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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA - MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO A QUESTÃO ÉTICO-ESTÉTICA ENTRE KANT E SARTRE Élisson de Souza e Silva CURITIBA 2011

Ética e Estética Em Kante e Sartre

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CINCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA - MESTRADO REA DE CONCENTRAO: HISTRIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORNEA

    DISSERTAO DE MESTRADO

    A QUESTO TICO-ESTTICA ENTRE KANT E SARTRE

    lisson de Souza e Silva

    CURITIBA

    2011

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    SETOR DE CINCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA - MESTRADO

    REA DE CONCENTRAO: HISTRIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORNEA

    lisson de Souza e Silva

    A QUESTO TICO-ESTTICA ENTRE KANT E SARTRE

    Dissertao apresentada como requisito parcial

    obteno do grau de Mestre do Curso de Mestrado em

    Filosofia do Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes

    da Universidade Federal do Paran.

    Orientador: Prof. Dr. Vincius Berlendis de Figueiredo.

    Curitiba

    2011

  • A uma me*

    Que por breve

    Existir

    Em minha

    Mais longa

    Existncia,

    Fez-me

    Livre para

    Mudar de vez

    Os caminhos

    Da dvida,

    As confidncias

    Da razo

    E as inquietudes

    Do corao.

    (*in memoriam)

  • Resumo: Considerando que Sartre situa a obra de arte, mais especificamente a literatura, de imediato ao nvel do imperativo categrico kantiano, e que Kant, por sua vez, eleva o belo como smbolo da moral, o objeto de estudo desta pesquisa esclarecer se a separao entre tica e esttica, para esses dois autores, mesmo legtima. Se para Sartre a esttica est no plano do imaginrio e a tica no plano real, como conceber a intersubjetividade sem antes atentarmos para a liberdade na instncia prtica entre o autor da obra e o pblico a quem se direciona? Alm disso, se a escrita, para Sartre, a constituio da subjetividade e a leitura um apelo intersubjetividade, no idealismo kantiano essa corts solicitao objetiva s tem cabimento com a espontaneidade da reflexo. Para ambos os filsofos, o juzo do leitor, portanto, definitivamente deve ser livre. Porm, essa liberdade, quando da atividade reflexionante, implica em Sartre certa distoro ao aceitar a universalidade esttica quase que como um imperativo. Pois esse juzo reflexionante que Sartre diz imergir no imaginrio a fim de interromper a passividade do leitor para torn-lo um ser ativo, se posicionando no mundo para nele agir concretamente. J para Kant, a universalidade do belo requerida pelo gosto no deve ser entendida como um imperativo, mas um juzo possvel na reflexo de cada um. Ora, atravs desse estudo, veremos que, para ambos, h uma autonomia da esttica em relao tica, porm, no de forma imparcial, mas uma provvel derivao esttica do campo moral. Palavras-chave: Esttica, tica, Literatura, Arte, Juzo do Gosto, Engajamento

    Abstract: Whereas Sartre situates the work of art, and more specifically literature, immediately to the level of the Kantian categorical imperative, and that Kant, by his turn, raises the beautiful as a symbol of morality, the object of this research is to clarify whether the separation between ethics and aesthetics, for both authors, it is legitimate. If, for Sartre, aesthetics is at the imaginary plan and ethics is in the real, how to conceive of intersubjectivity without first paying attention to the freedom in the practical instance between the author of the work and the public to whom it is directed? Also, if writing, for Sartre, is the constitution of subjectivity and reading is an appeal to intersubjectivity, in Kantian idealism that polite and objective request is only available with the spontaneity of reflection. For both philosophers the judgment of the reader, therefore, should definitely be free. However, this freedom, when the activity of reflection, implies in Sartre some distortion in accepting the aesthetic universality almost as an imperative. So this is the reflective judgment that Sartre says to immerse in the imaginary in order to stop the passivity of the reader to make him to be an active being, positioning itself in the world to take concrete action on it. As for Kant, the universality of beauty required by the taste should not be understood as an imperative, but a possible judgment in the reflection of each one. Now, through this study, well see that, for both, there is autonomy of aesthetics in relation to ethics, but not in an impartial way, but likely an aesthetic derivation of the moral field. Keywords: Aesthetics, Ethics, Literature, Art, Judgment of Taste, Engagement

  • ndice

    Introduo .......................................................................................................... 1

    I. Literatura e engajamento em Sartre, a esttica sob um plano tico .......... 10

    II. O desinteresse e a negao do real .............................................................. 26

    III. Sartre do nada ao ser imaginante ............................................................. 34

    IV. A literatura e o papel do outro na questo tico-esttica ......................... 40

    V. A intersubjetividade kantiana atravs da reflexo ..................................... 49

    VI. O sentimento de prazer e o juzo do gosto ................................................. 57

    VII. Forma e finalidade sem fim ......................................................................... 61

    VIII. Kant e o belo como smbolo do moralmente bom ................................... 66

    IX. Sartre - existencialismo e liberdade na emancipao literria ................. 74

    X. A fruio esttica ........................................................................................... 79

    XI. A condio histrica da literatura ................................................................82

    XII. Kant e Sartre, a esttica moderna sob o olhar contemporneo .............. 91

    Consideraes finais .......................................................................................... 99

    Referncias Bibliogrficas .............................................................................. 101

  • Agradecimentos

    Agradeo ao meu orientador, Prof. Dr. Vinicius Berlendis de Figueiredo que, com

    pacincia, confiana, ateno e rigor, tornou possvel a execuo desta pesquisa.

    Agradeo no s por ter me auxiliado desde os cursos da graduao at o Mestrado, mas

    por sua generosa amizade construda em meio acadmico. Por ter me instigado a

    investigar a obra de Kant com tanto rigor e profissionalismo, orientando-me em pesquisa

    de Iniciao Cientfica.

    Agradeo ao Prof. Dr. Luis Damon Moutinho, por ter me auxiliado em

    orientaes e ter despertado meu interesse em Sartre com provocaes reflexivas desde

    a Graduao, na qual foi meu Orientador de monografia. Agradeo ao Prof. Dr. Leandro

    Cardim por seus valiosos conselhos durante a banca de qualificao de Mestrado.

    Agradeo a todos os professores do Departamento de Filosofia da UFPR, principalmente

    aqueles que me envolveram em grupos de estudos ou eventos afins.

    Minha especial gratido aos meus familiares, em especial meu pai, Bento de

    Oliveira e Silva, que dispensa mencionar aqui o apoio sempre efetivo que tem me dado.

    Agradeo ao apoio cedido pelo Sesc Pao da Liberdade, empresa a qual fao

    parte da equipe de produo e programao, mais especificamente Gerente Executiva

    Celise Niero, por ter sido compreensvel pelo precioso tempo que necessitei para o

    desenvolvimento e elaborao desta dissertao e por ter me envolvido em vrios

    projetos e eventos de ordem filosfica ou acerca das Cincias Humanas.

    Por fim, pelas longas conversas e provocaes que me envolveram cada vez mais

    no universo filosfico e contriburam para ampliar meu conhecimento sobre vrios

    autores e questes do gnero, minha gratido a todos os colegas que me acompanharam

    durante esses anos.

  • No existe meio mais seguro para fugir do mundo do que a arte, e no h forma mais

    segura de se unir a ele do que a arte.

    (Johann Wolfgang von Gethe), Mximas e reflexes, XIII, 3.

    Em arte tudo est naquele nada.

    (Leon Tolstoi), O que arte?

    A arte a mentira que nos permite conhecer a verdade.

    (Pablo Picasso)

    Toda arte completamente intil.

    (Oscar Wilde) O retrato de Dorian Gray, Prefcio

  • 1

    INTRODUO

    Quando Sartre menciona, em Que a Literatura?, que a obra de arte ou

    literria deve elevar-se imediatamente ao nvel do imperativo categrico, um certo

    estranhamento nos vem em mente, pois fazer meno a Kant, principalmente com

    esta afirmao, traz tona uma discusso confrontante no que diz respeito

    relao entre tica e esttica. Portanto, levantamos aqui uma questo primordial,

    a qual transitar por toda esta pesquisa: plausvel considerar uma fuso entre

    tica e esttica?

    Amar e admirar a beleza vantajoso para o afeto social, e de grande

    auxlio virtude, que no outra coisa seno o amor ordem e beleza na

    sociedade.1 Esta frase atribuda a Anthony Ashley Cooper, Terceiro Conde de

    Shaftesbury (1671-1713), filsofo que acreditava existir em ns um senso esttico

    inato, assim como existe um senso moral. Para ele, poltica e esttica encontram-

    se integradas e agem sobre o homem assim como agem sobre o meio.

    Considerando a influncia deste autor sobre a obra de Kant e,

    curiosamente, pela notvel aproximao com o discurso de Sartre, nada mais

    oportuno que introduzirmos brevemente esta pesquisa com algumas reflexes

    desse pensador ingls, a fim de pleitear um debate controverso a que, mais

    adiante, nos reportaremos: a relao tico-esttica.

    Shaftesbury inseriu sua filosofia o imperativo estico da tica esttica,

    partindo da premissa de que toda beleza verdadeira. em Solilquio ou

    Conselho a um Autor que ir abordar a relao entre o escritor, seu pblico e a

    interveno da crtica. Baseando-se em Horcio, Shaftesbury considerava que a

    habilidade de um escritor da Antiguidade se fundamentava em conhecimento e

    sensatez provindos no s de tcnicas artsticas, mas de regras particulares da

    arte, que somente a filosofia expe. 2 O mesmo filsofo faz, ento, uma leitura

    dos diversos gneros da escrita desde a Antiguidade, relatando, sobretudo, os

    gneros poticos. A escrita clssica, de forma potica, carregava consigo relatos

    1 SHAFTESBURY, (Charactetistics) apud Eagleton, T. A ideologia da esttica, Zahar, Rio de

    Janeiro, 1990, p. 32. 2 SHAFTESBURY, Solilquio ou conselho a um autor (104), traduo livre de Ligia Caselato.

  • 2

    histricos de costumes e caractersticas das antigas civilizaes. Graas a esses

    escritos, podemos ter noo da dimenso tica e moral que vigorava naqueles

    tempos. Se o poeta, homem de valores, no fosse digno e bom, sua arte no

    seria valorosa e no teria jamais tal grandeza. atravs dos escritos clssicos

    que Shaftesbury reconhece que no podemos apenas conhecer os outros, ou as

    pessoas daquela poca, mas o que era mais importante e de maior virtude

    nelas, pois nos ensinavam a conhecer ns mesmos.3 Esses mtodos

    dramtico-especulativos de desenvolvimento da arte potica, ora herica, ora

    simples, ora trgica, ora cmica, representava ao homem um espelho dele

    mesmo4 ou, nas palavras de Shaftesbury, um vidro refletor para a poca, de

    modo que carregavam virtualmente consigo histrias de emoes e sentimentos

    humanos, despertados por aqueles que tinham em seu gnio a vocao para a

    escrita. A arte potica da Antiguidade tinha em seu poder a sublimidade em

    descrever o mundo e encant-lo ao mesmo tempo. Shaftesbury critica a sua

    poca pela perda desse valor e do potencial artstico reluzente na era Clssica.

