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ETNOMATEMTICA E SUAS CONTRIBUIES PARA O CONTEXTO ESCOLAR:
UMA EXPERINCIA EDUCACIONAL COM UM GRUPO SOCIOCULTURAL
ESPECFICO
RESUMO
A desvinculao da matemtica de seus aspectos socioculturais um dos fatores diretamente relacionados s dificuldades encontradas no processo de ensino e aprendizagem desta disciplina. Por questionar alguns dogmas da Matemtica e por valorizar e reconhecer conhecimentos desenvolvidos em diversos contextos socioculturais, a Etnomatemtica vem se consolidando como um campo de pesquisa. O presente artigo visa apresentar um recorte de nossa pesquisa de dissertao em andamento, que tem o intuito de elaborar e aplicar uma proposta pedaggica que contemple as prticas etnomatemticas de um grupo sociocultural em consonncia com a Matemtica acadmica. Esta pesquisa vem sendo realizada com uma turma do 6 ano da Escola Municipal Jos Ricardo Matos, localizada no municpio de Russas-CE. A turma constituda por trabalhadores e/ou filhos de trabalhadores que compem a mo de obra das Cermicas da regio. A presente pesquisa qualitativa em uma abordagem etnogrfica e utiliza como principais recursos para coletas de dados: a observao, a entrevista e a anlise documental. Valorizando os conhecimentos matemticos desenvolvidos pelos diversos grupos culturais, a Etnomatemtica vem ampliando as discusses sobre pontos antes inquestionveis relacionados Matemtica. No mbito escolar, particularmente, a Etnomatemtica vem mostrando ser uma alternativa a ser integrada ao processo de ensino e aprendizagem, sobretudo por promover a valorizao do conhecimento prvio que o aluno traz do seu contexto sociocultural. A proposta aqui discutida almeja colocar os alunos como sujeitos crticos de sua realidade, sendo estes os principais investigadores de seu contexto. Alm disso, espera-se que os mesmos percebam que a matemtica tambm est imersa em seu contexto. E desse modo, possam tanto valorizar os conhecimentos matemticos inerentes ao seu contexto sociocultural, como tambm possam se mostrar mais motivados para o aprendizado da Matemtica acadmica.
Palavras chaves: Etnomatemtica, Educao Matemtica, Conhecimentos
Socioculturais.
INTRODUO
Nas ltimas dcadas, o modo como o conhecimento matemtico vem sendo
socializado e apreendido pelas novas geraes e as dificuldades que permeiam este
processo, tornaram-se motivo de preocupao de diversos pesquisadores e professores
de matemtica no mundo todo. A desvinculao da matemtica de seus aspectos
socioculturais, particularmente, um entre os diversos fatores que esto diretamente
relacionados com as dificuldades encontradas no processo de ensino e aprendizagem da
Matemtica no mbito do ensino bsico.
Para Monteiro (1998, p.1), a nfase excessiva ao formalismo e ao simbolismo e a
desvalorizao dos saberes advindos do contexto sociocultural, evidencia que o processo
de ensino e aprendizagem de matemtica mostra-se carente de finalidades e sentido
para os agentes envolvidos nesse processo. Discutindo sobre esta e outras questes,
Domingues (2003) relata que:
para maior parte das crianas, os conceitos vistos na escola so to distantes das suas vivncias, que, por isso, no se sentem motivados em aprender os contedos ou, quando os aprendem, apenas para tirar a nota, nas avaliaes, de modo que esse conhecimento ser esquecido porque no tm significado para o aluno, porque no tem importncia, no tem sentido para ele (DOMINGUES, 2003, p.35).
A falta de significado ocasionada pelo modo como a matemtica vem sendo
ensinada acaba gerando certa averso e medo em alguns estudantes, o que contradiz a
atual relevncia do conhecimento matemtico, sobretudo como um dos pilares para o
desenvolvimento de outras cincias e da tecnologia. Para Santos e Silva (2009), o
sentimento de matemafobia foi construdo a partir da consolidao da Matemtica como
uma cincia exata e abstrata e paralelamente, devido sua desvinculao de seu contexto
sociocultural, poltico e histrico. A consequncia dessa postura foi perda do real
significado da Matemtica, que consiste em servir como uma ferramenta para
interpretao do meio em que vivemos.
