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EXAME DA SOTERIOLOGIA CONTEMPORÂNEA ANTONIO DUCAY SUMARIO: I. O fundamento bíblico: 1. Soteriologia e evolução teológica nos últimos decénios. 2. O fundamento da soteriologia na vida e páscoa de Cristo: a. Jesus e o Reino. b. Jesus ante a sua morte. c. O Ressuscitado e a salvação. 3. A conceitualização bíblica da obra salvadora de Cristo: a. Mediador da salvação. b. A mediação salvadora: justiça e sacrifício. II. Os principais conteúdos: 1. A questão do “horizonte” e da unidade da soteriologia: a. Soteriologia e unidade no plano de Deus. b. Revelação e Salvação. c. Salvação integral. 2. O Mediador e a sua acção salvadora: a. Transcendência e historia na obra redentora. b. Cristo, causa da salvação. 3. Em torno à obra redentora: a. A Cruz revelação do amor de Deus. b. A Cruz assunção do pecado do mundo. c. A Cruz como doação sacrificial. d. Redenção, libertação e pecado. e. A Ressurreição, assunção do mundo à comunhão trinitária. III. Observações conclusivas. A renovação teológica que madura no concilio Vaticano II, e que se prolonga nos decénios sucessivos, não afecta todos os tratados teológicos por igual. Alguns deles, seja porque o seu conteúdo essencial foi fixado em épocas precedentes (como o de Deus um e trino) ou porque o último concilio deu, com a sua doutrina, uma estruturação essencial (como no De Ecclesia, ou a mariologia) puderam assumir a renovação com uma identidade mais bem definida. Noutros âmbitos, isto foi mais difícil. A historia da teologia conheceu épocas nas quais se preocupou intensamente duma ou outra área do dogma: da Trindade, da cristologia, da graça, do que hoje chamamos “teologia fundamental” ..., mas não ouve períodos dedicados à soteriologia. As afirmações do Magisterio que tocam este âmbito são sóbrias e escassas. Ancorada em poucos pontes de referencia e convertida em emblema da nova sensibilidade teológica, a soteriologia sofreu como poucos outros tratados as oscilações do processo de renovação. Viu-se obrigada a prestar serviço em áreas muito diversas, secundando o jogo do “giro antropológico” e dos parâmetros que foram mostrando ambições de protagonismo no âmbito teológico: a revelação, a fé e a existência humana, a historia da salvação, o “Jesus histórico”, a “imagem” de Deus... Tudo isto determinou um notável pluralismo de horizontes e contextos na produção soteriológica, e não facilitou uma serena renovação deste tratado teológico 1 . Daí pode derivar-se certa desorientação, especialmente para quem conhece pouco desta área da dogmática. 1 Em 1989, O. González de Cardedal: «a soteriologia sistemática encontra-se hoje diante de uma grande quantidade de problemas. Não é casual a aparição de uma serie de trabalhos que se compreendem como esboço de uma

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EXAME DA SOTERIOLOGIA CONTEMPORÂNEA ANTONIO DUCAY

SUMARIO: I. O fundamento bíblico: 1. Soteriologia e evolução teológica nos últimos decénios. 2. O

fundamento da soteriologia na vida e páscoa de Cristo: a. Jesus e o Reino. b. Jesus ante a sua morte. c. O

Ressuscitado e a salvação. 3. A conceitualização bíblica da obra salvadora de Cristo: a. Mediador da

salvação. b. A mediação salvadora: justiça e sacrifício. II. Os principais conteúdos: 1. A questão do

“horizonte” e da unidade da soteriologia: a. Soteriologia e unidade no plano de Deus. b. Revelação e

Salvação. c. Salvação integral. 2. O Mediador e a sua acção salvadora: a. Transcendência e historia na

obra redentora. b. Cristo, causa da salvação. 3. Em torno à obra redentora: a. A Cruz revelação do amor

de Deus. b. A Cruz assunção do pecado do mundo. c. A Cruz como doação sacrificial. d. Redenção,

libertação e pecado. e. A Ressurreição, assunção do mundo à comunhão trinitária. III. Observações

conclusivas.

A renovação teológica que madura no concilio Vaticano II, e que se prolonga nos decénios

sucessivos, não afecta todos os tratados teológicos por igual. Alguns deles, seja porque o seu

conteúdo essencial foi fixado em épocas precedentes (como o de Deus um e trino) ou porque o

último concilio deu, com a sua doutrina, uma estruturação essencial (como no De Ecclesia, ou a

mariologia) puderam assumir a renovação com uma identidade mais bem definida. Noutros

âmbitos, isto foi mais difícil. A historia da teologia conheceu épocas nas quais se preocupou

intensamente duma ou outra área do dogma: da Trindade, da cristologia, da graça, do que hoje

chamamos “teologia fundamental” ..., mas não ouve períodos dedicados à soteriologia. As

afirmações do Magisterio que tocam este âmbito são sóbrias e escassas. Ancorada em poucos

pontes de referencia e convertida em emblema da nova sensibilidade teológica, a soteriologia sofreu

como poucos outros tratados as oscilações do processo de renovação. Viu-se obrigada a prestar

serviço em áreas muito diversas, secundando o jogo do “giro antropológico” e dos parâmetros que

foram mostrando ambições de protagonismo no âmbito teológico: a revelação, a fé e a existência

humana, a historia da salvação, o “Jesus histórico”, a “imagem” de Deus... Tudo isto determinou

um notável pluralismo de horizontes e contextos na produção soteriológica, e não facilitou uma

serena renovação deste tratado teológico1. Daí pode derivar-se certa desorientação, especialmente

para quem conhece pouco desta área da dogmática.

                                                                                                               1 Em 1989, O. González de Cardedal: «a soteriologia sistemática encontra-se hoje diante de uma grande

quantidade de problemas. Não é casual a aparição de uma serie de trabalhos que se compreendem como esboço de uma

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Neste artigo propomo-nos oferecer um instrumento que permita (a quem já tem familiaridade

com a teologia) orientar-se no âmbito da teologia da redenção e dos seus recentes

desenvolvimentos. Limitar-nos-emos à teologia católica2 e às questões que parecem de maior

relevância para a “disciplina” soteriológica3. Não è a nossa intenção fazer uma crónica do que foi

dito, mas pôr de manifestos os aspectos principais, as linhas de tendência ou correntes, que a

soteriologia recente apresenta; como tal, privilegiaremos os aspectos da novidade, mas sem deter-

nos em propostas individuais, salvo quando seja imprescindível4. A exposição estruturar-se-á em

duas grandes secções: em primeiro lugar faremos uma revisão dos conteúdos bíblicos da

soteriologia, aqueles que se apresentam como fundamento; em segundo lugar examinaremos os

principais conteúdos teológicos5. Convêm, primeiro, deter-se brevemente no que constitui o quadro

comum, é dizer, no caminho que percorre a soteriologia, enquanto que segue as mesmas pautas da

renovação da teologia do período e conduz a um realce das questões bíblicas.

                                                                                                               nova soteriologia. Tem-se a impressão de ter que começar a pensar um problema com novas categorias, com nova sensibilidade, numa nova leitura da Sagrada Escritura. Em poucos campos é tão evidente a condição e limitação da linguagem teológica à que aludia a Mysterium Fidei como neste campo. As expressões teológicas anteriores, ao propor o dogma a um tempo concreto, ficaram afectadas pelas esperanças e pré compreensões desse tempo, de tal forma que hoje não podemos reassumir essas expressões sem uma correcção de acentos pressupostos e intuições.» La soteriología contemporánea, «Salmanticenses» 36 (1989) 294-295.

2 Outros autores ou ideias terão espaço na medida em que influam sobre a mesma.

3 Em rigor, a dicção “soteriologia” é mais amplia que a de “teologia da redenção” (pois a primeira abraça tudo o que é relativo à salvação). Não obstante, no contexto de este trabalho usá-los-emos como termos equivalentes. A nossa perspectiva será, em todo o caso, a de uma “teologia da redenção”, porque aí se centra a soteriologia como “disciplina” teológica.

4 Tendo em conta a amplitude da exposição e para facilitar a leitura no âmbito académico, pareceu-nos oportuno realizar a tradução ao português de todas as citas.

5 Não trataremos aqui de algumas questões que, pela sua grande actualidade, já foram objecto de excelentes exposições. Concretamente, não tratarei o tema da universalidade salvífica de Cristo no quadro das religiões , nem de temas próximos a este como a salvação fora da Igreja. Remeto-me, a modo de introdução a G. CANOBBIO, Salvezza solo in Gesù Cristo?, «La Rivista del Clero Italiano» 88 (2007) 340-354; J. RATZINGER, La unicidad y la universalidad salvífica de Cristo y de la Iglesia, in Cristo, camino, verdad y vida, Murcia, Universidad Católica San Antonio 2003, 307-322; A. AMATO, L'unicità della mediazione salvifica di Cristo: il dibattito contemporaneo, en M. CROCIATA, Gesù Cristo e l'unicità della mediazione, Edizioni paoline, Milano 2000, 13-44; G. O'COLLINS, Christ and the Religions, «Gregorianum» 84 (2003) 347-362.

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I. O fundamento bíblico

1. Soteriologia e evolução teológica nos últimos decénios

O quadro geral está determinado pela problemática questão da “comunicabilidade” da fé, num

mundo que se percebe cada vez mais distante da doutrina cristã. Como explica Ratzinger, cada vez

que se introduz uma distancia ou uma contradição entre o aspecto histórico do homem e o que para

ele é essencial, abre-se também uma Dinâmica de revisão na qual o homem, por assim dizer,

“desmonta” o seu passado e o reconstrói desde a suas raízes6. A rota ambicionada pelo ideal

humano nos séculos XVIII e XIX criava essa distancia e propunha o desafio de uma formulação do

cristianismo em categorias de acordo com esse novo rumo. Tanto o âmbito católico como o

protestante se lançaram nesta tarefa de buscar novas vias de comunicação e de renovação doutrinal,

voltando, para o efeito, às fontes genuínas do cristianismo, às suas raízes. Fizeram-no, no entanto,

de um modo diverso. O mundo protestante privilegiou inicialmente a via antropológica, é dizer, a

procura de conexão do genuíno cristão com as instancias que resultam mais verdadeiras e familiares

para o espírito moderno. Este desejo de “actualização” moderna da fé esteve sem dúvida detrás das

tentativas de chegar ao Jesus autêntico, capaz de comover o homem7, ou ao Jesus que introduz o

homem na sua existência autêntica (Bultmann)8. Estes projectos fracassaram quando se pôs de

manifesto o risco de arbitrariedade que entranhavam, o que originou uma forte reacção dirigida a

                                                                                                               6 Teoría de los principios teológicos. Materiales para una teología fundamental, Herder, Barcelona 1985, 181.

7 Esta foi a intenção principal da escola protestante liberal naquilo que se costumou designar como “primeira busca” da vida de Jesus (First Quest). A First Quest, que teve lugar, principalmente, no século XIX, leu os evangelhos como documentos biográficos surgidos pelo impacto da figura de Jesus, e tentou reconstruir a evolução psicológica da sua fascinante personalidade. A bibliografia sobre este desenvolvimento dos vários métodos de acesso ao Jesus dos evangelhos é muito numerosa. A nível introdutório descansamos: J.-N. ALETTI, Exégètes et théologiens face aux recherches historiques sur Jesús, «Recherche de Science Religieuse» 87 (1999) 423-444; G. BARBAGLIO, L'attuale ricerca storica su Gesù. Un'opera monumentale, «Cristianesimo nella storia» 25 (2004) 877-896; A. CADAVID, La investigación sobre la vida de Jesús, «Teología y vida» 43 (2002) 512-540; V. FUSCO, Un secolo di metodo storico nell'esegesi cattolica, «Studia Patavina» 41 (1994) 37-94; A.J. GODZIEBA, From «Vita Christi» to «Marginal Jew». The Life of Jesus as Criterion of Reform in Pre-critical and Post-critical Quests, «Louvain Studies» 32 (2007) 111-133; D. MARGUERAT, La ricerca del Gesù storico tra storia e teologia: nessi e tensioni, «Teologia» 33,1 (2008) 37-54; J. SCHLOSSER, La recherche historique sur Jésus: menace et/ou chance pour la foi?, «Revue des Sciences Religieuses» 80,3 (2006) 331-348; G. SEGALLA, La verità storica dei vangeli e la “terza ricerca” su Gesù, «Lateranum» 61 (1995) 461-500.

8 A constatação de Albert Schweitzer, em 1906, de que a reconstrução do Jesus histórico dependia das preferências de cada historiador, o qual terminava por esboçar a imagem de Jesus que mais lhe interessava, marcou o final da First Quest e levou alguns autores à conclusão de que o Jesus dos evangelhos era inacessível e inútil para a fé: a fé cristã não podia depender da historia de Jesus. Daí a conclusão de R. Bultmann de que a historia de Cristo é irrelevante para a fé, porque o que é decisivo é a pregação da mensagem de Jesus acerca do desejo de Deus de salvar o mundo. Esta mensagem conecta com as interrogantes do homem sobre o sentido da sua própria existência e permite-lhe orientar autenticamente a sua vida.

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sublinhar a objectividade da Revelação cristã. Vale a pena deter-se brevemente nela, pois comporta

dois elementos que influem notavelmente na soteriología católica.

Em primeiro lugar, com K. Barth9 sublinha-se fortemente o carácter verbal, divino e

indisponível da Revelação (entendida como Palavra de Deus em Jesus Cristo que se auto-apresenta

ao homem pela fé que ela mesma suscita), pelo que o sujeito/objecto da teologia já não é o homem

com as suas inquietudes, mas Deus soberano (Totalmente Outro) que traça em Cristo o único

caminho de salvação. Ainda que a teologia católica não seguirá o teólogo suíço na sua pretensão de

anular o significado teológico do mundo e do homem, no entanto, não passará por alto a sua

reivindicação da prioridade da acção salvadora de Deus, nem o facto de que a economia da salvação

se funda neste movimento descendente.

Além do mais, com O. Cullmann [Cristo y el Tiempo (1946)10] e a escola da historia salutis11

chega-se a uma compreensão da Revelação na forma de uma historia da salvação, preparada na

Antiga Aliança, realizada por Cristo, e permanentemente orientada à sua futura consumação

escatológica. Ao carácter verbal da Revelação sublinhado por Barth, Cullmann opõem uma visão,

na qual a Revelação é sobretudo acontecimento, kairós, sucessão das obras salvadoras que Deus

cumpre na historia. São anos de renovação para a teologia católica e a ideia de fundo do teólogo de

Estrasburgo não passa desapercebida12, ainda que, isso sim, é depurada da oposição entre palavra e

evento, posto que as duas realidade se implicam e se explicam mutuamente (como dirá anos depois

a Dei Verbum).

Nesse mesmo período o enfoque histórico-salvífico encontra, em certo modo, ventos favoráveis

no âmbito da Escritura. Por um lado começa-se a superar o escepticismo de Bultmann e a tomar

consciência da iniludível pertença da historia ao kerigma13, é dizer, de que os evangelhos não são

                                                                                                               9 Sobretudo na sua obra monumental Die Kirchliche Dogmatik, EVZ-Verlag, Zürich, 13 tomos, 1932-1967.

10 Original Christus und die Zeit. Die urchristliche Zeit- und Geschichtsauffassung, Evangelischer Verlag, Zollikon (Zürich), 1946.

11 Cfr. G. SEGALLA, Teologia biblica del Nuovo Testamento. Tra memoria escatologica di Gesù e promessa del futuro regno di Dio, Elledici, Leumann (TO) 2006, 44-45.

12 Faz-se eco especialmente J. Daniélou en 1953 quando publica su Essai sur le mystère de l’histoire, Èditions du Seuil, Paris 1953.

13 Reside nisto a principal contribuição da segunda “busca” da vida de Jesus (também chamada New Quest). O inicio desta segunda fase costuma fixar-se com a conferencia que E. Käsemann (um dos discípulos de Bultmann) pronunciou em Marburgo em 1953, publicada com o título Das Problem des historichen Jesus, ZTK 51 (1954), 125-153. Como indica Bordoni, «para Käsemann é necessário admitir que o Jesus terrestre pertence constitutivamente a fé no Cristo pascal e que a investigação sobre o Jesus histórico é uma exigência dessa fé em Cristo Salvador» M. BORDONI, Gesù di Nazaret. Signore e Cristo, I: Problemi di metodo, Herder - PUL, Roma 1982, 46.

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pura mensagem revestida de roupagem histórico, mas que a historia é parte integrante da

mensagem, pois os evangelhos desejam transmitir a memoria da historia de Cristo recolhida por

aqueles que foram dela testemunhas. Por outra lado, os estudos sobre o Antigo Testamento do

bavierense G. von Rad afrontam desde outra perspectiva a integração da historia na Revelação14. O

professor alemão propõem uma leitura dinâmica dos textos bíblicos, compreendidos desde o seio da

tradição particular na que nasceram e desde os contextos históricos e de fé em que foram editados e

reelaborados. Desde este ponto de vista, a Palavra de Deus que a Escritura transmite está encarnada

na historia da compreensão de fé do povo de Israel e só a partir dela é plenamente acessível.

Muitas destas instancias concernem também ao mundo católico15. Este comparte com o

protestante as solicitudes que chegam desde a cultura, ainda que as suas circunstancias particulares

o conduzem a empreender um caminho algo diferente. Sobretudo, sente-se como inadequada a

concepção teológica dominante —de cariz neoescolástico e apologético— que aparece como um

sistema de pensamento estreito e excessivamente rígido para a mentalidade do tempo16. Abre-se

então um conflito entre duas sensibilidades distintas (uma mais ontológica, outra mais histórica),

que dá lugar a dois sistemas e a dois metidos teológicos diversos17. Por uma parte, a doutrina cristã

na sua versão escolástica pretendia ser uma verbalização do absoluto, da imutável verdade divina, e

estar desse modo imune as mudanças dos tempos, na posição de quem possui uma verdade revelada

por Deus, e por tanto eterna; por outra parte, para uma mentalidade que se tinha habituado a captar

nos fenómenos o seu carácter histórico, essa imutabilidade não podia senão parecer absolutismo,

                                                                                                               14 Theologie des Alten Testaments, Bd I, Die Theologie der geschichtlichen Überlieferungen Israels, München

1957; Bd II, Die Theologie der prophetischen Überlieferungen Israels, München 1960.

15 Cfr. G. ANGELINI, La vicenda della teologia cattolica nel secolo XX, en Dizionario Teologico Interdisciplinare, III, Marietti, Torino 1982, 609-672; G. CANOBBIO, Uno sguardo complessivo sulla teologia del '900, in IDEM, Teologia e storia: l'eredità del '900, San Paolo, Cinisello Balsamo 2002, 7-32; J.M. CONNOLLY, Le renouveau théologique dans la France contemporaine (original inglés: The voices of France. A survey of contemporary theology in France), Éditions Saint-Paul, Paris - Fribourg 1966; R. AUBERT, La théologie catholique durant la première moitié du XX siècle, in R.-V. VAN DER GUCHT, H., Bilan de la Théologie du XX siècle, I, Paris 1970, 423-478; B. MONDIN, Storia della teologia, EDB, Bologna 1996-1997, 446-571; A. DONI, La riscoperta delle fonti, en R. FISICHELLA (a cura di), Storia della teologia, III: Da Vitus Pitcher a Henry de Lubac, EDB, Roma - Bologna 1995, 443-474; R. GIBELLINI, La teologia del XX secolo, Queriniana, Brescia 2007, 161-270; R. WINLING, La théologie contemporaine : (1945-1980), Le centurion, Paris 1983, 60-92.

16 Cfr. WINLING, La théologie contemporaine, 67.

17 As correntes que tentam renovar nesses anos o modo e a forma de fazer teologia constituíram o movimento da Nouvelle Théologie.

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fruto da imposição autoritária de um particular modo de aceso à realidade, mas não exigência

necessária da transmissão do genuíno núcleo cristão18.

Na sua forma modernista aguda este conflito tinha sido justamente reprimido pelo Magistério da

Igreja nos primeiros anos do século XX; no entanto, a instância de verdade presente no movimento

renovador estava destinada a emergir tanto no nível do debate sobre o específico cristão (a essência

do cristianismo) como no plano metodológico do acesso a essa especificidade. Punha-se em

evidencia (Daniélou) que «a revelação cristã não é uma teoria sobre a ordem ideal do cosmos, mas

testemunhos sobre acontecimentos, de modo que estes e a sua sucessão progressiva são as

categorias que caracterizam a “historia da salvaçao”»19. Os olhos voltavam-se de novo para a

teologia dos Padres, cujo esquema de oeconomia salutis oferecia a oportunidade de enlaçar a

Tradição com a renovação teológica desejada, ao mesmo tempo que pedia ma maior aceitação dos

métodos históricos no estudo da Sagrada Escritura, pois reconheciam-se os bons resultados que

alguns exegetas protestantes estavam a obter20. Tudo aquilo buscava, segundo Doni, introduzir

«uma maior liberdade no campo das interpretações das construções teológicas, (...) e ter uma

percepção mais rica e global do mistério revelado»21. O mundo teológico católico passava de uma

concepção mais bem conceitual e centrada nas formulações dogmáticas a outra mais histórica e

pessoal, centrada em Cristo e nos seus mistérios.

As vantagens desta mudança pareciam evidentes: ao centrar o discurso cristão no que constitui o

seu fundamento, é dizer, no obrar salvador de Deus, evidenciava-se em primeiro lugar a prioridade

do dato revelado sobre as especulações teológicas ou as doutrinas de escola; facilitava-se a

apresentação da dimensão apologética do cristianismo, que se funda em factos testemunhados e não

em doutrinas teóricas; finalmente, conectava com uma cultura cuja inclinação ao histórico era

evidente. Mas sobretudo, ao dar espaço à historia da salvação evidenciava-se o longe que estava a

fé cristã de toda a forma de mitologia e de subjectivismo religioso, e afirmava-se a realidade do

extra-nos da salvação tal como Deus a quis, é dizer, dada no fazer-se carne do Filho de Deus e nos

seus mistérios, que estão na origem da compreensão da Igreja. Isto permitia ver a profunda unidade                                                                                                                

18 Sobre estes aspectos cfr. RATZINGER, Teoría de los principios teológicos, Herder, Barcelona 2005, 105-109; CANOBBIO, Uno sguardo complessivo, 10.

19 Cfr. G. ANGELINI, Storia, storicità, in Dizionario Teologico Interdisciplinare, III, 343, que resumia a posição de Daniélou.

20 Este último aspecto era recordado há alguns anos pelo cardeal J. Ratzinger, numa conferencia à Pontifícia Comissão Bíblica com motivo dos 100 anos desta instituição. Cfr. J. RATZINGER, La relación entre Magisterio de la Iglesia y exégesis, Zenit, 9-V-2005.

21 DONI, La riscoperta delle fonti, 458.

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entre o acontecimento fundador do cristianismo, a sua compreensão na primeira comunidade cristã

e a sua posterior formulação dogmática, mostrando a coerência que a Igreja tinha mantido tanto

respeito à sua origem como ao seu posterior desenvolvimento22.

Em todo o caso, como afirma Serenthà, «redescobrir o primado da economia, a centralidade da

dimensão histórico-salvífica, leva consigo, como consequência lógica, pôr em primeiro plano no

discurso cristológico, a acção da salvação obrada por Cristo na sua globalidade, incluindo por tanto

toda a sua biografia histórica que culmina na Páscoa»23. A atenção não só dos exegetas mas também

dos teólogos orientou-se então ao significado da vida de Cristo, da sua mensagem e predicação, das

suas curas e milagres, do processo que o conduziu à morte e da sua posterior glorificação. Detemo-

nos, seguidamente, em três aspectos destacáveis desta revisão da figura de Cristo: a sua concepção

do reino de Deus, o seu pensamento acerca da sua própria morte, e a realidade da sua ressurreição

corpórea.