    Segundo suas consideraes, o autor de seu tempo tinha o hbito de falar sobre

    si, articulando sua tcnica e humor para se comunicar com o sujeito a quem se

    endereava. Porm, o mau uso dessa prerrogativa gerava uma espcie de

    coquetismo modal, conforme relata:

    Um autor que escreve em sua prpria pessoa tem a vantagem de ser quem ou o que desejar. No um certo homem nem possui algum carter especfico ou genuno, mas adequa-se a cada momento fantasia de seu leitor, de quem, como agora moda, constantemente cuida e adula. Tudo gira em torno de suas duas pessoas. (Shaftesbury, Solilquio ou conselho a um autor (104), traduo livre de Ligia Caselato)

    Por conta disso, a relao entre o autor e leitor, ora existente na era

    clssica, havia desaparecido. Falar de si, nesse mpeto, era excluir o dilogo a

    ponto de omitir a universalidade humana. Para Shaftesbury, assim como o pintor

    que ao retratar uma batalha reproduz em sua obra diferentes figuras que

    representam gestos, hbitos e realidades de povos distintos, o escritor deveria

    fazer o mesmo, relatando no apenas seus prprios costumes, mas coletivamente

    a sociedade e a proporo histrica nela contida, sabendo, acima de tudo,

    3 Idem, (104).

    4 Observaremos um apontamento anlogo a Sartre, mais adiante.

  • 3

    dialogar.5 Shaftesbury denomina artista moral esse escritor que imita a criao da

    estrutura e forma interna de seus semelhantes com tamanha harmonia e

    engenhosidade a ponto de, atravs da alteridade, poder conhecer a si mesmo.

    Ora percebemos que o estreitamento entre tica e esttica faz seus rumores j no

    projeto intencional da produo. Se por um lado o escritor deve enaltecer seu

    processo criativo, de outro, deve fazer-se notar no s pelo leitor, mas pela

    crtica. Para Shaftesbury, que se baseava na crtica surgida na Antiguidade,

    inclusive elogiando a rigorosa metodologia sofista, os crticos so os apoios e os

    pilares da construo literria.

    Conforme veremos em anlise histrica de Sartre, Shastesbury examina a

    situao dos escritores de sua poca, fazendo uma severa crtica principalmente

    no que diz respeito influncia externa que os artistas recebiam e que

    indiretamente transpunham a sua arte. A arte verdadeira, porm, para ele, no

    deve provir somente da persuaso da crtica ou de qualquer agente externo, quer

    seja autoridades ou pblico; a arte verdadeira nasce da liberdade e tcnica

    imanente no gnio artstico. E da que Shaftesbury afirma que o escritor dotado

    de habilidade chama o mundo para si, e no simplesmente se adqua a ele,

    revelando sua fragilidade perante ele.

    O que mais evidente nas acusaes de Shaftesbury que os escritores

    de sua poca encontravam-se completamente acomodados e vulnerveis ao

    gosto pblico, e assim modelavam sua arte conforme a genialidade passiva e

    esttica daquele tempo: Hoje em dia a audincia faz o poeta, e o editor o autor;

    com proveito para o pblico, (...).6 Essa acusao shaftesburiana e seu olhar

    sobre a deficincia e prejuzo assumido pelos autores em sua condio passiva,

    que h muito se distanciaram do esprito altivo dos clssicos, nos assaz

    proveitosa para ento decorrermos sobre a anlise esttica de efeito comunicativo

    e moral, que mais adiante ser refletida em Sartre.

    Para Shaftesbury, o poeta deveria recorrer aos filsofos a fim de se tornar

    mestre nos tpicos comuns de moralidade. Os poetas, os escritores e os artistas

    em geral, deveriam, na concepo shaftesburiana, potencializar suas idias

    concebidas de seus intelectos e de especulaes filosficas, a fim de aperfeioar

    5 SHAFTESBURY, Solilquio ou conselho a um autor, (Parte I, Seo 3, 106-108).

    6 Idem, ( 139).

  • 4

    a mente e o entendimento; um olhar substancial para dentro de si mesmo, um

    encontro com seu interior, um mistrio que habita o individualismo do sujeito e

    que se revela na criao artstica, ora, um caminho que leva sabedoria. O gnio

    no s se distingue pela sua genialidade tcnica e originalidade, mas pela

    inteleco de seu pensamento. A exemplo de Plato, Shaftesbury acreditava que

    o artista deveria ser um entusiasta, e tanto o escritor quanto o artista deveriam se

    questionar para poder se fazer expressar, descobrir o ser humano em sua

    totalidade, sua imensido e riqueza de sentimentos que se extravasam ao

    comunicar. Tal a moralidade que carrega esse ser singular em seu ofcio.

    Shaftesbury, por isso, responde a questes muito adiantadas dentro do universo

    esttico (questes essas que estaro em evidncia na teoria sartriana sobre a

    literatura), elevando o gnio ao status daquele que tem a partir de si o poder de

    mobilizar o mundo. O contemplador da obra de arte, por sua vez, pode elevar seu

    esprito idia do bem, pois a percepo de belas formas sensveis eleva o

    esprito progressivamente s formas inteligveis e influi no comportamento

    humano, por conseguinte, tem efeito sobre a sociedade. Com isso, Shaftesbury

    quer dizer que o belo sensvel o reflexo do belo moral, o que pode remeter a

    uma possvel verdade intelectual. Eis aqui um ponto de notvel influncia exercida

    questo kantiana do belo representado como smbolo da moral.

    Deixando agora Shaftesbury, e ainda nos reportando ao sculo XVIII,

    conferimos que a arte nessa poca recebe uma conotao terica e exerce, em

    paralelo, uma efetiva participao crtica filosfica que ser responsvel pela

    criao de novas concepes do belo e por um novo campo da filosofia: a

    Esttica. Esta disciplina foi primeiramente estudada por Baumgarten (1714-1762),

    tendo em sua gama terica um amplo desenvolvimento nas filosofias de Kant e

    Hegel. Vrias cincias, antes disso, se vinculavam e norteavam a problemtica

    conceptual da esttica e do gosto. Suas teorias correspondiam a uma prxis e,

    portanto, pretendiam estabelecer normas e diretrizes para a produo artstica,

    idealizando formas e definindo cnones para a arte em geral.

    Em Baumgarten, embora fique claro a distino entre o inteligvel e o

    sensvel, parece no haver uma separao perene entre arte e moral. Tanto que,

    baseando-se em Horcio, a certa altura afirma: Mas a verdade esttica busca to

    somente aquela possibilidade moral que se apresente ao anlogon da razo sob

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  • 5

    a apreciao dos sentidos. Esta a VERDADE MORAL, como ensina Horcio,

    (...).7 (grifo meu)

    A Esttica de Baumgarten est fundamentada na mimesis. Por mais que

    haja inveno (o que considera invenes utpicas) somada ao talento do artista,

    a arte, bem como a poesia, produzida se baseando em idias de reprodues

    pr-concebidas pela imaginao. Aos olhos de Baumgarten, o objetivo da

    esttica, como nova cincia, visava perfeio do conhecimento sensitivo; que,

    em alguns momentos, ser entendido como conhecimento intuitivo.

    O historiador de arte Giulio Carlo Argan, em leitura de Baumgarten,

    delimita o terreno da esttica inserindo-a entre a moral e a lgica:

    (...) uma filosofia da arte, o estudo, sob um ponto de vista terico, de uma atividade da mente: a esttica, de fato, se situa entre a lgica, ou filosofia do conhecimento, e a moral, ou filosofia da ao. tambm, notoriamente, a cincia do belo, mas o belo o resultado de uma escolha, e a escolha um ato crtico ou racional, cujo ponto de chegada o conceito.

    8 (grifos

    meus)

    Embora Argan no desenvolva sua argumentao com esmero nesta

    descrio, e seja assertivo em suas palavras, isto no quer dizer que essa sua

    afirmao concorde com a de outros tericos, principalmente no que se refere

    obteno de um conceito atravs do belo ou em situar a esttica entre a lgica e a

    moral. fato que a esttica do sculo XVIII teve um encontro com a lgica. A

    busca de um conhecimento puro se encontrava com a intuio artstica para

    utilizar seus critrios a fim de se compreender a natureza do belo. No obstante

    esse casamento entre sentimento e lgica, iniciado por Baumgarten, trouxesse

    uma melhor anlise e sutileza no carter evolutivo do belo, a arte conduzida a

    uma rigidez racional e submetida a um estudo criterioso, a fim de que se

    comprove sua autenticidade. Todavia, de um lado, a arte poderia estar perdendo

    a sua representatividade de prazer ou desprazer que desperta no homem o

    contedo emotivo. De outro lado, a arte ganhava uma conotao superior por

    envolver todo um estudo acerca de seus estatutos. Essa conduta investigativa

    recebeu uma forte influncia de Descartes, pela forma estrutural de sua filosofia.

    7 BAUMGARTEN, A. G. Esttica a lgica da arte e do poema, Vozes, Petrpolis, 1993, p. 126

    435; 8 ARGAN, J. C. Arte Moderna, cap. 1 Clssico e Romntico, 1988, p. 21 e 22.

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  • 6

    Seu legado influenciou ativamente o pensamento literrio do Esclarecimento, que

    fez surgir uma literatura de sentimento. O homem que apelava razo agia

    racionalmente, e o homem da emoo agia conforme seu desejo e necessidade

    espiritual e material. neste ltimo, mais que no homem da razo, que haver a

    prefigurao do movimento romntico, conforme a anlise de Hauser.9

    Considerando que existem leis universais para a natureza, uma das

    questes centrais da Esttica era definir as leis universais e axiomas que regem a

    arte partindo do pressuposto que o belo tem a capacidade imediata de atribuir

    valor universal. Essa universalidade encontrada na peculiaridade de uma nica

    obra de arte, na qual o juzo reconhece as particularidades que a fazem

    incomparvel. Mesmo havendo uma separao evidente entre gosto, moralidade

    e cognio, Kant reconhece a importncia filosfica do gosto. Para ele, o gosto

    subjetivo, portanto, no seria admissvel o uso de um nico critrio para o

    julgamento de uma obra de arte, sendo que tanto o artista quanto o pblico

    atribuem valor obra consoante suas experincias e particularidades. Neste

    aspecto, seria embaraoso conceber uma universalidade para o juzo; do mesmo

    modo, tornar-se-ia irrealizvel prosseguir no estudo sem recorrer aos

    procedimentos lgicos e cientficos. Kant pretender ento esclarecer um juzo

    esttico que possa ser compartilhado por todos.

