20
ESTRATÉGIAS ESPACIAIS, RECONVERSÕES IDENTITÁRIAS E NOVAS RURALIDADES EM TERRAS REMANESCENTES DE QUILOMBOS Renata Medeiros Paoliello ABSTRACT: The aim of this paper is an analysis of social processes based upon an ethnographic approach to small land tenants of Ribeira valley, SE of São Paulo state-Br, turned into “quilombolas” by the incidence of constitutional article 68, which ascribes them the condition of remnants. The focus falls on social change derived from this new relation between land and ethnic identity, and how this new institutional mediation falls on current territorial strategies, considering answers shaped by these agents in this new context. These answers, related to familiar or in dividual choices , vary, since staying on land until reinforced dynamics of exit, updating values and practices, according to present social, economic and political relations, which blurs rural/urban boundaries. Introdução A partir de uma etnografia de um conjunto de “bairros rurais”, distribuídos em dois municípios do Vale do Ribeira paulista – Eldorado e Iporanga -, hoje definidos como remanescentes de quilombos 1 , o que se pretende aqui é esboçar uma interpretação dos processos sociais que os vêm re-configurando. E, com isto, levantar algumas questões pertinentes aos estudos sobre o espaço rural brasileiro contemporâneo, especialmente no que toca a um mapeamento de sua diversidade empírica, para sugerir, a partir dela, algumas linhas de comparação em face de outros contextos, que também compartilham, além da condição de remanescentes, a incidência das políticas 1 “Quilombo”, historicamente, é a área de terra ocupada por negros evadidos de sua condição escrava, ou libertos que receberam terra por doação, ou simplesm ente se situaram em terra livre, aba ndonada ou devoluta, e que, ao longo do tempo, reconhecem-se, e são reconhecidos, como ligados de alguma forma a um grupo de parentes descendentes desses escravos. Compondo a expressão “remanescente de quilombo”, é ressemantizada e converte-se em categoria legal atribuível a um grupo, por meio de um trâmite jurídico de reconhecimento, que assegura o direito à terra. Ao longo da estrada que liga Eldorado a Iporanga, margeando o rio Ribeira à direita, localizam-se vários “bairros de pretos”: Sapatu, André Lopes, Nhunguara, e Castelhano. E Ivaporunduva, Pedro Cubas, São Pedro e Pilões na margem esquerda, ao lado de outros, rio acima, já em direção ao alto Ribeira, que configuram particularmente a situação aqui abordada.

Estrategias espaciais Novas ruralidades

Embed Size (px)

Citation preview

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 1/20

ESTRATÉGIAS ESPACIAIS, RECONVERSÕES IDENTITÁRIAS E

NOVAS RURALIDADES EM TERRAS REMANESCENTES DE

QUILOMBOS

Renata Medeiros Paoliello

ABSTRACT: The aim of this paper is an analysis of social processes basedupon an ethnographic approach to small land tenants of Ribeira valley, SE ofSão Paulo state-Br, turned into “quilombolas” by the incidence of constitutionalarticle 68, which ascribes them the condition of remnants. The focus falls onsocial change derived from this new relation between land and ethnic identity,and how this new institutional mediation falls on current territorial strategies,considering answers shaped by these agents in this new context. Theseanswers, related to familiar or individual choices, vary, since staying on landuntil reinforced dynamics of exit, updating values and practices, according topresent social, economic and political relations, which blurs rural/urbanboundaries.

Introdução

A partir de uma etnografia de um conjunto de “bairros rurais”,distribuídos em dois municípios do Vale do Ribeira paulista – Eldorado e

Iporanga -, hoje definidos como remanescentes de quilombos1, o que se

pretende aqui é esboçar uma interpretação dos processos sociais que os vêm

re-configurando. E, com isto, levantar algumas questões pertinentes aos

estudos sobre o espaço rural brasileiro contemporâneo, especialmente no que

toca a um mapeamento de sua diversidade empírica, para sugerir, a partir dela,

algumas linhas de comparação em face de outros contextos, que tambémcompartilham, além da condição de remanescentes, a incidência das políticas

1 “Quilombo”, historicamente, é a área de terra ocupada por negros evadidos de sua condição escrava, oulibertos que receberam terra por doação, ou simplesmente se situaram em terra livre, abandonada oudevoluta, e que, ao longo do tempo, reconhecem-se, e são reconhecidos, como ligados de alguma forma aum grupo de parentes descendentes desses escravos. Compondo a expressão “remanescente dequilombo”, é ressemantizada e converte-se em categoria legal atribuível a um grupo, por meio de umtrâmite jurídico de reconhecimento, que assegura o direito à terra. Ao longo da estrada que liga Eldoradoa Iporanga, margeando o rio Ribeira à direita, localizam-se vários “bairros de pretos”: Sapatu, André

Lopes, Nhunguara, e Castelhano. E Ivaporunduva, Pedro Cubas, São Pedro e Pilões na margem esquerda,ao lado de outros, rio acima, já em direção ao alto Ribeira, que configuram particularmente a situaçãoaqui abordada.

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 2/20

2

conservacionistas, bem como de interesses ligados à captação de recursos

hídricos.

O que se visa, especialmente, é uma reflexão sobre se e como uma

“ruralidade”, no contexto regional em foco, vem se processando e modificando,

e como ali se atualizam identidades. Esta trajetória se desenrola pontuada por

intervenções governamentais visando a regularização fundiária e a reforma

agrária, nos anos 80, pela recorrente possibilidade de construção de quatro

barragens no Ribeira2, e por restrições ambientalistas incidentes sobre as

formas usuais de apropriação e uso da terra e dos recursos naturais na “última

reserva de Mata Atlântica” do estado de São Paulo.

O contexto e as estratégias

O Vale do Ribeira, abrangendo o sudeste de São Paulo e o nordeste do

estado do Paraná, costuma ser apontado como região em crônico atraso

relativamente ao desenvolvimento agro-industrial paulista. Um dos fatores

pelos quais se costuma explicar esse descompasso, entre outros, relativos a

solo e clima, é a indefinição fundiária. Esta indefinição pode ser acompanhada

em um trajeto histórico no qual o Vale, já no século XIX, deixa de integrar-se à

economia cafeeira, sofrendo a drenagem do braço escravo para as regiões do

planalto, e o abandono de terras, dadas de sesmaria e/ou ocupadas por posse.

