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Universidade Federal do Rio de Janeiro ESTRATÉGIAS DE REFERENCIAÇÃO NA PRODUÇÃO ESCRITA DE ALUNOS SURDOS Christiana Lourenço Leal 2011

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

ESTRATÉGIAS DE REFERENCIAÇÃO NA PRODUÇÃO ESCRITA DE ALUNOS SURDOS

Christiana Lourenço Leal

2011

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ESTRATÉGIAS DE REFERENCIAÇÃO NA PRODUÇÃO ESCRITA DE ALUNOS SURDOS

Christiana Lourenço Leal

Tese de Doutorado em Língua Portuguesa, apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

Orientadora: Profª. Drª. Leonor Werneck dos Santos

Rio de Janeiro

Dezembro de 2011

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ESTRATÉGIAS DE REFERENCIAÇÃO NA PRODUÇÃO ESCRITA DE ALUNOS SURDOS

Christiana Lourenço Leal

Orientadora: Professora Doutora Leonor Werneck dos Santos.

Tese de Doutorado em Língua Portuguesa, apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

Aprovada por: _________________________________________________________________________

Presidente: Profª. Drª. Leonor Werneck dos Santos _________________________________________________________________________

Profª. Drª. Mônica Magalhães Cavalcante _________________________________________________________________________

Profª. Drª. Deize Vieira dos Santos ________________________________________________________________________

Profª. Drª. Regina Souza Gomes _________________________________________________________________________

Profª. Drª. Eliete Figueira Batista da Silveira

_________________________________________________________________________ Profª. Drª. Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu (suplente)

_________________________________________________________________________

Profª. Drª. Maria Aparecida Lino Pauliukonis (suplente)

Rio de Janeiro

Dezembro de 2011

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Leal, Christiana Lourenço. Estratégias de referenciação da produção escrita de alunos surdos / Christiana Lourenço Leal. – Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2011. xii, 114f.: il.; 31 cm. Orientadora: Profª. Drª. Leonor Werneck dos Santos Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, 2011. Referências bibliográficas: f. 123-126 1. Linguística Textual. 2. Referenciação. 3.Língua de Sinais. 4. Produção escrita. I. Santos, Leonor Werneck dos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Pós-graduação em Letras Vernáculas. III. Estratégias de referenciação na produção escrita de alunos surdos.

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À minha avó Neuza, minha referência.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por sempre abençoar meus passos, fazendo-me (re)acreditar diariamente que tudo

sempre vai dar certo.

À minha mãe Ana Maria, à minha avó Neuza e ao meu irmão Marco Aurélio, eternos

incentivadores, pelo apoio incondicional.

À querida professora Leonor Werneck dos Santos, pela orientação cuidadosa e carinhosa.

Obrigada por ter generosamente “abraçado a causa surda”.

Às professoras Regina Souza Gomes e Deize Vieira dos Santos pelas contribuições valiosas na

ocasião do exame de qualificação.

À querida professora Wilma Favorito, pelas inúmeras contribuições ao longo da pesquisa, mesmo

quando só havia dúvidas, e pelo verdadeiro exemplo como educadora de surdos.

Aos meus alunos surdos que, a cada dia, dão-me lições de como ser uma pessoa melhor. Um

agradecimento especial a Jorge Henrique, o “monitor surdo” da pesquisa, e aos queridíssimos

alunos da turma 1321 de 2010.

Às amigas Thaís Mazucanti e Verônica Louro pela ajuda na confecção da versão dos resumos em

inglês e espanhol.

A todos os meus amigos que torceram por mim e comemoram mais uma vitória alcançada.

A Saulo, meu melhor amigo, companheiro de todas as horas e futuro marido.

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O que importa a surdez da orelha quando a mente ouve? A verdadeira surdez, a incurável surdez, é a da mente.

(Ferdinand Berthier, surdo francês, 1845)

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RESUMO

ESTRATÉGIAS DE REFERENCIAÇÃO NA PRODUÇÃO ESCRITA DE ALUNOS SURDOS

Christiana Lourenço Leal

Orientadora: Profª. Drª. Leonor Werneck dos Santos.

Resumo da Tese de Doutorado em Língua Portuguesa, apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

Desde que a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) foi reconhecida como língua oficial da

comunidade linguística surda, alargaram-se as discussões acerca das estratégias de ensino que

devem ser utilizadas na educação de surdos. A pesquisa apresentada nesta tese surgiu a partir da

necessidade de repensar o ensino de Língua Portuguesa, como segunda língua, para surdos. À luz

da Linguística Textual, foram analisadas as estratégias de referenciação utilizadas em 9 textos

escritos em Língua Portuguesa por alunos surdos do 3º ano do Ensino Médio do Instituto

Nacional de Educação de Surdos (INES). Nosso objetivo é confirmar a hipótese de que a

estrutura linguística da LIBRAS exerce substancial influência na organização discursiva dos

textos escritos por esses alunos.

Palavras-chave: referenciação; texto; ensino.

Rio de Janeiro

Dezembro de 2011.

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ABSTRACT

DEAF STUDENTS’ REFERENTIAL STRATEGIES IN WRITING

Christiana Lourenço Leal

Orientadora: Profª. Drª. Leonor Werneck dos Santos.

Abstract da Tese de Doutorado em Língua Portuguesa, apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

 

Since the recognition of the Brazilian Sign Language (LIBRAS - Brazilian acronym) as the

official language of the deaf linguistic community, the teaching strategies that must be used when

educating deaf students have been largely discussed. The research presented in this paper was

born from the need of rethinking the teaching method of Portuguese as a second language for

deaf people.In the light of Textual Linguistic, there have been analysed referential strategies used

in 9 texts written in Portuguese by students from the third year of INES (National Institute of

Deaf Education) Secondary School. Our aim is to confirm the hypothesis about the strong

influence the linguistic structure of LIBRAS would have overthose students’ texts organization.

Key-words: referential; text, teaching method.

Rio de Janeiro

Dezembro de 2011

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RESUMEN

ESTRATEGIAS DE REFERENCIACIÓN EN LA PRODUCCIÓN ESCRITA DE LOS

ALUMNOS SORDOS

Christiana Lourenço Leal

Orientadora: Profª. Drª. Leonor Werneck dos Santos.

Resumen da Tese de Doutorado em Língua Portuguesa, apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).

Desde que la Lengua Brasileña de Señales (Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS) fue

reconocida como lengua oficial de la comunidad sorda, se ampliaron las discusiones acerca de las

estrategias de enseñanza que se deben utilizar en la educación de sordos. La pesquisa presentada

en esta tesis surgió por la necesidad de repensar la enseñanza de Lengua Portuguesa, como

segunda lengua, para sordos. Según los conocimientos de la Lingüística Textual se analizaron las

estrategias de referenciación usadas en 9 textos escritos en Lengua Portuguesa por alumnos

sordos del último año de la Enseñanza Media de Instituto Nacional de Educación de Sordos

(Instituto Nacional de Educacão de Surdos –INES). Nuestro objetivo es confirmar la hipótesis de

que la estructura lingüística de LIBRAS ejerce sustancial influencia en la organización discursiva

de los textos escritos por esos alumnos.

Palabras-clave: referenciación; texto; enseñanza.

Rio de Janeiro

Dezembro de 2011

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SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES ........................................................................................................ 12

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 13

1. A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA LINGUAGEM ................................................................ 18

1.1 Linguagem, texto e construção de sentido ......................................................................... 19

1.2 O processamento estratégico do texto ............................................................................... 24

1.3 Linguística Textual: a construção de sentidos ................................................................... 26

2. ASPECTOS ESPECÍFICOS DA LÍNGUA DE SINAIS ..................................................... 30

2.1 Língua vs linguagem .......................................................................................................... 30

2.2 Aspectos gramaticais da LIBRAS ..................................................................................... 34

3. O PROCESSO DE REFERENCIAÇÃO ............................................................................. 43

3.1 Referenciação e progressão textual: a construção de objetos de discurso ........................ 46

3.2 O processo de referenciação na Língua Brasileira de Sinais ............................................. 56

3.2.1 Uso dos classificadores e da flexão verbal .............................................................. 57

3.2.2 O procedimento discursivo dêitico .......................................................................... 59

3.2.3 Predominância do discurso direto nas estruturas narrativas .................................... 62

4. ANÁLISE DO CORPUS ........................................................................................................ 65

4.1 Relato de pesquisa ............................................................................................................. 65

4.2 Metodologia de análise ...................................................................................................... 68

4.3 Análise dos textos .............................................................................................................. 72

4.3.1 Grupo I: Textos com estratégias de referenciação bem empregadas ....................... 74

4.3.2 Grupo II: Textos com alguns problemas no uso das estratégias de referenciação e na

estruturação sintática das frases ........................................................................................ 80

4.3.3 Grupo III: Textos seriamente comprometidos quanto à organização .................... 100

4.4 Comentários gerais sobre a análise .................................................................................. 107

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................. 119

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................... 122

                

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LISTAS DE ILUSTRAÇÕES

Quadros

Quadro 1: Processos referenciais atrelados à menção ............................................................ 52

Tabelas

Tabela 1: Anáforas diretas referentes ao objeto de discurso Paulo ..................................... 108

Tabela 2: Anáforas diretas referentes ao objeto de discurso “mãe” ................................... 109

Tabela 3: Anáforas diretas referentes ao objeto de discurso “médico” .............................. 110

Tabela 4: Referências aos objetos de discurso no texto original e nos textos 5, 6 e 7 ......... 112

Tabela 5: Retomada por repetição do objeto de discurso “médico” nos textos do corpus. 115

Gráficos

Gráfico 1: Anáforas diretas referentes ao objeto de discurso “Paulo” ............................... 113

Gráfico 2: Anáforas diretas referentes ao objeto de discurso “mãe” .................................. 115

Gráfico 3: Anáforas diretas referentes ao objeto de discurso “médico” ............................. 116

 

 

 

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INTRODUÇÃO

Desde que a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) foi reconhecida como língua oficial de

uma comunidade linguística e, portanto, passou a ser vista legalmente como a primeira língua dos

surdos, alargaram-se as discussões a respeito das estratégias adequadas para o ensino da Língua

Portuguesa para o educando surdo. Apesar de ser, ainda, um universo pouco pesquisado, a escrita

de alunos surdos, há muito, merece um olhar diferenciado por parte dos professores de Língua

Portuguesa.

Fato é que ensinar a Língua Portuguesa para os surdos não é o mesmo que ensiná-la para

ouvintes nativos, basicamente por dois motivos:

I) enquanto o Português é a L1 de um ouvinte brasileiro, para um surdo é a L2, visto que sua

primeira língua é a LIBRAS;

II) há substanciais diferenças de processamento da informação entre surdos e ouvintes.

Além disso, é preciso ter em vista que, para o surdo, a Língua Portuguesa não é apenas

uma língua a ser aprendida opcionalmente, mas o meio pelo qual, lendo e escrevendo, ele

interage com os falantes nativos e se inclui em seu país. As estratégias didáticas precisam,

portanto, ser diferenciadas, levando em consideração todas as diferenças de aprendizagem

existentes entre surdos e ouvintes, bem como o fato de a LIBRAS ser a língua de instrução do

surdo.

Desde 2007, trabalhamos no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), com

turmas de Ensino Fundamental e Médio formadas apenas por alunos surdos, que têm assegurada,

ao menos por direito, a língua de sinais como primeira língua e língua de instrução. Nesses cinco

anos, pudemos identificar uma espécie de “perfil textual” do aluno surdo. Pudemos reconhecer,

em um texto, características que nos permitem atribuir sua autoria a um indivíduo surdo, tendo

em vista nossa experiência em sala de aula e questões específicas que aparecem, recorrentemente,

nos textos escritos por eles. Não é incomum que, em textos narrativos, por exemplo, o surdo

preocupe-se em descrever cada cena, detalhadamente, exatamente como em um filme, o que se

explica pelo fato de a LIBRAS ser uma língua visuoespacial. Assim, o surdo acaba transferindo

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algumas propriedades de sua primeira língua (a língua de sinais) para o texto escrito em Língua

Portuguesa.

Um exemplo pode elucidar o que queremos afirmar. Imaginemos uma cena, de um filme,

em que se reproduza uma conversa entre um casal, sentado à mesa de um restaurante. No filme,

poderemos identificar elementos como o cenário, a presença de garçons, a mesa posta, outras

pessoas fazendo suas refeições, além, é claro, do que consideramos o foco principal: a conversa

entre o casal. A mesma cena, reproduzida em LIBRAS, procurará incluir todos os elementos

“percebidos” no cenário, de modo que tudo o que foi visto na cena seja reportado para o texto em

LIBRAS. Se, no entanto, reproduzirmos a mesma cena em Língua Portuguesa, poderemos excluir

alguns elementos, apenas citando que a conversa se passa em um restaurante. O leitor pode

concluir que há outros elementos na cena, mesmo que estes não apareçam explicitamente no

cotexto.

Sendo assim, o texto escrito em Língua Portuguesa pelo surdo, por conta da influência da

língua de sinais sobre o pensamento linguístico desse indivíduo, deve conter elementos que não

necessariamente apareceriam em um texto escrito em Português por um ouvinte. Naturalmente, o

texto narrativo escrito pelo surdo acaba sendo mais longo e contendo mais detalhes, que são

reflexo de sua percepção visual extremamente aguçada. Para os surdos, o cotexto deve reproduzir

o maior número de elementos contextuais – uma das características do texto escrito por eles, sem

contar a dificuldade na organização das frases em Português, língua que segue regras bastante

distintas das regras da LIBRAS. O texto escrito em Língua Portuguesa pelo indivíduo surdo é,

portanto, constantemente influenciado por sua primeira língua, a LIBRAS.

A partir dessas constatações e de nossa inquietação diante da leitura dos textos produzidos

em Língua Portuguesa por alunos surdos, desenvolvemos esta pesquisa, visando a investigar

alguns problemas específicos evidenciados nessas produções escritas. Os 9 textos analisados

foram produzidos, no ano de 2010, por alunos nossos da 3a série do Ensino Médio, do INES.

Todos esses nove alunos são surdos, fazem uso da língua de sinais como primeira língua e

apresentam, em sua maioria, dificuldades comuns na organização discursiva do texto em

Português. A produção dos textos escritos por eles, que constituem o nosso corpus, ocorreu

durante nossas aulas, funcionando da seguinte forma:

Filmamos um aluno de outra turma, considerado um monitor surdo pelo seu excelente

conhecimento da Língua Portuguesa, reproduzindo, em LIBRAS, um conto de Carlos

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Drummond de Andrade (“A incapacidade de ser verdadeiro”1) e adaptando-o, devido às

especificidades da língua de sinais;

Em seguida, o vídeo2 foi exibido, em sala de aula, para os alunos da turma 1321/2010 e

eles tiveram um tempo para discutir entre si o conteúdo da narrativa a que assistiram;

Os 9 alunos da turma foram orientados, então, a produzirem um texto escrito em Língua

Portuguesa, que recontasse a narrativa a que tinham acabado de assistir.

A partir daí, iniciamos a análise dos 9 textos produzidos pelos alunos surdos, que formam

nosso corpus. Há inúmeros aspectos a serem observados na organização dos textos escritos em

Língua Portuguesa por estes alunos. Pretendemos tratar, aqui, de alguns aspectos centrais na

questão da organização textual, focando nossa análise nas estratégias de referenciação utilizadas.

Encontramos basicamente dois problemas a serem examinados em nossa pesquisa:

1. Que dificuldades aparecem nos textos dos alunos surdos, com relação às estratégias de

referenciação?

2. Haveria influência da estrutura textual de LIBRAS na organização dos textos em português

quanto à referenciação?

Nossa hipótese é que as estratégias de referenciação da LIBRAS influenciam o indivíduo

surdo, que tem a língua de sinais como primeira língua, na produção do texto em Português. Essa

influência seria, a nosso ver, a responsável por problemas na estruturação de frases sintaticamente

aceitáveis em Língua Portuguesa, sobretudo no que se refere a elementos dêiticos e anafóricos.

Assim, a partir da análise desses textos, nosso objetivo principal é identificar de que

maneira a organização do texto em LIBRAS e suas particularidades influenciam na produção de

textos escritos em Português pelos surdos. Além disso, esperamos que nosso trabalho amplie o

olhar dos pesquisadores a respeito de um campo pouco pesquisado até então: a escrita dos

indivíduos surdos. Consequentemente, portanto, esperamos contribuir de alguma forma para um

ensino de Português como segunda língua para surdos que leve em conta a estrutura própria da

LIBRAS e as possíveis comparações desta com a organização discursiva do Português.

                                                            1 O conto em questão será analisado no capítulo 4. 2 O vídeo pode ser acessado através do link: http://www.youtube.com/watch?v=QAVXEnMTBlU

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No primeiro capítulo do trabalho que ora se apresenta, discutiremos algumas questões

teóricas centrais que balizarão a pesquisa e têm relação direta com as análises feitas sobre a

aprendizagem da Língua Portuguesa (em contraponto com a língua de sinais) por indivíduos

surdos. São concepções de língua, sujeito, texto, contexto e sentido que evoluíram junto com as

pesquisas sobre o processo de comunicação e que, hoje, influenciam diretamente nos estudos

mais recentes feitos em Linguística Textual a partir da perspectiva sociocognitivo-interacional.

Esse capítulo funciona, em nossa pesquisa, como base teórica para as questões que relacionam

língua e sociedade, diretamente associadas à especificidade linguística da comunidade surda.

No capítulo 2, nossa proposta é discutir uma questão bastante recorrente: a comunicação

dos surdos desenvolve-se por meio de uma língua ou de uma linguagem de sinais? Nossa

abordagem tratará da diferença entre língua e linguagem e dos principais aspectos que fazem com

que a língua de sinais seja considerada uma Língua efetivamente. Neste capítulo, ainda que com

breves comentários, uma vez que nossa intenção não é fazer uma descrição minuciosa da

LIBRAS, trataremos de questões centrais da construção do texto em LIBRAS e do processo de

cognição do indivíduo surdo. Nesse ponto, faremos, ainda, uma breve descrição da estrutura

gramatical e da organização textual da língua de sinais.

Em seguida, dedicamos o terceiro capítulo ao fenômeno da referenciação, abordando as

principais concepções teóricas sobre o assunto, somadas à sua importância em relação aos

estudos em Linguística Textual. Além disso, trataremos especificamente da progressão

referencial de textos e da construção dos chamados objetos de discurso. Por fim, destinaremos

algumas páginas à referenciação em língua de sinais, sobretudo em relação à maneira como se

constroem os discursos (direto e indireto) nas narrativas em LIBRAS.

No capítulo 4, antes de partirmos para a análise dos textos produzidos pelos alunos

surdos, faremos um “relato de pesquisa”, que acreditamos ser essencial para o entendimento da

constituição de nosso corpus e das direções metodológicas que tomamos. Em seguida,

analisaremos cada um dos 9 textos do corpus, em relação à organização discursiva, à sequência

narrativa e aos mecanismos de referenciação utilizados pelos alunos surdos informantes. Por fim,

concluiremos nossa análise comparando, em algumas tabelas e gráficos, os dados recolhidos na

pesquisa, de modo a perceber quais são as estratégias de referenciação mais prototipicamente

utilizadas pelos alunos surdos que produziram os 9 textos de nosso corpus.

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Ao final de nosso trabalho, pretendemos deixar claro que deve ser criada uma

metodologia de ensino do Português para os surdos, com base nas distinções e/ou nas influências

existentes entre a LIBRAS e a Língua Portuguesa. Esperamos que nossa pesquisa possa

contribuir para o ensino de surdos, especialmente auxiliando o professor de Língua Portuguesa

que, a nosso ver, precisa reconhecer as particularidades do texto escrito por esse aluno e, mais

ainda, as especificidades da LIBRAS.

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1. A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA LINGUAGEM

 

Existe uma crença de que o mundo em que vivemos já se acha organizado e pronto para

receber rótulos. No entanto, não é dessa forma que a linguagem funciona:

a linguagem não é uma simples ferramenta ou instrumento, tampouco o espelho de um mundo de objetos e fenômenos que preexistem à consciência humana. O conteúdo de nossos textos não é um “retrato fiel” de nossas experiências de mundo, simplesmente porque o que nossos textos significam resulta de uma filtragem e modelação dessas experiências por meio de categorias da língua em que são construídos. A transformação de nossas experiências de mundo em matéria textual envolve, necessariamente, fatores socioculturais e linguistico-textuais que são propriedade coletiva. (...) Portanto, o que “vale” para a interação por meio da palavra não é o que “está na minha cabeça”, mas o que meu interlocutor compreende graças aos sinais que eu produzo (AZEREDO, 2007: 8).

Ao tratar a atividade linguística e a construção do texto como “propriedade coletiva”,

Azeredo destaca que a atividade linguística não deve ser entendida como uma ação individual,

uma vez que, para compreender um texto, é necessário identificar os interlocutores envolvidos no

ato comunicativo e de que maneira os papéis que tais interlocutores desempenham influenciam a

elaboração textual.

Tanto ao produzir um texto quanto ao interpretá-lo, é necessário ter em mente essa

propriedade coletiva dos textos sob pena de reduzir a atividade textual a uma produção

individual. Se assim o fosse, a compreensão dos textos seria extremamente difícil e haveria

inúmeros problemas entre aquilo que se quis dizer e o que se compreendeu (mais do que os que já

existem).

Assim, usar a linguagem não é uma atividade tão natural quanto comer ou respirar. Ao

produzir linguagem, o indivíduo segue uma outra ordem de estímulos relacionados ao universo

social, pois essa atividade cognitiva não faz parte apenas dos fenômenos biológicos, mas também

dos fenômenos culturais. Por isso, é preciso compreender determinados conceitos, como os de

língua, texto e discurso, levando em consideração as relações que há entre eles na construção dos

sentidos.

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1.1 Linguagem, texto e construção de sentido

A língua é a manifestação humana da comunicação por meio de símbolos. Quando uma

língua se coloca em atividade em uma determinada situação comunicativa, ela passa a constituir o

que se chama de discurso. Os objetos que constituem os discursos e por meio dos quais eles se

desenvolvem chamam-se textos, nos quais as informações circulam pelos indivíduos na

sociedade.

Entretanto, não se pode pensar em tais conceitos de maneira “estanque”, pois todos fazem

parte da construção social da linguagem. Para Marcuschi (2008: 58), a distinção entre texto e

discurso é cada vez mais complexa, inclusive porque, mais modernamente, tais conceitos são

vistos até como intercambiáveis:

A tendência é ver o texto no plano das formas linguísticas e de sua organização, ao passo que o discurso seria o plano do funcionamento enunciativo, o plano da enunciação e efeitos de sentido na sua circulação sociointerativa e discursiva envolvendo outros aspectos. Texto e discurso não distinguem fala e escrita como querem alguns nem distinguem de maneira dicotômica duas abordagens. São muito mais duas maneiras complementares de enfocar a produção linguística em funcionamento.

O texto é considerado, muitas vezes, a materialização linguística do discurso. De toda

forma, os possíveis sentidos de um texto estarão sempre condicionados à situação de

comunicação e aos interlocutores do ato comunicativo, uma vez que a língua deve ser

compreendida como “uma atividade sócio-histórica, uma atividade cognitiva e uma atividade

sociointerativa” (Id.: 60).

Com essa abordagem atual dos estudos linguísticos, é possível deslocar o interesse que se

dava prioritariamente à forma linguística para o funcionamento dessa língua em diferentes

contextos e, consequentemente, para a análise linguística de textos e/ou discursos, ou seja, da

língua em uso. Para Marcuschi (Id.: 67), “a função mais importante da língua não é a

informacional e sim a de inserir os indivíduos em contextos sócio-históricos e permitir que se

entendam”.

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Segundo Koch e Elias (2009: 204-205), o uso da língua socialmente instituído é um dos

responsáveis, inclusive, pela coerência de um texto, cuja construção “demanda conhecimento

constituído em certas culturas e épocas quanto a formas de comportamento”.

Quando chamamos um conjunto de palavras e frases de texto, não levamos em conta

apenas sua base material, representada pelas construções gramaticais. Os textos são, na verdade,

objetos linguísticos investidos de função social no amplo e complexo jogo das interações

humanas. Sendo assim, os textos são partes essenciais da história das sociedades, são maneiras

de, por meio da língua, transformar o mundo real em um mundo representado.

Vê-se, então, que a função do texto é materializar o mundo que cerca os interlocutores

envolvidos em determinado discurso. O texto, mais que uma maneira de reproduzir o mundo

linguisticamente, é lugar de interação – afinal, cada texto é a manifestação do mundo dos

interlocutores, incluindo seus objetivos, suas crenças, seus conhecimentos de mundo:

Assim chegamos às relações ditas contextuais. Essas relações se estabelecem entre o texto e sua situacionalidade ou inserção cultural, social, histórica e cognitiva (o que envolve os conhecimentos individuais e coletivos). Não se pode produzir nem entender um texto considerando apenas a linguagem. O nicho significativo do texto (e da própria língua) é a cultura, a história, a sociedade (MARCUSCHI, 2008: 87-88).

Importa ressaltar, neste ponto, que as concepções de língua e de sujeito se

complementam. No início das pesquisas sobre o texto, a língua era vista como a representação do

pensamento de um sujeito psicológico, individual, dono de suas vontades e ações. No entanto,

mais recentemente se revelou que este sujeito não está sozinho no mundo, pois é um indivíduo

historicamente situado: o sujeito é, portanto, um ser social, interativo, que se constrói nas

relações com outros sujeitos e com o mundo. Então, a língua não pode ser analisada como

produção individual, mas social.

Koch (2006b: 14) alerta que a antiga concepção de sujeito “assujeitado” pelo sistema não

se adequa mais à noção de língua como “lugar de interação”. A essa nova concepção,

corresponde um sujeito que (re)produz o social à medida que participa ativamente da definição da

situação na qual se envolve. Assim, ao mesmo tempo em que o sujeito age sobre o mundo, sendo

“ator” no ato de comunicação, é influenciado pelo social, pelo mundo que o cerca, o que inclui

seu(s) interlocutor(es): “Tudo passa pelo sujeito” (KOCH, 2006b: p.16).

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Para Beaugrande (1997), um texto é um evento comunicativo em que se articulam

aspectos linguísticos, sociais e cognitivos. De modo geral, todos os textos articulam-se nesses três

níveis. Assim sendo, contribuem para a compreensão de um texto os mecanismos textuais (como,

por exemplo, algumas estruturas linguísticas e alguns recursos de coesão e coerência), os

implícitos, a intertextualidade, o conjunto de saberes, crenças, desejos dos indivíduos envolvidos

no ato de comunicação. Um texto não é apenas um objeto verbal concreto.

Dessa forma, o ato de linguagem não se resume apenas a estruturas linguísticas, mas

também não deve ser considerado como simples fruto de determinismos externos. É preciso

entender a linguagem como “forma de ação”. Marcuschi (2008: 22) considera que é preciso

mostrar que “todo uso e funcionamento significativo da linguagem se dá em textos e discursos

produzidos e recebidos em situações enunciativas ligadas a domínios discursivos da vida

cotidiana”.

Não existe, portanto, um uso significativo da língua fora das inter-relações pessoais e

sociais. Dessa forma, pode-se dizer, também, que o leitor colocará em ação todos os componentes

do conhecimento e as estratégias cognitivas de que dispõe para ser capaz de construir os sentidos

do texto, como um co-autor:

O sentido de um texto é, portanto, construído na interação texto-sujeitos (ou texto-co-enunciadores) e não algo que preexista a essa interação. Também a coerência deixa de ser vista como mera propriedade ou qualidade do texto, passando a dizer respeito ao modo como os elementos presentes na superfície textual, aliados a todos os elementos do contexto sociocognitivo mobilizados na interlocução, vêm a constituir, em virtude de uma construção de interlocutores, uma configuração veiculadora de sentidos (KOCH, 2006b: 17).

O processamento textual, esteja ele relacionado à produção ou à interpretação, depende,

assim, da interação entre os interlocutores, pois produtor e interpretador são estrategistas: “ao

jogarem o jogo da linguagem, mobilizam uma série de estratégias – de ordem sociocognitiva,

interacional, textual – com vistas à produção do sentido”, e todos esses mecanismos de

construção de sentidos dizem respeito à relação que há entre texto e contexto, “o entorno que

exerce influência sobre as unidades linguísticas” (KOCH, 2006b: 19 e 27).

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Se relembrarmos a fase inicial das pesquisas sobre o texto, veremos que contexto era

sinônimo do que se chama hoje de cotexto: o entorno verbal dos textos, em cujo âmbito há o

estudo sobre a combinação de frases, o uso de conectivos etc. Com a influência da pragmática

nos estudos textuais, aos poucos, começou-se a levar em conta que, para que duas pessoas

consigam se compreender, é preciso não só reconhecer as estratégias explícitas pelo cotexto, mas

também é necessário que o contexto sociocognitivo de ambas seja, ao menos, semelhante. Para

isso, seus conhecimentos devem ser partilhados.

Na tentativa de mapear o funcionamento do processamento textual, alguns estudiosos, como

Koch (2006a), Koch e Elias (2009) e Cavalcante (2011), selecionaram três níveis de

conhecimento necessários para o processamento do texto:

Conhecimento linguístico - compreende os conhecimentos gramatical e lexical. É o

conhecimento implícito que os falantes têm da estrutura gramatical: uso dos meios

coesivos, seleção lexical adequada, etc;

Conhecimento enciclopédico ou de mundo - constituído por “modelos cognitivos”

socioculturalmente determinados e adquiridos pela experiência;

Conhecimento sociointeracional - conhecimento sobre as ações verbais, sobre as formas

de inter-ação através da linguagem.