    Mas como entender, frente subjetividade, a esttica a ponto de se

    atribuir a ela um juzo que possa ser compartilhado por todos? Primeiramente,

    devemos considerar que a experincia esttica provm da idia de beleza que ,

    tambm, uma idia universal da razo, ou seja, mesmo o gosto variando em cada

    sujeito, o sentimento do belo universal. Para o terico Hans Robert Jauss, que

    mais adiante nos auxiliar na compreenso terica de Sartre, a esttica, em seu

    sentido tradicional, pode ser interpretada atravs de trs conceitos que a definem

    plenamente e descrevem historicamente o prazer esttico, so eles: a poiesis, a

    aesthesis e a catharsis. A poiesis, no sentido peripattico, pode ser entendida

    como um processo fundamental da experincia esttica produtiva, ou seja, a qual

    admite que o homem satisfaz sua necessidade de ser-estar no mundo atravs da

    produo artstica. A aesthesis, por sua vez, baseando-se no em Aristteles,

    9 HAUSER, Arnold; Histria social da literatura e da arte tomo II, Editora Mestre Jou, So Paulo,

    1972, p. 520-530.

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  • 7

    mas em Baumgarten, corresponde experincia de prazer obtida atravs da

    percepo sensitiva e do sentimento, sem haver interesse emprico. E, por ltimo,

    a catharsis, que denomina o prazer produzido por estimulao oratria ou potica

    a qual pode transformar sentimentos e libertar a mente daquele que observa a

    obra: o espectador.10 O que est implcito aqui a interao do modo de

    produo, a receptividade e a comunicao (possvel) da obra, e aqui que

    encontramos uma proximidade investigao de Sartre, e at mesmo em relao

    a Kant. Pois se entendermos que possvel haver uma relao comunicativa na

    arte, no que isso seja um apelo necessrio por parte do criador, isso implicaria

    reconhecermos a existncia de uma relao tica na experincia esttica.

    Destarte, para entendermos o porqu ento da separao entre a tica e a

    Esttica, vejamos o que isso pode significar ao analisarmos as relaes entre um

    filsofo moderno (Kant) e um contemporneo (Sartre).

    Propor, porm, uma pesquisa relacionando dois filsofos de pocas

    distintas exige certa cautela, ainda mais ao analisar uma temtica controversa em

    sua construo histrica (no caso: idealismo versus fenomenologia, no obstante

    esta ltima trazer ecos da filosofia transcendental).

    De outro vis, visto que mudanas considerveis na arte e na filosofia,

    desde a poca moderna at a contempornea, so notrias, um exame

    comparativo entre dois importantes filsofos que marcaram rupturas radicais na

    histria da filosofia poderia melhor esclarecer em que medida as disparidades de

    conceitos tericos tiveram sentido na prtica, visto que ao tratarem desse dilogo

    antigo, conforme apreciamos em Shaftesbury, qual seja tico-esttica, ambos j

    possuam complexos e extensos escritos tericos, mesmo em outras esferas, que

    edificavam e sustentavam suas teses. Alm disso, analisaremos, tambm, as

    diferentes condies e situaes de pocas divergentes entre os autores, a fim de

    realizar consideraes pertinentes, sem o intuito de favorecer um ou outro, mas

    criteriosamente entend-los em seus contextos e, principalmente, em suas

    abordagens em torno das artes.

    10

    Para Jauss, no h hierarquia entre essas categorias e a experincia esttica no pode ser reduzida a uma nica delas. (JAUSS, H. R.; Aesthetic experience and literary hermeneutics theory and history of literature, volume 3, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1982, p. 35).

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  • 8

    No esperamos com esse estudo apenas entender a questo da distncia

    e limites entre tica e esttica, mas interpretar melhor a arte e a literatura em todo

    seu contexto objetivo e subjetivo, e observar a concepo fundamental da esttica

    moderna (que em Kant estava ganhando mudanas que marcariam todo o

    percorrer da disciplina) em relao concepo fenomenolgica de Sartre, que,

    por sua vez, teve papel singular tanto na filosofia contempornea quanto na

    literatura, e que exerceu papel considervel no pensamento poltico-social. Ora,

    antes de estreitarmos a pesquisa, consideremos a princpio alguns embates que

    sero aqui elucidados: se, para Kant, a finalidade sem fim pe fim finalidade

    objetiva da representao de perfeio platnica, pois no h mais um

    conhecimento ligado finalidade objetiva que suscite o prazer, para Sartre, por

    sua vez, o espectador (ou o leitor) afasta a possibilidade da finalidade sem fim por

    ser ele mesmo um fim ainda a criar, retirando o domnio que o autor tem antes,

    por essencialidade, sobre a obra. Sartre, contrariamente tradio convencional

    das teorias estticas ou artsticas em geral, no coloca a literatura no mesmo

    plano da arte, ou seja, a literatura no , para ele, uma linguagem da arte, pois

    ela se ocupa de signos que representam o mundo concreto atravs de

    significados, e a arte, com todas as suas possibilidades, pode ser puramente

    informal ou meramente abstrata, o que equivale dizer: no-significante.11 A

    literatura, ao contrrio da filosofia, no se utiliza de conceitos, portanto, pode

    descrever o homem como sujeito universal concreto. Se, por outro lado,

    observarmos que nas vrias linguagens artsticas ocorre correspondncia entre

    as intersubjetividades artistas x espectadores, escritor x leitor perguntamos se

    existe tambm a correspondncia entre tica e esttica. Com efeito, como

    descartar ento a possibilidade tica quando analisamos a relao existente entre

    autor, obra e pblico? E, alm disso, se h mesmo para ambos uma separao

    entre tica e esttica, por que para Sartre a esttica est sobre um pano de fundo

    da tica, ao passo que para Kant, no final da primeira parte da Crtica da

    Faculdade do Juzo, este eleva a arte como smbolo da moralidade, remetendo a

    esttica ao campo da tica? Ser no desenvolver do estudo, considerando que

    11

    Um objeto significante quando visa, atravs dele, um outro objeto, e neste caso o esprito no presta ateno no prprio signo: ele o ultrapassa em direo coisa significada (Lartiste e sa conscience, em Situaes IV, p. 30 traduo Thana Mara Sartre e a Literatura Engajada, p. 25.).

    CCERealce

  • 9

    no pode haver arte e literatura sem haver liberdade das partes, que

    observaremos a Esttica, em vrios momentos, conversando com a tica. esse

    paradoxo que, em meio aos estudos de ambos e mais aqueles que auxiliem essa

    investigao, pretendemos analisar, desde o processo de criao at a

    intersubjetividade envolvida na arte e na literatura.

    Ao longo de todo o texto predominaro as obras cujas abordagens tratam

    com mais afinco a proposta desta pesquisa, quais sejam: Crtica do Juzo, de

    Kant, e Que a Literatura?, de Sartre. O conjunto das demais obras ser

    frequentemente mencionado e trazido reflexo ao longo do texto.

  • 10

    I. Literatura e engajamento em Sartre, a esttica sob um plano tico

    Ao estudarmos Sartre, devemos considerar uma poca hostil para as

    suas reflexes que, alm de influenciar seus primeiros estudos, ir decretar uma

    segunda fase a este filsofo.12 Prisioneiro da Alemanha na Segunda Guerra

    Mundial, Sartre inicia sua corrida esquerdista ao lado de companheiros

    existencialistas. A exemplo de Heidegger, Sartre enxerga a misria da

    humanidade. O homem em desencanto vivendo num mundo absurdo e

    incompreensvel, com suas leis morais obsoletas e no fazendo bom uso da

    razo, no sabe utilizar da prpria ao para que possa adaptar-se existncia.

    Com efeito, em suas obras de fico, teatro e ensaios - formas prticas de

    manifestar seu extenso contedo terico - Sartre insere personagens com

    comportamentos que revelam inquietude, pouco comuns e com certa antipatia

    queles dotados de conduta tradicional. Essa ausncia de otimismo pode ter

    ocorrido por influncia de sua infncia conturbada, descrita em Les Mots, mas a

    conjuntura de sua poca foi fator determinante para o desenvolvimento de seu

    pensamento.13 Embora utilizasse as linguagens da literatura e dramaturgia para

    criar e refletir acerca desse universo perturbador que o rodeava, reivindica

    literatura o engajamento, rompendo com a tradio terica de ordem esttica e

    trazendo uma nova perspectiva na difcil aceitao da confluncia entre tica e

    esttica. Ora, para entendermos o porqu do vnculo entre engajamento e

    literatura, preciso entendermos um pouco da questo tica ento relacionada.

    Para Sartre, o sujeito e se constitui de ao. Ao agir constitui a

    qualidade do agir. O ato de escrever, aqui reputado como ao, uma estrutura

    da conscincia, s que o ato da escrita, no consciente dele mesmo, pois

    assume a conscincia ativa das palavras enquanto elas surgem atravs da

    pena.14 Como ato criativo, escrever e ler tem propriedade de atuao. E nesse

    sentido, a conscincia reage na integridade da ao:

    12

    Assim como Kant que escrevia numa Europa fervorosa em poca de revoluo. 13

    THODY, P. Sartre, uma introduo biogrfica, edies Bloch, Rio de Janeiro, 1974, p. 20. 14

    SARTRE, J.P. Esboo para uma teoria das emoes, L&PM, Porto Alegre, 2006, p. 59.