2. O fundamento da soteriologia na vida e páscoa de Cristo

a. Jesus e o Reino

Uma das perguntas mais importantes que se fizeram nos últimos decénios em teologia poderia

formular-se assim: O que é que Jesus tentou fazer? Como entendeu a sua missão? Ainda que se trata

de uma questão cuja resposta tem ressonâncias em toda a dogmática cristã, afecta de modo

particular a teologia da redenção, pois o fundamento do discurso soteriológico cristão não pode ser

outro que a missão que Cristo veio realizar, e esta só pode basear-se no que o próprio Cristo disse e

obrou.

A questão foi recebida com diversas abordagens. A mais recente, em linha com a Third

Quest24, trata de determinar os objectivos que Jesus se propôs, dando um espaço à compreensão que

Jesus teve das Escrituras de Israel e das expectativas do seu tempo. O ponto de partida poderia

                                                                                                               22 Cfr. M. BORDONI, Gesù di Nazaret. I, 24 ss.

23 Cfr. M. SERENTHÀ, Gesù Cristo, ieri, oggi e sempre, Elle-Di-Ci, Torino-Leumann 1986, 15.

24 A New Quest constatou a impossibilidade de separar a vida de Jesus do seu anuncio por parte dos primeiros discípulos (fizemo-lo notar na secção precedente), e orientou-se a individuar o característico de Jesus, com plena consciência de que as suas fontes estavam constituídas por testemunhas crentes. Posteriormente, com o descobrimento das novas fontes sobre o contexto sócio-religioso judeu do primeiro século, abriram-se novas perspectivas para enquadrar a figura de Cristo. O interesse teológico (escatológico) da New Quest cedeu o passo a uma nova orientação com carácter mais sociológico, à que se costuma chamar Third Quest.

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formular-se assim: Desde que perspectiva considerava Jesus as promessas de Deus a Israel?25 A

resposta, no entanto, não é simples, sobretudo se se aceita a opinião de Dunn de que os distintos

motivos de esperança de Israel na época de Jesus não são algo uniforme e determinado, e

constituem, mais bem, «uma serie de realidades dispersas, de esperanças e aspirações postas umas

junto às outras sem pretensões de totalidade»26. Em todo o caso, a partir dos relatos evangélicos e

das formulações dessas esperanças do Antigo Testamento, é possível estabelecer alguns aspectos

fundamentais.

Praticamente todos os especialistas estão de acordo em que «a missão de Jesus orientou-se por

completo à chegada do reino de Deus e de Deus mesmo na sua soberania salvadora, presente e

futura»27. O reino de Deus foi o centro unitário da missão e da obra de Jesus Cristo. Para determinar

como entendeu Jesus este Reino e que papel se atribuiu nele a si mesmo, vale a pena retomar três

“problemáticas” da historia do tema, surgidas no âmbito protestante. Mencionamo-las agora

simplesmente, já que se irão aclarando pouco a pouco.

A primeira é a conhecida objecção de von Harnack (+1930) de que no evangelho a

“cristologia” é marginal e que o importante é a relação dos homens com o Pai28. Daí pode-se

deduzir que a Igreja primitiva corrompeu o cristianismo quando centrou a doutrina cristã em Jesus,

Filho de Deus, tirando-a do contexto do reino de Deus que Jesus predicava. Um segunda aspecto é a

tese (hoje amplamente superada) do “segredo messiânico” de Wrede (+1906), segundo o qual Jesus

no teve intenção de proclamar-se Messias antes da sua ressurreição, o qual fundar-se-ia no silencio

que Jesus impõem com frequência com a sua identidade, especialmente presente no evangelho de

Marcos29. Finalmente fazemos alusão à pergunta, formulada sobretudo a partir da obra de J. Weiss,

                                                                                                               25 Nesta direcção foi objecto de debate o livro de N.T. WRIGHT, Jesus and the victory of God, SPCK, London

1996. Wright propõe uma interpretação das intenções de Jesus na linha de Is 52,7-12 (a restauração de Israel por parte de Deus). Escreve: «Jesus compartiu o sentimento de muitos dos seus contemporâneos: o Deus de Israel tinha decidido actuar definitivamente na historia para cumprir as suas promessas: libertar Israel e instaurar o direito no mundo inteiro». Jesus pensou que a sua tarefa e vocação consistiam em desencadear (bring about) estes acontecimentos. N.T. WRIGHT, In Grateful Dialogue. A Response, en C.C. Newman (ed.), Jesus & the Restoration of Israel. A critical assessment of N.T. Wright's ‘Jesus and the Victory of God’, InterVarsity Press - Paternoster Press, Downers Grove (IL) - Carlisle (UK) 1999, 270.

26 J.D.G. DUNN, Jesus and the Kingdom: how Would his Message Have Been Heard?, in D.E. AUNE et al. (edited by), Neotestamentica et Philonica. Studies in honor of Peder Borgen, Brill, Leiden-Boston 2003, 3-36 (citación: 8-9).

27 G. SEGALLA, Il Regno di Dio centro unitario della missione e dell'opera di Gesù, in IDEM, Teologia biblica, 131.

28 «O único que forma parte do evangelho predicado por Jesus é o Padre, não o Filho». A. VON HARNACK, La esencia del cristianismo (1900), [J. MIRÓ FOLGUERA, v. I, Barcelona 1904, 133].

29 W. WREDE, Das Messiasgeheimnis in den Evangelien. Zugleich ein Beitrag zum Verständnis des Markusevangeliums, Göttingen 1901. Para Wrede o evangelho de Marcos surgiu como tentativa de explicar porque é

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sobre o carácter de fundo da predicação de Cristo, e concretamente se Jesus concebeu a sua

predicação como anuncio de conversão radical na iminência do fim do mundo30.

Tendo presentes estas questões tratemos agora de ver onde se centrou o mistério público de

Jesus, e que tipo de Reino predicou e como entendeu a sua relação com esse Reino. Para o efeito

convém descrever brevemente a actividade inicial de Jesus junto com o seu desenvolvimento

posterior.

Não há dúvida que num certo momento da sua vida, Jesus compreendeu que tinha chegado a

hora de actuar publicamente. Em todos os sinópticos este momento está marcado pela experiencia

do Espírito, que teve lugar com a ocasião do seu baptismo no Jordão por mãos de João. A partir daí

Jesus começou a percorrer «toda a Galileia, ensinando nas suas sinagogas, pregando a Boa Nova do

Reino e curando toda e qualquer doença ou enfermidade do povo» (Mt 4,23). O evangelista Marcos

sintetiza a predicação de Cristo com estas palavras: «Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está

próximo. Arrependei-vos e crede na Boa Nova» (Mc 1,15).

Não deve ter sido surpresa para os contemporâneos de Jesus que Ele pusesse no centro da sua

mensagem o reino de Deus. A confissão monoteísta e a particular relação do único Deus com Israel

constituíam o fundamento da vida social judia. Todo o israelita piadoso recitava a profissão que se

lê em Dt 6,4-5: «Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus ó o único Iahweh! Portanto amarás a Iahweh

teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força». Sentia como própria

a expressão com que David tinha cantado com ocasião do translado da arca a Jerusalém,

abundantemente recolhida nos salmos: “o Senhor é Rei” o “o Senhor reina” (Ihwh malak): Deus

proclamou-se rei e governa sobre Sião. Quando Jesus fala do “reino de Deus” ou do “reino dos

céus” () refere-se a esta soberania real de Deus, ainda que a imagem do Reino que Jesus predicava,

centrada no rosto de um Deus misericordioso que ama os homens, era profundamente original31.

Jesus não só afirma a proximidade do Reino como João Baptista, mas também a sua presença: o

                                                                                                               que Jesus teve uma atitude tão pouco “messiânica” durante a sua vida. Mediante o artificio literário do “segredo” (Jesus proíbe aos demónios, ou aos beneficiários dos seus milagres, ou aos discípulos revelar a sua identidade), Marcos conseguiria estabelecer que Jesus era o Messias –como pensava a Igreja do seu tempo–, ao mesmo tempo que ninguém o soube até depois da sua morte, pois foi revelado só com a proclamação da sua ressurreição.

30 J. WEISS, Die Predigt Jesu vom Reiche Gottes, Göttingen 1892. A tese foi depois sustentada de modo mais sistemático nos trabalhos de A. Schweitzer. Cfr. Geschichte der Leben-Jesu-Forschung, Tübingen, 4a ed. 1926.

31 G. SEGALLA, Teologia bíblica, 133. Segundo J.D.G. Dunn, no quadro da expectação messiânica de Israel era comum pensar que «Yahweh é o rei e que Ele tem um desígnio coerente sobre Israel no processo de cumprimento». Mas isto não significava que houvesse uma visão uniforme respeito do modo de essa cumprimento. Jesus and the Kingdom, 3-36 (cit. pp. 8 y 9).

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Reino chegou32, está no meio dos discípulos33, e isso deduz-se das mesmas obras que Jesus realiza:

exorcismos, milagres, curas. Esta presença —que constitui talvez «o aspecto do Reino mais

característico de Jesus»34— mostra-o como «um dom puramente gratuito de Deus, um bem que Ele

oferece ao homem, sem que este possa forçá-lo a vir ou apressar o seu tempo»35; o inicio da

salvação definitiva da condição de miséria e de pecado nas que o homem se encontra. O acento

põem-se, portanto, na mudança de época: o tempo da promessa passou e entrou-se no tempo

decisivo, escatológico, do cumprimento.

Certamente, há na predicação de Cristo um sentido de urgência e de iminência, que se

manifesta na radicalidade da chamada a dispor-se inteiramente ao requerimento de Deus36, e na

convicção que se entrou na hora decisiva da conversão e da acção salvadora. Também é verdade

que Jesus enquadra a sua mensagem na óptica de um futuro último, no horizonte do juízo final e da

consumação do mundo37. No entanto, Jesus não centra a sua predicação nesse juízo ou Dia último,

mas no carácter definitivo da salvação que Deus oferece por meios d’Ele, e na necessidade de não

desprezá-la38. Não é o mensageiro do iminente final dos tempos, mas do começo de uma época

definitiva, que, em quanto tal, está estreitamente conectada a esse final. Tampouco os seus

                                                                                                               32 Cfr. Mt 12,28.

33 Cfr. Lc 17,21.

34 G. SEGALLA, Teologia bíblica, 157. Que o Reino está já presente na pessoa, ensinamentos e obras de Jesus é a posição quase unânime entre os exegetas de âmbito católico. No mundo protestante o equilibro de esta posição reconhece-se entre as correntes da escatologia “consequente” que, com A. Schweitzer, afirmavam que Jesus pensava numa irrupção iminente da consumação última, y as da escatologia “realizada”, que com C. H. Dodd, sugeriam que o Reino consistia precisamente no dom que penetrava a historia por acção de Jesus. No entanto, estas duas correntes continuam a influenciar o âmbito da Reforma.

35 M. BORDONI, Gesù di Nazaret. Presenza, memoria, attesa, Queriniana, Brescia 1988, 141. A mesma formulação que Jesus emprega quando fala da “vinda do Reino” (Mc 9,1; Mt 6,10), indica o carácter de dom gratuito e, ao mesmo tempo, definitivo: o Reino.

36 Cfr. P. STUHLMACHER, Gesù di Nazaret, Cristo della fede, Dehoniane, Bologna 1992, pp. 29-39 (en particular: 31).

37 É característica a expressão «naquele Dia ... », dita em referencia ao juízo último de Deus e à consumação do mundo. Cfr. Mt 7,22; Mc 2,20; Lc 5,3; 10,12…

38 No seja que esse dia chegue como um ladrão e não se esteja preparados. Esta disposição de vigilância –presente nas parábolas das dez virgens (Mt 25,1-13), do ladrão nocturno (Lc 12,39-40//Mt 24,43-44), do administrador infiel (Lc 12,41-46//Mt 24,45-51), dos talentos ou das minas (Mt 25,14-30//Lc 19,11-27)– é o que interessa a Jesus. Não significa, no entanto, que Jesus tenha vivido, Ele mesmo, à espera de esse dia messiânico, como conjecturou J.A.T. Robinson (The Most Primitive Christology of All, «Journal of Theological Studies» n. s. 7 (1956) 177-189).

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milagres39 foram manifestações apocalípticas de uma época em vias de conclusão, mas signos

reveladores de um mundo novo, que tinham origem e cumprimento na sua missão40.

Especial interesse tem a relação de Jesus com o Reino, que se mostra mais claramente à medida

que avança a sua missão terrena. Esta relação pode-se abordar, por assim dizer, “desde dentro”, a

partir do que se veio a chamar “cristologia implícita”41, que tem principalmente dois focos: a

“autoridade” (éxousía) de Cristo e o “seguimento” de Cristo.

Por um lado, conforme a sua missão vai adiante, as obras que Jesus realiza, a autoridade e

sabiduria com que fala, não deixam de sorpreender o povo e propõem como maior força a questão

da identidade de Jesus: Quem é este a quem até os ventos e o mar obedecem? (Mt 8,27). Quem é

este que até perdoa pecados” (Lc 7,49). Quem é esse, portanto, de quem oiço tais coisas? (Lc 9,9).

A pergunta surge naturalmente, pois por meio d’Ele se desprende uma acção poderosa de Deus no

mundo e, «coisa notável, essa soberania divina parece exercer-se na autoridade do mesmo Jesus»42.

A este pergunta o Senhor não dá uma resposta directa, pelo menos inicialmente; deixa, por assim

dizer, que as obras falem por si mesmas. Inclusive, seguindo S. Marcos, pode-se dizer que Jesus não

quer que a sua identidade seja claramente desvelada (“secreto messiânico”: ou mais propriamente

“reserva”). No entanto, a atitude do Senhor manifestará uma mudança neste ponto. Vejamo-lo com

mais detalhe.

A actividade inicial de Cristo concentrou-se na Galileia e nas comarcas limítrofes, interrompida

de vez em quando por breves viagens a Jerusalém com ocasião das festa importantes. Como Jesus

procurava predicar em novos lugares e a Galileia não é uma região extensa, depois de alguns meses

a sua mensagem já era conhecida e começou a dar lugar a reacções contrastantes. É opinião bastante

difundida entre os exegetas que depois de um primeiro período de favor, no qual Jesus esteve com

                                                                                                               39 Sobre os milagres de Jesus e a sua historicidade cfr. B.L. BLACKBURN, Miracles and Miracle Stories, in J.B.

GREEN, et al. (ed.), Dictionary of Jesus and the Gospels, Inter-Varsity Press, Downers Grove (IL) - Leicester (UK) 1992, 549-560; L. ERDOZAIN, Los milagros, «Estudios Eclesiásticos» 77 (2002) 141-162. Uma visão das posições exegéticas recentes (excessivamente acrítica) em J.J. BARTOLOMÉ, Jesús de Nazaret, “Ese varón acreditado por Dios con hechos prodigiosos” (He 2,22). Una reseña de la investigación sobre los milagros, «Salesianum» 63 (2001) 225-266.

40 Cfr. M. BORDONI, Gesù de Nazaret. Presenza, 143.

41 É dizer, a cristologia que se logra indirectamente do que Jesus diz e obra. Cfr. J.M. CASCIARO, La cristología implícita en los evangelios sinópticos, en IDEM, Jesús de Nazaret, Alga, Murcia 1994, 433-484; J. SCHLOSSER, Q et la christologie implicite, in A. LINDEMANN, The Sayings Source Q and the Historical Jesus, Peeters, Leuven 2001, 289-316.

42 I. DE LA POTTERIE, Fundamento bíblico de la teología del Corazón de Cristo. La soberanía de Jesús. Su obediencia al Padre. Su conciencia filial, en Instituto Internacional del Corazón de Jesús, Confirmación y desarrollo del culto al Corazón de Cristo, Edapor, Madrid 1982, 84.

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frequência rodeado de multidões, a sua actividade entrou numa fase de crescente polémica e

hostilidade. Começou-se a delinear uma certa oposição, em parte por inveja de quem o escutava, em

parte pelas exigências da doutrina que predicava, e em parte também porque, depois de um período

de espera, parecia evidente que a sua figura não coincidia com a imagem de Messias que as gentes

se tinham feito43. É o que alguns chamaram “a crise galileia”44.

O evangelista Marcos estrutura o seu relato em torno a esta temática. Enquanto que na primeira

secção do seu evangelho45, quando Jesus é aclamado, Marcos insiste no “secreto messiânico” dando

a entender o risco de uma má interpretação do messianismo de Cristo46; a partir da confissão de

Pedro em Cesaréia de Filipo, quando já a incompreensão dos fariseus e a perda de interesse de

numerosos ouvintes faz improvável esse risco, Jesus começa a manifestar com maior claridade o

seu destino de cruz e a sua identidade, de modo que as duas questões —identidade e tipo de

messianismo— estão conectadas. Desde esse momento, e à vista do despego de uma parte dos seus

seguidores, Jesus dedica mais tempo à formação dos seus47. Fá-lo com uma orientação clara, que se

intui já na dureza da repreensão dirigida a Pedro48, e confirma-se no sucessivo ensinamento dirigido

                                                                                                               43 Neste sentido o evangelho apresenta-nos a incredulidade dos seus familiares, as duvidas de João Baptista preso,

o conflito que o próprio Jesus teve com os seus concidadãos com ocasião de uma visita à sinagoga de Nazaré, alguns escribas que duvidam da sua condição messiânica e pedem-lhe um sinal do céu. São João conta também o episodio da recusa do seu discurso do pão da vida, e diz que muitos o abandonaram e já não lhe seguiam (cfr. Jo 6,66). Desta incredulidade são um eco os lamentos de Jesus sobra as cidades de Corazin, Betsaida e Cafarnaum, situadas nas margens do lago de Tiberíades (cfr. Mt 11,21-24).

44 Cfr. W. KASPER, Jesús el Cristo, Sígueme, Salamanca 2002, 115; M. BORDONI, Gesù di Nazaret. Signore e Cristo, II: Gesù al fondamento della cristologia, Herder - PUL, Roma 1982, 313. Em todo o caso não há que pensá-la como um fracasso ou desmoronamento do que se tinha construído, mas mais propriamente como uma fase de desinteresse e abandono por parte de muitos. Depois de um bom período de actividades, não só os opositores, mas inclusivamente os discípulos não o compreendiam suficientemente. Cfr. R.T. FRANCE, The Gospel of Mark. A Commentary on the Greek Text, W.B. Eerdmans Paternoster Press, Grand Rapids (MI) - Cambridge Carlisle (UK) 2002, 309-319.

45 É frequente entre os especialistas distinguir duas secções no evangelho de Marcos: na primeira, Jesus revela-se progressivamente como Messias itinerante que predica o Reino, e que convoca ao seu redor o discípulos e a multidão (1,14-8,26); na segunda revela-se o mistério do Filho do Homem escatológico, que realiza o Reino por meio da sua paixão (8,27-16-8). O núcleo desta segunda secção e de todo o evangelho de Marcos é 8,27-10,52, onde à confissão de Pedro em Cesaréia, segue o triple anuncio da paixão, morte e ressurreição , com a necessidade para o discípulo de seguir a Jesus pelo seu caminho de renuncia e sacrifício. Uma explicação detalhada da estrutura de Marcos em R.A. GUELICH, Mark, Gospel of, en Dictionary of Jesus and the Gospels, Inter-Varsity Press, Downers Grove (IL) - Leicester (UK) 1992, 516-517. Cfr. también G. SEGALLA, Teologia dei sinottici, in Dizionario Teologico Interdisciplinare, III, Marietti, Casale Monferrato 1977, 375-378.

46 O ênfase do evangelista no silencio «serve para retardar um juízo prematuro sobre a pessoa e ministério de Jesus, até à cruz e ressurreição; aí, e só aí, se desvela plenamente o significado». A.J. HULTGREN, Christ and His Benefits. Christology and Redemption in the New Testament, Fortress Press, Philadelphia (PA) 1987, 60.

47 Cfr. J. POTIN, Jésus. L'histoire vrai, Centurion, Paris 1994, 316-317; V. TAYLOR, The Gospel according to St. Mark, Macmillan & Co., New York 1963, 147.

48 E começou a ensinar-lhes: “O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar”. Dizia isso abertamente. Pedro, chamando-o de

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a todos (discípulos e ouvintes): «Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua

cruz e siga-me» (Mc 8,34). Nestas palavras, a soberania real de Deus que Jesus predica, realiza-se

só na condição de seguir-Lhe por via da renuncia e da abnegação. Jesus não aparece aqui como

mensageiro do Reino, mas como o seu centro e modelo. Na intenção de Jesus «o discípulo não se

caracteriza só pela sua aceitação da mensagem do reino de Deus que vem mediante a conversão do

coração: inclui também uma adesão particular a Cristo e à sua vida»49, é dizer, a decisão radical de

compartir com Ele a sua missão e o seu destino.

Os dois aspectos que assinalámos no que se refere à “cristologia implícita” mostram

suficientemente a centralidade de Cristo no reino que predicou, a qual só se podia fundamentar

ultimamente no mistério da sua pessoa, tal como Jesus mesmo a percebia, é dizer, desde a sua

condição filial de Filho de Deus. A crítica bíblica dos últimos decénios estudou a fundo também

este aspecto: a consciência filial de Jesus50. Os dados que proporcionam os evangelhos permitem

perceber que Jesus «falava de Deus como seu Pai num sentido totalmente único»51. Nos quatro

evangelhos aparece em boca de Jesus a distinção entre “meu Pai” e “vosso Pai”52. Estudou-se

também o particular uso que se faz do termo Abba (Pai meu: Mc 14,36), que deveu ficar gravado

nos discípulos, tanto como para passar à primitiva comunidade cristã, donde o encontramos em São

Paulo (Gal 4,6; Rm 8,15)53. Noutras ocasiões Jesus referia-se a si mesmo usando o título de “Filho”

em sentido absoluto (o Filho)54. Em definitiva, Jesus sentia-se Filho de Deus e essa filiação

continha um conhecimento íntimo e exclusivo do Pai e uma consciência de representá-lo                                                                                                                lado começou a recriminá-lo. Ele, porém, voltando-se e vendo os seus discípulos, recriminou a Pedro, dizendo: “Arreda-te de mim, Satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens!” (Mc 8,31-33). Recordemos que Marcos resume no seu evangelho a predicação petrina: a Pedro essas duras palavras não deixariam jamais de ressoar-lhe.

49 BORDONI, Gesù di Nazaret, II, 323.

50 Os trabalhos capitais situam-se já nos anos 60 com W. MARCHEL, Abbà Père! La prière du Christ e des chrétiens. Étude exégétique sur les origines et la signification de l'invocation à la divinité comme père, avant et dans le Nouveau Testament, Biblical Institute Press, Rome 1971 (1ª ed.: 1963), e J. JEREMIAS, Abba und das tägliche Gebet im Leben Jesu und der ältesten Kirche, Göttingen, 1966 (tradução espanhola em Abba y el mensaje central del Nuevo Testamento, Salamanca, Sígueme 1981, 17-89).

51 DE LA POTTERIE, Fundamento bíblico, 106.

52 Ibidem.

53 Abbá usava-se normalmente no âmbito familiar, com o sentido de “Pai” ou “Meu Pai”, mas não para a relação com Deus. Cfr. SEGALLA, Teologia bíblica, 174 ss. Logicamente os discípulos recordariam a expressão como algo singular e específico de Jesus. No judaísmo do século I era frequente referir-se a Deus com a expressão “Pai nosso que estais nos céus.”

54 Entre os lugares de autenticidade segura a Parábola dos vindimadores homicidas (Mc 12,1-9), o logion da hora final (Mc 13,32) e o do conhecimento recíproco entre o Pai e o Filho (Mt 11,27). Cfr. M. GRONCHI, Trattato su Gesù Cristo Figlio di Dio Salvatore, Queriniana, Brescia 2008, 187-189.

