedisse:

—Podemosdeixarvocêsozinho,sequiserprivacidade.

—Não,porfavor—sussurrouCole.

Seu rosto continuava seco, mas uma lágrima, fria contra minhabochechaardente,medesceuatéoqueixo.

Sam aguardou um bocado que Cole falasse, e quando isso nãoaconteceu,recitouumpoema,numavozgraveesolene:

—Amorte chega emmeio a todo esse alvoroço, como um sapato quenãocontémpé,comoumternoquenãocontémhomemalgum...

Observei a total inércia de Cole enquanto Sam recitava. Ele não semexeu. Ele não respirou. Era um tipo de imobilidade tão profundo quedavaparaperceberquechegavaaoâmagodoseuser.

Sam deu um passo na direção de Cole e, então, pousou

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cuidadosamenteamãoemseuombro.

—EstenãoéVictor.Ealgoqueelevestiuduranteumbreveperíodoenãovestemais.

Ambosolharamparaocorpodo lobonamorte,enrijecido,pequenoedeaparênciaderrotada.

Coledesabounochão.

•COLE•

Euprecisavaencararosolhosdele.

Tireio lençolqueenvolviaocorpoparaquenãorestassenadaentremimeosolhoscastanhosdeVictor,vaziosedistantes,merosfantasmasdeseusolhosgenuínos.

O frioestremeceumeusombros,uma leveameaçadoqueestavaporvir,maseuoafastei,tirei-odacabeça.Olheiparaointeriordaquelesolhosetenteifingirquenãohavialoboalgumaemoldurá-los.

Recordei o dia em que perguntei a Victor se ele queria criar umabandacomigo.Estávamosemseuquarto,doqualumapequenaparteeraocupadapelacamaeorestante,porumabaterianaqualeleexecutavaumsolo.O eco era tãograndeno cômodoapertadoquedava a impressãodehaver ali três bateristas. Os pôsteres emoldurados balançavam nasparedes e o relógio- despertador aos poucos se aproximava, sacolejando,dabeiradadamesinhadecabeceira.OsolhosdeVictorbrilhavamcomumfervor frenético, e cada vez que chutava o bumbo, ele acompanhava ogestocomumacaretadirigidaamim.

MalpudeouvirAngiegritardoquartoaolado.

—Vic,vocêestáestourandomeustímpanos!Cole,fechaadrogadessaporta!

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Fecheiaportadoquarto.

—Parecelegal—elogiei.

Victorjogouparamimumadasbaquetas,quepassariavoandosobreaminhacabeçaseeunãomeesticasseparaagarrá-la.Tireiumacasquinhadoscímbalos.

—Victor!—urrouAngie.

—Estasmãossãomágicas—gritoueledevolta.

— Um dia, vão pagar pelo privilégio de ouvi-las tocar! — griteitambém.

Victorriuparamimeimprovisoucomumaúnicabaquetaeobumbo.

AtaqueiocímbalodenovoparairritarAngieemevireiparaVictor.

—Oquefoi?—indagouele.Emseguida,acertounovamenteobumbo,batendocomasuabaquetanaqueeuseguravaemmeioaoimproviso.

—Vocêestámesmoprontoparaisso?—perguntei.

Victorlargouabaqueta.Seusolhosmefixaramsempestanejar.

—Oquê?

—NARKOTIKA—respondi.

Agora, naquele vento gélido, enquanto o sol desaparecia, estendi amãoetoqueiopelodoombrodeVictor.Entãodisse,numavozgraveeforadetom:

—Vimparacáparafugir.Vimparacáparaesquecerdetudo.Achei...acheiquenãotinhanadaaperder.

O lobo jazia ali, pequeno, cinza e sombrio à luz mortiça. Morto. Euprecisava continuar olhando em seus olhos. Nãome permitiria esquecerqueaquelenãoeraumlobo,eraVictor.

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—Efuncionou,Victor,deverdade.—Balanceiacabeça.—Vocêsabe,nãosabe?Tudosomequandoseélobo.Eissooqueeuquero.Étãobom.Omais absoluto nada. Eu podia ser um lobo agorinha mesmo e não melembrar deste momento. Como se jamais tivesse acontecido. Eu não meimportariacomasuamorte,porquenemmelembrariadequemvocêera.

Pelocantodoolho,viSamdesviarorosto.Euestavatotalmentecientedoseuesforçoparanãoolharparamim,paranãoolharparaGrace.

Fecheiosolhos.

— Toda... esta... dor. Isto...—Minha voz começava a falhar de novo,perigosaerepentinamentehesitante.Maseunãoiaparar.Abriosolhos.—Aculpa.Porcausadoque izcomvocê.Porcausadoquesempre izcomvocê.Isso...Issosumiria.—Mecaleiepasseiamãonorosto.Minhavozeraquase inaudível.—Maséoqueeusemprefaço,certo,Vic?Ferrartudoedepoisdarumjeitodesumir.

Estendiamãoe toqueinumadaspatasdianteirasdo lobo;opeloeraásperoefriosobapontadosmeusdedos.

— Ah, Vic— falei, e a voz icou atravessada na minha garganta.—Vocêeratãobom.Mãosmágicas.

Elejamaisteriamãosdenovo.

Orestoeunãodisseemvozalta.

Nunca mais, Victor. Cansei de fugir. Lamento que isso precisasseacontecerparaeuenxergar.

Pelocantodoolho,vialgumacoisa,aescuridãosetransformando.

Lobos.

Comohumano, eu nunca vira tantos,mas agora eles formigavamnosespaços sombrios entre as árvores. Dez? Doze? Estavam afastados obastanteparaquasemefazercrerqueaquelasformasdifusaseramfrutodaminhaimaginação.

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OsolhosdeGracetambémestavamfixosneles.

—Sam—sussurrouela.—Beck.

—Eusei—disseele.

Ficamosos trêsparalisados, aguardandoparaverquanto tempoelesicariamalienosperguntandoseseaproximariammais.Agachadoaoladode Victor, tive consciência de que os olhos brilhantes signi icavam coisasdiferentes para cada um de nós. O passado de Sam. O meu presente. OfuturodeGrace.

— Eles estão aqui por causa de Victor? — indagou Sam, num tomsuave.

Ninguémrespondeu.

Medeiconta:eueraoúnicoquepranteavaVictorpeloqueelehaviasidodeverdade.

Os lobos permaneceram onde estavam, espectros na noite que caía.Finalmente,Samvirou-separamimeperguntou:

—Vocêestápronto?

Achei que não se tratava de algo para o qual fosse possível estarpronto, mas cobri o rosto de Victor com o lençol. Juntos, Sam e euerguemosseupeso—parecianadaentrenósdois—e,comdelicadeza,obaixamosàsepultura,comGraceeaalcateiacomoplateia.

Aflorestaestavatotalmentesilenciosa.

Então, Grace inalmente se pôs de pé, instável sobre as pernas, umadasmãosapertandooestômago.

Sam levouumsustoquandoumdos loboscomeçouaui-var.Eraumsom grave, triste, muito mais parecido com uma voz humana do queimagineiserpossível.

