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A psicologia do lixo O homem chegou importante; nas costas um grande saco, que foi botando no chão pra mexer no lixo. Ecologista por destino, separou plásticos, vi- dros, madeiras e papéis. Só lhe interessavam os últimos, apostei. Errado. Após uma examinada rápida em toda e qualquer peça, o homem a colo- cava dentro do grande saco. Inclusive um chapéu de abajur amassado, com uns de- senhos de plantas sobre fundo amarelo- claro. Ia me interessando por seus acha- dos. Me esqueci de contar o que eu fazia ali: esperava o ônibus, num ponto bem próximo de minha casa. Não queria en- frentar a pé a última subida. No ponto de ônibus, umas quatro ou cinco pessoas. Ninguém prestava muita atenção ao catador de lixo, a não ser eu. É uma profissão perigosa. Vidro quebrado, material infectado, substâncias tóxicas, sujeira. Famílias inteiras vivem desse tra- balho, nos grandes depósitos das perife- rias. Ali continua a seleção, reciclagem e aproveitamento do lixo. Continua ou co- meça, já que a maioria não separa o lixo. Quem você conhece que faz isso? Muitas áreas saturadas não comportam mais as toneladas diárias do que sobra nas metró- poles; ocasionalmente, ocorrem desaba- mentos e soterramentos nos depósitos de lixo. O pior de tudo, o mais perigoso, é o cheiro intoxicante do gás metano, que o monturo exala. Quando ele separava jornais e revistas, eu esticava o pescoço para dar uma olha- da: todo este material impresso torna-se, no lixo, inexplicavelmente melhor. No lixo, uma informação como esta – “a separação de Adriane Galisteu” – atinge a condição de imprescindível. Jóia de informação, que corre o risco de sumir num depósito de li- xo, e ninguém nunca mais, em tempo al- gum, se lembrar dela. – O senhor precisa dessa revista?, me pergunta quase apostólico o bom catador. – Preciso, tem uma notícia aí... que eu queria... – Pode levar pro senhor, então. Não me admirou que o magnífico ho- mem conhecesse a psicologia do lixo. Sem me fazer de rogado, aceitei a oferta. Con- trariando uma parcimônia congênita, ain- da lhe perguntei: – E esta outra, será que posso...? Era uma revista de cunho religioso. Não me lembro bem do título: A Voz da Famí- lia, algo assim. Não custava nada dar uma olhadinha nesta também. Além do mais, a capa era atraente, com a foto de um lago esverdeado e um sol – poente? nascente? – ao fundo. Pensando bem, acho que foi es- ta última dúvida que provocou meu inte- resse na revista. Um segundo de distração e nunca mais poderia tentar saber se A Voz da Família está associada a um novo sol – novo dia, novas esperanças – ou ao sol poente – fim do dia, dever cumprido, sere- no sol da consciência cristã. – Pode levar essa também, consentiu o belo homem. Agradeci e acenei para o ônibus, duas revistas debaixo do braço. Ao descer, não quis levá-las comigo. Tendo aplacado mi- nha curiosidade, deixei-as no banco do ônibus. “Você lesou o pobre lixeiro”, as boas consciências acusarão. Não creio. As revistas ainda distrairão alguns, antes de voltarem a seu legítimo dono, o catador de lixo; que se importa menos com o dinheiro do que com a vocação, foi o que pensei, já quase na porta de casa. No fim da rua, um sol de revista se despedia de todos, cristãos ou ateus. CHICO AMARAL SEGUNDA-FEIRA - Alcione Araújo e Fernando Sabino TERÇA-FEIRA - Roberto Drummond QUARTA-FEIRA - Fernando Brant QUINTA-FEIRA - Frei Betto SEXTA-FEIRA - Chico Amaral SÁBADO - Cyro Siqueira DOMINGO - Affonso Romano de Sant’Anna "EU ESTICAVA O PESCOÇO PARA DAR UMA OLHADA: TODO ESTE MATERIAL IMPRESSO TORNA-SE, NO LIXO, INEXPLICAVELMENTE MELHOR" ESTADO DE MINAS - SEXTA-FEIRA, 23 DE NOVEMBRO DE 2001 PÁGINA 12

ESTADO DE MINAS - SEXTA-FEIRA, 23 DE NOVEMBRO DE … · SEGUNDA-FEIRA - Alcione Araújo e Fernando Sabino

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A psicologiado lixo

Ohomem chegou importante;nas costas um grande saco,que foi botando no chão pramexer no lixo. Ecologista pordestino, separou plásticos, vi-dros, madeiras e papéis. Sólhe interessavam os últimos,apostei.