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plenamente no mundo55. No entanto, a sua filiação, como o seu messianismo, podia ser

incorrectamente entendida56; daí que Jesus historicamente associou a sua filiação à sua obediência

ao Pai e desvelou a sua identidade principalmente no contexto do seu destino sofredor57. Este modo

de obrar permitia que a identidade filial de Cristo ficasse unida à doação total de Si mesmo, o que

abria o caminho para uma compreensão de Deus e do Reino centradas no amor (agápe).

b. Jesus ante a sua morte

No entanto, pode-se questionar se uma compreensão deste tipo na que tudo parece encontrar

unidade (a concepção de Deus, a percepção do reino, o destino sofredor, etc.) responde realmente à

historia, ou é, mais bem, o ponto de chegada do processo de reflexão levado a cabo pela

comunidade primitiva, a qual, se queria ter alguma possibilidade de ser escutada, necessitava dar

razão da morte de Jesus. Em último termo, e ainda que com a Escritura na mão se pudessem

encontrar texto que prefiguravam o acontecimento da cruz, sem um modelo para explicar o sentido

da “morte do Messías”, a credibilidade da predicação cristã ficaria seriamente diminuída58. Por isso

justifica-se a pergunta de se a centralidade da cruz e a doutrina sobre o seu valor salvador tiveram

origem em Jesus mesmo ou na comunidade primitiva. Tentando dar uma resposta, os especialistas

concentraram-se sobre três questões: se se deve suster, desde o ponto de vista histórico, que Jesus

previu e abraçou o seu destino de cruz; em caso afirmativo, se atribuiu um sentido preciso a essa

morte; e, por último —esta é a pergunta central— como compaginar a sua predicação do Reino com

a sua morte salvadora.

Respeito ao primeiro assunto hoje já não pode haver dúvidas. Foi superado o cepticismo de

Bultmann que não lhe permitia dizer nada preciso59. Ainda que as predicações explícitas sobre a

                                                                                                               55 Cfr. Lc 10,22.

56 Como de facto aconteceu com os que lhe gritavam: «Confiou em Deus: pois que o livre agora, se é que se interessa por ele! Já que ele disse: Eu sou filho de Deus» (Mt 27,43).

57 São João expressa-o claramente no seu Evangelho quando põe na boca de Jesus estas palavras: «Quando tiverdes elevado o Filho do Homem, então sabereis que Eu sou, e que nada faço por mim mesmo, mas falo o que me ensinou o Pai» (Jo 8,28).

58 Cfr. M. HENGEL, Crocifissione ed espiazione, Paideia, Brescia 1988, 43.

59 Na reacção a Bultmann tiveram importância, entre outros, alguns trabalhos de J. Jeremias recolhidos no seu Neutestamentliche Theologie. Teil 1. Die Verkündigung Jesu, Gütersloh, 1971 (trad. española: Teología del Nuevo Testamento, Salamanca, Sígueme 1985). Em âmbito católico foi notável a contribuição de H. SCHÜRMANN, Jesu ureigener Tod. Exegetische Besinnungen und Ausblick, Herder, Freiburg 1975 (trad. española: ¿Cómo entendió y vivió Jesús su muerte? Reflexiones exegéticas y panorámica, Salamanca, Sígueme 1982); IDEM, Gottes Reich, Jesu Geschick. Jesu ureigener Tod im Licht seiner Basileia-Verkündigung, Herder, Freiburg 1983 (trad. italiana: Il Regno di Dio e il destino di Gesù. La morte di Gesù alla luce del suo annunzio del Regno, Jaca Book, Milano 1996).

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paixão (Mc 8,31.9,31.10,33) admitem a possibilidade de ser precisadas desde o acontecimento já

cumprido, textos como a parábola dos vinhateiros homicidas (Mt 21,33-46) ou a pergunta a dois

discípulos sobre se podem beber eles o «cálice que Eu hei de beber» e ser baptizados com «o

baptismo com que hei de ser baptizado» (Mc 10,39; Mt 20,23) garantem suficientemente as

exigências criticas de historicidade60. O mesmo indica o comportamento de Jesus que sobe

determinado a Jerusalém ao encontro do seu destino, e não se detêm, ainda que conhece a sorte dos

profetas e tendo seguido de perto o doloroso final de João Baptista61. Alem do mais, Jesus desde

muito cede que se tinha encontrado com a oposição de alguns fariseus e das classes dirigentes, tanto

em Galileia como posteriormente em Jerusalém, e era consciente da determinação com que alguns

se opunham à sua doutrina, até buscar a sua morte62. Todos estes dados não mostram só uma

presciência mas também uma disponibilidade a padecer, que deixou numerosas alusões nos

evangelhos, incluindo o de São João. Quando o quarto evangelista relata o arresto de Jesus e a

oposição dos seus discípulos à sua prisão, põe em boca de Jesus a seguinte afirmação: «Deixarei eu

de beber o cálice que o Pai me deu?» (Jn 18,11).

É igualmente razoável pensar que se Jesus pode prever a sua morte lhe atribuísse um

significado concorde com a missão que o Pai lhe tinha encomendado. Nesta linha, J. Jeremias,

depois de estudar os textos que verosimilmente recolhem mais à letra afirmações de Jesus (as

palavras de Cristo ao instituir a Eucaristia63, os logia do resgate64, da espada65 e de Elias66, a

expressão “será entregue”67, e os temas da agressão ao pastor68 e da intercessão dos pecadores69),

conclui: «a paixão explica-se em geral como acção viçaria em favor da multidão»70, é dizer, tendo

                                                                                                               60 Noutra ocasião Jesus convida os discípulos a seguir-lhe até ao final sem temer aos que “matam o corpo” (Lc

12,4 ss; 14.27).

61 Cfr. C. PORRO, Sviluppi recenti della teologia della croce, «La Scuola Cattolica» 105 (1977) 383.

62 Cfr. Mc 3,16; 11,18; Lc 13,31.

63 Cfr. 1Cor 11,23-33; Lc 22,15-20; Mc 14,22-25; Mt 26,26-28.

64 Cfr. Mc 10,45; Mt 20,28.

65 Cfr. Lc 22,35-38.

66 Cfr. Mc 9,12 ss.

67 Cfr. Mc 9,31 par; 14,41 par; Lc 24,7.

68 Cfr. Mc 14,27b.

69 Cfr. Lc 23,34a. Segundo Jeremias os textos de Lc 22,16-18 par e Mc 14,25 devem-se entender à luz do jejum praticado na Igreja de Palestina para apressar a vinda do Messias.

70 Teologia del Nuevo Testamento, 342.

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como horizonte interpretativo o quarto poema do Servo de Yahweh (Is 52,13-53,12)71. De entre

estes textos os dois mais importantes são provavelmente o logion do resgate e as palavras sobre o

cálice na Última Ceia, tanto pelo significado como pelas garantias de autenticidade que oferecem.

O logion do resgate coroa alguns ensinamentos de Jesus sobre a necessidade de servir. A sua

formulação é a mesma de Mateus e Marcos: «o Filho do Homem não veio para ser servido, mas

para servir e dar a sua vida como resgate por muitos» (Mt 20,28; Mc 10,45). Este último evangelho

—que seguirei aqui— constitui um texto chave, pois com ele termina a secção central do

evangelho, que prepara a paixão de Jesus72. A favor da historicidade destas palavras estão o seu

marcado carácter semítico73, a sua presença tanto nos sinópticos como em São Paulo (atestação

múltipla)74, e a sua colocação ao fim de uma cena embaraçosa para os discípulos: Jesus repreende-

os depois da discussão entre eles sobre quem deve ser o maior no Reino. Neste contexto, Jesus diz a

sua condição de servidor, que deve ser normativa para o discípulo. Alguns autores, ao notarem que

a segunda parte do logion (10,45b: «e dar a sua vida em resgate por muitos») está ausente na

recensão de Lucas do altercado entre os discípulos75, consideram-na uma glosa do evangelista. No

entanto, há motivos para pensar que também esta segunda parte transmite palavras de Jesus ou, pelo

menos, que a ideia nela recolhida tem a sua origem em Jesus76. Por um lado está mais unida com a

primeira parte do que à primeira vista parece, e dá, inclusivamente, a impressão de ser requerida77;

                                                                                                               71 Não obstante, não todos estão de acordo sobre uma possível identificação de Jesus com a figura do Servo

sofredor. Status quaestionis parciais sobre as posições dos exegetas a respeito podem-se encontrar em W.M. BECKER, The Historical Jesus in the Face of His Death. Internal, Historical, and Systematic Perspectives, Pontificia Universitas Gregoriana, Roma 1994, 105-160 (esp. en pp. 98 y 99 las notas 58 y 59); S. MCKNIGHT, Jesus and His Death: Some Recent Scholarship, «Currents in Research: Biblical Studies» 9 (2001) 185-228. Indicamos também, ainda que não o tenhamos podido consultar, W.H. BELLINGER, Jr., W.R. FARMER (eds.), Jesus and the Suffering Servant. Isaiah 53 and Christian Origins, Trinity Press International, Harrisburg (PA) 1998.

72 S. PAGE, Ramson Saying, en Dictionary of Jesus and the Gospels, 660. «Este dito é um dos mais importantes do Evangelho», afirma V. Taylor (The Gospel According to Saint Mark, McMillan, London 1963, 444).

73 As expressões: “Filho do Homem”, “dar a sua vida”, “por muitos” são boa prova. Cfr. W.J. MOULDER, The Old Testament Background and the Interpretation of Mark X, 45, New Testament Studies, 24 (1978), 120. O estilo semita aprecia-se também se se compara com a forma Paulina muito mais helenizada de 1 Tim 2,5-6: «Pois há um só mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus, que se deu em resgate por todos».

74 Mc 10,45; Mt 20,28; Lc 22, 27; 1 Tim 2,5-6.

75 Lc 22,24ss só menciona o tema do serviço de Cristo, mas não fala do “rescate”. Provavelmente elabora o dato tradicional num modo independente de Marcos. (Cfr. JEREMIAS, Teologia del Nuevo Testamento, 335-336).

76 Ainda que o evangelista tenha podido uni-las autonomamente no seu trabalho de editing para transmitir melhor a ideia.

77 O livro de Daniel (Dn 7,13-14) apresenta a figura do Filho do Homem, personagem celeste que recebe do “Ancião” (Deus) império, honra e gloria, e ao que todos os povos servem para sempre. Evoca-se a promessa que Deus fez a David: «o seu império é um império eterno, que nunca passará, e o seu reino jamais será destruído». Não obstante, no logion de Mc a perspectiva muda: o Filho do Homem não é o servido, mas o servidor. Mais ainda, veio para prestar

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além do mais, encontra fortes ressonâncias em Isaías78, o profeta que mais aparece em boca de

Jesus; por último, é frequente encontrar palavras de Cristo de indubitável autenticidade que tem um

estilo literário e se situam em horizontes de pensamento semelhantes79. Daqui segue-se que, desde

um ponto de vista rigorosamente histórico, è provável que Jesus tenha feito alusão ao resgate dos

pecadores como motivo da sua morte.

Com maior claridade emerge este sentido no relato da Última Ceia. Não deveria haver dúvida

alguma sobre a historicidade do narrado, ainda que as quatro versões difiram levemente80. São

detalhes acidentais que explicam ou precisam para cada leitor-tipo o significado comum aos textos.

Por outra lado a prática eucarística da primitiva Igreja está solidamente testada desde o inicio, como

mostram os dados provenientes do epistolário Paulino e a memoria dos primeiros passos da Igreja81.

Por este, e vários outro motivos, há que atribuir a Jesus o gestos eucarísticos e o seu sentido82. Este

                                                                                                               este serviço (V. Taylor: «Kaì gar é um dos dois, etenim, ou o ainda mais enfático nam etiam»; deve-se traduzir: «pois certamente o Filho do Homem nao veio…» The Gospel According, 444). Existe aqui uma proximidade com a teologia do hino de Fil 2 que não passou inadvertida (Cfr. MOULDER, The Old Testament, 122). A magnitude da paradoxa exige maior explicação: Porque que é que tão grandioso personagem há de rebaixar-se a servir ? A segunda parte do logion dá a resposta: já que ele pode verdadeiramente resgatar a multidão.

78 São numerosos os exegetas que vem pontos de contacto com a teologia de Isaías do Servo de Yahweh, especialmente com Is 53,10-12. Não se trata só da terminologia: «mais alem das semelhanças linguísticas, a noção de dar voluntariamente a vida é central em Is 53» (FRANCE, The Gospel of Mark, 420), ainda que, como dissemos, a questão foi objecto de intenso debate. Em contrapartida não se valorou suficientemente a radicação do logion na teologia de Is 43,3-4, salvo em P. Stuhlmacher (Vicariously Giving His Life for Many, Mark 10, 45 (Mt 20, 28), in IDEM, Reconciliation, Law and Righteousness: Essays in Biblical Theology, Philadelphia, Fortress Press 1986, 16-29) e W. Grimm. Em Is 43,3-4 afirma-se que, por amor, Deus dá homens e nações em troca da vida de Israel: «Porei a humanidade no teu lugar, e os povos empago pela tua vida» (v. 4). Da mesma opinião é M. HENGEL, Crocifissione, 181.

79 Em vários textos (por exemplo nas parábolas da ovelha perdida e do filho pródigo) Jesus considera o pecado como “perdição”. Em Lc 19,10 esta perdição explica a missão de Jesus: «o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido». Noutros contextos põe-se em relação com um preço, como em Mt 16,26: «que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?». O texto deixa entrever a presença do tema veterotestamentário do resgate: o pecador não pode resgatar a sua vida: «Mas o homem não pode comprar o seu resgate, nem pagar a Deus os eu preço», diz o Salmo 49,8 (fonte para Mt 16,26). «Mas Deus resgatará a minha vida das garras do Seol, e me tomará» afirma em seguida o salmista (Sl 49,16). Em compartida, o que o homem pode fazer é dedicar a sua vida à causa de Jesus: «Pois aquele que queira salvar a sua vida, a perderá, mas o que perder a sua vida por causa de mim, a encontrará» (Mt 16,25). Tanto a linguagem como as ideias de estes textos contextualizam o nosso logion: Jesus pode considerar-se a si mesmo “meio” da acção de Deus para resgatar aos pecadores, dando a sua vida por eles.

80 Cfr. 1Cor 11,23-33; Lc 22,15-20; Mc 14,22-25; Mt 26,26-28. Cfr. P. BENOIT, Les Récits de l’institution de l’Eucharistie et leur portée, en IDEM, Exègése et théologie, t. I, Paris 1961; H. SCHÜRMANN, Le récit de la dernière Cène, Luc 22, 7-38, Éditions Xavier Mappus, Le Puy 1966.

81 Cfr. A. GARCÍA-IBÁÑEZ, La eucaristía, don y misterio. Tratado histórico-teológico sobre el misterio eucarístico, EUNSA, Pamplona 2009, que conclui (p. 51): «A cronologia dos relatos mostra que, entre a morte de Cristo e a data da aparição desta tradição litúrgica, não transcorreu um notável lapso de tempo».

82 Paulo, por exemplo, está convencido de ter recebido o que transmite sobre a Ceia, de uma tradição que se remonta ao Senhor (cfr. 1 Cor 11,23). A importância que os relatos atribuem aos dois gestos sobre o pão e sobre o vinho, e o facto de que tendem a desligar-se do contexto da ceia pascal, só é possível se se trata de uma recordação do que Jesus fez. Está presente o estilo de Jesus no ámen que precede a afirmação (Mc 14,25), no passivo divino que usa Lc 22,22, etc. Cfr. J. JEREMIAS, La Última Cena. Palabras de Jesús, Cristiandad, Madrid 1980, 220-221.

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último já está implícito na palavra essencial sobre o corpo: «Enquanto comiam, ele tomou um pão,

abençoou, partiu-o e deu-lhes, dizendo: “Tomai, isto é o meu corpo”» (Mc 14,22). A fracção do pão

e a sua distribuição aos presentes contêm a ideia que esse Corpo que Jesus lhes entrega vai

padecer/morrer por eles. O gesto seguinte é ainda mais explícito: «Depois, tomou um cálice, rendeu

graças, deu-lhes, e todos dele beberam» (v. 23). Participam todos desse único cálice, cujo sentido se

explica imediatamente: «E disse-lhes: “Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado

em favor de muitos”». A fórmula, sóbria, mas densa de conteúdo, evoca presumivelmente três

referencias: a aliança nova83, o sacrifício do servo84 y a libertação pascal85. De tudo isto se

beneficiam os discípulos que participam do cálice.

À luz destes textos, Jesus deu a entender que a sua morte era necessária para instaurar o Reino.

Através dela se realizava a definitiva reconciliação de Deus com o seu povo e se estipulava uma

nova aliança com valor e significado universal. Isto levantou uma questão de compatibilidade com

o seu ministério precedente, pois também neste estava implicada a salvação. É dizer, se Jesus

predica que a salvação ou a perdição se decidem na posição que se adopte ante Ele e a sua

mensagem, se é chave a aceitação de Jesus, então não parece sê-lo a sua morte86. Desde outro ponto

de vista, se Jesus esperou que a sua predicação de conversão pudesse ter êxito e ser favoravelmente

acolhida, então a sua morte não deveu ter inicialmente nenhuma função.

Em realidade não é necessário opor as duas coisas (ministério e morte), nem é imprescindível

conjugá-las em sentido puramente histórico (primeiro Jesus pensava numa instauração do Reino por

meio da sua missão, mas, perante o fracasso desta, persuadiu-se de que a sua morte era o único

modo). É preciso notar com Schürmann que a Basileia que Jesus predica está marcada pelo seu

conhecimento íntimo do Pai, e pela sua convicção de que o Pai o envia para a salvação dos

                                                                                                               83 O sangue derramado evoca as palavras de Moisés (Ex 24,8) na cerimonia original da aliança sinaítica, que

seguiu à Pascoa e à saída do Egipto, e concluiu o processo de formação do povo de Deus: «Moisés tomou do sangue e aspergiu sobre o povo, e disse: “Este é o sangue da Aliança que Yahweh fez convosco, segundos todas estas palavras”». Como a primeira aliança foi selada com um sacrifício e Moisés aspergiu o povo com o sangue da vítima, de modo análogo a nova aliança inaugura-se com um sacrifício do qual participa o povo novo. Evocam-se necessariamente as profecias de Jr 31,31-34 e o texto de Za 9,11 que se referem à nova aliança que Deus haveria de estipular. Cfr. FRANCE, The Gospel of Mark, 570

84 O linguagem sacrificial seguido do “por muitos” evoca também aqui os “muitos” da tradução dos LXX do quarto poema do Servo de Yahvé, em Is 53,11-12, como já ocorria com o logion do resgate. Cfr. ibidem, 570-571.

85 O contexto pascal está presente, sem duvida, na palavras de Jesus. O sangue do cordeiro pascal marcou as casas dos judeus e o sacrifício do cordeiro formou parte do plano libertador de Deus. Cfr. ibidem, 571.

86 «Como compaginar (com a predicação sobre o Reino) a convicção de que Deus realiza a salvação dos homens só pela morte de Jesus?, não se desvaloriza assim a posteriori toda a actividade anterior de Jesus, rebaixando-a a mero antecedente?» KASPER, Jesús el Cristo, 204-205. Cfr. también SCHÜRMANN, Regno di Dio, 20.

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pecadores87. Com Wright, que Jesus entendeu em todo o momento as suas palavras e acções como

actuação, pela sua parte, daquilo que Deus tinha prometido cumprir em favor de Israel e da

humanidade inteira88. Desde estas perspectivas o verdadeiramente fundamental é o projecto, o que o

Pai determina em ordem a instaurar o Reino, o que indicam as Escrituras e o que Ele conhece na

sua intimidade filial: a isto atendeu Cristo. Que as reacções pudessem ser opostas, inclusivamente

com radicalidade, não pôde ser uma surpresa para Jesus, nem algo que descobriu enquanto fazia o

caminho. Não fazia essa oposição parte da historia de Israel, não só passada, mas também presente?

Desde o principio deveu-se-lhe projectar que esse projecto apontava para o sacrifício da sua vida89.

Se alguns detalhes desse destino puderam perfilar-se progressivamente, a realidade da plena e filial

disposição da sua vida90 teve que animar desde o principio a sua predicação da basileia91. No que

respeita ao resto, ficou sempre na vida de Jesus um espaço de liberdade para o Pai, por cima de

qualquer certeza sua, como mostram as palavras da sua oração no horto: Jesus entende que ante a

hora da sua morte que se aproxima inexoravelmente, é sempre possível uma disposição do Pai

diversa92.

c. O Ressuscitado e a salvação

«A salvação não é só algo obtido por Jesus, é também algo que se realizou n’Ele»93. Esta frase

do Padre Durrwell —um dos autores que contribuíram a renovar a teologia da ressurreição94—

                                                                                                               87 Cfr. SCHÜRMANN, Regno di Dio, 45-46.

88 Cfr. WRIGHT, Jesus and the victory, 653.

89 Notemos com Schürmann que tanto o celibato de Jesus (que contava já com mais de trinta anos) como a sua doutrina sobre o Pai, o Reino, etc. (que não puderam formar-se durante o breve intervale da sua vida pública) são signo de que, antes de começar a sua missão, Jesus já tinha madurado o fundamental sobre ela. Cfr. Regno di Dio, 36-37.

90 O seu estar plenamente destinado a realizar a misericórdia de Deus, ainda que esta seguisse uma via impraticável.

91 São João evidencia o carácter nativo e divino do conhecimento de Cristo, que se dá em harmonia com o modo normal do conhecer humano histórico. «O notável da apresentação que faz São João do conhecimento de Cristo é que (...) por um lado, Cristo possui o conhecimento divino do Verbo, fala do Pai como uma testemunha ocular, e não se lhe oculta nada de ora da salvação; mas por outro o quarto evangelho mostra também o conhecimento ordinário do homem Jesus, que penetra, por simpatia e intuição, na intimidade do coração do homem, o que, simplesmente, se informa dos acontecimentos como qualquer outro homem». I. DE LA POTTERIE, Studi di cristologia giovannea, Marietti, Genova 1986, 309. Em todo o caso, este evangelho sublinha, ainda mais que os sinópticos, a completa previsão que Jesus teve da sua “hora”, e que lhe permitiu uma entrega libérrima. Cfr. ibidem 308-309.

92 «Pai, se queres, afasta de mim este cálice» Lc 22,42.

93 F.-X. DURRWELL, La Pâque du Christ selon l'Écriture, in AA. VV., La Pâque du Christ, Mystère du salut, Du Cerf, Paris 1982, 11.

94 Sobretudo com a sua obra La Résurrection de Jésus, Le Puy 1950, reelaborada pelo autor em diversas ocasiões e rescrita a partir da 10ª edição francesa em 1976 [tradução espanhola desta 10ª edição francesa in La Resurrección de

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poderia sintetizar a perspectiva desde a qual a soteriologia recente afronta o mistério da ressurreição

de Jesus. Nos últimos séculos tinha prevalecido um enquadramento de corte apologético que

apresentava este mistério desde a perspectiva da credibilidade da fé cristã, mas que apenas deixava

espaço à consideração soteriológica. Esta penúria era também o fruto de uma polarização

soteriológica do mistério da cruz, que parecia dirigir a si mesma toda a relação com a salvação do

homem. Certamente que havia um desequilíbrio entre os dois acontecimentos salvadores, e colmá-

lo apresentava-se como uma tarefa necessária95. Efectivamente, no Novo Testamento, a ressurreição

de Cristo apresenta uma soteriologia muito rica: «é um acto de Deus, um acto de criação»96; é o

acesso a uma forma de existência corpórea transfigurada, incorruptível, gloriosa, plena,

pneumática97; é a abertura de uma fonte de presença e de vida nova para a Igreja e o cristão98; é

causa eficiente e configuradora da ressurreição universal do final dos tempos99. Estes elementos,

que conformam a dimensão soteriológica da ressurreição de Jesus, fundam-se, obviamente, no

realismo desta (ressuscitou verdadeiramente) e no seu carácter corpóreo. Mas ambos aspectos

tinham sido objecto de discussão.

A historicidade da ressurreição de Jesus continua a ser argumento de numerosos estudos. A

temática é uma “espada de dois gumes”, como em tempos de São Paulo, porque, em definitiva,

tertium non daretur: as tentativas de mediar entre as posições realistas (que afirmam a ressurreição

corporal) e as cépticas (que a negam ou a relegam à subjectividade do crente) acabam em puro

verbalismo. Existe um consenso bastante geral de que, depois da morte de Jesus, os discípulos se

                                                                                                               Jesús misterio de salvación, Herder, Barcelona 1979]. Neste processo de reelaboração o autor foi perdendo continuidade com a theologia recepta, e susteve algumas opiniões criticáveis, como por exemplo a simultaneidade entre a morte e a ressurreição de Cristo. J. Mimeault estudou profundamente a obra teológica de Durrwell, mostrando, juntamente com os méritos do religioso redentorista, os seus aspectos mais discutíveis (cfr. J. MIMEAULT, La sotériologie de François-Xavier Durrwell. Exposé et réflexions critiques, Pontificia Università Gregoriana, Roma 1997).