Umporum,osoutroslobosacrescentaramsuasvozes.Conformeodiaescurecia, o canto cresceu, preenchendo cada fenda, cada barranco da

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loresta. Isso despertou alguma lembrança lupina profundamenteenraizadanaminhamente,alembrançadeinclinaracabeçaeolharparaocéu,chamandoaprimavera.

Maisdoquequalqueroutracoisa,ocantosolitáriotornourealidadeaexistênciadocorpofriodeVictordentrodacova,epercebiquemeurostoestavamolhadoquandoocobricomasmãos.

Baixando-as,viSamdarospoucospassosqueoseparavamdeGraceeabraçarsuaformabalouçante.

Abraçar forte, negando o fato de que, cedo ou tarde, nós todosteríamosqueceder.

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CAPÍTULO45•SAM•

Quandotornamosaentraremcasa,foidi ícildizerquemestavacomapior aparência:Cole, destroçadopelo luto, ouGrace, osolhos enormesnorostopálidocomogiz.Doíaolharparaambos.

Coledesabounumadascadeirasqueseencontravaemvoltadamesadejantar.LeveiGraceatéosofáemesenteiaseulado,comaintençãodeligar o rádio, conversar com ela, fazer alguma coisa, mas eu estavaexaurido. Por isso icamos em silêncio, cada um perdido nos própriospensamentos.

Uma hora depois, quando ouvimos a porta do fundo se abrir, demostodosumpulo, relaxandoapenasumpoucoquandovimosque se tratavadeIsabel,embrulhadaemseucasacobrancoforradodepeleecalçandoasbotas de sempre. Seus olhos viajaram de Cole, sentado à mesa com acabeça deitada nos braços cruzados, paramim e, inalmente, para Grace,comacabeçarepousandoemmeupeito.

— Seu pai esteve aqui— falei tolamente, sem conseguir pensar emoutracoisaparadizer.

—Eusei.Euvi,quandojáeratardedemais.Nãosabiaqueeletrariaocorpoparacá—explicouela, comosbraçosesticadosao longodocorpo.— Ainda bem que vocês não o ouviram se gabando quando voltou. Nãoconseguisairantesdeterminarojantar.Disseaelequeiaatéabiblioteca,porque se tem uma coisa que aquele homem desconhece é o horário defuncionamento dela. — Fazendo uma pausa e virando parcialmente acabeçanadireçãodeumColeaindaimóvel,elaprosseguiu,falandocomigodenovo:—Quemera?Olobo?Quemera?

Dei uma olhada para a mesa da sala de jantar, a qual era quaseimpossívelverdosofáondeeuestava.Sabiaqueelemeouviriafalar.

—Victor.OamigodeCole.

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Deimediato,IsabelvoltousuaatençãoparaCole.

— Eu não sabia que ele tinha algum... — Ela pareceu perceber arudezadocomentário,poisacrescentou:—Aqui.

—É—enfatizei.

Isabel hesitou, voltando a olhar para Cole e, depois, novamente paranós.Porfim,falou:

—Vimaquiparasaberqualéoplano.

—Plano?—indaguei.—Planoparaquê?

Depois de lançar outro olhar para Cole, Isabel observou Grace commaisatençãoedepoisapontouumdedoparamim.Comumsorrisoduro,perguntou:

—Podemostrocarumapalavrinhacomvocê?Nacozinha?

Graceergueuacabeçaobedientementeefranziuatestaanteoconvitede Isabel,mas se afastoudemimpara que eu pudesse seguir sua amigaatéacozinha.

Malentreinacozinha,Isabeldissenumtommordaz:

— Eu avisei a você que os lobos andavam rondando a nossa casa equemeupainãoerafãdeles.Oquevocêesperava?

Minhassobrancelhasseergueramdiantedaacusação:

—Oquê?Oqueoseupaifezhoje?Cabiaamimimpedir?

—Vocêéoresponsável.Elessãoseuslobosagora.Nãodápra icardebraçoscruzados.

—Nãoimagineidefatoqueseupaifossesairporaí...

Isabelmecortou.

— Todomundo sabe que o meu pai é capaz de atirar em qualquer

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coisaquenãopodeatirardevolta.Supusquevocêfossefazeralgo!

—Nãoimaginooqueeupoderiafazerparamanterosloboslongedasua casa. Eles circulamao redordo lagoporquehá comida ali.Não acheiqueo seupai atirador iriaviolardescaradamenteas leis sobre caçadasearmasdefogo.

Aminhavozsaiuacusadora,oqueeusabianãoserjusto.

Isabelriu.Seurisomaispareceuumlatido,curtoesemgraça.

—Você,maisdoqueninguém,deveriasaberdoqueeleécapaz,peloamordeDeus. Falandonisso, porquanto tempovocêpretende continuarfingindoquenãohánadadeerradocomGrace?

Pisquei.

—Nãomeolhecomessesolhosdecordeirinho.Vocêestásentadoalicomela,quemaispareceumavítimadocâncer.Elaestápéssimaecheiraexatamentecomoaquelelobomorto.Oqueestáhavendo,afinal?

Titubeei.

—Nãosei,Isabel—respondi.Minhavozsooucansada,atémesmoaosmeusouvidos.—Fomosaomédicohoje.Nada.

—Bom,entãoleveGraceaohospital!

— O que acha que vão fazer no hospital? Talvez, talvez, façam umexamede sangue.Oquevocêachaquevãoencontrar? Suponhoquenãohajamuitachancedeapalavra"lobisomem"aparecernoresultado,enãoexistediagnósticopara"odordelobodoente".

Eunãoqueria soar tão zangado.Não era com Isabel, era comigoqueeuestavafurioso.

—Quer dizer então que você vai icar... O quê? Esperando que algoruimaconteça?

— O que você quer que eu faça? Que chegue com ela no hospital eexijaqueelesresolvamumproblemaquenaverdadeaindanãoapareceu?

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Que não consta do Manual Merck? Você acha que não passei o dia todopreocupado com isso? A semana toda? Você acha que não está mematando icar sem saber o que está acontecendo? Não é como sesoubéssemosaresposta.Nãoháprecedentes.Nuncaaconteceudessejeito.Estouperdidonoescuro,Isabel!

Isabelme encarou. Reparei que seus olhos estavammeio vermelhosportrásdamaquiagemnegraqueusaranaregião.

— Pense. Seja proativo ao invés de reativo. Você devia estarpesquisando o quematou aquele primeiro lobo em vez de icar olhandoparaGracetododerretido.Eoquevocêtemnacabeçaparapermitirqueela ique aqui? Os pais dela deixarammensagens no celular capazes defritar bacon. O que acontece se eles descobrirem onde você mora eaparecerem justo quando Cole estiver se transformando? Esse seria umexcelentetemaparaconversas,não?EporfalaremCole...Vocêsabequemeleé?Quediabosvocêestáfazendo,Sam?Quediabosvocêestáesperandoqueaconteça?

Deiascostasaelaeentrelaceiasmãosatrásdacabeça.

—Nossa,Isabel.Oquevocêquerdemim?Oquê?