  • 11

    (...) a ao como conscincia espontnea irrefletida constitui uma certa camada existencial no mundo, e que no h necessidade de ser consciente de si como agente para agir. (...) uma conduta irrefletida no uma conduta inconsciente, ela consciente dela mesma no-teticamente, e sua maneira de ser teticamente consciente dela mesma transcender-se e perceber-se

    no mundo como uma qualidade de coisas.15

    (SARTRE, 2006, p. 59)

    Mas teria a arte, enquanto ato criativo, algum papel no exerccio

    existencial? Teria o escritor, em seu exerccio intelectual, algum reflexo

    emancipvel do homem? Se nos basearmos em investigaes histricas, como

    veremos mais adiante, observaremos o carter libertrio da literatura. Do clrigo

    nobreza, da nobreza burguesia e desta para o povo. Os intelectuais do

    Esclarecimento foram, para Sartre, os antecessores dos intelectuais

    contemporneos, pois so notrias as suas condutas prescritas por um imperativo

    tico. Todavia, o intelectual do Esclarecimento, ao passar corrente burguesa, se

    transforma em especialista (cientista). O saber filosfico contribui para o

    progresso e forma a classe burguesa juntamente com a formao do intelectual

    especializado. O cientista se v herdeiro da reivindicao intelectual; herdeiro da

    universalidade do saber formado pelo pensamento burgus. O especialista um

    tcnico do saber prtico16 em via de ser um intelectual quando percebe a

    composio de classes e suas inseres sociais (classe dominante versus classe

    dominada). Entretanto, o prprio intelectual foi recrutado por esse sistema. Um

    farmacutico, por exemplo, enquanto cumpre seu trabalho, pode considerar que

    suas pesquisas favorecem exclusivamente humanidade e o universo da cincia

    farmacutica, porm, indiretamente est colaborando com alguma universalidade

    formal que acaba por se resumir s marcas ou patentes. H ento um valor

    particular inserido no seu saber que roubado por este sistema. Quando, pois, o

    tcnico do saber prtico avana o seu saber para especular o sistema particular,

    ele est se enveredando para um lugar em que no desejado. Mas isto

    caracteriza, na viso de Sartre, a passagem de tcnico do saber prtico para o

    intelectual, este um ser que viola as regras da classe que o controla; adquire um

    mandato crtico no outorgado pela classe dominante e nem pela classe

    dominada. Ao tcnico do saber prtico no restam vnculos orgnicos com ambas

    as classes, pois este se emancipa da opinio comum. Essa desvinculao com

    15

    Idem, p. 62. 16

    Termo cunhado por Sartre em Em defesa dos intelectuais. So Paulo: tica, 1994.

  • 12

    qualquer segmento lhe gerar uma noo de universalidade real. Doravante, ser

    um indivduo real que se encontra em sua singularidade (unidade dentro da

    totalidade por exemplo: Pedro (um) msico (alguns) que mortal (todos)).

    Este ser singular tem a condio de construir a sua tarefa, algo a fazer e

    comprometer-se com esta possibilidade, enfim, engajar-se. Um ser absoluto com

    liberdade absoluta e radical. A partir da obtm a viso dialtica de se inserir na

    histria, ou seja, na totalidade, ora adquire um dever de razo que esforar-se

    para apreender o universal concreto que ainda no existe. O imperativo tico a

    possibilidade dessa construo de universalidade real. Porm, um intelectual que

    abandona o singular e defende a universalidade de classe, por engajar-se em

    trabalhos especficos de classes, um falso intelectual ou um intelectual

    orgnico (a servio do Estado, Igreja, partido, etc.).

    Sendo assim, o intelectual corre risco em ambas as classes. De um lado,

    um traidor crtico, taxado de pequeno-burgus, do outro, na classe proletria,

    um traidor em potencial. atravs do exerccio da liberdade que o intelectual opta

    pela universalidade concreta ou abstrata. Sua liberdade indesejada entre as

    classes. O intelectual vive ento em constante tenso. Mas para ele, preciso

    decifrar a ideologia e defender sua liberdade que inerente ao ser. A

    subjetividade tem que furar o sistema e ir contra a tenso objetiva da histria. Eis

    que ento, para Sartre, surge a arte como nica razo de ser. atravs dela que

    nos opomos incompletude da existncia e inquietude da vida. Embora Sartre

    reivindique o engajamento s artes, na literatura que ir constatar seu potencial

    constituinte e revelador de valores. E pela passagem ao mundo que a

    literatura se distingue das outras artes, pois ela, atravs da prosa, compromete o

    escritor com aquilo que est decidido a escrever. E pelo carter singular do signo

    designar algo que faz da prosa, para alm de seus efeitos estticos, uma

    comunicao, pois a fala tem sempre um destinatrio: o outro. Por ser uma fala

    ou expresso, quase que um dilogo, a literatura tem esse efeito de passagem

    ao mundo mais evidente que as outras artes. Por isso, Sartre ir formular trs

    perguntas, ainda no incio do Que a literatura?, direcionadas ao escritor. A

    primeira trata-se da finalidade da ao (da escrita). Se o escritor no somente

    uma testemunha do mundo, pergunta-se a ele: com que finalidade voc

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  • 13

    escreve? 17 E como no se pode escrever sobre o mundo todo ao mesmo tempo,

    essa ao situada, ou seja, o prosador escreve sobre um aspecto do mundo,

    decidindo tratar sobre um determinado assunto e no de outro. Este envolvimento

    com tal assunto, este interesse que o provoca, ir suscitar que o desvele tambm

    ao pblico leitor, a fim de provocar mudanas no mundo.18 Mais uma vez, atravs

    do leitor, a literatura no s estimula uma ao, mas ela ao. Da Sartre

    formula a segunda e a terceira perguntas: que aspectos do mundo voc quer

    desvelar, que mudanas quer trazer ao mundo por esse desvelamento? e por

    que falou disso e no daquilo? 19 Ora, optar por um determinado aspecto do

    mundo se calar diante de outros. Porm, Sartre considera o silncio ainda como

    um momento da linguagem. Essa recusa de qualquer outro assunto ainda

    falar.20 Com efeito, podemos observar que a escolha do que ir se falar exige

    que uma situao anteceda o escritor como ser-no-mundo. Essa situao lhe

    prope a essncia do contedo de sua criao. O mundo j lhe dado e est a

    necessariamente e essencialmente. Por isso, o escritor toma a mundaneidade

    como parte constitutiva de sua obra, ele tem por ato o efeito de designar o mundo,

    mas um mundo comum a todos, o mesmo mundo que diz respeito condio de

    ser. Entenda-se por designar no uma representao ou imitao, mas quase

    que uma descrio desveladora, todavia ficcional. No jogo entre o real e o irreal,

    o percebido e o imaginrio, a obra tem que ser inventada para ser imaginada.

    Ora, nada mais coerente que a sujeio mundaneidade de sua poca, pois

    em seu tempo que a experincia est presente e ele o constituinte de seus

    valores. Sua poca a condio de sua existncia e que se pode exercer sua

    liberdade para se fazer presente. Seria como que uma ingratido com a histria,

    que lhe trouxe ali, no comprometer-se com o seu tempo. Isso para Sartre o

    engajamento, uma conscincia refletida sobre a situao que ir estender-se em

    uma vontade e uma deciso. Consequentemente, o escritor reflete sua posio no

    mundo na medida em que desvela ao pblico leitor o prprio mundo. Para Sartre,

    o engajamento no uma proposta, mas um efeito lgico derivado do prprio

    17

    SARTRE, J. P. Que a literatura?; Editora tica, So Paulo, 2004, p. 19. 18

    Notemos aqui a semelhana com a reivindicao e o propsito de Shaftesbury ao escritor. 19

    Idem, p. 20. (substituio das palavras desvendar/desvendamento por desvelar / desvelamento; modificao da traduo sugerida por Luiz Damon S. Moutinho)

    20 Idem, p. 22.

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    CCERealcecapitulo encenador.

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  • 14

    eidos da literatura, ou seja, ou a obra engajada, ou a mesma no faz sentido,

    pois a palavra por si s ao. Mas entendamos melhor a diviso entre arte e

    literatura, proposta por Sartre, a fim de que possamos esclarecer qual implicncia

    tica isso traz literatura, desde a produo ao ato contemplativo.

    Na medida em que, para Sartre, h uma diviso entre metafsica e

    ontologia, de igual modo ele separa a filosofia da literatura, pois esta trata do

    singular e aquela trata do universal. O singular sempre a manifestao do

    universal. Se a filosofia elucida a experincia concreta com conceitos universais

    em que o sujeito situado no mundo, a literatura a singularidade exigida por tal

    situao concreta do universal. Uma histria narrada, por exemplo, pode

    representar um mundo que faz sentido filosofia. E enquanto a filosofia se ocupa

    de conceitos, a literatura se ocupa de criao. Uma obra filosfica se contesta

    atravs de conceitos ou lgica. J uma obra literria no se contesta, pois cria-se

    em cima dela na medida em que se interpreta o que se l. Para Sartre h uma

    diferena de essncia entre a literatura e as outras linguagens artsticas, estas por

    lidarem diretamente com as coisas e aquela, atravs dos signos, por nos reportar

    em direo s coisas; exatamente da que ir partir a fundamentao de sua

    teoria sobre literatura e engajamento. Sartre, sendo um filsofo que refletiu mais a

    tica esttica, ir valorizar singularmente a literatura, priorizando-a em relao

    s artes, por exigir dela o engajamento. Por isso correto afirmar que, em Sartre,

    a literatura no deve partir da tica, mas chegar a ela.

    Mais uma vez em Que a Literatura?, Sartre primeiramente apresenta a

    essncia (idos) da literatura perguntando: Que Escrever?. Para uma discusso

    bem elaborada sobre literatura, preciso reconhecer os recursos que a

    constituem e que a fundamentam. Sartre parte do universal (o que escrever?

    primeiro captulo) e vai para o singular (situao do escritor em 1947 quarto e

    ltimo captulo). E na medida em que discorre sobre o que escrever, demonstra

    a distino entre a literatura e as outras linguagens da arte, destacando naquela a

    relao que se tem enquanto signo e significado.

    Primeiramente, Sartre parte do princpio de que a linguagem situa o

    homem, pois ele as manipula a partir de dentro, sente-as como sente seu corpo,

    est rodeado por um corpo verbal do qual mal tem conscincia e que estende sua

  • 15

    ao sobre o mundo. 21 Neste sentido, o homem no se utiliza das palavras para

    falar, mas fala por meio delas e est dentro delas. Sartre compara a linguagem e

    as palavras com o corpo. Temos conscincia no-ttica do corpo e dos signos

    enquanto vivemos - o signo estrutura essencial do corpo. E tanto verdade

    que temos a conscincia do signo que de outro modo no poderamos

    compreender a significao.22

    Na prosa, a palavra arranca o prosador de si mesmo, lanando-o no

    mundo atravs de signos e significados. O significado transcendente ao signo,

    pois as palavras so como vestes empricas das idias e pensamentos. Vale

    frisar que para Sartre as palavras no so objetos ou utenslios funcionais para a

    linguagem, mas elas designam os objetos e o mundo imediatamente, e,

    consequentemente, alteram o mundo nomeando o que h nele. Por isso, falar e

    escrever significa agir. Alm disso, conforme observa Franklin Leopoldo e Silva, a

    palavra traz a carga subjetiva da produo de um significado absolutamente

    direto.23 Com efeito, no conjunto desses signos - o contexto - sentimentos

    intersubjetivos so compartilhados entre o autor e o leitor, o que significa dizer

    que h uma relao entre produtor e receptor. As palavras agrupadas numa

    ordem consensual elaborada pelo escritor podem portar sentimentos de dio,

    amor, desgosto, felicidade, que a partir da apreenso do leitor estabelece-se uma

    comunicao expressiva de afetividade e emoes, sejam elas boas ou ruins. Por

    isso a prosa sempre transitiva. A partir do momento que esses signos so

    apreendidos por leitores, o uso que se tem deles pode tomar mltiplos rumos, a

    ponto de o autor no mais reconhecer suas palavras, ou sua criao ou mesmo

    seu pensamento, no meio social que fora expandido. Ora, sabendo que as

    palavras partem da reflexo, tanto do autor como do leitor, legtimo afirmar que

    elas, as palavras, constituem a realidade, ou melhor, enquanto representam as

    coisas elas significam ao, ou melhor, elas so aes.