Este quadro conforma aquilo que alguns entendem como processo de

“caipirização”, ou seja, o refluxo para uma agricultura “de subsistência” ( Muller,

1980 ), itinerante, “de coivara”, ou queimada ( Petrone, 1961, 1966 ). Do ponto

de vista das relações sociais, esta prática se sustenta numa dinâmica

constante de re-apossamentos e de reconstituição de “pequenos’ patrimôniosterritoriais, em face da disponibilidade de terras. E se processa precisamente a

partir do período de vigência da Lei de Terras, de 1850, cujas exigências de

divisão geodésica e de registro de propriedades até então constituídas por

posse, nesta, como em outras regiões do país, não são acessíveis aos

pequenos sitiantes.

2

As barragens projetadas são quatro: Batatal, Funil, Itaoca e Tijuco Alto, envolvendo interesses daCompanhia Brasileira de Alumínio, empresa do Grupo Votorantim, voltados à mineração e à construçãocivil.

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 3/20

3

Emerge daí um perfil de indefinição do que é propriedade particular ou

terra devoluta, e de imprecisão de divisas e de títulos, agravado pelo

dispositivo da primeira Constituição republicana, de 1891, que transfere o

devoluto aos estados, Bem como pelo decreto 19924, de 1931, que veta a

apropriação da terra devoluta por posse, e dá suporte à política de

discriminação de terras, em particular do governo do estado de São Paulo, por

meio de ações discriminatórias, de resto até hoje inconclusas.

A indefinição fundiária, no Vale, vem, assim, sendo alimentada desde os

anos 30, por uma política “patrimonialista” do governo estadual, embora se

tenha tentado promover a regularização ( GEAF/SEAF, 1987 ). Vem se

constituindo, portanto, como terreno fértil para a especulação imobiliária e para

conflitos por posse e domínio. Este é o cenário da intervenção para

regularização e reforma agrária, na segunda metade dos anos 80.

Esta intervenção logo se dilui, substituída pelo preservacionismo, em

face da mudança de prioridades na agenda política. A política ambientalista

atinge, entre outros, os pequenos posseiros e suas formas correntes de

apropriação e cultivo da terra, além de traçar as divisas de parques estaduais

principalmente sobre a terra devoluta, nas quais se localiza boa parte das

áreas de posse, impedindo sua expansão. Esta limitação à disponibilidade de

terra é significativa, mesmo nos casos de recuo das divisas de parques em

função do reconhecimento como remanescentes de quilombos 3.

Agrega-se ao risco implicado na política ambientalista, um outro,

projetado desde os anos 60, retomado e confrontado com ela: o da construção

das barragens, sob a justificativa da promoção do desenvolvimento regional e

da ampliação da oferta de postos de trabalho ( DAEE/BRASCONSULT, 1966;

Queiroz, 1967 ), conformando um quadro de disputas que envolve váriosagentes, movimentos sociais e redefinições de alianças.

Ao problema fundiário, nunca solucionado, sobrepõem-se então a

política ambientalista e os interesses envolvidos nas barragens. Em face desse

quadro, os moradores dos bairros que são o alvo direto dessas incidências –

em particular os sitiantes posseiros do médio e alto Ribeira – encontram no

3

. É o caso dos Parques Estaduais Intervales e Alto Ribeira, que fechou os fundos de bairros comoIvaporunduva, São Pedro e Galvão, à margem esquerda do Ribeira, entre os municípios de Eldorado eIporanga, bem como do Parque Estadual de Jacupiranga, que confina as àreas à margem direita do rio.

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 4/20

4

artigo 68 da Constituição, quando podem invocá-lo a seu favor, a possibilidade

de assegurarem seus patrimônios territoriais, compondo estratégias jurídico-

políticas de reafirmação de um direito à terra.

Este direito é o que uma etnografia permite entender como

historicamente construído, oriundo do apossamento, da abertura da mata ao

cultivo, que constitui a condição de sitiante, a autonomia de “dono”. “Posseiro”,

nesse sentido, é categoria que atualiza, nos contextos mais recentes de

disputa, “dono”, fundada no ato que inaugura o patrimônio, exprimindo no

espaço e no tempo, pelo parentesco e pela herança, o vínculo familiar, não só

referido a conjugalidade e filiação, mas também a uma genealogia bilateral que

pode assegurar direitos em outros sítios e bairros. Esta é a rede que constitui

os bairros e seus conjuntos, conformando as possibilidades de trânsito entre

um e outro. A condição de dono, e de sucessor, que deriva dessa rede, define

antes de tudo um lugar social que ultrapassa o local, uma identidade que se

projeta na vida pública, nas cidades, na cena política. Não por outro motivo,

mais recentemente, a alegação do direito possessório fundado nessas relações

e projetada nos planos jurídico e político, manifesta-se como um valor forte na

orientação de estratégias em situações de conflito ( Paoliello, 1998; 1999 ).

Esses aspectos, que se manifestam nos remanescentes, são

compartilhados com outros, não remanescentes, incluindo, além da condição

possessória, formas organizativas relativas ao parentesco, à sociabilidade,

crenças, vínculos extra-bairro, mobilidade territorial e práticas de cultivo, entre

outras. Embora manifestem uma gama de origens e arranjos distintos, um traço

é comum: o direito de posse é concebido como individualizado na pessoa do

“dono”, que, ou abriu a mata, fundando o direito, ou o recebeu por compra ou

herança. E isto mesmo nas áreas de quilombos, em que a pertença a um grupode parentes pode definir um “exo-esqueleto” territorial que enquadra direitos

específicos de uso e apropriação.

Em face desse ethos , a presença de interesses ligados às barragens,

por um lado, e ao ambientalismo, por outro, surge como ameaça à expectativa,

recorrentemente frustrada, do reconhecimento do direito à terra, vindo do

apossamento, da abertura da mata ao cultivo, que constitui a condição de

sitiante, a autonomia de “dono”, transmissível aos herdeiros.