95 Mostra-o bem Durrwell, ao recordar uma experiencia dos seus estudos quando era seminarista: «o professor de dogmática —escreve—, o P. Dillenschneider era o melhor de todos. Tratava de superar uma larga tradição que privilegiava os aspectos morais e jurídicos no estudo da Redenção. Um dia de 1937, já no final da minha estadia no seminário, dedicou uma hora ao papel de Cristo (N. do R.: na redenção). Inspirando-se num articulo de São Tomás, mostrou que a ressurreição não é causa meritória, que tem por objecto recompensar a Cristo, que é para nós modelo da justificação e causa da futura ressurreição dos corpos. Depois dessa hora estava certo, sem saber porquê, que a ressurreição de Cristo era bastante mais que aquilo, que era algo verdadeiramente grandioso». La Pâque, 11.

96 B. RIGAUX, Dio l'ha risuscitato. Esegesi e teologia biblica, Edizioni paoline, Cinisello Balsamo 1976, 429.

97 Cfr. ibidem, 491-492.

98 «A ressurreição afecta o crente até às fibras mais íntimas do seu ser, porque mediante a fé o cristão entra na dimensão escatológica, definitiva e última da revelação divina, onde a salvação está determinada pela presença vivente e dinâmica de Cristo», Ibidem, 511.

99 Cfr. ibidem, 555 ss.

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beneficiaram de experiencias particulares, formuladas nos evangelhos como aparições do

Ressuscitado, que deram origem à sua proclamação do Evangelho. Ainda que alguns tenham

teorizado que basta uma genérica presença de Cristo no ânimo dos discípulos para explicar essas

experiencias, a posição de que se tratou de verdadeiras aparições fez valer a suas credenciais100, e é

actualmente sustentada pelos melhores especialistas101. Conta sobretudo o facto de que a

ressurreição de Jesus se predica desde o primeiro momento (como atesta a cronologia Paulina junto

com as suas cartas), e de que, com a linguagem de ressurreição, o mundo judeu do século I só

podia entender um regresso à vida na forma corporal (e que, por tanto, a predicação apostólica

requeria que a tumba de Cristo estivesse vazia). Também alguns aspectos dos relatos mostram com

claridade que se estão a recordar acontecimentos (o notável papel atribuído às mulheres, por

ejemplo), e algumas afirmações dos apóstolos Pedro e Paulo indicam que eles mesmos eram bem

conscientes de que o anuncio era difícil de aceitar, mas não podiam subtrair-se dele sem renegar de

Deus102, daí que estivessem dispostos a evangelizar inclusive a preço das suas vidas. Uma

percepção mais bem documentada de alguns destes aspectos, unido à ausência de alternativas

razoáveis, depõem a favor da historicidade substancial dos relatos103.

Não obstante, chegada a hora de conceptualizar o carácter corpóreo da ressurreição de Jesus

pode introduzir-se um certo cepticismo: «Muitos crentes na ressurreição entendem-na mais ou

menos como um fenómeno espiritual», escreve Gundry. E continua: «Alguns dizem que o relato da

tumba vazia não é histórico, e que o corpo morto de Jesus seguiu o processo normal dos cadáveres,                                                                                                                

100 Uma síntese das distintas posições sobre a ressurreição de Jesus encontram-se em G.R. HABERMAS, Mapping the Recent Trend towards the Bodily Resurrection Appearances of Jesus in Light of Other Prominent Critical Positions, in The Resurrection of Jesus. John Dominic Crossan and N.T. Wright in Dialogue, en R. STEWART, (ed), Fortress Press, Minneapolis 2006, pp. 78-92. Outros trabalhos úteis nesta linha: IDEM, Experiences of the Risen Jesus: The Foundational Historical Issue in the Early Proclamation of the Resurrection, «Dialog: A Journal of Theology» 45 (2006) 288-297; G. O'COLLINS, The Resurrection. The State of the Question, en S.T. DAVIS, D. KENDALL, G. O'COLLINS (eds.), The Resurrection. An Interdisciplinary Symposium on the Resurrection of Jesus, Oxford University Press, Oxford 1997, 5-28; J.A. SAYÉS, La resurrección de Jesús y la historia. Problemática actual, Facultad de Teología del Norte de España, Burgos 1983.

101 Como J.D.G. Dunn, N.T. Wright, W.L. Craig, R.H. Gundry, G.R. Habermas, M.J. Harris, T. Peters …

102 Paulo, por exemplo, afirma que se ele predicasse a ressurreição de Cristo e esta não tivesse sucedido, a sua predicação seria uma espécie de blasfema: «Acontece mesmo que somos falsas testemunhas de Deus, pois atestamos contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, quando de facto não ressuscitou, se é que os mortos não ressuscitam» 1 Cor 15,15. Respeito a Pedro cfr. Act 4,19b-20.

103 Desde este ponto de vista teve importância o volume de N.T. WRIGHT, La resurrección del Hijo de Dios. Los orígenes cristianos y la cuestión de Dios, Verbo Divino, Estella 2008 [original inglês, 2003]. Por outro lado, como afirma Pannenberg quando se refere às tentativas de explicar as aparições como experiencias psicológicas, «uma pessoa às vezes surpreende-se com a facilidade com que historiadores, que examinam as suas fontes com grandes doses de esteticismo, no entanto, acreditam nas suas próprias imaginações sem verificá-las com o mesmo rigor». W. PANNENBERG, Resurrection: the Ultimate Hope, in K. TANNER, C.A. HALL, Ancient and Postmodern Christianity. Paleo-orthodoxy in the 21th Century. Essays in honor of Thomas C. Oden, InterVarsity Press, Downers Grove 2002, 260.

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ainda que Jesus mesmo tenha gozado da ressurreição na forma de uma exaltação incorpórea ou uma

existência celestial. Outros, que concedem maior crédito à tumba vazia, dizem que estava vazia

porque o corpo de Jesus desapareceu [evaporated], por assim dizer, de modo que o Jesus

ressuscitado não é uma entidade física; ou que o seu cadáver se transformou num corpo vivente mas

essencialmente imaterial, que adopta características físicas só quando o requerem as suas

aparições»104.

Algumas destas posições trataram de fundar-se biblicamente na ideia de que a visão paulina da

ressurreição de Cristo aponta à imaterialidade, e é anterior à formação dos relatos evangélicos; estes

últimos, que sublinham mais os aspectos físicos, responderiam a uma fase sucessiva da tradição.

Faz-se referencia a um certo número de textos paulinos e, principalmente, à oposição entre “corpo

natural” e “corpo espiritual” (1 Cor 15,44). Mas ainda que logicamente São Paulo fala do

ressuscitado segundo a sua própria experiencia —e neste sentido há uma certa originalidade na sua

compreensão—, a sua visão não se opõem à dos evangelhos, mas ambas visões se reforçam

mutuamente. Ambos indicam com diversos matizes a continuidade e a novidade entre a existência

terrena e a gloriosa. Em particular, a expressão “corpo espiritual” (soma pneumatikon) de 1 Cor 15

está precedida por uma larga argumentação que põe bem de manifesto essa

continuidade/descontinuidade. Nesse contexto, o apóstolo fala de um corpo espiritual «não no

sentido de “imaterial” mas de sobrenatural (...), não porque esteja feito de “espírito”, mas porque é

um corpo adaptada à existência escatológica e posto debaixo do domínio do Espírito»105. Isto

mesmo se deduz também dos relatos evangélicos quando apresentam as aparições como

acontecimentos ao mesmo tempo misteriosos e humanos. Sublinha-se paradoxalmente a realidade

físico-corpórea do Ressuscitado106, mas não se oculta o facto de que a sua nova condição se subtraia

às leis físicas e históricas107. Não podia ser doutro modo: as suas aparições «não podiam obedecer à

lei das nossas constatações sensíveis, efectuadas no espaço e no tempo, sob pena de converter-se no

sinal do que não é; e os discípulos, que por não terem ainda ressuscitado, necessitam ainda dos seus                                                                                                                

104 Cfr. R.H. GUNDRY, The Essential Physicality of Jesus' Resurrection according to the New Testament, in J.B. GREEN, M. TURNER, Jesus of Nazareth: Lord and Christ. Essays on the Historical Jesus and New Testament Christology, W.B. Eerdmans, Grand Rapids (MI) 1994, 204-205.

105 G.D. FEE, The First Epistle to Corinthians, Eerdmans, Grand Rapids (Michigan) 1987, 786. «O corpo ressuscitado estará animado e vigorizado pelo Espírito como o corpo terreno (o soma psychikon) está animado e vigorizado pelo principio vital, o pela força, que no inicio da Criação, Deus introduziu no homem quando soprou sobre ele». B. WITHERINGTON III, Conflict and Community in Corinth. A Socio-Rhetorical Commentary on 1 and 2 Corinthians, Eerdmans, Grand Rapids (Michigan) 1987, 308.

106 Os discípulos comem com o Senhor, caminham com Ele, etc.

107 Jesus apresenta-se diante deles quando estão reunidos com as portas fechadas, não o reconhecem a não ser quando Ele o deseja, etc.

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sentidos para “ver” a Jesus, não podem servir-se deles mais que com a condição de que a

manifestação d’Ele tenha sentido para eles na trama da historia com Ele»108. As aparições devem

materializar, por tanto, o escatológico e final no presente histórico. Devia-se captar que «a pesar da

descontinuidade entre a actual realidade física corruptível e a incorruptível do mundo futuro, existe

uma continuidade subjacente entre a vida corpórea actual e a futura»109.

Esta continuidade/novidade situa a vida humana mais alem da morte com «o realismo de uma

“condição de existência” pessoal, espiritual e corpórea»110, na qual se faz visível a vida eterna que

Deus possui em plenitude. A nova corporeidade de Jesus é «o signo e a presença escatológica da

realidade trinitária de Deus na humanidade e no mundo»111: a salvação cumprida. Segundo a

Escritura essa salvação realiza-se em Cristo por e para nós. Daí que, do mesmo modo que o seu

corpo entregado abra a possibilidade universal de perdão, e seu corpo ressuscitado constitui a fonte

da vida nova112. O seu corpo entregado à morte transforma-se em corpo do qual flui a vida: eis aqui

o núcleo soteriológico da ressurreição de Jesus.

3. A conceitualização bíblica da obra salvadora de Cristo

Globalmente, a soteriologia do Novo Testamento pode ser considerada uma meditação sobre

Jesus e, mais precisamente, sobre o sentido salvador da sua vinda e historia. O marco dessa

meditação é a historia da salvação do povo de Israel, e as suas escrituras proporcionam o contexto e

os pressupostos para poder enquadrar a figura e a acção salvadora de Jesus. Estes pressupostos

poderiam resumir-se assim: em primeiro lugar o facto de que Deus è Salvador113, e é, no fundo, o

único verdadeira salvador114, ainda que às vezes possa servir-se de intermediários. Depois, que a

                                                                                                               108 B. SESBOÜE, Jesucristo, el único mediador. Ensayo sobre la redención y la salvación, II: El relato de la

salvación: propuesta de soteriología narrativa, Secretariado trinitario, Salamanca 1990, 208.

109 WRIGHT, Resurrección, 430.

110 BORDONI, Gesù di Nazaret, II, 569.

111 Ibidem, III, 591.

112 Cfr. Rm 4,25. Também, S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, III pars, q. 56.

113 Insistentemente nos Salmos: «Yahweh é a minha luz e a minha salvação, a quem hei de temer? Yahweh, o refugio da minha vida, quem me fará tremer?» (27,1). «Só em Deus está o descanso da minha alma, só dele vem a minha salvação» (62,2). Outras expressões são recorrentes em livros como o Deuteroisaías: «eu sou Yahweh teu Deus, o Santo de Israel, teu salvador» (43,3).

114 Que o homem esteja necessitado de salvação é, obviamente, um pressuposto relativo ao Deus Salvador. Na Escritura a necessidade de salvação é algo evidente. Surge «da experiência comum da fragilidade da vida, constantemente ameaçada por uma interminável sequencia de riscos —doença e dor, más colheitas, fome e inundações,

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sua salvação é gratuita e é fruto do seu amor fiel e misericordioso. Deus abençoa Abraão, fá-lo pai

de uma multidão porque quer, e porque quer lembra-se depois, uma e outra vez, da sua aliança com

Abraão, Isaac e Jacob115. Por último, que Deus é zeloso, é fiel e não cessa no seu empenho porque

ama verdadeiramente o seu povo116. Tudo isto se funda na memoria dos prodígios que Deus

realizou no passado, mas também na sua presença no meio do seu povo a traves do Templo, e na

garantia de que, mediante os sacrifícios, Israel pode considerar-se sempre povo santo, porque apesar

dos seus pecados e transgressões, Deus restaura uma e outra vez o seu pacto117. Esse pacto, alem do

mais, orienta-se a um futuro, no qual se espera que fique definitivamente para trás a reiterada

experiencia de fracassos e humilhações, de exílio e dominação estrangeira que pesa sobre o povo. O

pacto aponta a um tempo novo, no qual tudo mudará, e Deus justificará o seu povo, libertá-lo-á dos

seus inimigos e conceder-lhe-á uma prosperidade como nunca teve. Dera a época do Messias e da

restauração, quando Ele derramará o seu Espírito e encherá Israel de bem-estar e paz.

Precisamente, o cumprimento desse futuro é o primeiro dado ao que se acolhem os autores do

Novo Testamento. É o primeiro que diz São Pedro no discurso de Pentecostes: que a promessa se

realizou com a entronização messiânica do Ressuscitado e o envio do Espírito118. Isto, por um lado,

confirma todo o quadro precedente do Deus da Aliança119, mas ao mesmo tempo põe o problema de

que a promessa se realizou de um modo imprevisível, diferente do esperado, porque aparentemente

a historia continua a ser portadora de calamidades. Aqui jaz o tema central da soteriologia do Novo

Testamento, em explicar o facto, percebido na fé pascal, de que a vida e historia de Jesus culminada

na Páscoa, corresponde profundamente e desenvolve de um modo novo e impensável a imagem de

Deus salvador. Em explicar que essa vida realiza o cumprimento prometido da salvação que esse

mesmo Deus tinha empreendido com a eleição dos Pais e ainda antes120.

                                                                                                               exércitos inimigos e malfeitores, injustiça e opressão, erros humanos, usura e despeito, acidentes, envelhecimento, e muito mais—. O termo salvação recapitula em si a ajuda necessária, o resgate esperado, etc., em definitiva, a condição e a situação de alguém que sobreviveu a todos esses perigos e alcançou uma posição que está mais além deles: a posição daquele que foi salvo». J.D.G. DUNN, New Testament Theology. An Introduction, Abingdon Press, Nashville (TN) 2009, 71.

115 Cfr. Gn 12,1-3; Ex 2,24; 6,4-5.

116 «Dai graças a Yahweh, porque é bom, porque é eterno o seu amor!», diz o Salmo 117,1

117 Cfr. DUNN, New Testament, 78-79.

118 Cfr. Act 2,14ss.

119 Tanto que São Paulo pode dizer aos judeus de Roma: «por causa da esperança de Israel levo eu esta cadeia» (Act 28,20)

120 Cfr. J. WERBICK, Soteriologia, Queriniana, Brescia 1993, 162; M. SERENTHÀ, Gesù Cristo, 152.

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As promessas de Deus realizaram-se em Cristo. Os autores do Novo Testamento consideram

fundamentalmente «o que Deus realizou por nós na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, é

dizer a remoção de todos os obstáculos que se interpunham entre Deus e nós, e o oferecimento que

nos faz de participar na sua Vida»121. Mas esta correcta síntese talvez seja prematura, pois para

chegar a ela é preciso resolver antes as duas questões de fundo presentes: a de Mediador e a de

mediação, é dizer, a do papel de Cristo na salvação e a da linguagem adequada para expressar a sua

mediação salvadora.

a. Mediador da salvação

Que Jesus é mediador de salvação constitui uma afirmação capital do Novo Testamento. Com

Ele chega a salvação. No entanto, trazer as linhas de desenvolvimento desta mediação e do seu

significado no Novo Testamento é já uma tarefa mais complexa. Em cada modo de conceptualizar a

mediação de Cristo intervêm bastantes factores, relacionados com o tipo de escrito, o ambiente em

que surge, o grau de desenvolvimento da cristología, a maior ou menor expectativa de uma breve

volta de Jesus, etc. Hultgren, por exemplo, distingue quatro tipos principais de mediação aplicada a

Cristo no Novo Testamento122: nos dois primeiros, ainda que Cristo é o agente da redenção, actor

principal dessa redenção é Deus, enquanto que nos outros dois é mais bem ao contrario: o acento

recai mais bem sobre Cristo, a quem se vê como o protagonista do resgate da humanidade e da sua

reconciliação com Deus. Os quatro tipos seriam: a redenção cumprida em Cristo123; a redenção

confirmada através de Cristo124; a redenção ganhada por Cristo125; e a redenção mediada por

Cristo126. Em todo o caso, nestas flutuações é preciso centrar-se mais na dificuldade para expressar

de modo sistemático e completo algo tão amplio e rico como a mediação de Cristo, que numa

                                                                                                               121 COMISIÓN TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Cuestiones selectas sobre Dios Redentor (1994), [IDEM, Documentos

1969-1996, Madrid 1998, 499-500].

122 HULTGREN, Christ and His Benefits, 41-44.

123 Deus obra a reconciliação com o homem através do mistério pascal de Cristo. Esta visão atribui-se sobretudo às primeiras cartas de São Paulo e ao evangelho de Marcos.

124 A cruz e a ressurreição de Jesus viriam essencialmente a confirmar o propósito redentor de Deus manifestado nas suas promessas. Seria a visão do evangelho de Mateus e dos escritos de Lucas.

125 Sublinha-se a acção potente de Cristo para derrotar as potencias inimigas e estabelecer o seu reino celestial. A carta aos Hebreus, as epístolas pastorais e algumas das chamadas deutero-paulinas susteriam esta visão.

126 Cristo é a Palavra do pai, na qual nos vem dadas todas as coisas e particularmente a vide eterna. O corpus joanino, sobretudo, apresentaria esta visão.

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tentativa de decantar-se por uma ou outra delas127. Se, como afirma Grillmeier, «em nenhum escrito

do Novo Testamento existe uma sistematização da realidade salvífica»128, a causa é mais bem o

“excesso de realidade”: a obra de Cristo não pode ser afrontada mais que com muitas e plurais

perspectivas. Está clara a afirmação central de todas elas: «o amor de Deus, a justificação de Deus,

a riqueza e bênção de Deus são-lhe oferecidos ao homem (em Jesus Cristo) para que acolhendo-os

seja justo, rico, santo e pleno, com a riqueza, santidade, justiça e vida de Deus»129; mas à hora de

desglosar esta afirmação, um só linguagem resulta insuficiente130. Daí que se acumulem

“categorias”, com frequência metafóricas131, e se fale de: salvação, redenção e resgate, libertação,

justificação, entrega pelos pecados, perdão e purificação, reconciliação, vivificação, adopção filial,

expiação, sacrifício e propiciação, pacificação, mudança de reino e outros mais132. Sem esquecer

que quando as palavras terminam em -ção, com frequência, tem valor tanto de verbos como de

substantivos. Palavras como redenção, salvação, reconciliação, podem referir-se na escritura ao

processo de ser redimidos, salvados, reconciliados, ou ao resultado dessa acção (o estado de

redimido, salvado ou reconciliado), ou inclusive às duas coisas ao mesmo tempo133. O que dá a

ideia da amplitude à que nos referimos anteriormente.

                                                                                                               127 Desde este ponto de vista convence pouco o estudo de Hultgren, que aparece condicionado por alguns

pressupostos típicos da New Quest. Tende-se a sublinhar os aspectos redaccionais e a exagerar, em definitiva, a diferente fisionomia dos escritos, talvez com o propósito de estabelecer como normativo para a fé de hoje uma espécie de mínimo denominador comum do conteúdo dos distintos escritos. Cfr. Christ and His Benefits, 179. Com razão I.H. Marshall critica este aspecto (New Testament Theology. Many Witnesses, One Gospel, Inter-Varsity Press, Downers Grove (IL) 2004, 727-730).

128 A. GRILLMEIER, La afirmación bíblica sobre el efecto de la acción salvífica de Dios en Cristo, in J. FEINER, M. LÖHRER (eds.), Mysterium Salutis, III/2, Cristiandad, Madrid 1971, 380.

129 GONZÁLEZ DE CARDEDAL, La soteriología contemporánea, 262.

130 Como afirma G. D. Fee «ainda que as metáforas [as categorias soteriológicas bíblicas: N. do R.] dão realmente expressão a uma dimensão da realidade, nenhuma delas é adequada para abraçar completamente essa realidade», Paul and the Metaphors for Salvation: some Reflections on Pauline Soteriology, en S.T. DAVIS, D. KENDALL, G. O'COLLINS (eds.), The Redemption. An Interdisciplinary Symposium on Christ as Redeemer, Oxford University Press, Oxford 2004, 48.

131 Estas categorias teológicas são, segundo Sesboüe, modos de conceptualizar o acontecimento salvador relatado pelas fontes. «Os relatos —afirma o teólogo francês— actuam pelo que são, solicitam a nossa liberdade [...] No entanto, é importante assinalar mais especulativamente o seu alcance. A missão da categoria consiste em exercer uma regulação do discurso, assegurando a sua ordem e coerência. Mas a categoria ilumina na medida em que é engendrada pelo relato, no qual ela recebe o seu alento de vida e onde recapitula como contrapartida o que os relatos tentavam dizer». SESBOÜE, Jesucristo, el único mediador, II, 124.

132 GONZÁLEZ DE CARDEDAL, La soteriología contemporánea, 278.

133 G. O'COLLINS, Jesus Our Redimer. A Christian Approach to Salvation, Oxford University Press, New York 2004, 3.

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b. A mediação salvadora: justiça e sacrifício

De todas estas linguagens a mais central é a de salvação, ainda que talvez a de redenção seja a mais

usada teologicamente134. Esta última acentua mais o aspecto libertador da obra de Cristo respeito da

primeira. Por isso, talvez aponta mais para o passado do acontecimento salvador, para a

objectividade do que Cristo obrou, enquanto que a salvação se refere mais ao presente e ao futuro, e

evoca mais o aspecto subjectivo, ainda que sem rigidezes em nenhum caso. Outras linguagens como

sacrifício ou expiação são claramente mais restritivos, já que se referem ao meio de redenção ou

salvação135.

Nesta ordem da mediação duas questões parecer ter prioridade sobre as demais: a do

significado da “justiça de Deus” na sua obra salvadora e a da caracterização da mesma em termos

de “sacrifício, propiciação e expiação”.

a) Quando o Antigo Testamento se refere à justiça de Deus move-se dentro de um âmbito que

compreende tanto a norma jurídica como a relação pessoal136. No seu sentido mais imediato a

justiça é conformidade à norma, e por tanto é justo quem se amolda a ela. Como a Lei é a norma por

excelência em Israel, o justo é quem a cumpre, mais ainda quem dela vive. No entanto, não se

esgota aí o conceito veterotestamentário de justiça. É justo também aquele que cumpre as

obrigações que nascem de uma relação: o rei é justo quando cumpre os seus deveres para com os

súbditos e o juiz quando administra correctamente a justiça a ricos e a pobres. É, sobretudo, neste

âmbito da relação pessoal onde se encontra a expressão “justiça de Deus”137: Deus é justo porque

cumpre os seus compromissos como Deus de Israel, é dizer, porque garante o bem do povo elegido.