Pontes (2009), ao investigar prticas de alguns profissionais como: costureira,
comerciante, cozinheira, marceneiro, mestre de obras e oleiro, comuns em um municpio
cearense1, ressalta que h um divrcio entre a matemtica ensinada na escola e as
prticas destes profissionais. Diante disso, essa autora recomenda que o ensino de
matemtica se aproxime do contexto sociocultural dos alunos, devendo para isso utilizar-
se de algumas tendncias didtico-pedaggicas da Educao Matemtica que levem em
conta questes cotidianas, como a Etnomatemtica.
Surgindo a partir de questionamentos relacionados ao carter universal, a-
histrico e neutro da Matemtica acadmica e por valorizar e reconhecer conhecimentos
desenvolvidos em diversos contextos socioculturais no mbito da Educao Matemtica,
sobretudo durante a ao pedaggica, a Etnomatemtica vem se consolidando como um
campo de pesquisa e como uma perspectiva de ensino e aprendizagem a ser adotada
pelo contexto escolar.
Idealizado pelo educador matemtico brasileiro Ubiratan DAmbrsio, o Programa2
Etnomatemtica congregou diversos estudos, antes isolados e com outras
1 O municpio pesquisado por Pontes (2009) foi Russas-CE.
denominaes, mas que demonstravam uma preocupao em comum: descrever
aspectos ligados s ideias do que hoje chamamos de matemtica em diversos grupos
culturais especficos e buscar possveis contribuies destes conhecimentos para a
Matemtica e para a Educao Matemtica.
Segundo DAmbrsio (1994, p.89), a etnomatemtica pode ser compreendida
como o estudo/investigao da:
Matemtica encontrada entre os grupos culturais identificveis, tais como: sociedades tribais nacionais, grupos de obreiros, crianas de uma certa categoria de idade, classe profissionais, etc. Sua identidade depende amplamente dos focos de interesse, da motivao e de certos cdigos e jarges que no pertencem ao domnio da Matemtica acadmica (DAMBRSIO, 1994, p.89).
Na conceituao acima mencionada, o termo matemtica exige uma
compreenso ampla, que inclui as atividades humanas de classificar, medir, ordenar,
inferir, modelar, comparar, entre outras, expropriadas e formalizadas pela Matemtica
acadmica e utilizadas tambm no cotidiano dos diversos grupos culturais. O autor
pressupe ainda a interpretao do prefixo etno como todos os grupos culturais que
compartilham dos mesmos costumes, mitos, jarges e de modos de raciocnio e de
inferncias (DAMBRSIO, 2001).
Compreendendo a matemtica de um modo amplo, a Etnomatemtica reconhece
manifestaes encontradas nas diversas culturas em distintos momentos histricos como
um saber/fazer identificvel com o que hoje denominamos matemtica. Nesse sentido, a
Matemtica acadmica vista como uma das formas possveis do conhecimento
matemtico, isto , como uma etnomatemtica que, conforme DAmbrsio (2001, p.73)
se originou e se desenvolveu na Europa, tendo recebido algumas contribuies das
civilizaes indiana e islmica e foi difundida por todo mundo, principalmente por ser um
dos pilares do desenvolvimento das cincias e tecnologias modernas, desenvolvidas na
Europa a partir do sculo XVII.
Entre as vertentes de estudo da Etnomatemtica, Skovsmose e Vithal (1997)
apontam as relaes entre a Etnomatemtica e a Educao Matemtica como uma das
linhas que se preocupa, sobretudo, com as conexes (ou falta destas) entre a
matemtica encontrada em situaes do cotidiano e o currculo escolar.
2 Para englobar a pluralidade de concepes em relao Etnomatemtica, DAmbrsio (2001)
prefere utilizar-se do termo Programa Etnomatemtica para se referir a este campo de pesquisa. No mbito deste trabalho, utilizaremos em alguns momentos o termo Etnomatemtica iniciado com letra maiscula fazendo para se referir ao programa de pesquisa.
Entretanto, se comparadas com as pesquisas em Etnomatemtica do tipo
etnogrficas, que visam principalmente desvendar o conhecimento etnomatemtico
contido nas prticas de grupos socioculturais, ainda so poucas as investigaes com
uma perspectiva Etnomatemtica centrada no contexto escolar.
Alertando sobre este fato Orey e Rosa (2005, p.121), afirmam que existe uma
grande necessidade de que o Programa Etnomatemtica seja identificado como um
programa que busca as prticas de ensino-aprendizagem direcionadas ao
pedaggica.