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 5/20

5

No entanto, um aspecto importante que estes contextos propiciam

destacar é o de que o vínculo com uma parcela fixa de terra não é tão decisivo

quanto em outros contextos rurais, mesmo em face da recente restrição à

disponibilidade de terras na região. Estudos como os de Queiroz ( 1973a;

1973b ) e Candido ( 1979 ) permitem relacionar esse aspecto à mobilidade

histórica de um campesinato autônomo, para o qual ela é um fator decisivo na

incorporação da terra às relações sociais, a princípio como patrimônio. É esta

mobilidade que se atualiza, abrindo possibilidades de trânsitos, retornos e

fundações de novos sítios e bairros, sustentados pelas redes de parentesco

que se projetam no espaço, constituindo conjuntos de bairros, à medida que,

para o recém-aberto, chamam-se os parentes para constituírem vizinhanças.

Estas dinâmicas se conformam, assim, em redes móveis, mais importantes que

a terra, ela própria móvel, sendo o parentesco o instrumento de sua reposição.

As práticas de movimentação, orientadas para a reposição dos

patrimônios territoriais, seja em locais já estabelecidos, seja pela abertura de

novos espaços, favorecem estratégias diversas e recorrentes de atualização da

condição de sitiantes. Inclui-se aí a destinação dos patrimônios a reserva de

valor, para eventualmente serem revertidos em dinheiro, para que se adquira

terra em outro local, mais terra, ou mesmo moradia urbana, quando a escolha é

a de saída, total ou parcial, da terra. Nas situações mais recentes, e

crescentes, de quase ausência de alternativas de produção e de baixa oferta

de trabalho, e de risco de fechamento da terra, procuram-se redefinir

estratégias de acesso a ela, acionando-se uma gama de possibilidades que

essa menor fixação e a mobilidade propiciam: novos apossamentos, compras,

arrendamentos, bem como a reivindicação de um direito como remanescente

de quilombo, podendo-se sugerir que aí opera um habitus aberto à mudança.Esses processos levam a repensar os sentidos atribuídos à terra.

Patrimônio herdável, mas também divisível e negociável, certamente um capital

simbólico, já que é o atributo de “dono”, pode tornar-se reserva de valor. No

limite, sua venda assegura a passagem à vida urbana, quando este é o

caminho escolhido. A terra-patimônio pode ser re-significada sob todas estas

modalidades, em função das quais uma gama variada de arranjos pode ser

acionada. E é aí que o direito a ela pode se converter em demanda de inserçãonos campos jurídico e político.

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 6/20

6

Na situação presente, focalizar as possíveis reconstruções de uma

ruralidade, a partir de tais mecanismos e estratégias, implica em considerar a

variedade de arranjos para fazer face às dificuldades produtivas e ao vínculo

não legalizado com a terra, cuja precariedade é percebida. Em particular diante

das incertezas quanto ao futuro do patrimônio, que conduzem a mudanças de

expectativas e projetos, especialmente no que toca ao destino das novas

gerações. Formulam-se nesta situação, estratégias familiares, em particular as

voltadas ao trabalho não agrícola, e/ou fora do sítio ou bairro, para que se

obtenham ingressos monetários que assegurem a continuidade desses

patrimônios, re-significados, e freqüentemente destinado, hoje, a moradia.

Nesse sentido, devem-se levar em conta tanto os aspectos

compartilhados entre os remanescentes e os não remanescentes - quais

sejam, a condição possessória e as formas organizativas relativas ao

parentesco, à sociabilidade, à mobilidade territorial, aos vínculos extra-bairro e

a práticas político-culturais orientadas por um ethos  cujo núcleo é o

reconhecimento do direito à condição de “dono” de um patrimônio territorial -

como aqueles específicos aos remanescentes. Tendo em vista que uma

identidade quilombola é ali acionada estrategicamente em face da possibilidade

de permanência assegurada por um instrumento legal, cabe refletir a respeito

de como uma ruralidade pode assumir, nesses contextos, inflexões

particulares. Além disso, apresentam alguns diferenciais quanto a suas origens,

seus arranjos, e a situações mais recentes de risco de perda dos patrimônios e

de intervenção estatal. São estes aspectos que se visa sistematizar, levando

em conta a incorporação de uma identidade estratégica e seus trajetos. No

momento reconhecidos como remanescentes de quilombos, ou em vias de o

serem, os moradores dos bairros se articulam ao cenário macro-político,opondo-se às barragens, que atingiriam principalmente suas áreas de cultivo, e

às interdições ambientais, que inviabilizam o uso dos recursos e fecham as

áreas de expansão com as divisas de parques.

Por outro lado, se no presente ganha força a avaliação negativa da

implantação das barragens, porque o risco de perda da terra sem indenização

se sobrepõe ao discurso do desenvolvimento e da oferta de emprego, com

relação ao ambientalismo, uma primeira hostilidade agora parece abrandada:os ecologistas podem ser aliados contra as barragens, e as atividades ligadas

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 7/20

7

ao eco-turismo surgem como possibilidades que não atingem o direito ao

patrimônio. Isto parece dever-se a um momento mais confortável relativamente

ao reconhecimento como remanescente, que reforça a oposição às barragens,

e no limite viabiliza exigir indenização pela terra inundada. Como também,

diante de condições reprodutivas que refletem a crise por que passa o principal

produto comercial da região – a banana -, abre nova perspectiva de atividade

rentável, fundada justamente no direito a um patrimônio que ultrapassa o

estritamente territorial, comportando dimensões culturais que podem funcionar

como capital simbólico no circuito eco-turístico.

Proposta de abordagem

Em face de tais limites e desafios quanto a condições produtivas,

situação fundiária e políticas públicas, a pluriatividade vem se constituindo

como um aporte decisivo, integrando-se a redes de relações que o parentesco

prefigura, mas que o ultrapassam e englobam, levando a reconsiderar as

especificidades do espaço rural, e indagar, do ponto de vista das estratégias

familiares e individuais, e das reformulações identitárias, a respeito de como se

atualiza ali uma ruralidade, envolvendo aspectos não territorializados das

dinâmicas localizadas, diante desse contexto, em que múltiplas experiências,

estratégias e identidades se organizam, e se entrecruzam com uma identidade

político-territorial decisiva para a manutenção da terra. Trata-se de acompanhar

os possíveis desdobramentos dessa experiência, qual é o sentido da terra no

presente, o que significa ser, nessas circunstâncias, remanescente de

quilombo, e quais as expectativas e projetos envolvidos nessa escolha.