— Quero que você cresça — rebateu. — Você achou que podiatrabalharnaquelalivrariaparasempreevivernummundoencantadocomGrace? Beck já era. Você é ele agora. Comece a agir como adulto, ou vaiperder tudo.Você achaqueomeupai vai pararpor aí?Porquevou logoavisando, ele ainda não acabou. E o que você acha que vai acontecerquando o pessoal aparecer procurando Cole? Quando o que quer quetenha matado aquele lobo matar Grace? Você esteve realmente numestúdiodegravaçãoontem?Surreal!

Virei-meparaencará-la.Suasmãoserampunhosmetidosnasaxilasesuabocaestava fechada,numaexpressãobelicosa.Quis lheperguntar sefaziaissoporqueJackmorreraeelanãoaguentavaveromesmoacontecercom outra pessoa. Ou se o motivo era eu ter sobrevivido e Jack não. Ouporque ela fazia parte de nós agora, inextricavelmente ligada a mim, aGrace,aColeeaosdemais.

No inaldascontas,nãoimportavadefatoomotivodeelaestaraliou

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dedizertudoisso.PorqueeusabiaqueIsabeltinharazão.

•COLE•

Erguiosolhosquandoouviasvozesexaltadasnacozinha.Graceeeutrocamosolhares.Ela se levantoueveio se sentardiantedemimàmesa,segurando um copo d'água e alguns comprimidos. Engoliu osmedicamentos e pousou o copo. O processo inteiro aparentemente lheexigia um bocado de esforço,mas nada comentei porque ela nada disse.Tinha olheiras escuras sob os olhos e as bochechas estavam rubras porcausadafebre.Pareciaexausta.

No outro cômodo, as vozes de Sam e Isabel continuavam exaltadas.Sentiatensãonoar,esticadaentretodosnóscomosefossearame.

—Nãoacreditoqueistoestáacontecendo—falei.

—Cole,vocêsabeoquevaiacontecerquandodescobriremquevocêestáaqui?Seimportaseeuperguntar?

O jeito como ela perguntou era totalmente franco e simples, semqualquerjulgamentoacercadaminhafama.

Balanceiacabeça.

—Não sei. Aminha família não vai ligar. Eles desistiramdemim faztempo.Masamídia, sim.—Penseinaquelasgarotas tirando fotosminhascomocelular.—Amídiavaiadorar.MercyFallsvaiatrairumbocadodeatenção.

Grace soltou um suspiro e pousou com cuidado amão no estômago,como se tivesse medo de esmagar a pele. Ela já estava com aquelaaparênciaantes?

—Vocêquerserencontrado?—perguntou.

Erguiumasobrancelha.

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—Ah— disse ela. E re letiu sobre isso.— Imagino que Beck tenhaachadoquevocêseriaumloboamais.

— Beck achou que eu ia me matar — falei. — Provavelmente nãopensoumaisqueisso.Eletentoumesalvar.

Nacozinha,Samdissealgumacoisainaudível.Isabelretrucou:

— Pensei que você e Grace falassem sobre tudo. Por que não sobreisso?

Ojeitocomoelafalouaquilonaquelemomento,comoseaconstataçãofossedolorosa,deuaimpressãodequeIsabelsentiaalgumacoisaporSam.Essapossibilidademedeixouestranhamenteanestesiado.

Graceapenasolhouparamim.Certamentetambémouviraaquilo,masguardouparasiaprópriareação.

IsabeleSamvoltaramparaasala,SamcomcaradedesânimoeIsabelparecendo frustrada. Sam chegou por trás da cadeira de Grace e passouuma dasmãos pelo seu pescoço. Foi um gesto simples, que não indicavaposse,maslaço.OsolhosdeIsabelse ixaramnaquelamão,domesmojeitoqueimaginoteremsefixadoosmeus.

Fecheieabriosolhos.Nesseínterim,vislumbreiVictor.Epercebiquenãoconseguiasuportar,continuarconsciente.

—Voudormir—falei.

IsabeleSamvoltaramaseentreolhar,comumabrigasilenciosaaindaemcurso.Emseguida,eladisse:

—Jáestou indo.Grace,Racheldissequevocêestánaminhacasa.Eucon irmei para seus pais, mas sei que eles não acreditaram. Você vaimesmopassaranoiteaqui?

GraceapenasestendeuamãoesegurouopulsodeSam.

— No inal, a minha é que é a voz da razão— vociferou Isabel. —Quantaironia.Avozdarazãoqueninguémescuta.

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Ela saiu zangada. Esperei um segundo e a segui na noite escura,alcançando-a junto à porta do utilitário branco, o ar noturnosuficientementefrioparaqueimarminhagarganta.

—Oquefoi?—indagouela.—Oquefoiagora,Cole?

Achoqueeuaindaestavasensíveldepoisdeouvi-lafalandocomSam.

—Porqueestáfazendoissocomele?—perguntei.

—ComSam?Eleprecisa.Ninguémestádizendoaverdadeaele.

Ela icou ali, furiosa, e agora que eu já a tinha visto chorar em suacama, foi fácil notar que a mesma emoção a corroía naquele momento,emboraIsabeljamaisaexpusesse.

—Equemestádizendoaverdadeavocê?—indaguei.

Isabelapenasolhouparamim.

—Acredite,eufaçoissoamimmesmaotempotodo.

—Acredito—falei.

Durante um segundo, tive a impressão de que ela fosse chorar denovo.Então,entrandonocarro, Isabelbateuaporta.Nãoolhounaminhadireçãoenquantosaíademarchaa ré.Fiqueialidepé,depoisqueela sefoi,oventofriomeaçoitandosemforçaobastanteparametransformar.

Tudoestavaarruinado, tudoestavaerrado,eo fatodenãoconseguirmetransformardeveriasero imdomundo.Emvezdisso,paravariar,eumesentibem.

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CAPÍTULO46•SAM•

Láestávamosnósdenovo,sempredizendoadeus.

Grace deitada de costas na minha cama, os joelhos lexionados. Acamiseta havia subido um tantinho, revelando alguns centímetros dabarriga pálida. O cabelo louro se espalhava de um lado, como se elaestivesse voando ou lutuandona água. Ao lado do interruptor eu olhavaparaelaeapenas...desejava.

— Não apague — pediu Grace, numa voz meio estranha. — Venhaficarcomigoumpouquinho.Nãoquerodormiragora.

Apagueialuz,dequalquerforma—naescuridãosúbita,Gracefezummuxoxo de irritação — , e depois me abaixei para apertar um botão,acendendouma carreirade luzinhasdeNatal presas ao teto.As luzinhascintilaramemmeioàsformasestranhasdosmeuspássarosgiratóriose,norosto de Grace, projetaram sombras móveis, como o clarão de umafogueira.Seumuxoxosetransformounumaexclamaçãoadmirada.

—Ecomo...—começouela,masnãoterminou.

Fui até a camae, emvezdemedeitar, senteidepernas cruzadasaoseulado.

—Pareceoquê?—perguntei,passandoascostasdosmeusdedosemseuestômago.

—Humm—murmurouGrace,fechandoparcialmenteosolhos.

—Écomooquê?—repeti.

—Ecomoolharasestrelas—disseela.—Comumgigantescobandodepassarinhosvoandonafrente.

Suspirei.

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— Sam, eu quero mesmo comprar uma cafeteira vermelha, se elasexistirem—disseGrace.