E é aqui donde o conceito manifesta um cariz soteriológico. Porque está claro que, sobre a base dos

seus compromissos adquiridos com Israel, é próprio da justiça de Deus refazer os que são seus, dar-

lhes abrigo e sustentá-los na sua comunhão com ele. Assim, por exemplo, o salmista reza «pela tua

lealdade, Senhor, responde-me: pela tua justiça» (143,1), que é tanto como dizer “pela tua

benevolência” ou “pela fidelidade às tuas promessas”. Desde esta perspectiva, a intervenção

                                                                                                               134 Os vocábulos «salvação e redenção podem funcionar frequentemente como equivalentes nos textos bíblicos,

litúrgicos e teológicos, mas o primeiro parece mais rico e amplio em significado, especialmente em contextos em que está implicado o propósito, carácter, e imagem de Deus (e do Filho de Deus)». Ibidem, 10.

135 Cfr. G. O'COLLINS, Redemption: Some Crucial Issues, en S.T. DAVIS, D. KENDALL, G. O'COLLINS (eds.), The Redemption, 5, nota 4.

136 Cfr. B. JOHNSON, Sādaq, en G.W. ANDERSON, et al. (eds.), Grande lessico dell'Antico Testamento, Paideia, Brescia 2007, cols. 516-539 (spec. 516-518).

137 Cfr. DUNN, New Testament, 77-78.

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salvadora e libertadora de Deus não desborda o âmbito da sua justiça, mas manifesta-a. A justiça de

Deus está portanto estreitamente relacionada com a sua fidelidade a si mesmo, com a sua

misericórdia e a estabilidade do seu amor.

No Novo Testamento a terminologia da “justiça de Deus” é fundamentalmente paulina138.

Quando São Paulo a usa não se refere ao justo juízo pelo qual Deus castiga o malvado, mas trata-se

—em linha com o Antigo Testamento— da sua justiça salvadora, é dizer da acção potente de Deus

que obra a salvação predeterminada por ele mesmo139. A expressão diz relação a Deus Pai, não a

Cristo; não obstante, essa justiça realiza e revela-se em Cristo, de modo que Cristo mesmo é a

justiça que Deus nos faz140. Ainda que seja bastante obvio, convém notar a direcção descendente

deste modo de ver: «não foi Cristo quem mudou um (N. do R.: presunto) juízo divino de condena

em outro de justificação. Mais bem, a morte de Cristo se qualifica como acto salvador proveniente

da justiça salvadora que o Deus único realizou com Israel desde o principio»141. Cristo, justiça de

Deus, revela e realiza definitivamente a fidelidade de Deus à sua criação e ao seu povo, e o faz

sobretudo através da sua morte e ressurreição142. Trata-se, em todo o caso, de uma justiça com

incidência antropológica, que não esquece o humano nem prescinde do homem. Em primeiro lugar

porque muda e transforma o homem. Independentemente de como se deva entender a ideia de

justificação pela fé143, está claro que na teologia Paulina não pode ser isolada nem da santificação

nem da glorificação, termos relativos ao obrar de Deus no justificado. Tampouco absorve em si

                                                                                                               138 Cfr. A. PITTA, Il vangelo paolino e la giustizia, en AA.VV., Giustizia e giustificazione nella Bibbia, Borla,

Roma 2001, 171-173.

139 Cfr. Rm 1,16, onde São Paulo fala do evangelho como «força de Deus para a salvação de todo aquele que crê», e seguidamente diz que o evangelho revela a justiça de Deus. O conceito de “justiça de Deus” em São Paulo pode-se abordar desde os seguintes títulos: J.D.G. DUNN, The Theology of Paul the Apostle, W.B. Eerdmans, Grand Rapids (MI); Cambridge 1998, 340-346; K.L. ONESTI, M.T. BRAUCH, Righteousness, Righteousness of God en G.F. HAWTHORNE, R.P. MARTIN, D.G. REID (eds.), en Dictionary of Paul and His Letters, Intervarsity Press, Leicester 1993, 827-837; K. KERTELGE, “Giustificazione” in Paolo. Studi sulla struttura e sul significato del concetto paolino di giustificazione, Paideia, Brescia 1991, 83-130; A. PITTA, Il vangelo paolino, 170-207; J.-N. ALETTI, Comment Dieu est-il juste? Clefs pour interpréter l'épître aux Romains, Seuil, Paris 1991.

140 Cfr. 1Cor 1,30.

141 DUNN, Theology of Paul, 718. Cfr. anche PITTA, Il vangelo paolino, 179-180.

142 DUNN, Theology of Paul, 724. Desta relação entre a justiça de Deus e a páscoa de Cristo diremos alguma coisa mais adiante; é um tema, que sendo difícil, é central na soteriologia paulina.

143 Cfr. N.T. WRIGHT, Redemption from the New Perspective? Towards a Multi-Layered Pauline Theology of the Cross, S.T. DAVIS, D. KENDALL, G. O'COLLINS (eds.), The Redemption, 93-95. É notório que na visão protestante tradicional a justificação tem um sabor declarativo (da ausência da condena, a não-imputaçao, etc.), enquanto a católica acentua mais o aspecto performativo (a acção de ser colmado pela justiça —graça— que vem de Deus).

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outras linguagens de grande calado, como a de novo ser “em Cristo Jesus”144 ou a da inhabitação do

Espírito no crente. Só na sua complementaridade estas expressões comunicam o significado Paulino

da salvação em Cristo145. Se o mesmo cristão chega a ser “justiça de Deus”146 é porque, no seu ser e

na sua vida, faz-se de algum modo presente o que Deus obrou em favor seu. Se o homem é «partner

do Deus da Aliança, dificilmente deixará de ser transformado por uma relação vital com o Deus que

dá a vida»147. Alem do mais, ainda que esse homem se apropria da justiça de Deus em virtude da fé

e não das obras, a sua justificação não prescinde dessas obras, já que se coloca no quadro do juízo

da parusia, é dizer, do dia da «revelação do justo julgamento de Deus, que retribuirá a cada um

segunda as suas obras» (Rm 2,5)148. As obras, iluminadas e realizadas desde a fé, também tem um

papel decisivo no processo da salvação.

b) À hora de explicar como a justiça salvadora de Deus se abre caminho na historia, o Novo

Testamento acode sobretudo à linguagem sacrificial149. Já vimos que esta linguagem tem a sua

origem em Jesus, pelo que não é estranho que, de um modo ou outro, encontre ressonância em

todos os escritos do Novo Testamento150. Não obstante não é simples determinar o preciso

significado do vocabulário sacrificial. Em geral, a morte-glorificação de Jesus leva o sistema                                                                                                                

144 «Ser “en Cristo” significa pertencer à nova criação: o velho passou, chegou o novo. Este ponto de vista radical da nova ordem —vida ressuscitada marcada pela cruz— está no núcleo de tudo o que Paulo pensa e faz», FEE, Paul and the Metaphors, en S.T. DAVIS, D. KENDALL, G. O'COLLINS, The Redemption, 47.

145 Falando de como São Paulo concebe a salvação cristã G.D. Fee diz: «o que isso possa significar para quem se une ao povo de Deus através da fé em Cristo, São Paulo expressa-o com uma cariedade de metáforas; nenhuma delas esgota a totalidade, ainda que cada uma é parte desse todo». Paul and the Metaphors en S.T. DAVIS, D. KENDALL, G. O'COLLINS, The Redemption, 67. E, em precedência: «Quase sempre, a metáfora que elege São Paulo está em função do aspecto da pecaminosidade humana que tem diante dos olhos. Os escravos do pecado (e da Lei) são “redimidos”; os enemigos de Deus são “reconciliados”; os transgressores da lei são “justificados”». Ibidem, 51.

146 Cfr. 2Cor 5,21.

147 DUNN, The Theology of Paul, 344.

148 Cfr. WRIGHT, Redemption from, S.T. DAVIS, D. KENDALL, G. O'COLLINS (eds.), The Redemption, 95. Aqui a teología paulina enlaça plenamente com as afirmaçoes dos evangelhos sobre o juizo final.

149 «O Novo Testamento fala da morte de Cristo sob diversas figuras, que incluem o destino dos profetas, a morte do mártir (Rm 5,6-8), a justificação do justo sofredor, o preço da redenção do escravo, o acto de reconciliação, a victoria sobre a hostis potencias do mal, e a conquista do poder da morte. Mas a imagem mais extensamente usada é a de sacrifício». DUNN, New Testament, 88.

150 Existe controversia sobre o releve e alcance desta linguagem sacrificial no Novo Testamento. Postbultmannianos como E. Käsemann o F. Hahn atribuíram-lhe escassa importância. Numa linha análoga, afirma I.U. Dalferth: «a linguagem sacrificial é só uma das dimensões e não a mais importante, na pluralidade de termos e símbolos que o Novo Testamento usa para expressar a experiencia da salvação». Christ Died for Us: Reflections on the Sacrificial Language of Salvation, en S.W. SYKES (dir.), Sacrifice and Redemption. Durham Essays in Theology, Cambridge University Press, Cambridge 1991, 309. No entanto, maioría dos exegetas constata que a imagem mais utilizada no Novo Testamento para representar o valor da morte de Cristo á a de sacrificio (Cfr. nota precedente). Como observa G. Paximadi: «São muitos os textos do Novo Testamento que atribuem valor sacrificial à morte de Cristo». I sacrifici nell'Antico Testamento e il sacrificio di Cristo, «Rivista Teologica di Lugano» 11,2 (2006) 313.

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sacrificial judeu à sua plenitude, mas como este compreende vários tipos de sacrifícios com

diferente finalidade e importância151, essa ideia geral acaba por dar lugar a uma pluralidade de

imagens com conteúdos diversos152. Não obstante, os pólos principais são dois: a páscoa judia, que

evoca as categorias de libertação-redenção e de aliança, e os sacrifícios expiatórios (em particular o

rito do Dia da Expiação), ou elementos relacionados com a expiação como o Propiciatório. De todas

estas imagens a mais importante, mas também a mais delicada, é a do sacrifício de expiação, ou do

sacrifício pelos nossos pecados, no qual me detenho agora brevemente.

No Antigo Testamento os sacrifícios pelo pecado tem por função dar um remédio às faltas de

Israel à hora de viver conforme à Lei, de modo que os pecados e transgressões não impeçam o

acesso a Deus, nem originem a ruptura do Pacto. Concretam-se sobretudo no sacrifício pelo pecado

(Lev 4-5) e no rito anual do Dia da Expiação (Lev 16). Para entender o seu modo de funcionar153 é

preciso situar-se na perspectiva do respeito pela santidade de Deus e da condição frágil, pecadora e

impura do povo e dos seus membros. Uma intromissão do homem na esfera divina é uma espécie de

violação da santidade de Deus, e leva a morte associada. Certamente o homem não pode contaminar

a Deus com a sua impureza, mas como Israel tem uma fé firme na presença do Senhor no meio do

seu povo, e especialmente no seu Templo, de facto são possíveis as profanações. Contaminar o

santuário com a impureza é um agravo à presença divina; expor o Santo à massa dos pecados é uma

instigação à sua justa ira154. Os ritos de expiação tem por função neutralizar este problema. A vítima

do sacrifício expiatório representa de algum modo a culpa do pecador. Ao impor a sua mão sobre o

animal, o oferente constitui-o em representante da sua pecaminosidade (ou do pecado do povo), do

                                                                                                               151 Uma explicação dos diversos tipos de sacrifício (com bibliografia) em G.A. ANDERSON, Sacrifice and

Sacrificial Offerings (OT), en A.B. BECK, D.N. FREEDMAN, G.A. HERION, The Anchor Bible Dictionary, V, Doubleday and Co., New York etc. 1992, 870-886. Também úteis, G. PAXIMADI, I sacrifici nell’Antico, 291-315, e a obra clássica de R. DE VAUX, Les sacrifices de l'Ancien Testament, J. Gabalda et C.ie, Paris 1964.

152 G. Paximandi faz notar que o NT relaciona com a morte de Cristo, tanto formas levíticas de sacrifício (o holocausto, o sacrifício de comunhão, o sacrifício pelo pecado, etc...) como outras não levíticas (o sacrifício da Aliança, o sacrifício de Isaac, etc.). I sacrifici nell’Antico, 313.

153 Discute-se sobre o sentido de estes ritos: se não só de purificação (do altar e do Santuário) o se se oferecem para perdoar os pecados individuais e do povo. Com Bell pensamos que esta segunda interpretação, compartida por alguns exegetas de Tubinga, conta com melhores motivos a seu favor. Além disso, está expressamente indicada nos textos do Levítico, que mencionam o pecado e o perdão (por exemplo: Lv 4,10.26.31.35). Uma discussão das duas posições em R.H. BELL, Sacrifice and Christology in Paul, «Journal of Theological Studies» 53 (2002) 1-5, y en G.A. ANDERSON, Sacrifice and Sacrificial, 879-880. La obra de S. LYONNET, L. SABOURIN, Sin, Redemption, and Sacrifice. A Biblical and Patristic Study, Biblical Institute Press, Rome 1970, resume os estudos de autores como A. Feuillet, L. Moraldi e outros que se orientam a conceber a expiação em termos de “purificação”. Um sintético status quaestionis del tema em G. MOIOLI, Cristologia. Proposta sistematica, Glossa, Milano 1989, 154-158.

154 É neste contexto onde encontra a sua melhor colocação o tema da ira de Deus: é a ira de quem resulta obstaculizado na sua acção e vontade de salvação a causa dos pecados e desvarios; a ira de quem não pode habitar em meio dos seus porque se encheram de imundice.

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seu “eu pecador” (ou das culpas de Israel). No animal oferece-se a Deus a própria vida e reconhece-

se a própria indignidade. A imolação da vítima, no entanto, é só um prolegómeno, o caminho para

obter o sangue, que é o elemento principal da expiação155. A expiação reside no sangue156. O sangue

é portador de vida, pertence à esfera divina, e por isso é capaz de dissipar a imundice do pecado e

fazer possível o contacto com Deus157. Nesse sentido, aplaca ou aquieta a sua ira pelos pecados e

inadvertências. Por meio do sangue, o oferente incorpora-se ao âmbito da sacralidade divina,

habilita-se de novo para a relação e a comunhão com Deus. Bem entendido que, em tudo isto, a

acção do homem é secundaria: a expiação é um dom de Deus, que, através da vida presente no

sangue, dá ao homem uma via de purificação e um modo de reabilitar a sua condição de aliado, de

forma que Deus possa manter o seu pacto, purificando, indultando e restituindo o povo na

comunhão.

Alguns textos do Novo Testamento evocam de um modo ou outro este conjunto de ideias158.

São bem conhecidos os capítulos da carta aos Hebreus que se referem às cerimonias do Dia da

Expiação, e vêem estes ritos como uma prefiguração do que devia cumprir-se em Cristo uma vez

para sempre159. Também a primeira carta de São João fala de Jesus constituído em «propiciação

pelos nosso pecados» (1 Jn 4,10), e nisto vê a manifestação do amor de Deus. Quanto a São Paulo,

diz que Deus exibiu a Cristo «como instrumento de propiciação (hilastērion), pelo seu próprio

sangue» (Rm 3,25)160. O Apóstolo continua também o uso tipicamente hebreu de pôr em Deus o

sujeito da expiação161, e de ver, por tanto, o objectivo do acto de expiação na remoção do pecado, já

                                                                                                               155 H. GESE, L'espiazione, in IDEM, Sulla teologia biblica, Paideia, Brescia 1989, 118. O decisivo do culto

expiatório «não é o simples facto de imolar, nem o aniquilamento, mas o oferecimento da vida àquilo que é sagrado e, ao mesmo tempo, uma incorporação nessa sacralidade por meio do contacto do sangue» Ibidem, 119. Cfr. también J. WERBICK, Soteriologia, 293-297.

156 «Porque a vida da carne está no sangue. E este sangue eu vo-lo tenho dado para fazer o rito de expiação sobre o altar, pelas vossas vidas» (Lv 17,11).

157 Segundo a carta aos Hebreus, Cristo penetrou com o seu próprio sangue no verdadeira santuário. Apresentou-se diante de Deus com o seu sangue, capaz de purificar das obras mortas. Cfr. Heb 9,11-14.

158 Ainda que, como notámos, a doutrina do Novo Testamento sobre a eficácia salvífica da Páscoa não se limita a categorias sacrificiais, senão que é mais amplia. E, quando se usa o vocabulário sacrificial, tampouco se limita ao tema da expiação. Em Ef 5,2, por exemplo, São Paulo usa uma imagem ligada ao holocausto (no qual a vítima se queimava) e diz que Cristo «se entregou por nós como oblação de suave aroma».

159 Sobre tudo em Heb 8,1-10,31. Sobre o contexto e a estrutura de estes capítulos cfr. A. VANHOYE, La Lettre aux hebreux. Jesus-Christ, mediateur d'une nouvelle alliance, Desclee, Paris 2002, 109-113.

160 Hilastērion refere-se ao Propiciatório, que era o lugar onde, no Dia da Expiação, se derramava o sangue para expiar pelo santuário y por toda a assembleia de Israel (cfr. Lev 16,16-17).

161 À diferença do que acontece no mundo grego onde a divindade é objecto da expiação e pode ser “propiciada” ou “aplacada”.

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seja da pessoa ou do lugar sagrado (contaminação)162. São Paulo leva mais alem a teologia do

sacrifício de Cristo através do tema, propriamente seu, da “condena do pecado”. «Deus, —diz em

Rm 8,3— enviando o seu próprio Filho em carne semelhante à do pecado e em vista do pecado,

condenou o pecado na carne»: é dizer, que Cristo tomou a carne sofredora para poder cancelar nela

o pecado. O apóstolo alude implicitamente ao sacrifício expiatório, no qual a vítima representava de

algum modo a consciência do pecador e a imolação sacrificial removia o pecado163; de modo

análogo, Cristo representa-nos ante o pecado, remove-o com a sua morte, e por isso nós alcançamos

a justiça164. A mesma ideia manifesta-se na passagem de 2 Cor 5,21: «Aquele que não conhecera o

pecado, Deus fê-lo pecado por causa de nós, a fim de que, nele, nos tornemos justiça de Deus».

Aqui a referencia à inocência de Cristo (“não conhecer o pecado”) alude à insistência cultual na

qual a vítima do sacrifício fosse limpa e sem mancha, e pudesse ser apta para expressar o desejo de

libertação do pecado. Subjaze nesta apresentação o tema de Cristo novo Adão165, que vem a

introduzir a graça no mundo, em analogia com a introdução adâmica do pecado no mundo. Para o

efeito tomou a carne de pecado, e para o efeito foi feito pecado, é dizer, Deus fez pesar sobre Ele o

“eu pecador” da humanidade para que, através do seu sangue, nós pudéssemos chegar a ser “justiça

de Deus”.

Nestas breves frases, São Paulo não nos dá m explicação completa (não se refere ao motivo

último da via elegida por Deus) mas deixa entrever com claridade o seu pensamento. Este não pode

ser fechado nem num esquema “representativo” nem num esquema “substitutivo”, porque a ideia de

São Paulo é mais bem a do intercambio166 ou a da capitalidade: formamos uma só coisa com Cristo

                                                                                                               162 Cfr. DUNN, Theology of Paul, 214.

163 A consideração dos textos que estamos a citar desde uma óptica sacrificial foi a posição mais frequente na tradição exegética. Santo Agostinho, por exemplo, respeito a 2 Cor 5,21 afirmava: «Deus fecit Christum “peccatum”, id est sacrificium pro peccato (vel pro peccatis)» Carta 140, 73: Obras de S. Agustín (edición bilingüe), t. IXa: Cartas 124-187, BAC, Madrid 1986, 222. J.-N. Aletti descarta esta opinião e prefere entender a expressão “fê-lo pecado” como uma metonímia (do efeito pela causa). Haveria que traduzir: «identificou-o com os efeitos do pecado» (God Made Christ to Be Sin (2Corinthians 5, 21): Reflexions on a Pauline Paradox, en S.T. DAVIS, D. KENDALL, G. O'COLLINS (eds.), The Redemption, 118. No entanto, talvez não devam opor-se as duas posições. Como mostramos, no sacrifício de expiação dá-se uma certa identificação da vítima com os efeitos mortais do pecado.

164 De facto, o texto continua a mencionar a justiça em relação com os beneficiários da morte de Cristo: «a fim de que a justiça da lei se cumpra em nós...» (Rm 8,4).

165 Desenvolvido especialmente em Rm 5 e em 2Cor 5,14: «Pois a caridade de Cristo nos compele, quando consideramos que um só morreu por todos e que, opr conseguinte, todos morreram».

166 «O ensinamento de Paulo não è que Cristo morreu “em lugar de outros” de modo que eles não passaram pela morte (como a lógica da “substituição” requer). Mais bem que Cristo, compartindo a morte deles, os faz capazes de compartir a sua própria morte» DUNN, Theology of Paul, 223.

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no plano de Deus167, e por isso, Ele tomou sobre si a nossa morte para que nós pudéssemos alcançar

a justiça, como claramente indica na carta aos Romanos: «sabendo que o nosso homem velho foi

crucificado com ele para que fosse destruído este corpo de pecado, e assim não sirvamos mais ao

pecado. Com efeito, quem morreu, ficou livre do pecado. (...) Assim também vós considerai-vos

mortos para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus» (Rm 6,6-11). São Paulo parece pensar

desta maneira: Deus Pai impôs a sua mão sobre Cristo, é dizer, constitui-o em vítima de expiação ao

entregá-lo aos pecadores, os quais deram começo à lógica de pecado, que é lógica de morte. Neste

sentido, Deus fê-lo “pecado por nós”, como se fazia com a vítima do sacrifício com o fim de

eliminar o pecado. Não é possível aceder a Deus permanecendo na condição de pecado, vivendo

baixo o domínio da “carne”. Mas em Cristo não está só a materialidade do nosso “corpo de

pecado”, mas também a sua fidelidade e a sua obediência, que são o meio do qual Deus se serviu

para eliminar o pecado. O sangue (entrega) de Cristo suprime o domínio do pecado168 e derrama

sobre o mundo a vida nova do Espírito. Pela fé e o baptismo, o cristão morre também ao pecado e

obtêm um acesso pleno a Deus, o ser nova criatura em Cristo e possuir a primícia da ressurreição

futura.

II. Os principais conteúdos

Nesta segunda secção falaremos dos conteúdos da teologia da redenção. A nossa atenção focar-

se-á nos temas e nos debates que concentraram o interesse dos teólogos. Que aspectos emergiram

no discurso soteriológico dos últimos decénios? Que aspectos têm interesse para a “disciplina”

soteriológica? Recordemos o que assinalávamos no inicio: existe uma certa “dispersão” da

soteriologia contemporânea: falta de unidade nas propostas e nos modos de ver. Mas há também

elementos de unificação (a tendência a considerar os aspectos desde a perspectiva do plano de

Deus, a assunção de uma ideia de Revelação com forte ressonância soteriológica169, a adopção de

novas categorias como “Trindade económica”, etc.). Apoiar-nos-emos sobre estes elementos.

                                                                                                               167 São Paulo enraíza a relação de Cristo com os homens em último termo na sabedoria eterna de Deus que

projectou o plano criador e salvador (cfr. 1 Cor 2,7; Rm 8,29-30; Ef 1,3-12; etc.), no qual Cristo é Cabeça e novo Adão (cfr. 1Cor 11,3; 15,22.45; Rm 5,14; Ef 1,10; etc.).

168 Deus constituiu a Cristo como «justiça, santificação e redenção» 1Cor 1,30.

169 Esta noção «passa de ser entendida fundamental e quase exclusivamente como conjunto de verdades doutrinais, a compreender-se desde uma perspectiva mais histórica, dinâmica, cristológica, pessoal e trinitária» Á.

