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Euro, etno e outros centrismos Urpi Montoya Uriarte A História ocidental é bastante etnocêntrica. Revisá-la é uma forma de enxergar o que negamos e restituir o lugar da alteridade Uns fumam, outros bebem álcool, alguns ingerem infusões. Ao longo da História, diversos povos do mundo inventaram meios variados para atingir o que no Ocidente se convencionou chamar de “estados alterados de consciência”. Eles são geralmente vistos como normais pela sociedade que os provoca: os indianos têm consumido tradicionalmente a folha dacannabis sem considerá-la uma droga, assim como os habitantes da região andina plantaram e consumiram durante milhares de anos a folha da coca sem que esses atos fossem tratados como ilegais. A tela "Descoberda do Missisipi" (1847), de William Powell, que está no Capitólio dos EUA, narra um acontecimento da história americana com uma perspectiva etnocêntrica. No noroeste peruano, foram encontrados resíduos de folha de coca mastigada, datados em mais de 8.000 anos. Esse consumo se reveste de diversos sentidos para o homem andino – energético, terapêutico, religioso, identitário. Mas, de repente, o costume milenar se transforma: de “legal” passa a ser “ilegal”. E o etnocentrismo é um importante elemento dessa transformação. 1

Euro, Etno e Outros Centrismos

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  • Euro, etno e outros centrismos Urpi Montoya Uriarte

    A Histria ocidental bastante etnocntrica. Revis-la uma forma de

    enxergar o que negamos e restituir o lugar da alteridade

    Uns fumam, outros bebem lcool, alguns ingerem infuses. Ao longo da Histria, diversos povos do mundo inventaram meios variados para atingir o que no Ocidente se convencionou chamar de estados alterados de conscincia. Eles so geralmente vistos como normais pela sociedade que os provoca: os indianos tm consumido tradicionalmente a folha dacannabis sem consider-la uma droga, assim como os habitantes da regio andina plantaram e consumiram durante milhares de anos a folha da coca sem que esses atos fossem tratados como ilegais.

    A tela "Descoberda do Missisipi" (1847), de William Powell, que est no Capitlio dos EUA, narra um acontecimento da histria americana com uma perspectiva etnocntrica.

    No noroeste peruano, foram encontrados resduos de folha de coca mastigada, datados em mais de 8.000 anos. Esse consumo se reveste de diversos sentidos para o homem andino energtico, teraputico, religioso, identitrio. Mas, de repente, o costume milenar se transforma: de legal passa a ser ilegal. E o etnocentrismo um importante elemento dessa transformao.

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  • Em 1950, preocupadas com o crescimento, nos pases ocidentais, do consumo de cocana um dos componentes qumicos presentes naquela planta , as Naes Unidas formaram a chamada Comisso da Folha da Coca, que tinha como meta a elaborao de um informe sobre a produo e o consumo de coca nos pases andinos. Esse informe criou um consenso com relao nocividade da folha da coca, e o ato de mastig-la passou a ser enxergado como um vcio indgena que precisava ser extinto. Afinal, provocava alteraes psquicas, introspeco, prostrao moral, escassa capacidade de ateno, e, portanto, grande prejuzo econmico. O documento serviu de sustentao para a Conveno nica de Estupefacientes, assinada em 1961, que normatizou, entre os pases assinantes, a erradicao do cultivo da coca e do hbito de mastigao num prazo de 25 anos. O etnocentrismo daquela Comisso se manifestou num pequeno detalhe: a populao que fazia uso da planta havia milnios sequer foi consultada. Todos os supostos efeitos da coca sobre o corpo e a mente foram avaliados a partir de uma srie de prejulgamentos e especulaes dos membros da Comisso, todos educados numa cultura alheia aos andinos e distante deles. Sempre que nos deparamos com costumes diferentes e os interpretamos a partir da nossa prpria cultura, estamos cometendo um ato etnocntrico. O gravssimo problema do etnocentrismo que ele no nos permite enxergar a lgica, as razes ou as motivaes daquele que diferente de ns, simplesmente porque no admitimos conceder-lhe a palavra, achando que bastam a nossa opinio, impresso ou julgamento. Um exemplo claro o surgimento do nome Yucatn para designar a pennsula do Mxico, no sculo XVI. Os conquistadores perguntaram aos nativos, em lngua espanhola, como se chamava aquele lugar em que tinham acabado de desembarcar. Os nativos, em sua prpria lngua, responderam algo que os espanhis entenderam por Yucatn. E assim batizaram o local. Na verdade, o que os nativos disseram foi: No te entendo. Para os colonizadores, qualquer resposta serviria, e, graas quela incompreenso bsica, o nome erroneamente dado por eles at hoje um monumento ao etnocentrismo: No te entendo. Para o etnocentrismo, tudo o que diferente se torna inferior, feio, ridculo, injusto, cruel, selvagem ou irracional. Ao julgar as distines de forma negativa, o etnocntrico passa a querer modificar os costumes ou crenas diferentes, em nome da superioridade dos seus prprios costumes ou crenas. Dito de outra forma: ser etnocntrico acreditar que s existe uma verdade (a nossa) e uma beleza (a nossa), assim como tambm s existem a nossa justia e a nossa racionalidade. Em O que etnocentrismo, o antroplogo Everardo Rocha escreve: Etnocentrismo uma viso do mundo onde o nosso prprio grupo tomado como centro de tudo e todos os outros so pensados e sentidos atravs dos nossos valores, nossos modelos, nossas definies do que a existncia.