Koch e Elias (2006), dividem, ainda, o conhecimento sociointeracional em:

conhecimento ilocucional (que nos permite reconhecer os objetivos ou propósitos pretendidos

pelo produtor do texto em uma dada situação), conhecimento comunicacional (que diz respeito à

quantidade de informação necessária para que o interlocutor reconheça o sentido do texto e à

variante linguística e ao gênero textual adequados à situação comunicativa), conhecimento

metacomunicativo (que permite ao produtor assegurar a interpretação de seu texto pelo seu

receptor por meio de apoios textuais) e conhecimento textual (que permite distinguir os

exemplares de cada gênero textual).

Essas estratégias sociocognitivas são, portanto, as responsáveis por acionar

simultaneamente os vários conhecimentos que temos armazenados na memória. Assim, na leitura

de um texto, fazemos, por exemplo, pequenos cortes a partir dos quais elaboramos hipóteses de

interpretação.

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Como o contexto engloba todos os tipos de conhecimento arquivados na memória dos

indivíduos, a mobilização desses conhecimentos por ocasião do processamento textual realiza-se

por estratégias cognitivas, sociointeracionais e textuais – são as chamadas pistas de

contextualização (cf. GUMPERZ, 1998).

O processamento textual é, portanto, estratégico. E as estratégias usadas nesse

processamento podem ser divididas em cognitivas, sociointeracionais e textuais, ou seja, esse

processamento depende não só de características textuais, mas também das características dos

usuários da língua (seus objetivos, convicções, conhecimentos de mundo...). Isso significa que

“as estratégias cognitivas são estratégias de uso do conhecimento. Pode-se dizer que as

estratégias cognitivas, em sentido restrito, são aquelas que consistem na execução de algum

‘cálculo mental’ por parte dos interlocutores” (KOCH, 2006c: 26).

Todas essas noções de língua, linguagem, discurso e texto, englobando a questão do

processamento textual, só vêm confirmar que a língua é, de fato, uma produção social. A partir

disso, podemos concluir que o acesso à informação e o conhecimento de mundo são alguns dos

fatores que, de certa forma, determinam a produção linguística das pessoas.

Por isso, é importante lembrarmos aqui que o conhecimento de mundo que chega a nós

por via oral/auditiva e a quantidade de ideologia que o acompanha são fatores decisivos para o

abismo existente entre surdos e ouvintes quando se trata de diferenças linguísticas. Pior que isso:

dificilmente tal fato é levado em conta nas salas de aula de alunos surdos, em que o professor

deveria considerar que o mecanismo como o mundo se apresenta para o sujeito surdo é bastante

peculiar. O conhecimento de mundo por via visual não é, definitivamente, o mesmo

conhecimento que se adquire ouvindo e falando a língua portuguesa (uma língua oral-auditiva).

Toda essa necessidade de conhecimento de mundo e de relações interpessoais decorre de

não se construírem significados fora de um contexto específico de comunicação. Conferir

significado a um fato, um objeto, um gesto, uma frase equivale a reconhecer seu lugar em algum

contexto, com todos os ingredientes desse contexto: cenário, ocasião, personagens. Por tudo isso,

não se pode ignorar o papel social desempenhado pela língua, a partir do qual podemos

identificar algumas estratégias comunicativas de conhecimento dos usuários que ajudam a

construir os significados na interação. Qualquer evento necessariamente se baseia em algum

modelo comportamental, ou esquema, que define papéis sociais, torna previsíveis certos atos e

legitima um certo modo de expressão.

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1.2 O processamento estratégico do texto

A principal preocupação das pesquisas na área de Cognição tem sido desvendar como

funciona a cognição humana no que diz respeito aos seus aspectos estruturais e processuais.

(...) um princípio básico da Ciência Cognitiva é que o homem representa mentalmente o mundo que o cerca de uma maneira específica e que, nessas estruturas da mente, se desenrolam determinados processos de tratamento, que possibilitam atividades cognitivas bastante complexas. Isto porque o conhecimento não consiste apenas em uma coleção estática de conteúdos de experiência, mas também em habilidades para operar sobre tais conteúdos e utilizá-los na interação social (KOCH, 2006b: 37).

Para que o sujeito possa traduzir os sentidos presentes em um texto, ele recorre aos

conteúdos de experiência que vão sendo (re)ativados em sua memória, que opera da seguinte

forma: primeiramente as informações perceptivas são estocadas na forma de representações

mentais para, em um segundo momento, serem reativadas. Assim, a construção de conhecimento

é consequência de um conjunto de estruturas estabilizadas na memória de longo prazo, utilizadas

para o reconhecimento, a compreensão de situações (e de textos) e a interação social.

Por tudo isso, reiteramos, o processamento textual é estratégico: quando se lê ou ouve um

texto, constrói-se, a partir dele, uma representação mental (VAN DIJK, 1992: 16). Somado a isso,

constrói-se um modelo episódico ou de situação que é o assunto do texto. Para compreender um

texto, portanto, é preciso ativar na memória nossos modelos de situações similares, ou seja, o

registro cognitivo de nossas experiências:

(...) se os usuários forem capazes de construir ou recuperar na memória um modelo satisfatório, eles dirão que entenderam o texto e que o texto é coerente. Compreensão e coerência são, dessa forma, subjetivas e variáveis (KOCH, 2006b: 46).

Além disso, ao produzir um texto, o locutor vale-se de estratégias linguísticas que, num

nível explícito, são representadas por unidades linguísticas de significação e comportamento

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morfossintático específico. Tais unidades linguísticas não são escolhidas aleatoriamente, nem

levam em consideração aspectos meramente sintáticos.

O locutor, como produtor do discurso, recorre a mecanismos linguísticos de

convencimento e/ou aproximação com o interlocutor. Logo, é importante que a leitura e a

interpretação dos diversos textos sejam sempre baseadas nesses mecanismos, para que a

comunicação efetivamente se estabeleça. A interpretação nada mais é que “a captação, por meio

do interlocutor, das intenções do produtor do discurso”, o que pode levar a diferentes

interpretações para um mesmo texto (KOCH, 2006a: 23-24).

O processamento estratégico, porém, não depende só de características textuais, mas

também das características pessoais dos usuários da língua. Quando locutor e interlocutor não

compartilham das mesmas estratégias, a comunicação fica comprometida, correndo o risco de

não se efetivar ou de haver algum mal entendido, já que o interlocutor não é capaz de reconhecer

os passos dados pelo locutor na direção da sua argumentação. Dessa forma, fica clara a

interdependência entre linguagem e compreensão, isto é, a escolha de itens gramaticais, bem

como sua significação, estão intimamente ligadas à direção significativa que o locutor pretende

dar a seu texto.

Em se tratando de escolhas, não se pode ignorar, também, que elas podem ser

premeditadas ou não. Porém, nunca serão totalmente inconscientes, pois um texto nunca é

totalmente original ou neutro: a intenção do locutor está sempre comandando escolhas

linguísticas. A respeito disso, Koch (2006a: 17) afirma que a todo e qualquer discurso subjaz uma

ideologia; dessa forma, ainda segundo a autora, “a neutralidade é apenas um mito: o discurso que

se pretende ‘neutro’, ingênuo, contém também uma ideologia – a da sua própria objetividade”. A

aceitação desse postulado faz com que, mesmo em textos narrativos ou descritivos, bem como

nos dissertativos que não se dizem argumentativos, haja argumentação, mesmo que o locutor não

tenha intenção direta e explícita de produzi-la.

Seguindo o raciocínio, já que um discurso é constituído pelas duas partes envolvidas

diretamente nele (locutor e interlocutor), a interpretação é um processo ativo sobre o qual o

interlocutor, juntamente com seu conhecimento de mundo, tem influência direta. Então, o

interlocutor também usa estratégias ao decodificar a mensagem do texto.

O discurso, portanto, se manifesta por meio de textos. Isso faz concluir que a língua vale-

se de diversos textos, direta ou indiretamente, atuais ou já “ditos”. Por isso mesmo, não se deve

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imaginar que a interpretação é um ato situacional, apenas. Um discurso não pode ser entendido

somente pelo momento da enunciação, mas também por todos os outros discursos anteriores que,

de certa forma, fazem parte daquele primeiro. Portanto, o discurso é muito mais uma atitude

memorialista do que situacional. Toda essa memória discursiva faz com que os interlocutores

possam identificar diferentes textos, levando em conta sua função discursiva.

1.3 Linguística Textual: a construção de sentidos

Todas as abordagens sobre língua, linguagem, texto e discurso feitas neste capítulo

comprovam uma mudança significativa nos estudos linguísticos. Hoje não se imagina um estudo

de texto dissociado das questões discursivas maiores envolvidas na produção e na compreensão

do texto, uma vez que a atividade linguística é uma atividade social. Essa perspectiva

sociointeracional e cognitiva vem norteando os estudos em Linguística Textual atualmente.

Desde a década de 60, quando foram iniciadas as pesquisas em Linguística Textual,

vieram à tona questões que as análises meramente estruturalistas não conseguiram responder. Na

Europa de 1960, mais especificamente na Alemanha, muitos estudiosos investigavam uma

abordagem mais pragmática para o texto, como Hartman, Weinrich, Isemberg, Schmidt. Koch

(2006c: 14) salienta que, nesse momento, a pesquisa em Linguística Textual ganhava uma nova

dimensão: “já não se trata de pesquisar a língua como sistema autônomo, mas sim o seu

funcionamento nos processos comunicativos de uma sociedade concreta”.

Ainda que, neste primeiro momento, os estudos privilegiassem somente questões de

coesão e coerência, já era dado um grande passo em direção ao que se conhece hoje como

Linguística do Texto: o estudo dos mecanismos intra e extratextuais que permitem dar sentido ao

que lemos no mundo. Nessa época, a divisão de tais mecanismos era feita da seguinte forma

(KOCH, 2006c: 22): princípios centrados no texto (coesão e coerência textuais) e princípios

centrados no usuário (situacionalidade, informatividade, inferências, intertextualidade).

Foi ainda na primeira fase que surgiu a necessidade de criar oficialmente uma Gramática

de Texto, que ficaria responsável por delimitar textos e identificar suas diferentes espécies, além

de determinar os princípios de construção de um texto e os fatores responsáveis por sua

coerência. Hoje, a preocupação com a criação de uma gramática de texto não se revela mais tão

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pertinente, pois o objetivo central da Linguística Textual é o texto como processo, como

“atividade sociocognitivo-interacional de construção de sentidos” (KOCH, 2008: 12).

Também nessa época iniciaram-se os estudos a respeito dos mecanismos interfrásticos

que permitiam que duas ou mais sentenças pudessem ter o status de texto. O texto, então, era

visto como uma “sucessão de unidades linguísticas constituída mediante uma concatenação

pronominal ininterrupta” (KOCH, 2006c:4). Dessa forma, as análises eram feitas, sobretudo, em

relação a conectores, pronomes, seleção de artigos, ou seja, itens linguísticos capazes de

promover relações e encadeamento entre diferentes frases para formar um texto.

A orientação dada às pesquisas tomava, então, um cunho sintático-semântico: as relações

entre as partes do que se considerava um texto eram observadas em relação ao sentido que essas

partes adquiriam no uso. Sendo assim, o significado de um texto estaria diretamente relacionado

às relações entre a forma textual e o mundo, e não simplesmente pelo significado das frases

tomadas isoladamente.

Após alguns anos de crescentes estudos, a Linguística Textual entrou em sua 2a fase,

conhecida por muitos como a “virada pragmática”. Nessa nova fase, as análises de texto

passaram a seguir uma nova orientação: as pesquisas começavam a se centrar no comportamento

social e em suas funções comunicativas. Foi nessa época (a partir da 2a metade da década de 70)

que passou a ser desenvolvido um modelo de análise em que a língua era compreendida como

“uma forma específica de comunicação social, da atividade verbal humana, interconectada com

outras atividades (não linguísticas) do ser humano” (KOCH, 2006c: 14).

Um texto passava a ser visto como todo componente verbalmente enunciado de um ato de

comunicação pertinente a um jogo de atuação comunicativa. Seguindo esse raciocínio, a

coerência de um texto não se deve a fatores internos, mas a questões que perpassam as relações

entre os participantes de um ato comunicativo em si e entre eles e o mundo que os cerca. Os

falantes da língua têm capacidades diante do texto que caracterizam sua competência textual e

justificam a construção de um estudo sobre o texto. Além disso, há questões linguísticas que só

são esclarecidas por uma análise do contexto situacional de comunicação. Portanto, a

interpretação de um texto não ocorre apenas pela significação das palavras e das frases que o

constituem, mas também por crenças, desejos e valores dos interlocutores.

Sendo assim, a coerência depende muito mais de nosso conhecimento prévio sobre as

situações comunicativas do que de fatores internos ao texto. Por exemplo, um texto

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aparentemente sem coerência interna como “Sandra está grávida. Vão ser gêmeos”, possui uma

lógica externa (uma lógica discursiva): gêmeos serão os bebês por que Sandra espera. Assim,

mesmo que as palavras “bebês” ou “filhos” não apareçam explicitamente no texto, é

perfeitamente possível deduzi-las pelo conhecimento de mundo que temos como usuários da

língua. Toda a construção da coerência de um texto passa, portanto, por dois diferentes

conhecimentos: o conhecimento declarativo, dado pelas sentenças e suas proposições que

organizam os conhecimentos a respeito dos fatos do mundo real; e o conhecimento

procedimental, dado por fatos e convicções, culturalmente determinado (FÁVERO, 2002:61).

Essa noção de que os fatores externos influenciam diretamente a compreensão dos textos

foi decisiva para que a Linguística Textual entrasse em sua terceira e atual fase, influenciada

diretamente pela Psicologia da Linguagem. A Linguística Textual passava, nesse momento, a

desenvolver alguns modelos de descrição textual capazes de dar conta dos processos cognitivos

que permitem integração dos diversos sistemas de conhecimento dos parceiros da comunicação,

na descrição e na descoberta de procedimentos para sua atualização e tratamento no quadro das

motivações e estratégias da produção e compreensão dos textos.

A partir da década de 80, então, os estudos do texto tomaram uma nova orientação: a

chamada 3a fase da Linguística Textual. O texto passou a ser considerado o resultado da ativação

de processos mentais, já que toda interação através de textos é necessariamente acompanhada de

processos de ordem cognitiva (KOCH, 2008:16). A coerência textual, por exemplo, não pode

mais ser analisada sem levar em conta os interlocutores do ato comunicativo e, por isso, está

longe de ser centrada apenas no texto. Não necessariamente a ausência de elementos coesivos

implica ausência de coerência, visto que esta última se constrói por meio de processos cognitivos

operantes na mente dos usuários. A coerência é, na verdade, a confluência de todos os fatores e

quem a determina são os conhecimentos prévios dos interlocutores.

Hoje, portanto, a perspectiva que se adota nas análises feitas por parte da Linguística

Textual é sociocognitivo-interacionista, ou seja, incorpora aspectos sociais, culturais e

interacionais à compreensão do processamento cognitivo de textos. Tal perspectiva verifica não

só os processamentos cognitivos do indivíduo, mas também aqueles que acontecem na sociedade

e que, de alguma forma, influenciam o processamento linguístico individual. Muito da cognição

acontece fora da mente e não somente dentro, afinal a cognição é um fenômeno situado (KOCH,

2006c: 31).

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Assim, o contexto acaba se construindo na própria interação, pois o texto é o lugar da

interação e as pessoas que participam de sua constituição também são constituídas por ele. Os

interlocutores de um ato comunicativo vão (re)construindo seus saberes e (re)ativando seus

conhecimentos à medida que a comunicação evolui e o texto se forma. Portanto, a concepção

seguida, atualmente, pela Linguística Textual é a de que os eventos linguísticos não são, de forma

alguma, a reunião de fatos isolados e independentes. A construção textual é uma atividade que se

faz com os outros. Dessa forma, as atuais abordagens sociointeracionistas consideram a

linguagem uma ação compartilhada.

Sendo assim, as línguas existem propriamente na interação, carregadas das influências que

os sujeitos participantes do ato comunicativo possam exercer sobre elas. Por isso, os

conhecimentos compartilhados pelos sujeitos são tão importantes para que a comunicação se

estabeleça.

Com as línguas de sinais não ocorre diferente. No próximo capítulo, abordaremos alguns

aspectos linguísticos da LIBRAS, não só com a intenção de comprovar que se trata de uma

Língua efetivamente, mas também para confirmar que, como ocorre com as línguas orais-

auditivas, as línguas de sinais pressupõem determinados conhecimentos compartilhados pelos

usuários (surdos ou ouvintes) e se efetivam na interação.

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2. ASPECTOS ESPECÍFICOS DAS LÍNGUAS DE SINAIS

2.1 Língua vs linguagem

Desde o início dos estudos linguísticos, a distinção entre os conceitos de “língua” e

“linguagem” mostrou-se relevante, sobretudo no que se refere à definição do objeto de estudo da

linguística. Usamos, em geral, a palavra “linguagem” de modo genérico, para nos referirmos a

diferentes manifestações comunicativas: linguagem corporal, musical, mímica, entre outras.

Entretanto, é preciso que fique clara a diferença entre “língua” e “linguagem”, sobretudo em

relação às manifestações humanas por meios visuoespaciais, como as línguas de sinais.

Para o termo inglês “language”, há duas possíveis traduções em português: linguagem e

língua. A primeira delas, como já dissemos, é mais abrangente e refere-se a qualquer mecanismo

de comunicação, humano ou não, gramaticalmente estruturado ou não. Já a definição de “língua”

é mais complexa: um sistema de símbolos — orais-auditivos ou visuoespaciais — por meio do

qual os indivíduos de uma sociedade interagem (QUADROS e KARNNOP, 2004:24-25).

Além disso, há uma série de propriedades que distinguem uma língua de outras

manifestações de linguagem. Por exemplo, as línguas naturais apresentam uma flexibilidade e

uma versatilidade próprias que nenhum outro sistema de comunicação possui. Além disso, a

língua pode ser usada para dar vazão a emoções e sentimentos, para ameaçar ou prometer, para

dar ordens, para fazer referência ao passado, ao presente e ao futuro.

Durante muito tempo, acreditou-se que as línguas de sinais, principal mecanismo de

comunicação entre os indivíduos surdos de todo o mundo, não constituíam línguas, mas sim

linguagens. Entendia-se que a língua de sinais seria uma espécie de mistura entre mímica e

gesticulação concreta, incapaz de expressar conceitos abstratos. Desde a década de 90, porém,

estudos não só linguísticos, mas também filosóficos e psicológicos demonstraram que reduzir as

línguas de sinais a mera mímica diante das coisas do mundo é não só equivocado como

preconceituoso (cf. BRITO, 1995).

É possível afirmar, seguindo os ensinamentos de Saussure (2000:81), que uma das

propriedades que fazem com que uma manifestação linguística deva ser considerada “língua” é a

arbitrariedade na relação entre forma e significado de seus constituintes. O problema das línguas

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de sinais é que, durante muito tempo, acreditou-se que a relação entre os sinais usados e os

objetos do mundo (coisas, ações, sentimentos...) representados por eles não era arbitrária.

Entretanto, ao estudar a estrutura complexa das línguas de sinais, observamos que a

arbitrariedade entre significante e significado é um dos seus princípios constitutivos, o que

permite que seus usuários façam uso de mais uma das propriedades das línguas: a criatividade.

Segundo esta propriedade, os falantes nativos de uma língua têm liberdade de construir um

número infinito de enunciados, desde que obedeçam às regras da estrutura gramatical daquele

sistema. Assim também acontece com os indivíduos surdos, usuários da língua de sinais.

Um outro critério que pode ser usado para confirmar que as línguas de sinais são línguas

naturais e devem ser estudadas como tal é o fato de que tanto elas quanto as línguas orais-

auditivas possuem um padrão para a organização dos seus elementos constitutivos. Na Língua

Portuguesa, por exemplo, há fonemas que não se podem combinar ou palavras que necessitam

aparecer em determinada ordem na frase, por exemplo, porque há regras internas que permitem

determinadas combinações de elementos e impedem outras. As Línguas de Sinais também

possuem uma gramática com suas regras próprias de constituição:

O uso da expressão “Línguas de Sinais”, no plural, faz sentido já que se refere a estruturas linguísticas utilizadas por surdos na expressão e elaboração do pensamento e na comunicação. São línguas naturais e, como tal, apresentam especificidades próprias devidas a restrições de ordem estrutural e a fatores sócio-culturais. (...) Outro ponto a ser considerado é a “completicidade” dessas línguas gestuais-visuais. São tão completas quanto qualquer língua oral, pois apresentam todos os níveis linguísticos (“fonológico”, sintático e semântico) e permitem a tradução de qualquer assunto ou conceito nelas. Expressam sentimentos, estados psicológicos, conceitos concretos e abstratos e processos de raciocínio (BRITO, 1993: 33-34).

Por tudo isso, é impossível desconsiderar que as línguas de sinais constituam

verdadeiramente línguas, reduzindo-as a mera linguagem de sinais. Para Saussure (2000:18), a

língua é uma convenção, e a natureza do signo convencional é indiferente. Um sistema que

utilize, como signos linguísticos, gestos e imagens visuais em vez de palavras e imagens

acústicas não é menos complexo nem tampouco deve ser excluído do conceito de língua, como se

fez, durante muito tempo, com as línguas de sinais pelo mundo.

Em relação mais especificamente à cognição, durante muito tempo, acreditou-se que a

atividade de usar as línguas de sinais seria controlada pelo hemisfério direito do cérebro, o

mesmo responsável por funções visuoespaciais. Por outro lado, o hemisfério esquerdo é o

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responsável pelo controle da estrutura linguística, dos mecanismos de produção de uma língua, de

acordo com regras gramaticais. Dessa forma, creditava-se às línguas de sinais um caráter muito

mais de mímica ou gestualização do que de língua.

Mais recentemente, alguns estudos sobre a organização neural da linguagem confirmam

que as línguas de sinais apresentam estruturas gramaticais próprias e organização neural

semelhante à das línguas orais. Dentre eles, pode-se citar o de Emmorey, Bellugi e Klima (1993)

que desenvolvem uma pesquisa sobre a lateralidade do cérebro, comprovando que, como

acontece com línguas orais, os aspectos gramaticais das línguas de sinais são lateralizados para o

hemisfério esquerdo, especializado em questões gramaticais, independentemente da modalidade

de linguagem. Isso comprova a propriedade linguística das línguas de sinais.

Se as línguas de sinais são organizadas no cérebro da mesma forma que as línguas orais,

então, do ponto de vista biológico, as línguas de sinais são línguas naturais. Portanto, seu

aprendizado engloba um período que se pode considerar ideal: a infância. Assim sendo, o acesso

à língua deve ser permitido ao sujeito surdo, desde cedo, a fim de que o desenvolvimento de suas

estruturas cerebrais não fique comprometido (cf. RODRIGUES, 1993 12-15).

Entretanto, o que se observa é que, por questões culturais, econômicas e sociais, algumas

famílias não permitem o acesso do sujeito surdo às línguas de sinais. Tais famílias ora impõem o

conhecimento da língua oral-auditiva de seu país (a Língua Portuguesa, no caso do Brasil), ora

negam quaisquer possibilidades de comunicação desse sujeito com o mundo, permitindo apenas

uma espécie de “dialeto familiar”, impossível de funcionar como língua no mundo exterior às

suas casas.

Um dos exemplos de que o acesso à língua de sinais é primordial para o sujeito surdo é

dado por Rodrigues (1993:16): “a maior habilidade para discriminar e seguir estímulos, no caso o

movimento das mãos, na periferia do campo visual é uma grande vantagem para o surdo, que não

é aproveitada caso ele não use língua de sinais”.

A partir do momento em que se constatou que as línguas de sinais são efetivamente

Línguas, reconheceu-se, no surdo, não um deficiente, mas um membro de uma comunidade

linguística específica: a dos usuários de Línguas de Sinais. Essa é uma questão que extrapola os

limites da discussão linguística, tendo tomado um rumo político, de defesa de uma identidade.

No Brasil, a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) é a língua através da qual se pode

acessar o educando surdo e, a partir disso, criar mecanismos para que ele aprenda como se

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constrói a organização textual-discursiva do Português. Assim, as estratégias de ensino de

Português para surdos passam a exigir um conhecimento da estrutura da LIBRAS, em todas as

suas dimensões, por parte do educador (cf. FREIRE, 1999).

Há duas filosofias educacionais para surdos (BRITO, 1993:27):

Oralismo: busca a integração social do surdo por meio de uma aproximação deste

indivíduo ao modelo ouvinte. Neste caso, a língua é vista mais como um objetivo a ser

atingido do que como um meio de comunicação e aprendizado.

Bilinguismo: busca o desenvolvimento pleno do indivíduo surdo, reconhecendo-o na sua

diferença e especificidade. Assim, o aprendizado da língua oral (no caso do Brasil, a

Língua Portuguesa) em sua modalidade escrita é importante do ponto de vista da inserção

do surdo na sociedade, mas a língua de instrução dos sujeitos surdos, que deve ser usada

pelos professores para acessá-los, é a língua de sinais (no caso do Brasil, a LIBRAS).

Além disso, de acordo com essa filosofia, a língua funciona, também, como importante

suporte do pensamento e como uma estimuladora do desenvolvimento cognitivo e social

do indivíduo surdo.

Hoje, as políticas públicas de educação de surdos pregam o bilinguismo como modelo

ideal. Entretanto, vê-se, ainda, um uso deturpado deste modelo de educação. Não é possível, por

exemplo, aceitar que seja considerado bilinguismo o ensino simultâneo, em uma mesma sala de

aula, para surdos e ouvintes, pois as estratégias de ensino-aprendizagem utilizadas, através das

línguas de sinais, para indivíduos surdos não são as mesmas utilizadas com os ouvintes:

...as línguas são o resultado de uma estruturação inconsciente do mundo por parte de uma comunidade e, (...) portanto, representam uma “visão de mundo” particular dessa comunidade, não haveria possibilidade de uso simultâneo de duas línguas, mesmo que ambas façam uso de meios ou modalidades diferentes. O bimodalismo (uso concomitante de uma língua oral e de uma língua de sinais) é impraticável se se quer preservar a estrutura das duas línguas. (BRITO, 1993: 31).

Acreditamos, portanto, que, para um ensino bilíngue satisfatório, seria necessário que os

surdos pudessem refletir sobre sua própria língua, através de estratégias metalinguísticas, de

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compreensão da gramática e do uso das línguas de sinais. Infelizmente, no Brasil, ainda estamos

longe de um modelo ideal na educação de surdos, que prevê, inclusive, maior capacitação dos

professores no que se refere ao uso da LIBRAS como meio de acesso ao educando surdo e como

base para a metodologia de ensino que se desenvolve.

No caso específico do ensino da Língua Portuguesa, é necessário que se faça uma

comparação constante com a estrutura da LIBRAS, o que não é possível se nem o professor nem

o aluno surdo refletem satisfatoriamente sobre a língua de sinais, incluindo seus aspectos

gramaticais. A Língua Portuguesa é, para os surdos, sua segunda língua e, assim sendo, seu

ensino deve levar em conta as especificidades da primeira língua desses sujeitos.

Como, mais adiante, será necessário que façamos referência a determinadas

particularidades estruturais da LIBRAS referentes ao processo de referenciação nesta língua,

acreditamos que, neste ponto de nosso estudo, seja necessário considerar alguns aspectos

gramaticais da Língua Brasileira de Sinais. Não faremos, aqui, uma descrição gramatical

complexa, mas sim uma explanação necessária para o entendimento de algumas questões que

aparecerão ao longo de nossa pesquisa.

2.2 Aspectos gramaticais da LIBRAS

A proposta de uma descrição gramatical da LIBRAS nos níveis “fonológico”,

morfológico, sintático e semântico, nos mesmos moldes da gramática das línguas orais-auditivas,

como a Língua Portuguesa, já aparece em estudos como os de Brito (1995) e, mais recentemente,

Quadros e Karnnop (2004: 48), que afirmam que

as línguas de sinais, conforme um considerável número de pesquisas, contêm os mesmos princípios subjacentes de construção que as línguas orais, no sentido de que têm um léxico, isto é, um conjunto de símbolos convencionais, e uma gramática, isto é, um sistema de regras que regem o uso desses símbolos.

O signo linguístico por meio do qual as línguas de sinais se constituem é chamado “sinal”.

Um sinal em LIBRAS, por exemplo, pode ser equivalente a uma palavra ou mesmo a uma

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expressão da Língua Portuguesa. Apenas nos casos em que não há um sinal correspondente para

determinada palavra ou expressão, usa-se a datilologia (soletração), através do alfabeto manual.

Isso ocorre, em geral, para representar nomes próprios ou conceitos que ainda não tenham

correspondência em LIBRAS.

O exemplo abaixo ilustra duas possibilidades de representar a palavra “certo”: através da

soletração digital e do sinal.

(http://www.ines.gov.br/ines_livros/35/35_001.HTM)

A formação dos sinais leva em conta alguns parâmetros que se inserem no chamado

estudo da “fonologia das línguas de sinais”, com dois principais objetivos (cf. QUADROS e

KARNNOP, 2004: 47): determinar as unidades mínimas que formam os sinais e estabelecer os

padrões de combinação entre essas unidades e as variações possíveis no ambiente fonológico.