—Euachoumaparavocê—prometi,pousandoentãoamãoemseuestômago.Apeleardeusobaminhamão.IsabelmefalaraparaperguntaraGraceseelaestavabem,paranãoesperarquereclamasse,porqueelasófariaissoquandofossetardedemais.Afinal,nãoqueriamefazersofrer.

—Grace?—falei,tirandoamão,commedo.

Osolhosdelasedesviaramdospássarosemespiralacimadenóseseixaram em meu rosto. Ela pegou meu punho e o puxou para queformássemosumaconchacomasmãos,seusdedosnaminhalinhadavidaeosmeus,nadela.

—Oquê?—perguntouela. Seuhálito cheiravaametalea remédio:sangueeacetaminofeno.

Eu sabia que devia lhe perguntar o que estava acontecendo,mas sóqueriamaisumminutinhodepaz.Maisummomentoantesdeencararmosa verdade. Por isso iz uma pergunta para a qual sabia que, naquelemomento, não havia resposta correta. Uma pergunta que pertencia a umcasaldiferente,comumfuturodiferente.

—Quandoagentesecasar,podemosveromar?Eununcavi.

—Quando a gente se casar— respondeu ela, sem parecermentira,emborasuavozfossesuaveetriste—,vamosvertodososmares.Sóparadizerquefomos.

Fiquei deitado ao seu lado, nossasmãos enlaçadas sobre o estômagodela, ombro com ombro, e junto observamos, acima de nós, o bando delembranças felizes guardadas naquele quarto. As luzinhas de Natalpiscavam lá em cima. Quando as asas balouçantes obscureciam aslâmpadas,eumesentiamexer,balançarnumbarcogigante,contemplandoconstelaçõesdesconhecidas.

Estavanahora.

Fecheiosolhos.

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—Oqueestáacontecendocomvocê?

Grace icou calada durante tanto tempoque comecei a descon iar denãoterfeitoaperguntaemvozalta.Porfim,eladisse:

—Nãoquerodormir.Tenhomedodedormir.

Meucoraçãonãoapenasnãoacelerou,comodesacelerouderepente.

—Qualéasensação?

—Falardói—sussurrouela.—Eomeuestômago... Ele realmente...—Pusamãoemseuestômagoedepoispusadelasobreaminha.—Sam,estoucommedo.

Falardoíademaisdepoisdacon issãodeGrace.Faleibaixinho,porqueeratudooquedavaparafazer:

— Acho que vem dos lobos. Você acha que pegou alguma coisadaquelelobo,sabe-selácomo?

—Achoqueéumlobo—respondeuGrace.—Oloboquenuncafui.éessa a sensação, como se eu quisesse me transformar e jamais metransformasse.

Minhamente revisou rapidamente tudo o que eu já ouvira sobre oslobose sobreanossadoençabrilhantementedestrutiva,masparaaquilonãohaviaprecedentes.Graceeraúnica.

—Mediga,vocêaindasente?Senteolobodentrodevocê?Ouelenãoexistemais?—indagouela.

Suspirei e pouseiminha testa de encontro ao seu rosto. Claro que olobocontinuavalá.Claro.

— Grace, vou levar você para o hospital. Vamos fazer com quedescubram o que há de errado. Não me importo de contar o que forprecisoparaqueacreditem.

—Nãoqueromorrernumhospital—disseela.

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—Vocênãovaimorrer—garanti,erguendoacabeçaparaencará-la.—Aindanãoestoudispostoaparardecompormúsicassobrevocê.

Graceesboçouumsorrisotortoedepoismeobrigouadeitar,paraquepudessepousaracabeçaemmeupeito.Fechouosolhos.

Eunãofecheiosmeus.Observei-aeobserveiassombrasdospássarosatravessarem seu rosto e... desejei. Desejei mais lembranças felizes parapendurar no teto, tantas lembranças felizes com aquela garota que elasnãomaiscaberiamnotetoesairiamvoandopelocorredorecasaafora.

Umahoradepois,Gracecomeçouavomitarsangue.

Eunãopodialigarparaaemergênciaeajudá-laaomesmotempo,porissodeixei-aencostadacontraaparededocorredor,umatrilha inadoseusangue indicando o caminho feito por nós desde o quarto, enquanto eufalavaaotelefonesemjamaistirarosolhosdela.

Cole— eu não me lembrava de tê-lo chamado— surgiu no alto daescadae,silenciosamente,nostrouxetoalhas.

—Sam—disseGrace,numavozinhafinaedesolada—,meucabelo.

Eraamenorcoisadomundoosanguenaspontasdoseucabelo.Eraamaior coisa do mundo o fato de Grace ter perdido o controle. EnquantoCole a ajudava a apertar uma toalha de encontro à boca e ao nariz,desajeitadamente prendi seu cabelo num rabo de cavalo, longe do rosto.Então, ouvimos a ambulância entrar, ajudamos Grace a icar de pé etentamos fazê-la descer as escadas sem voltar a vomitar. Os pássarosestremeciam e balançavam à nossa volta enquanto saíamos apressados,como sequisessemnos seguir. Porém, seusbarbantes curtosdemaisnãopermitiam.

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CAPÍTULO47•GRACE•

Era uma vez uma garota chamada Grace Brisbane. Nada havia demuito especial ao seu respeito, salvo ser ótima com números, muito boamentirosae sentir-seemcasadentrodaspáginasdeum livro.Elaamavatodososlobosqueviviamatrásdasuacasa,masamavaumdelesmaisquetodos.

Esse lobo a amava também. Ele a amava tanto quemesmo as coisasquenãoeramespeciaisaseurespeitotornaram-seespeciais:o jeitocomoela batia o lápis nos dentes, sua voz desa inada cantando no chuveiro, amaneiracomoseubeijofaziacomqueelesoubessequeeraparasempre.

A lembrança dela era feita de imagens avulsas: ser arrastada pelaneve por um bando de lobos, o primeiro beijo com sabor de laranja, oadeusatravésdeumpara-brisaestilhaçado.

Uma vida feita de promessas do que podia ser: as possibilidadescontidasemummaçodeformuláriosuniversitários,aexcitaçãodedormirsobumtetodesconhecido,ofuturoquemoravanosorrisodeSam.

Eraumavidaqueeunãoqueriaabandonar.

Eraumavidaqueeunãoqueriaesquecer.

Eunãohaviaterminadoainda.Tinhamuitomaisadizer.

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CAPÍTULO48•SAM•

Luzespiscando

portasanônimas

meucoraçãofugindoemgotas

aindaestouacordando

maselacontinuadormindo

esteCTIé

umhotelparaosmortos

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CAPÍTULO49•COLE•

Não sei por que fui com Sam para o hospital. Sabia que podiammereconhecer — embora parecesse remota a possibilidade de alguém meidenti icarcomabarbaporfazereasolheirasescuras.Tambémsabiaquepodiametransformarsemeucorporesolvessesucumbiraoscaprichosdofrio. Porém, quando en iou a chave na porta do automóvel para seguir aambulância, Sam olhou demoradamente para a própria mãoensanguentada e precisou tentar duas vezes até acertar o buraco dafechadura.

Eu icara para trás, pronto para sumir se sentisse que o frio damadrugada me faria virar um lobo, mas quando vi a mão dele, dei umpassoàfrenteepegueiachave.