Assim, o destaque à tendência à organização familiar pluriativa, comofenômeno marcante no espaço rural contemporâneo ( Schneider: 2003 ),

permite abordar as identidades formuladas pelos agentes sociais enquanto

relacionais e políticas ( Cunha: 1986 ), bem como ficar atento a uma

flexibilidade de suas categorias culturais e de suas práticas, favorável a ajustes

que, mais do que orientados para a reafirmação de um modo de vida particular,

procuram reconstruir um espaço social de existência que demanda inclusão

 jurídica e política, através do reconhecimento de direitos.

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 8/20

8

A pluriatividade, portanto, é o fenômeno privilegiado como ponto de

partida revelador de uma dinâmica de redes cujo núcleo é a família, unidade

que procura agregar terra e trabalho, mas que também se move em relação a

níveis crescentemente ampliados de parentesco e de atividades, culturais,

políticas e econômicas. São estas redes de relações que se considera como

propícias a uma visão sistemática dos processos econômicos, sociais, culturais

e políticos em curso neste espaço rural. Pode-se, assim, deixar de lado a pré-

construção que opõe rural e urbano, e dificulta a apreensão de interações cujo

epicentro é o espaço urbano ( Garcia & Grynzpan: 2002 ). Em busca dessas

redes, a observação recai sobre os indivíduos e seus movimentos

atravessando fronteiras entre espaços, em direção a campos de ação

crescentemente ampliados, para apanhar a organização de seu fluxo (

Vincent:1987 ).

O foco sobre as famílias, assim, não prioriza o aspecto de sua fixação

em uma determinada unidade territorial, pois, para o contexto em questão, a

mobilidade territorial é a tônica. Ela pode ser interpretada como um habitus  

ligado à posse, fundamental para a autonomia, valor relevante do ponto de

vista desses agentes. A mobilidade, como vimos, é o instrumento constitutivo e

reconstitutivo dos patrimônios territoriais, desdobrando no espaço físico as

redes de parentesco. Mas também é suportada por outras redes de atuação,

complementares, que se projetam a partir do âmbito do parentesco, dirigindo-

se a outros níveis de relações sociais, agregando-lhe uma dimensão política,

na medida em que a partir dele se definem direitos, e, portanto, tomadas de

posição frente a outros grupos e interesses, ao mercado e ao Estado. Assim, a

noção analítica de que lanço mão para pensar as relações e processos sob

observação é a de “condição” ( Bourdieu: 1962;1987 ), tal como pode serpensada para o contexto presente destes remanescentes.

Entre os agentes em pauta, esta condição, do ponto de vista histórico,

carrega uma auto-representação como possuidores de um direito à terra,

constituído principalmente porque têm o papel de abri-la ao cultivo . Direito este

a ser reconhecido e legitimado, assegurando-lhes um lugar numa estrutura de

relações, pelo que sua identidade manifesta seu cunho político. Como visto,

esta condição se atualiza, orienta-se por um senso prático ( Bourdieu: 1980 ).O que significa que incorpora novas determinantes e orientações estratégicas

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 9/20

9

diante de mudanças, re-significando práticas e representações. Tal abordagem,

supõe-se, propicia a análise das estratégias do habitus , de seus desajustes e

reajustes em face de condições objetivas que se modificam.

Assim, o que se procura traçar é um perfil em movimento dos sitiantes

posseiros do Vale do Ribeira, em particular daqueles que lançam mão de uma

identidade quilombola, articulada a outras, conformando distintas estratégias de

ingresso na arena política, buscando ativamente a defesa de seus múltiplos

interesses, na medida das possibilidades abertas nas suas redes de relações,

que perpassam agências estatais, incluindo órgãos jurídico-legais, partidos

políticos, organizações religiosas, movimentos sociais, etc. Tais identidades e

estratégias, como vimos, adquirem seus sentidos por referência a expectativas,

projetos e arranjos familiares, orientados por possibilidades e limites variáveis

no que toca à produção, às condições de mercado, à disponibilidade de terra, à

oferta de trabalho, às perspectivas de destinação das novas gerações à vida

urbana. Estas novas gerações, em particular, ao circularem para fora dos

“bairros” para estudar e trabalhar, são significativas nas tomadas de decisão e

na organização dos fluxos familiares, na reorientação de suas práticas visando

atualizar condições de “reprodução” das unidades familiares – que não se

configuram estritamente como “unidades de produção e consumo” –

incorporando valores ”jovens”, veiculados no âmbito de suas relações extra-

locais, bem como pelo influxo das dinâmicas culturais contemporâneas que

lhes chegam através dos meios de comunicação. Assim, suas demandas,

possibilidades e limites, especialmente quanto à escolha da atividade agrícola,

e da permanência na terra, compõem decisivamente a incorporação de novos

valores e práticas que estes contextos vêm acionando.

Considerando esse quadro, e o conjunto de estratégias que ocaracteriza, com o objetivo de problematizar a discussão em torno dos

conceitos aproximando-a do empírico, cabe retomar brevemente o traço

distintivo dessas situações, a tendência a uma organização familiar pluriativa.

De saída, é preciso, para justificar a escolha de um foco voltado à família,

portanto a sua relação com a “unidade de produção e consumo”, que também é

o “sítio”, dentro do “bairro”, o patrimônio fundado ou herdado, ressaltar a

dinâmica presente, marcada pela dificuldade produtiva e de mercado, pelalimitação da terra disponível, e da atividade agrícola, o que em geral vem

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 10/20

10

transformando as unidades em local de moradia. Em suma, à medida que

produção e consumo atravessam um momento crítico, estratégias alternativas

entram em ação, reconformando o que se está reconhecendo como

pluriatividade.