As unidades mínimas que formam os sinais podem ser divididas de acordo com os

seguintes parâmetros (que, combinados, constituem um sinal):

A configuração da mão;

O movimento que se faz com a mão;

O ponto de articulação, ou seja, o lugar onde se realiza o sinal (por exemplo: na

direção da boca ou da testa, em frente ao tronco);

A orientação da mão (por exemplo: palma da mão virada para cima, para baixo,

para um lado);

Aspectos não manuais, como, por exemplo, as expressões faciais e corporais.

A grande diferença fonológica que se apresenta entre as línguas de sinais e as línguas

orais está relacionada à linearidade da organização de seus elementos mínimos: enquanto nas

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línguas orais-auditivas os fonemas são organizados de forma linear, não podendo haver

sobreposição entre eles, nas línguas visuoespaciais encontramos uma estrutura simultânea na

organização dos elementos. Por exemplo, a partir de uma determinada configuração de mão, de

um movimento em frente à boca do locutor e de determinada expressão facial, realizados ao

mesmo tempo, tem-se um sinal.

Para Quadros e Karnnop (2004: 51), “os articuladores primários das línguas de sinais são

as mãos que se movimentam no espaço em frente ao corpo e articulam sinais em determinadas

locações nesse espaço”. A partir disso, podem-se definir, para a LIBRAS, os seguintes pares

mínimos:

Sinais que se opõem quanto à configuração de mão

Ex.:

“SEGUNDA-FEIRA”3

“TERÇA-FEIRA”

Sinais que se opõem quanto ao movimento

Ex.:

“LARANJA”

                                                            3 Todos os desenhos relativos às representações dos sinais em LIBRAS foram retirados do dicionário: CAPOVILLA e RAPHAEL, 2008.

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“SÁBADO”

Sinais que se opõem quanto à locação.

“LARANJA”

“APRENDER”

Assim, “cada sinal passa a ser visto como um feixe de elementos básicos simultâneos, que

formam uma configuração de mão, um movimento e uma locação e que, por sua vez, entram na

formação de itens lexicais” (QUADROS e KARNNOP, 2004: 62). Tais itens lexicais são os

sinais propriamente ditos.

Segundo Quadros e Karnnop (Id.: 87), “as línguas de sinais têm um léxico e um sistema

de criação de novos sinais em que as unidades mínimas com significado (morfemas) são

combinadas”. Sendo assim, cabe à morfologia das Línguas de Sinais o estudo da estrutura interna

dos sinais e das regras que determinam sua formação. Além disso, também é possível inserir os

sinais, assim como se faz com as palavras nas línguas orais-auditivas, em categorias lexicais ou

classes de palavras tais como nome, verbo, adjetivo, advérbio etc.

No que se refere ao léxico das Línguas de Sinais, podemos, ainda, falar em empréstimos

lexicais de diferentes ordens (cf. BRITO, 1993: 21-24):

Soletração digital – sempre que aparece uma palavra para a qual não há um sinal

correspondente em LIBRAS, é possível, através do alfabeto manual (formado pelas

configurações de mão que representam as letras do alfabeto da Língua Portuguesa)

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soletrá-la. Essa estratégia serve, também, para explicar o significado de um sinal a um

ouvinte que desconheça a LIBRAS.

Inicialização – “é o nome comumente dado ao empréstimo que recorre à utilização de

uma configuração de mão que corresponde, no alfabeto manual, à primeira letra da

palavra equivalente em Português” (BRITO, 1993: 22). Como exemplo, pode-se citar o

sinal de “Brasil”, que se faz utilizando a configuração de mão em “B”.

“BRASIL”

Empréstimo de itens lexicais de outras Línguas de Sinais – que podem ser ilustrados pelos

seguintes exemplos: o sinal correspondente à palavra “ANO”, em LIBRAS é o mesmo

utilizado para representar a mesma palavra na Língua de Sinais Americana; os sinais para

“VERMELHO” e “LARANJA”, possivelmente foram emprestados da Língua de Sinais

Francesa.

Empréstimos de domínio semântico – quando determinado domínio semântico não tem

tanta relevância para uma comunidade surda, os sinais correspondentes às palavras

daquele domínio, em geral, são derivados de empréstimos linguísticos. Isso acontece com

os sinais que designam as cores. Acredita-se que isso ocorra pelo fato de que, para os

surdos, as características mais salientes em um objeto sejam muito mais sua forma e

tamanho que sua cor.

Ainda a respeito dos processos de formação de sinais, deve-se dar especial atenção aos

classificadores, que “são formas complexas em que a configuração de mão, o movimento e a

locação da mão podem especificar qualidades de um referente” (QUADROS e KARNNOP,

2004: 93). Os classificadores funcionam, em geral, para especificar o movimento e a posição de

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objetos e pessoas ou para descrever o tamanho e a forma de objetos. Seu uso é muito produtivo

quando associado aos sinais dos verbos.

Quando se representa, por exemplo, o sinal do verbo RASGAR, a configuração de mão e

a intensidade do movimento (somados, é claro, a expressões faciais) são classificadores, uma vez

que é através desses parâmetros que se pode entender qual o objeto do verbo rasgar, ou seja, o

que se rasga. Sendo assim, “RASGAR A ROUPA” e “RASGAR PAPEL” são representados, em

LIBRAS, de maneira a incorporar o sinal do objeto rasgado ao sinal do verbo “RASGAR”:

“RASGAR A ROUPA”

“RASGAR O PAPEL”

Essa incorporação de algum elemento ao sinal (representada, em geral, pela configuração

de mão) constitui um classificador. Trataremos um pouco mais da questão dos classificadores no

capítulo sobre a referenciação em Línguas de Sinais.

Ainda no âmbito da morfologia das línguas de sinais, há estudos sobre os processos de

formação de palavras e a derivação. É possível, por exemplo, derivar nomes de verbos alterando

apenas o movimento que se faz ao reproduzir o sinal. Por exemplo: o sinal para telefonar e

telefone é praticamente o mesmo no que se refere à configuração de mão e ao ponto de

articulação, entretanto, ao representar o verbo TELEFONAR, é preciso dar uma direção ao sinal

que marca as pessoas gramaticais. É diferente sinalizar: “Eu telefonei para você” ou “Eles

telefonaram para mim”. Nesse caso, os papéis de quem pratica e de sobre quem recai a ação de

telefonar são marcados pela direção em que se faz o sinal.

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Por outro lado, o sinal do substantivo TELEFONE não incorpora o movimento indicador

de direção da ação verbal. “O movimento dos nomes repete e encurta o movimento dos verbos...”

(QUADROS e KARNNOP, 2004: 97).

“TELEFONE”

Essa relação entre o movimento do sinal (a direção em que se faz o sinal) e as pessoas do

discurso, no caso dos verbos, faz com que, nas Línguas de Sinais, seja possível dividir os sinais

que representam verbos em três classes (cf. QUADROS e KARNNOP, 2004: 116-118):

a) verbos simples: não se flexionam em pessoa e número e não incorporam afixos

locativos. Alguns se flexionam em aspecto.

Ex.: passear, conhecer, amar, aprender, saber, inventar, gostar.

“PASSEAR”

b) verbos com concordância: flexionam-se em pessoa, número e aspecto, mas não

incorporam afixos locativos.

Ex.: dar, enviar, responder, perguntar, dizer, provocar, telefonar.

“EU PERGUNTO PARA VOCÊ” “VOCÊ PERGUNTA PARA MIM”

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c) verbos espaciais: têm afixos locativos (a execução do sinal aponta para determinado

lugar).

Ex.: colocar, ir, chegar, viajar.

“CHEGAR”

Evidentemente, a divisão proposta está relacionada à noção de flexão verbal. Os dois

últimos tipos necessitam de uma flexão seja em relação às pessoas do discurso (caso dos verbos

com concordância), seja em relação ao lugar em que se realiza a ação ou para o qual a ação se

direciona (verbos espaciais). Os chamados verbos simples têm, na realização do sinal, sua

significação completa e, se for necessário marcar pessoas do discurso, por exemplo, essa

marcação se realizará através do ato de apontar. Voltaremos a esse assunto no capítulo 3, uma

vez que essa referência a pessoas e lugares possui estreita relação com os processos de

referenciação que aparecem nos textos em LIBRAS.

Por último, a respeito da sintaxe espacial das línguas de sinais, pode-se afirmar que as

línguas de sinais possuem uma organização espacial bastante específica, o que faz com que se

possa localizar os elementos gramaticais e as relações entre eles através de sua localização no

espaço.

A representação das pessoas do e a sinalização em direção a elas depende muito do

espaço de sinalização de que dispõe o sinalizador. Por isso, muitas vezes, a orientação que se dá

ao texto em LIBRAS é basicamente dêitica (isto é, o corpo do surdo torna-se um “centro dêitico”

a partir do qual se orienta a narrativa) e, nas narrações, predomina o discurso direto. Em uma

história com dois personagens, por exemplo, normalmente, cada referente será representado

como estando dos lados direito e esquerdo do enunciador e, sempre que necessário, o recurso do

apontamento indicará a quem se faz referência. Se for o caso de um desses personagens agir

diretamente na narrativa, em geral, o enunciador “toma as vezes” de personagem e, através dos

recursos de que a Língua de Sinais dispõe, este mesmo enunciador representa as ações e os

diálogos como sendo cada um dos personagens. Esta é uma clara manifestação de discurso direto,

uma vez que é dada a “voz” a cada um dos personagens da narrativa.

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Essa particularidade das línguas de sinais é o grande foco de nossa pesquisa, sobretudo no

que se refere ao predomínio do discurso direto nas narrativas em LIBRAS. No capítulo 3,

trataremos dessa questão sob o olhar dos processos de referenciação.

Como se pode observar com esta breve descrição de alguns aspectos gramaticais, as

línguas de sinais são tão complexas quanto as línguas orais-auditivas e merecem, portanto, ser

estudadas, cada vez mais, de modo a construir, no sujeito surdo, o hábito de refletir sobre sua

própria língua. Assim, não só será mais satisfatório o desenvolvimento cognitivo do surdo, mas

também sua relação com o mundo.

Concluímos nosso capítulo citando Brito (1993: 44), esperando que as explanações feitas

aqui tenham evidenciado a importância do conhecimento da estrutura linguística da LIBRAS para

que o professor de Língua Portuguesa possa traçar estratégias de ensino específicas para o

educando surdo:

As línguas gestuais-visuais são a única modalidade de língua que permite aos surdos desenvolver plenamente seu potencial linguístico e, portanto, seu potencial cognitivo, oferecendo-lhes, por isso mesmo, possibilidade de libertação do real concreto e de socialização que não apresentaria defasagem em relação àquela dos ouvintes. São o meio mais eficiente de integração social do surdo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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3. O PROCESSO DE REFERENCIAÇÃO

 

A questão sobre como a língua traduz em palavras as coisas do mundo vem, ao longo do

tempo, tomando força entre as pesquisas linguísticas. Atualmente, um dos principais objetos de

estudo da Linguística Textual é a maneira como, pela linguagem, o homem traduz a realidade que

o cerca, ou seja, como faz referência às coisas do mundo.

Os sujeitos constroem, através de práticas discursivas e cognitivas, imagens do mundo e

com essas imagens constroem-se expressões referenciais, isto é, itens linguísticos que funcionam

como retomada para outros itens precedentes no cotexto ou mesmo no contexto. Tais expressões

não são, portanto, pré-existentes, mas construídos no curso da atividade linguística, ou seja, na

interação entre os participantes do ato comunicativo. Dessa forma, as expressões referenciais

(sintagmas nominais, pronomes, advérbios, etc) são formas linguísticas concretas capazes de

fazer alusão a algo (um sentimento, uma ação, um objeto...) no processo de interação. Tal

processo é o responsável pela construção, por parte dos interlocutores, de representações dessas

entidades que se denominam referentes. Nesse sentido, Cavalcante (2011: 15) afirma: “O ato de

referir é uma ação conjunta”.

A referenciação deve, portanto, ser entendida como um processo contínuo e socialmente

construído, isto é, os participantes da ação comunicativa estão todo o tempo influenciando direta

ou indiretamente a construção de referentes. Ainda citando Cavalcante (Id.: Ibid.), os referentes

são “entidades que construímos mentalmente quando enunciamos um texto. São realidades

abstratas, portanto, imateriais”.

Costuma-se classificar os referentes como objetos de discurso, ou seja, itens lexicais

(palavras, sintagmas nominais ou verbais) usados para fazer referência a um item linguístico já

citado ou mesmo sugerido no texto. Para Cavalcante (2011: 9), os objetos de discurso “emergem

da elaboração discursiva de um saber compartilhado”. Atualmente, o processo de referenciação é

definido como a construção de objetos de discurso. E é nessa prática de construção de referência

que os participantes do ato comunicativo podem (re)construir a coerência de um texto. Dessa

forma, diz-se que um texto é coerente quando os participantes do ato comunicativo conseguem

acessar adequadamente, em sua memória discursiva, os referentes necessários para a

compreensão da mensagem.

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Com o processo de referenciação, formam-se categorias que funcionam como espécies de

conjuntos aos quais determinados objetos pertencem ou não. A distribuição de objetos de mundo

em categorias discursivas depende da capacidade do homem de perceber o mundo e tal

percepção, de forma alguma, é unânime. Cada um, levando em conta seu conhecimento de

mundo, o contexto de comunicação no qual está inserido e seus parceiros na atividade

comunicativa, dentre outros fatores, categoriza as coisas do mundo de uma maneira específica e

diferente. Isso tudo evidencia que “a forma como percebemos e atuamos com os objetos é

fundamental para a forma como somos capazes de desenvolver conceitos abstratos para eles”

(KOCH, 2006c: 54).

No entanto, tal percepção de mundo, por vezes, sai do âmbito individual e passa a formar

um consenso para um grupo de indivíduos. Há um momento, portanto, em que as categorias são

compartilhadas por um grupo social que usa as mesmas práticas culturais e sociais e as reconhece

de forma semelhante.

Os nomes enquanto rótulos correspondem aos protótipos e contribuem para sua estabilização ao curso de diferentes processos. Primeiro, eles correspondem às unidades discretas da língua, que permitem uma descontextualização do protótipo segundo os paradigmas disponíveis na língua e garantem sua invariância através dos contextos. Em seguida, a nomeação do protótipo torna possível seu compartilhamento entre muitos indivíduos através da comunicação linguística, e ele se torna, de fato, um objeto socialmente distribuído, estabilizado no seio de um grupo de sujeitos. Tal protótipo compartilhado evolui para uma representação coletiva chamada geralmente de estereótipo (MONDADA e DUBOIS, 2003: 42).

Esse processo de estabilização na formação de estereótipos, que ocorre com os objetos de

discurso, é natural nas línguas e reflete, mais uma vez, o caráter social do processo de

referenciação. A maneira de categorizar um “objeto social” deve-se, portanto, a fatores

contextuais muito mais amplos que apenas a significação das palavras.

Nessa medida, encaixa-se perfeitamente o conceito de “Cognição social” que, segundo

Van Dijk (1992: 203), seria um “sistema de estratégias e estruturas mentais partilhados pelos

membros de um grupo”. Portanto, as atividades de produção, compreensão e representação de

“objetos sociais” são sociocognitivas.

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A categorização de um objeto depende muito mais da multiplicidade de pontos de vista

dos sujeitos do que de restrições semanticamente impostas: “Os sistemas cognitivos humanos

parecem particularmente adaptados à construção de categorias flexíveis” (KOCH, 2006c: 55). Por

isso, mudanças no contexto de comunicação ou nos pontos de vista dos atores sociais podem

resultar na recategorização de um objeto social ou na inserção de outro objeto em alguma

categoria previamente citada no texto.

A variação e a concorrência categorial emergem notadamente quando uma cena é vista de diferentes perspectivas, que implicam diferentes categorizações da situação, dos atores, dos fatos. A ‘mesma’ cena pode, mais geralmente, ser tematizada diferentemente e pode evoluir – no tempo discursivo e narrativo – focalizando diferentes partes ou aspectos (MONDADA e DUBOIS, 2003: 24).

Além disso, todo o entorno linguístico que cerca uma categoria explicitamente em um

texto também é responsável pela identificação do objeto categorizado. Ao ler uma frase como “O

ex-presidente relembrou seus tempos de líder sindical”, um brasileiro imediatamente associa a

categoria “ex-presidente” a Lula e não a Fernando Henrique Cardoso ou Itamar Franco, por

exemplo, ainda que estes últimos também pudessem ser inseridos nesta mesma categoria em

outro contexto. O predicado “relembrou seus tempos de líder sindical” particulariza a

categorização exercida pelo sujeito “O ex-presidente”.

Nas atividades discursivas, a instabilidade das categorias manifesta-se em “todos os níveis

de organização linguística, indo das construções sintáticas às configurações de objetos de

discurso” (MONDADA e DUBOIS, 2003: 29). A recategorização de um objeto é, portanto, a

“evolução natural que todo referente sofre ao longo do desenvolvimento do texto”

(CAVALCANTE, 2011 90).

Tudo isso só faz comprovar que a língua é objeto social:

Em última análise, a língua não existe fora dos sujeitos sociais que a falam e fora dos eventos discursivos nos quais eles intervêm e nos quais mobilizam suas percepções, seus saberes quer de ordem linguística, quer de ordem sociocognitiva, ou seja, seus modelos de mundo. Estes, todavia, não são estáticos, (re)constroem-se tanto sincrônica como diacronicamente, dentro das diversas cenas enunciativas, de modo que, no momento em que se passa da língua ao discurso, torna-se necessário invocar conhecimentos — socialmente compartilhados e discursivamente (re)construídos —, situar-se dentro das contingências históricas, para que se possa proceder aos encadeamentos discursivos (KOCH, 2006c: 57).

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É na prática sociointeracional da linguagem que se “fabricam” referentes, pois somente na

atividade sociocognitivo-discursiva a realidade se materializa. É, portanto, “inútil querer

interpretar as estruturas linguísticas sob o ponto de vista das pretensas estruturas ‘objetivas’ da

realidade”, pois tais estruturas linguísticas tratam-se, na verdade, de “estruturações impostas à

realidade pela interpretação humana” (KOCH, 2004: 8). As categorias são, portanto, instáveis.

Para Mondada e Dubois (2003: 22), a instabilidade é, não só, inerente aos objetos de

discurso, mas também, está ligada às “propriedades intersubjetivamente negociadas das

denominações e categorizações no processo de referenciação”. As categorizações seriam,

portanto, “processos que se desenvolvem no seio das interações individuais e sociais com o

mundo e com os outros”.

Mondada e Dubois (Id.: 35) afirmam, ainda, que as instabilidades das categorias “não são

simplesmente um caso de variações individuais que poderiam ser remediadas e estabilizadas por

uma aprendizagem individual de ‘valores de verdade’; elas estão ligadas à dimensão

constitutivamente intersubjetiva das atividades cognitivas”.

Pode-se concluir, portanto, que a escolha de determinadas categorias textuais está

relacionada não à semântica dos objetos, mas às representações sociais. Os papéis dos

interlocutores e o sentido que se deseja dar ao texto comandam a construção e a escolha dos

objetos de discurso.

3.1 Referenciação e progressão textual: a construção de objetos de discurso

Segundo Cavalcante (2011: 9), o que se entende hoje por referenciação começou a ser

definido em 1994, na Suíça, quando Lorenza Mondada começou a descrever os “processos

discursivos que se verificam na introdução de um objeto, nos ajustes que ele sofre quando vai

participando da configuração complexa de um texto e na passagem de um objeto a outro”.

Atualmente, a noção adotada para definir referência não é a de simples representação

linguística das coisas do mundo, mas o uso de um termo, denominado objeto de discurso, para

representar um “objeto do mundo” em uma dada situação discursiva referencial (cf. KOCH,

2006c).

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Ao afirmar que a construção de referentes ocorre no próprio texto, não se deseja negar a

existência de uma realidade externa à mente dos indivíduos. No entanto, entendemos que a

formação de tais objetos de discurso é influenciada por fatores culturais, históricos, sociais, ou

seja, pelo contexto de comunicação e não apenas por experiências individuais ou por meras

reproduções pré-existentes da realidade. Além disso, os objetos de discurso são itens linguísticos

dinâmicos, podendo ser modificados, desativados, reativados no curso da progressão textual. Para

interpretá-los, é preciso considerar todas essas razões sociocognitivas que determinam sua

construção:

Mesmo quando os referentes são introduzidos no texto por expressões referenciais, estão respaldados por um contrato tácito de co-participação do destinatário, que aceita responder em alguma medida à atividade que lhe é solicitada. Há uma pressuposição pragmática de que o co-enunciador sabe do que se trata, e de que, ainda que não o saiba exatamente, alguns indícios contextuais o levarão a reconstruir o objeto discursivo, mesmo que vagamente. Por isso, para nós, toda entidade referida é construída sob a pressuposição de que de algum modo vai se tornar acessível na interação (CAVALCANTE, 2011: 119).

A referência, portanto, diz respeito às operações efetuadas pelo sujeito à medida que o

texto se desenvolve. Dessa forma, ao construir os referentes, o texto acaba fundando uma

memória discursiva compartilhada socialmente. Quando interpretamos, por exemplo, uma

expressão anafórica nominal ou pronominal, não recorremos apenas à descoberta do antecedente

explícito na frase, mas também às informações presentes em nossa memória discursiva.

Por tudo isso, nas pesquisas mais atuais, propôs-se a troca do termo “referência” pelo

termo “referenciação”, tendo em vista que a atividade de fazer referência não é uma simples

relação entre palavras e coisas, mas um processo que perpassa questões intersubjetivas e sociais,

uma atividade discursiva. Sendo, portanto, uma atividade discursiva, a construção de referentes

não deve limitar-se apenas ao emprego de expressões referenciais. A referência pode acontecer

no contexto discursivo, sem necessitar de um elemento co-textual específico, como se pode

comprovar pelas palavras de Cavalcante (2011: 120):

Não estamos, pois, tratando apenas de como as expressões referenciais são selecionadas para representar que entidades em dado contexto, mas sim, de como os referentes, mesmo quando nem foram ainda designados no cotexto, já podem estar acessíveis no

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mundo do discurso, até irem, aos poucos, se estabilizando e, em seguida, se desestabilizando, num jogo de co-construção que só chega ao seu termo quando os participantes se dão por satisfeitos com algum tipo de consenso para cada circunstância.

Tudo isso contribui para a progressão textual (ou sequenciação), ou seja, os

“procedimentos linguísticos por meio dos quais se estabelecem, entre segmentos do texto (...),

relações semânticas ou pragmático-discursivas, à medida que se faz o texto progredir” (cf.

KOCH, 2006b: 121). Os mecanismos de sequenciação, portanto, fazem com que as partes de um

texto se tornem interdependentes, formando, assim, o que se chama de encadeamento tópico.

Há diversas maneiras de realizar a progressão textual e algumas estratégias estão

diretamente relacionadas a mecanismos de referenciação. A presença de objetos de discurso ao

longo do texto segue determinados princípios, isto é, operações básicas que ocorrem no fluxo do

texto. São três os princípios de referenciação (cf. KOCH, 2006c: 62):

ativação: um referente textual, até então não mencionado, passa a fazer parte do texto. A

expressão linguística que o representa passa a constituir o “foco” da informação textual.

reativação: a expressão linguística em foco é reativada por meio de um referente (objeto

de discurso), mantendo o foco no mesmo “endereço cognitivo”, porém através de um

outro item linguístico. A reativação de um referente pode acontecer seguidas vezes, por

meio de quantos objetos de discurso diferentes forem necessários para a progressão do

texto.

de-ativação: ativação de um novo referente por meio do aparecimento de uma nova

expressão linguística que desvia a atenção do objeto discursivo que, até então, estava em

foco. No entanto, isso não impede que o referente desativado permaneça no modelo

textual, podendo ser reativado a qualquer momento, se necessário. Nas palavras de Koch

(2004: 11), o elemento “fora de foco” permanece no “horizonte de consciência” dos co-

enunciadores.

A repetição ordenada desses movimentos caracteriza um modelo textual. Entretanto,

apesar de ordenado, o processamento textual não acontece de forma linear: há uma oscilação

entre movimentos para frente (projetivos) e para trás (retrospectivos), além de rupturas, fusões e

alusões que vão guiando o texto. Uma das responsáveis, junto com a referenciação, pela

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orientação desses movimentos, é a chamada “sinalização textual” que, segundo Koch (2004: 12)

determina a “orientação do ‘olhar’ do interlocutor para determinadas porções do cotexto anterior

ou subsequente”. Podemos exemplificar com expressões como “No capítulo anterior...” ou “No

parágrafo seguinte...”, cujo papel de sinalizadoras textuais reconhecemos acionando nosso

conhecimento da estrutura textual.

Além dos princípios de referenciação citados por Koch e da necessidade de conhecer a

estrutura textual para perceber a progressão, é importante atentarmos para outros aspectos

essenciais no fluxo de informações do texto. Cavalcante (2011: 54) chama a atenção, por

exemplo, para duas funções gerais das expressões referenciais: introduzir formalmente um novo

referente no universo discursivo e promover, por meio de expressões referenciais, a continuidade

dos referentes já estabelecidos no universo discursivo. A partir dessas duas funções, a autora

divide, inicialmente, os processos referenciais em duas possibilidades – introdução referencial

(equivalente à ativação) e anáfora ou continuidade referencial (equivalente à reativação) –, que

se inserem no que a autora chama de “processos referenciais atrelados à menção”.

Especificamente em relação à anáfora, ou seja, à reativação de um referente no contexto,

Cavalcante propõe uma divisão baseada na correferencialidade. Se um mesmo objeto de discurso

previamente introduzido é completamente recuperado por um anafórico, diz-se que há uma

“ocorrência de correferencialidade”. Nesse caso, classifica-se a anáfora como anáfora direta, ou

seja, o mecanismo através do qual um mesmo referente vai sendo alterado em proporções

variadas ao longo do texto, por meio por exemplo, de recategorizações, novas nominalizações,

etc.

Por outro lado, o processo de continuidade anafórica também pode ocorrer sem

correferencialidade, isto é, “pela menção de expressões que, embora não representem o mesmo

referente citado, estão de algum modo ligadas a outras âncoras linguísticas do cotexto”

(CAVALCANTE, 2011: 57) – são os casos de anáfora indireta.

A autora destaca, entretanto, que

Continuidade não significa obrigatoriamente manutenção de um mesmo referente. Quando o mesmo referente é retomado, dizemos que a anáfora é correferencial. Mas nem toda continuidade, ou seja, nem toda anáfora, é correferencial, porque nem todas retomam o mesmo objeto de discurso. Quando acontece de não haver correferencialidade, a continuidade se estabelece por uma espécie de associação que os participantes da enunciação elaboram por inferência (Id.:. 61).

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Transcrevemos, abaixo, um dos exemplos utilizados por Cavalcante (Id.: 60) para elucidar

a divisão proposta:

“O Prefeito foi visitar o hospício da cidade. Chegando na biblioteca, percebe

que tem um louco, de cabeça para baixo, pendurado no teto. Preocupado, comenta com o diretor do hospício:

― O que é que esse louco está fazendo aí no teto? ― Ele pensa que é um lustre. ― Mas é muito perigoso, ele pode cair e se machucar. ― Por que vocês não o tiram do teto? ― Mas e, à noite, como é que a gente vai fazer para ler no escuro?”

Nesse exemplo, são anáforas diretas as expressões “esse louco” e “ele”, que retomam a

introdução referencial “um louco”. Já as anáforas indiretas podem ser representadas por “a

biblioteca”, “o diretor” e “um louco”, relacionados de diferentes maneiras a “o hospício da

cidade”. Não são casos de correferencialidade, mas anáforas indiretas, uma vez que, por meio de

mecanismos de inferência, identifica-se uma progressão textual promovida pelo processo de

referenciação.

Cavalcante cita autores que propõem uma divisão das anáforas indiretas em diferentes

subtipos (associativas, inferenciais, meronímicas...). Adotamos, neste trabalho, posição

semelhante à de Cavalcante (2011): tendo em vista que toda anáfora indireta se faz por meio de

uma variada associação de ideias, subclassificar esse tipo de anáfora seria apenas encontrar

diferentes maneiras de nomear o mesmo fenômeno.

Entretanto, a autora destaca um tipo especial dentro das anáforas indiretas: as anáforas

encapsuladoras. Tais mecanismos de referenciação são diferenciados, pois não retomam

especificamente nenhum objeto do discurso pontualmente, mas se prendem a conteúdos

espalhados pelo contexto. Essas anáforas selecionam informações presentes no cotexto e no

contexto para, assim, encapsularem, em uma expressão nominal (um sintagma ou um pronome),

seu conteúdo.

A diferença crucial entre estes encapsuladores e os anafóricos indiretos propriamente ditos, (...) é que resumem, “encapsulam”, conteúdos proposicionais inteiros, precedentes e/ou consequentes. Além disso, os encapsuladores não remeteriam a âncoras bem pontuais, bem específicas, do cotexto, mas a informações ali dispersas (CAVALCANTE, 2011: 73-74).