—Entre—falei,apontandocomacabeçaobancodocarona.

Efoioqueelefez.

Por isso, láestavaeu,depénoquartodehospitaldeumagarotaquemal conhecia, comumrapazque conheciaapenasumpoucomelhor, semsaber ao certo por queme dava esse trabalho. O quarto estava cheio—dois médicos, um sujeito que achei ser um cirurgião e um verdadeiroexército de enfermeiras. Houve um bocado de conversas abafadas, comtermostécnicossu icientesparafazerqualquerumvomitar,maspegueioespírito da coisa. Eles não faziam ideia do que havia de errado, e Graceestavamorrendo.

Não permitiram que Sam icasse a seu lado, o que o fez se sentarnumacadeiranocanto,oscotovelosapoiadosnosjoelhoseorostocobertoporumadasmãos.

Eu também não sabia o que fazer, por isso iquei a seu lado, meperguntandose,antesdesermordido,euteriasidocapazdecaptaroodordamortequepairavanoardoCTI.

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Um celular tocou aosmeus pés, um toque ríspido e pro issional quepercebivirdobolsodeSam.Emcâmeralenta,eleotiroudobolsoeolhouparaovisor.

—EIsabel—dissenumavozrouca.—Nãopossofalarcomela.

Pegueiotelefonedesuasmãosindiferenteseatendi.

—Isabel.

—Cole?—indagouela.—ÉoCole?

—Sim.

Emseguida,vieramaspalavrasmaissincerasqueeujáouviradabocadeIsabel:

—Ah,não.

Nãofaleinada,masobarulhoaofundodeveterdenunciadotudo.

—Vocêsestãonohospital?

—Estamos.

-—Oquedisseram?

—Omesmoquevocê.Elesnãofazemideia.

Isabelrepetiuváriasvezes,baixinho,omesmopalavrão.

—Elaestámuitomal,Cole?Vocêtemcomodizer?

—Samestábemaqui.

—Ótimo—comentouelanumtomduro.—Queótimo!

Derepente,umadasenfermeirasdisse:

—Cuidado!

Grace meio se ergueu um pouco e voltou a vomitar sangue sobre a

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enfermeira,queseafastousemalardeparalavarasmãosenquantooutraenfermeiratomavaseulugar,estendendoparaGraceumatoalha.

Grace voltou a desabar na cama. Disse algo que as enfermeiras nãoconseguiramentender.

—Oquefoi,meubem?

—Sam—ganiuGrace.Foiumsomhorrível,aomesmotempoanimalehumano, assustadoramente semelhante ao grito do cervo. Sam se pôs depédeumsalto,justoquandoumcasalentroudecididonoquartojálotado.

Vi uma das enfermeiras protestar contra a intrusão de ambosenquanto eles se dirigiam direto a nós,mas ela não teve tempo de dizercoisaalguma.

—Filhodamãe!—exclamouohomem,dandoummurronabocadeSam.

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CAPÍTULO50•SAM•

Omurro de Lewis Brisbane demorou para começar a doer, como semeucorponãopudessecrernoqueacabaradeacontecercomele.Quandoa dor inalmente começou ame dominar, passei a ouvir um zumbido noouvidoesquerdoe tivequemeagarrar àparedeparanão cairde costasem cima de uma cadeira. Eu ainda estava enjoado com o som da voz deGrace.

Por um átimo de segundo, vislumbrei uma imagem absolutamenteclaradamãedeGraceobservandoacena,orostovaziocomoseesperassequeumaexpressãose instalasseali, impassível, antesqueopaideGracemeatingissedenovo.

—Eumatovocê!—disse.

Apenas olhei aparvalhado para seu punho, com os ouvidos aindazumbindo por causa do primeiro soco. A maior parte da minha mentecontinuavacomGrace,nacamadohospital,eopoucoquemesobraraparadedicaraLewisBrisbanenãoconseguiuacreditarqueelefossemeacertaroutravez.Sequerpisquei.

Antes que seu punho voltasse a colidir com meu rosto, Brisbanevacilou, lutando para manter o equilíbrio. A medida que minha visãoclareava e a audição retornava, tudode uma só vez, vi Cole puxá-lo paratrás,comoseopaideGracenãopassassedeumsacodebatatas.

—Calminha, grandalhão—disse Cole. E depois, voltando-se para asenfermeiras, continuou: — Estão olhando o quê? Ajudem o sujeito queacaboudeseragredido.

Balancei a cabeça recusando o saco de gelo oferecido pelasenfermeiras,mas aceitei uma toalha para aminha testa ferida. Enquantoisso,ouviColedizeraosr.Brisbane:

—Voudeixar passar.Nãome faça obrigar o hospital a nos expulsar

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daqui.

Fiqueiali,vendoospaisdeGraceabriremcaminhoatéacamadafilha,enãomeocorreuoque fazer.Tudodeconcretoemminhavidaestavaseesfarelando,eeunãosabiaqualeraomeulugarnaqueleexatomomento.

Vi Cole me observando, e, sei lá por quê, seu olhar me lembrou datoalhanaminhamãoedolentocorrerdosangue,conformeelebrotavanaminhapele.Leveia toalhaà testa.Levantarobraçome fezverpontinhoscoloridosdançantes.

Ameulado,umaenfermeirafalou:

—Comlicença...Sam?Comovocênãoéparente,nãopodepermaneceraqui.Elesnospediramparamandarvocêsair.

Limitei-me a olhá-la, sentindo um vazio absoluto. Não sabia o queesperavamqueeudissesse.Aminhavidaestánaquelacama.Porfavor,medeixemficar.

Aenfermeirafezumacareta.

— Sintomuitomesmo—desculpou-se, olhando de esguelha para ospaisdeGrace.Vocêfezmuitobemtrazendo-aparacá.

Fechei os olhos. Podia ver os pontinhos coloridos mesmo de olhosfechados. Tive a impressão de que, se não me sentasse logo, meu corpofariaissopormim.

—Possodizeraelaquevousair?

—Nãoachoumaboaideia—contestouumadasoutrasen-fermeiras,passandoapressadacomalgumacoisanosbraços.

—Melhordeixá-lapensandoqueeleaindaestáaqui.Elepodevoltarse...—Elahesitouantesdeacrescentar:—Peçaquefiqueporperto.

Porumsegundo,meesqueciderespirar.

— Vamos — disse Cole, olhando por cima do ombro para o sr.Brisbane,quemeobservavacomumaexpressãocomplicada.Coleapontou

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paraeleedisse:—Vocêéqueéumbabaca.Eletemmaisdireitode icaraquidoquevocê.

Porém, amor não é algo quanti icável, e por isso precisei abandonarGrace.

•COLE•

QuandoIsabelchegouaohospital,odiacomeçavaaraiardooutroladodovidrocaneladodasjanelasdacantina.

Grace estava morrendo. Esse tanto eu depreendi da conversa dasenfermeiras antesde sairdoquarto.Ela estavavomitando todoo sanguedo corpo, recebendo vitamina K e transfusões para retardar o processo,masamorteacabariachegando.

EuaindanãohaviaditoissoaSam,masacheiqueelesabia.