Diante do que foi acima exposto, o presente artigo visa apresentar um recorte de
nossa pesquisa de dissertao, em andamento, que tem o intuito de elaborar e aplicar
uma proposta pedaggica para alunos do 6 ano do ensino bsico, que contemple as
prticas etnomatemticas de um grupo sociocultural especfico em consonncia com a
matemtica escolar.
2 PERCURSO METODOLGICO E O CONTEXTO DA PESQUISA
2.1 O Contexto e os sujeitos da pesquisa
A presente pesquisa est sendo realizada com alunos da Escola Municipal Jos
Ricardo Matos de Educao Infantil e Ensino Fundamental, localizada na comunidade de
Ing, que dista aproximadamente 6 km da zona urbana do municpio de Russas-CE. A
Escola conta com aproximadamente 425 alunos, distribudos em turmas que vo da
educao infantil ao 9 ano do ensino fundamental.
A experincia educacional vem sendo desenvolvida com uma turma de 6 ano,
formada por 24 alunos, com faixa etria entre 12 e 17 anos. Segundo levantamentos
preliminares, verificamos que cerca de 1/3 dos alunos, mesmo em idade inapropriada,
trabalham nas Cermicas durante o contra turno em que frequentam a escola.
Constatamos ainda que 21 dos 22 alunos que responderam ao questionrio so filhos ou
tm outros familiares que compem a mo-de-obra destas indstrias.
2.2 As Indstrias de Cermica Vermelha no municpio de Russas-CE
Localizada a 162 km de Fortaleza-CE, a cidade de Russas-CE tem uma
populao de 69.833 habitantes e uma rea de 1.591 km2. O municpio o maior
produtor de cermica vermelha do estado, com produo mensal de pouco mais de
43.000 telhas, o que corresponde a 35,1% da produo estadual (SINDCERMICA-CE,
2002).
A vocao do municpio para abrigar indstrias deste setor se d, sobretudo,
devido abundncia de matria prima (argila) de qualidade e a posio geogrfica do
municpio, que fica localizado as margens da BR-116, o que facilita o escoamento da
produo e barateia o frete.
Segundo dados da Associao das Indstrias de Cermica Vermelha do Vale do
Jaguaribe - ASTERUSSAS3, atualmente o municpio possui aproximadamente 120
indstrias deste segmento em funcionamento que geram cerca de 3.000 empregos
diretos.
As Cermicas esto distribudas por diversos setores do municpio, inclusive na
zona urbana. Contudo, verifica-se uma maior concentrao nas comunidades de Flores e
Stio Ing, esta ltima concentra junto com outras comunidades adjacentes,
aproximadamente um tero das Cermicas existentes no municpio.
2.3 Caracterizao da pesquisa e os instrumentos para coleta de dados
A presente pesquisa predominantemente qualitativa4, pois possui as principais
caractersticas desse tipo de pesquisa, a saber: o pesquisador o principal instrumento
de coleta e anlise dos dados; os dados so obtidos a partir do contato direto do
pesquisador com a situao estudada e so predominantemente descritivos; nfase
maior no processo do que no produto e preocupao do pesquisador em relatar o sentido
que os participantes do as coisas (LDKE; ANDR, 1986). Entretanto, utiliza-se
tambm de elementos quantitativos, principalmente para organizao dos dados obtidos
na anlise documental, no intuito de enriquecer as informaes a serem expostas sobre o
contexto estudado.
Particularmente, uma pesquisa do tipo etnogrfica, termo sugerido por Andr
(1995), por entender que ao ser apropriada pelas pesquisas com enfoques educacionais,
a etnografia - tipo de pesquisa criado pelos antroplogos com intuito de realizar estudos
sobre sociedade e cultura - sofre adaptaes em alguns de seus requisitos.
Os instrumentos para a coleta de dados que vm sendo e/ou sero utilizados no
mbito desta pesquisa so: a observao, a entrevista e a anlise documental. A seguir,
faremos uma breve exposio sobre cada um destes recursos.
3 Os referidos dados foram coletados a partir de uma entrevista realizada pelo autor principal deste
trabalho e concedida pelo presidente da ASTERUSSAS, Helano Rebouas Lima, no dia 04/01/12. 4 Optamos por utilizar o adjetivo predominantemente antes do termo qualitativo, por concordar
com a opinio de Andr (1995), que sugere reservar o uso dos termos quantitativo e qualitativo no para rotular o tipo de estudo desenvolvido, e sim para diferenciar as tcnicas de coletas de dados usadas no mbito do mesmo.