    Atravs do exerccio mtuo de produo e receptividade na produo

    reflexiva de significaes, a necessria liberdade intersubjetiva estabelece um

    encontro profcuo com o imaginrio. Porm, a transitividade literria depende da

    21

    SARTRE, J. P. Que a literatura?; Editora tica, So Paulo, 2004, p. 14. 22

    SARTRE, J. P. El ser y la nada; Ed. Losada, Buenos Aires, 1966, p. 417 (T.A.). 23

    SILVA, F.L. Literatura e experincia histrica em Sartre: o engajamento, in Revista Dois Pontos, vol. 3, nmero 2 Sartre, outubro de 2006, p. 70.

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  • 16

    reciprocidade das liberdades. Mas o que dizer da arte e suas diversas

    linguagens? Para Sartre, as artes no so paralelas, pois existem, em cada uma,

    metodologias e condies fenomenolgicas distintas. As cores e os sons j so

    por eles mesmos abstraes, so coisas em si. Os signos no se convertem em

    coisas; as palavras, por exemplo, antes de serem elas belas ou no, devem ser

    verdadeiras ou no. A palavra, conforme ela define, um signo que se atribui a

    algo distinto dela e signo distinto de significao; as palavras, neste sentido,

    exercem influncia na concepo do real, pois nenhuma coisa permanece a

    mesma depois de nomeada. Se, por outro lado, compararmos a literatura com as

    linguagens da arte, perceberemos a no existncia desse imediato transluzir entre

    signo e significado. Com a cor, por exemplo, ocorre o contrrio, ela no significa

    algo, pois j o objeto, assim como o som tambm a prpria coisa em si. As

    cores melanclicas de um rosto numa tela de Rembrandt ou o cu amarelo

    angustiante de Tintoretto, tanto um como outro podem expressar tais sentimentos,

    porm, estes no limitam a coisidade de um rosto ou do cu, pois ultrapassam

    tais significados e escapam a uma total decifrao. Do mesmo modo ocorre com

    a complexa linguagem da msica, que em melodias de vivacidade ou nostalgia

    seus sons, quando em sucesso, no representam mltiplos significados, mas

    nos conduzem a sentimentos inefveis. Portanto, seria um equvoco exigir do

    pintor ou do msico um comprometimento, como se exige do autor. neste

    sentido que correto afirmar que a pintura, a msica e a escultura so

    consideradas por Sartre como artes no-significantes. A poesia, apesar de lidar

    com palavras, e, por ser arte significante, na opinio de Sartre, no est para o

    engajamento como est a prosa. A prosa transitiva, pois o escritor se utiliza dos

    signos para se reportar a algum ou ao mundo. J a poesia intransitiva, pois o

    mundo representado atravs de signos pelo poeta. Portanto, no se deve exigir

    do poeta comprometimento como se exige do prosador, porque as palavras nada

    mais so para ele do que coisas. Para Sartre, os poetas no querem nomear

    coisa alguma, recusam o perptuo sacrifcio do nome ao objeto nomeado. 24 Por

    isso a poesia tem por atratividade o seu desapego com a essncia da palavra, o

    seu jogo com as palavras que atrai, a coisidade das palavras o essencial ao

    poeta que as domina com livre espontaneidade no ato da criao. Ele as utiliza,

    24

    SARTRE, J. P. Que a literatura?; Editora tica, So Paulo, 2004, p. 13.

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  • 17

    at mesmo, como imagem, brincando com suas disposies no papel, e tem total

    liberdade de faz-lo, pois o poeta cria uma nova natureza para a linguagem. Na

    poesia o significado tornado coisa, e ele naturalizado como so as palavras,

    pois brotam naturalmente no mundo, que, por sua vez, representado pela

    linguagem.

    A literatura (ou prosa) difere da poesia, porque a linguagem, enquanto

    prosa, deve se situar reciprocamente no mundo entre o autor e o leitor, do

    contrrio, seria poesia, e seria o que Sartre chamaria de momento de respirao

    do autor: o poeta, que por ordem dessa especfica linguagem volta-se a si

    mesmo, representando-se numa solido narcisista, realiza um movimento de

    expanso e contrao, uma dilatao e retrao da expresso.25 Ora, a poesia

    vem trabalhar com o ritmo, a sonoridade e o aspecto visual dos seus versos sobre

    o papel. Portanto, a poesia representa um significado, mas no o expressa como

    faz a prosa, pois est mais preocupada com a tnica da palavra ao teor da frase.

    Ao ler um livro, no percebo seu contedo literrio atravs dos signos,

    pois avano at outro real, como que para outra dimenso, deixando de perceber

    as coisas. Dependo dos signos mas no os percebo durante o ato da leitura. Por

    meio das palavras vai-se direto s coisas, pois se referem diretamente ao objeto

    nomeado. Destarte, na prosa as palavras so, por essncia, utilitrias, pois o

    prosador se serve das palavras para se expressar e narrar. por essa razo que

    o prosador deve ter responsabilidade ao utiliz-las, pois lidando com palavras, lida

    com o mundo. E como o escritor dotado de liberdade e autonomia para criar, o

    valor de sua obra a responsabilidade total que ela implica. Essa

    responsabilidade de escrever engajadamente pode ser, s vezes, a de se

    submeter a riscos srios ou simplesmente a de ferir sua reputao, como

    mencionou Camus, j alertando os fatos de sua poca: Criar, hoje em dia, criar

    perigosamente. Toda publicao um ato, e esse ato expe s paixes de um

    sculo que no perdoa nada.26

    Assim, considerando a prosa como um aglomerado de signos que nos

    leva direto s coisas, Sartre entende que a obra literria no arte, mas

    25

    SARTRE, J.P. Situations, IX, Gallimard, Frana, 1972, p. 61. 26

    Discurso pronunciado por Camus no ato do recebimento de seu prmio Nobel, em 1957. (CAMUS, Albert, 1965. Discours de Sude. In: Essais. Paris Gallimard. apud: DENIS, B. Literatura e engajamento, de Pascal a Sartre, Edusc, Bauru, 2002, p. 48).

  • 18

    contempla uma dimenso esttica, pois alm de elevar-se ao plano imaginrio,

    l que est a beleza. no imaginrio que o leitor conduzido ao prazer, no s

    pelo que se l, mas pelo texto bem escrito e seu estilo. Porm, o prazer esttico

    na leitura s existe por acrscimo ao texto. E por esta razo que o estilo

    literrio, no obstante d valor prosa, no deva vir antes que o tema ou

    contedo a ser produzido, ele deve acontecer sem que no ato da leitura o leitor o

    perceba. Sartre elucida que na literatura o prazer esttico s puro quando vem

    por acrscimo.27 Do contrrio, no seria exagero julgar o texto pela sua retrica.

    Embora Sartre rejeite a subsuno da literatura entidade chamada Arte,

    como se fosse uma nica substncia que contempla mltiplas linguagens, a

    irrealizao fator peremptrio para a contemplao esttica de quaisquer

    linguagens, sobretudo, a literatura. Na dramaturgia, Sartre toma como exemplo o

    personagem Hamlet, de Shakespeare: o choro do ator representando Hamlet

    um analogon de lgrimas irrealizantes. O ator deve se irrealizar inteiramente para

    transfigurar a qualidade totalizante do personagem. J o dramaturgo, por sua vez,

    apresenta ao homem o eidos de sua existncia cotidiana: sua prpria vida, de

    uma forma que enxerga como quem estivesse de fora.28 Quanto ao pblico, para

    se chegar obra em si, atingir seu estado contemplativo, deve-se antes passar

    pelo ator e pelo cenrio, como que se fundisse a eles na totalidade da pea.

    Neste caso, resta claro que a dramaturgia depende desses recursos

    determinantes para a apreciao do todo, assim como a pintura depende da tela e

    das tintas, e uma pera musical, se no for exagero aqui exemplificar, depende

    de muito mais para se concretizar enquanto objeto esttico.

    A msica uma linguagem diferente, conforme Franklin Leopoldo e Silva

    comenta,29 ela por si prpria; independente do modo que se escuta, ela no

    existe em lugar algum, mas ela . A Stima Sinfonia de Beethoven, por exemplo,

    para se fazer presente, depende de msicos, instrumentos, sala de concertos,

    mas ao ser tocada, ela transporta a nossa conscincia imaginante fora do mundo.

    27

    SARTRE, J. P. Que a literatura?; Editora tica, So Paulo, 2004, p. 22. 28

    Da Sartre faz um elogio genialidade de Brecht, confiando sua admirao pela pea Me Coragem que relata o cotidiano dramtico de pessoas no burguesas, podendo facilmente erigir o drama ao mito. SARTRE. J.P., Itinerrio de um pensamento (entrevista concedida New Left Review 58, novembro-dezembro de 1969) in Vozes do Sculo Entrevistas da New Left Review, da organizao de Emir Sader, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1997, p. 221.

    29 LEOPOLDO E SILVA, F. tica e literatura em Sartre Ensaios introdutrios; Ed. UNESP, SP,

    2003, p. 101-102.

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  • 19

    Consequentemente, nada mais na mundaneidade ser relevante, somente a

    msica em si, no contingente, o que importa. A msica possui seu prprio

    tempo, pois atemporal no real. Ela a prpria coisa, mas que depende do real

    (maestro, msicos, instrumentos, etc.) para se fazer aparecer. Para que eu a

    escute necessrio haver a reduo imaginante: apreender precisamente os

    sons reais como anloga. 30 Escutar ouvir no imaginrio. Com efeito, quando

    escuto uma msica que eleva meu esprito e meu nimo, ou quando aprecio uma

    pea de teatro, desperto em mim o sentimento de prazer, que um estado

    subjetivo permanente no tempo, ocorrendo um rompimento com a causalidade

    sem um fim definido. Como para Kant, o prazer tem causalidade em si para

    conservar o estado da representao e o exerccio dos poderes do conhecimento.

