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1 Estátua!, de Gabriela Amaral Almeida – Um Horror Movie do Mundo Real. Por Luciano Freitas* Histeria (do francês hystérie e este, do grego ὑστέρα, "útero"). [...] Segundo a Psicanálise é uma neurose complexa caracterizada pela instabilidade emocional. Os conflitos interiores manifestam-se em sintomas físicos, como por exemplo, paralisia, cegueira, surdez, etc. Pessoas histéricas freqüentemente perdem o autocontrole devido a um pânico extremo. (verbete “Histeria” na Wikipedia) Em O Bebê de Rosemary, a trágica personagem-título (vivida pela jovem Mia Farrow em 1968) traça uma trajetória vertiginosa que vai do pânico ao horror extremo. Rosemary foi vendida, e não por pouco. Pela promessa de sucesso sem barreiras em sua medíocre carreira de ator, seu próprio esposo (o desprezível Guy, interpretado pelo realizador independente John Cassavetes*), alugou seu corpo, sem seu conhecimento nem consentimento, para que através do dom feminino de abrir as portas ao mundo, se dê o nascimento de algo inominável. Desde logo ela perde a autonomia sobre seu corpo, que passará a operar dentro do obscuro projeto de outros. É dopada, abusada, sofre encarceramento e é diagnosticada como mentalmente perturbada. Traída justamente em um momento crucial de sua existência - quando está firmemente decidida a abrir mão de sua individualidade e cristalizar a formação de uma nova família - ela surpreendentemente cederá ao mais improvável dos instintos e levará adiante seu ideal de maternidade. Se a macabra fantasia imaginada por Ira Levin e levada às telas por Roman Polanski se apresenta como sendo algo “real” no espaço fílmico, o que dizer da desconcertante narrativa em formato curta-metragem de Gabriela Amaral, “Estátua!”? quinto de sua carreira como cineasta e que vem percorrendo diversos festivais, a exemplo da VII Janela Internacional de Cinema do Recife, que aconteceu entre 24 de outubro e 04 de novembro de 2014 na capital pernambucana, onde tive

Estátua de Gabriela Amaral, Um Horror Movie do Real

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Resenha crítica do curta "Estátua!" da cineasta baiana Gabriela Almeida.

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    Esttua!, de Gabriela Amaral Almeida Um Horror Movie do

    Mundo Real.

    Por Luciano Freitas*

    Histeria (do francs hystrie e este, do grego , "tero"). [...] Segundo a Psicanlise uma neurose complexa caracterizada pela

    instabilidade emocional. Os conflitos interiores manifestam-se em sintomas fsicos, como por exemplo, paralisia, cegueira, surdez, etc. Pessoas histricas

    freqentemente perdem o autocontrole devido a um pnico extremo. (verbete Histeria na Wikipedia)

    Em O Beb de Rosemary, a trgica personagem-ttulo (vivida pela jovem Mia Farrow em 1968) traa uma trajetria vertiginosa que vai do pnico ao horror extremo. Rosemary foi vendida, e no por pouco. Pela promessa de sucesso sem barreiras em sua medocre carreira de ator, seu prprio esposo (o desprezvel Guy, interpretado pelo realizador independente John Cassavetes*), alugou seu corpo, sem seu conhecimento nem consentimento, para que atravs do dom feminino de abrir as portas ao mundo, se d o nascimento de algo inominvel.

    Desde logo ela perde a autonomia sobre seu corpo, que passar a operar dentro do obscuro projeto de outros. dopada, abusada, sofre encarceramento e diagnosticada como mentalmente perturbada. Trada justamente em um momento crucial de sua existncia - quando est firmemente decidida a abrir mo de sua individualidade e cristalizar a formao de uma nova famlia - ela surpreendentemente ceder ao mais improvvel dos instintos e levar adiante seu ideal de maternidade.