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As anáforas encapsuladoras são consideradas anáforas indiretas porque apresentam, no

cotexto, uma informação nova, como se ela já fosse conhecida, pois há, no texto, conteúdos

explícitos e implícitos que fazem com que o interlocutor identifique o elemento encapsulador

como um elemento de retomada. Quando acontece o encapsulamento anafórico, “a nova

expressão referencial (que é motivada pelo discurso precedente) funciona retroativamente como

um recurso de integração semântica” (CONTE, 2003: 184).

Muitas vezes, as anáforas encapsuladoras são representadas por sintagmas nominais, que

praticam, em geral, duas funções cognitivo-discursivas: reativam referentes já presentes na

memória discursiva dos interlocutores e introduzem novas predicações a respeito deles (KOCH,

2006b: 3). Tais nominalizações são, portanto, objetos de discurso carregados de ideologia, uma

vez que encapsular, por exemplo, um imposto cobrado pelo governo com o rótulo de “nova

medida governamental” ou de “mais uma ação contra o povo”, depende muito das intenções dos

sujeitos que atuam na construção do texto.

É importante ressaltar, portanto, que, algumas vezes, as anáforas encapsuladoras

desempenham funções textuais de grande relevância, pois não só rotulam uma parte do cotexto

que as antecede (X é um acontecimento, um fato, uma cena), mas sobretudo criam

um novo referente textual que, por sua vez, passará a constituir o tema dos enunciados subsequentes. (...) Ao criarem um novo objeto-de-discurso, todos esses rótulos não só propiciam a progressão textual, como, em parte, a efetuam. Trata-se, pois, de formas híbridas, simultaneamente referenciadoras e predicativas, isto é, veiculadoras tanto de informação dada ou inferível, como de informação nova (KOCH, 2008: 63).

Para Conte (2003: 186), a anáfora encapsuladora “funciona simultaneamente como um

recurso coesivo e como um princípio organizador, e pode ser um poderoso meio e manipulação

do leitor”, pois o fato de o produtor do texto rotular um conteúdo como “acontecimento”,

“evento”, “manifestação” ou “ato de vandalismo” contribui para a força argumentativa de um

texto. O grau de argumentatividade vai variar de um rótulo para outro, porém, mesmo aqueles

que possuem aparente neutralidade não são esvaziados de carga argumentativa, uma vez que sua

escolha constitui sempre uma opção do produtor do texto. O processo de encapsulamento e

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rotulação4 é responsável pela introdução de objetos de discurso no modelo textual dando ao texto

a orientação argumentativa desejada por seu produtor e fazendo-o progredir.

Assim, podemos dividir os mecanismos de referenciação de acordo com o quadro abaixo,

adaptado de Cavalcante (2011: 86):

Quadro 1: Processos referenciais atrelados à menção

Introdução referencial

(ou ativação)

Anáfora - continuidade referencial

(ou reativação)

Anáforas diretas

(correferenciais)

Anáforas indiretas

(não correferenciais ou associativas)

Anáforas indiretas

propriamente ditas

Anáforas

encapsuladoras

A progressão textual renova as condições de textualização e a consequente produção de

sentido. Pode-se dizer, inclusive, que a progressão de um texto acontece pela co-determinação do

já dito, do que será dito e do que é sugerido, tanto pelo cotexto quanto pelo contexto

comunicativo. É uma co-determinação progressiva (cf. KOCH, 2006b: 85).

Essas afirmações vêm confirmar que os objetos de discurso são altamente dinâmicos,

pois, uma vez introduzidos na memória discursiva, vão sendo constantemente transformados,

reconstruídos, recategorizados no curso da progressão textual.

O objeto de discurso caracteriza-se pelo fato de construir progressivamente uma configuração, enriquecendo-se com novos aspectos e propriedades, suprimindo aspectos anteriores ou ignorando outros possíveis, que ele pode associar com outros objetos ao integrar-se em novas configurações, bem como de articular-se em partes suscetíveis de se autonomizarem por sua vez em novos objetos. O objeto se completa discursivamente (KOCH, 2006c: 79).

                                                            4 Koch (2008) separa em categorias distintas os processos de rotulação e encapsulamento. Cavalcante (2011), entretanto, acredita que não se deva criar uma subcategoria “rotuladores”, tendo em vista que todo encapsulador, mesmo quando representado por um pronome e não por um sintagma nominal, aponta para alguma direção argumentativa. Em nosso trabalho, tratamos de encapsulamento e rotulação como um mesmo processo, apenas observando o poder argumentativo que este tipo de anáfora indireta exerce no processo de referenciação.

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Os objetos de discurso reconstroem a realidade extralinguística no próprio processo de

interação. A realidade é construída, mantida e alterada não só pela forma como nomeamos o

mundo, mas também pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele. Para Ciulla e

Silva (2008), elaborar e reelaborar referentes requer a consideração de elementos linguísticos, de

pistas extralinguísticas e de inferências.

A título de ilustração, a seguir, descrevemos e exemplificamos algumas das estratégias

anafóricas, ou seja, de reativação de objetos de discurso no modelo textual:

Uso de pronomes

Esta operação é classificada, em geral, como pronominalização anafórica ou catafórica de

elementos co-textuais explícitos ou implícitos. Quando utilizamos, por exemplo, o pronome

“eles” para retomar um sintagma nominal como “os homens”, já citado anteriormente no cotexto,

estamos aplicando essa estratégia de referenciação.

Abaixo, citamos um exemplo utilizado por Koch (2006b: 86) para ilustrar a

pronominalização sem um referente cotextual explícito:

Meu filho não está indo bem na escola. Eles dizem que ele é muito desatento e quase nunca faz as tarefas de casa.

No exemplo anterior, vemos um caso de referência anafórica implícita, pois, como se

pode observar, o pronome “eles” não possui referência explícita com nenhum termo já citado no

cotexto. É fácil perceber, todavia, por experiências contextualizadas na vivência, que o pronome

“eles” faz referência aos membros da escola (como professores, coordenadores, diretores), ainda

que nenhuma dessas palavras tenha sido escrita anteriormente.

Uso de formas nominais definidas

São formas linguísticas constituídas minimamente de um determinante (artigo ou

pronome), seguido de um nome. Koch (2006b: 87) afirma que tais construções podem assumir as

seguintes formas, em português:

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Det. + Nome

Det. + Modificador(es) + Nome + Modificador(es)

Podem funcionar como determinantes artigos definidos e demonstrativos, como

modificadores, podem aparecer adjetivos, sintagmas preposicionais e orações relativas. A escolha

do nome núcleo dessas construções, bem como dos modificadores que podem vir a acompanhá-lo

para formar o objeto de discurso, também é repleta de significado e está diretamente relacionada

aos conhecimentos sociocognitivos dos participantes da interação. O uso de um ou outro objeto

de discurso pode trazer ao leitor/ouvinte informações importantes sobre as opiniões, crenças e

atitudes do produtor do texto, auxiliando-o na construção do sentido. A escolha do referente pode

direcionar, inclusive, a argumentação que segue o texto.

Em outras palavras, a função das expressões referenciais não é apenas referir. Pelo contrário, como multifuncionais que são, elas contribuem para elaborar o sentido, indicando pontos de vista, assinalando direções argumentativas, sinalizando dificuldades de acesso ao referente e recategorizando os objetos presentes na memória discursiva (KOCH, 2006b: 106).

Utilizamos, abaixo, um exemplo retirado de Koch (2006b: 91), para ilustrar o uso de

formas nominais definidas como elemento de referenciação:

A avó da criança não tinha meios para sustentá-la. A mísera velhinha estava à procura de alguém que quisesse adotar o recém-nascido cuja mãe perecera durante o parto.

Nesse exemplo, aparecem dois elementos (avó e criança) e, em seguida, objetos de

discurso que fazem referência a cada um deles: “a mísera velhinha” e “o recém-nascido cuja mãe

perecera durante o parto”. Em ambos os casos, o objeto de discurso é constituído de itens lexicais

que carregam em si uma ideologia. O adjetivo “mísera”, seguido do nome diminutivo “velhinha”

e a oração adjetiva que funciona como modificador do nome “recém-nascido”, contribuem para

uma mesma linha argumentativa. Se, ao contrário, os objetos de discurso fossem “a senhora” e,

simplesmente, “o recém-nascido”, respectivamente referindo-se à avó da criança e à criança, boa

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parte da noção de “pena” que se deseja atribuir aos referentes seria perdida e o texto ganharia,

aparentemente, mais neutralidade.

A referenciação com formas nominais definidas ilustram também os casos de anáfora

indireta ou associativa que, como já definimos anteriormente, consiste no emprego de formas

nominais, sem antecedente explícito no cotexto, mas que se encontram em dependência

interpretativa com outros elementos presentes na estrutura textual em desenvolvimento. No

exemplo abaixo, retirado de Koch (2006b: 108), a expressão “a manobra” aparece como uma

anáfora associativa encapsuladora (“a manobra” define toda a ação feita pelo avião e descrita na

frase imediatamente anterior):

De acordo com testemunhas, o avião saiu de sua rota pouco depois de decolar e fez uma meia-volta quando sobrevoava Gonesse. A manobra teria sido uma tentativa de reconduzir a aeronave ao aeroporto (Folha de São Paulo, 26/07/00).

Anáforas indiretas como essa desempenham papel fundamental na construção da

coerência de um texto, pois são a “expressão explícita de relações de coerência implícita em

estruturas textuais” (KOCH, 2006b: 110).

Além da função argumentativa apresentada pelos exemplos descritos até então, as formas

nominais referenciais podem, ainda, ter outras funções na progressão textual. Muitas vezes, elas

são capazes, por exemplo, de introduzir informações novas sobre o referente, de construir

paráfrases definicionais e didáticas e de atualizar os conhecimentos do leitor/ouvinte utilizando-

se de hiperônimos, como se pode ver no exemplo abaixo, citado por Koch (2006b, p. 72), em que

o objeto de discurso “bactéria”, que se usa para retomar o termo “o antraz”, é um hiperônimo que

ajuda o leitor na compreensão do texto:

Duas equipes de pesquisadores dos EUA relatam hoje descobertas que podem levar à produção de drogas mais eficientes contra o antraz. Para destruir a bactéria, os potenciais novos remédios teriam um alvo específico... (Folha de São Paulo, 24 out. 2001, A-10).

As expressões nominais desempenham, também, função coesiva e de organização

macroestrutural do texto. Muitas vezes, essas expressões definem a introdução, a mudança ou o

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desvio de tópico, contribuindo para a progressão textual. O uso de demonstrativos como “esse”

ou “aquele” acompanhando nomes em função anafórica, bem como expressões como “em

primeiro lugar” ou “por último”, em função catafórica, determinam a divisão do texto em

parágrafos e a progressão tópica.

Além de todo esse processo de referenciação que se pode observar pelo cotexto, há, como

já afirmamos, estratégias contextuais muito mais complexas que envolvem os conhecimentos

partilhados pelos interlocutores dos textos. Isso comprova que a referenciação envolve processos

mentais que extrapolam o nível linguístico.

Dessa forma, para estudarmos os processos de referenciação em uma língua, é preciso ter

conhecimento sobre os usuários dessa língua, que funcionam como “atores” de um determinado

ato de comunicação:

Os significados das formas da língua constituem apenas um dos componentes dos sentidos, ou da coerência, que os participantes da enunciação constroem em cooperação. Eles servem de pistas, de indícios, de cadeias, de trilhas não somente para a constante reelaboração dos sentidos, mas também para a progressão das referências de um texto (CAVALCANTE, 2011: 127).

Essa “atuação” inerente ao processo de referenciação e à construção de sentidos pode ser

ainda mais fortemente observada quando se trata da referenciação nas línguas de sinais.

3.2 O processo de referenciação na Língua Brasileira de Sinais

Até agora, tratamos apenas do processo de referenciação em Língua Portuguesa.

Entretanto, na língua de sinais, também há estratégias de referência que garantem a progressão

textual. Neste item, trataremos, portanto, dos mecanismos de retomada discursiva que são

produtivos na língua de sinais: o uso dos classificadores e da flexão verbal; o procedimento

discursivo dêitico e a predominância do discurso direto nas estruturas narrativas.

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3.2.1 Uso dos classificadores e da flexão verbal

Conforme já abordamos no capítulo 2, os classificadores são elementos, nas línguas de

sinais, que se incorporam a determinados sinais e marcam, nos verbos que admitem

concordância, o sujeito ou o objeto de uma ação verbal. Tais elementos são caracterizados por

determinada configuração de mão e, algumas vezes, por um movimento característico.

Os exemplos abaixo ilustram algumas formas de flexionar o verbo “andar”, em LIBRAS,

com o auxílio de classificadores:

“ANDAR A PÉ”

“ANDAR DOS ANIMAIS”

A partir da leitura das figuras acima, podemos perceber que o sujeito do verbo andar (no

primeiro caso, um ser humano; no segundo caso, um animal) condiciona o sinal, de maneira que a

configuração de mão que se usa em cada um dos casos, diferencia o verbo “andar” dependendo

da relação sujeito-verbo que se estabeleça. É diferente, portanto, o sinal utilizado para o verbo

“andar” em frases como “Carlos anda” e “O cachorro anda”.

Usando um classificador, é possível, também, flexionar o verbo em aspecto. No exemplo

a seguir, o movimento do sinal relaciona-se ao modo “como se anda”:

“ANDAR CAMBALEANDO”

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Assim, se se quer fazer referência, em um texto em LIBRAS, a dois homens – um bêbado

e um sóbrio, por exemplo –, é possível utilizar a estratégia dos classificadores.

Além disso, também é possível, em relação ao verbo “andar”, caracterizar o meio, através

de um outro tipo de flexão verbal. Os exemplos abaixo ilustram essa possibilidade:

“ANDAR A CAVALO”

“ANDAR DE CARRO”

“ANDAR DE BICICLETA”

O sinal referente a “andar a cavalo” não só incorpora o classificador “PESSOA”, como

também o movimento característico da ação verbal. No caso de “andar de carro” e de “andar de

bicicleta”, a configuração de mão indica o meio de transporte e não o sujeito que pratica a ação.

De toda forma, estes são mecanismos de flexionar o verbo “andar” diante de todas as

possibilidades de flexão que o verbo permite.

O verbo “andar” é considerado, em LIBRAS, um verbo com concordância, ou seja,

aquele que, na execução do sinal, incorpora características, formas, funções, direções dos objetos

de discurso envolvidos em sua construção: o sujeito do verbo, o objeto sobre o qual recai a ação

verbal, um locativo que indica a direção da ação verbal, a intensidade ou o aspecto dessa ação.

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Incluem-se também, nesses casos, os chamados verbos locativos, ou seja, aqueles que se

flexionam à medida que se direciona o sinal para determinado lugar no espaço. É o caso, por

exemplo, do verbo viajar:

“VIAJAR”

A partir da localização do produtor do texto no espaço, o sinal pode tomar diferentes

direções. Quando se representa, em LIBRAS, o verbo “viajar”, direciona-se o sinal para

determinado ponto onde se localiza (imaginariamente) o lugar para onde se vai viajar. Tal ponto

imaginário está diretamente associado à posição e, mesmo, à localização geográfica em que se

encontra o enunciador. Por exemplo, se o enunciador de um texto encontra-se no Rio de Janeiro e

declara “Eu viajarei para o nordeste”, faz o sinal do verbo viajar, direcionando-o para um ponto

imaginário onde “esteja” o nordeste (acima). Se o destino da viagem for alterado, basta direcionar

o sinal para baixo, mais para o lado, indicando longe, perto, como se quiser representar.

A flexão verbal e o uso de classificadores são, portanto, mecanismos bastante produtivos

no ato de fazer referência aos objetos do discurso, sejam eles o sujeito de uma ação verbal, o

objeto da ação ou determinado lugar ao qual se deseja fazer referência.

3.2.2 O procedimento discursivo dêitico

O procedimento de referência mais prototípico em língua de sinais relaciona-se ao caráter

dêitico dessa língua. Segundo Cavalcante (2005: 126),

para um processo referencial ser considerado dêitico, ele precisa fazer apelo ao ponto de origem em que se situa o falante, ou co-enunciador. Assim sendo, se elegermos como critério primário a retomada de referentes no discurso, poderemos aceitar que a dêixis pode cruzar o caminho da anáfora e da introdução referencial, não as excluindo, mas inserindo uma soma de subjetividades (grifos nossos).

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Em Língua Portuguesa, tais subjetividades às quais a autora se refere pertencem ao

processo mesmo da dêixis, uma vez que, por um referencial dêitico, o falante situa as coisas do

mundo através do seu ponto de vista. As expressões referenciais pertencentes ao campo dêitico

são aquelas relacionadas diretamente às condições de enunciação. Nesses casos, o enunciador é

um ponto de referência para a escolha das expressões referenciais.

Para Lyons (1987: 163), “a propriedade essencial da dêixis (...) é que ela determina a

estrutura e a interpretação dos enunciados em relação à hora e ao lugar de sua ocorrência, à

identidade do falante e do interlocutor, aos objetos e eventos, na situação real de enunciação”. 

No caso específico das línguas de sinais, essa referência dêitica deve ser analisada de

maneira ainda mais ampla. Por se tratarem de línguas visuoespaciais, as construções textuais nas

línguas de sinais têm como referencial o produtor do texto, que usa a LIBRAS no momento da

enunciação. Por isso, nas línguas de sinais, qualquer ponto no espaço usado para fazer referência

ao que quer que seja (um lugar, uma pessoa, um objeto, um acontecimento) está sempre

relacionado ao posicionamento daquele que tem o ato de fala e tal posicionamento funciona como

o centro dêitico de todo o texto que se desenvolve.

A organização espacial das línguas de sinais apresenta possibilidades de estabelecimento

de relações gramaticais no espaço. No espaço em que são realizados os sinais, a introdução

nominal e o uso do sistema pronominal são fundamentais para que as relações sintáticas e

discursivas se estabeleçam: “Qualquer referência usada no discurso requer o estabelecimento de

um local no espaço de sinalização (espaço definido na frente do corpo do sinalizador),

observando várias restrições” (QUADROS e KARNNOP, 2004: 127).

A respeito do espaço de sinalização, citamos Lodi (2004: 293):

Todo enunciado em LIBRAS é realizado no espaço de enunciação: um semicírculo virtual cujo perímetro é usado para a realização de referência às pessoas do discurso nas situações discursivas com referentes não presentes ou presentes. O corpo do sinalizador deve situar-se dentro do raio do semicírculo e, nesse espaço, nas diferentes situações discursivas, podem ocorrer mudanças quanto a direção e a localização de seu corpo, a sinalização em direção a um lócus pré-determinado como marca de referência a uma pessoa e/ou objeto e a movimentação ocular para esse mesmo local (ao fazer referência à pessoa e/ou ao objeto ali referido).

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Essa dinâmica interdiscursiva pode ser representada a partir do seguinte esquema:

Esse espaço de enunciação existe em função da posição do enunciador. Por isso, pode-se

afirmar que a dêixis é uma das principais marcas de referenciação da LIBRAS.

Quadros e Karnnop (Id: 128-129) listam alguns mecanismos espaciais de referência

utilizados nas línguas de sinais. Dentre eles, podemos citar:

fazer o sinal em um local particular;

direcionar a cabeça, os olhos, ou mesmo o corpo (além, é claro, da apontação

propriamente dita com o dedo), para determinada localização onde, anteriormente,

convencionou-se situar um referente específico;

usar um verbo direcional (com concordância) ou um classificador incorporando os

referentes previamente introduzidos no espaço.

Na estrutura da narrativa, estes mecanismos de referenciação ficam bastante evidentes.

Para fazer referência a um dos personagens de uma narrativa, pode-se delimitar um local no

espaço, à direita do enunciador, por exemplo, onde se encontra imaginariamente o tal

personagem e, sempre que for necessário referir-se a ele ou dar-lhe a “voz” no discurso direto,

aquele ponto é usado como referência.

No caso de uma narrativa mais longa ou com muitos personagens, é sempre possível

utilizar o recurso da soletração (do nome do personagem) ou a repetição de um sinal (que se

refira ao personagem) para reafirmar que, em determinado ponto do espaço gramaticalmente

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previsto na LIBRAS, encontra-se a referência ao personagem X. Apontar para aquele ponto será

sempre recurso válido para a referência.

Como podemos ver, a referência, na língua de sinais, é marcada pela apontação

propriamente dita. Assim, se a apontação, que parte sempre do ponto de origem do enunciador

(com uma determinada movimentação de suas mãos, seu olhar ou seu corpo), é o recurso mais

produtivo para fazer referência em língua de sinais, é possível concluir que os dêiticos podem dar

pistas satisfatórias quanto ao entendimento de determinadas construções discursivas.

Em uma história com dois personagens, por exemplo, cada referente será representado,

normalmente, como estando dos lados direito e esquerdo do enunciador. Na LIBRAS, os

sinalizadores associam os referentes à sua localização no espaço, estando tais referentes

fisicamente presentes ou não: “Todos os referentes estabelecidos no espaço ficam à disposição do

discurso para serem referidos novamente através da apontação ostensiva ou da flexão verbal”

(QUADROS e KARNNOP, 2004: 115).

3.2.3 Predominância do discurso direto nas estruturas narrativas

 

Nas narrativas em LIBRAS, em geral, os procedimentos de referência utilizados recorrem

ao discurso direto, ou seja, é muito comum que o narrador “interprete” as ações dos personagens,

de modo a lhes dar “voz” no discurso. Para tal, podem-se utilizar uma série de mecanismos de

referenciação.

O direcionamento do olhar, as expressões faciais, a direção dos sinais e o movimentos de corpo do sinalizador quando as vozes dos personagens se fazem presentes, são importantes marcas discursivas da(s) pessoa(s) do discurso e indicativas das separações das vozes do narrador e dos personagens (LODI, 2004: 307).

Para assumir o papel de um dos personagens, o narrador dispõe de estratégias de

movimentação, mais ou menos intensas, para que o interlocutor da narrativa possa identificar que

aquela “voz” não pertence mais ao narrador. Em Português, é possível representar essa mudança

de “vozes” através das marcações gráficas (travessões e aspas) e do uso de pronomes e verbos

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(substituição da 3ª pela 1ª pessoa do discurso). Em LIBRAS, tais marcações podem relacionar-se

à movimentação do corpo e da cabeça do narrador e à direção do olhar combinados a

determinadas expressões faciais, a partir das quais se percebe que, naquele instante, o narrador dá

“voz” aos personagens da narrativa.

Por exemplo, quando o narrador apresenta a história, os personagens ou ainda quando faz

algum comentário no meio da narrativa, mantém seu olhar na direção do interlocutor e seu corpo

na posição central do espaço de enunciação. Essa é a representação da “voz” do narrador.

Se, por outro lado, o narrador passar a dar voz aos personagens da narrativa, ele pode

recorrer a duas estratégias bastante comuns na LIBRAS:

a) Movimento do corpo:

Ao narrar uma história em LIBRAS, o enunciador dispõe de todo o seu corpo para

representar as ações narradas. Movimentando-se mais para um lado ou para o outro, respeitando

o espaço de enunciação, é possível que o narrador assuma o papel de algum dos personagens.

Muitas vezes, essa movimentação é sutil e caracterizada por uma leve inclinação do tronco do

enunciador para um lado e para outro, representando, por exemplo, um diálogo entre dois

personagens.

Além disso, quando o enunciador deixa o papel de narrador para assumir o papel de

algum dos personagens da narrativa, seu corpo movimenta-se com maior liberdade no espaço de

enunciação.

b) Direção do olhar:

“O olhar é usado, em LIBRAS, como um importante diferenciador das referências de

segunda e terceira pessoas do discurso” (LODI, 2004: 299). Quando o narrador passa a assumir o

papel de um dos personagens, seu olhar não mais se direciona ao interlocutor, mas a outro ponto.

Se for o caso de um diálogo entre dois personagens da narrativa, o olhar daquele que estiver com

o ato de fala no momento pode ser direcionado para um ponto no espaço em que se pressuponha

estar o outro personagem, interlocutor daquele diálogo. Um pequeno desvio de olhar já é capaz

de indicar que houve mudança no papel do narrador.

Na representação de um diálogo, tanto o direcionamento do olhar quanto a movimentação

mostram para o interlocutor quem está falando com quem. Nas narrativas em LIBRAS, para

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representar um diálogo entre dois personagens que representem “mãe” e “filho”, como é o caso

da narrativa utilizada em nossa pesquisa, o enunciador pode levar em conta a estatura dos

personagens. Ao representar o personagem “filho” (que pressupomos ser menor que sua mãe) o

enunciador pode direcionar seu olhar e sua cabeça para cima, ao mesmo tempo em que, se o

personagem a ser representado no diálogo for a mãe, o olhar e a cabeça do enunciador passam a

se voltar para baixo. Nesse caso, a referência aos personagens é feita como se eles estivessem

presentes no espaço de sinalização.

Como podemos observar com as reflexões propostas nesse capítulo, há mecanismos de

referenciação em LIBRAS tão produtivos quanto os que há em Língua Portuguesa. É preciso

reconhecer as estruturas que fazem o texto em LIBRAS progredir para conseguir compreendê-lo

de forma completa.

Além disso, de posse do conhecimento sobre como se organiza discursivamente o texto

em LIBRAS, fica mais fácil compreender algumas especificidades que aparecem nos textos

escritos em Língua Portuguesa pelos surdos, como se pode perceber pelas análises feitas no

próximo capítulo.

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4. ANÁLISE DO CORPUS

Antes de iniciarmos a análise dos textos produzidos pelos alunos surdos, acreditamos ser

necessário fazer algumas considerações a respeito do desenvolvimento da pesquisa e da

constituição do corpus, tendo em vista que trabalhos que analisam a produção escrita de alunos

surdos ainda são poucos e experimentais. Por isso, faremos, a seguir, um relato sobre os passos

que nossa pesquisa seguiu, levando em conta erros, acertos e novos rumos que, a nosso ver, são

definidores para a direção que nosso trabalho acabou tomando.

4.1 Relato de pesquisa

Nosso trabalho parte da ideia inicial de analisar mecanismos de referenciação utilizados

por alunos surdos em suas produções escritas. Vale lembrar que o único veículo escrito de

comunicação dos surdos é a Língua Portuguesa, uma vez que sua língua materna (a língua de

sinais) é gestual-visual e, ainda que já existam pesquisas avançadas na direção da criação de uma

representação escrita para essa língua (SignWriting5), a comunidade surda acessa o mundo pela

leitura/escrita de textos (bilhetes, e-mails, outdoors, notícias...) em Português.

Assim, definimos que nosso corpus seria composto por textos escritos em Português por

alunos surdos. Optamos por trabalhar com textos narrativos, porque, no que diz respeito à

sequência cronológica dos fatos ocorridos e à descrição das cenas, percebemos, nos textos de

nossos alunos, uma grande influência da LIBRAS sobre a Língua Portuguesa, principalmente

pela tentativa de reproduzir, no texto escrito, cada detalhe da narrativa em LIBRAS, inclusive em

relação à retomada dos personagens ao longo do texto, como se pode perceber nas análises feitas

mais adiante.

Restava, então, a escolha da proposta de escrita que faríamos aos alunos para que eles

produzissem tais textos. Depois de uma longa pesquisa, selecionamos um vídeo produzido por

                                                            5SignWriting é um sistema de escrita das línguas de sinais (ou gestuais, como são chamadas). Trata-se de uma representação gráfica, icônica, dos sinais utilizados para a comunicação gestual-visual. Foi criado na década de 70, durante algum tempo foi desprezado e hoje toma forma nova nas pesquisas.

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um surdo, em língua brasileira de sinais, disponibilizado no youtube6, e sugerimos aos alunos

que, após assistirem ao vídeo escolhido, escrevessem um texto, em português, que

correspondesse àquela narrativa feita em LIBRAS.

Este trabalho inicial foi muito interessante e serviu para nos mostrar algo que acabou se

tornando um dos principais pilares de nossa análise: a influência que a língua de sinais exercia na

escrita dos sujeitos surdos. Muitos “erros” cometidos pelos alunos surdos, ao escrever seus textos

em Português, tinham estreita relação com a estrutura correspondente em língua de sinais.

Entretanto, depois dessa análise inicial, esbarramos em um aparente problema: não

tínhamos um texto original em Língua Portuguesa de onde pudesse ter surgido a narrativa em

LIBRAS disponibilizada na internet. Dessa forma, não poderíamos comparar nem os textos

escritos por surdos com um possível original produzido por um falante de Língua Portuguesa,

nem a estrutura do texto em Português com a estrutura do texto em língua de sinais. Pensamos até

mesmo em recorrer a um intérprete que “traduzisse” o vídeo em LIBRAS para o português. Seria

um falante da Língua Portuguesa construindo um texto em sua língua materna, o que já serviria

como ponto de comparação. Todavia este seria um texto artificial, uma vez que o original surgira

já em LIBRAS e, por isso mesmo, apresentava uma estrutura típica da língua de sinais. O texto

do intérprete seria, na verdade, uma adaptação, e, inicialmente, a palavra adaptação não deveria, a

nosso ver, fazer parte de nossa pesquisa.