A minha frente, Isabel bateu com um guardanapo na mesa, junto àtoalha manchada de Sam. Levei um momento para reconhecer noguardanapo o luxograma que eu rabiscara na lanchonete. Nele se liaMETA, me levando a recordar quanta coisa eu revelara a Isabel. Eladesabounacadeiradeplásticoàminhafrente.Tudonelaexpressava raivaraivaraiva.Estavatotalmentesemmaquiagem,salvovestígiosborradosderimeinosdoisolhos,quepareciamresidiraliháalgumtempo.

—CadêoSam?

Gesticulei na direção das janelas da cantina. Sam era uma manchamaisescuradeencontroaocéuaindaescuro.Comosbraçosentrelaçadosatrás da cabeça, ele olhava para o nada. Tudo o mais havia se mexidonaquela sala com o passar do tempo: a luz projetada nas tenebrosasparedes cor de laranja, conforme o sol lentamente nascia; as cadeirasocupadas e desocupadas à medida que os funcionários do hospitalentravamesaíamnahoradocafé;oserventecomseuescovãoeaplacadePISOMOLHADO.Sameraopivôemtornodoqualtudogirava.

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Isabeldisparoumaisumapergunta:

—Porquevocêveio?

Eumesmoaindanãosabia.

—Paraajudar—respondi,dandodeombros.

— Então ajude — disse ela, empurrando o guardanapo mais parapertodemim.E,numtommaisalto,chamou:—Sam.

Elebaixouasmãos,masnãosevirou.Honestamente, iquei surpresoportersemexido.

— Sam — repetiu Isabel, e dessa vez ele se virou para nós. Elaapontouparaobalcãoself-serviceeparaocaixadooutroladodacantina.—Pegueumcaféparanós.

Eu não soube dizer o que mais me espantou: se o fato de Isabelmandá-lo pegar um café ou o de ele obedecer, embora sem expressãoalguma.Volteiminhaatençãoparaela.

— Uau. Logo quando eu pensava que já tinha visto sua maiordemonstraçãodefrieza.

—Essa foiumademonstraçãodebondade—retorquiuIsabel.—Dequeadiantaeleficarolhandoláparafora?

— Sei lá. Vai ver está se lembrando de todos os dias que ele e anamoradativeram,antesqueelamorra.

Isabelmeencarou.

—Vocêachaque issovaiajudarvocêcomVictor?PorqueamimnãoajudaquandopensoemJack—disse,afundandoumdedonoguardanapo.—Falecomigo.Distoaqui.

—NãovejooqueistotemavercomGrace.

Sam pousou os dois copinhos de café namesa, um naminha frente,outronafrentedeIsabel.Paraele,nada.

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—ElaestásofrendodamesmacoisaquematouaqueleloboquevocêeGraceencontraram—disseSam,numavozdébil,comosehámuitonãoausasse.—Aquelecheiroépeculiardemais.Éamesmacoisa.

Eficouali,empé,comosesentarimplicasseemconcordarcomalgumacoisa.

OlheiparaIsabel:

—Oquelevavocêapensarquepossofazeralgoqueosmédicosnãopodem?

—Vocêéumgênio—respondeuIsabel.

—Essagentetodaé—rebati.

—Porquevocêsabe—disseSam.

Isabel empurrou novamente o guardanapo na minha direção. Maisumavez,mevicommeupaiàmesadasaladejantar,elemeconfrontandocom um problema. Ou então sentado, ouvindo uma de suas aulas nafaculdadeaos16anos,comeleolhandoparaasminhasdivagaçõesescritasnos trabalhos,buscando indíciosdequeo ilhoseguiria suaspegadas.Oume vi numa das premiações presididas por ele, cercado de camisasengomadasegravatasacadêmicasantigas,ouvindo-odizera todos,numavozquenãoadmitiacontradição,queeuseriaomáximo.

Penseiapenasnaquelegestosimplesdealgumashorasantes,quandoSampôsamãonopescoçodeGrace.

PenseiemVictor.

Pegueioguardanapo.

—Vouprecisardemaispapel.

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CAPÍTULO51•SAM•

Nunca houve noite mais longa que aquela: Cole e eu na cantina,revisando cadadetalhe dametamorfose até que o cérebrodele estivessecheioeIsabeleeufôssemosmandadosembora.Elecontinuousentadocomacabeçaentreasmãoseumpapelàfrente.Paramim,eraincrívelpensarque tudooqueeuqueria, tudooqueeu semprequis, estivesse sobreosombrosdeColeSt.Clair, sentadodiantedeumamesadeplásticoolhandoparaumguardanaporabiscado.Masqueoutraalternativamerestava?

Fugidacantinaparamesentardoladodeforadoquartodela,comascostas encostadas à parede e a cabeça entre asmãos. Contra a vontade,minha mente gravava cada detalhe daquelas paredes, daquele lugar,daquelanoite.

Eunãotinhaesperançadequemepermitissemvê-la.

Porisso,rezeiapenasparaquenãosaíssemdoquartoparameavisarqueelapartira.Rezeiparaqueaportanãoseabrisse.Fiqueviva.

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CAPÍTULO52•SAM•

Isabel apareceu e me arrastou pelos corredores cheios de atividadematutina até uma escada vazia onde Cole me aguardava. Ele esbanjavauma energia inquieta, asmãos fechadas em punho batendo de leve umacontraaoutra,umasobreaoutra.

—Muitobem,nãopossoprometernada—disseele.—Nãopassadesuposição, mas tenho... Tenho uma teoria. A questão é que, mesmo quefuncione,nãohácomocomprovarseestoucerto,apenasqueestouerrado.— Como eu não disse nada, prosseguiu: — Qual é a maior semelhançaentre Grace e aquele lobo? — Ele aguardou. Supus que esperasse umarespostaminha.

—Ocheiro.

Isabelacrescentou:

—Foioqueeupenseitambém.Emborasejabastanteóbvio,agoraqueColemencionou.

— A transformação— interveio Cole.— Tanto o lobo quanto Gracenão passavam por uma transformação desde... O quê? Uns dez anos oumais? Esse é o tempo que leva para os lobos que pararam de setransformar morrerem, certo? Sei que você disse que esse era o ciclonaturaldevidadeumlobo,masachoquenãoéassim.Achoquetodoloboque morreu sem se transformar morreu como aquele lobo: de algumacoisa.Nãodevelhice.EachoqueéissooqueestámatandoGrace.

—Oloboqueelanuncafoi—falei,melembrandorepentinamentedealgoqueeladisserananoiteanterior.

—Exatamente— concordou Cole.—Acho que elesmorrem porquenão estão mais se transformando. Não acho que a transformação seja amaldição.

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Acho que o que quer que esteja obrigando nossos corpos a setransformaréqueéobandido.

Pisquei.

— Não é a mesma coisa — insistiu Cole. — Uma coisa é atransformaçãoseradoença;outra,totalmentediferente,éatransformaçãosercausadapeladoença.Eessaaminhateoria,que,emtermosdeciência,nem preciso dizer, não passa de bosta. E ciência sem microscópios, semexamesde sangue, semrealidade.Dequalquer forma,Grace foimordida.Quando isso aconteceu, foi injetado o que chamaremos de toxina lupina,por faltadeoutrotermo.Sejaoque for,essecuspede loborealmente fazmal. Digamos que a transformação é o mocinho e que alguma coisa nocuspedesselobodêinícioaumareaçãodefensivaporpartedocorpo,queatransformaçãopurgueatoxina.Todavezqueatransformaçãoacontece,o corpo se livra da toxina. E, por algum motivo, essas transformaçõescoincidemcomoclima.Amenos,éclaro...