Segundo Vianna (2003), a observao um dos principais instrumentos para
coleta de dados utilizado em pesquisas qualitativas em educao, por ser praticamente
um dos nicos recursos disponveis para o estudo de comportamentos de grupos
socioculturais. Entre as perspectivas de observao existentes optamos pela observao
participante, que consiste na tcnica pela qual o pesquisador integra-se e participa na
vida de um grupo para compreender-lhe o sentido de dentro (LAVILLE; DIONNE, 1999,
p.179). Nossas observaes vm sendo desenvolvidas no contexto escolar,
especialmente durante as aulas executadas na turma acompanhada em nossa pesquisa;
e ainda no labor dos trabalhadores das indstrias de Cermicas vermelha da comunidade
em tela.
Em relao entrevista, utilizamos este recurso para aprofundar e/ou esclarecer
alguns elementos que permeiam a presente pesquisa. Especificamente optamos pelo uso
da entrevista semiestruturada, por desenrolar-se a partir de um esquema bsico no
rgido, que permite que o entrevistador faa adaptaes das perguntas, quando
necessrio (LDKE; ANDR, 1986).
Vale ressaltar que alm de serem utilizados pelo professor-pesquisador, os
recursos acima discutidos (a observao e a entrevista) sero tambm usados pelos
estudantes como ferramentas para obteno dos dados no mbito da pesquisa de
campo.
Na anlise documental, tomamos os principais documentos relacionados tanto ao
mbito escolar (Projeto Pedaggico da escola, dirios de classe, portflio5, etc.), como as
Indstrias de Cermicas Vermelha do municpio de Russas-CE (documentos
governamentais, estudos sobre o perfil das indstrias, trabalhos acadmicos relacionados
ao tema, entre outros). Todos estes documentos sero usados, assim como discorre
Andr (1995, p.28), no intuito de contextualizar o fenmeno, explicitar suas vinculaes
mais profundas e completar as informaes coletadas atravs de outras fontes.
Durante a experincia educacional, ser utilizado ainda o portflio, que consiste
conforme Mendes (2009), em um dossi ou uma pasta que contm os principais
elementos do trabalho que os alunos realizam durante um determinado perodo letivo.
Segundo Anastasiou e Alves (2007), o uso do portflio tem o intuito de:
Colocar o estudante como responsvel por seu processo de aprendizagem, favorecendo ao professor a anlise de singularidades e peculiaridades do desenvolvimento de cada um. Com esses pressupostos, entende-se que o portflio pode ser um instrumento capaz
5 Inclumos o portflio elaborado pelos alunos entre os documentos a serem analisados por
entendermos que a partir do momento em que este recurso usado tambm como recurso avaliativo, o mesmo torna-se um documento comprobatrio do desenvolvimento das atividades propostas em sala de aula. Adiante, faremos um detalhamento maior acerca do uso deste recurso.
de dar respostas a estas expectativas: emancipao e ampliao da autonomia do estudante e diagnstico do professor (ANASTASIOU; ALVES, 2007, p.111).
No mbito da presente pesquisa, a utilizao desse recurso visa auxiliar na
anlise e reflexo do professor-pesquisador e dos alunos sobre o processo de
aprendizagem e ainda, na avaliao da experincia educacional, por parte do professor-
pesquisador.
Alm disso, busca promover a metacognio, que implica na auto-regulao do
processo de aprendizagem, ou seja, na conscientizao, por parte dos estudantes, dos
processos que se utilizam para conhecer seus erros e acertos (RAMALHO; NEZ;
LIMA, 2004).
3 UMA PROPOSTA PEDAGGICA LUZ DA ETNOMATEMTICA
Para construo do arcabouo terico deste trabalho, nos apoiamos em
experincias educacionais desenvolvidas no mbito de pesquisa acadmicas como a de
Bandeira (2009), Knijnik (2006), Monteiro (1998), Grasseli (2012) entre outros; e em
trabalhos tericos como o de Ferreira (1997) e Freire (1996).
Tratando das concepes pedaggicas da Etnomatemtica, Bandeira (2009)
aponta que um dos principais objetivos dessa rea para o contexto educacional :
Levar o aluno a se conscientizar que j pensa matematicamente e, portanto, pode aprender matemtica. Conduzi-lo tambm a um novo modo de conceber esse campo do conhecimento, tendo em vista que os aspectos socioculturais de seu meio ambiente sejam incorporados ao processo de ensino-aprendizagem da matemtica institucionalmente aceita pela sociedade vigente (BANDEIRA, 2009, p. 97).