Partimos, então, para uma outra alternativa. Escolhemos um conto de Carlos Drummond

de Andrade e filmamos a “tradução” deste conto para a língua de sinais. Este ponto da pesquisa

foi muito delicado, pois nos colocou diante de um impasse: contar com um intérprete (sujeito

ouvinte, com proficiência comprovada em Língua Portuguesa e língua de sinais) ou com um

monitor surdo (um aluno extremamente competente em Língua Portuguesa, mas que tem como

primeira língua a LIBRAS). Por experiências anteriores de leitura de textos em sala de aula e

levando em conta a especificidade de nossa pesquisa, optamos inicialmente pelo intérprete, pois

desejávamos, naquele momento, que o texto em LIBRAS que fosse “chegar” aos alunos surdos

fosse o mais fiel possível à estrutura da Língua Portuguesa presente no texto original e não uma

“adaptação” do texto de Drummond. Levando em conta experiências anteriores de sala de aula,

sabíamos que o monitor surdo trataria de teatralizar o texto original de modo a torná-lo mais

                                                            6 http://www.youtube.com/watch?v=qRyTMrrPyfM

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compreensível para o aluno. Definitivamente, de acordo com o que pensávamos naquele

momento, qualquer alteração estrutural no texto original seria prejudicial às nossas intenções.

É nesse ponto que está a grande virada de nossa pesquisa. Após ter gravado o intérprete

“traduzindo fielmente” o texto original, como numa tradução simultânea da Língua Portuguesa

para a língua de sinais, sem a possibilidade de muitas adaptações (um ajudante leu o texto

original enquanto o intérprete o traduzia para a LIBRAS), fomos para a sala de aula e ficamos

diante de alunos de olhos arregalados e com rostos que manifestavam uma total incompreensão.

Eles assistiram ao vídeo por três vezes e, ao final, continuavam sem entender nada.

Evidentemente, os alunos compreendiam cada sinal, afinal eram de LIBRAS, língua com a qual

eles estão extremamente familiarizados, que usam todos os dias nas mais diferentes situações

comunicativas. Mas aquela não era uma situação comunicativa e talvez possamos dizer que nem

seja a verdadeira língua de sinais. Era algo tão artificial para os alunos, que não produziu nenhum

significado.

Ainda sem saber se a causa de tamanho estranhamento era a artificialidade do texto ou

uma possível dificuldade de compreensão que o texto de Drummond poderia provocar até mesmo

nos leitores ouvintes, fomos buscar contato com o monitor surdo. Explicamos a situação para ele,

incluindo nossa frustração e ele aceitou refilmar o texto. O monitor surdo leu o texto original de

Drummond e, a partir dessa leitura, criou livremente o texto correspondente7 em LIBRAS. Dessa

vez, aceitamos a temida teatralização, afinal parecia-nos que a tão repudiada “adaptação” poderia

ser a solução para que aquele texto fizesse sentido para nossos alunos.

Na semana seguinte, estávamos com a nova gravação, dessa vez bem mais curta e até um

tanto quanto divertida. Passamos o filme em sala uma única vez e lá estavam os alunos rindo,

interagindo com o texto, comentando-o. Dessa vez, eles compreenderam o texto, porque aquele

era verdadeiramente um texto em língua de sinais. Inclusive porque a teatralização e algumas

adaptações eram não só necessárias como imprescindíveis para que se pudesse considerar aquele

vídeo como um texto narrativo em LIBRAS.

A partir desse novo rumo, portanto, tivemos que tomar algumas decisões metodológicas.

Abandonamos o vídeo feito com o intérprete e utilizamos apenas o vídeo feito com o monitor

surdo. Os alunos surdos assistiram ao texto em LIBRAS e, a partir dessa observação e mesmo

dos comentários que eles fizeram entre si ao longo da narrativa, criaram seus próprios textos em                                                             7 O vídeo pode ser acessado através do link: http://www.youtube.com/watch?v=QAVXEnMTBlU

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Língua Portuguesa, com a orientação de que os textos escritos deveriam ser os mais fiéis

possíveis à narrativa que eles acabavam de assistir em LIBRAS.

Tínhamos, então, os seguintes diferentes textos: o original em Língua Portuguesa de

Carlos Drummond de Andrade, o texto em LIBRAS produzido pelo monitor surdo e os textos em

Língua Portuguesa produzidos pelos alunos surdos.

Analisando todos esses textos, percebemos que aqueles produzidos em Português pelos

alunos surdos encontravam-se fortemente influenciados pela versão em LIBRAS. Essa

constatação direcionou nossa pesquisa a respeito das influências da língua de sinais no texto em

Português escrito pelo surdo e nos conduziu ao que pensamos ser o modelo mais adequado em

relação ao ensino de Língua Portuguesa para os alunos surdos. É preciso reconhecer que há

particularidades na língua de sinais que precisam ser levadas em conta não só na leitura que os

professores fazem dos textos de alunos surdos, como também na elaboração de materiais e nas

estratégias de ensino utilizadas pelos professores de Língua Portuguesa pra surdos.

4.2 Metodologia de análise

Antes, ainda, de apresentarmos a análise dos textos produzidos pelos alunos surdos, é

necessário explicitar algumas questões no que se refere à metodologia utilizada e aos aspectos

observados na pesquisa.

Como já explicamos, nosso corpus é constituído por 9 textos, produzidos por alunos

surdos, estudantes do 3º ano do Ensino Médio do Instituto Nacional de Educação de Surdos, no

ano de 2010. Além desses textos, trabalhamos, também, com o texto original de Carlos

Drummond de Andrade (“A incapacidade de ser verdadeiro”), que serviu de ponto de partida para

nossa pesquisa.

No estudo que apresentamos nesta tese, focaremos nossa atenção para a referenciação,

embora saibamos que há outros inúmeros aspectos a serem investigados e que podem ser objeto

de novas pesquisas. Para efeito de organização, seguem, a seguir, os aspectos de referenciação e

progressão textual que observaremos em nossa análise:

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a) anáforas diretas que retomam as três personagens do texto: “Paulo”, mãe” e “médico”.

Tais anáforas podem se dar por repetição, por nominalizações, pelo uso de pronomes

pessoais e de tratamento, pelo uso de pronomes possessivos e por elipses em posição pré e

pós-verbal.

Os alunos surdos têm muita dificuldade na conjugação verbal do Português. Então, no que

se refere às elipses em posição pré-verbal, convencionamos identificar as pessoas do discurso

observando o contexto da frase e não apenas a pessoa (1ª, 2ª ou 3ª) em que o verbo aparece

conjugado. Isso acontece bastante nos discursos direto e indireto, em que os alunos acabam

misturando as pessoas do discurso na organização da frase.

b) anáforas indiretas encapsuladoras de partes do texto.

Tais anáforas ocorrem, nos textos pesquisados, por meio de pronomes (“isso”, “o”) e de

palavras rotuladoras, como “mentira”, “verdade”, “problema”. Além disso, analisamos como, em

cada texto, se apresenta o desfecho (“um caso de poesia”), também, um exemplo de anáfora

indireta encapsuladora.

Observamos, ainda, anáfora indireta associativa, mesmo que estes casos ocorram em

menor número nos textos pesquisados.

c) ocorrências de discurso direto e indireto e problemas na estruturação desses discursos

decorrentes da mistura entre as pessoas gramaticais.

Observamos, em nossa análise, os tipos de discurso utilizados pelos alunos e a maneira

como são estruturados, levando em conta as marcas linguísticas de cada um deles e a mistura das

pessoas gramaticais nas frases.

Os diálogos entre Paulo e sua mãe e entre a mãe de Paulo e o médico aparecem em todos

os textos de nosso corpus, mesmo que não apareçam frequentemente no texto original de

Drummond. No texto em LIBRAS, tais diálogos são imprescindíveis. Por isso, entendemos que a

organização dos discursos seja um dos principais pontos da pesquisa, inclusive influenciando

outros itens de análise, como as anáforas, por exemplo. A maior parte dos alunos surdos

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apresenta dificuldade em organizar os diferentes tipos de discurso em Português e pensamos que

isso decorre da organização desses discursos em LIBRAS.

Todos os três aspectos anteriormente mencionados são a base de nossa pesquisa e,

possivelmente, explicam as inúmeras questões que aparecem nos textos escritos pelos alunos

surdos com relação à referenciação. Em muitos textos de nosso corpus, percebemos que os

alunos possuem algum conhecimento da estrutura da Língua Portuguesa, e isso fica evidente nas

suas tentativas de construir frases inexistentes em LIBRAS, mas que seriam adequadas para a

estrutura do Português. Entretanto, como também se pode perceber com as análises que se

seguem, a influência da LIBRAS ainda é muito fortemente marcada nos textos desses alunos, o

que, de certa forma, justifica os problemas de estruturação sintática que aparecem em tais textos.

Além desses aspectos, acreditamos ser necessário, ao longo das análises, tecer

comentários sobre outras questões que aparecem nos textos do corpus, como, por exemplo, a

presença de marcadores da sequência temporal da narrativa ou de elementos de contextualização

diretamente relacionados ao texto em LIBRAS. Tais questões, ainda que não estejam diretamente

relacionadas à referenciação, influenciam a progressão textual e são decisivas no entendimento

dos textos escritos pelos alunos surdos por parte dos leitores.

Sendo assim, em nossa análise, observamos também a maneira como o aluno surdo

estruturou o texto de modo a organizar cronologicamente os eventos ao longo da narrativa e as

marcas linguísticas que ele utilizou para isso (paragrafação, marcadores temporais e locativos,

mudanças de cenas etc.). Além disso, também terão destaque, na análise, elementos que, apesar

de não aparecerem no texto original de Drummond, tornam-se necessários na versão em LIBRAS

e, consequentemente, acabam aparecendo nos textos escritos pelos alunos surdos.

Dividimos os 9 textos de nosso corpus a partir das semelhanças que apresentavam quanto

à organização discursiva e à sequência narrativa. Assim, chegamos à separação dos textos em três

grupos:

GRUPO I: Textos com estratégias de referenciação bem empregadas;

GRUPO II: Textos com alguns problemas no uso das estratégias de referenciação e na

estruturação sintática das frases;

GRUPO III: Textos seriamente comprometidos quanto à organização.

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No primeiro grupo, incluem-se dois textos em que os alunos demonstram ter profundo

conhecimento da Língua Portuguesa, inclusive das estratégias de referenciação, empregando-as

de maneira produtiva e coerente. Os problemas linguísticos são poucos e, em geral, não

comprometem a leitura e a compreensão desses textos.

No segundo grupo, cinco alunos demonstram, de diversas formas, conhecer alguns dos

mecanismos de referenciação do texto escrito em Português. Contudo, o uso de tais mecanismos

mostra-se comprometido, ou seja, o aluno sabe que há determinado recurso, mas não sabe utilizá-

lo no texto. Ocorrem, assim, problemas na compreensão textual, sobretudo em relação às pessoas

do discurso retomadas, nos textos, através dos discursos direto e indireto, que, muitas vezes,

aparecem em frases de estrutura sintática confusa. Esses cinco textos são prototipicamente

característicos de indivíduos surdos.

Incluímos, por fim, no terceiro grupo, dois textos em que os alunos demonstram

pouquíssimo conhecimento das estratégias de referenciação do Português; há mais palavras e

frases desconectadas e muita repetição vocabular. Os textos do terceiro grupo evidenciam sérios

problemas de organização e, consequentemente, apresentam-se muito confusos para o leitor.

Parece-nos que, nesse caso, não se trata de um problema no uso das estratégias de referenciação,

mas sim de um problema de desconhecimento dessas estratégias, o que faz com que esse aluno

surdo tenha poucos recursos linguísticos para fazer seu texto escrito progredir.

Cada texto, dividido nos grupos, será analisado no todo e com destaque para os objetos de

discurso “Paulo”, “mãe” e “médico”. Ao final, apresentaremos algumas tabelas e gráficos

comparativos para destacar questões que foram evidenciadas em nossa análise e que podem

apontar um caminho no ensino de Língua Portuguesa escrita para alunos surdos.

Por fim, é preciso, ainda, fazer algumas considerações sobre o perfil dos alunos surdos

informantes de nossa pesquisa. Todos os 9 alunos ficaram surdos antes do 1º ano de vida, sendo

que, alguns deles já nasceram surdos. Conforme seus registros escolares, além da surdez, nenhum

deles apresenta outro comprometimento físico ou psicológico.

Em relação à oralização, o grupo não é homogêneo: alguns alunos são plenamente

oralizados, sendo capazes de “ler lábios” e de falar; outros são parcialmente oralizados, ou seja,

falam um pouco e, algumas vezes, fazem a leitura labial com alguma dificuldade; e outros, ainda,

não são oralizados, sendo sua única forma de comunicação a LIBRAS. Alguns dos alunos sempre

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estudaram em salas de aula apenas com alunos surdos (como ocorre no INES), outros vieram de

contextos de salas de aula inclusivas, em que se encontravam “misturados” a alunos ouvintes.

Entretanto, nenhuma dessas diferenças foi relevante para nossa pesquisa, uma vez que

esses diferentes perfis encontram-se “misturados” nos grupos de textos que analisamos. Por

exemplo, no grupo I, o autor do texto 2 é um aluno não oralizado, que estudava, no Ensino

Fundamental, em salas de aula mistas (com alunos surdos e ouvintes). Já o autor do texto 2 é um

aluno completamente oralizado que estudou no INES, ou seja, em salas de aula apenas com

alunos surdos, desde as séries iniciais do Ensino Fundamental.

Apesar de haver, entre os alunos, características comuns e outras que os diferenciam,

nenhuma delas justificou a maior ou menor proficiência desses alunos em Língua Portuguesa, a

não ser o maior interesse pelo aprendizado, o incentivo familiar e a constante busca pelo

conhecimento, somados, possivelmente, a uma aptidão para o aprendizado de outra língua. Por

isso, não nos detivemos a uma análise mais específica do perfil de cada um dos alunos

informantes da pesquisa, mas sim à apreciação dos textos produzidos por eles.

4.3 Análise dos textos

Iniciamos nossa análise com o conto de Drummond que deu origem à versão em LIBRAS

a partir do qual os alunos produziram suas redações. Não discutiremos aqui opções estilísticas e

literárias, pois não é o enfoque de nossa pesquisa. Da mesma forma, as generalizações feitas em

relação às estratégias presentes no conto servem apenas como uma espécie de comparação entre

as estratégias de referenciação usadas por um usuário da Língua Portuguesa que a tem como

primeira língua e um usuário da mesma língua, mas que tem a LIBRAS como L1.

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A incapacidade de ser verdadeiro (Carlos Drummond de Andrade)

Ao longo do texto de Drummond, os personagens Paulo, mãe e médico são retomados

variadas vezes e por meio de diferentes estratégias. O personagem “Paulo”, por exemplo, é

retomado 12 vezes, por meio de sintagmas nominais (“o menino”, “este menino”), pronomes (ele,

o) ou mesmo através da elipse anterior a verbos. Esse processo de ativação e reativação anafórica

de referentes é bastante explícito no texto narrativo pela referência que, a todo tempo, se faz aos

personagens.

É interessante, também, observar o que acontece com a personagem “mãe”. Por vezes,

faz-se referência a ela explicitamente (“sua mãe”, “a mãe”, “Dona Coló”). Entretanto, há vários

outros momentos no conto em que a referência à mãe é feita de maneira implícita. Em trechos

como “...chegou em casa dizendo...” ( linha 1), “...ele veio contando...” (linha 3) ou “...foi

proibido de jogar futebol...” (linha 6), percebe-se nitidamente a presença da mãe como um dos

personagens envolvidos nas ações expressas pelos verbos em cada um dos trechos. Cavalcante

(2011) já salienta essa possibilidade de que o referente seja depreendido pelo contexto,

independente de sua presença explicitamente linguística no cotexto.

Como elementos de progressão do texto na linha do tempo, Drummond faz uso de

expressões como “na semana seguinte”, “dessa vez”, “quando”, “após”. Nesse caso, o

encadeamento tópico é bem marcado pela sequência de ações à medida que o tempo vai

passando, como é próprio nos textos narrativos.

Paulo tinha fama de ser mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que tinha visto no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. Sua mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que tinha caído no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Dessa vez, Paulo não só ficou sem sobremesa, como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias. Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da terra passaram pela chácara de Dona Chica e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça: — Não há nada a fazer, Dona Coló. Esse menino é mesmo um caso de poesia.

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Outro aspecto que precisa ser observado no conto de Drummond é o uso de elementos

anafóricos indiretos que fazem referência a partes do texto. Na última linha do 4º parágrafo

aparece o sintagma “o exame”, numa clara definição do que o médico fez em seu consultório,

após a chegada da mãe e de Paulo. Não há descrição das ações ocorridas, mas nossos

conhecimento prévios nos fazem crer que houve ações que podem ser caracterizadas como um

exame.

Além disso, ao final do texto, o sintagma nominal “um caso de poesia” encapsula todas as

ações de Paulo ao longo da narrativa, desfazendo a ideia de que ele era mentiroso. A oposição

mentira X poesia é um importante elemento de compreensão do conto de Drummond, sendo

decisiva na interpretação que os alunos surdos revelam em seus textos, como se poderá

comprovar na análise que iniciamos no próximo item.

Como podemos observar, o texto original de Drummond utiliza-se de inúmeros recursos

linguísticos capazes de fazer o texto progredir. Esses recursos também serão observados, a seguir,

nos textos escritos pelos alunos surdos. Entretanto, é nas particularidades do uso das estratégias

de referenciação que reside nossa pesquisa.

Partiremos, agora, para a análise dos nove textos produzidos pelos alunos surdos.

 

4.3.1 Grupo I: Textos com estratégias de referenciação bem empregadas

 

Neste grupo, aparecem dois textos em que as estratégias de referenciação utilizadas são

bastante eficientes, contribuindo como um elemento facilitador para o entendimento dos textos

por parte dos leitores. Assim, os textos 1 e 2, a seguir, destacam-se em relação aos demais por

apresentarem sequência narrativa clara, estruturação correta dos discursos direto e/ou indireto e

anáforas diretas e indiretas bastante produtivas.

 

 

 

 

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Texto 1: As poesias de Paulo

O texto 1 foi produzido por um aluno surdo que possui um excelente conhecimento

textual da Língua Portuguesa, como podemos observar, dentre outros aspectos, pelas estratégias

de referenciação utilizadas. Apesar de algum excesso nas repetições, o aluno demonstra ter um

vocabulário bastante rico e conhecer mecanismos avançados para fazer o texto progredir. Além

disso, ainda que não seja nosso objeto de pesquisa, é importante ressaltar que o aluno reconhece

as regras de regência e concordância da Língua Portuguesa, como pode ser observado em “Ela

decidiu levar seu filho ao médico” (linha 6) e “O médico afirma à mãe que Paulo está ótimo”

(linhas 7-8), sem contar a adequação na conjugação dos verbos.

Ao construir, já no título, o sintagma “as poesias de Paulo”, o aluno demonstra ter

domínio da estrutura de subordinação por meio da preposição “de” e, além disso, dá, ao texto, um

título coerente com o assunto desenvolvido. Ao intitular sua narrativa como “As poesias de

Paulo”, o aluno surdo explicita o que, no texto de Drummond, só se evidencia no final: o fato de

Paulo ser um poeta e não um mentiroso.

Ainda no que se refere às estruturas subordinadas, podem-se destacar construções como

“Ela acha que o Paulo estaria mentindo” (linha 2) e “...e descobre que nada mal na saúde dele”

(linha 7). Nesses trechos, o aluno usa adequadamente a conjunção “que” em estrutura

subordinativa. Além disso, é possível observar frases como “O médico afirma à mãe que Paulo

está ótimo. Ele diz que o Paulo só conta poesias” (linhas 7-8), nas quais o discurso indireto se

constrói de forma adequada.

A respeito da estrutura dos discursos, no texto 1, não se observam construções de discurso

direto e apenas nas duas frases destacadas anteriormente há discurso indireto. Apesar de a versão

O Paulo viu o dragão lançando fogos no campo. O Paulo chamou a mãe para contar o que viu, mas ela não acredita. Ela acha que o Paulo estaria mentindo. A mãe decidiu castigar ele. O Paulo foi para a janela ver a lua. De repente, ele vê a lua cair. Ele foi correr atrás, mas encontrou o queijo. Apareceu a borboleta gigante e inseto leva o Paulo viajar pela noite maravilhosa. O Paulo contou tudo o que viu para sua mãe. Mais uma vez, ela não acredita. Ela decidiu levar o filho ao médico. O médico examinou o Paulo e descobre que nada mal na saúde dele. O médico afirma à mãe que Paulo está ótimo. Ele diz que o Paulo só conta poesias. A mãe agora acredita nele.

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em LIBRAS ser repleta de diálogos, o que se observa no texto 1 é uma narrativa em 3ª pessoa

muito bem construída sem necessidade de explicitar os diálogos entre os personagens.

A sequência narrativa é marcada no texto 1 não só pela mudança de parágrafos, refletindo

uma mudança de espaço narrativo, mas também por marcas linguísticas explícitas como “Mais

uma vez, ela não acredita” (linhas 5-6) e “A mãe agora acredita nele” (linha 9).

Quanto às relações anafóricas retomando o objeto de discurso “Paulo”, ativado na

primeira linha do texto, aparecem:

8 vezes a repetição do sintagma nominal “O Paulo”;

5 vezes o uso do pronome “ele”, sendo, em duas delas, na contração com as preposições

“de” e “em”: “...nada mal na saúde dele” (linha 7) e “A mãe agora acredita nele” (linha 9);

1 vez o uso do sintagma nominal “o filho”;

1 vez o uso do pronome possessivo “sua” (=dele): “O Paulo contou tudo o que viu para

sua mãe” (linha 5);

5 elipses: 3 delas em posição anterior a verbo, como acontece em “Ele foi correr atrás,

mas (ele) encontrou o queijo” (linhas 3-4); e 2 delas em posição de complemento verbal,

como em “Mais uma vez, ela não acredita (nele)” (linhas 5-6)

A respeito do objeto de discurso “a mãe”, ativado na primeira linha do texto, aparecem,

no texto 1, as seguintes anáforas diretas:

3 vezes a repetição do sintagma nominal “a mãe”;

1 vez o uso do sintagma nominal “sua mãe”;

4 vezes o uso do pronome “ela”;

2 elipses posteriores a verbos, em posição de complemento, como, por exemplo, em: “Ele

diz (para a mãe) que o Paulo só conta poesias” (linha 8)

Inicialmente na posição de complemento verbal (“Ela decidiu levar o filho ao médico” –

linha 6), o objeto de discurso “o médico” é ativado no final do primeiro parágrafo e, quando

retomado, desempenha papel de sujeito das ações verbais de examinar, descobrir, afirmar e dizer.

Como anáforas diretas em relação ao objeto de discurso “o médico” aparecem:

2 vezes a repetição do sintagma “o médico”;

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1 vez o uso do pronome “ele”;

1 elipse em posição anterior a verbo: “O médico examinou o Paulo e (o médico) descobre

que nada mal...” (linha 7)

Fato interessante também é notado quando o objeto de discurso “a borboleta” é retomado,

logo em seguida, pelo hiperônimo “inseto”. Isso mostra um conhecimento vocabular e de

mecanismos de coesão e coerência do texto por parte do aluno pouco visto em textos escritos por

estudantes surdos.

Além disso, o aluno demonstra conhecimento de mecanismos de anáfora indireta

encapsuladora ao, por duas vezes, retomar partes de texto com o pronome demonstrativo “o”,

como se pode observar em: “O Paulo chamou a mãe para contar o que viu...” (linhas 1-2) e “O

Paulo contou tudo o que viu para sua mãe” (linhas 5-6).

Ao final do texto, o aluno trata claramente da questão poética do personagem (“...Paulo só

conta poesias”) e acrescenta uma passagem que não aparece ao final do texto original de

Drummond: “A mãe agora acredita nele” (linha 9). Isso se dá pelo fato de que, na versão em

LIBRAS, é necessário contextualizar algumas situações e, por isso, após o diagnóstico médico,

acontece, ainda, a “cena” da mãe demonstrando entender finalmente o problema do filho.

Esses elementos contextuais próprios do texto em LIBRAS ainda aparecem em “O

médico examinou o Paulo...” (linha 7). No texto de Drummond, a ação de examinar fica

implícita, bastando citar que “após o exame...” o médico diagnosticou o problema de Paulo como

um caso de poesia. Em LIBRAS, é necessário explicitar todas as ações, até porque não existe

diferença entre os sinais do verbo “examinar” e do substantivo abstrato derivado dele: “exame”.

Nesse caso, o surdo identifica a ação verbal e a explicita em seu texto escrito.

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Texto 2: O menino poético

No texto 2, é possível observar uma marcação muito explícita do espaço da narrativa. À

medida que os eventos vão se desenrolando, o aluno, além de indicar a sequência temporal

através da mudança de parágrafos, indica os locais em que cada ação ocorre, ressaltando,

inclusive, os deslocamentos. No início, Paulo está jogando futebol “no campo” e, depois, o

menino corre “até sua mãe”. Posteriormente, a mãe o leva “para seu quarto”. Em seguida,

algumas ações se desenrolam e o menino sai da janela, vai até o quintal (retomado, logo depois,

pelo advérbio “lá”), persegue uma borboleta até que chega a um “lugar cheio delas” e voa “ao

céus”. Por fim, o menino “chegou para sua mãe” e é levado “para o médico”. A sequência

espacial que se evidencia ao longo do texto é a principal marca da sequência temporal em que se

desenvolvem as ações.

Além de um vocabulário amplo, o aluno demonstra ter bastante conhecimento da estrutura

da Língua Portuguesa. Logo no título, aparece uma construção que utiliza um adjetivo para

definir as ações do menino ao longo do texto: “O menino poético”. Assim como no texto 1,

observa-se uma estratégia semelhante à do texto original de Drummond, na antecipação, no

título, do assunto principal do texto.

Esse conhecimento satisfatório da estrutura da Língua Portuguesa pode ser observado,

inclusive, na construção do objeto de discurso “o menino que se chama Paulo”, na primeira linha

do texto. Posteriormente, esse objeto de discurso é retomado através das seguintes anáforas

diretas:

1 vez o uso do nome do menino (“Paulo”);

O menino que se chama Paulo, foi jogar futebol no campo, viu os dragões se guerrerando, correu até sua mãe disse o que acontecido. A mãe disse: - O que menino? Você está mentindo? A mãe levou para seu quarto e disse: - Vai ficar de castigo por 15 dias sem doce e futebol. O menino triste, ficou na janela olhando para o céu, derepente ele ver a lua caindo no seu quintal, foi até lá, pegou a lua, viu que não era a lua, era o queijo e comeu passeando pelo jardim uma borboleta deu de cara e voou, o menino perseguiu a borboleta, chegando num lugar cheio delas, se formou um tapete levou o menino para voar ao céus.

Paulo chegou para sua mãe e contou o que tinha acontecido, a mãe se estranhou, levou para o médico e examinou, mas o médico disse que ele não tinha nada, mas o menino só fala poesia.

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4 vezes a repetição do sintagma nominal “o menino”;

1 vez o uso do sintagma nominal “o menino triste”;

2 vezes o uso do pronome “ele”;

1 vez o uso do pronome de tratamento “você”, no discurso direto;

2 vezes o uso do pronome possessivo “sua” e 1 vez o uso de “seu”, nos sintagmas “sua

mãe” (linhas 2 e 9) e “seu quarto” (linha 3)

14 elipses, sendo 10 delas em posição de sujeito da ação verbal, como em “...(ele) correu

até sua mãe (ele) disse o que acontecido...” (linha 2); 3 delas em posição de objeto direto,

como em “A mãe levou (ele) para seu quarto...” (linhas 3-4); e 1 delas referente ao

pronome de tratamento “você”, no uso do discurso direto: “(Você) Vai ficar de castigo...”

(linha 4)

Como anáforas diretas do objeto de discurso “sua mãe”, ativado na segunda linha do

texto, aparecem:

3 vezes o sintagma nominal “a mãe”;

1 vez o sintagma nominal “sua mãe”;

5 elipses: 2 anteriores a verbos, em posição de sujeito e 3 em posição de complemento

verbal, como ocorre em “... mas o médico disse (para ela) que ele não tinha nada...” (linha

10)

O objeto de discurso “o médico” é ativado na penúltima linha do texto e é retomado

apenas duas vezes:

1 vez através da repetição do sintagma nominal “o médico”;

1 elipse anterior a verbo, em posição de sujeito da ação verbal: “...levou para o médico e

(o médico) examinou...” (linha 10).

Além das anáforas referentes aos três personagens citados, ocorre, ainda, a retomada do

objeto de discurso “borboleta” por meio do pronome “elas”: “...chegando num lugar cheio delas”.

É possível notar, também, o uso do pronome demonstrativo “o” como anáfora indireta

encapsuladora em construções como “...correu até sua mãe disse o que acontecido” (linha 2), em

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que o pronome demonstrativo sublinhado retoma toda a porção de texto anterior, em que se narra

a cena dos dragões “guerreando”. A mesma estratégia ocorre, novamente, no último parágrafo.

Observamos, ainda, que o aluno faz uso adequado dos dois tipos de discurso (direto e

indireto). Nas duas últimas linhas do texto, há uma construção de discurso indireto, através do

uso da partícula “que” como elemento de subordinação: “...o médico disse que ele não tinha

nada...”. Já no segundo parágrafo, há duas “falas” da mãe de Paulo em forma de discurso direto,

marcadas pelo uso dos dois pontos (:) e do travessão (−).

No que se refere ao diálogo apresentado no segundo parágrafo, ainda é possível perceber

que estamos diante de um elemento de contextualização. No conto de Drummond, não aparecem

essas “falas” da mãe de Paulo, mas, no texto em LIBRAS, o diálogo é explicitado por uma

necessidade da própria língua de sinais. Por isso, no texto do aluno surdo, por vezes, é necessário

que se explicitem cenas como esta.