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  • Todos os povos do mundo tendem a ser etnocntricos. Os cheyenes (ndios das plancies norte-americanas) se autodenominavam os entes humanos; os akuwas, grupo tupi do sul do Par, consideram-se os homens; os navajos, grupo indgena norte-americano, tambm se intitulavam o povo; os xavantes acreditam que seu territrio tribal est situado bem no centro do mundo, tanto quanto os incas dos Andes peruanos achavam que sua capital, Qosqo (ou Cuzco, como foi pronunciada a palavra pelos conquistadores espanhis), era o umbigo do mundo. Por que tendemos ao etnocentrismo? Na medida em que todos os indivduos so educados em uma cultura, e que toda cultura distingue o bem do mal, o feio do bonito, o certo do errado, natural sermos etnocntricos quando deparamos com outros povos. Mas h diversos graus de etnocentrismo. Alguns povos simplesmente menosprezam quem diferente e dele quer se afastar. Outros, alm de menosprezar, acham que tm o dever de transform-lo, e chamam isso de civilizar ou evangelizar. E h aqueles que vo ainda mais longe: menosprezam e no acreditam que seja possvel transformar quem diferente. Ele deve ser eliminado. Durante a Idade Mdia aps a queda do Imprio Romano e com o fechamento do Mediterrneo pela expanso islmica nos territrios que o margeiam , a Europa se encerrou em si mesma, trazendo como resultado uma nova forma de conceber o Outro. Sem possibilidades de conhecer esse Outro, os europeus passam a imagin-lo, mas sempre de forma deturpada, anormal. Surgem, assim, as imagens dos povos de gigantes, pigmeus, amazonas, canibais, entre outros. Com a expanso das navegaes nos sculos XV e XVI, os europeus acabaram se defrontando com um continente at ento desconhecido para eles: a Amrica. Pensando inicialmente que tinham desembarcado nas ndias, chamaram os nativos de ndios. E mesmo tendo percebido logo que no estavam nas ndias, isso no os impediu de continuar chamando os que aqui moravam com esse nome imposto e equivocado, ndios. Quanto etnocentrismo por trs de denominaes generalizantes que uns acham que podem impor aos outros! Tupis, Chibchas, Cheyenes, Astecas, Incas, Mapuches, Maias, Dakotas, Sioux, Inuits e tantos milhares de outros povos foram todos colocados numa nica categoria porque no interessava ao europeu conhecer suas particularidades ou singularidades. Conhecer o Outro no estava entre as prioridades do europeu conquistador. Ver e tratar algum como inferior autorizou os europeus a nomear (mudando os nomes que os povos davam a si mesmos), excluir, conquistar, dominar, matar, sempre em nome de sua suposta superioridade cultural e religiosa.

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  • Ao no se permitirem perguntar, escutar e dialogar, os etnocntricos se veem privados de aprender sobre os povos diferentes, e, assim, aprender sobre si mesmos. Ao ver no Outro apenas um ndio, os europeus dos sculos XVI e XVII no acharam necessrio perguntar, por exemplo, o que era aquela srie de canais subterrneos, para que servia, como funcionava. Simplesmente deixaram o assunto pra l porque era coisa de ndio , enquanto se enchiam de p, terra e lama durante sculos. Hoje, sabemos que esses canais foram construdos pelos incas com uma altssima tecnologia hidrulica, para irrigar locais onde agora h apenas desertos (a estreita franja litornea do Peru atual). Lamentavelmente, no temos mais a quem perguntar como que eles conseguiam juntar gua (e de onde) para faz-la passar por esses canais. O etnocentrismo passado alimenta nossa ignorncia no presente.

    Mais vale acender uma luz do que amaldioar a escurido.

    Urpi Montoya Uriarte professora de Antropologia da Universidade Federal da Bahia e

    autora de Entre fronteras:convivencia multicultural, Lima, siglo XX. Sur/Concytec, 2002).

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  • Saiba Mais

    Bibliografia CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstncia da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. So Paulo: Cosac & Naify, 2002. ROCHA, Everardo. O que etnocentrismo. So Paulo: Brasiliense, 1984. THEODORO, Janice. Amrica barroca. Temas e variaes. So Paulo: Edusp/Nova Fronteira, 1992. TODOROV, Tzvetan. A conquista da Amrica. A questo do Outro. So Paulo: Martins Fontes, 1996. Filmes A misso, de Roland Joff, 1986. 1492 A Conquista do Paraso, de Ridley Scott, 1992. Xingu, de Cao Hamburger, 2012.

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    Euro, etno e outros centrismos A Histria ocidental bastante etnocntrica. Revis-la uma forma de enxergar o que negamos e restituir o lugar da alteridade