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Euripedes as Bacantes Introducao Por Eudoro de Souza

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Euripedes as Bacantes Introducao Por Eudoro de Souza

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E, terceiro e último dos trágicos que a tradiçãoconsagrou como os maiores da Grécia, nasceu provavel-mente em /, isto é, quarenta anos depois de Ésquilo,e dez depois de Sófocles. Se levarmos em conta apenasos dramas cujo texto se conservou, e pensarmos que És-quilo, com os Persas, obteve a coroa da vitória nas GrandesDionísias de , e que as Bacantes, glória póstuma deEurípides, foi representada pela primeira vez depois de, fica-nos ainda, sempre e apesar de todas as irreprimí-veis exigências de racionalidade, o Milagre Grego, como aúnica “explicação” da súbita fulgurância com que irrom-pem e se sucedem, na Hélade, gêneros poéticos que vãoassinalando, época por época, toda a sua história clássica.E como se a concentração da dramaturgia ática em tãopoucos decênios não bastasse para nos ferir de espanto,ainda convém lembrar que, do princípio ao fim da históriada tragédia, tanto se modificaram os valores estéticos dogênero, que não é exagero insistir sobre o que muito seri-amente já foi dito e repetido: o Orestes de Eurípides, porclaríssimo mas não singular exemplo, muito mais próximoestá do Hamlet de Shakespeare, do que das Coéforas deÉsquilo ou mesmo da Electra de Sófocles.

Este juízo não corre grande risco de desacerto, quandoa análise comparada incide sobre a maioria dos dezoitodramas que restam de Eurípides e o que depreender sepossa do estudo dos fragmentos e argumentos de mais de

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setenta peças que se perderam. Não há dúvida que a açãodramática decorre, no último dos trágicos, predominante equase exclusivamente em cena, e tão desvinculada do coro,que mal entendemos como poderia ter nascido a tragédiade um genial “improviso dos entoadores do ditirambo”(Aristóteles). E tanto menos se duvidará de que aí o heróitrágico já deixara de ser como simples vaso de argila que,tocado pelo fogo do céu, se quebra em mil pedaços esfuma-çantes. Medido pelos parâmetros de tragicidade, aplicadosaos dramas de Ésquilo e de Sófocles, que sempre inclueme têm de incluir o grau de verossimilhança com que osdeuses se apresentam no próprio desenrolar da ação (És-quilo) ou além do extremo limite para que tende a mesmaação (Sófocles), na verdade, Eurípides sai diminuído, pelomenos enquanto é certo que na maioria das vezes os “seus”deuses só intervêm para cortar nós que os homens nãoconseguem desatar. . .

Inabilidade de poeta-filósofo, em que a “arte”, postaao serviço de um moderno jeito de pensar, já não podehaurir do curso torrencial do “engenho” o clássico esplen-dor da forma? Racionalismo de filósofo-poeta que, nasequência de Xenófanes, antecede e prepara a obra demo-lidora de Platão contra a demasiado-humana farsa que os“Olímpicos” desempenham na mitologia da poesia épica?Inabilidade ou racionalismo? Ninguém ousaria optar peloprimeiro membro da alternativa. Mas o segundo foi aten-tamente considerado por estudiosos e críticos responsáveis,e “Eurípides, o racionalista” (Verrall) circulou como afórmula que mais facilmente se aplica em numerosas ins-tâncias em que importa decidir acerca do que na realidadevale a poesia de um dramaturgo tão acaloradamente dis-cutido e tão diversamente apreciado.

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11É nesta perspectiva que as Bacantes se nos defrontamcomo o mais árduo problema, entre tantos que empeçam,a cada passo, o caminhar da história da poesia dramáticados gregos ao encontro de uma figura que ressalte, emnítidos contornos, da obscura nebulosidade envolvendotestemunhos, escassos e não poucas vezes indecifráveis.

Por outro lado, e ao invés do que acima deixamosescrito, não há notícia de austeridade e severidade judica-tivas que ensombrem a reputação do poema; e a censuraao poeta que, nas últimas cenas, ousou tender as cordas daemoção quase até o limite do horror que uma audiênciagrega poderia suportar, esvai-se, antes de enunciada, noslábios de quem ouviu com temor reverente a primeiraode das Mênades Asiáticas (párodo) e o hino à Santidade( estásimo); de quem imaginou com cores e movimentode vida o “idílio” das Bacantes de Tebas, que o primeironúncio relata a Penteu ( episódio). Muito mais notá-vel, porém, é que Eurípides, ou no deliberado propósitode arcaizar, ou porque o possuísse, a ele também, o furordo deus Ditirambo, de certo modo regressasse às formasprimevas, na última tragédia que escreveu: antes dele, sóÉsquilo levara à cena os mitos dionisíacos, e, antes dasBacantes, só em Ésquilo o coro representa seu papel comtamanha intensidade dramática.

Mas, por outro lado, depara-se-nos a história, longa etriste, de uma ingrata descida aos mais fundos abismos daincompreensão: a que começa e recomeça no momentoda inevitável e fatal pergunta acerca da intenção que teriamovido o poeta a compor esta tragédia. Não que a per-gunta não seja legítima e oportuna, formulada, como otem sido, em relação a uma época de dois milênios dis-tante dos que acreditam no que dizem, quando falam de

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“arte pela arte”. Foi assim que um dos mais celebradosestudiosos das Bacantes (Nihard, ), depois de pormeno-rizadamente examinadas e criteriosamente julgadas todasas hipóteses anteriormente propostas, concluiu que Eurí-pides só pretendeu escrever uma tragédia bela! Não háque negá-lo: na arquitetura e na plástica, na poesia épica,lírica e dramática, os gregos voltam para muitos de nóssomente a face que lhes queremos ver. Mas não lancemosmãos à vã tarefa de coligir testemunhos clássicos em abonoda nossa crença esteticista: só num vocabulário elementaro kalós tem o descolorido significado de belo.