    O belo, para o mesmo filsofo, faz com que o contemplemos lentamente porque,

    enquanto isso, fortalece e reproduz a si mesmo; diante disso, sofremos certa

    passividade durante o estado contemplativo.31 Por esta razo, ao abandonar o

    imaginrio retrocedendo ao real, um mal-estar ir ocorrer. O abandono do

    momento da contemplao esttica (fim de uma pea, filme, livro, msica, etc.)

    nos devolve conscincia realizante que, frequentemente, pode no ser

    agradvel viv-la, pois, conquanto a obra de arte nos provoque inspiraes

    diversas, o sentimento de prazer, quando interrompido, nos pe de volta a uma

    realidade limitada e condicionante: o contingente. Porm, nessa passagem que

    a literatura nos situa. Algo parecido ocorre com o personagem Roquentin, em A

    Nusea, romance de Sartre escrito em 1938, ora, antes de O Ser e o Nada, que

    de maneira figurativa adiantava traos de sua ontologia fenomenolgica. Vale,

    ento, para efeito ilustrativo, percorrermos com brevidade esta obra.

    Quando Roquentin, tomado pelo pecado da existncia, escuta pela

    primeira vez a msica que, mais tarde, se tornar a sua preferida: Some of These

    Days, na voz daquela cantora, encontra a fuga de suas angstias perante a

    existncia, ela, ou a msica em sua totalidade, que o liberta da nusea, de seu

    mundo contingente, porque enquanto a ouve habita outro universo: o irreal.32

    ento que Roquentin declara:

    30

    SARTRE, J. P. O imaginrio, psicologia fenomenolgica da imaginao; Ed. tica, p. 251. 31

    KANT, I. Analtica do Belo, in Os Pensadores Kant (II), Abril Cutural, p. 223-224. 32

    SARTRE, J.P. La nusea, Editorial Losada, Buenos Aires, 1947. p. 35.

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  • 20

    O que acaba de suceder que a Nusea desapareceu. Quando a voz se elevou no silncio, senti que me corpo se enrijecia; e a Nusea se dissipou. (...) Ao mesmo tempo a durao da msica se dilatava, inchava-se como uma bomba. Enchia a sala com sua aparncia metlica, achatando contra as paredes nosso tempo miservel. (...) Meu copo de cerveja tornou-se pequeno, achata-se sobre a mesa; parece denso, indispensvel.

    (SARTRE,

    La nusea, 1947. p. 35, T.A.)

    Roquentin ao se mover para agarrar o copo percebe que seu movimento

    acompanhava a melodia da cantora, o que lhe pareceu estar em plena dana.

    Olhando Adolphe, aquele que o acompanhava num jogo de cartas, aperta os

    dedos contra o vidro do copo e, neste instante, tinha claro que necessitava de

    uma concluso. Ento confessa: sou feliz. Roquentin segue ao longo do

    romance refletindo e indagando sobre a dor da existncia e a imprevisibilidade da

    vida. E ao final da histria, de volta quele caf, Madeleine, a anfitri, prestes a

    jogar o disco fora, por estar muito velho, pergunta a Roquentin se gostaria de

    escut-lo novamente. Ele, ao escutar aquela voz rouca dizendo Some of these

    days..., pede que a toque mais uma vez, e reconhece que a msica tambm

    estava num plano irreal, assim como ele enquanto a escutava. Apesar de estar

    gravada num velho long-play, e depender daquele toca-discos para ser escutada,

    no estava ali quem a cantava. Essa cantora negra, alm disso, que lhe era

    imaginria, poderia ter morrido, assim como todos os msicos de jazz que a

    acompanhavam. Mas a msica estava ali. E independente de ser tocada, sua

    melodia Some of these days / Youll miss me honey estava cravada como um

    fantasma em sua mente. A msica inexistia, mas ao mesmo tempo ela era, lhe

    agradava e tambm lhe incomodava, porque ela estava ali e em outro lugar

    inabitvel, do outro lado da existncia, naquele outro mundo que se pode ver de

    longe, mas sem nunca alcan-lo (...). 33. Espantou-se com a atemporalidade da

    msica, pois quebra-se o disco, morrem os msicos, envelhecem os

    instrumentos, e por detrs do existente que cai de um presente a outro, sem

    passado, sem futuro 34, todos os outros sons se decompem e se destinam

    morte, mas a melodia, justamente aquela melodia, seguiria sendo a mesma,

    jovem e firme. Doravante, quando ento mastigava o prazer de existir, e, agora

    tomado por certa alegria, Roquentin decide ele mesmo ser um criador, mas no

    33

    Idem. p. 195. 34

    Idem, Ibidem.

  • 21

    musical, pois desconhecia essa tcnica, decide criar atravs de seu ofcio de

    escrever, j que lhe era atividade corrente. Decide escrever um livro e abrigar-se

    na literatura para evitar seu mundo contingente. Porm, no escreveria um livro

    biogrfico, como fizera at ali, relatando a histria de Marqus de Rollebon, pois

    descobrira ser um erro justificar a existncia de outro existente atravs da histria.

    Seu empreendimento deveria ser algo que estivesse por detrs das palavras

    impressas, detrs das pginas, algo que no existia e que estivesse acima da

    existncia. 35 E opta ento por uma aventura, bela e dura como o ao, para

    intimidar as pessoas de sua existncia. Dali ento, caso fosse um escritor bem

    sucedido, seria lembrado e aclamado pelo seu talento, como lhe ocorrera com a

    cantora negra de Some of these days, ou mesmo como esta prpria msica. Nada

    impediria que ele e seu livro existissem, mas no se preocuparia mais em existir

    ou sentir a existncia. O que lhe restaria seria o irreal.

    nesse sentido que Sartre reconhece o ato de escrever: ao mesmo

    tempo agir, criar e irrealizar, assim como tambm o ato de ler. Quanto ao

    desgosto nauseabundo pela existncia, isso uma polmica que mais tarde

    Sartre tentar justificar, aps assumir outra postura no ps-guerra, a postura

    engajada. Suas obras tomam outro rumo. Mas apesar disso, obras como As

    Moscas, O Muro, A Prostituta Respeitosa, entre outras, contrapem as opinies

    referentes questo de A Nusea, pois tratam de engajamento, liberdade e

    situao, logo, do pronunciar-se e fazer-se existir. E mesmo em A Nusea a

    questo da liberdade nunca deixou de estar presente; alis, como quase em

    todas as obras de Sartre.

    O objeto esttico, portanto, irreal. Este o objeto de apreciao.

    Diferente perceber, pois quando percebo no imagino; se percebo o ator ou o

    msico e no percebo a obra em sua totalidade, no realizo a reduo

    imaginante. Sartre afirma que para se obter a contemplao esttica tudo deve

    cair na reduo imaginria: as cores de um quadro, as notas de uma sinfonia, os

    atores contracenando com cenrios, s assim a fruio esttica poder ocorrer,

    assim como esse mergulho no irreal, em que se obtm o puro estado

    contemplativo. Em sntese, no que diz respeito arte e literatura, tudo o que

    35

    Idem, p. 197.

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  • 22

    real sofre uma reduo imaginante para que o irreal surja. Essa negao do real

    devemos entender, consoante Sartre, como a nadificao do mundo (niilismo).

    Assim, podemos afirmar que o real no jamais belo; somente irrealizando

    apreendemos o belo. Ao perceber Hamlet, e no mais o ator, meu estado de

    conscincia muda, ocorre uma alterao em minha intencionalidade e, com isso,

    minha atitude tambm se transforma. Portanto, podemos afirmar que tanto para

    Sartre quanto para Kant, acontece na apreciao esttica a depreciao pelo real,

    ou seja, o desinteresse.

    De volta questo literria, por se referir a alguma coisa, ou melhor, s

    coisas externas, que o escritor deve ter uma finalidade em sua produo. por

    isso que sua obra, como significante, deve ser engajada. Das artes no-

    significantes no se pode exigir o engajamento porque os sentidos de suas

    representaes esto nelas mesmas, no se referem a outro objeto.

    Em O Ser e o Nada, publicado em 1943, ou seja, entre O Imaginrio e

    Que a Literatura?, Sartre argumenta que O belo infesta o mundo como um

    irrealizvel. 36 O que quer dizer que o belo se caracteriza por um objeto

    imaginrio realizado no imaginrio de mim mesmo como totalidade em-si e para-

    si, o que leva Sartre a concluir que o belo ento apreendido nas coisas como

    uma ausncia, pois se desvela implicitamente atravs da imperfeio do mundo.37

    O belo seria uma realizao ideal do para-si em identidade com a unidade

    absoluta do em-si. Por tais razes, Sartre assegura que por isso reivindicamos o

    belo e apreendemos o universo como falta de beleza, at mesmo por nossa

    finitude, cuja limitada capacidade de conscincia nos induz a tambm nos

    enxergarmos como falta de beleza, malgrado essa possibilidade do belo nos seja

    dada. Alm disso, a imaginao constitutiva da liberdade, pois atravs dela nos

    descolamos do mundo limitado da realidade negando toda a empira da

    conscincia. Sem a imaginao, at mesmo uma simples fotografia de nada

    serviria. Para esta, a imaginao traz a significao transformada em contedos

    sobre aquilo que na verdade no , porquanto sem a imaginao teramos

    apenas tintas impressas sobre o papel fotogrfico ou, no caso da literatura,

    somente signos tipogrficos. tambm atravs da imaginao que Sartre

    36

    SARTRE, J. P. El ser y la nada; Ed. Losada, Buenos Aires, 1966, p. 260 (T.A.). 37

    Idem, p. 260.

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  • 23

    assevera que o homem pode alienar-se do mundo real para imaginar uma nova

    dimenso em busca de verdades, ou, simplesmente, obter novas revelaes

    sobre a realidade, consequentemente, libertar-se. Citando Thody: (...) por sua

    natureza, o mundo do imaginrio no impe resistncia ou consistncia.38 Este

    mesmo autor faz referncia aos comentrios do prprio Sartre em Les Mots que

    ilustra o universo imaginrio. Sartre, quando menino, refugiando-se num universo

    imaginrio, sendo uma criana marginalizada nos jardins de Luxemburgo, com

    alguns traos de caneta sobre o papel podia matar mais de cem soldados. Ora,

    nesse contexto a literatura fator essencial no processo de libertao porque lida

    com significaes (linguagem) atravs da comunicao entre o escritor e o

    pblico. A literatura uma relao transitiva (escritor-leitor), porquanto a prosa

    por si mesma uma comunicao que se d entre dois plos em livres condies

    criativas.