Nesse sentido, a conscientizao dos alunos acerca de seu pensamento
matemtico prvio - quase sempre implcito as prticas inerentes ao grupo sociocultural a
que pertencem - e a insero desses conhecimentos etnomatemticos no currculo
escolar, podem se tornar um elemento motivador para o aprendizado da matemtica, pois
fazem com que os alunos percebam que aquela cincia outrora estritamente formal e
despida de um contexto, tambm est imersa no contexto em que eles vivem.
Em sua pesquisa ligada a cultura da viticultura realizada com alunos do terceiro
ano do ensino mdio da cidade de Monte Belo do Sul-RS, Grasseli (2012) desenvolveu
uma prtica pedaggica relacionando conceitos da geometria plana e espacial e os
conceitos empregados na produo artesanal de pipas de vinho. Para isso, o autor inicia
sua proposta ensinando de forma convencional os conceitos relacionados matemtica
escolar. A partir da, aps a realizao da pesquisa de campo por parte dos estudantes,
buscou fazer pontes entre as prticas etnomatemticas empregadas naquele labor e a
matemtica escolar.
Entre as limitaes da pesquisa discutidas pelo autor, o mesmo relata que sua
postura metodolgica contribuiu para uma excessiva preocupao dos estudantes em
traduzir o conhecimento etnomatemtico identificado para a linguagem matemtica, o
que por diversas vezes gerou dificuldades entre os estudantes. Para tentar sanar estas
dificuldades, o autor comenta que deveria ter invertido a ordem das matemticas
estudadas, isto , ao invs de partir do estudo da matemtica escolar, deveria partir da
pesquisa de campo, isto , da identificao da etnomatemtica proveniente daquele
contexto.
Esta ltima postura discutida por Grasseli (2012), se aproxima da proposta
sugerida por Monteiro (1998) que considera que uma prtica pedaggica luz da
etnomatemtica deve assumir uma forma helicoidal: iniciando com propostas vindas do
cotidiano e, depois, pela influncia de novos questionamentos, chega-se a nveis mais
abstratos.
Para estruturao de nossa proposta pedaggica, tomamos a perspectiva
etnomatemtica proposta por Ferreira (1997). Para este autor, a Etnomatemtica tambm
vista como um modelo pedaggico. Sua proposta parte do pressuposto de que o
trabalho em sala de aula deve ser feito a partir de pesquisas de campo realizadas pelos
prprios alunos com auxlio do professor. Assim, os alunos mediados pelo professor iro
pesquisar sobre temas relevantes para sua comunidade.
Em nosso estudo, os alunos, sob nossa orientao, iro buscar inicialmente
identificar quais so os conhecimentos etnomatemticos empregados pelos
trabalhadores das Indstrias de Cermicas Vermelha da regio. Para a realizao desta
pesquisa, caber ao professor preparar seus alunos para utilizao de algumas
ferramentas da pesquisa de campo. Posteriormente, os alunos, sob a orientao do
professor, faro a anlise do material coletado. Durante esse processo de interpretao
dos dados, o professor com seus alunos modelam seus questionamentos, na busca de
solues (FERREIRA, 1997, p.41).
A insero da pesquisa de campo no mbito educacional, segundo o autor, visa
promover inter-relaes entre os saberes escolares e os saberes provenientes daquele
contexto. Da, consideramos que ningum melhor do que os prprios alunos, sujeitos
imersos naquele contexto sociocultural, para serem os principais atores no processo de
desvendamento dos conhecimentos etnomatemticos inerentes ao seu contexto.
importante ressaltar que buscamos estruturar nossa proposta pedaggica
seguindo um sentido duplo, segundo a perspectiva tomada no estudo de Knijnik (2006),
que segundo a autora:
Por um lado, houve, indubitavelmente, o propsito de ensinar a Matemtica acadmica, socialmente legitimada, cujo domnio os prprios grupos subordinados colocam como condio para que possam participar da vida cultural, social e econmica de modo menos desvantajoso. Por outro lado, a Matemtica popular no foi considerada meramente como folclore, algo que merece ser resgatado para que o povo se sinta valorizado (KNIJNIK, 2006, p. 110).