Não se pode esquecer de assinalar aqui o aspecto comunitário dessas

situações de “bairros”, como importantes análises do meio rural brasileiro

destacam ( Candido: 1979; Queiroz: 1973; Woortmann: 1983, 1995). As

práticas territoriais, aqui, como em outras situações no campo brasileiro,

combinam apropriação privada familiar e direitos de uso comum da terra e dos

recursos, que emolduram a apropriação familiar na medida do pertencimento

ao grupo. No entanto, no caso do Vale, percebe-se uma tendência à

individualização dos sítios, que se expandem a partir de um núcleo central,

como patrimônios de famílias conjugais que avançam para o sertão, para o

“comum”, na medida em que a divisão hereditária se inviabiliza na área

originária dos “bairros”, e que os limites da terra disponível são difusos. É este

conjunto de práticas que constitui concretamente a mobilidade, na forma de

uma rede móvel que multiplica os bairros, estabelecendo a complementaridade

bairro/sítio, que viabiliza o apossamento e funda o direito de quem abriu a terra

( Paoliello: 1999 ). No caso dos territórios negros, essa dinâmica opera

igualmente, mas se especifica, em particular hoje, na vigência do artigo 68,

pela referência a uma terra ancestral de um grupo de parentes ( Carvalho:

2006 ), que possibilita fazer frente às pressões sobre as áreas complementares

de extração de recursos naturais e de expansão dos roçados e sítios.

Porém, considerando essa tendência corrente à autonomização e à

individualização do patrimônio familiar, que marca esse contexto de

campesinato livre e posseiro, bem como o momento presente, em quesimultaneamente a terra se restringe, a produção agrícola se enfraquece, e as

alternativas ocupacionais não deixam de se oferecer, embora escassas, o que

se vê é uma rarefação dos laços comunitários. Isto em virtude de uma

avaliação desfavorável dos custos das formas tradicionais de cooperação, da

possibilidade de compra de trabalho eventual e, acima de tudo, da

possibilidade de assalariamento complementar ou pleno, inclusive não agrícola,

e de outras atividades, como o pequeno comércio, serviços, emprego público,etc.

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 11/20

11

Tudo isto conduz a uma reformulação das práticas e orientações

culturais, reforçando estratégias de individualização e de organização interna

às famílias. Mais do que isto, o declínio da atividade agrícola leva a uma re-

significação do patrimônio, que não mais é visto apenas como lugar de trabalho

e de vida. Como já dito, novos sentidos se sobrepõem, e ele se torna também

local de moradia, objeto de valorização econômica, e de um direito que

comporta a possibilidade de reconhecimento legal. A referência aos sentidos

tradicionais, reconstruídos na memória, converte-se então em demanda

política, de participação mais inclusiva, e ponto de articulação da nova

identidade, que sustenta direitos específicos.

Cabe assim entender como a reposição do vínculo entre terra e trabalho,

que essa identidade reivindica, alimenta a recomposição de uma ruralidade

que, ao mesmo tempo, opera segundo estratégias que incorporam a atividade

não agrícola, podendo-se inclusive lançar mão da referência ao patrimônio

como bem de consumo cultural revestido de privilégios jurídicos, para a

permanência na terra, cujo sentido se modifica.

O foco na família e na orientação pluriativa, aí, faz-se relevante para

abordar essa dinâmica, econômica, cultural, política e territorial – e território

aqui agrega todas essas dimensões -, e não pretende assumir uma feição

estritamente econômica na abordagem do vínculo entre terra, trabalho e

família. Como é possível perceber, tal enfoque não é suficiente para o

entendimento dos processos sociais que estes contextos acionam.

Especialmente, trata-se de entender o sentido das práticas pluriativas como

meio de repor um vínculo com o patrimônio, territorial e cultural ( Wanderley:

2001, 35 ), mas agora re-significado.

Resta, contudo, relembrar um aspecto das re-significações dessepatrimônio no contexto dos quilombos, tensas, na medida em que opõem

patrimônios familiares e patrimônio coletivo, em face do dispositivo legal que

impõe a titulação do conjunto territorial em nome das associações de

moradores, e torna a terra inalienável 4. E ressaltar que a observação de

estratégias familiares de organização do fluxo de pessoas, ao longo de redes

4

. De acordo com o artigo 2º da Lei estadual nº 9757/97, o título de legitimação de posse deve serexpedido a cada associação representante da coletividade remanescente, com obrigatória inserção decláusula de inalienabilidade ( grifos meus )

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 12/20

12

que atravessam espaços sociais, é central para que se possa pensar se e

como se recompõe um rural. Bem como a incidência destas reorganizações de

redes e fluxos sobre dinâmicas territoriais que, no caso dos quilombos,

atualizam tensões internas, relativas a direitos especificados e distintos, à

sucessão hereditária ( Carvalho: 2006 ) e à titulação da “terra-território” em

nome de uma associação, e de modo inalienável, além de não se conformar

como título de propriedade. Como hipótese, constitui-se, aí, um mecanismo de

“exclusão” de herdeiros, e de reforço do trânsito de pessoas para atividades

assalariadas e/ou não agrícolas, de reativação de práticas de apossamento, de

migrações, e mesmo de reorientação dos valores familiares e de pertencimento

ao grupo de parentes.

A contribuição pretendida deste enfoque está no destaque que dá à

família , mais do que à comunidade, como estrutura de inserção no contexto

englobante contemporâneo, o que, como já comentado acima, constitui uma

linha de força nas situações de quilombo aqui focalizadas, como a organização

pluriativa e a dinâmica de redes que ela alimenta indicam, apontando para as

formas de mediação que se reconfiguram no presente, e que não passam mais

prioritariamente pelos poderes locais, pelos centros urbanos mais próximos. As

estruturas mediadoras, hoje, estão em um plano mais macro, relacionado à

produção, à ordenação fundiária, ao mercado, à política, aos valores que se

incorporam, etc., como nota Schneider (: 2003 ). Tenha-se em conta o próprio

efeito do dispositivo constitucional, e da presença efetiva das agências estatais

de diversos escalões, bem como de agências não governamentais, incluindo aí

as ambientais, e os movimentos anti-barragens, nas reafirmações locais de um

direito à terra.

São essas mesmas mediações que apontam para uma apreensão dearranjos em movimento. Para as situações em questão, isto se orienta para a

análise de trajetórias de dissolução e/ou de recomposição de um rural. E não

só as mediações sugerem uma abordagem processual, mas também aquela

mesma “lógica familiar”, ou um habitus de mobilidade ao longo de redes – de

parentesco, comerciais, políticas e territoriais – já inscritas numa “tradição” que

se pode considerar aberta à mudança.