Errado. Após uma examinada rápidaem toda e qualquer peça, o homem a colo-cava dentro do grande saco. Inclusive umchapéu de abajur amassado, com uns de-senhos de plantas sobre fundo amarelo-claro. Ia me interessando por seus acha-dos. Me esqueci de contar o que eu faziaali: esperava o ônibus, num ponto bempróximo de minha casa. Não queria en-frentar a pé a última subida.

No ponto de ônibus, umas quatro oucinco pessoas. Ninguém prestava muitaatenção ao catador de lixo, a não ser eu. Éuma profissão perigosa. Vidro quebrado,material infectado, substâncias tóxicas,sujeira. Famílias inteiras vivem desse tra-balho, nos grandes depósitos das perife-rias. Ali continua a seleção, reciclagem eaproveitamento do lixo. Continua ou co-meça, já que a maioria não separa o lixo.Quem você conhece que faz isso? Muitasáreas saturadas não comportam mais astoneladas diárias do que sobra nas metró-poles; ocasionalmente, ocorrem desaba-mentos e soterramentos nos depósitos delixo. O pior de tudo, o mais perigoso, é ocheiro intoxicante do gás metano, que omonturo exala.

Quando ele separava jornais e revistas,eu esticava o pescoço para dar uma olha-

da: todo este material impresso torna-se,no lixo, inexplicavelmente melhor. No lixo,uma informação como esta – “a separaçãode Adriane Galisteu” – atinge a condição deimprescindível. Jóia de informação, quecorre o risco de sumir num depósito de li-xo, e ninguém nunca mais, em tempo al-gum, se lembrar dela.

– O senhor precisa dessa revista?, mepergunta quase apostólico o bom catador.

– Preciso, tem uma notícia aí... que euqueria...

– Pode levar pro senhor, então. Não me admirou que o magnífico ho-

mem conhecesse a psicologia do lixo. Semme fazer de rogado, aceitei a oferta. Con-trariando uma parcimônia congênita, ain-da lhe perguntei:

– E esta outra, será que posso...? Era uma revista de cunho religioso. Não

me lembro bem do título: A Voz da Famí-lia, algo assim. Não custava nada dar umaolhadinha nesta também. Além do mais, acapa era atraente, com a foto de um lagoesverdeado e um sol – poente? nascente?– ao fundo. Pensando bem, acho que foi es-ta última dúvida que provocou meu inte-resse na revista. Um segundo de distraçãoe nunca mais poderia tentar saber se A Vozda Família está associada a um novo sol –novo dia, novas esperanças – ou ao solpoente – fim do dia, dever cumprido, sere-no sol da consciência cristã.

– Pode levar essa também, consentiu obelo homem.

Agradeci e acenei para o ônibus, duasrevistas debaixo do braço. Ao descer, nãoquis levá-las comigo. Tendo aplacado mi-nha curiosidade, deixei-as no banco doônibus. “Você lesou o pobre lixeiro”, asboas consciências acusarão. Não creio. Asrevistas ainda distrairão alguns, antes devoltarem a seu legítimo dono, o catador delixo; que se importa menos com o dinheirodo que com a vocação, foi o que pensei, jáquase na porta de casa. No fim da rua, umsol de revista se despedia de todos, cristãosou ateus.

C H I C O A M A R A L

● SEGUNDA-FEIRA - Alcione Araújo e Fernando Sabino● TERÇA-FEIRA - Roberto Drummond● QUARTA-FEIRA - Fernando Brant● QUINTA-FEIRA - Frei Betto● SEXTA-FEIRA - Chico Amaral● SÁBADO - Cyro Siqueira● DOMINGO - Affonso Romano de Sant’Anna

"EU ESTICAVA O PESCOÇO PARA DAR UMAOLHADA: TODO ESTE MATERIAL IMPRESSOTORNA-SE, NO LIXO, INEXPLICAVELMENTE MELHOR"

E S T A D O D E M I N A S - S E X T A - F E I R A , 2 3 D E N O V E M B R O D E 2 0 0 1 P Á G I N A 1 2

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