Outros elementos de contextualização ainda podem ser encontrados no primeiro parágrafo

(quando se faz referência a um campo de futebol, que não aparece no conto) e no último

parágrafo, em que, assim como no texto 1, o aluno trata da ação de examinar de maneira direta:

“...(o médico) examinou...” (linha 10).

4.3.2 Grupo II: Textos com alguns problemas no uso das estratégias de referenciação e na

estruturação sintática das frases

 

Fazem parte deste grupo cinco textos cujas características são bastante semelhantes:

estruturação confusa dos discursos direto e indireto, uso variado de elementos de

contextualização (vinculados ao texto em LIBRAS ou ao conhecimento de mundo do aluno),

alguns problemas na organização da sequência narrativa e um considerável número de repetições

das anáforas referentes aos três personagens da narrativa – Paulo, a mãe e o médico.

Apesar de alguns problemas evidentes, acreditamos que os textos do grupo II devam ser

considerados bons, uma vez que é possível, de maneira geral, compreender a história narrada e,

se o leitor possui um mínimo conhecimento de LIBRAS, consegue, inclusive, imaginar o que o

surdo “quis dizer” em determinados trechos que ferem a norma do Português. Além disso, muitas

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vezes, as repetições ajudam a desfazer possíveis ambiguidades e demonstram que o surdo

preocupou-se em tornar seu texto claro e coerente.

Nos cinco textos a seguir, é possível observar uma série de particularidades da LIBRAS e

a influência que esta língua exerce na produção escrita do aluno surdo: são os textos típicos da

comunidade surda. Acreditamos que, em textos como estes, é possível pesquisar estratégias de

ensinar Português para alunos surdos de maneira mais eficiente, levando em consideração a

primeira língua desses alunos.

Texto 3: Paulo mentiroso

Visivelmente, podemos perceber que o autor do texto 3 reconhece que a sequência de

eventos ao longo da narrativa deve obedecer a uma cronologia específica e, neste caso, utiliza a

numeração ordenada dos parágrafos como forma de marcar essa sucessão de eventos. Ainda que

os fatos não apresentem uma conexão gramatical explícita e pareçam até mesmo independentes, a

ordem em que aparecem nos parágrafos é exatamente a ordem em que aconteceram na narrativa

em LIBRAS a que aos alunos tiveram acesso.

Além disso, outro dado evidente na análise do texto 3 é o fato de o objeto de discurso

“Paulo” ser ativado pelo aluno já no título, portanto, quando aparece, pela primeira vez, no

primeiro parágrafo do texto, o personagem já está sendo retomado pelo anafórico “ele”. Esse

aluno surdo parece desconhecer o fato de que deveria ao menos ter apresentado “Paulo” antes de

fazer referência a ele. Na verdade, em todo o texto 3, faltam elementos de contextualização e

apenas um leitor que já conheça a história de Paulo será capaz de compreender a narrativa

estruturada dessa forma.

1º. Onde ele viu no campo “dragão e tinha fogo”. E ele me chamar pra mãe dele, viu “dragão e tinha fogo no campo”. É estranho, só isso para com mentiroso. 2º. A mãe dele mandou que castigo, ele sai no quarto. Sem sobremesa e futebol há 15 dias. 3º. Na janela, ele viu lua cai no chão e parece come um queijo, de novo ele pediu que chamou mãe dele já falei não gosto de mentiroso. 4º. Andei na rua, apareceu as borboletas e muitas alegrias. 5º. Paulo junto mãe ir médico. Examinou, chama pra mãe e Paulo bem, só mentiroso.

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Após ser ativado no título, o objeto de discurso “Paulo” é retomado através das seguintes

anáforas diretas:

5 vezes pelo pronome “ele” e 3 vezes pela contração desse pronome com a preposição

“de” (“dele”);

2 vezes, no último parágrafo, pelo nome do personagem “Paulo”;

4 elipses em 3a pessoa: 3 anteriores a verbos (na posição de sujeito) e 1 posterior a verbo

(na posição de complemento verbal)

1 elipse em 1a. pessoa (“eu”): “(eu) Andei na rua...” (linha 6)

Em relação ao objeto de discurso “mãe dele”, ativado na primeira linha do texto, o aluno

usa as seguintes anáforas diretas:

2 vezes o sintagma “(a) mãe dele”;

2 vezes o sintagma “mãe”;

2 elipses anteriores a verbos, em 1a. pessoa: “(eu) já falei (eu) não gosto de mentiroso”

(linha 5)

O terceiro objeto de discurso de nossa análise – o médico –, no texto 3, é ativado no

último parágrafo e retomado apenas 2 vezes, por meio das seguintes elipses: “(ele) Examinou,

(ele) chama pra mãe...” (linha 7).

Além das anáforas acima citadas, há ainda mais uma ocorrência do objeto de discurso

“mãe”, implícita no texto. No primeiro parágrafo, a frase “É estranho, só isso para com

mentiroso” é claramente uma fala da mãe de Paulo. Contudo, não há nenhuma marca gramatical

de discurso direto anterior à possível fala, como “Ela disse:”. Acreditamos, assim, que há

implicitamente mais uma retomada do objeto de discurso “mãe”, que, para ser identificado,

necessita de uma compreensão do contexto.

De forma um pouco diferente por não se tratar de um discurso direto, mas sim de uma

mudança no foco narrativo, essa retomada implícita também acontece com o objeto de discurso

“Paulo”, no 4o parágrafo. Sabemos que o pronome “eu”, implícito, que conjuga o verbo “andar”

em primeira pessoa (“Andei na rua...”) refere-se a Paulo apenas porque conhecemos a história

previamente ou por pequenas inferências que podemos fazer na leitura do texto. Entretanto, o

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texto 3 é todo narrado em 3a pessoa, e a presença da primeira pessoa no parágrafo citado deve

ser, ao menos inicialmente, um dado de estranhamento aos leitores.

Além dos diálogos entre mãe e filho que aparecem nos três primeiros parágrafos e se

repetem em praticamente todos os textos de nosso corpus, há, no texto 3, poucos elementos de

contextualização, uma vez que o aluno surdo procurou ser bastante fiel à narrativa contada em

LIBRAS e bastante econômico ao escrevê-la em Português. Entretanto, é possível destacar um

evento que aparece no texto mesmo sem ter sido mencionado na narrativa em LIBRAS a que o

aluno assistiu: o fato de Paulo ficar em seu quarto durante o castigo. Além de ser um exemplo de

contextualização é também um indício de que o aluno reconhece algumas relações sociais e sabe

que é muito comum, em um castigo, que a criança seja colocada em seu quarto pelo adulto.

Como anáforas indiretas, podemos destacar duas palavras que aparecem na mesma frase:

“É estranho, só isso para com mentiroso” (linha 2).

O pronome “isso” encapsula as ações de Paulo: ele conta o que viu à mãe e ela se refere

ao que Paulo disse como “isso”. Já o adjetivo sublinhado é utilizado, além dessa frase, em outras

passagens do texto, sempre caracterizando as histórias que Paulo conta como as de um menino

“mentiroso”: “... já falei não gosto de mentiroso” (linha 6); “... Paulo bem, só mentiroso” (linhas

8-9). Como os sinais de “mentira” e “mentiroso” são os mesmos em LIBRAS, ainda é possível

entender a frase anterior como uma tentativa de escrever: É estranho, só isso para com mentira.

Assim, estaríamos diante de um caso de rotulação, com um substantivo.

A respeito dos diálogos que se estabelecem em todo o texto, os maiores problemas

gramaticais que aparecem devem-se às questões de pontuação. Muitas vezes representa-se uma

fala sem a estrutura gramatical necessária para o discurso direto e, em outras, parte dessa

estrutura é evidenciada, ainda que de forma incompleta. Quando, no primeiro parágrafo, o aluno

usa aspas para destacar “dragão e tinha fogo” (linha 1) ele parece querer demonstrar que aquela

era uma fala do menino. Logo depois, como já mencionamos, aparece uma possível fala da mãe,

sem nenhum elemento de introdução do discurso direto.

Ainda sobre a estruturação gramatical dos discursos no texto, acontece, no segundo

parágrafo, algo muito interessante: o aluno usa um marcador de discurso indireto – a palavra

“que” – sem, no entanto, construir uma frase coerente nessa estrutura. Em vez da construção

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subordinada “A mãe dele mandou que ele ficasse de castigo no quarto”, o aluno constrói “A mãe

dele mandou que castigo, ele sai no quarto”.

O mesmo uso do “que” aparece no terceiro parágrafo: “... de novo ele pediu que chamou

mãe dele já falei não gosto de mentiroso”. Nesse mesmo trecho, inclusive, percebemos a presença

da voz da mãe de Paulo, no diálogo, sem nenhuma introdução gramatical que contribuísse para o

entendimento do texto, apenas as inferências que os leitores possam fazer.

No desfecho, o aluno revela uma falha na compreensão do texto, uma vez que rotula

Paulo como “mentiroso”, sem perceber que essa imagem é desconstruída pelo médico ao

constatar, após o exame, que Paulo, na verdade, é um poeta. Tal equívoco já se anuncia no título

do texto 3.

Texto 4: Conseguiu o Paulo verdade

No texto 4, o aluno demonstra ter um conhecimento vocabular da Língua Portuguesa e um

conhecimento de mundo bastante satisfatórios. Entretanto, a organização textual se mostra

comprometida em variados aspectos. Há muitos problemas de pontuação e, sobretudo, de

estruturação do discurso direto.

Percebemos, neste texto, uma grande fidelidade à versão em LIBRAS. Cada um dos

diálogos reproduzidos no texto 4 aparece encenado na narrativa em LIBRAS, de modo que, em

seu texto, o aluno procurou transmitir a mensagem o mais fielmente possível. Entretanto,

justamente pelo fato de a versão em LIBRAS valer-se de tantos elementos que não aparecem no

O dragão briga bicho no campo de futebol, Paulo grita: “MAAÃE”, Paulo diz: eu vi lá no campo de futebol está brigando o dragão. Verdade. Mãe diz: que isso estranho o dragão brigou, não acredita, para mentira embora lá castigo e fica aqui castigo não vai dar comida e doce mais 15 dias castigo. Paulo diz: preaí quero falar com você. Mãe desprezou. Paulo esta vendo fora a janela, também vê o céu, tem a lua e a estrela caiu na cheio. Ele pegou, comeu ser o queijo delicia, sumiu o queijo. Que droga... Ele foi passear outro lugar, ele viu a borboleta pegou o Paulo leva voar alto e passeia ver lugar mais linda e feliz. Paulo dá idéia. Paulo gritou: mãe. Paulo diz: fui voar junto a borboleta é muito grande foi muito bom passeio. Mãe diz: que estanho de novo mentira, para mentira, não acredita suspiração, vou ver ir no hospital e vê meu filho é maluco ou não? Medico diz: ok, vou conversar com seu filho. Médico já descobriu o Paulo. Médico chamou a mãe de Paulo. Médico diz: Não é maluco e ele falou ser poema e imaginar é normal. Mãe está pensando mal, mas não é. Foi normal.

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conto de Drummond, às vezes parece que outra história está sendo contada, recheada de

elementos novos. São esses os elementos de contextualização que vamos encontrar (algumas

vezes mais, outras menos) em todos os textos de nosso corpus.

Especificamente no caso do texto 4, podemos destacar como elementos de

contextualização a maioria dos diálogos que se estabelecem ao longo da narrativa. Uma

comparação entre a cena em que o menino recebe um castigo de sua mãe no texto original e no

texto 4 evidencia essa característica:

“Sua mãe botou-o de castigo, (...) Paulo não só ficou sem sobremesa, como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias”

(“A incapacidade de ser verdadeiro”, linhas 3 e 6-7) “Mãe diz: (...) para mentira embora lá castigo e fica aqui castigo não vai dar comida e doce mais 15 dias castigo. Paulo diz: preaí quero falar com você. Mãe desprezou.”

(texto 4, linhas 2-4)

Como a narrativa em LIBRAS usa praticamente a todo momento a encenação dos

diálogos como estratégia textual, é natural que, no texto escrito pelo aluno surdo, o discurso

direto apareça a todo momento, mesmo quando há possibilidade de narrar determinado

acontecimento de outra maneira. Em geral, os alunos surdos vão se manter fiéis ao texto a que

eles assistiram, em língua de sinais.

A mesma comparação pode ser estabelecida na cena em que Paulo conta para sua mãe o

que vira no campo de futebol:

“(...)Um dia chegou em casa dizendo que tinha visto no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. Sua mãe botou-o de castigo (...)” (“A incapacidade de ser verdadeiro”, linhas 1-3) “(...) Paulo grita: “MAAÃE”, Paulo diz: eu vi lá no campo de futebol está brigando o dragão. Verdade. Mãe diz: que isso estranho o dragão brigou, não acredita...”

(texto 4, linhas 1-3)

Nesse caso, podemos destacar duas características particulares do trecho escrito pelo

aluno surdo. Primeiramente, é possível perceber que, no texto 4 (assim como já havia acontecido

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no texto 2, do grupo I) aparece a informação de que os dragões brigavam no “campo de futebol”

e, vale ressaltar, essa informação não aparece no texto original, tampouco no texto em LIBRAS.

Acreditamos que isso aconteça pelo fato de que esses alunos apenas reconheçam, na palavra

“campo”, a significação “campo de futebol”. Além disso, no texto 4, é construído um diálogo que

não aparece no texto original, valendo-se inclusive da estratégia de simbolizar um grito, numa

clara demonstração de conhecimento das relações entre mãe e filho, inclusive utilizando uma

estratégia própria da comunicação entre ouvintes. O título “Conseguiu o Paulo verdade” parece

antecipar aos leitores o que acontecerá ao final da narrativa: Paulo consegue comprovar a verdade

– ele é um poeta e não um mentiroso.

A construção dos diálogos é, como já afirmamos, uma particularidade dos textos escritos

pelos surdos, uma vez que, em sua língua (a LIBRAS), o discurso direto é uma constante.

Entretanto, há muitos problemas na estruturação gramatical desse tipo de discurso, sobretudo em

relação à pontuação e às pessoas gramaticais.

Exemplificamos, abaixo, com um trecho do texto 4, os problemas recorrentes em relação

à construção do discurso direto:

“Mãe diz: que estanho de novo mentira, para mentira, não acredita suspiração, vou ver ir no hospital e vê meu filho é maluco ou não? Médico diz: ok, vou conversar com seu filho”

(texto 4, linhas 9-11)

Nesse caso, podemos observar inicialmente um problema na pontuação do trecho como

um todo. Entretanto, também fica evidente que a grande questão aqui é a mistura das pessoas

gramaticais que constroem os diálogos no discurso direto, como se pode perceber pelo uso da 3ª

pessoa (“não acredita”), em uma construção em que parece mais adequado o uso da 1ª pessoa

(não acredito).

Como marcas de discurso direto, nesse trecho, temos o uso do verbo “dizer” seguido dos

dois pontos (:), na fala da mãe e na do médico, e a presença de diferentes pessoas gramaticais,

parecendo caracterizar um diálogo: “vou ver ir no hospital e vê meu filho”, “vou conversar com

seu filho”. Além disso, notamos que o trecho destacado inicia-se com uma fala da mãe para

Paulo. Entretanto, o uso do ponto de interrogação ao final da fala atribuída à mãe, parece

estabelecer um novo diálogo, desta vez, entre a mãe e o médico, em que ela diz “Meu filho é

maluco ou não?” e o médico responde “Ok, vou conversar com seu filho”.

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Os diálogos entre os personagens também têm grande importância na sequência das ações

ao longo da narrativa. Além disso, o aluno divide as ações em três espaços narrativos: o espaço

inicial em que Paulo conversa com sua mãe em casa e, da janela, vê a lua cair; o espaço

intermediário que se constrói quando Paulo é levado pelas borboletas para passear pelo céu; e o

espaço em que acontece o desfecho da história, no hospital. Esse último espaço, inclusive, é o

responsável pela ativação do personagem “médico” na narrativa.

Em relação às anáforas diretas, o objeto de discurso “Paulo” é ativado logo na primeira

linha do texto e, entre estruturas de discurso direto/indireto e de narrativa em 3a pessoa, é

reativado 27 vezes ao longo da narrativa:

9 vezes pela repetição do nome do personagem “Paulo”;

3 vezes pelo uso do pronome “ele”, no discurso do narrador do texto;

2 vezes pelo uso dos sintagmas nominais “meu filho” e “seu filho”, respectivamente;

3 vezes pela elipse em posição pós-verbal: “Mãe diz (para ele)...” (linhas 2 e 9); “Mãe

desprezou (ele)” (linha 4);

4 vezes pela elipse em função de sujeito da ação verbal, em 3a pessoa: “...(ele) vê o céu...”

(linha 5);

2 vezes pela elipse em função de sujeito da ação verbal, em 1a pessoa: “...(eu) quero falar

com você” (linha 4);

4 vezes pela elipse do pronome de tratamento “você”, em que Paulo assume a 2a. pessoa

do discurso (com quem se fala): “...embora lá castigo e (você) fica aqui castigo...” (linha

3)

As anáforas diretas referentes ao objeto de discurso “a mãe”, ativado na fala inicial de

Paulo (“MAAÃE”), podem ser listadas como:

5 vezes a repetição do sintagma “mãe” e 1 vez o uso do sintagma “a mãe de Paulo”;

1 vez o uso do pronome “você”, no discurso direto: “Paulo diz: preaí, quero falar com

você” (linha 4);

2 vezes pelo uso dos possessivos “meu” e “seu”, respectivamente nos sintagmas “meu

filho” (linha 12) e “seu filho” (linhas 10-11);

5 elipses em posição pós verbal, em terceira pessoa: “Paulo diz (para ela)...” (linha 1);

3 elipses em posição anterior a verbos, em 3a pessoa: “(ela) não acredita...” (linha 10);

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2 elipses em posição anterior a verbos, em 1a pessoa: “...(eu) vou ver ir no hospital...”

(linha 10)

Através do objeto de discurso “o hospital”, usando o recurso da anáfora associativa, o

aluno introduz o terceiro personagem, o médico, reativando-o, posteriormente, 6 vezes:

4 vezes pela repetição do sintagma “médico”;

1 vez pelo uso do pronome “ele”;

1 vez pela elipse do pronome “eu”, em uma construção de discurso direto: “Ok, (eu) vou

conversar com seu filho” (linha 11)

Texto 5: Conseguir verdadeiro

No conto de Drummond, apenas no desfecho se revela a reposta para o mistério que o

autor vai construindo ao longo de toda a narrativa: Paulo não é um menino mentiroso, como se

poderia acreditar, mas sim um poeta, como os exames comprovaram. Na maioria dos textos de

nosso corpus, entretanto, o desfecho já é antecipado pelo título. O título do texto 5, assim como já

acontece de maneira estrutural e sintaticamente bastante semelhante no texto 4, adianta o final:

Paulo consegue a verdade e acaba provando para sua mãe que não é um mentiroso.

Apresentação, Paulo viu o campo de dragão briga. Ele falou que aí vi o campo de dragão estava brigando mas dele mãe estava dúvida falando a mentira meu filho levar aqui no quarto ficará o castigo em 10 dias. A mãe falou que não deixa dar os doces com meu filho. Ele pediu que é o objeto por mãe falou que não posso mesmo. Ele falou que sem problema. O menino estava admirando a janela de lua ficava bonita. Aí, a lua está caindo no chão acima um queijo. O menino vi andar pegando o queijo. Ele comi o queijo delicioso. Que droga! Ele anda ver a borboleta na floresta ficará bonita. Ele conta que viu a borboleta é muito grande e bonita por minha mãe estava não ainda acreditando ser estranho. Que acontecer a mentira da problema com meu filho precisa ir lá no médico. Eles entram bater a porta. O médico está abrindo a porta. A mãe te explica que meu filho está mentindo a problema na vida. Por favor, a mãe me ajuda o meu filho estava diferente na vida. O médico vou conselhar e tentar o seu filho. Ele pesquisa saber na vida por dele. O médico descobri a coisa é uma poesia.

Quando ele chega encontrar de mãe quer saber motivo o meu filho. O médico falou que é por isso é poesia. A mãe ficará compreender mesma a coisa.

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No que diz respeito à sequência narrativa, ao longo de todo o texto 5, o aluno marca

claramente, na divisão dos parágrafos, a ordenação das cenas narradas. Além disso, aparecem

dois elementos de progressão temporal no texto: “aí” (linhas 1 e 6) e “Quando” (linha 15).

Ainda no que se refere à sequência dos fatos narrados, podemos observar que, logo no

início do texto, ocorre uma particularidade. Como no texto em LIBRAS o monitor surdo

apresenta-se e apresenta o personagem do texto (“Eu vou contar a história do Paulo, um

menino...”), o aluno surdo, ao escrever seu texto em Português, usou um elemento rotulador para

caracterizar esse momento inicial do texto: “Apresentação”. Essa é uma marca da primeira cena

narrativa da qual o aluno surdo se deu conta ao assistir à versão em LIBRAS.

A estratégia de encapsulamento anafórico pode ser também observada em outros

exemplos do texto, como em “...estava dúvida falando a mentira...” (linha 2) “Que acontecer a

mentira da problema...” (linhas 9-10), “...meu filho está mentindo a problema na vida” (linha 12),

“...a coisa é uma poesia” (linha 14) e “...por isso é poesia” (linha 16). Em todos esses casos, o

aluno usa palavras que definem situações anteriormente descritas, realizando o que a teoria

linguística caracteriza como anáforas encapsuladoras.

Assim como nos textos 3 e 4, o autor do texto 5 inseriu diálogos em praticamente toda a

narrativa. Tais diálogos atuam como elementos de contextualização e a diferença que seu uso

oferece ao texto pode ser observada através da seguinte comparação:

“... a mãe decidiu levá-lo ao médico.

Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça: — Não há nada a fazer, Dona Coló. Esse menino é mesmo um caso de poesia.”

(“A incapacidade de ser verdadeiro”, linhas 10-12) “Que acontecer a mentira da problema com meu filho precisa ir lá no médico. Eles entram bater a porta. O médico está abrindo a porta. A mãe te explica que meu filho está mentindo a problema na vida. Por favor, a mãe me ajuda o meu filho estava diferente na vida. O médico vou conselhar e tentar o seu filho. Ele pesquisa saber na vida por dele. O médico descobri a coisa é uma poesia. Quando ele chega encontrar de mãe quer saber motivo o meu filho. O médico falou que é por isso é poesia. A mãe ficará compreender mesma a coisa”

(texto 5, linhas 9-16)

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O aluno surdo, que criou seu texto com base em uma narrativa em LIBRAS, tem a

necessidade de contextualizar toda a situação narrada através dos diálogos. Isso acontece porque,

em LIBRAS, as narrativas desenvolvem-se, sobretudo, por construções com discurso direto.

Talvez por isso, também, seja tão difícil para os alunos surdos a construção de estruturas de

discurso indireto: raramente isso acontece em sua língua.

Devido a esse aspecto específico da LIBRAS, nas anáforas diretas utilizadas a fim de

retomar os objetos de discurso “Paulo”, “mãe” e “médico”, aparece uma grande questão que se

observa muitas vezes nos textos produzidos pelos alunos surdos: a mistura das pessoas

gramaticais na construção dos discursos direto e indireto. Em uma mesma frase, como se pode

observar no trecho destacado anteriormente, o objeto de discurso “a mãe” é representado em 1ª

(“meu filho”; “me ajuda”), 2ª (“seu filho”, na conversa com o médico) e 3ª pessoa do discurso (“a

mãe”). Isso acontece todo o tempo no texto, em relação a diferentes objetos de discurso.

O objeto de discurso “Paulo”, ativado na primeira linha, é retomado 26 vezes ao longo do

texto:

6 vezes pelo uso do pronome “ele” e 2 vezes pelo uso do mesmo pronome contraído com

a preposição de: “dele”;

6 vezes pelo sintagma “o meu filho” e 1 vez pelo sintagma “o seu filho”;

2 vezes pelo sintagma “o menino”;

1 vez pelo uso do possessivo “minha”, no sintagma “minha mãe”;

1 vez pelo uso do pronome “eles” que se refere a Paulo e sua mãe;

5 elipses anteriores a verbos: 1 do pronome “eu”; 1 do pronome “você”; e 3 do pronome

“ele”;

2 elipses, em 3ª pessoa, em posição pós-verbal, como em “O médico vou conselhar (ele) e

tentar o seu filho” (linha 13)

Já o objeto de discurso “dele mãe”, equivalente a “mãe dele”, ativado na segunda linha do

texto, é retomado 21 vezes através das seguintes estratégias:

6 vezes pela repetição do sintagma “(a) mãe”;

1 vez pelo sintagma “minha mãe”;

6 vezes pelo pronome possessivo “meu”, no sintagma “meu filho”;

1 vez pelo pronome possessivo “seu”, no sintagma “seu filho”;

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1 vez pelo pronome oblíquo “me” (1ª pessoa), em uma construção de discurso direto;

1 vez pelo uso do pronome “eles” que se refere a Paulo e sua mãe;

3 elipses em posição pós-verbal, equivalendo ao sintagma preposicional “para ela”, como

em: “Ele falou (para ela) que sem problema” (linha 5);

2 elipses em posição anterior a verbos: 1 delas em 1ª pessoa (eu) e outra em 3ª pessoa.

As anáforas diretas referentes ao objeto de discurso “o médico”, ativado na 12ª linha do

texto, podem ser listadas como:

4 vezes a repetição do sintagma “o médico”;

2 vezes o uso do pronome “ele”;

1 vez o uso do pronome “te”, no discurso direto;

3 elipses anteriores a verbos: 1 do pronome “você”, e 2 do pronome “eu”.

A grande questão a ser observada nesse texto é, a nosso ver, a influência que a

propriedade dêitica da língua de sinais exerce sobre o texto do surdo em Português. Isso pode ser

comprovado nas construções frasais que misturam as estruturas de discurso direto e indireto.

Como exemplos, podemos citar: “Ele falou que aí vi o campo de dragão”; “A mãe falou que não

deixa dar os doces com meu filho”; “O médico vou conselhar e tentar o seu filho”. Nesses três

casos, acontece uma mistura entre as pessoas do discurso que, a nosso ver, se deve ao fato de que,

no texto em LIBRAS, os personagens da narrativa entram em ação explicitamente a cada vez que

aparecem no texto. Não há discurso indireto no texto em LIBRAS, pois os referentes, quando

acionados através do apontamento, por exemplo, passam a agir no texto. O locutor da versão em

LIBRAS é também um ator cada vez que precisa representar as ações de um ou outro

personagem, sempre em 1ª pessoa. Então, o aluno surdo, tem dificuldades de registrar, em

Português, quando determinada ação é de 1ª, 2ª ou 3ª pessoa do discurso.

Ao passar o texto para a Língua Portuguesa, há questões que ficam marcadas ainda como

realizadas em primeira pessoa, mesmo que, no texto escrito, se faça referência a uma ação de uma

terceira pessoa. Tal fato pode ser observado também no uso dos pronomes “te” e “me”, que

aparecem nas duas primeiras linhas do 4º parágrafo do texto 5: “A mãe te explica que meu filho

está mentindo a problema na vida. Por favor, a mãe me ajuda o meu filho estava diferente na

vida”. O primeiro deles refere-se ao médico, pois, no momento da fala, a mãe se dirige a ele. É

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como se o aluno reproduzisse a fala da mãe ao médico, tratando esse último como segunda

pessoa do discurso (“te”). O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao uso do pronome “me”, que

faz referência à primeira pessoa da ação: é a mãe quem fala naquele momento. Apesar de

estruturar o texto no modo indireto do discurso, parece-nos que “escapa” ao aluno surdo o uso

adequado do pronome. Influenciado pela ação explícita em LIBRAS, o surdo acaba misturando

as estruturas de discurso direto e indireto que há em Português.

De toda forma, a maneira como se organiza o discurso indireto nesse texto é

surpreendente. “Ele falou que aí vi...” (linha 1); ” A mãe falou que não deixa dar os doces...”

(linha 4); “Ele conta que viu a borboleta...” (linha 8) são exemplos de que o aluno reconhece, de

alguma forma, a estrutura do discurso indireto, apesar de cometer alguns desvios na organização

das pessoas gramaticais ao estruturar suas frases nesse tipo de discurso.

Texto 6: O Paulo

O primeiro impacto que temos ao observar o texto 6, que, inclusive, o diferencia dos

anteriores, é o fato de ele ser escrito em apenas um parágrafo, o que compromete bastante a

organização necessária para a mudança do espaço e do tempo da narrativa. Entretanto, mais grave

que isso, nesse texto, é a questão da pontuação: são apenas 3 frases, sendo que a primeira delas

inicia-se na primeira linha do texto e termina apenas na penúltima, com um ponto de

interrogação. Isso prejudica o entendimento do texto por parte do leitor e afeta, fortemente, a

Então, tema conseguir realidade e o Paulo, ele viu que no campo estava confusão dragão, ele chamou a mãe dele, eu vi que confusão dragão, ele diz na verdade mas, mãe diz que estranho e pare com isso, mentira, dele mãe falou que agora você fica castigo na casa e também não vou dar de doce, o menino diz que peraí a mãe, agora o menino ficou com triste, ele estava na janela depois, menino está olhando a lua, caiu no chão, ele pegou que queijo com lua, ele está com fome depois ele comeu que queijo, que droga, ele está andando depois viu que borboleta entre tapete em pé o menino esta voar que admirando lugar fica lindo, alegria, que legal, e ele diz mãe, eu esta voar que legal, estava ver um floresta ficou lindo cor, depois mãe diz pare com isso e mentir, mãe acho que filho está doente cabeça mais problema, melhor mãe junto dela filho que ir médico, mãe dela filho já chegam no médico mas mãe bateu porta, médico diz que querida então mãe falou que o menino está cabeça problema o que aconteceu? Dr. diz pouco espera mãe diz ok, médico junto o menino. Ele diz que ele está bem por causa poesia!