Com isto não se quer negar a vigência de um ethos  “camponês” emqualquer momento dessa trajetória, ou fechar os olhos para os momentos

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 13/20

13

dramáticos em que estes contextos sofreram rupturas, mas apenas sugerir que

este ethos  – que afinal não necessariamente exclui, aqui como alhures,

atividades variadas e não agrícolas - agrega uma flexibilidade decisiva para as

atualizações de um “modo de vida”, comportando inclusive riscos à sua

permanência, acoplados às próprias escolhas familiares que procuram afastar

o risco de perda da terra e da condição, e que podem ser considerados como

efeitos da incorporação das mudanças nos “próprios termos” ( Sahlins: 1990 )

desse “modo de vida”. E que esta flexibilidade, portanto, liga-se aos

dinamismos que articulam esses contextos ao contexto mais geral.

São essas dinâmicas que a orientação pluriativa propicia acompanhar,

na medida em que opera, como visto, compondo estratégias de permanência

na terra, reforçando a reivindicação territorial, que se viabiliza pelo

reconhecimento como remanescente de quilombo, e projetando como possível

a recomposição de um rural: pode-se ficar no local, ou reclamar um direito a

ele, na medida da oferta de atividades que tornem viável a vida ali, de acordo

com critérios que não são mais aqueles estritamente inscritos numa “tradição”.

A partir dessas estratégias, fica visível a re-significação do patrimônio territorial,

que condensa hoje, como antes, as dimensões econômica, política e cultural

de uma experiência social, mas que sobrepõe a ela novos sentidos, na medida

em que, envolvidos em um espaço de relações ampliado e em seus processos,

seus agentes incorporam novos valores e práticas, pelos quais orientam suas

escolhas e fazem sua história, redefinindo sua condição.

Ruralidade e novas dinâmicas territoriais

Indagar sobre a reconstrução de uma ruralidade a partir dos contextosde sitiantes posseiros do Ribeira implica situar o tema nesse universo concreto

de significações e de práticas que se orienta, dentro de seus possíveis, para

atualizar um espaço de existência, em particular na condição de remanescente

de quilombo. Se, nesses processos, uma ruralidade pode estar sendo reposta,

isto provavelmente acontece informado por aquele “modelo móvel” de vida

social, de trânsito através de redes de relações, estratégico para esses

agentes, na sua incorporação localizada de transformações econômicas,

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 14/20

14

políticas, culturais e técnicas. Acompanhar mais de perto este movimento

permite sopesar os limites e possibilidades dessas estratégias.

Nunca é demais ressaltar que o mote dessa movimentação é repor

condições de existência, é buscar saídas para as dificuldades reprodutivas, e

para a precariedade do vínculo não legalizado com a terra: há outros canais

que não os estritamente políticos e jurídicos, para organizar a vida e minimizar

o risco de perda do patrimônio, ou a ausência de chance para recontruí-lo: a

busca de atividades complementares para o ingresso de renda monetária que

favoreça a permanência na terra.

Esta está sendo abordada aqui, na medida em que, como dito antes, ela

reforça as situações territorializadas, mas também pode mostrar caminhos de

saída da terra para muitos. Em vários casos, é também reveladora de projetos

de futuro. Olha-se, assim, para as estratégias familiares e individuais pelas

quais a movimentação de pessoas, particularmente mulheres, jovens e não

possuidores de terras, organiza-se nas redes de relações, procurando-se

perceber se e como ali se delineiam projetos, particularmente para as novas

gerações, em função de avaliações quanto às possibilidades presentes, no que

toca a educação, acesso à terra, produção, oferta de trabalho, participação

política, ingresso na esfera pública, etc., e em que medida isto altera as

próprias relações no âmbito privado, familiar.

Isto certamente produz efeitos na dinâmica territorial, inclusive excluindo

herdeiros e repondo a mobilidade em outros locais, num momento crítico da

trajetória desses agentes para os quais esta mobilidade vem sendo central. Em

suma, esses efeitos modificam a sucessão patrimonial, exigindo a definição de

quem sai e quem permanece, e produzindo também outras formas de

mobilidade, de incorporação de outros patrimônios, territoriais ou nãoterritoriais, de capitais simbólicos que redefinem expectativas e projetos,

inclusive quanto à condição de produtores no campo.

Do ponto de vista das estratégias familiares, a partir das quais as

diferentes categorias de agentes delineiam seus trajetos, tudo depende do grau

de incerteza quanto ao futuro do patrimônio, estreitamente ligada à expectativa

quanto ao futuro dos filhos. Em função das dificuldades reprodutivas e da

exigüidade da terra a ser partilhada, o trabalho fora da unidade se delineiacomo alternativa. Um cálculo orienta a ação, procurando-se sempre

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 15/20

15

redimensionar recursos, tanto destinados ao consumo quanto a um projeto de

acumulação, ainda que parca. Este cálculo não se restringe aos recursos

materiais. Capitais simbólicos, como educação, inserção política, etc, são

valorizados. O que se almeja é contornar o fechamento efetivo da terra,

inevitável, mas ainda adiável, quando se consegue utilizar estrategicamente os

patrimônios, para produzir, morar ou negociar, nos mercados de terras, no

“político” e no de bens culturais.

O reconhecimento como remanescente, como já mencionado, altera

algumas dessas dinâmicas. Em particular a negociação de terras, que se torna

problemática em face do reconhecimento como remanescente, dada a

inalienabilidade que este impõe, estimulando então a conversão do patrimônio

em capital cultural e político. Ela até aqui ocorria, envolvendo tensões internas

quanto a direitos diferenciados atribuídos às famílias, e introduziu estranhos,

“fazendeiros”, que se aproveitaram da indefinição de divisas geodésicas para

promover “grilagens”5,. São os casos do Nhunguara ( Paoliello: 1999 ) e do

São Pedro ( Carvalho: 2006 ), por exemplo. O Nhunguara já havia perdido

parte de sua área para o fazendeiro a quem um de seus moradores vendeu

uma parcela 6- além da grande parte que perde para o Parque Estadual de

Jacupiranga. Os bairros à margem esquerda do rio, além da terra perdida para

o fazendeiro, perdem uma significativa extensão para o Intervales e para o

Parque Estadual do Alto Ribeira, embora, no caso destes, as divisas dos

parques tenham sido parcialmente recuadas em face do reconhecimento da

condição quilombola 7. Também se modifica a prática da abertura de novas

roças e sítios, bem como as de extração de recursos naturais, porque a terra-

território é demarcada, além de ficar confinada pelas áreas de parques que a

circundam, e sujeita às normas de preservação ambiental.