Promover estas inter-relaes demonstra que os saberes etnomatemticos dos
trabalhadores, essenciais para seu contexto sociocultural, e a matemtica escolar,
conhecimento socialmente legitimado e necessrio para incluso dos alunos no mundo
globalizado so ambos vlidos, pois consistem em modelos de explicao da realidade.
Alm disso, segundo DAmbrsio (2004):
O domnio de duas etnomatemticas, e possivelmente de outras, oferece maiores possibilidades de explicao, de entendimentos de manejo de situaes novas, de resoluo de problemas. exatamente assim que se faz boa pesquisa matemtica e na verdade pesquisa em qualquer outro campo do conhecimento. O acesso de um maior nmero de instrumentos e de tcnicas intelectuais d, quando devidamente contextualizado, muito maior capacidade de enfrentar situaes e problemas novos, de modelar adequadamente uma situao real para, com esses instrumentos, chegar a uma possvel situao ou curso de ao (DAMBRSIO, 2004, p.51)
Desse modo, o estudo da Matemtica escolar em consonncia com o
conhecimento etnomatemtico do grupo sociocultural no qual os alunos esto inseridos,
com todas as suas semelhanas e singularidades, torna-se de suma importncia para
que os estudantes possam se apropriar de vrias ferramentas para resoluo de
problemas provenientes tanto do seu contexto como de outros, cabendo a eles
mobilizarem o conhecimento mais adequado conforme cada situao.
Alm de promover inter-relaes entre as matemticas, nossa proposta almeja
partindo dos conhecimentos etnomatemticos investigados e da vivncia do estudante
numa comunidade predominantemente de trabalhadores das Cermicas, utilizar a sala de
aula como espao para discusso sobre temas relacionados a estas indstrias, que
sejam relevantes para os estudantes e para a comunidade. Na verdade, consiste em
discutir com os alunos a razo de ser de alguns desses saberes em relao com o
ensino dos contedos [matemticos] (FREIRE, 1996, p.33).
Durante o desenvolvimento das atividades, os alunos, juntamente com o
professor-pesquisador, faro a escolha de um tema que discuta sobre as Indstrias de
Cermica Vermelha e sua relao com a comunidade. A ideia promover um trabalho
multidisciplinar, buscando a integrao com outras disciplinas, se possvel.
Para finalizar, este espao de discusso tem o intuito de transcender o estudo
restrito de algoritmos matemticos e inserir no mbito do ensino e aprendizagem desta
cincia seu papel social e poltico, assim como sugere a Etnomatemtica.
4 CONSIDERAES FINAIS
Valorizando os conhecimentos matemticos desenvolvidos pelos diversos grupos
culturais em diferentes pocas e ainda trazendo outras formas de pensamento
matemtico distintas do conhecimento socialmente validado atualmente, a
Etnomatemtica vem ampliando as discusses sobre pontos antes inquestionveis
relacionados Matemtica. Dentro dessa perspectiva, esse campo do conhecimento vem
ganhando espao na Educao Matemtica.
Particularmente no mbito escolar, apesar de ser uma vertente de pesquisa
recente, a Etnomatemtica como proposta pedaggica vem se mostrando como uma boa
alternativa a ser integrada ao processo de ensino e aprendizagem, principalmente devido
aos seus questionamentos relativos ao currculo escolar e a valorizao do conhecimento
prvio que o aluno traz do seu contexto sociocultural.
Na verdade, a dimenso educacional da Etnomatemtica busca fazer da
matemtica algo vivo, lidando com situaes reais no tempo [agora] e no espao [aqui].
E, atravs da crtica, questionar o aqui e agora (DAMBRSIO, 2001, p. 46). Nesse
sentido, acredita-se que inserir a Etnomatemtica vivenciada pelos alunos no contexto
escolar, alm de mergulhar o processo de ensino e aprendizagem no cotidiano destes
alunos, valoriza o contexto sociocultural no qual eles esto inseridos.
A proposta aqui discutida almeja colocar os alunos como sujeitos crticos de sua
realidade, sendo estes os principais investigadores de seu contexto. Alm disso, espera-
se que os mesmos percebam que a matemtica tambm est imersa em seu contexto. E
desse modo, possam tanto valorizar os conhecimentos matemticos inerentes ao seu
contexto sociocultural, como tambm possam se mostrar mais motivados para o
aprendizado da Matemtica acadmica.
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