    Se o escritor escreve para o leitor, entendemos que a escrita se completa

    pela leitura, ora, uma prtica que se constitui no plano da alteridade. A leitura,

    por seu turno, uma resposta a um atendimento do apelo, exercendo uma funo

    comunicativa. O escritor (particular) escreve para o pblico (universal), e no

    apenas para um indivduo. Logo, notamos aqui um envolvimento tico e histrico,

    pois o escritor se compromete com a histria que vive e a que redige, se

    compromete com a sociedade a que se dirige e com a prpria anlise que faz do

    mundo. Desse modo, para Sartre, no h sentido em escrever abstratamente,

    mas concretamente, ou seja, escrever para algum, a no ser que esta escrita

    esteja versada para a poesia, conforme visto anteriormente.39

    A narrao exige uma situao que, por sua vez, exigir a liberdade, e

    vice-versa. Ocorre percebermos que h um encontro entre duas liberdades de

    forma situada, ambas produzindo. O escritor produz as significaes e o leitor as

    assimila de forma recproca. Ambos tm em si a faculdade das letras, que lhes

    ocorre quase sem perceber. A literatura, estando atrelada a uma comunidade

    38

    THODY, P. Sartre, uma introduo biogrfica, edies Bloch, Rio de Janeiro, 1974, p. 43. 39

    Considerando que as palavras na poesia, conforme afirma Sartre, se transformam em coisas a pleno servio do poeta. E, muitas vezes, a poesia to autoral que o que importa o sentimento do prprio autor sendo extravasado, concebendo, de tal modo, um prazer particular no ato prprio da criao. Neste caso, no importa a ele, poeta, o pblico, mas o sentimento individual. Ademais, Sartre afirma que os poetas se recusam a utilizar a linguagem. Para ele, a poesia no se serve de palavras; eu diria antes que ela as serve. (Que a literatura?- p. 13)

  • 24

    histrica, implica assunto. Eis ento o comprometimento da literatura ao

    engajamento. Escrever com concretude histrica de sua poca ento

    abandonar a literatura abstrata, assumindo uma expresso de compromisso como

    se fosse um espelho crtico da sua poca, o que de modo anlogo Shaftesbury

    j sustentava, conforme vimos na introduo desta pesquisa. Um espelho que

    no mostra somente a imagem do que , mas tambm sugere o que no ,

    colocando o indivduo em alienao e liberdade (para libertar-se). A negao,

    portanto, faz-se necessria para negar a si prprio e poder situar o mundo, o

    outro e a si mesmo.

    Sartre atribui no s um valor social obra como tambm ideolgico, por

    isso vai criticar o formalismo na prosa, pois o carter purista da obra corrompe

    seu comprometimento com aquilo que se fala e, alm do mais, o excesso de

    formalismo desconsidera que a linguagem e a tcnica so oriundas de cada

    poca. Sartre condena o Realismo por este no admitir uma pintura imparcial da

    realidade. neste vis tambm que Sartre dirige sua crtica a Flaubert, por sua

    preocupao excessiva ao estilo e formalismo da escrita, e no pelo contedo ou

    significado de sua obra, alm do descaso que este tinha, junto com Goncourt, de

    se exprimir contra a represso dos communards.40 O autor e o leitor devem se

    comprometer com a obra e com o mundo, responsabilizando-se pelo universal.

    Pois se o escritor um falador, conforme designao de Sartre41, deve se

    preocupar antes com sua fala e depois com a esttica de sua obra. O escritor

    deve antes encontrar a palavra e a ordem das palavras que melhor expressam o

    significado do que ele quer exprimir, se indicam determinada coisa no mundo e se

    elas conseguem dar uma dimenso imaginria que traga o bom entendimento do

    leitor, dando a este a condio de tambm criar a partir da obra.

    Em um artigo no assinado publicado no jornal clandestino Les Lettres

    franaises, Sartre ataca severamente:

    A literatura no um canto singelo que se pode acomodar a todos os regimes, mas que levanta, por si s, a seguinte questo poltica: escrever significa asseverar liberdade para todos os homens; se uma obra literria no for um ato livre que exige o seu reconhecimento como tal por outras

    40

    JUDT, T. Passado imperfeito: um olhar crtico sobre a intelectualidade francesa no ps-guerra, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1992, p. 415. 41

    SARTRE, J. P. Que a literatura?; Editora tica, So Paulo, 2004, p. 18.

  • 25

    liberdades, ento, ela no passa de tagarelice infame. (SARTRE, Que a literatura?, 2004, p. 18)

    Enquanto que para Kant o belo a natureza sendo criada ou refletida,

    para Sartre o belo uma liberdade apelando outra liberdade. O alvo sartriano

    a produo social de significao que o pe a parte de Kant. Com efeito, Sartre

    tenta pr fim finalidade sem fim, pois para ele a imaginao constitutiva; o

    leitor, no caso, quem frui a obra e a cria. O artista cria o analogon, conforme

    veremos mais adiante, e o outro cria o objeto esttico. Por isso, Sartre ir

    reclamar a falta de apelo ao pblico na tese kantiana. Sob este ponto de vista,

    Sartre eleva a obra imediatamente ao nvel do imperativo categrico42, pois ela se

    identifica com a boa vontade kantiana,43 tratando ...o homem como um fim e no

    como um meio. 44 Por conta disso, levantemos uma questo acerca do

    imperativo categrico nas condies kantianas: se, pois, a obra exige a liberdade

    do pblico, como pode a arte ter o fim nela mesma, considerando que esta um

    produto que parte da (cri)ao humana? Ora, neste vis que Sartre aponta que

    o propsito moral est, sobretudo, vinculado literatura; por isso que a literatura

    deve ser engajada. Valendo-se da literatura como significao, a obra literria

    exige o imperativo tico e moral sob o fundo de um imperativo esttico. Para Kant,

    diferentemente, a tica no entra na arte, inclusive na literatura. Para este, a arte

    deve ser livre espontaneidade da criao e o pblico deve apenas fruir

    desinteressadamente. Considerando, ento, que atravs da prpria terminologia

    kantiana Sartre gerar uma discordncia terica em relao ao filsofo alemo,

    analisemos agora, detalhadamente, o prazer desinteressado kantiano e meamos

    se o confronto de Sartre mesmo aceitvel.

    42

    SARTRE, J. P. Que a literatura?; Editora tica, So Paulo, 2004, p. 41. 43

    A boa vontade em Kant o fundamento ilimitado de tudo o que pode ser considerado como bom. Nada se legitima como bom, sem o princpio deste bem querer: Discernimento, argcia de esprito, capacidade de julgar e como quer que possam chamar-se os demais talentos do esprito, ou ainda coragem, deciso, constncia de propsito, como qualidades do temperamento, so sem dvida a muitos respeitos coisas boas e desejveis; mas tambm podem tornar-se extremamente ms e prejudiciais se a vontade, (...), no for boa. (KANT, I. Fundamentao da Metafsica dos Costumes in Os Pensadores, Kant, Ed. Abril, So Paulo, 1974, p. 203)

    44 SARTRE, J. P. Que a literatura?; Editora tica, So Paulo, 2004, p. 198-199.

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  • 26

    II. O desinteresse e a negao do real

    certo que para Kant o livre jogo entre o entendimento e a imaginao

    resulta em um juzo reflexionante que ir refletir o belo. Ora, essa constituio

    kantiana de um juzo esttico no equivale mesma de Sartre, que no discute a

    constituio do juzo, mas a criao do objeto esttico. Para o filsofo francs, o

    que est em jogo a oposio entre percepo e entendimento. Alm disso, o

    desinteresse kantiano, que conduz ao irremediavelmente subjetivo, oposto ao

    de Sartre, pois o desinteresse pelo real requer uma converso de atitude, saindo

    da esfera da conscincia realizante e partindo a uma conscincia no-realizante,

    conforme veremos mais adiante.

    Para Kant, a faculdade do juzo a aplicao do geral ao particular. Se

    apenas o particular dado, o juzo, sistematicamente, deve encontrar o universal,

    tornando-se juzo reflexionante. Kant, contrariando Baumgarten, apesar de

    admirador de sua obra e ser influenciado por este, destitui a esttica de um

    campo cognoscente. O sujeito esttico uma conscincia que julga, e no um

    sujeito a conhecer o que se julga. Dessa forma, o gosto, no tendo como princpio

    o conhecimento, no se discute determinantemente, porque no h conceitos e

    sim reflexo. O juzo reflexionante provoca um sentimento (de prazer ou

    desprazer) e no um conceito, pois no um juzo emprico e determinante. Mas

    como ento admitir que o sentimento de prazer, isento de conhecimento,

    provocado em mim me induz a pensar que ele pode ter carter de juzo universal?

    As leis universais se fundamentam no entendimento; elas prescrevem a

    natureza e determinam leis empricas prprias.45 Para o mesmo filsofo, o belo

    aquilo que causa prazer universalmente e que livre de conceitos, ou seja, belo

    aquilo que, sem conceito, conhecido como objeto de uma satisfao

    necessria 46, por isso, na concepo kantiana, o nico modo de satisfao

    (entre o agradvel, o bom e o belo) desinteressado e livre, pois visto que no

    45

    KANT, I. Crtica da Faculdade do Juzo , Ed. Forense Universitria, 2 edio, PREFCIO, IV. 46

    KANT, I. Analtica do Belo, in Os Pensadores Kant (II), Abril Cutural, p. 237.

  • 27

    requer conceitos, tambm no requer conhecimento. O interesse47 pressupe

    necessidade ou a produz, portanto, censura a liberdade sobre o juzo do objeto.

    Se aquilo que nos interessamos pressupe a satisfao pela existncia do objeto,

    deve haver alguma distino entre o prazer quanto representao deste objeto

    e o prazer em relao existncia do mesmo. E essa diferena se encontra na

    primazia do prazer pela representao que antecede a conscincia da existncia

    fsica do objeto, que no determina necessariamente, porque simplesmente no

    abstraio arbitrariamente a conscincia da existncia do objeto enquanto

    contemplo. aqui que Lebrun reconhece uma separao de essncia que (...)

    nem a relao de conhecimento nem a relao prtica permitiam adivinhar. Prova

    de que o prazer uma instncia autnoma do nimo. (grifo meu)48 E autnoma

    porque no h uma exigncia consciente da existncia do objeto de antemo, e

    tambm porque no me necessrio o conhecimento do objeto. O sujeito que

    julga pressupe que a beleza esteja intrnseca ao objeto e que, assim, o juzo

    pode parecer lgico, contudo, o belo somente esttico. A universalidade esttica

    ressaltada por Kant tem validade universalmente subjetiva e no est vinculada

    ao objeto, mas sim ao sujeito que julga. Ora, o juzo do gosto, assegura Kant,

    meramente contemplativo. No nem terico e nem prtico e tambm, como j

    vimos, no juzo de conhecimento, por conseguinte, no se relaciona com o

    interesse pelo objeto. O belo, sendo uma experincia desinteressada, provm de

    uma faculdade subjetiva; cabe aqui as precisas palavras de Deleuze: ...o prazer

    esttico to independente do interesse especulativo como do interesse prtico e

    define-se a si prprio como inteiramente desinteressado. 49

    Para Kant, atravs do juzo reflexionante que se apreende a beleza

    resultando na contemplao esttica, o que para Sartre se traduzir em prazer da

    imaginao. De ambos entendemos que ocorre um desinteresse pelo real quando

    se quer obter a fruio esttica. Pois h uma passagem da experincia sensvel

    imaginao que, enquanto frumos a obra, ocorre a um desprendimento emprico

    que nos possibilita vivenciar o irreal num plano imaginrio. Para Sartre, um

    47

    Chama-se interesse a complacncia que ligamos representao da existncia de um objeto. Por isso, um tal interesse sempre envolve ao mesmo tempo referncia faculdade da apetio, quer como seu fundamento de determinao, quer como vinculando-se necessariamente ao seu fundamento de determinao. (KANT, I. Crtica da Faculdade do Juzo, p. 49)

    48 Gemth (LEBRUN, P. 423).

    49 DELEUZE, G. A filosofia crtica de Kant, Edies 70, Lisboa, 1963, p. 54.

  • 28

    estado dado inicialmente atravs da percepo e (ir)realizado no imaginrio.