    Se a macabra fantasia imaginada por Ira Levin e levada s telas por Roman Polanski se apresenta como sendo algo real no espao flmico, o que dizer da desconcertante narrativa em formato curta-metragem de Gabriela Amaral, Esttua!? quinto de sua carreira como cineasta e que vem percorrendo diversos festivais, a exemplo da VII Janela Internacional de Cinema do Recife, que aconteceu entre 24 de outubro e 04 de novembro de 2014 na capital pernambucana, onde tive

  • a oportunidade de assistir ao (curiosamente intitulada de com vrios realizadores, inclusive a

    Contrariando umusualmente a catarse coletiva ocorre pelcorpos mutilados, ultra violncia os limites do pornogrficotenso no encontra alvioparalisia. Talvez isto acontea fundamentalmente enraizada no real, nos temores cotidianos que vivencianosso subconsciente primitivo.(via rede social) se considerealizadora de gnero e mais especificamente de terror, ela no demonstra ter respeito do tipo de cinema que faz:

    ...no me considero uma realizadora de gnero, pois acho que o termo restringe tal escopo de histrdizer que o gnero sempre chega no meu processo de escrita por ltimo: vai depender dos personagens enfrentam

    mirim Ceclia Toledo), que entra em cenade uma criana arredia e de poucas

    A figura do homem est apresentando-se no filme apenas como uma rspida conversa

    A realizadora ao

    no posso bailar..., durante roda de debates em

    Recife, out/2014.

    a oportunidade de assistir ao filme, entre diversos outros que participaram da m(curiosamente intitulada de breakdancers) e participar de uma rodada de com vrios realizadores, inclusive a jovem diretora baiana.

    uma maneira convencional de se fazer horror coletiva ocorre pela contemplao de violncia generalizada (na maioria das vezes

    pornogrfico) e, lgico, sangue jorrando por todos os lados alvio, apenas cada vez mais e mais desconforto

    isto acontea por a narrativa estar fundamentalmente enraizada no real, nos temores

    nciamos e compartilhamos em nosso subconsciente primitivo. Quando questionada

    rede social) se considera a si mesma uma realizadora de gnero e mais especificamente de terror, ela no demonstra ter quaisquer dvidas a respeito do tipo de cinema que faz:

    ...no me considero uma realizadora de gnero, pois acho que o termo restringe tal escopo de histrias que quero contar. Prefiro dizer que o gnero sempre chega no meu processo de escrita por ltimo: vai depender dos personagens - e do drama que eles enfrentam - o gnero que vou utilizar para dar vida histria.

    No caso de Esttua!, o dramapartir do primeiro encontro entre a bab e sua cliente, uma madura comissria de bordo, que analisa a gravidez de Isabel (Maeve Jinkings)frieza, pena e cinismo, breve momento imediatamente seguido pelas instrues sobre a roda casa e pela apresentao da menina Joana

    , que entra em cena da forma mais inusitada possveluma criana arredia e de poucas (mas imperativas) palavras.

    A figura do homem est (e continuar) declaradamenno filme apenas como uma rspida conversa telefnica

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    A realizadora ao lado de Lilla Hallah (diretora de Se

    no posso bailar..., durante roda de debates em

    Recife, out/2014.

    filme, entre diversos outros que participaram da mostra e participar de uma rodada de debates

    a maneira convencional de se fazer horror - em que a contemplao de monstruosidades e

    vezes, extrapolando por todos os lados aqui a

    s desconforto, at a total

    ...no me considero uma realizadora de gnero, pois acho que o ias que quero contar. Prefiro

    dizer que o gnero sempre chega no meu processo de escrita por e do drama que eles

    o gnero que vou utilizar para dar vida histria.

    , o drama se desenrola a primeiro encontro entre a bab e sua cliente,

    uma madura comissria de bordo, que analisa a (Maeve Jinkings) com um misto de

    breve momento que instrues sobre a rotina

    e pela apresentao da menina Joana (a atriz-da forma mais inusitada possvel. Trata-se

    ar) declaradamente ausente, telefnica em que ele

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    acusa a bab de se encontrar em m situao apenas por ter decidido levar sua gravidez adiante (o que me faz recordar de Frank Sinatra dispensando Mia Farrow, por correspondncia, contrariado por uma brevssima cena de nudez parcial no filme!).

    A figura materna se d de uma forma no mnimo ambgua: A me da criana, para ser til em seu papel de nica provedora da casa, precisa estar sempre ausente. J a me da bab, sempre atenciosa e prestativa, de uma doura que no ultrapassa o outro lado da linha telefnica e torna-se, portanto, intil. A opresso de que a me da pequena Joana se vale para manter sua filha pr-adolescente sob controle acaba sendo replicada pela postura imperiosa da menina em relao bab, que ela assume imediatamente como forte candidata a substituta permanente de sua prpria me, ao mesmo tempo em que usurpa, em sua fantasia, o lugar da criana que est por nascer.