—Quevocêparedesetransformar—completouIsabel.

—E.—Cole lançouumolharpara a escadaque levava ao andardeGrace.—Sevocêpor acasodestrói a capacidadedo seu corpodeusarocalor e o frio como agente causador, a primeira impressão é a de que seestácurado,masnãoestá.Vocêestá...cultivandoainfecção.

Além do cansaço, eu não era cientista. Aquela altura, se Cole medissessequeatoxinalupinafaziaagentebotarovo,eeuachariarazoável.

—Muitobem.Parecebom,apesardevago.Qualéaconclusão?Oquevocêestásugerindo?

—Achoqueelaprecisasetransformar—respondeuCole.

Leveitempodemaisparamedarcontadoqueouvira.

—Setransformaremlobo?

—Seeuestivercerto—disseCole,dandodeombros.

—Vocêestácerto?

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—Nãosei.

Fecheiosolhos.Semabri-los,acrescentei:

— E suponho que você tenha uma teoria de como forçar atransformaçãodela.

MeuDeus,Grace.Eunãoacreditavanoquehaviadito.

—Omaissimpleséomaisfácil—falouCole.

Derepente, imagineiosolhoscastanhosdeGracenumacarade lobo.Cruzeiosbraços,tentandomeacalmar.

—Elaprecisasermordidanovamente.

Meusolhosseabriramdeestalo,eencareiCole.

—Mordida.

Colefezumacareta.

—Éumasuposiçãoembasada.Algointerferiunacadeiaquecomandaa transformação, e seodetonadororiginal for repetido, talvezoprocessovolteaoinício.Sóquedestavezelanãovaiassarnocarro.

Tudoemmimprotestavacontraaideia.DeperderGrace,deperderoque a tornava Grace. De atacá-la quando ela estavamorrendo. De tomardecisõescomoaquela,nascoxas,pornãohavertempo.

—Maslevasemanasoumesesparaalguémsetransformardepoisdemordido.

—Achoqueéotemponecessárioparaqueatoxinaseinstale—disseCole. — Mas Grace, obviamente, já a tem. Se eu estiver correto, ela setransformaráimediatamente.

Entrelaceiosbraçosatrásda cabeçaevirei as costasaColee Isabel,encarandoaparededeconcretoazulclara.

—Esevocêestivererrado?

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— Saliva de lobo numa ferida aberta provavelmente vai matá-la dehemorragia nahora, porque aparentemente a toxina está destruindo suacapacidadedecoagulação.

Osdoismedeixaramandarpara láeparacáumbomtempo,eentãoIsabel,numavozgraveemmeioaosilêncio,disse:

—Sevocêestivercerto,Samtambémvaimorrer.

—Vai—con irmouCole,numavoztãofriaqueindicavaqueaquilojálhe passara pela cabeça.— Se eu estiver certo, daqui a uns dez ou dozeanos,acuradeletambémdeixarádesercura.

Davaparaacreditarnumateoriacientíficaelaboradanacantinadeumhospital,emmeioacafésmornoseguardanaposamassados?

Eratudooqueeutinha.

FinalmentemevireieolheiparaIsabel.Comamaquiagemborrada,ocabelo desarrumado e os ombros pendendo sob o peso da incerteza, elapareciaumagarotatotalmentediferentetentandosedisfarçardeIsabel.

—Comovamosentrarnaquelequarto?—indaguei.

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CAPÍTULO53•ISABEL•

Sobrou paramim tirar os pais de Grace do quarto. Os dois odiavamSam,epor issonãopodia serele.Damesma forma,a força ísicadeColeserianecessáriaemoutrolugar,oqueodescartava.Meocorreu,enquantoeuatravessavao corredora caminhodoquartodeGrace,queestávamoscontando com o fracasso da solução de Cole, porque do contrário todosiríamosenfrentarumproblemaço.

Esperei que uma enfermeira saísse do quarto e depois entre- abri aporta. Dei sorte. Só amãe estava sentada ao lado da cama, olhando pelajanela e não para Grace. Tentei não olhar para ela, deitada ali, muda ebranca,acabeçacaídaparaumdoslados.

—Sra.Brisbane—chameinomeutommaiscolegial.

Ela ergueuosolhose reparei, comumacerta satisfaçãoemnomedeGrace,queseusolhosestavamvermelhos.

—Isabel...

— Vim assim que soube. Posso... Posso falar com a senhora umminuto?

Elameencarouduranteuminstanteesódepoispareceusedarcontadoqueeupedira.

—Claro.

Hesiteiàporta.Anda,Isabel.

—Hã...Nãona frentedeGrace, sabe,elavai...—aponteiparaomeuouvido.

—Ah,sim—disseamãedela.—Tudobem.

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Ela provavelmente estava curiosa sobre o que eu tinha a dizer.Honestamente,eutambémestava.Minhasmãossuavamdenervosismo.

EladeuumapalmadinhanapernadeGracee icoudepé.Quandosaiuno corredor, apontei disfarçadamente para Sam, que, como havíamoscombinado, estava de pé a algunsmetros, do outro lado da porta. Assimcomoeu,pareciaprestesavomitar.

—Pertodeletambémnão—sussurrei.

Recordei, de repente, ter dito a Sam que ele não levava jeito paraenganar. Enquanto meu estômago se revirava e eu planejava o queconfessaràmãedeGrace,penseiquecarmaeraalgoterrível.

•COLE•

Assimque Isabel arrancou a sra. Brisbane do quarto— será que sóela estava lá dentro? Só tinha um jeito de descobrir, a inal — chegou aminha vez. Enquanto Sam vigiava para que nenhuma enfermeira melagrasse, entrei sorrateiramente.Oquarto cheiravaa sangue,podridãoemedo, emeu instinto lupinodespertoudentro demim, sussurrandoparaeusairdali.

Ignorei-o e fui direto atéGrace. Ela parecia feita de peças separadasquehaviamsidocolocadasnacamaemontadasemângulosestranhos.Eusabiaquemeutempoeracurto.

Fiquei surpreso quando me ajoelhei ao lado do seu rosto e vi seusolhosabertos,emboraaspálpebrasestivessempesadas.

— Cole — disse ela no timbre longo e grave de uma garotinhasonolenta,alguémquenãoaguentariamuitomaistempoacordada.—CadêoSam?

—Estáaqui—menti.—Nãotentaolhar.

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—Estoumorrendo,nãoé?—murmurouGrace.

—Nãotenhamedo—respondi,masnãoaoqueelahaviadito.Abriasgavetas do carrinho ao lado da cama até encontrar o que procurava: umconjuntodecoisasa iadasebrilhantes.EscolhiumaquemepareceumaislógicaepegueiamãodeGrace.

— O que você está fazendo? — indagou ela, apesar de alheia obastanteparanãoseincomodar.