    Porm, como a imaginao carece de liberdade para se auto-afirmar, preciso

    que se negue a percepo do objeto percebido, ou seja, a imaginao efetuada

    atravs da espontaneidade que a percepo est impossibilitada. Para melhor

    exemplificar, preciso estar clara a diferena entre a imagem e a imaginao no

    entendimento de Sartre. Vejamos como isso procede.

    A imagem, enquanto determinada, possui um nmero finito de

    determinaes, o que ocorre enquanto percebida. Entretanto, do mesmo objeto

    percebido que se extrai uma multiplicidade infinita de relaes possveis que, ao

    mesmo tempo, se expandem por suas determinaes. E se de um lado a

    imaginao se constitui antes por um saber imediato de seu objeto, conhecendo

    suas determinaes sem aprender nada com elas, atravs da negao deste

    objeto determinantemente percebido que se chega criao. Por conta disso,

    resta claro que o ser imaginante um ser constitutivo ou criador. Ora, com isso

    afirmamos - considerando que o exerccio imaginrio ocorre tanto no artista, como

    no autor e no pblico - que h um processo de criao envolvendo ambos,

    ocorrendo mutuamente a fruio artstica. 50 Essa alienao ou abstrao, obtida

    enquanto se imagina e se nega o real, suporte para uma leitura da real condio

    humana; uma abstrao deste mundo completamente situado. atravs dessa

    liberdade de negao que posteriormente nos inserimos reflexivamente no

    mundo, podendo, a partir da, apelarmos universalidade de nosso julgo, tanto no

    sentido sartriano quanto no kantiano.

    Estar diante de uma pintura, reconhec-la como retrato ou paisagem, e,

    alm disso, contempl-la, obter a sua totalidade na complexidade da obra e

    apreender sua forma; reconhec-la pela harmonia de suas vrias representaes

    ali inseridas, sem que a percepo obstrua a ao contemplativa. Isto significa

    dizer que se na mesma obra percebo seus elementos dissecando cada detalhe,

    destruo o prprio sentido da mesma. A sensao de cor ela mesma, por exemplo,

    no pode ser bela e digna de contemplao puramente substancial, pois o que ir

    determinar esse sentimento ser a sua forma. As cores, para Kant, por exemplo,

    pertencem ao atrativo (estes afetam prejudicialmente o juzo do gosto kantiano

    50

    E deste ponto que Sartre afirma que, tanto na arte quanto na literatura, o processo da criao vem a ser a tentativa desesperante de alcanar o Em-si-Para-si, ou seja, uma experincia de ser Deus.

  • 29

    quando postos como fundamento de julgamento da beleza), pois elas so

    elementos percebveis. Com efeito, podemos concordar com Kant que a forma

    que constitui o objeto do juzo do gosto puro, e no a matria, esta traz elementos

    cognoscveis que cabe ao entendimento sintetiz-la. As cores, ainda

    exemplificando, apenas contribuem para despertar e conservar a ateno pela

    representao do objeto, o que quer dizer que as apreciamos isoladamente como

    objeto esttico. A imaginao, para Kant, somente joga com os atrativos e com

    eles desperta uma permanente contemplao do gosto. Tambm dessa maneira

    Kant afirma que ornamentos, molduras e enfeites, enquanto adornos, causam

    dano beleza genuna, pois caem no aspecto do meramente atrativo, provocando

    um juzo de gosto aplicado e no puro,51 pois os percebemos antes mesmo da

    imaginao apreend-los. De maneira anloga, Sartre afirma, em O Imaginrio,

    que a percepo de detalhes na obra de arte, seja ela arte plstica, dramaturgia

    ou, at mesmo, a msica orquestrada, destri a totalidade da obra, afastando a

    subjetividade contemplativa. Em suma, a obra deve transcender a percepo. Da

    mesma forma que o pblico num cinema apaga de seu campo de viso o

    mobilirio e adornos da sala, por esta se encontrar propositalmente escura, o

    pblico, independente se diante de um concerto, de uma pea teatral, de uma

    mostra num museu ou de um romance, este deve despir-se do real para poder

    tambm criar, inserindo-se no mesmo plano da obra, que, enquanto experincia

    esttica, transcende o campo do sensvel e passa ao inteligvel. Por outro lado,

    recorrendo mais uma vez a Kant, quando a beleza trazida razo acaba por

    extrair a pureza do juzo do gosto, tornando-se juzo do gosto aplicado, e este

    juzo pressupe, atravs do entendimento, um conceito de fim que determina o

    que a coisa deva ser, ou seja, um conceito do objeto em que se parte

    perfeio.52 O que de fato ir provocar a pureza do belo so figuras artsticas

    cambiantes, suas diversidades, perspectivas, tcnica, harmonia e autenticidade

    da criao (para Kant se resumiria, sobretudo, no talento do gnio), fruto da

    liberdade da imaginao enquanto negao da imagem percebida, o que nos leva

    a afirmar que a pureza do belo resultante da imaginao criativa.

    51

    KANT, I. Analtica do Belo, in Os Pensadores Kant (II), Abril Cutural, p. 224-226. 52

    Idem, p. 229-230.

  • 30

    Como j mencionado, tanto em Sartre quanto em Kant h uma separao

    entre moral e esttica; a moral est para o real, enquanto a esttica para o

    irreal.53 A moral sartriana est intrnseca liberdade da ao, pois implica o ser-

    no-mundo. J a esttica exige um recuo em relao ao mundo, o sujeito

    contemplativo irrealiza no mundo imaginrio. Nas palavras de Sartre:

    Para que uma conscincia possa imaginar preciso que ela escape ao mundo por sua prpria natureza, preciso que ela possa tirar dela mesma uma posio de recuo em relao ao mundo. Em uma palavra, preciso que seja livre. (SARTRE, Limaginaire, 2005, p. 353 (T.A.))

    desse modo que Sartre revela a negao da realidade como condio

    singular para a imaginao. A essa negao Sartre ir denomin-la nadificao

    nadificao do mundo como totalidade que nos revelada, sendo ela o inverso

    da prpria liberdade da conscincia. Apoiando-se em Heidegger, Sartre afirma

    que o nada estrutura constitutiva da existncia,54 pois o nada est presente na

    intra-estrutura do cogito pr-reflexivo e da conscincia, separando-a de si mesma

    e impedindo que ela coincida consigo mesma no ato intencional. De tal modo,

    Sartre considera uma diviso de mundo: o mundo moral e o mundo imaginrio,

    delimitando, dessa maneira, o domnio esttico.

    E aqui ocorre uma divergncia inevitvel para Sartre em relao a Kant:

    para aquele h um desinteresse pelo real, mas sem a conseqncia reflexionante

    kantiana. Para Kant, quando do desinteresse, a conscincia ela mesma se

    entretm com as representaes, apreendidas pelo jogo do entendimento com a

    imaginao, exercendo um juzo reflexionante. Sartre rejeita a conseqncia

    reflexionante, pois para ele o desinteresse uma converso imaginante e no

    reflexionante, pois no imaginrio, como negao do real, que se nadifica e se

    particulariza a obra, criando o analogon, que o elemento exterior negado

    enquanto real e necessariamente complementador da obra. Analisemos melhor o

    que significa o termo analogon para Sartre.

    53

    Logicamente, h uma diferena entre o real idealista e o real fenomenolgico, mas o que se considera aqui o real enquanto plano da ao moral.

    54 Idem. P. 354.

  • 31

    Na pintura o artista tem uma idia enquanto imagem (o que para Kant

    seria a idia esttica 55) que em seguida ele constitui o analogon material a fim

    de que todos possam irrealizar a imagem, ou seja, o artista, dotado de sua tcnica

    imanente, constitui um conjunto de tons reais para que o irreal se manifeste ao

    pblico (atitude imaginante). O analogon, para Sartre, presena 56, enquanto

    imagens so ausncia 57. Isso no quer dizer que ocorra um abandono total da

    objetividade, causado por conta do desinteresse pelo real. O analogon um

    suporte exterior do objeto esttico real, animado por uma inteno imaginante,

    um objeto que se presta a analogia e trespassado por uma inteno.58 As

    cores e as formas s ganharo seu verdadeiro sentido no irreal, e no com

    aspectos sensitivos acerca da percepo detalhada de um retrato ou paisagem. O

    artista, quando escolhe determinadas cores e efeitos, pretende alcanar aquilo

    que representa o analogon (suporte do objeto irreal). Encontramos um bom

    exemplo na pintura moderna, em que no mais o retratado que importa, mas o

    que se manifesta. A expresso do autor e sua obra correspondem a um conjunto

    irreal de coisas novas, como, por exemplo, as cores e formas cubistas, que se

    tornam coisas irreais.59 Esse complexo de coisas no existe no quadro e nem em

    lugar algum no mundo, mas se manifesta atravs da tela como que tomando

    possesso da mesma para se exprimir. a esse conjunto de objetos irreais que

    Sartre ir referir a beleza, ou, numa melhor aproximao kantiana: o Belo.

    Lebrun declara que a sensao no um ingrediente necessrio da

    conscincia reflexionante; ela apenas a hyl apreendida fora da forma que a

    torna, no significante ainda, mas sugestiva. 60 Essa hyl o que Sartre ir

    55 (...) e por Idia Esttica entendo aquela representao da imaginao que d muito a pensar,

    sem que entretanto nenhum pensamento determinado, isto , concei