    O jogo que se estabelece entre as duas nada tem de ldico. Em pouco tempo a bab projetar na criana sob seus cuidados suas frustraes, antecipando a prpria rotina de desamparo que ter de suportar para criar sua prpria filha. Joana ser, ao mesmo tempo, maltratada e temida... Excessivamente temida...

    Esse embate simblico sutilmente velado entre diversas manifestaes do feminino ao longo do filme, vai aos poucos expondo a profundidade do mal-disfarado comportamento histrico da bab. Em seu texto A CLNICA DA HISTERIA FEMININA E AS MULHERES CONTEMPORNEAS, da Professora da Universidade Regional do Cariri (URCA), Graduada em Psicologia e Mestre em Educao Brasileira pela UFC, Francirene de Sousa Paula, resume esta singular condio:

    [...] como neurtica, a histrica padece do desconhecimento fundamental de seu ser, vivendo em busca de verdades que possam lhe restituir o que julga terem lhe retirado, quer saber a verdade verdadeira. Como mulher, ela duvida ora mais, ora menos se realmente uma mulher na medida em que s o que como mulher em comparao com uma outra mulher. (PAULA, 2011, pg. 07)

    Um pouco semelhana do arrepiante filme de Roman Polanski, o prprio apartamento com sua estrutura labirntica de portas e corredores estreitos, tambm

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    *Mea Culpa:

    Na primeira

    edio deste

    texto, grafei

    Cassavetes

    como futuro

    realizador

    negligenciando

    o fato de que

    antes de 1968,

    ele j havia

    produzido e

    lanado trs

    filmes

    independentes,

    o que me

    rendeu um

    merecido

    puxo de

    orelha de um

    de meus

    professores, Rui

    Vasconcelos

    (DCOS/UFS).

    desempenha um papel fundamental na trama. A duplamente angustiante limitao de movimentos provocada pela gravidez avanada e pela arquitetura sutilmente claustrofbica vai se tornando cada vez mais sufocante e insuportvel. Ambiente desconhecido para a bab domnio absoluto da menina, que parece mimetizar-se completamente com a decorao, surgindo de forma fantasmagrica sempre que deseja. Ao mesmo tempo funciona como uma sutil metfora, a maternidade indesejada - ou at mesmo a obrigao contratual de cuidar de uma criana qualquer - como um lugar de onde no se pode sair facilmente.

    O comportamento improvvel da menina e catico da bab contrastam fortemente com o cenrio neutro em que atuam e a fotografia limpa, simulando com perfeio um ambiente naturalmente iluminado. Mais uma recusa em relao ao que geralmente se v nos psichological thrillers que espelham no espao cnico o estado psquico de perturbao de um personagem, utilizando texturas ou paletas de cores expressivas. Afinal de contas, est tudo na cabea da personagem, como se fossem sintomas de seu desespero... Se no final do sc. XIX, o neurologista francs Jean-Michel Charcot j comprovara atravs da hipnose, que idias mrbidas podiam produzir manifestaes fsicas, hoje Gabriela Amaral, entre diversos realizadores do nosso contemporneo, continuam provando que idias mrbidas tambm podem manifestar-se em forma de cinema.

    *Luciano Freitas Servidor Pblico da Educao

    em Sergipe, desde 2009 e Estudante do Curso Com.Soc./Audiovisual-UFS, desde 2013.

    REFERNCIAS:

    Histeria Wikipdia, a enciclopdia livre, disponvel on-line no endereo eletrnico http://pt.wikipedia.org/wiki/Histeria, acessado em 07/11/2014.

    PAULA, Francirene de Sousa: A Clnica da Histeria Feminina e as Mulheres Contemporneas, arquivo em formato PDF, publicado em 23/05/2011 e disponvel on-line no endereo eletrnico http://www.psicanalise.ufc.br/hot-site/pdf/Trabalhos/27.pdf, acessado em 08/11/2014.

    Rosemary's Baby (film) - Wikipedia, the free encyclopedia. Disponvel on-line no endereo eletrnico http://en.wikipedia.org/wiki/Rosemary%27s_Baby_(film), acessado em 07/11/2014.