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sequência narrativa, uma vez que só aparecem marcas explícitas da ordenação das ações através

de dois advérbios de tempo e uma conjunção espalhados em alguns pontos do texto: “depois”

(linhas 5, 6, 7 e 9); “já” (linha 10) e “então” (linhas 1 e 11).

Assim como nos outros textos do grupo II, a organização dos discursos direto e indireto

apresenta-se comprometida no texto 6, pois em três trechos do texto, diferentes estruturas

aparecem misturadas na mesma frase. Abaixo, destacamos um desses trechos, no qual a

conjunção integrante “que” parece introduzir um discurso indireto, mas o aluno continua a frase

dando voz à personagem, com o discurso direto:

“... dele mãe falou que agora você fica castigo na casa e também não vou dar de doce...” (texto 6, linhas 3 e 4)

É muito comum perceber, também, nos textos analisados nesta pesquisa, que alguns

problemas na estruturação dos discursos relacionam-se à pontuação característica do discurso

direto – uso de dois pontos (:), aspas ou travessões –, como constatamos nos dois trechos

destacados abaixo, seguidos de suas possíveis reescritas seguidas de correção apenas de

pontuação:

(a) “... ele chamou a mãe dele, eu vi que confusão dragão, ele diz na verdade mas, mãe diz que estranho e pare com isso...”

(texto 6, linhas 2-3)

Reescrita: Ele chamou a mãe dele: “Eu vi que confusão dragão”. Ele diz: “Na verdade”. Mas mãe diz: “Que estranho, pare com isso”.

(b) “... ele diz mãe, eu esta voar que legal, estava ver um floresta ficou lindo cor, depois mãe diz pare com isso e mentir...”

(texto 6, linhas 8-9) Reescrita: Ele diz: – Mãe, eu esta voar que legal, estava ver um floresta ficou lindo cor. Depois mãe diz: – Pare com isso e mentir.

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Ainda no que se refere aos diálogos que aparecem no texto, cabe destacar o uso de

palavras ou expressões que demonstram o conhecimento de mundo do aluno surdo, como

observamos no trecho destacado abaixo:

“...mãe bateu porta, médico diz que querida então mãe falou que o menino está cabeça problema o que aconteceu? Dr. diz pouco espera mãe diz ok...”

(texto 6, linhas 11-12)

Uma possível reescrita desse trecho, organizando o discurso direto que aparece nele, seria:

A mãe bateu na porta, o médico abriu e disse: – Oi, querida! Então a mãe falou: – O menino está com problema na cabeça. O que aconteceu? O Dr. disse: – Espera um pouco. E a mãe disse: – Ok.

O uso de “querida” (apesar de inadequado na relação entre médico e mãe, que não

imaginamos ser tão íntima), de expressões como “Espera um pouco” e de “Dr.”, para se referir ao

médico, demonstram o conhecimento satisfatório do aluno em relação às cenas sociais que há no

mundo (nesse caso, uma consulta médica). O aluno utiliza, nesse diálogo, palavras ou expressões

que não aparecem na versão em LIBRAS a que ele assistiu, mas que ele provavelmente considera

adequadas no texto que produz em Português.

Somados a esses elementos que indicam o conhecimento de mundo do aluno, aparecem

vários elementos de contextualização, em geral derivados do texto em LIBRAS. Além dos

diálogos entre os personagens, que são marca em todos os textos do grupo II, aparecem, no texto

6, algumas expressões que denotam sentimentos à medida que a narrativa se desenvolve: “agora o

menino ficou com triste “ (linhas 4-5), “que droga” (linha 6), “admirando lugar fica lindo, alegria,

que legal” (linhas 7-8).

O objeto de discurso Paulo é retomado, no texto 6, 34 vezes, por meio de diferentes

estratégias:

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10 vezes pelo uso do pronome “ele” e 2 vezes pelo uso do mesmo pronome contraído com

a preposição de: “dele”;

2 vezes pelo pronome pessoal de 1ª pessoa – eu – e 1 vez pelo pronome pessoal de

tratamento – você;

6 vezes pelo sintagma “(o) menino” e 3 vezes pelo sintagma “(dela) filho”;

5 elipses anteriores a verbos: 1 do pronome “eu”; 1 do pronome “você”; 1 do pronome

“ele”;

5 elipses em posição pós-verbal: 3 em 3ª pessoa e 2 do pronome de tratamento “você” no

diálogo, como em “também não vou dar de doce (para você)” (linha 4)

Já o objeto de discurso “a mãe dele”, ativado na segunda linha do texto, é retomado 19

vezes através das seguintes estratégias de referenciação:

11 vezes pela repetição do nome “mãe”, em sintagmas como “(a) mãe” (10 ocorrências)

ou “dele mãe” (1 ocorrência), equivalente à “mãe dele”;

2 vezes pelo pronome “ela”, utilizado no sintagma “dela filho”;

1 vez pela forma de tratamento “querida”, no diálogo da mãe com o médico;

1 vez por elipse em primeira pessoa: “(eu) não vou dar de doce” (linha 4);

4 vezes por elipses em terceira pessoa, na posição de complemento verbal: “Ele diz (para

ela) que ele está bem” (linha 13).

O objeto de discurso “médico”, ativado na 11ª linha do texto, é retomado 7 vezes:

3 vezes pelo uso do sintagma “(o) médico”;

1 vez pelo uso de “Dr.”;

1 vez pelo pronome “ele”;

2 vezes pela elipse em terceira pessoa, como complemento verbal: “então mãe falou (para

ele) que o menino...” (linhas 11)

Além das anáforas diretas listadas anteriormente, ocorrem, no texto 6, algumas anáforas

indiretas. Logo na terceira linha do texto, aparece “mãe diz que estranho e pare com isso,

mentira”. O pronome “isso” encapsula as ações descritas anteriormente e a palavra “mentira”

rotula as mesmas ações.

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Ainda podemos observar a estratégia de rotulação no seguinte trecho retirado do texto 6:

“mãe acho que filho está doente cabeça mais problema, melhor mãe junto dele filho que ir

médico, (...) o menino está cabeça problema o que aconteceu?” (linhas 9-12). As palavras e

expressões sublinhadas rotulam, no discurso da mãe, o que ela pensa sobre as ações de Paulo ao

longo do texto.

Por fim, mais uma vez as ações de Paulo são rotuladas, agora pelo médico, com a

expressão “por causa poesia”, assemelhando-se ao final do texto original de Drummond: “um

caso de poesia”.

Texto 7: Conseguir a verdade de Paulo

Assim como o texto 6, o texto 7 também é escrito em apenas um parágrafo, entretanto a

sequência narrativa apresenta-se muito mais clara para o leitor. Ao contrário do texto anterior,

composto por apenas 3 frases, no texto 7 há 29 frases, curtas em sua maioria, evidenciando de

maneira bem explícita cada um dos acontecimentos na sequência narrativa. Embora esse número

de frases seja excessivo, a organização das ações no texto apresenta-se pouco comprometida

dessa maneira.

Além disso, ao longo do texto 7, o aluno marca a sequência das ações utilizando algumas

expressões que indicam a mudança das cenas. Logo no início aparece “Paulo chegou no campo”

e, em seguida, “Paulo chama a mãe”. Ao longo do texto aparecem, ainda, outros elementos que

Paulo chegou no campo. Está estranha que o campo e está brigando bagunça que o dragão. Paulo chama a mãe. Paulo vê que está bagunça o campo. Que horrível. A mãe falou que estranho o isso e parei de falar mentira. Paulo está falando a verdade. A mãe pega o Paulo e a mãe falou que você fica castigo também não pode comer doce e fica preso em casa e não deixa sair. Paulo quer sair na rua. Não deixa. A mãe desprezou Paulo. A janela que Paulo adrimou a Lua é bonita. A lua caiu. Paulo viu a lua. Paulo pegou a lua e comeu a lua é delícia. Paulo está indo e viu a borboleta e medo grande. Transforma voar livre. Que legal é muito bom e adirma vendo a natureza. Paulo chama a mãe e esta vendo a borboleta e muito grande e bonita. A verdade, voa vendo natureza. A mãe está estranho. A mãe falou que você pare de mentir e a mãe não quer saber que fala de mentir. A mãe fique preocupada você tem problema o motivo, vamos ir ao médico. O médico falou que entra ao médico. A mãe “boa tarde” quer conversar com o médico. A mãe falou que Paulo tem problema mental o motivo. O médico vai pesquisando o Paulo. O médico descobrir Paulo está imaginando. O médico conversa com a mãe de Paulo muito poesia e imaginar.

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contribuem para essa sequência: “Paulo está indo...” (linha 7); “Paulo chama a mãe...” (linha 8);

“... vamos ir ao médico. O médico falou que entra ao médico.” (linha 11). Tudo isso facilita o

entendimento do texto por parte do leitor.

A referência aos personagens do texto é, também, muito clara, no entanto pouco criativa.

De maneira geral, há muita repetição a cada retomada das personagens Paulo, mãe e médico.

O objeto de discurso “Paulo”, ativado na primeira linha do texto, é retomado 29 vezes, das

quais:

15 vezes pela repetição do nome do personagem “Paulo”;

3 vezes, em diálogos, pelo pronome “você”;

5 vezes pela elipse do pronome “você”, caracterizando a pessoa com quem se fala:

“...também (você) não pode comer doce” (linha 4);

5 vezes pela elipse em terceira pessoa (4 delas em posição de sujeito e 1 delas em posição

de complemento verbal): “A mãe falou (para ele) que estranho o isso” (linhas 2-3); “Paulo

está indo e (ele) viu a borboleta...” (linha 7)

1 vez pela elipse do grupo “Paulo + mãe”: “... (nós) vamos ir ao médico” (linha 11)

No caso da retomada, ao longo do texto, do objeto de discurso “a mãe”, ativado na linha

2, a mesma repetição é observada. O objeto de discurso é retomado:

10 vezes pela repetição do sintagma “a mãe” e 1 vez pelo sintagma “a mãe de Paulo”;

2 vezes por elipses (1 em 1ª pessoa e 1 em 3ª pessoa do discurso): “...a mãe falou que

você fica castigo também não pode comer doce e fica preso em casa e (eu) não deixa sair.

Paulo quer sair na rua. (ela) Não deixa” (linhas 4-5);

1 vez pela elipse do grupo “Paulo + mãe”: “... (nós) vamos ir ao médico” (linha 11)

O objeto de discurso “o médico”, ativado na 13ª linha do texto, é retomado basicamente

pela repetição do sintagma, como se pode ver na quantificação abaixo:

6 vezes pela repetição do sintagma “o médico”;

1 vez pela elipse, em terceira pessoa, como complemento verbal: “A mãe falou (para ele)

que Paulo tem problema...” (linha 12).

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Todas essas repetições das anáforas diretas referentes aos objetos de discurso “Paulo”,

“mãe” e “médico” evidenciam que o autor do texto 7 não dispõe de um vasto conhecimento das

estratégias de referenciação que podemos usar. Entretanto, isso não chega a caracterizar um baixo

conhecimento linguístico por parte do aluno, uma vez que é possível observar construções frasais

bastante complexas no texto 7. Como exemplos, podemos citar: “Paulo está falando a verdade”

(linha 3), em que o aluno aplica uma construção muito comum do Português (estar + gerúndio);

“... vamos ir ao médico” (linha 11) ou “... quer conversar com o médico” (linhas 12), em que o

aluno aplica adequadamente a regência dos verbos ir e conversar; “A mãe falou que Paulo tem

problema mental...” (linha 13), em que o aluno usa adequadamente o discurso indireto no período

composto por subordinação.

Além disso, é possível observar uma série de anáforas indiretas que contribuem para a

clareza e a organização do texto 7, como se pode observar nos trechos destacados abaixo:

“A mãe falou que estranho o isso e parei de falar mentira” (linhas 2-3) “Paulo está falando a verdade” (linha 3) “A mãe fique preocupada você tem problema o motivo” (linhas 10-11) “A mãe falou que Paulo tem problema mental o motivo” (linha 12)

Em todos os trechos destacados, as palavras/expressões sublinhadas são anáforas indiretas

encapsuladoras de partes anteriores do texto e, com exceção da primeira delas (“o isso”), todas

são maneiras de rotular as histórias que Paulo conta. De acordo com a opinião da mãe, o

problema mental é o motivo de tanta mentira. Para Paulo, tudo é verdade.

Apesar de uma organização textual satisfatória, o texto 7 apresenta problemas quanto à

estrutura dos discursos direto e indireto em alguns trechos, sobretudo pela mistura das pessoas do

discurso, como ocorre no seguinte trecho: “A mãe falou que você pare de mentir” (linhas 9-10).

Nesse trecho, o aluno inicia uma estrutura de discurso indireto (“A mãe falou que...”) e, em

seguida, utiliza “você”, como se transcrevesse a fala da mãe.

Além disso, muitas vezes não podemos identificar com precisão a pessoa do discurso, por

conta da dificuldade do aluno na conjugação verbal. Isso faz com que não saibamos ao certo se

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houve algum erro na construção dos discursos direto ou indireto ou se ocorre apenas um erro de

conjugação.

“... a mãe falou que você fica castigo também não pode comer doce e fica preso em casa e não deixa sair” (texto 7, linhas 4-5)

Na oração sublinhada, apesar de o verbo aparecer conjugado na 3ª pessoa do singular (ela

= a mãe), não podemos afirmar precisamente que se trata de uma construção de discurso indireto:

em todo o período que vem sendo construído anteriormente, o que o aluno faz é reproduzir a fala

da mãe de Paulo, ao que nos parece, no discurso direto, o que pode ser comprovado pela presença

do pronome “você”. Dessa forma, seria mais lógico ter usado a 1ª pessoa “não deixo sair”, já que

a mãe estaria falando diretamente com Paulo. Entretanto, no início do trecho destacado, aparece a

construção “a mãe falou que”, própria em estruturas de discurso indireto e, por isso, não se pode

afirmar categoricamente se a mistura dos discursos ocorre por desconhecimento das estruturas

gramaticais de discurso direto e indireto, por erro na conjugação verbal ou, ainda, pelos dois

motivos somados.

Ainda em relação à estrutura dos discursos, cabe ressaltar que, na parte final do texto em

que se narra a chegada de Paulo e sua mãe ao médico e os diálogos que se estabeleceram, o aluno

utiliza estruturas linguísticas que demonstram seu conhecimento daquela situação comunicativa.

“O médico falou que entra ao médico. A mãe ‘boa tarde’ quer conversar com o médico. A mãe falou que Paulo tem problema mental o motivo. O médico vai pesquisando o Paulo. O médico descobrir Paulo está imaginando. O médico conversa com a mãe de Paulo muito poesia e imaginar” (texto 7, linhas 11-14)

Nesse trecho, além de chamar a atenção o uso das aspas na fala da mãe (“boa tarde”), é

interessante a maneira como o aluno organiza as cenas: primeiro o médico manda que os

pacientes entrem, depois a mãe o cumprimenta e relata o motivo de ela e o filho estarem ali, no

terceiro momento o médico examina Paulo e, por fim, identifica o “problema” e o explica para a

mãe. Tudo isso, além de funcionar como elemento de contextualização no texto 7, demonstra um

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interessante conhecimento de mundo por parte do aluno. Tal desfecho, como já aconteceu em

outros textos do corpus, é antecipado no título do texto 7 (“Conseguir a verdade de Paulo”) .

Além disso, funcionam como elementos de contextualização os outros diálogos ao longo

da narrativa e as reações da mãe às histórias de Paulo, representadas por frases como “A mãe

desprezou Paulo” (linha 5) e “A mãe fique preocupada...” (linha 10), que são reflexos do texto

em LIBRAS, mas não exatamente estão presentes no conto de Drummond.

4.3.3 Grupo III: Textos seriamente comprometidos quanto à organização

Fazem parte deste último grupo dois textos nos quais o entendimento da narrativa por

parte do leitor fica muito comprometido pela maneira como tais textos são organizados: falta

coerência e coesão entre as frases e, muitas vezes, entre as palavras; além disso, mesmo que os

alunos tenham aplicado algumas estratégias de referenciação, sobretudo em relação à retomada

dos objetos de discurso Paulo, mãe e médico, faltam elementos que façam o texto progredir de

forma minimamente clara e organizada.

Texto 8: Paulo menino história verdade

O texto 8 mostra-se confuso desde o início. No título, aparecem 4 palavras desconectadas

que, semanticamente, relacionam-se à narrativa. Posteriormente, não há nenhuma apresentação

nem da história a ser contada, tampouco dos personagens. Os fatos vão aparecendo

desconectados completamente de uma sequência lógica, o que fica evidente já nas primeiras

frases do texto:

Campo futebol muito homens confusão. Paulo disse: mãe eu ver campo dragão confusão verdade. Mãe disse: isso que você meditar você fala meditar pare. Mãe junto filho vou casa. Mãe disse: você castigo come não pode doce, bala, etc... come nada 15 dias. Menino triste janela ver uma bonito lua caiu ver lua pegar comi queijo huuuummm... Andar ver borboleta subiu ver natureza bonito feliz. Menino disse: mãe eu já borboleta subiu meu ver natureza bonito. Mãe disse: isso que pare meditar você mental problema precisa médica entre mãe disse eu conversa você mãe calmo. Chama filho exame médica depois aviso ele não é mental, problema por isso poesia.

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“Campo futebol muito homens confusão. Paulo disse: mãe eu ver campo dragão confusão verdade” (linhas 1-2)

Além de não haver conexão entre as palavras nas frases, o personagem “Paulo” não é

apresentado e já aparece em um diálogo com sua mãe na primeira linha. Primeiro o aluno

menciona “homens” na confusão e depois, já na fala de Paulo para a mãe, ainda aparece um

“dragão”, que não havia sido mencionado na frase anterior. Compreendemos o que o aluno

escreve, somente porque conhecemos o conto de Drummond e a versão em LIBRAS e, assim,

podemos deduzir algumas passagens.

Tudo isso se reflete na organização da sequência narrativa do texto: além de ser escrito

em apenas um parágrafo, não há palavras que deem pistas para o leitor a respeito da mudança de

cenas e da sequência cronológica das ações.

Muitas ações do texto em LIBRAS aparecem no texto 8 de forma tão resumida que o

leitor não consegue compreender a história narrada. Abaixo, apresentamos o trecho em que Paulo

encontra as borboletas em três diferentes textos de nosso corpus, destacando 3 ações que

aparecem em todos eles, mesmo que em diferentes ordens: (1) Paulo encontra as borboletas; (2)

As borboletas o levam para voar e ele fica feliz com a viagem; (3) Paulo conta o que aconteceu

para sua mãe.

“Quando o menino voltou falando(3) que todas as borboletas(1) da terra passaram pela chácara de Dona Chica e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu(2), a mãe decidiu levá-lo ao médico” (“A incapacidade de ser verdadeiro”, linhas 8-10) “... passeando pelo jardim uma borboleta deu de cara(1) e voou, o menino perseguiu a borboleta, chegando num lugar cheio delas, se formou um tapete levou o menino para voar ao céus(2).

Paulo chegou para sua mãe e contou o que tinha acontecido(3).” (texto 2, grupo I, linhas 7-9)

“... foi passear outro lugar, ele viu a borboleta(1) pegou o Paulo leva voar alto e passeia ver lugar mais linda e feliz(2). Paulo dá idéia. Paulo gritou: mãe. Paulo diz: fui voar junto a borboleta é muito grande foi muito bom passeio(3).” (texto 4, grupo II, linhas 7-9)

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102

No texto 8, as mesmas informações aparecem. Entretanto, a maneira como são

estruturadas na frase em Português não é clara, e o leitor que toma contato apenas com o texto 8

dificilmente entende a narrativa.

“Andar ver borboleta(1) subiu ver natureza bonito feliz(2). Menino disse: mãe eu já borboleta subiu meu ver natureza bonito(3)” (texto 8, linhas 4-6)

O encontro de Paulo com as borboletas aparece em “Andar viu borboleta” e o vôo aparece

apenas através do verbo “subiu”. A fala de Paulo para a mãe é mais evidente, até pelo uso do

verbo “dizer” seguido de pontuação característica do discurso direto (os dois pontos), mas o

conteúdo dessa fala é apenas uma repetição da frase usada anteriormente: “borboleta subiu meu

ver natureza bonito”.

No que se refere aos diálogos do texto, o aluno utiliza apenas o discurso direto, repetindo

sempre a mesma estrutura: “Paulo disse:”; “Mãe disse”; “Menino disse:” (sujeito + verbo dizer +

dois pontos). Logo, apesar de o aluno não demonstrar conhecer outras formas de organizar as

“falas” que surgem ao longo da narrativa, não há problema quanto à estrutura do discurso direto,

inclusive porque se usam adequadamente as pessoas do discurso (eu, você, ele, ela). O problema,

entretanto, está no conteúdo dessas “falas” e na forma como o aluno estrutura as frases, que são

praticamente incompreensíveis para um leitor que desconheça a história original.

Quanto às anáforas diretas referentes ao objeto de discurso “Paulo”, ativado na 1ª linha,

podemos listar:

2 vezes a substituição pelo substantivo “filho”;

2 vezes a substituição pelo substantivo “menino”;

2 vezes a repetição do pronome “eu”;

1 vez o uso do pronome possessivo “meu”, sem função definida: “eu já borboleta sumiu

meu ver natureza bonito” (linhas 5-6);

4 vezes o uso do pronome “você”;

1 vez o uso do pronome “ele”;

6 vezes pela elipse em terceira pessoa (3 delas em posição de sujeito e outras 3 em

posição de complemento verbal): “(ele) subiu ver natureza” (linha 5); “Mãe disse (para

ele)...” (linha 2);

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103

Nos diálogos, 3 vezes pela elipse do pronome “você”, caracterizando a pessoa com quem

se fala, e 1 vez pela elipse do pronome “eu”, caracterizando a pessoa que fala: “... (você)

come nada 15 dias” (linha 3); “... ver lua pegar (eu) comi queijo...” (linha 4).

O objeto de discurso “mãe” é ativado na 1ª linha, entretanto, antes de sua ativação, há

uma elipse referente a ele: “Paulo disse (para a mãe): mãe eu ver campo dragão confusão

verdade” (linhas 1-2). No texto 8, não há apresentação dos personagens nem da história a ser

narrada, por isso um objeto de discurso acaba aparecendo em elipse antes mesmo de ser

introduzido no texto. Entretanto, consideraremos, aqui, que o objeto de discurso foi ativado

apenas no momento em que aparece explicitamente no texto, na fala de Paulo (linha 1). Depois

dessa ativação, o objeto de discurso “mãe” é reativado no texto:

7 vezes pela repetição de “mãe”;

1 vez pelo uso do pronome “eu”, no diálogo;

2 vezes por elipses em posição de complemento verbal: “Menino disse (para ela)...” (linha

5)

Além disso, é preciso destacar, ainda, um verbo conjugado em primeira pessoa que parece

se referir a uma ação da mãe de Paulo: “Mãe junto filho vou casa” (linhas 2-3). Entretanto, pelo

contexto, não é possível depreender a que se refere o verbo “vou” e, por isso, não incluímos tal

uso na lista de referências ao objeto de discurso “mãe”.

O objeto de discurso “médica”, ativado na 7ª linha do texto, assim mesmo no feminino, é

retomado apenas 3 vezes:

1 vez pelo uso do pronome “você”, no diálogo;

2 vezes pela repetição de “médica”.

As anáforas indiretas que aparecem no texto 8 são semelhantes às que aparecem na

maioria dos textos de nosso corpus. O aluno usa o pronome “isso” (linha 2) para retomar as

histórias contadas por Paulo e rotula as ações de Paulo como “mental problema” (linha 6). Ao

final do texto, as ações de Paulo são explicadas pela médica da mesma forma que no texto

original: “problema por isso poesia” (o que o menino tem é “um caso de poesia”).

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104

Como curiosidade, podemos destacar, no texto 8, o uso da interjeição “huuuummm...”

(linha 5), que demonstra que o aluno conhece uma onomatopéia, que, neste caso, é uma palavra

bastante utilizada por ouvintes para representar o som que se faz quando se gosta muito de uma

comida.

Texto 9: Paulo sonho

O texto 9 é o de mais difícil compreensão de todo o corpus. Logo na primeira frase, já

podemos perceber um problema de coesão: as palavras estão soltas (“... pessoas grito aviso mãe

viu campo fogo”), o que dificulta o entendimento do texto por parte do leitor. Além disso, as

informações aparecem no texto de forma incompleta, o que pode ser percebido na seguinte

comparação:

“O menino triste, ficou na janela olhando para o céu, derepente ele ver a lua caindo no seu quintal, foi até lá, pegou a lua, viu que não era a lua, era o queijo e comeu”

(texto 2, grupo I, linhas 5-6) “Na janela, ele viu lua cai no chão e parece come um queijo” (texto 3, grupo II, linha 4) “Ele janela ver estrela caiu ainda pega um queijo comer” (texto 9, grupo III, linha 3)

Destacamos, acima, a mesma passagem nos textos 2, 3 e 9. Os autores dos textos 2 e 3

conseguem, de maneira clara, passar a mensagem para o leitor: Paulo está na janela, vê uma lua

cair no chão e, ao pegá-la e comê-la, percebe que ela parece um queijo. Em relação ao texto 9, no

entanto, sem conhecer a história ou ter lido outros textos do corpus, não seríamos capazes de

compreender a mensagem. Primeiramente, é preciso destacar que o aluno que escreveu o texto 9

O campo é confusão pessoas grito aviso mãe viu campo fogo. A mãe chamado junta pra Paulo. A mãe mandar castigo nada comer até dia pra Paulo. Paulo diz: drogas sem problema. Ele janela ver estrela caiu ainda pega um queijo comer. Borboleta troco voar mãe é acredita foi médico pra Paulo. Borboleta é grande voar, mãe que estranho, que mentiroso, pare de Paulo. A mãe junta Paulo ainda para médico aviso que aconteceu contra mendar de Paulo. O médico pega Paulo cabelo que normal. Saúde bem, médico me fala todos normal, mãe que estranho.

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não identificou a lua como o objeto que Paulo vira, mas sim uma estrela, o que já desfaz a relação

lua-queijo, estabelecida na comparação entre os dois objetos. Além disso, nos textos 2 e 3, há

elementos responsáveis por fazer uma ligação lógica entre as ações de ver a lua e pegar o queijo:

“foi até lá, pegou a lua, viu que não era a lua” (texto 2) e “viu lua cai no chão e parece come

um queijo” (texto 3). Já no texto 9, não há ligação explícita entre as duas ações, o que faz parecer

que não há uma relação lógica entre elas: “ver estrela caiu ainda pega um queijo comer”.

Ainda no que se refere à relação lógica que se deve estabelecer na sequência dos fatos, o

texto 9 apresenta mais um problema na ordenação dos acontecimentos cronologicamente, como

se pode observar relendo a passagem abaixo:

“Borboleta troco voar mãe é acredita foi médico pra Paulo. Borboleta é grande voar, mãe que estranho, que mentiroso, pare de Paulo.” (texto 9, linhas 4-5)

Esse é o trecho em que Paulo encontra a borboleta que o faz voar. Entretanto, o aluno

começa narrando essa parte, mas antecipa a entrada do objeto de discurso “médico” na história.

Depois disso, retoma o vôo com as borboletas, mas sem nenhuma sequência narrativa lógica.

A ativação dos objetos de discurso “Paulo”, “mãe” e “médico”, no texto, também aparece

comprometida por conta dos problemas na sequência narrativa. O objeto de discurso Paulo, por

exemplo, parece ter sido ativado no título do texto 9, pois a primeira vez, no texto, em que se faz

referência a Paulo é através de uma elipse em primeira pessoa, já em um diálogo com a mãe: “O

campo é confusão pessoas grito (eu) aviso mãe viu campo fogo” (linha 1). As anáforas diretas

referentes ao objeto de discurso “Paulo” podem ser quantificadas, então, da seguinte maneira:

8 vezes pela repetição do nome ”Paulo”;

1 vez pelo uso do pronome “ele”

1 vez pela elipse em primeira pessoa e 2 vezes pela elipse em 3ª pessoa: “(eu) aviso mãe

(ele) viu campo fogo” (linha 1).

Já o objeto de discurso “mãe”, ativado na 1ª linha do texto, é retomado:

6 vezes pela repetição do sintagma “(a) mãe”;

1 vez pelo uso do pronome “me”, no diálogo com o médico;

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106

2 vezes por elipses: 1 delas em posição de sujeito da ação verbal em primeira pessoa

(“...para medico (eu) aviso que aconteceu...” – linha 5) e 1 em posição de complemento

verbal em terceira pessoa (“Paulo diz (para ela)...” – linha 2)

O objeto de discurso “médico”, ativado na 4ª linha do texto, é retomado através de uma

única estratégia de referenciação:

3 vezes pela repetição do sintagma nominal “(o) médico”.