5 . A “grilagem” é a prática pela qual alguém com interesses especulativos e/ou de grande exploraçãocomercial, adquire direitos de posse sobre parcela imprecisamente delimitada, e os legaliza judicialmente,revestindo-os do caráter de título dominial sobre uma área extensa, “abraçando” direitos de outrosmoradores. É prática corrente de expropriação de pequenos possuidores e de constituição de propriedadetitulada, no campo brasileiro.6 . A reivindicação dominial deste fazendeiro é contestada pelo estado, que considera sua área pertencenteao parque.7 . O PETAR – Parque Estadual do Alto Ribeira – produz um grande impacto nas áreas rurais do

município de Iporanga, incidindo sobre as condições produtivas e a oferta de trabalho, e gerando umaqueda demográfica acentuada, na medida em que as pessoas têm deixado o município em busca deemprego.

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 16/20

16

Essas duas modificações se juntam ao fato8 de que a titulação da terra

impõe restrições a sua apropriação e a seu uso, e, como visto, remontam-se às

restrições ambientais incidentes não só sobre as práticas extrativas e de cultivo

como às derrubadas para formação de novas roças e sítios. Demarcar a terra-

território, e prescrever a natureza coletiva e inalienável do direito que a recobre,

ao lado da proteção e da estabilidade que introduz, restringe e fixa a extensão

territorial e fecha a possibilidade de expansão. Traz à tona, ainda, tensões

internas quanto aos direitos diferenciados de uso e apropriação familiar frente

ao comum, que é a moldura desses direitos específicos. Esse conjunto de

limitações pode produzir o que já foi apontado acima, um processo de

“exclusão” de alguns, para os quais a terra não será suficiente.

Nesse processo, certamente se formularão práticas compensatórias, de

resto já vigentes, relativas a direitos de herdeiros, tais como ajuda para a

continuidade dos estudos9, ou para aquisição de moradia ou terra em outro

local, conformando mesmo trajetos de re-territorialização10. Mas também se

reforçarão estratégias familiares e individuais, incluindo o abandono da

atividade agrícola e da terra. Por outro lado, também arranjos no sentido de

reforço a uma organização pluriativa, em que alguns permanecerão morando

na unidade familiar, contribuindo com ingressos oriundos de suas variadas

atividades, como também já acontece. Mais importante, o que essa

compensação pode oferecer aos “deserdados” é justamente o capital simbólico

que as redes de relações em que as famílias se inserem significam, em termos

de oportunidades de circulação e de trabalho.

Em síntese, o que esta mudança introduzida por um instrumento legal

pode acarretar é o reforço a esta permeabilidade de fronteiras entre o rural e o

urbano, que as estratégias pluriativas, e a inserção em camposcrescentemente ampliados de atuação política, social e cultural já vêm

trazendo. E isto tanto no âmbito de quem se dirige ao espaço urbano, como no

de quem permanece no espaço rural, e converte seu patrimônio em bem de

consumo cultural, uma das possibilidades que se abrem para esses

8 . ver a nota 4, acima.9 . Nos bairros, há ensino fundamental. Para o ensino médio, os jovens se dirigem a núcleos urbanospróximos, ou às cidades.

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 17/20

17

contextos11, ao incorporarem uma identidade quilombola, e ao valorizarem

seus saberes tradicionais relativos a recursos naturais, conferindo-lhes

sentidos e usos urbanos, ou, melhor dizendo, orientados para dinâmicas

contemporâneas mais gerais, no que toca ao mercado e ao revestimento legal

que abre espaço às diferenças, e que tende a se impor em escala mundial ao

Estado.

Do ponto de vista das estratégias descritas acima, foi possível

reconstruir alguns caminhos pelos quais se atualiza o que está sendo referido

aqui como uma condição “camponesa”; ou, de como se recompõe uma

ruralidade nesse contexto concreto, envolvendo dinâmicas não territorializadas:

a desvinculação, total ou parcial, de membros das famílias relativamente ao

patrimônio, pela limitação das áreas de expansão, pela divisão hereditária, pelo

acesso ao assalariamento e aos serviços, à atividade não agrícola, à educação

e ao emprego urbano, abertos especialmente para as novas gerações, reforça

a incorporação de valores e práticas urbanos, ampliando as referências

culturais. Tudo isto, pode-se perceber, oscila em função das conjunturas do

mercado, e das variações na agenda político-institucional.

No que toca às dinâmicas de reforço à territorialização, as estratégias

ligadas à condição de remanescentes de quilombos são centrais, e encontram

respaldo nas estruturas macro-políticas em que as situações específicas se

inserem. E que, como já dito, definem orientações variáveis quanto ao

reconhecimento e à titulação das terras, mas fixam numa forma legal o

conteúdo do direito titulado, produzindo inflexões restritivas às dinâmicas

territoriais localizadas e exclusões na sucessão territorial. Isto tem um efeito de

retorno e de reforço sobre as dinâmicas de desterritorialização, na medida em

que alimenta trânsitos em direção a campos de ação ampliados para além dolocal e da atividade agrícola, sem, no entanto, eliminar este nível de

experiência. Com efeito, as atividades exercidas nesses campos revertem ao

território e aos patrimônios, na forma de renda e de aportes culturais e

políticos, que fortalecem a permanência na terra,.

10 . Re-territorializações, contudo, provavelmente não escaparão das dinâmicas do “espaço rural”contemporâneo, repondo-se, nos novos locais, os desafios e estratégias que aqui se está buscandodelinear.

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 18/20

18

Em suma, são estes os dinamismos pelos quais os sitiantes

remanescentes de quilombos do vale do Ribeira atualizam as redes sociais

que lhes são vitais na reconstrução de seu espaço de existência. E o fazem

inserindo-se, hoje, em circuitos ampliados, econômicos, políticos e culturais.