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1. A questão do “horizonte” e da unidade da soteriologia

No clima de mudança e de incerteza que seguiu ao Concilio Vaticano II, M.-J. Le Guillou

desejava «uma renovação da inteligência cristã, que volte a ser capaz de manifestar da maneira mais

profunda o mistério cristão»170. E mais à frente descrevia o objecto deste mistério: «em realidade, é

o Deus Vivo que se revela na sua Palavra, Ele e o desígnio que livremente concebeu de criar, de

adoptar e de salvar a humanidade no seu Filho»171. O dominicano francês estabelecia aqui o ponto

de vista que devia presidir todo tarefa verdadeiramente teológica. Esta exigência de adoptar como

ponto de perspectiva o plano de Deus para poder considerar os diversos elementos de modo unitário

e integrado no conjunto, é uma das características mais destacáveis da teologia contemporânea. De

modo que o discurso soteriológico é colocado em continua referencia a Deus, à Revelação, ao

homem, à Igreja, às realidades últimas, e sobretudo a Jesus Cristo. Realiza-se assim um projecto

ambicioso, que trata de conjurar o risco da unilateralidade (com exemplos da teologia da libertação,

a soteriologia “feminista”, etc.). Busca-se pensar a soteriologia desde “o centro”, desde a unidade

do mistério172, o que leva ao mesmo tempo, a enquadrá-la no marco da unidade entre: a) criação,

redenção e escatologia; b) revelação e salvação; c) “benefícios de salvação” e “aspirações

humanas”.

a. Soteriologia e unidade do plano de Deus

A soteriologia contemporânea buscou uma melhor integração entre a ordem da criação e a

ordem da chamada a ser filhos de Deus Jesus Cristo173. Percebeu-se uma certa fractura na exposição

dogmática dos últimos séculos, que se pode adscrever ao modo de ver a criação. No quadro de uma

visão do mundo fundado na ciência grega e árabe, a cosmologia expressava-se em termos                                                                                                                CORDOVILLA PÉREZ, El ejercicio de la teología. Introducción al pensar teológico y a sus principales figuras, Sígueme, Salamanca 2007, 63.

170 M.-J. LE GUILLOU, El misterio del Padre. Fe de los apóstoles, gnosis actuales, Encuentro, Madrid 1998, 36-37.

171 Ibidem, 41.

172 Ibidem, 102-105.

173 A instancia está presente também em outras áreas da teologia; como, por exemplo, na antropologia através do tema da “criação em Cristo”: G. COLOMBO, La teologia della creazione nel XX secolo, en R. VAN DER GUTCH, H. VORGRIMLER, Bilancio della teologia del XX secolo, Città Nuova, Roma 1972, 44-66; A. CORDOVILLA, La creación en Cristo en la teología de K. Rahner y H.U. von Balthasar, PUG, Roma 2002; J.L. MARTÍNEZ CAMINO, “Through Whom of Thing Were Made”: Creation in Christ, «Communio» 28 (2001) 214-229; F. MUSSNER, Creación en Cristo, en J. FEINER, M. LÖHRER (dir.), Mysterium Salutis, II/1, Cristiandad, Madrid 1969, 505-513; J.L. RUIZ DE LA PEÑA, Creación, gracia, salvación, Sal Terrae, Santander 1993; S. VERGÉS, El hombre creado en Cristo, Ediciones Secretariado Trinitario, Salamanca 1975. Un trabajo de amplio espectro sobre la unidad entre creación y alianza (salvación) en S. SANZ SÁNCHEZ, La relación entre creación y alianza en la teología contemporánea. Status quaestionis y reflexiones filosófico-teológicas, EDUSC, Romae 2003.

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“jerárquicos” e segundo uma visão mais bem “estática”. «O mundo concebia-se como um conjunto

perfeitamente ordenado (ordinata collectio creaturarum) e preestabelecido, que o homem podia só

admirar e penetrar com o conhecimento (theoreîn). De modo que a criação se pensava como algo já

concluído ao inicio do tempo e onde residia a perfeição total das coisas»174. Neste contexto, o

tempo histórico era sobretudo um tempo de “conservação” e inclusive de perda da perfeição inicial,

e, por tanto, também, de possível “recuperação” daquilo que se perdeu. A obra redentora, desde este

ponto de vista, estava unicamente relacionada com o pecado, e vinha a coincidir, mais ou menos,

com uma restauração da ordem perturbada. O modelo do que a redenção aporta ficava situado no

passado, nas origens paradisíacas que se perderam175. A nossa época tende a considerar de outro

modo a realidade criada: não tanto como algo pré constituído de modo perfeito e originário, mas

mais bem, como uma realidade dinâmica chamada a um progresso e a uma perfeição. «Enquanto

obra de Deus, não se deve pensar a criação como um evento passado só ao inicio do tempo, que se

prolonga mediante o “acto de conservação” e a eventual reparação da ordem originaria constituída.

A obra de Deus é activa, desdobrar que, desde o inicio, percorre a historia conduzindo o mundo à

sua perfeição final, na qual se cumprem as intenções criadoras de Deus»176. Esta visão dinâmica do

mundo enlaça melhor com a transcendência que se atribui à historia no pensamento bíblico, e com a

sua forte acentuação escatológica; alem disso permite ver unitariamente os três grandes momentos

do plano de Deus (a criação, a redenção e a consumação), e expressar de forma mais profunda a

função e o lugar de Cristo nesse projecto, como centro em torno do qual tudo gira, como

fundamento coerente de unidade do projecto do Pai177.

Quando se entende a criação como momento fundador e primeiro de um projecto destinado a

desenvolver-se, e se reflecte sobre ele à luz da revelação, descobre-se também a sua chave que é

Jesus Cristo. O segundo momento —a redenção— aparece em certo modo como um

desenvolvimento do primeiro: a trama em que, através do pecado, emerge plenamente a novidade

de Cristo. Esta segunda criação não está implicada na primeira; não obstante, no projecto divino —                                                                                                                

174 BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 728.

175 Ibidem

176 Ibidem, 729.

177 Aqui se enlaça com a originalidade do pensamento Paulino, que expressa em termos de “criação” perspectivas cosmológicas, cristológico-soteriológicas e escatológicas, e as unifica na pessoa e obra de Jesus Cristo. Cfr. R. PENNA, L'idea di creazione in Paolo e nel paolinismo: il ruolo di Cristo per un nuovo concetto di cosmo, di uomo e di chiesa, en M.V. FABBRI, M.Á. TÁBET (a cura di), EDUSC, Roma 2009, 191-212. Referimo-nos aos textos paulinos que apresentam a Cristo como arquétipo, médio e fim da obra criadora (por exemplo Col 1,15-20), como centro recapitulador da realidade (Ef 1, 10.22.29), cabeça do género humano (Rm 5,12; 1Cor 15,22.45) e dominador do cosmos (1Cor 11,3; Col 2,10; Ef 1,22), primogénito da criação, na que difunde o pleroma divino (Ef 1,22-23; Col 1,19-20; 2,9-10), Alfa e Ómega da historia (Ap 1,8; 21,6; 22,13).

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livre, gratuito— a primeira criação a ela aponta e também à sua consumação escatológica. Assim

«fica cada vez mais claro que tudo começa em Cristo e por ele tudo se sustem»178; não há um antes

que preceda a Cristo no plano de Deus, e, por tanto, as demais realidades teológicas (a mesma

criação, a elevação sobrenatural, o pecado, etc.) estão de algum modo subordinadas ao dom

fundamental de Cristo. Com isto, não se aceita simplesmente a posição escotista, abandonando a

tomista, pois em realidade, ambas posturas tradicionais, com a sua acentuação ontológica, orbitam

em torno à grandeza do Deus Único e à gloria que Ele recebe pelo seu plano. Por outro lado, a

insistência da teologia contemporânea no dom de Jesus Cristo como fundamento do plano de Deus,

entendida desde a sua concreção histórica, é dizer, à luz da sua encarnação, vida e páscoa, procura

pôr de relevo algo distinto: o movimento de Deus até nós para revelar-se e salvar-nos. O seu ponto

de chegada è a concepção de Deus como amor tri-pessoal, no qual as pessoas divinas se doam

reciprocamente, e são assim fundamento de uma plano centrado em manifestar a pureza e

gratuidade do seu amor através do sacrifício.

Ao menos em parte, a soteriologia actual toma uma orientação própria sobre o sentido da vinda

de Jesus Cristo. Vê nela a manifestação do mistério de Deus e do seu amor, que procura comunicar-

se ao homem, livrá-lo do seu pecado, para que brilhe nele a sua dignidade de filho de Deus.

Aproxima-se assim, de algum modo, à concepção joânica da revelação entre a obra salvadora e o

mistério trinitário. Como nota João Paulo II, no quarto evangelho desvela-se «a “lógica” mais

profunda do mistério salvífico contido no desígnio eterno de Deus como expansão da inefável

comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. É a “lógica” divina, que do mistério da Trindade

leva ao mistério da Redenção do mundo por meio de Jesus Cristo»179.

b. Revelação e salvação

Com isto podemos entrar já no segunda aspecto: a unidade entre Revelação e salvação. Aqui as

instancias teológicas que precedem do tratado de Deus enlaçam directamente com a soteriologia.

«A renovação trinitária que se consolida a partir do inicio do ano 900 consiste sobretudo na

superação de uma concepção intelectualista da fé, para colocar de novo no centro o acontecimento

da revelação, culminante em Jesus Cristo [...] A historia da salvação volta a ser vista de novo, cada

vez mais, como o lugar da revelação trinitária»180. Em efeito, como consequência desta renovação,

                                                                                                               178 MOIOLI, Cristologia. Proposta, 61.

179 Enc. Dominum et Vivificantem, 18-V-1986, 11 [EV X, 474].

180 P. CODA, Trinità, en J.-Y. LACOSTE, P. CODA, Dizionario critico di teologia, Borla - Città nuova, Roma 2005, 1409.

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«o horizonte que domina a reflexão —no âmbito dos estudos trinitários— é a perspectiva

económico-salvífica, tal e como a encontramos testemunhada na Escritura [...]. Não se trata tanto da

comunicação de verdades sobre Deus quanto da sua auto comunicação na historia, da acção pessoal

de Deus em favor dos homens»181. Ou melhor, trata-se sempre de Deus e da sua relação com o

homem, mas é se consciente de que ao Deus “em si” (a “Trindade Imanente”182) só se pode aceder

desde a sua revelação na historia da salvação (a “Trindade económica”183). Neste sentido, a partir de

K. Rahner184, numerosos autores sublinharam o principio de que «Deus é em si mesmo tal como se

revela em Jesus Cristo por meio do Espírito Santo, ou, melhor ainda, que na sua revelação Deus

comunica-se realmente e se dá a conhecer verdadeiramente tal qual É»185. Mas posto que essa

revelação do mistério de Deus se realiza no testemunho que recebemos (na Igreja) sobre o que Deus

obrou e obra por nós, estabelece-se um vínculo indissolúvel entre a realidade mesma de Deus, a sua

revelação na historia, e a salvação do homem. É o mesmo Deus quem ao revelar-se e fazer-nos

participantes da sua própria realidade, nos salva (contando com a nossa liberdad).

Estas perspectivas devolvem ao centro do cenário teológico a vida de Jesus e, especialmente, o

seu mistério pascal186, que passa a ser o lugar privilegiado de ambas realidades: revelação divina e

salvação do homem187. É notável que os dois aspectos se dêem em unidade188: que a revelação não

                                                                                                               181 J. PRADES LÓPEZ, “De la Trinidad económica a la Trinidad inmanente”. A propósito de un principio de

renovación de la teología trinitaria, «Revista española de teología» 58 (1998) 287-288.

182 Outras denominações: “Trindade em Sí”, “Trindade ontológica” o “Trindade ad intra”.

183 “Trindade para nós”, “Trindade soteriológica”, “Trindade ad extra”

184 Cfr. K. RAHNER, El Dios Trinitario como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvación, en J. FEINER, M. LÖHRER (dir.), Mysterium Salutis I/II, Madrid 1969, 359-449. Em geral os teólogos escolheram sem dificuldade a primeira parte do Grundaxiom rahneriano, é dizer, «a Trindade económica é a Trindade imanente». Cfr. PRADES LÓPEZ, De la Trinidad económica, 291. A formulação inversa, no entanto, é discutível na medida em que corre o risco de dissolver a “Trindade imanente” na “Trindade económica”. A analogia entre os dois termos deve conservar-se, pois, como disse a Comissão Teológica Internacional: «a distinção entre “Trindade imanente” e “Trindade económica” concorda com a identidade real de ambas». COMISIÓN TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Teología, Cristología, Antropología, I, C. 3 [IDEM, Documentos: 1969-1996, 250].

185 P. CODA, Trinità, 1410.

186 Nesta linha, influenciou sem dúvida a obra de G. LAFONT, Peut-on connaître Dieu en Jésus-Christ?, Cerf, Paris 1969, junto a outros trabalhos. Indicamos, entre eles, o de H.U. VON BALTHASAR, El misterio pascual, en J. FEINER, M. LÖHRER (dir.), Mysterium salutis, III, Madrid, 1980, 666-814. Ainda que, em realidade, se trata de um movimento bastante amplio, como se vê ao passa revista aos teólogos do século XX nesta matéria. Cfr. T. CITRINI, Gesù Cristo, rivelazione di Dio, La Scuola Cattolica, Venegono Inferiore 1969.

187 Cfr. M. SCHMAUS, Teologia Dogmatica: III: Dios Redentor, Rialp, Madrid 1962, 325. A não ser que, naturalmente, os mistérios de Cristo se considerem fundados na sua encarnação, e esta seja entendida, ao mesmo tempo, como condição ontológica permanente de existência e como processo temporal e histórico para Jesus mesmo. (Cfr. BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 930-931).

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se considere unicamente verbal, mas existencial189, acontecida na acção salvadora; e que esta última

esteja fundada e conformada pelo amor que se manifesta na vida da Trindade.

Duas observações podem ajudar a captar melhor o alcance do tema:

a) Ao redefinir a imagem de Deus desde o acontecimento pascal abrem-se uma serie de difíceis

questões190: no plano teológico uma teologia “trinitária” da cruz deverá pronunciar-se tanto sobre o

delicado tema da “imutabilidade” e do “sofrimento” em Deus, como sobre a relação desse Deus que

se implica na cruz com o Deus criador, ao qual se acede desde a razão (“Deus dos filósofos”) e

desde a Revelação (“teologia da gloria”); analogamente, no plano metodológico, a questão da

“normatividade” da páscoa na definição de Deus191,não deverá prescindir das diversas dimensões

do mistério de Cristo (cósmicas, histórico-salvíficas, escatológicas), nem das perspectivas que a

razão humana alcançou na sua reflexão cobre Deus per ea quae facta sunt192. O que requer uma

metodologia bastante desenvolvida, capaz de evitar concepções unilaterais.

b) Ao conceber a soteriologia desde a perspectiva da revelação trinitária introduz-se nela uma

“mudança de signo” com notáveis consequências. No segundo milénio tinha prevalecido no

                                                                                                               188 «A questão da salvação cristã não pode ser separada, mas deve necessariamente ser pensada a partir do Pai, do

Filho e do Espírito Santo. Falar de salvação quer dizer falar de Deus Trino, posto que aí está a novidade cristã: o homem salva-se porque Deus Trino se comunica tal como é». M. GONZÁLEZ, Il ricentramento pasquale-trinitario della teologia sistematica nel XX secolo, en P. CODA,, A. TAPKEN, La Trinità e il pensare. Figure, percorsi, prospettive, Città nuova, Roma 1997, 353. Cfr. también P. CODA, Acontecimiento pascual. Trinidad e historia, Secretariado Trinitario, Salamanca 1994, 166.

189 «É a mesma existência de Cristo, em todo o seu desenvolver-se que culmina na cruz, a que revela o mistério trinitário. Esta dimensão relativo-existencial (em sentido dinâmico-evolutivo) é a dimensão mais profunda do mistério soteriológico» CODA, Acontecimiento pascual, 167. Os sublinhados são do autor.

190 Mostra-o com claridade a exposição de E. BENAVENT VIDAL, El misterio pascual en la teología reciente, in Asociación Española de Profesores de Liturgia, El misterio pascual en la liturgia, Grafite, Bilbao 2002, 191-246 (sobre todo 195-213).

191 Posta com excessiva radicalidade na obra do teólogo luterano J. MOLTMANN, Der gekreuzigte Gott. Das Kreuz Christi als Grund und Kritik christlicher Theologie, Kaiser, München 1972 [trad esp.: El Dios crucificado, Salamanca, 1975]. No entanto, o tema está presente também em âmbito católico: «si a crus de Cristo é um acontecimento trinitário e se o sofrimento em Deus deve ser entendido em sentido trinitário, isso significa que a kénosis do Filho na encarnação e, sobre tudo, no momento culminante da cruz, constitui a plenitude da revelação da Trindade e que o significado da cruz só se capta quando esta é contemplada como o lugar onde se descobre plenamente o Deus cristão». BENAVENT VIDAL, El misterio pascual, 205.

192 «A mesma santa mãe Igreja sustenta e ensina que Deus, principio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, a partir das coisas criadas; “pois o invisivel dele é divisado, sendo compreendido desde a criaçao do mundo, por meio do que foi feito” [Rm 1,20]». CONCILIO VATICANO I, Const. Dogm. Dei Filius, 24-IV-1870, cap 2 [Dz-Sch, 3004].

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ocidente cristão uma consideração “ascendente” da obra salvadora193. Esta orientava-se a reparar o

pecado, e a reparação consistia, seguindo a São Anselmo, na compensação que Jesus oferece a Deus

em nosso nome (satisfação vigaria; expiação vigaria). Por outro lado, a nova perspectiva é

descendente. A acção de Cristo fica integrada na revelação de Deus, o que é possível se se

considera a expiação desde o ponto de vista existencial, como entrega generosa da vida, como ser-

para-os-demais194 ou proexistencia195, é dizer, com conceitos que permitam dar um caminho à

revelação do amor de Deus196. Neste caso prevalece a dimensão “descendente”.

Esta “mudança de signo” orienta a soteriologia a uma nova síntese, com umas preocupações e

uma estruturação interna diversa da teologia precedente. A soteriología anselmiano-tomista situava

a cruz em correspondência ao nível da verdade e da justiça —à ordem da criação danhado pelo

pecado e reconstruído por Cristo— e reconhecia na ontologia de Cristo (Deus-homo) a

possibilidade de recuperação da justiça; a nova perspectiva mede a cruz sobre o padrão da caridade

de Deus e fundamenta a eficácia salvífica na correspondência dos actos de Cristo com essa

caridade197. Se o ponto de referencia deixa de ser o mundo visto em relação a Deus e se concentra

sobre a manifestação do Deus-Amor, varia também o modo de considerar a mediação de Cristo: o

dado entitativo (Deus-homo) já não tem como função «garantir o valor salvador da acção de Cristo,

mas mais bem a correspondência fiel da manifestação histórica com a sua condição de

autorevelação de Deus, é dizer, que o que se manifesta seja expressão própria de Deus e não do

mundo198». Surgem por isso novos modos de expressar a mediação de Cristo199.

                                                                                                               193 O que se deve em boa parte à influencia da obra de Santo Agostinho, que foi sem dúvida o teólogo mais

destacado da Igreja latina no primeiro milénio. Sobre o seu amplio prestigio no Medioevo, cfr. H.I. MARROU, St. Augustin et l’augustinisme, Editions du Seuil, Paris 1955.

194 Cfr. W. KASPER, Introducción a la fe, Sígueme, Salamanca 1976, 159; J. RATZINGER, Introducción al cristianismo, Sígueme, Salamanca 1971, 200ss.

195 H. Schürmann deu como fundamento exegético e promoveu com acerto esta categoria na teologia actual. Cfr. O seu trabalho: ¿Cómo entendió y vivió Jesús su muerte? Reflexiones exegéticas y panorama, Sígueme, Salamanca 1982, 129-163. [Original Jesu ureigener Tod. Exegetische Besinnungen und Ausblick, Verlag Herder, Freiburg 1975].

196 «O que no uso tradicional se chama “expiação vigaria” deve ser entendido e sublinhado como um evento trinitário». COMISIÓN TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Cuestiones selectas de cristología, IV, C.3.5 [IDEM, Documentos: 1969-1996, 237]

197 «A morte de Jesus dói uma “expiação vigaria” definitivamente eficaz, já que o gesto do Pai entregando e dando o seu próprio Filho, alega-se exemplar e realmente no Cristo que se dá a si mesmo, entregando-se e dando-se com perfeita caridade». Ibidem.

198 A. DUCAY, Revelación y salvación. Incidencia de la noción de revelación en la orientación actual de la teología sobre la Cruz, en AA.VV, Cristo y el Dios de los cristianos. Hacia una comprensión actual de la teología, Eunsa, Pamplona 1998, 453.

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c. Salvação integral

A procura de unidade da soteriologia mostra-se também no âmbito dos benefícios da redenção.

Percebe-se o desejo de sintonizar esses benefícios com as aspirações humanas da felicidade e

plenitude200, de modo que a doutrina soteriológica comunique realmente uma palavra sobre o bem

integral do homem; em definitiva, mostre que Deus se faz cargo em Jesus Cristo da criatura humana

todo inteira: da sua vida terrena e do seu destino eterno, da sua condição espiritual e das suas

necessidades materiais, da sua existência pessoal e da sua sociabilidade.

Neste ponto centra-se a confrontação e, em certa medida, a assimilação do processo moderno

de pensamento por parte da soteriologia. Ao ser substituída a concepção teocrática (ontocrática) que

a síntese medieval tinha fundado, por uma interpretação que atribui ao homem o papel central (e

não a Deus ou ao ordem ou às instituições tradicionais)201, a teologia viu-se na necessidade de um

ajuste; teve que discernir, pouco a pouco, os aspectos positivos desta visão antropocêntrica da vida,

evidenciando também o que era incompatível com a sua doutrina e o inaceitável para o homem. Em

todo o caso, no novo contexto foi necessário sublinhar o carácter plenamente humano da salvação:

Deus não é um redentor unilateral, preocupado unicamente pelos aspectos morais e religiosos dos

homens, mas que vela pela felicidade completa das suas criaturas.

Daqui derivam as tenções que caracterizaram a teologia nos últimos decénios. A dificuldade de

anunciar a mensagem revelada, a percepção duma certa ineficácia evangelizadora, os aspectos de

verdade presentes em algumas críticas, puderam gerar a impressão de que era necessário uma

mudança radical: dar à soteriologia uma nova identidade que permitisse afrontar estas dificuldades.

Desejava-se obter com rapidez uma nova síntese, mas essa busca precipitada, como podia evitar o

risco duma acrítica (ou, às vezes, comprazida) submissão ao espírito do momento?202 «A

constatação —sem dúvida algo magnificada, acrescentaríamos— da distancia abismal existente

entre o dogma tradicional da redenção e a problemática existencial e verbalizada que vive o homem

no seu próprio destino»203, gerou tentativas de renovação da soteriologia, mas tratou-se com

                                                                                                               199 Cfr. mais à frente, a secção II, 2, b.

200 Cfr. G. COLZANI, La salvezza oggi: cultura e teologia, en A. TERRACCIANO (ed.), Attese e figure di salvezza oggi, Campania notizie, Napoli 2009, 48-54.

201 Cfr. LOCHMAN, Christ ou Prométhée? La question cruciale du dialogue entre chrétiens et marxistes, Desclée, Paris 1977, 93. También: WINLING, La théologie contemporaine, 16.

202 Cfr. L. SCHEFFCZYK, Il compito della teologia di fronte all'odierna problematica della redenzione, in AA. VV., Redenzione ed emancipazione, Queriniana, Brescia 1975, 13.

203 D. WIEDERKEHR, Fe, Redención, liberación. De la soteriología antigua a la moderna, Madrid 1979, 6.

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frequência de uma soteriologia excessivamente centrada no homem, concebida de modo unilateral

como projecto de humanização e de emancipação.

De qualquer modo, é preciso destacar a reflexão do magistério da Igreja nesta matéria, tanto na

época do concilio Vaticano II como posteriormente204, pois soube apresentar de modo unitário e

coerente os aspectos transcendentes e históricos da salvação cristã.

2. O Mediador e a sua acção salvadora

Um dos temas que se tratavam habitualmente nos manuais de soteriologia anteriores ao

Vaticano II pode formular-se assim: Porque é que se diz que Cristo é mediador? Donde reside essa

condição? Seguia-se com frequência a exposição de São Tomás na Suma de Teologia205. A

soteriologia contemporânea não contradiz essa compreensão mas concebe o tema de modo algo

diferente. Preocupa-se mais bem pelo sentido e a dinâmica da mediação que pela sua formalidade

específica. Interessa-lhe determinar como mediam a salvação os actos de Cristo, a sua vida e a sua

história; que relação existe entre essa historia e a nossa salvação. Ainda que seja preciso constatar

que a reflexão sobre este tema não foi muito frequente, é necessário abordá-la, porque forma parte

dos “pressupostos” —não sempre declarados— que determinam e caracterizam a soteriologia.