— Transformando você em lobo — respondi. Ela não piscou, nemmesmodemonstroucuriosidade.Respireifundo,estiqueisuapelee izumminúsculo corte em sua mão. Novamente, ela não se mexeu. A feridasangravademais.—Desculpe,issovaisernojento,masinfelizmentesouoúnicoquepoderealizaratarefa.

Os olhos de Grace se abriram um poucomais enquanto eu enchia aboca de cuspe. Não sabia sequer o volume de saliva necessário parainfectá-lanovamente.Beckhaviareduzidooprocessoaalgoelegantementecientí ico; ele pensava em tudo, até mesmo em uma seringa queconservavanumrefrigerador.

—Acredite,émenosassustadorassim—haviamedito.

Minha boca começou a secar só de pensar em Isabel perdendo ocontrole damãedeGrace.O sangue jorravadominúsculo corte, como seeutivesseabertoumaveia.

Os olhos de Grace iam se fechando, embora eu pudesse ver que elalutavaparamantê-losabertos.Osangueempoçavanochãosobamãodela.Seestivesseerrado,euhaviaacabadodematá-la.

•SAM•

Coleveioatéaporta,tocoumeucotoveloemepuxouparadentro.Emseguida,trancouaportaeempurrouumamesinhacirúrgicadeencontroa

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ela, como se isso fosse capaz de impedir a entrada do quem quer quefosse.

—Esteéomomentodaverdade—disseelenumavozpoucofirme.—Senãofuncionar,elavaiembora,masvocêtemaindauminstantecomela.Sefuncionar...bem,vamosterquetirá-ladaquiàspressas.Queroquevocêseprepareporque...

Passei por ele e minha visão vacilou. Eu já havia visto aquelaquantidade de sangue quando os lobosmatavam uma presa, e o sangueera tanto que coloria de escarlate váriosmetros de neve. E já tinha vistoaquela quantidade do sangue deGrace antes, anos antes, quando eu eraapenas um lobo e ela, apenas umamenina que estavamorrendo. Porém,eunãomepreparararealmenteparavê-lodenovo.

Minhaboca formouapalavraGrace,quenãosoounemmesmocomoumsussurro.Euestavaaseulado,mastambémamilhasdedistância.

Agora ela começava a tremer e a tossir, e suas mãos agarravam asbarrasdacamadohospital.

Dooutroladodoquarto,Colevigiavaaporta.Amaçanetagirava.

—Ajanela—indicouele.

Encarei-o.

—Elanãoestámorrendo—disseColecomosolhosesbugalhados.—Estásetransformando.

Volteiaolharparaagarotanacama,eelameretribuiuoolhar.

—Sam...

Grace estremecia e seus ombros se encolhiam. Não fui capaz deobservá-lasofrendoaagoniadatransformação.Gracevirandolobo.Grace,comoBeck,Ulriketodososlobosantesdela,sumindonafloresta.

Euiaperdê-la.

Colecorreuatéajanelaeabriuoferrolho.

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— Sinto muito, telas — desculpou-se, arrancando-as com o pé. Eucontinueiimóvel.—Sam,vocêquerqueaencontremdessejeito?

Aproximou-seentãodacama,ejuntoslevantamosGrace.

Ouviaportasendoarrombadaegentechamandodooutrolado.

Eraumaquedademaisdeummetroda janeladohospital.Amanhãensolarada de verão parecia absolutamente normal, mas não era. Colesaltouprimeiro,praguejandoaocairsobreosarbustosrasteiros,enquantoeuequilibravaGracenoparapeito.CadavezmenoselaeraGracenosmeusbraços,equandoColeaaparounochão,elavomitounagrama.

— Grace — falei, com a visão vacilante por causa do sangue quemanchavameuspulsos.—Estámeouvindo?

Ela assentiu e depois caiu de joelhos. Ajoelhei-me a seu lado. Seusolhosenormesestampavammedo,emeucoraçãosepartiu.

—Euvouencontrarvocê,prometoqueofarei.Nãomeesqueça.Não...nãoseperca.

Grace estendeu a mão para pegar a minha e se desequilibrou,evitandoporpoucosuaqueda.

Então ela gritou, e a garota que eu conhecia se foi, deixando apenasumlobodeolhoscastanhosemseulugar.

Nãoconseguimepôrdepé.Ajoelhado,perdido,violobocinza-escuroseafastardemimedeColelentamente.Danossacondiçãohumana.Acheiimpossívelrespirar.

Grace.

—Sam—disseCole— ,possomandarvocê comela.Posso forçar asuatransformação.

Por um breve instante, eu vi. Me vi estremecendo novamente evirando lobo,viasminhasprimaveras,mevi temendoascorrentesdear,ouvi o som que eu fazia ao me perder de mim mesmo. Lembrei do

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momentoemquemedeicontadequeseriaomeuúltimoanoequepelorestodavidaestariaaprisionadonumcorpoquenãoeraomeu.

Me lembreide icarnomeiodaruaemfrenteà livrariaTheCrookedBookshelf, plenamente certo de um futuro. Eu ouvira os lobos uivandoatrásdacasaemelembreidecomoerabomserhumano.

Eunãopodia.Graceteriaqueentender.Eunãopodia.

— Cole — pedi. — Saia logo daqui. Não lhes dê mais motivos paraolharparavocê.Porfavor...

Aos poucosme pus de pé, passei pelas portas automáticas de vidro,voltei para a emergência e, coberto de sangue, o sangue da minhanamorada,mentidivinamentepelaprimeiraveznavida.

—Eutenteiimpedi-la.

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CAPÍTULO54•SAM•

Emresumoéisto:euateriaperdidodeumjeitooudeoutro.

Se Cole não a infectasse novamente, eu a teria perdido na cama dohospital.Agoraatoxinalupinadelecorrenasveiasdela,eeuaperdiparaobosque,comocostumoperdertudoqueamo.

Então aqui estou. Sou um garoto vigiado—pelos olhos descon iadosdos pais dela, pois eles não podem provar que raptei Grace, ainda queacreditem nisso — , um garoto vigilante — pois a amargura de TomCulpeper é cada vezmais palpável nesta cidademinúscula, e eunão vouenterrarocorpodeGrace—eumgarotoqueespera—pelocalorepelaabundância do verão, para ver quem virá da loresta em busca demim.Esperopelaminhalindanamoradaestivai.

Emalgumlugardistanteodestinori,poisagorasoueuohumanoeéGrace que vou perder mais e mais, immer wieder, sempre igual, todoinverno,perdendomaisacadaano,atésercapazdeencontrarumacura.Umacuragenuína,destavez,enãoumtruque.

ClaroquenãosetrataapenasdacuradeGrace.Daquiaquinzeanos,seráaminhacuraeacuradeCole,acuradeOlívia.EquantoaBeck?Seráquesuamenteaindadormedentrodaquelecorpodelobo?

Continuo a observá-la como sempre observei, e elame observa comaquelesolhoscastanhosnacaradeum.

Estaéahistóriadeumgarotoqueeraumloboedeumagarotaquesetornouum.

Não permitirei que este seja o meu adeus. Transformei em milpássarosdepapelaslembrançasdenósdoiseformuleiumdesejo.

Vouencontrarumacura.E,então,heideencontrarGrace.