Pode-se dizer que estes dinamismos pautam-se pela complementaridade entre

dois conjuntos de estratégias. Um primeiro, alicerçado no reconhecimento legal

da condição de remanescente, pelo que se atribuem uma identidade

quilombola, reafirmando, em um novo contexto, o caráter “tradicional” de seu

“modo de vida”, mas que leva a alterações nas formas até então correntes de

incorporação de terras às relações sociais, de produção e organização do

trabalho e de transmissão sucessória de seus patrimônios territoriais. E outro,

que se implementa a partir dessas mudanças e das “exclusões” de herdeiros

que pode gerar, reforçando uma organização pluriativa, por seu turno com

efeito de retorno sobre a condição quilombola, alimentando, com aportes

econômicos e culturais, as possibilidades de permanência no local e no espaço

rural, mas também reabrindo possibilidades de trânsito para fora dele.

São estas as condições sociais de emergência de novas, e múltiplas,

identidades, das quais uma mesma pessoa pode lançar mão, conforme o

contexto, para seus trânsitos ao longo de relações que ultrapassam o local e

que permitem re-inseri-lo em um universo ampliado.

Conclusões

Olhar para este contexto dos quilombos do Ribeira propicia uma

reaproximação à diversidade de situações no campo brasileiro contemporâneo,

e que compartilham processos de mudanças em que a fronteira entre o rural eo urbano se torna permeável. O que se procurou aqui delinear, a partir de um

concreto, foi uma discussão que favoreça aproximações a outras situações

rurais, ou de “comunidades tradicionais”, que historicamente encontram pontos

de convergência com a aqui descrita, quanto à constituição e funcionamento do

patrimônio, quanto aos contextos ampliados em que se inserem, e quanto à

11

. Em Ivaporunduva, acabou de ser construída uma pousada para receber turistas. Além disto, registra-sea presença de conhecida empresa de cosméticos em alguns bairros, em busca de saberes tradicionais arespeito de espécies nativas.

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 19/20

19

condição de terra de quilombo. Pode-se dizer que todas se marcam por

experiências de transformações sociais em que os agentes se empenham

ativamente, fazendo sua própria história, compartilhada no âmbito político, na

medida em que agregam ao geral, demandas específicas. É nessa senda que

se pode ter uma preocupação comparativa, visando acompanhar novas

possibilidades e limites, particularmente políticos e legais, de atualização de

uma “condição” para a qual a demanda de reconhecimento de direitos

específicos supõe o reconhecimento de um direito maior, de inserção jurídico-

política, de inclusão e cidadania.

BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, Pierre. 1962. “Célibat et Condition Paysanne”. Revue 

d’Études Rurales. Paris, nºs 5 e 6, pp.32-135.

 ________________. 1987. “Condição de Classe e Posição de Classe” in 

A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo. Perspectiva, pp. 3-25.

 ________________. 1980. Le Sens Pratique . Paris. Ed. du Minuit

CARVALHO, M. Celina Pereira de. 2006. Bairros Negros do Vale do 

Ribeira: do “escravo” ao “quilombo” . Campinas. IFCH/UNICAMP, pp. 199, tese

de doutoramento em ciências sociais, antropologia social.

CUNHA, Manuela Carneiro da. 1986. “Etnicidade: da cultura residual

mas irredutível”. In: Antropologia do Brasil . São Paulo. Brasiliense/EDUSP, pp.

97-108.

DAEE/BRASCONSULT. 1966. Plano de Desenvolvimento do Vale do Ribeira e Litoral Sul. São Paulo.

GARCIA Jr., Afânio & GRYNZPAN, Mário. 2002. “Veredas da Questão

Agrária e Enigmas do Grande Sertão”. In: MICELI, Sérgio ( org. ). O que ler na 

ciência social brasileira 1970-2002 . São Paulo/Brasília. ANPOCS/Ed.

Sumaré/CAPES, vol. 4, pp. 311-348.

GEAF/SEAF. 1987. Reflexões sobre o Programa de Regularização do 

Domínio das Terras Devolutas no Vale do Ribeira . São Paulo. Imprensa Oficialdo Estado, fevereiro.

8/2/2019 Estrategias espaciais Novas ruralidades

http://slidepdf.com/reader/full/estrategias-espaciais-novas-ruralidades 20/20

20

MULLER, Geraldo. 1980. “Estado, Estrutura Agrária e População:

Ensaio sobre Estagnação e Incorporação Regional”. Cadernos CEBRAP .

Petrópolis. Vozes/CEBRAP, nº 32.

PAOLIELLO, Renata Medeiros. 1999. As Tramas da Herança: da 

reprodução camponesa às atualizações dos sentidos da transmissão da terra .

São Paulo. FFLCH/USP, pp. 500, tese de doutoramento em antropologia

social.

  __________________________. 1998. “Estratégias Possessórias e

Constituição de Espaços Sociais no Mundo Rural Brasileiro: O Contexto da

Baixada do Ribeira”. In: NIEMAYER, Ana Maria & PIETRAFESA DE GODOI,

Emília ( orgs. ). Além dos Territórios: Para um Diálogo entre a Etnologia 

Indígena, os Estudos Rurais e os Estudos Urbanos. Campinas. Ed. Mercado de

Letras, pp. 201-227.

PETRONE, Pasquale. 1966. “A Baixada do Ribeira: Estudos de

Geografia Humana”. Boletim de Geografia , São Paulo. FFLCH/USP, nº 283.

QUEIROZ, M. Isaura Pereira de ( org. ). 1967. Vale do Ribeira: 

Pesquisas Sociológicas. São Paulo. DAEE/USP. Relatório de Pesquisa.

  ____________________________. 1973. Bairros Rurais Paulistas: 

dinâmica das relações bairro rural-cidade. São Paulo. Livraria Duas Cidades.

SCHNEIDER, Sérgio. 2003. A Pluriatividade na Agricultura Familiar .

Porto Alegre. Ed.UFRGS.

WANDERLEY, M. Nazareth Braudel. 2001. “A Ruralidade no Brasil

Moderno. Por um Pacto Social pelo Desenvolvimento Rural”. In: GIARRACCA,

Norma ( comp. ). Una Nueva Realidad em América Latina?  Buenos

Aires.CLACSO/Asdi.

WOORTMANN, Ellen F. 1983. “O Sítio Camponês”. Anuário Antropológico 81. Rio de Janeiro. UnB/TB, pp. 164-203

  ______________________. 1995.Herdeiros, Parentes e Compadres .

São Paulo/Brasília. Hucitec/EdUnB.