Por conseguinte, quando os tais abismos se abrem aospés de quem começa inquirindo os propósitos do poeta, nãoé que ele os não tivesse; não é que na beleza, com a belezae pela beleza do verso, não pretendesse veicular mais doque o belo. Ao contrário, tanto mais fundo se escancaramesses abismos, quanto mais adentro de nós se radicar acerteza de que, nas Bacantes também há que procuraruma verdade, – uma verdade, porém, que parcialmentese recolhe a si mesma, se entranha e se recusa, no mesmoinstante em que se nos afigura presa fácil e parece que nasmãos a temos firme.

Basta assinalar os que tresleram. Quem se atreveráa reafirmar que as Bacantes é um manifesto do livre-pensamento contra os males que da religião nos advêm(Girard, )? Quem ousará reincidir na extravagantetese da hipnose coletiva, mediante a qual um Dionísio-Impostor provoca nas Mênades a ilusão de um palácioem ruínas (Norwood, ; Verrall, )? Mas importainsistir sobre os intérpretes mais recentes e, ao que pare-cerá a algum leitor distraído, muito mais abertos e com-preensivos. Ora, estes, se bem que ao poeta concedam

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13o que só na mais completa cegueira poderiam recusar-lhe, – o haver prestado incomparável testemunho de umagloriosa teofania –, não deixam de restringir singular-mente o alcance do poema, asseverando um (Dodds,

e ) que “a moral” das Bacantes consiste em evidenciaro alto preço que pagamos por desdenhar das exigênciasque a diacosmese dionisíaca impõe ao espírito humano,e outro (Winnington-Ingram, ) que Eurípides, reco-nhecendo o poder de Dioniso, quis advertir-nos de quea única arma contra ele seria compreendê-lo e propagaressa compreensão.

A não considerar senão os mais representativos intér-pretes e os mais elevados expoentes da crítica, escutandoo que nos dizem ou pretendem dizer-nos, e sem temor doaparente absurdo em que caímos, pensando que ambosde uma vez tocaram a única verdade do drama, tería-mos de admitir que Eurípides o escreveu num tremendoesforço por se libertar da mais trágica das contradições– precisamente aquela em que ele próprio se apresentacomo solicitando a experiência dionisíaca e armando-secontra ela!

Nada tão verossímil quanto pensar que semelhantecontradição revolvesse a alma do poeta; nem que, soboutro aspecto, a mesma já se encontre prenunciada nainspiração do Hipólito, cuja “moral” também consistiriaem relevar que “o sexo é coisa sobre a qual não podemospermitir-nos o cometer equívocos” (Dodds). No entanto,é mormente aqui, nesta segurança de uma análise a quenão podemos negar tenacíssima diligência construtiva,que mais inquietos nos sentimos e maiores dúvidas nosinvadem. Será que o assíduo recurso à psicologia, essainclinação quase fatal para depor nas mãos de uma ou

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outra potência da alma a chave de tantos enigmas queuma divindade grega nos propõe, deixa aberto, em todaa sua vastidão, o horizonte traçado pela ação dramáticade Hipólito e, sobretudo, das Bacantes? Não o cremos.Nem tampouco que, vindo juntar-se à legião de psicólogos,a sociologia, a antropologia ou qualquer outra ciência do“homem” o possa alargar à medida da tragédia. De geraçãoem geração, nunca faltará leitor que não se contente de“aproximações”; leitor que não saiba ou não pressinta que ohorizonte do trágico se esfuma e ensombra, quando se lheoculta o sol atrás de nuvens que, afinal, são crias disformesdo seu calor excessivo.

O problema das Bacantes é Dioniso. Mas Dioniso nãoé só uma obscura potência da alma; não é só uma fermen-tação periódica de forças abissais que ameaçam a tranquilavigência de normas instituídas pelo sufrágio da pólis sobe-rana; não é só a repetida irrupção de refreadas subculturasde marginais e oprimidos. Em suma, não é caso de mé-dico ou de polícia. O que as Bacantes nos apresentam nacena trágica é Dioniso, como problema, como problemade Eurípides, problema da sua época, problema da GréciaClássica, que à hora crepuscular, revolvendo os olhos paradentro de si, estremece de espanto ao descobrir que o espí-rito – vontade disciplinadora e inteligência ordenadora –,não poderia aniquilar toda a irracionalidade elementar,sem que, no mesmo ato, destruísse a sua própria razão deser. Disciplinar e ordenar são verbos transitivos!

Dioniso é o problema das Bacantes, porque as Bacanteso representam como um deus; e um deus, para nós, hámuito que se vem tornando no mais problemático dos pro-blemas. Com efeito, para que a razão se demita e se recusea dar um passo, basta que nos assalte a tão leve suspeita

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15de que os deuses da Grécia possam ter sido mais do quenomes poeticamente significativos das mesmas realidadesque designamos em prosa chã, ao falarmos, por cansadoexemplo, de “faculdades da alma” ou de “forças da natu-reza”. O intelecto discursivo detém-se, por necessidadeinterna, no ponto que alcançou a praxe humanística, res-valando aceleradamente pelo pendor de um alegorismoestéril. Da Afrodite do Hipólito é fácil descer até o que nãoé mais do que atração do sexo, e do Dioniso das Bacantes,até o que não ultrapassa o delírio da embriaguez. Difícil évolver à nascente. Adicionem-se ao desvario amoroso e aoêxtase delirante quantos valores estéticos se encontrem nodecurso da escalada, que nunca a soma perfará o todo. Ébem de ver que, em lugar de “todo”, devíamos ter escrito“epifania de um deus por obra da poesia trágica”.