Os diálogos que se estabelecem entre Paulo e sua mãe e entre a mãe e o médico aparecem

organizados de maneira confusa no texto 9. Apenas na linha 3, aparece uma construção de

discurso direto: “Paulo diz:”. No restante do texto, as falas das personagens aparecem misturadas

ao discurso do narrador, sem muitas pistas linguísticas sobre “quem está dizendo o quê”, como se

pode observar no seguinte trecho:

“Saúde bem, médico me fala todos normal, mãe que estranho.” (texto 9, linhas 6-7)

O conhecimento de mundo do aluno pode ser observado quando, no início do texto 9,

aparece a fala de Paulo “drogas sem problema” (linhas 2-3). Percebemos que, apesar de toda a

dificuldade do aluno em organizar seu texto, há um conhecimento da situação comunicativa que o

faz escrever essa fala de Paulo, bastante pertinente para um menino que acaba de levar um

castigo da mãe.

Por outro lado, a escolha de alguns vocábulos como “troco” (linha 3), “mendar” (linha 5),

“cabelo” (linha 6) contribui para a não compreensão do texto 9 por parte dos leitores. Na verdade,

parece que, além da dificuldade em organizar o texto no padrão da Língua Portuguesa, o aluno

encontra dificuldade em escrever, em palavras do Português, o que viu no vídeo em LIBRAS.

Ainda que não apresente, claramente, no desfecho, a solução para os problemas de Paulo,

o aluno, de certa forma, antecipa, no título do texto 9 (“Paulo sonho”), o que ele acredita estar

acontecendo com Paulo, diante de tantas histórias fantasiosas. Nesse caso, o “sonho” seria o

equivalente à poesia do conto de Drummond.

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107

4.4 Comentários gerais sobre a análise

Acreditamos que, com as análises feitas até aqui, pudemos comprovar que a língua de

sinais, primeira língua do surdo, influencia diretamente o seu texto escrito, principalmente em

relação ao seu principal aspecto: é uma língua visuoespacial. Nesse sentido, consideramos que

nossas hipóteses puderam ser confirmadas: o caráter dêitico da língua de sinais associado à

predominância do discurso direto na narrativa em LIBRAS são aspectos que aparecem refletidos

na estrutura sintática e nas estratégias de referenciação dos textos escritos em Língua Portuguesa

pelos alunos surdos.

Nesta parte final de nossa tese, vamos ampliar a análise feita até aqui, comparando os

dados encontrados nos nove textos do corpus. As tabelas e gráficos que apresentamos a seguir

resumem alguns dados quantitativos que apareceram em nossa análise e identificam algumas

estratégias de referenciação que aparecem nos textos analisados. Ainda que não haja preocupação

quantitativa em nosso trabalho, consideramos importante citar a quantidade de ocorrências para

ilustrar algumas particularidades encontradas.

Com base nas tabelas 1, 2 e 3, podemos chegar a algumas conclusões a respeito das

estratégias de referenciação utilizadas pelos alunos, nos seus textos, para a retomada dos objetos

de discurso Paulo, mãe e médico. Por fim, faremos, ainda, algumas considerações a respeito dos

outros dois aspectos de referenciação observados em nosso estudo: as anáforas indiretas

encapsuladoras de partes de texto e a estrutura gramatical dos discursos direto e indireto.

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Tabela 1: Anáforas diretas referentes ao objeto de discurso Paulo

Grupo I Grupo II Grupo III Texto 1 Texto 2 Texto 3 Texto 4 Texto 5 Texto 6 Texto 7 Texto 8 Texto 9 Total

nos textos

do corpus

Total no texto

original

Repetição do nome “Paulo” em diferentes sintagmas

8

1

2

9

0

0

15

0

8

43

(20%)

1

(10%) Nominalizações (“menino”, “filho”)

1

5

0

2

9

9

0

4

0

30

(14%)

2

(18%) Uso dos pronomes pessoais “eu” e “ele”

5

2

8

3

9

14

0

3

1

45

(21%)

2

(18%) Uso do pronome de tratamento “você”

0

1

0

0

0

1

3

4

0

9

(5%)

0

(0%) Uso do pronome pessoal oblíquo “o”

0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 (0%)

3 (27%)

Uso de pronomes possessivos

1

3

0

0

1

0

0

1

0

6

(3%)

0

(0%) Elipses

5

14

5

13

7

10

11

10

3

78

(37%)

3

(27%) TOTAL 20 26 15 27 26 34 29 22 12 211

(100%) 11

(100%)

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109

Tabela 2: Anáforas diretas referentes ao objeto de discurso “mãe”

Grupo I Grupo II Grupo III Texto 1 Texto 2 Texto 3 Texto 4 Texto 5 Texto 6 Texto 7 Texto 8 Texto 9 Total

nos textos

do corpus

Total no texto

original

Repetição do nome “mãe” em diferentes sintagmas

4

4

4

6

7

11

11

7

6

60

(50%)

2

(33%) Uso dos pronomes pessoais “eu” e “ela”

4

0

0

0

1

2

0

1

0

8

(7%)

0

(0%) Uso do nome da personagem (“Dona Coló”)

0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 (0%)

1 (17%)

Uso do pronome de tratamento “você”

0

0

0

1

0

0

0

0

0

1

(1%)

0

(0%) Uso do pronome oblíquo “me”

0

0

0

0

1

0

0

0

1

2

(2%)

0

(0%) Uso de pronomes possessivos

0

0

0

2

7

0

0

0

0

9

(9%)

0

(0%) Elipses

2

5

2

10

5

5

3

2

2

36

(31%)

3

(50%) TOTAL 10 9 6 19 21 18 14 10 9 116

(100%) 6

(100%)

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Tabela 3: Anáforas diretas referentes ao objeto de discurso “médico”

Grupo I Grupo II Grupo III Texto 1 Texto 2 Texto 3 Texto 4 Texto 5 Texto 6 Texto 7 Texto 8 Texto 9 Total

nos textos

do corpus

Total no texto

original

Repetição do nome “médico” em diferentes sintagmas

2

1

0

4

4

3

6

2

3

25

(57%)

0

(0%) Uso de nominalização (“Dr.”/ “Dr. Epaminondas”)

0

0

0

0

0

1

0

0

0

1

(2%)

1

(100%) Uso dos pronomes pessoais “eu” e “ele”

1

0

0

1

2

1

0

0

0

5

(12%)

0

(0%) Uso do pronome de tratamento “você”

0

0

0

0

0

0

0

1

0

1

(2%)

0

(0%) Uso do pronome oblíquo “te”

0

0

0

0

1

0

0

0

0

1

(2%)

0

(0%) Elipses

1

1

2

1

3

2

1

0

0

11

(25%)

0

(0%) TOTAL 4 2 2 6 10 7 7 3 3 44

(100%) 1

(100%)

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111

Uma análise atenta das tabelas 1, 2 e 3 permite observar que uma estratégia de

referenciação pode ocorrer em número muito maior em um determinado texto do corpus,

representando, proporcionalmente, um número considerável em relação ao total de

ocorrências da estratégia em questão. Na tabela 1, por exemplo, do número total de usos dos

pronomes pessoais do caso reto utilizados pelos alunos para a retomada do objeto de discurso

Paulo (45), mais de 30% se devem ao texto 6, em que essa estratégia de referenciação é

utilizada 14 vezes. Já na tabela 2, podemos notar uma proporção parecida no caso das elipses

utilizadas para a retomada do objeto de discurso mãe: do total de 36 usos, mais de 25% (10

casos) ocorrem no texto 4. Em relação ao objeto de discurso médico, como se pode observar

nos dados que aparecem na tabela 3, algumas estratégias de referenciação listadas aparecem

em apenas um dos textos do corpus.

Entretanto, preferimos desconsiderar, em nossas análises, essas diferenças entre a

quantidade que um recurso de referenciação é utilizado nos 9 textos do corpus. Como já

afirmamos, nossa pesquisa não tem caráter quantitativo, mas sim qualitativo e, por isso

mesmo, o que nos interessa observar são os recursos de referenciação mais prototípicos nos

textos escritos pelos alunos surdos, independente de um determinado aluno utilizar mais um

recurso que outro aluno em seus textos escritos.

Pelos dados quantitativos que aparecem nas três tabelas anteriores, percebemos que a

maior parte das anáforas feitas ocorre em relação ao objeto de discurso Paulo: das 371

anáforas diretas utilizadas em todo o corpus, aproximadamente 57% (211) são referências a

Paulo, enquanto 31% (116) são referências à mãe e apenas 12% (44), ao médico. Acreditamos

que esse número considerável de anáforas referentes a esse objeto de discurso decorra do fato

de Paulo ser o personagem central do texto e, portanto, estar o tempo todo sendo reativado ao

longo da narrativa. Mesmo no texto de Drummond, essa proporção também aparece: do total

de 18 anáforas diretas utilizadas para retomar os objetos de discurso Paulo, mãe e médico,

fazem-se 11 referências a Paulo – o que representa 61% do total – 6 referências à mãe (33%)

e apenas 1 referência ao médico, equivalente a 6% do total.

É preciso considerar também a grande diferença numérica entre a quantidade de

anáforas diretas utilizadas pelos alunos surdos e por Drummond em seu texto. Em nenhum

texto do corpus o número de referências a cada um dos objetos de discurso que estamos

analisando é menor do que o número utilizado por Carlos Drummond de Andrade. Na maior

parte dos textos, essa diferença fica mais evidenciada; apenas para exemplificar, podemos

citar os textos 5, 6 e 7:

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Tabela 4: Referências aos objetos de discurso no texto original e nos textos 5, 6 e 7 Texto original Texto 5 Texto 6 Texto 7 Referências a Paulo

11 26 34 29

Referências à mãe

6 21 18 14

Referências ao médico

1 10 7 7

Total

18 57 60 50

Como podemos observar, o número de referências feitas a Paulo nos textos 5, 6 e 7 é,

em média, 2,5 vezes maior do que o número de referências feitas, no texto original, ao mesmo

objeto de discurso. O mesmo acontece com os demais objetos de discurso analisados: o

número de referências feitas à mãe é aproximadamente 3 vezes maior nos textos escritos pelos

surdos e o número de referências ao médico, chega a ser 10 vezes maior no texto 5.

Acreditamos que o número elevado de referências aos objetos de discurso se justifique, nos

textos dos alunos surdos, porque, na versão em LIBRAS, conforme já explicamos, o narrador

representa os personagens da narrativa como em uma encenação – propriedade intrínseca aos

textos narrativos em língua de sinais. Na versão em LIBRAS utilizada em nossa pesquisa, o

personagem Paulo, muitas vezes, confunde-se com o narrador, parecendo narrar sua própria

história (foco narrativo em 1ª pessoa). Além disso, os personagens “mãe” e “médico”, desde

que são apresentados na narrativa, parecem estar o tempo todo ativos no discurso do narrador,

sendo retomados muitas vezes na encenação. Consideramos, então, que as anáforas diretas

sejam uma estratégia de referenciação bastante produtiva nos textos analisados,

principalmente por causa da influência exercida pela versão em LIBRAS sobre os textos

escritos pelos alunos surdos.

Em relação às anáforas diretas utilizadas para retomar o objeto de discurso “Paulo”, as

mais produtivas foram o uso de elipses (37% do total), o uso dos pronomes pessoais “eu” e

“ele” (21% do total) e a repetição do nome “Paulo” em diferentes sintagmas (20% do total). O

fato de os alunos não recorrerem apenas à repetição do nome, mas também utilizarem elipses

e pronomes anafóricos como estratégias de retomada do objeto de discurso mostra que, de

maneira geral, eles têm consciência das estratégias de referenciação da Língua Portuguesa.

Além disso, há, nos textos, anáforas diretas de outros tipos: as nominalizações, por exemplo,

aparecem 30 vezes no corpus, o que significa 14% do total.

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É importante chamar a atenção, ainda, para o fato de uma das estratégias de retomada

do objeto de discurso Paulo mais produtivas no texto de Drummond – o uso do pronome

pessoal oblíquo “o”, que aparece em 27% do total de anáforas diretas – não ter sido utilizada

nenhuma vez pelos alunos surdos. Acreditamos que essa seja uma estratégia mais refinada de

referência, até mesmo para aqueles que têm a Língua Portuguesa como primeira língua e, por

isso, não foi utilizada pelos surdos em seus textos. Por outro lado, o uso do tratamento “você”,

que aparece em, aproximadamente, 4% do total de anáforas diretas utilizadas para fazer

referência a Paulo nos textos escritos pelos surdos, não aparece nenhuma vez no texto de

Drummond. Isso se deve, novamente, à particularidade do texto em LIBRAS do predomínio

do discurso direto nas narrativas.

No gráfico abaixo, ilustramos as diferenças entre as ocorrências dos diferentes tipos de

anáforas diretas referentes a Paulo nos textos dos alunos, comparadas às ocorrências dos tipos

de anáforas utilizadas no conto de Drummond:

 

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Em relação às anáforas diretas referentes aos objetos de discurso “mãe” e “médico”, a

mesma produtividade se confirma, entretanto, nesses casos, a repetição é a estratégia mais

utilizada: 60 ocorrências do total de 116 anáforas referentes ao objeto de discurso

“mãe”(aproximadamente 50%); e 25 casos das 44 anáforas que aparecem no corpus para

retomar o médico (aproximadamente 57% do total). No texto original, a repetição é utilizada

para retomar o objeto de discurso “mãe” em aproximadamente 33% dos casos (2 vezes das 6

referências totais). No caso do médico, a repetição não é utilizada nenhuma vez no texto

original e a única referência feita a esse objeto de discurso é através do nome do personagem

“Dr. Epaminondas”.

A respeito da estratégia de fazer referência ao personagem citando seu nome, cabe

lembrar que, no final do conto, as personagens “mãe” e “médico” recebem nomes no diálogo

que estabelecem entre si: Dona Coló e Dr. Epaminondas. Tais nomes, inclusive, funcionam

como referência a cada um dos objetos de discurso no texto de Drummond. No texto em

LIBRAS, entretanto, estes nomes não são explicitados pelo monitor surdo e, por isso, os

alunos que escreveram os 9 textos de nosso corpus não tiveram acesso a essa possibilidade de

fazer referência aos nomes das personagens. Como esses dois personagens já são apresentados

aos alunos como “mãe” e “médico”, reduzem-se as possibilidades de fazer referência a eles

por meio da estratégia de nominalização, por exemplo.

A ativação do objeto de discurso Paulo é feita por um nome próprio e, por isso, é mais

fácil que os alunos consigam utilizar outros nomes mais genéricos para fazer referência a

Paulo, como “o menino” ou “o filho”, evitando sua repetição. Por outro lado, uma vez que os

objetos de discurso mãe e médico já são ativados por nomes genéricos, fica mais difícil evitar

a repetição como estratégia de retomada, uma vez que as possibilidades de fazer referência a

tais objetos de discurso são mais reduzidas.

A segunda estratégia mais produtiva de retomada do objeto de discurso “mãe” nos

textos dos alunos é o uso de elipses, que ocorrem em 31% (36 vezes) do total de casos. No

texto original, o uso de elipses é a estratégia mais produtiva para retomar esse personagem,

ocorrendo em 50% das anáforas destinadas a esse fim. Além disso, os alunos utilizaram

inúmeros outros recursos para retomar o objeto de discurso “mãe”: pronomes “eu” ou “ela”

(em 7% dos casos), “você” (em 1% dos casos), “me” (em 2% dos casos) e pronomes

possessivos (em 9% dos casos). Nenhum deles aparece no conto de Drummond como

anáforas referentes a esse objeto de discurso.

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O gráfico a seguir evidencia a relação quantitativa entre as anáforas diretas utilizadas

pelos alunos para fazer referência ao objeto de discurso “mãe” em comparação às usadas no

conto:

Quanto às anáforas diretas utilizadas para retomar o personagem “médico”, a mais

produtiva, como já relatamos, é a repetição do vocábulo em diferentes sintagmas: “médico”,

“o médico”. Em todos os textos analisados, com exceção do texto 3, o recurso da repetição é o

mais usado (57%), para esse objeto de discurso, como evidenciamos na tabela 4. Os

percentuais que aparecem nas colunas dos textos referem-se à proporção com que o aluno que

escreveu cada texto utilizou o recurso da repetição para retomar o personagem “médico”:

Tabela 5: Retomada por repetição do objeto de discurso “médico” nos textos do corpus Texto

1 Texto

2 Texto

3 Texto

4 Texto

5 Texto

6 Texto

7 Texto

8 Texto

9 Retomada

de “médico”

por repetição

50%

50%

0%

67%

40%

43%

86%

67%

100%

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Além desse recurso, as elipses aparecem também em número considerável,

representando 25% do total de anáforas utilizadas para fazer referência ao médico nos textos

do corpus. Os outros recursos utilizados são o uso de “Dr.”, que aparece apenas no texto 6 e

representa 2% do total de anáforas; o uso dos pronomes pessoais “eu” e “ele”, representando

12% do total; e o uso dos pronomes “você” e “te”, representando, cada um, 2% do total.

No gráfico 3, é possível visualizar as relações numéricas, descritas até aqui, a respeito

do objeto de discurso “médico”:

Sintetizando, como podemos perceber com as análises quantitativas feitas, as anáforas

diretas mais produtivas nos textos escritos pelos surdos são a repetição do nome através do

qual o personagem foi ativado no discurso, a elipse e o uso de pronomes pessoais do caso

reto. Na substituição por pronomes, fica evidenciada a dificuldade que os surdos encontram

para organizar adequadamente as frases nos discursos direto e indireto. Apenas os textos 1 e 2

(pertencentes ao grupo I) não apresentam problemas nesse item. Em todos os outros é possível

encontrar, sobretudo, uma mistura das pessoas gramaticais na construção das frases que

representam as “falas” das personagens.

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Parece-nos, entretanto, que os autores dos textos pertencentes ao grupo II ousam mais

ao tentar aplicar diferentes tipos de discurso em seus textos: conhecem os recursos do

Português, embora não consigam aplicá-los perfeitamente. Por esse motivo, encontramos

frases que se iniciam com uma estrutura de discurso indireto e, no meio, passam a se

organizar nos moldes do discurso direto. Muitas vezes, observamos trechos em que os alunos

misturam a primeira e a terceira pessoas do discurso em uma mesma frase, tornando o texto

confuso. Essa confusão entre as pessoas gramaticais tem reflexo, sobretudo, na escolha das

anáforas diretas utilizadas para reativar os objetos de discurso ao longo do texto, como se

pode observar nas análises feitas a partir das tabelas 1, 2 e 3.

Ainda que seja um mecanismo de referenciação mais complexo e apareça poucas

vezes no corpus, chama atenção o fato de todos os textos (exceto o 9) usarem anáforas

indiretas encapsuladoras de porções do texto, como os pronomes demonstrativos “o” e,

principalmente, “isso”, com função anafórica. Além disso, algumas palavras e expressões

rotuladoras, como “mentira”, “verdade”, “problema mental”, aparecem em todos os textos,

sem exceção, mostrando que os alunos surdos utilizam essa estratégia de referenciação, ainda

que não se possa comprovar que eles tenham consciência da sua importância na Língua

Portuguesa. O fato é que, no texto em LIBRAS, as ações de Paulo também são rotuladas.

Então, o que os alunos fazem, nesse caso, é apenas passar para o Português uma informação e

uma estratégia de referenciação que já existem em sua primeira língua.

Consideramos, também, que o desfecho do texto (“um caso de poesia”) seja construído

por meio de uma estratégia de encapsulamento. Em quase todos os textos de nosso corpus,

exceto 3 e 9, esse encapsulamento ocorre, apenas com alterações na forma: “Paulo só conta

poesias” (texto 1), “ser poema e imaginar é normal” (texto 4), “por isso é poesia” (texto 5),

“por causa poesia” (texto 6). No texto 3, parece-nos que o aluno não compreendeu a

mensagem final da narrativa e, por isso, no desfecho, classifica as ações de Paulo como

mentiras (“Paulo bem, só mentiroso”). Já no texto 9, a desorganização no desenvolvimento

geral do texto permite concluir que o aluno não compreendeu várias partes da narrativa e não

só o seu desfecho – além de não dominar a língua portuguesa.

É possível perceber que os alunos surdos que escreveram os 9 textos do corpus têm

consciência dos mecanismos anafóricos que podem usar em um texto escrito em Língua

Portuguesa, embora seja preciso aperfeiçoar, nesses alunos, a maneira como aplicar tais

mecanismos, evitando excessos e inadequações. Conhecendo, de alguma forma, as

propriedades da Língua Portuguesa, o aluno surdo pode tentar utilizá-las, mas parece que

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sempre haverá alguma marca em seu texto que mostre as influências de sua primeira língua, a

língua de sinais. É a partir dessa marca e da reflexão que se pode estabelecer sobre ela, que

acreditamos que deve ser desenvolvida uma metodologia de ensino de Língua Portuguesa

para alunos surdos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa pesquisa pretendeu propor um novo olhar sobre textos escritos por alunos

surdos. Abordamos, nas análises, alguns aspectos de referenciação, observando de que forma

eles decorrem de alguma relação entre a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e a Língua

Portuguesa. Não tivemos, aqui, a pretensão de esgotar o tema, mas lançar luz sobre textos

raramente analisados no meio acadêmico e, muitas vezes, desconhecidos pela maioria dos

professores.

Com nossa pesquisa, iniciamos as reflexões sobre como os processos referenciais

organizam a construção da coerência nos textos dos surdos, o que caracteriza, inclusive, a

originalidade de nossa tese e, naturalmente, sua relevância teórica para os estudos em

referenciação. Nesse sentido, acreditamos que nosso trabalho apresenta uma contribuição

valiosa para o ensino de Língua Portuguesa para surdos, não só por tornar públicos os textos

escritos por estes indivíduos, mas também por propor reflexões que levem em conta a

especificidade linguística desse público.

Acreditamos que, com a análise dos dados recolhidos em nossa pesquisa, pudemos

comprovar nossa hipótese inicial de que a maioria dos problemas referentes aos mecanismos

de referenciação e à progressão textual que aparecem nos textos escritos em Língua

Portuguesa pelos alunos surdos ocorre devido à influência da estrutura visuoespacial da

LIBRAS, que está diretamente relacionada à maneira como o surdo organiza, inclusive, seu

pensamento.

Com as análises feitas, foi possível identificar as estratégias de referenciação mais

prototipicamente utilizadas pelos surdos e perceber que a maior dificuldade apresentada nos

textos de nosso corpus é de natureza sintática e de coesão no que se refere ao uso dos

pronomes. Além disso, cremos que pudemos comprovar que os alunos surdos informantes de

nossa pesquisa não apresentaram, em seus textos, graves problemas no uso dos processos

referenciais anafóricos. Na verdade, de maneira geral, foram as anáforas, mesmo nos casos de

repetição, que orientaram o leitor auxiliando a organização dos textos que eles produziram.

Grande parte dos problemas textuais que apareceram nos textos analisados deve-se à

falta de domínio da habilidade de passar o discurso direto para o indireto, o que também é um

problema para os alunos ouvintes, como podemos comprovar por nossas práticas anteriores

em sala de aula. Fato é que a modalidade escrita da Língua é extremamente mais complexa

que a falada e, no caso dos alunos surdos, a questão torna-se muito mais complicada, uma vez

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que, de maneira geral, eles partem de um equivalente à modalidade “oral” de sua língua para

o pólo absolutamente oposto: a modalidade escrita da Língua Portuguesa.

Além disso, cabe ressaltar que vários diálogos, derivados da versão em LIBRAS,

aparecem, nos textos do corpus; isso decorre da tentativa de contextualizar os eventos ao

longo da narrativa – o que é muito comum na versão em LIBRAS. Essa recorrência de

diálogos é, portanto, verdadeiro reflexo da língua de sinais, e os problemas estruturais nesses

trechos são consequência do desconhecimento da composição dos discursos direto e indireto

em Língua Portuguesa, pois o que funciona muito bem na versão em LIBRAS nem sempre dá

certo na passagem para a escrita.

É possível, ainda, observar várias outras questões, igualmente relacionadas à

influência da LIBRAS, que frequentemente aparecem nos textos escritos por surdos. Não nos

coube, entretanto, analisar todas, pois privilegiamos, em nosso trabalho, aspectos relativos às

estratégias de referenciação. É necessário que se desenvolvam, portanto, outras pesquisas a

partir do texto escrito pelos surdos que, há muito, vêm merecendo um olhar mais atento por

parte daqueles que pensam a educação de surdos, principalmente dos professores de Língua

Portuguesa.

Como sugestões de pesquisas futuras, dentre outras, podemos destacar:

• Investigações sobre como se efetiva o procedimento dêitico da LIBRAS, à luz das

teorias de Lyons (1977) e Levinson (1983), e sua influência no texto escrito em Língua

Portuguesa;

• Análises mais profundas a respeito da maneira como o processamento cognitivo do

sujeito surdo influencia a produção textual (em LIBRAS ou em Língua Portuguesa) desse

sujeito;

• Análise dos textos escritos por surdos, observando possíveis problemas de coesão e

coerência decorrentes do uso de substantivos/adjetivos/verbos que apresentam um mesmo

radical na Língua Portuguesa (mentira/mentiroso/mentir) e um mesmo sinal na LIBRAS

• Desenvolvimento de metodologias explícitas de ensino de segunda língua (em seus

mais variados aspectos – morfológicos, sintáticos, semânticos...) que levem em consideração

a especificidade linguística do indivíduo surdo e todas as possíveis influências que a LIBRAS

exerce sobre o texto escrito por esse indivíduo.

Diante dessas reflexões, é preciso definir que atitude tomar, em sala de aula, com o

aluno surdo. A abordagem comum quanto ao ensino de Português para surdos depende de

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como consideramos esses indivíduos. Há algum tempo, os surdos vêm lutando para serem

reconhecidos como pertencentes a uma comunidade linguística específica: a dos usuários da

LIBRAS como língua de identidade. Entretanto, socialmente, ainda falta muito para esse

reconhecimento, pois a maioria das pessoas considera que os surdos sejam deficientes

inseridos na comunidade linguística da Língua Portuguesa. Na maioria das escolas do Brasil,

o surdo é apenas incluído em sala de aula, sem levar em consideração sua especificidade

linguística, apesar de essa característica ser tão importante para um ensino eficiente.

No entanto, algumas pesquisas têm sido feitas no sentido de tornar cada vez mais claro

que a LIBRAS deve ser a língua de instrução dos surdos em sala de aula e, dessa forma, o

professor de Português (e também de outras disciplinas) deve conhecer a língua de sinais e

todas as suas particularidades, não só para estabelecer comunicação com o educando surdo,

mas também para criar estratégias de ensino voltadas para este público, considerando que sua

primeira língua não é o Português.

Os textos apresentados em nossa pesquisa mostram que, de maneira geral, a despeito

de produzirem textos sintaticamente comprometidos, os surdos podem se fazer entender.

Entretanto, diante desse reconhecimento, é preciso que se defina que tipo de ensino de Língua

Portuguesa se deseja dar aos alunos surdos. Há duas opções possíveis: propiciar-lhes um

ensino que os faça conquistar o merecido respeito social, nivelando-os em par de igualdade

aos sujeitos não surdos; ou aceitar que a língua de sinais leva a uma escrita diferenciada da

norma e, por isso, os textos escritos pelos surdos sempre apresentarão problemas?

Avaliar os textos dos surdos de maneira diferente, levando em conta as especificidades

de sua primeira língua, parece-nos uma medida imediata e urgente. Entretanto, não

defendemos, aqui, o comodismo de tentar convencer a sociedade de que há uma “escrita dos

surdos”, pois, dessa forma, acreditamos que estaríamos contribuindo para uma maior

marginalização desses sujeitos.

É preciso que se reflita sobre a língua de sinais, em sala de aula, de modo a estabelecer

paralelos entre a LIBRAS e a Língua Portuguesa. Assim, as metodologias de ensino-

aprendizagem devem levar em conta essa inter-influência, cujas características estarão

presentes nos textos escritos pelos sujeitos surdos. O professor precisa identificar essas

características, reconhecer suas causas e criar mecanismos que façam com que o aluno surdo

reconheça as especificidades das duas línguas. Dessa forma, o aluno será capaz de refletir

sobre as duas línguas, tornando-se um sujeito efetivamente bilíngue. Apenas assim,

acreditamos que o ensino de uma segunda língua para surdos possa ser, de fato, eficiente.

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Por fim, destacamos, mais uma vez, o valor de trabalhos como o nosso, ou seja, que

tomem, como ponto de partida, os textos escritos pelos surdos. Entretanto, ressaltamos que

não propomos tais pesquisas na intenção de criar uma espécie de “modelo textual” da

comunidade surda, fazendo com que se propague a ideia de que o surdo escreve de uma certa

maneira, às vezes confusa, e que nada se pode fazer a respeito disso. A importância de tais

textos passarem a figurar nas pesquisas acadêmicas em seus mais diferentes níveis é de que,

efetivamente, se estabeleçam análises produtivas que comecem a reconstruir o ensino de

Língua Portuguesa para surdos na direção de um efetivo bilinguismo. Desse modo, os

indivíduos surdos poderão conquistar o respeito e a igualdade linguística por que tanto lutam.

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