O tema é confuso, como se verá, mas pode articular-se em torno a várias polaridades206, que

compreendem: a direcção prioritária de mediação (descendente ou ascendente); a caracterização

essencial do Mediador (a pessoa ou a dupla natureza); o Seu modo de influxo sobre a salvação

(manifestativo ou performativo); a direcção dessa salvação (“divinização” ou “humanização”)207.

                                                                                                               204 O empenho do Magistério nesta área foi enorme: pense-se no impulso dado à promoção social com as

encíclicas de Paulo VI Populorum Progressio e Evangelii Nuntiandi; à teologia da dignidade do homem e das culturas presentes nas encíclicas Redemptor Hominis e Redemptoris Missio, à abundante reflexão sobre a mulher, a família, o valor do corpo, etc., de João Paulo II; ao esforço dos últimos Pontífices para afrontar, no marco da doutrina social cristã, as questões abertas no âmbito laboral, dos sistemas económicos, da justiça nas relações internacionais, etc. Os princípios de reflexão, os critérios de juízo e as directivas de acção, que este Magistério oferece constituem uma verdadeira praxis de libertação da Igreja «para que se façam realidade essas mudanças profundas que as situações de miséria e de justiça exigem, e que tudo isso actue de modo que contribua ao verdadeiro bem dos homens». CONGREGACIÓN PARA LA DOCTRINA DE LA FE, Instrucción Libertatis Conscientia, 22-III-86, cap. V, [EV X, nn. 292-335].

205 A q. 26 da III pars intitula-se: De hoc quod Christus dicitur mediator Dei et hominum. Cfr. G. GUITIÁN CRESPO, La mediación salvífica según Santo Tomás de Aquino, EUNSA, Pamplona 2004

206 Algumas delas podem-se encontrar em: GRONCHI, Trattato, 925. A. COZZI, Conoscere Gesù Cristo nella fede. Una cristologia, Cittadella, Assisi 2007, 384-386; SESBOÜE, Jesucristo, el único mediador, I, 120-124; COMISIÓN TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Teología, Cristología, Antropología, I, D, 1 [IDEM, Documentos: 1969-1996, 250-251].

207 Deste último aspecto ocupar-nos-emos brevemente mais adiante.

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No fundo de todas elas late o problema de expressar adequadamente as dimensões transcendentes208

e históricas209 da acção salvadora de Cristo.

Alem do mais, essa mediação entendeu-se geralmente em sentido causal: a salvação tem a sua

fonte em Cristo. Por isso haverá que explorar como se entendeu esta causalidade.

a. Transcendência e historia na obra redentora

Retomemos a pergunta sobre a direcção fundamental da mediação. Existe uma mediação

salvadora porque a salvação não está ao nosso alcance. Não somos capazes de salvar-nos a nós

mesmos e, por isso, esta tarefa fica em mãos de Deus. Ele encarna-se propter nos e chega ao

extremo da morte. Mas, como se devem ver esses actos que constituem a obra redentora?: como

acção de Deus que obra em Cristo a nosso favor, ou de Cristo que obra por nós ante Deus?210 Qual é

o seu núcleo: o amor de Deus que purifica o nosso egoísmo ou a obediência de Cristo que expia o

nosso pecado? A primeira posição concebe esses actos como caridade e misericórdia; a segunda

como reparação e justiça. Mas na raiz há duas valorações diversas da relação entre Deus e o

homem; uma em termos mais pessoais, a outra mais objectiva. Apontam a «um problema de fundo:

a relação entre a ordem ontológica e a ordem pessoal no plano das relações do homem com

Deus»211.

Os dois aspectos não devem opor-se, ainda que fica aberto o como devam conjugar-se,

integrando-se, e qual deva ter prioridade. Já indicámos que, no segundo milénio, a soteriologia se

polarizou em torno à justiça, e a redenção se expressou sobretudo com categorias ascendentes: a

satisfação vigaria, o mérito, o sacrifício de Cristo, que actua como mediador ante Deus212. No

entanto, insistiu-se recentemente em que a prioridade corresponde ao movimento descendente,

                                                                                                               208 A iniciativa divina, a pessoa que a realiza, a manifestação da sua vontade salvadora, o misterioso da salvação.

209 A ordem presente, a acção humana, o acontecimento histórico, o “tangível” da salvação.

210 As categorias do Novo Testamento e da tradição teológica para expressar a acção salvadora de Cristo foram bem estudadas no volume I da obra de Sesboüe, Jesucristo, el único mediador (ya citada). Nelas, o autor descobre uma primeira estruturação fundamental: «as diversas categorias ordenam-se segundo dois movimentos principais: um vai de Deus ao homem a traves da humanidade de Jesus; o outro vai do homem a Deus, já que em Jesus, o Filho por excelência, o homem consegue passar a Deus». (p. 65).

211 GONZÁLEZ DE CARDEDAL, La soteriología contemporánea, 314. A alusão à ordem ontológica refere-se aquilo que, em justiça, corresponde ao homem como criatura e a Deus como Criador, em quando distinta da relação de amizade o benevolência.

212 SESBOÜE, Jesucristo, el único mediador, I, 67-69.

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porque «tudo vem em primeiro lugar de Deus e da sua graça»213: Ele é o Salvador. Se o sentido da

obra salvadora se concreta na reconciliação, esta é antes de tudo «um acto de Deus que tem o

homem por objecto»214, ainda que comporta a reciprocidade: «deixar-se reconciliar»215. Tampouco

se deve «cair num unilateralismo inverso: este movimento (descendente) deve articular-se com o

ascendente no respeito à solidariedade do dois aspectos da mediação»216. As duas dimensões podem

dar uma soteriologia satisfatória somente na sua recíproca convergência; na sua acção única e

pessoal, Cristo leva a salvação de Deus ao homem e reconduz o humano ao Pai.

A segunda polaridade está de algum modo incluída na primeira. Deve ver-se a mediação de

Cristo, desde a pessoa, desde o Filho de Deus, ou desde as naturezas, como acção do homem-

Deus217? O essencial está na relação de Jesus com Deus Pai no Espírito, com a sua carga reveladora

do que é a vida íntima de Deus218?, ou o prioritário deve ser a referencia à situação humana ante

Deus e à reparação que exige por parte do homem?219 São perguntas semelhantes às precedentes

mas com uma direcção distinta. Quando o pessoal é central, o referente de Cristo é o Pai, e a

historia concreta de Jesus —expressão da sua pessoa— substantiva-se; quando o natural é central,

ressalta-se a perfeição da obra humana de Cristo ante Deus, da sua paixão que é instrumento de

reconciliação.

Não se deve prescindir, em todo o caso, de que a mediação de Cristo è intrinsecamente filial e

essa filiação singular é a novidade radical que Ele aporta220. Por isso, nem o referente principal

                                                                                                               213 Ibidem, 122.

214 Ibidem.

215 Cfr. 2Cor 5,20.

216 SESBOÜE, Jesucristo, el único mediador, I, 69.

217 Seguindo G. Moioli, a teologia ocidental propôs fundamentalmente dois modelos de mediação: «no primeiro a união hipostática é a razão profunda da “mediação” de Cristo, falando-se formalmente de mediador porque é homem hipostaticamente unido ao Filho de Deus; no segundo —que recentemente cresceu em importância— Jesus é “mediador” tanto em quanto é “mediação”, é dizer, manifestação–presença–acção do Filho de Deus Salvador». Cristologia. Proposta, 149.

218 Em linha com quanto expusemos na secção precedente.

219 Esta perspectiva desde a “dupla natureza” encontramo-la no documento da Comisión Teológica Internacional, Cuestiones selectas de cristología, IV, a) 2 [IDEM, Documentos: 1969-1996, 537]: «Por conseguinte, a redenção é um processo que implica tanto a divindade como a humanidade de Cristo. Se Ele não fosse divino, não poderia pronunciar o juízo eficaz do perdão de Deus, nem poderia fazer participar na vida trinitária íntima de Deus. Mas se não fosse homem, Jesus Cristo não poderia fazer a reparação em nome da humanidade pelas ofensas cometidas por Adão e pela posteridade de Adão. Só porque tem ambas naturezas pôde ser a cabeça representativa que oferece satisfação por todos os pecadores e Aquele que lhes outorga a graça».

220 «No modo da actuar mostra-se a peculiaridade da pessoa que actua. Já que a pessoa modela a maneira de actuar, Cristo confere ao seu actuar humano precisamente o cunho que caracteriza a sua modalidade de actuação divina:

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desses mistérios redentores è indistintamente “Deus”, mas o Pai, nem o padrão para valorá-los é a

ordem criada entendida desde a “escala do ser”, è dizer, desde a diferença de perfeições naturais

que correspondem a Deus e ao homem, mas o desígnio divino de criar, adoptar e salvar a

humanidade do seu Filho.

A terceira polaridade pode também partir das anteriores. Refere-se à relação entre a

transcendência e a historia, entre o plano salvador de Deus e as acções livres dos homens. Como se

relaciona aquele plano com a historia? A historia tem por missão desenvolver o projecto de Deus

previamente estabelecido? Ou, mais bem, esse projecto está aberto, e consiste na historia mesma

entendida como diálogo de Deus com os homens? No primeiro caso, a historia da salvação —e

especialmente Cristo— vem a ser o signo manifestante da salvação que Deus oferece no seu plano.

Aceita-se como premissa que nada realizado na historia pode determinar a eterna vontade divina,

como se esta sofresse uma inflexão ou alteração, resultado da acção de algum ser humano sobre

ela221. Por tanto, o papel da historia é transmitir, manifestar a vontade divina de salvação e perdão.

Esta posição tem a dificuldade de que não explica bem a causalidade salvífica de Cristo: como a sua

vida e páscoa sejam realmente causa da salvação humana; seria mais bem o signo da vontade divina

de perdoar. A soteriologia de K. Rahner aproxima-se a esta posição222. Ainda que o teólogo alemão

sustem formalmente que a historia e a páscoa de Cristo são, ao mesmo tempo, efeito e causa da

vontade salvífica de Deus223, no seu sistema teológico o primeiro aspecto é bastante mais relevante.

A figura de Cristo responde à fenomenologia da salvação que Deus gravou no espírito humano, e

que se apresenta na historia com a forma mais adequada para ser reconhecida pelo homem (como

                                                                                                               o da sua eterna filiação. [...] A consequência mais importante que se deriva para o nosso tema é a certeza de que o actuar humano de Jesus, o seu modo de actuar, revela a vida de Deus Trino», afirma CH. VON SCHÖNBORN, El icono de Cristo. Una introducción teológica, Encuentro, Madrid 1999, 109. E. Talvez por influxo deste autor lemos no Catecismo da Igreja Católica: «a natureza humana de Cristo pertence propriamente a pessoa divina do Filho de Deus que a assumiu. Tudo o que Ele é e faz nela pertence a “um da Trindade”. O filho de Deus comunica, pois, à sua humanidade o seu próprio modo pessoal de existir na Trindade. Assim, na sua alma como no seu corpo, Cristo expressa humanamente as costumes divinas da Trindade». Catecismo da Igreja Católica, 470.

221 Cfr. GONZÁLEZ DE CARDEDAL, La soteriología contemporánea, 305.

222 Cujo modelo mais radical é, ao mesmo tempo, a teologia de K. Barth. Cfr. A. SCHILSON, W. KASPER, Cristologie, oggi. Analisi critica di nuove teologie, Paideia, Brescia 1979, 55-67: «na eleição eterna do homem Jesus de Nazaré encontra-se o acontecimento, já constituído previamente, da criação, revelação e salvação, de modo que a historia terrena de Jesus corre risco de ser reduzida à simples aparição de algo decidido eternamente» (p. 65). E mais adiante: «ainda que a cruz e ressurreição não sejam mera aparência, aproximam-se bastante a ser simplesmente manifestação de um processo decidido à muito tempo na eternidade de Deus, processo que se faz “objectivo” só uma vez na terra, e pode ser reconhecido na fé» (p. 67).

223 Efeito, porque Deus determina esses mistérios, os põem como signo de salvação e os cumpre em Cristo; causa porque a salvação deriva do facto de que o signo se dá verdadeiramente na historia e isso, por sua vez, ocorre porque Cristo se entrega livremente ao querer de Deus nos seus mistérios.

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tal salvação)224. Cai por isso no âmbito do signo, mais que no âmbito da causa225. Frente a isto

sublinhou-se, justamente, o facto de que os mistérios da salvação não revelam somente o eterno

amor de Deus ao mundo, mas que “obram”, também, uma mudança efectiva da situação culpável da

humanidade. É dizer, introduzem livremente uma verdadeira novidade na historia, que afecta a

relação do homem com Deus226. No entanto, quando essa novidade se refere, mais que à situação do

mundo, ao diálogo que mantém entre si as pessoas divinas na economia, a mudança recai sobre as

mesmas pessoas, que passam então a ser sujeitos de um acontecimento que se situa ad intra de

Deus. Isto leva a pôr em questão a noção de imutabilidade divina. A teologia de H. U. Von

Balthasar vai por estes caminhos, obrigando ao teólogo suíço a pensar a Trindade imanente, de

modo que n’Ela pode ter lugar o acontecimento da cruz com a sua carga negativa. A solução

termina por ser pouco satisfatória227. Quiçá dessas reflexões a soteriologia deva reter a ideia: que

ainda que os acontecimentos da historia não alteram a vontade salvífica de Deus228, contribuem não

obstante a dar-lhe forma concreta, dependente da liberdade humana, e sem a qual, essa vontade

divina —por dizê-lo de alguma maneira— não teria incentivo a constituir-se como tal.

                                                                                                               224 Rahner outorga aos mistérios de Cristo uma causalidade de tipo quasi-sacramental. Segundo ele, «Cristo e a

consumação do seu destino (consumação que aparece na ressurreição) é a causa da salvação como constituição histórica da situação salvífica para todos, que já não é historicamente reversível». K. RAHNER, Redención, en AA.VV., Sacramentum mundi, vol V, Herder, Barcelona 1976-1978, p. 772. Mas note-se que essa situação só constitui na historia o que já está previamente dado na vontade de Deus e na estrutura da criatura (doutrina rahneriana do existencial sobrenatural) Cfr. G. MANSINI, Rahner and Balthasar on the Efficacy of the Cross, «The Irish Theological Quarterly» 63 (1998) 234-237.

225 Daí que a Comissão Teológica Internacional tenha recolhido sinteticamente a critica que H. U. Von Balthasar lhe fez (Theodramatik, III, Johannes, Einsiedeln 1980, 253-263). Segundo a Comissão: «alguns autores, no entanto, perguntaram-se se a teoria dá suficiente espaço à eficácia causal do acontecimento Cristo, e especialmente ao carácter redentor da morte de Jesus na cruz. O símbolo Cristo expressa e comunica simplesmente o que anteriormente tinha sido dado na vontade salvífica de Deus?». Cuestiones selectas, III, b) 32 [CTI, Documentos: 1969-1996, 533] Sobre este aspecto cfr. también F. IANNONE, Karl Rahner: eteroredenzione o autoredenzione?, «Rassegna di Teologia» 37 (1996) 597-622.

226 E. BABINI, Per un ripensamento della soteriologia. Approfondimento critico e prospettive, «Rassegna di teologia» 39 (1998) 704-705.

227 Cfr. As críticas de MANSINI, Rahner and Balthasar, 247-249, que termina o seu artículo com uma ponta de ironia: «se usamos a Rahner para criticar a Balthasar, e a Balthasar para criticar a Rahner, terminamos por ficar com a tradição primitiva, a que fala com S. Anselmo e São Tomás de “satisfação”» (p. 249). Assinalo também: V. HOLZER, Le Dieu Trinite dans l'histoire. Le differend theologique Balthasar-Rahner, Cerf, Paris 1995.

228 Já Santo Agostinho advertia o problema: «que quer dizer reconciliados pela morte de seu Filho? Será acaso que Deus Pai, airado contra nós, viu a morte pia do Filho e acalmou a sua ira contra nós? Acaso tinha-se o Filho já reconciliado connosco até dignar-se morrer por nós, enquanto o Pai ainda fumegava no seu furor e só se aplacaria na condição de que o seu Filho morresse por nós? [...] Por ventura, se o Pai não estivesse aplacado ao não perdoar ao seu Filho o entregaria por nós? Não parece esta sentença contradizer a anterior? [...] Mas nos amou não só antes de morrer o seu Filho por nós, mas antes da criação do mundo ...», S. AGUSTÍN, La Trinidad, XIII, XI, 15 [Obras Completas de S. Agustín (edición bilingüe), t. V: La Trinidad, BAC, Madrid, 1985, 616-617].

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b. Cristo, causa de salvação

Relacionado com o que acabámos de expor, ainda que com menor carga especulativa, está o

tema da causalidade salvífica de Cristo. Trata-se de ilustrar teologicamente como os actos os actos

de Cristo, que são acções humanas, são fontes de salvação para a humanidade. A solução clássica

tomista com precedentes em São Agostinho e São João Damasceno, apoia-se na ideia de que a

natureza humana de Cristo constitui um canal “adequado” do obrar da sua pessoa divina.

Inspirando-se no modelo antropológico da união entre a alma e o corpo, São Tomás explica na

Summa contra Gentiles que o Verbo, ao assumir a sua humanidade, a eleva e a adapta a si mesmo,

de modo que lhe seja própria e possa obrar as realidades divinas229. Constituída assim em

“instrumento” da pessoa do Verbo, tudo o que esta realidade realiza tem uma eficácia divina e

salvadora, que lhe corresponde intrinsecamente230.

No contexto contemporâneo, no entanto, a ideia de instrumentabilidade da humanidade de

Cristo apresenta algumas dificuldades: por um lado, parece introduzir uma justaposição entre a

acção divina e a forma humana que esta adopta, porque um instrumento costuma entender-se como

uma realidade em se mesma, terceira, que media entre a causa e o efeito, o qual não corresponde à

humanidade de Cristo231, nem ao significado originário da escolástica232. Por outra parte «o

pensamento contemporâneo, com o seu agudo sentido da distinção entre o valor das pessoas e das

coisas, tende a aplicar o conceito de instrumento a estas últimas, ou às primeiras quando são

tratadas como as segundas: daí vem o verbo “instrumentalizar”»233. Explica-se assim que alguns

preferem renunciar à linguagem clássica e falar de “causalidade sacramental”234. Esta linha pode ser

                                                                                                               229 «A natureza humana foi assumida em Cristo para realizar instrumentalmente operações que são próprias só de

Deus: perdoar os pecados, iluminar as consciências mediante a graça e introduzir na perfeição da vida eterna. Por isso a natureza humana de Cristo é para Deus como um instrumento próprio e unido, ou seja como a mão é para a alma». SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa Contra Gentiles, IV, cap. XLI.

230 Para São Tomás, «a redenção não existe como “produto” da acção (N. do R.: de Cristo), mas é a acção mesma de Cristo [...] Tomás não se separa nunca do obrar de Cristo e não entende as categorias do mérito, da satisfação e da redenção como realidades independentes dela. Trata-se sempre de qualidades dessa “acção humana”; que é acção satisfatória, meritória, sacrificial, eficaz». BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 368.

231 Que não é algo “entre” Deus e os homens. Cfr. CITRINI, Gesù Cristo, rivelazione, 352.

232 Que não vê as operações como justapostas mas em confluência: o instrumento concorre com a sua acção própria e o agente principal incorpora essa acção à sua própria acção. Por isso a operação da natureza humana de Cristo, como instrumento da divindade, não é distinta da operação da divindade: «non enim est alia salvatio qua salvat humanitas Christi, et divinitas eius». SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, III pars, q. 19, a. 1 ad 2.

233 Ibidem.

234 «A crítica à categoria de “instrumento unido” deriva precisamente do temor a que o sentido de exterioridade, que o conceito de instrumento leva consigo, sobretudo para o pensamento recente, retire precisamente o que o adjectivo unido trata de dar. E isto [...] com maior motivo, posto que não se trata da unidade de duas realidades preexistentes, ou

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entendida desde diversas perspectivas235, mas em todas elas a mediação é concebida como o lugar

donde a pessoa se revela por meio dos seus actos. «Como nos salva Jesus? Exercendo uma

causalidade descendente e livre, que pertence à ordem da revelação e da comunicação, uma

causalidade de amor [...]. A causalidade salvífica de Jesus pode definir-se como uma causalidade

sacramental. Na sua pessoa encarnada, na sua corporeidade eloquente, que inclui a totalidade da sua

existência terrena, a sua morte e a sua ressurreição, Jesus foi o sacramento da salvação»236.

Outros preferem falar de “causalidade pessoal”, para superar o perigo de pensar a salvação em

termos de “produto”, como um algo, uma realidade a se, obtida no passado pela obra de Jesus237. A

isto contribuiria também a distinção clássica entre “redenção objectiva” e “redenção subjectiva”238,

que tenderia a consolidar uma visão abstracta e impessoal da obra redentora. Concretamente,

Bordoni, ao falar de “causalidade pessoal”, sublinha o facto de que a redenção é um encontro entre

pessoas, e por tanto é preciso afrontá-lo com categorias que respeitem a natureza pessoal dessa

relação239. Na sua opinião, seria vantajoso substituir a distinção clássica (entre redenção objectiva e

redenção subjectiva)240 com o binómio “oferecimento-aceitação” da salvação. Posto que a redenção

é sobretudo «livre doação de si mesmo por parte de uma pessoa a outra, mediante a qual a segunda

recebe a chamada a romper livremente com a própria obscuridade [...], a expressão “redenção

objectiva” pode, então, expressar-se em termos pessoais, como acção pessoal do oferecimento de

                                                                                                               pensáveis como separadas (o Verbo sim, mas esta humanidade não o é), mas da constituição de uma realidade (precisamente a que é sacramentum, a humanidade corpórea de Cristo) que se constitui em função da expressão da outra». Ibidem, 393.

235 «Haverá, sem dúvida, que considerar protagonistas com modos originais de proceder a E. Schillebeeckx e K. Rahner, enquanto que H. U. Von Balthasar deve ser considerado à parte: é dizer, fora da preocupação de fundar um discurso propriamente sacramental». MOIOLI, Cristologia. Proposta, 142. Outras posições em CITRINI, Gesù Cristo, rivelazione, 393-400.

236 SESBOÜE, Jesucristo, el único mediador, II, 241 y 242.

237 Cfr. B.A. WILLEMS, La Redenzione nella Chiesa e nel mondo, Morcelliana, Brescia 1969, 28. Algumas ideias na mesma direcção em SESBOÜE, Jesucristo, el único mediador, II, 246-248.

238 Segundo o modelo atribuído a M. J. Scheeben. «Desde então —afirma Bordoni— a teologia pensou a categoria da eficácia causal como um processo em dois momentos: no primeiro (a redenção objectiva) Cristo teria constituído, com a sua vida e a sua morte, como um depósito de força redentora, completa já para sempre; enquanto que no segundo momento (redenção subjectiva) teria lugar a aplicação dessa energia, no curso da historia, para todos os homens. De modo que os méritos adquiridos de uma vez para sempre pelo Redentor, seriam comunicados a cada crente». Gesù di Nazaret, III, 488. Na última frase do autor, este cita A. D’ALÈS, De Verbo Incarnato, Paris 1930, 379.

239 BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 487-490.

240 «É o modelo mesmo de pensamento objecto–sujeito que tende a ser actualmente objecto de críticas: trata, efectivamente, de explicar a redenção com categorias importadas desde o âmbito da natureza impessoal e física». Ibidem

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amor que irrompe na nossa vida desde essa outra pessoa»241. O teólogo romano entende este tipo de

causalidade à luz do mistério da ressurreição de Cristo, que leva dentro o amor transcendente de

Deus revelado na cruz e na vida de Jesus: «através da ressurreição (N. do R.: de Cristo) o amor de

Cristo chega até mim aqui e agora, pessoalmente, modificando a estrutura interpessoal da minha

existência e operando eficazmente em favor da minha liberdade»242. De forma que esta

“causalidade pessoal” pode reconduzir-se à dinâmica trinitária da communio personae Christi,

donde o convite a seguir Cristo por meio da palavra exterior ressoa internamente pela presença

activa do Ressuscitado, e ao mesmo tempo concede à liberdade humana a possibilidade de acolhê-la

no Espírito243. A causalidade “pessoal” parece uma via interessante de actualização do modelo

tradicional.

3. Em torno à obra redentora

Também para esta secção pode ser útil referir-se a São Tomás. A sua quaestio: “De modo

efficiendi passionis Christi”244 alcançou grande notoriedade nos tratados clássicos de soteriologia.

Nela o santo teólogo examina como a paixão de Cristo produz os seus frutos de salvação e propõe

cinco vias de eficácia salvadora: o mérito, a satisfação, o sacrifício, a redenção, a eficiência. São

laços causais que ligam a salvação ao acto redentor de Cristo, e que delimitam âmbitos de relação

entre essas duas realidades. Na soteriologia recente estes âmbitos não desapareceram, mas foram

submetidos à “mudança de signo” que assinalámos antes. Considerada como obra de Deus em

Cristo, a cruz envia: a bondade compassiva de Deus que assume o sofrimento, que carga com o

pecado humano, que se doa vencendo as nossas resistências, que nos livra do nosso egoísmo, que

nos faz participantes da sua eficácia ressuscitadora245. Servimo-nos destas perspectivas para dar

                                                                                                               241 Ibidem, 489.

242 Ibidem, 496.

243 «No Espírito de Cristo Ressuscitado, supera-se todo o objectivismo e subjectivismo da redenção, porque n’Ele não só a palavra do Kerigma adquire força comunicativa pela presença pessoal do Salvador, mas também o mesmo sujeito humano é constituído sobrenaturalmente como partner do dialogo da revelação, capaz de acolher e responder, abrindo-se, na sua intimidade, ao oferecimento de salvação». Ibidem, 498.

244 SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, III pars, q. 48.

245 Uma soteriologia madura deve integrar em síntese todos estes aspectos descendentes e ascendentes. De aí a observação da Comissão Teológica Internacional: «Um certo número de teólogos católicos contemporâneos estão a tentar manter em tensão os temas “ascendente” e “descendente” da soteriologia». Cuestiones selectas, III, b) 37 [CTI, Documentos: 1969-1996, 535]

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uma estrutura à secção, que tratará de expor os aspectos de interesse que a reflexão recente

apresenta sobre a obra redentora246, inspirando-nos com liberdade nestas categorias tomistas.

Outra observação é também necessária. Sublinhou-se frequentemente que não se pode isolar

nenhum mistério da vida de Cristo para erigi-lo em causa de salvação. O que nos salva é a vinda de

Cristo, considerada na sua totalidade, desde a sua encarnação até à sua gloriosa ascensão e o envio

do seu Espírito. Os seus mistérios tem cada um uma eficácia salvífica própria, específica, que só se

revela desde a unidade da vida de Jesus, fundada na sua pessoa. Nada sobra ou é pouco eficaz na

vida de Cristo. No entanto, por um motivo pratico pode-se atribuir a eficácia salvadora de Cristo à

sua cruz ou ao seu mistério pascal247. Não se cai na falsidade, porque «doando a sua actividade, o

seu pensamento e os seus afectos, o homem faz certamente dom de si mesmo, mas na morte, mais

que entregar-se numa seria de actos, entrega-se directamente no seu ser»248, e porque «a

ressurreição de Cristo é ressurreição dos mortos: para ser entendida envia sempre à morte de

cruz»249. Mas se é legítimo resumir o sentido da vida de Jesus no mistério da cruz, não se deverá

esquecer que se trata de um resumo e que está a concentrar a totalidade do mistério numa das suas

partes. Não seria legítima, por tanto, uma leitura dessa “parte” que rompa a unidade com as demais

ou não lhes conceda espaço adequado.

a. A Cruz como revelação do amor de Deus

«A raiz do mérito è a caridade», afirma São Tomás250. Se se prescinde das referencias à visão

clássica, é preciso reconhecer que a teologia recente usou pouco a linguagem do mérito. Em parte

porque só em sentido impróprio se pode referir o mérito à acção divina251, também porque sob a

difusa linguagem do amor pode implicar-se o critério o critério do mérito. Em todo o caso, se existe

uma palavra usada em soteriologia é essa: “amor”. Existe a convicção fundamental de que «a

salvação está ligada ao amor»252. Filósofos e teólogos cristãos desenvolveram esta afirmação desde

                                                                                                               246 Aquilo que no mundo anglo-saxão costuma designar-se como salvific work of Christ.

247 Além do facto que o mistério pascal tem uma essencialidade e um estatuto que não tem os demais mistérios. Propriamente nele cumpre-se a obra salvadora que o resto dos mistério anuncia e inicia.

248 J. GALOT, Gesù Liberatore, LEF, Firenze 1978, p. 265.

249 SERENTHÀ, Gesù Cristo, 349.

250 SANTO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, III pars, q.48, a.1, 3.

251 De facto São Tomás não refere o mérito a acção divina de Cristo mas só à humana: cfr. ibidem.

252 Assim o formulava J. Ratzinger em 1972 na sua intervenção com ocasião de um Congresso de teologia. Cfr. J. RATZINGER, Questioni preliminari ad una teologia della redenzione, in AA.VV., Redenzione ed emancipazione, 187.

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posições personalistas253: a potencia que redime o homem é o amor, porque sem poder amar, sem

um “tú” que o acolha e o aprove, o homem fica sempre incompleto. João Paulo II formulou-o

magistralmente: «O homem não pode vivier sem amor. Ele permanece para si mesmo um ser

incpmpreensivel, a sua vida está privada de sentido se não se lhe revela o amor, se não se encontra

com o amor, se não o experimenta e faz próprio, se não participa nele vivamente»254. Assim as

coisas, a salvação que Cristo oferece não pode carecer do signo do amor; deve ser uma

manifestação de amor e uma comunicação que permita ao homem recobrar a sua capacidade de

amar.

Se a vinda de Cristo é a grande manifestação do amor de Deus, a sua cruz será em particular o

momento mais radical e extremo desse amor. Esta afirmação clara e comum na teologia encontra,

no entanto, o problema da apresentação da cruz sob o signo da justiça vindicativa, frequente na

tradição protestante e, às vezes também, com brotes na oratória católica255. Pode-se apresentar

assim a participação do Pai no acontecimento da cruz de modo passivo, ao sublinhar sobretudo a

exigência do sacrifício imposta ao Filho, com vontade inflexível, em ordem a obter uma reparação

pelos pecados da humanidade256. Pôs-se excessivamente o acento sobre a justiça punitiva, em vez

do amor e da misericórdia. Mas, lido a fundo, o dossier bíblico mostra claramente que não há

nenhuma passividade por parte do Pai; pelo contrario, o Novo Testamento considera a cruz desde a

unidade de amor do Pai e do Filho257: ao contrario do que sucedeu com Isaac, Deus não quis poupar

o seu próprio Filho, mas entrega-o por nós258, implicando-se desta maneira profundamente no

drama do Calvário. Ele, na primeira pessoa, assumiu o peso de salvar o homem de e desde a dura

cargo do pecado humano. Ele tomou esta carga com todas as suas consequências, mostrando assim

                                                                                                               253 O tema é bem conhecido e compreende, entre outros muitos, os nomes de G. Marcel, J. Pieper, R. Spaemann.

Também K. WOJTYLA, Persona y acción, Editorial Católica, Madrid 1982.

254 Enc. Redemptor Hominis, 4-III-1979, 10 [EV VI, 1194]. As encíclicas trinitárias de João Paulo II contêm um poderoso pensamento soteriológico e uma fina percepção da soteriología. Cfr. L. F. MATEO SECO, Cristo Redentor del hombre. Análisis de la cristología contenida en la teología trinitaria de Juan Pablo II, en AA. VV., Trinidad y Salvación, Eunsa, Pamplona 1990, 131-157.

255 Cfr. o dossier já clássico de SESBOÜE, Jesucristo, el único mediador, I, 59-97. «A cruz não é mais bem o signo de um Deus cruel, colérico, violento, que tem necessidade de um chibo expiatório e que sacrifica o seu próprio Filho como preço a pagar pela reconciliação?» W. KASPER, La Croce come rivelazione dell'amore di Dio, «Lateranum» 73 (2006) 420.

256 Cfr. J. GALOT, La paternité divine: révélation et engagement, «Gregorianum» 79 (1998) 708-709.

257 Não só o corpus joânico mantém invariavelmente essa perspectiva, mas também São Paulo mostra que concebe a cruz só desde esta unidade (cfr. Ga 2,20; Rm 5,8; 8,32). Cfr. K. ROMANIUK, L'amour du Pere et du Fils dans la soteriologie de saint Paul, Biblical Institute Press, Rome 1974.

258 Cfr. Rm 8,32.

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uma generosidade e uma amor mais alem de toda a medida. «Deus permite que a sua fidelidade lhe

custe o seu próprio Filho, a sua própria vida»259. O crucificado diz-nos que «este Deus

aparentemente débil é o Deus que perdoa sem medida, o Deus tanto mais forte quanto mais

impotente parece»260.

Entre as dimensões desse amor mais frequentemente sublinhadas no contexto contemporâneo

encontra-se a assunção do sofrimento. Na kenosis da cruz, eficazmente descrita no hino da carta aos

Filipenses, tem o seu ponto de chegada toda a teologia do Deus próximo, o Deus compassivo e

misericordioso, do «Pai dos órfãos» (Sl 68,6), que acompanha sempre ao homem na sua dor e no

seu sofrimento. Já se trate do livro de Job, das passagens do Deutero-Isaías, da historia de Jeremias

ou da impressionante teologia de Oseias, que configura a santidade de Deus como disponibilidade

ao perdão, Deus mostra sempre a sua indulgencia compassiva261. Em qualquer situação, incluída a

obscuridade e a noite do sofrimento, Deus permanece junto ao homem, sendo o auxiliador da vida,

o pai dos órfãos. Para Ele «toda a historia da salvação está compenetrada por esta pergunta

preocupada: «onde estás, meu povo?, onde estás homem? Volta para Mim!»262. É a inquietude que

se faz carne, que se faz acontecimento no Calvário. Deus, na sua procura do homem, não quis

permanecer ao abrigo dos males deste mundo, que só destroem o homem e as criaturas. Vinculou-se

com a nossa historia no Seu Filho e no Espírito Santo. Na noite escura noite da vil execução de

Jesus Cristo, o Deus Santo e Omnipotente, sem deixar de sê-lo, vinculou-se «com os humilhados e

os ofendidos, os pisados e explorados»263. Fazendo-se vítima desse sofrimento e abrindo-o à

esperança, respondeu de modo prático, à pergunta fundamental sobre o sofrimento inocente. A dor e

a morte não tem a última palavra, pois são o caminho da transfiguração e a ressurreição eterna.

Estas considerações apresentam o sofrimento da cruz como a máxima solidarização de Deus

com a historia de sofrimento da humanidade264. O crucificado é aqui, em modo excelente, o «Deus

                                                                                                               259 J. RATZINGER, Cerco il tuo volto, Dio. Meditazioni nel corso dell'anno liturgico, Edizioni paoline, Roma 1985,

22.

260 J. RATZINGER, La sal de la tierra. Cristianismo e Iglesia católica ante el nuevo milenio: una conversación con Peter Seewald, Palabra, Madrid 1997, 30.

261 Cfr. F. COURTH, Un Dios que sufre con el hombre. Sobre la identidad de la fe en Dios Trino, en J. MORALES MARÍN et al. (eds.), Cristo y el Dios de los cristianos. Hacia una comprensión actual de la teología, Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra, Pamplona 1998, 354-358.

262 Ibidem, 357.

263 Ibidem.

264 Cfr. BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 484.

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connosco» (Is 7,14), «varão de dores, experimentado no sofrimento» (Is 53,3), portador da imensa

caridade divina que procura o homem perdido, que se aproxima aos indigentes e aos despojados. «A

cruz —disse João Paulo II— é a inclinação mais profunda da Divindade ao homem e a tudo o que

homem —do modo especial nos momentos difíceis e dolorosos— chama o seu infeliz destino»265.

Evidencia-se assim o valor da solidariedade de Cristo com o nosso destino266, para compartir,

ajudar e sustentar, pois a isso leva o amor. A lei de Cristo, diz São Paulo, expressa-se no facto de

“fazer-se tudo para todos para ganhá-los a todos” e de “levar uns as cargas dos outros”267, como o

Cristo paciente levou as nossas. Deste modo a solidariedade do crucificado converte-se em via de

misericórdia divina, porque, ao saber-se pessoa amada, querida mais alem de todo o utilitarismo,

gera-se no homem uma potente força dirigida à conversão e ao amor. A salvação está,

efectivamente, ligada ao amor.

b. A Cruz como assunção do pecado no mundo

A categoria tomista de satisfação introduz no âmbito da pena e da carga pelo pecado humano. A

sua expressão mais importante deve-se a São Anselmo no seu Cur Deus Homo268. A sua

argumentação parte de honra de Deus que se reflecte na ordem do mundo. A ruptura deste ordem é

uma ofensa para o Criador. Mas posto que o homem é uma criatura preciosa aos Seus olhos, Deus

não o abandona à sua sorte e dá-lhe uma via de solução, que não consiste na pura misericórdia,

porque o Deus perfeito deve também manifestar a infinita justiça dos seus actos. Requer-se uma

reparação do homem que compense o dano cometido, mas o homem não é capaz de levá-la a cabo

—como poderá o homem dar algo a Deus e compensá-Lo, se tudo o que tem o recebeu d’Ele?—, e

por isso Deus mesmo envia o seu Filho a cumprir esta reparação. A entrega que Cristo faz da sua

vida é dom verdadeiro em nosso nome, já que por causa da sua santidade Cristo não estava

submetido à lei da morte. Repara, por tanto, com a sua morte a ofensa humana.

                                                                                                               265 JUAN PABLO II, Enc. Dives in Misericordia, 30-XI-1980, 8 [EV VII, 905]. E continua: «a cruz é como um

toque do amor eterno sobre as feridas mais dolorosas da existência terrena do homem».

266 Sobre a dimensão cristológica desta categoria cfr. SESBOÜE, Jesucristo, el único mediador, I, 127-131; 416-426; II, 313-315; KASPER, Jesús el Cristo, Salamanca, Sígueme 2002, 347-365; GALOT, Gesú liberatore, 284-292. Más en general, I. SANNA, La solidarietà. Aspetti teologici en Carità e politica, la dimensione politica della carità e la solidarietà nella politica, EDB, Bologna 1990, 207-221; L. BOISIO, Solidarietà en S. GAROFALO (a cura di), Dizionario del Concilio Ecumenico Vaticano II, UNEDI, Roma 1969, col. 1862-1864; R. COSTE, Solidarité en Dictionnaire di Spiritualité, XIV, Beauchesne, Paris 1990, 999-1006.

267 Cfr. 1Cor 9,19 y Ga 6,2.

268 S. ANSELMO, Cur Deus Homo [J. ALAMEDA (ed.), Obras Completas de San Anselmo, vol I, BAC, Madrid 1952, 739-891].

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Ainda que a novidade e a coerência com que o santo arcebispo apresentou a sua reflexão

garantiram ao Cur Deus Homo um posto privilegiado na teologia da redenção, a mudança de

parâmetros que introduziu o pensamento moderno tanto na cultura como na teologia, debilitou o

significado da sua proposta, originando o recente debate sobre o valor e os limites do mesmo269.

Objecto central das críticas é o risco de que, seguindo a orientação anselmiana, se incorra numa

apresentação incorrecta de Deus, que não seria o Deus da revelação cristã, «senão mais bem um

estereotipo mitológico de um Deus irado e ciumento que requereria uma reparação “segundo

justiça” inclusive à custa do sangue inocente do seu Filho»270. No entanto, não todos estão de

acordo: fazendo o status quaestionis dessa discussão, M. Serenthà constava em 1980 que o juízo

dos diversos autores oscilava «desde a rejeição radical até a defesa mais decisiva»271. Em todo o

caso, do debate podem-se deduzir algumas conclusões: que Anselmo entendeu a sua visão no

contexto da racionalidade da fé e tratou de der argumentos que servissem tanto as cristãos como a

pagãos272; que, com frequência, o que se critica é uma visão deformada e positivista do seu

pensamento genuíno273; que, indubitavelmente, este forja no contexto da sociedade medieval do seu

                                                                                                               269 Entre a bibliografia recente assinalamos: N. ALBANESI, Cur Deus Homo: la logica della redenzione. Studio

sulla teoria della soddisfazione di S. Anselmo arcivescovo di Canterbury, Pont. Univ. Gregoriana, Rome 2002; D.J. BILLY, Anselm of Canterbury's Meditatio Redemptionis Humanae, «Studia Moralia» 42 (2004) 391-410; D. DEME, The Christology of Anselm of Canterbury, Aldershot (UK) - Burlington (VT), Ashgate 2003; M. DENEKEN, Le salut per la croix dans la theologie catholique contemporaine: 1930-1985, Cerf, Paris 1988; A. DUCAY, Dios Padre en el Cur Deus Homo de San Anselmo, in AA.VV., El Dios y Padre de nuestro Señor Jesucristo, Eunsa, Pamplona 2000, 151-163; S.R. HOLMES, The Upholding of Beauty. A Reading of Anselm's Cur Deus Homo, «Scottish Journal of Theology» 54 (2001) 189-203; V. HUERTA, Libertad, pecado y redención en el pensamiento teológico de S. Anselmo, «Excerpta et Dissertationibus in Sacra Theologia» 23 (1993) 101-152; A. MILANO, Croce e Trinità: la questione storico-teologica ed il caso di sant'Anselmo di Aosta, «Ricerche Teologiche» 14 (2003) 273-317; R. NARDIN, Il Cur Deus Homo di Anselmo d'Aosta. Indagine storico-ermeneutica e orizzonte tri-prospettico di una cristologia, PUL, Roma 2002; A. OREZZO, Il “Cur Deus Homo” di S. Anselmo, «Rassegna di Teologia» 39 (1998) 889-898; M. SERENTHÀ, La discussione più recente sulla teoria anselmiana della soddisfazione- Attuale 'status quaestionis', «La Scuola Cattolica» 108 (1980) 344-393; N. VARISCO, Per una lettura del 'Cur Deus Homo' di Anselmo di Aosta, «Rivista di filosofia neo-scolastica» 90 (1998) 121-124.

270 BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 365. Cfr. A apresentação sucinta destas críticas em BABINI, Per un ripensamento, 694-702.

271 SERENTHÀ, La discussione recente, 345. Cfr. também G. BIFFI, Soddisfazione vicaria o espiazione solidale?, in Miscellanea Figini, Venegono 1964, 643-663.

272 Segundo a interpretação de M. Corbin (Lettre sur l'incarnation du Verbe. Pourquoi un Dieu-homme, en L'oeuvre d'Anselme de Cantorbéry, vol. III, Cerf, Paris 1988, 11-163) a preocupação de Anselmo é mostrar a identidade em Deus entre a justiça e a misericórdia, e pensar ambas de modo tal, que não possa conceber-se nada maior. Pouco a pouco, vai levando o seu interlocutor, Boson, a descobrir a profundidade desta harmonia divina, da que nasce o caminho da redenção, buscando facilitar a conversão de Boson diante da grandeza desse Deus.

273 «Santo Anselmo não é um homem de talante jurídico mas um contemplativo, que parte da realidade de Deus como amor e justiça, como vontade e inteligência cuja acção corresponde sempre às exigências objectivas. A acção divina nunca é arbitraria e menos violenta. A sua obra corresponde a razões de justeza, rectitude e justiça. O facto da encarnação e morte de Jesus correspondem a uma ordem de realidade. A acção de Jesus ajusta-se à ordem do ser. A redenção compassa-se às exigências da criação. A historia mede-se pela ordem do ser». GONZÁLEZ DE CARDEDAL, La soteriología contemporánea, 280-281.

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tempo274; que apresenta correctamente e com grande vigor intelectual a lógica do acto redentor, que

é restituição do mundo ao amor de Deus obrada “desde dentro” pelo dom da entrega do homem-

Deus. Com tudo, algumas dimensões fundamentais não estão recolhidas na sua proposta275:

concretamente, dá poço espaço ao carácter filial de Cristo, à ressurreição e à vida de Jesus, ao facto

de que foram os ímpios aqueles que condenaram o Senhor. Deste modo o argumento anselmiano

resulta pouco apto para apresentar a dimensão trinitária da cruz, o sentido global da vinda de Cristo,

e a dimensão histórica da salvação.

Ao desaparecer o ordo medieval e ao chegar o forte individualismo moderno, acentuaram-se os

aspectos jurídicos em perspectiva nominalista e chegou-se a pensar que na cruz de Cristo se lhe

imputavam externamente os pecados dos homens276, teoria que alcançou grande ressonância na

reforma. À diferença de Anselmo que relacionava a satisfação com o livre oferecimento da vida de

Jesus, Lutero entende a cruz como o lugar donde Jesus carga com os nosso pecados e sofre o ardor

da ira de Deus. Aqui não se trata do louvor e gloria que Cristo dá ao coração do Pai ao reparar o

pecado, mas ao facto de que o castigo de Deus não recai sobre os culpáveis mas sobre o único justo,

Jesus. O qual conduz a uma perspectiva necessariamente distinta, já que Lutero considera o

acontecimento desde o prisma de uma revelação que se realiza de modo dialéctico: Deus manifesta

a sua misericórdia realizando a sua ira277. O que tem lugar em Jesus é o juízo de Deus sobre o

pecado; por isso a sua morte á a manifestação da ira divina. Nesta posição reconhece-se a ortodoxia

protestante278; ainda que actualmente exista um forte debate no seu seio279. Smail expõe

sucintamente dois problemas: o estranho de dizer que Deus se aplaca a si mesmo; a dificuldade para

desterrar a ideia de que Deus há de ser persuadido ao perdão; a indicação de que Cristo foi                                                                                                                

274 W. Kasper assinala que a teoria se elabora no contexto da ordem feudal germânico da época, o qual baseava-se na relação de recíproca fidelidade entre senhor e vassalo: «o vassalo recebe do senhor feudo e protecção e, com isso, parte do poder público; o senhor recebe do vassalo a promessa de adesão e serviço. Portanto o reconhecimento da honra do senhor é a base da ordem, da paz, da liberdade e do direito». KASPER, Jesús el Cristo, 355-356.

275 «Ao reduzir toda a obra redentora à satisfação, a teoria padece de uma certa visão estreita, dado que pretende explicar e justificar a obra redentora só em função do pecado». M. PONCE CUÉLLAR, Cristo, siervo y Señor, EDICEP, Valencia 2007, 319-320.

276 Ibidem

277 Sobre estes aspectos resulta sempre útil W.L. VON LÖWENICH, Theologia crucis. Visione teologica di Lutero in una prospettiva ecumenica, Dehoniane, Bologna 1975. Também A.E. MCGRATH, Luther's Theology of the Cross. Martin Luther's Theological Breakthrough, B. Blackwell, New York 1985.

278 Foi também a posição de K. Barth: «em Jesus Cristo —diz— vemos o pecado, mas como pecado condenado. Ecce Homo: Olha o que é o homem! O inimigo de Deus, e por esta razão —quem poderá resistir-se a Deus?— esmagado pela cólera divina». Credo, Scribner, New York 1962, 90

279 Indicação sobre as diversas posições em I.H. MARSHALL, Aspects of the Atonement. Cross and Resurrection in the Reconciling of God and Humanity, Paternoster Press (London) - Colorado Springs (CO), Hyderabad 2007, 1-9.

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castigado em lugar dos pecadores. Quem sustem a substituição penal tende a dizer que não é tudo

exacto, e que se trata de más interpretações, mas, contudo, fica de pé o problema de se esta

linguagem não faça surgir inevitáveis equívocos. A questão de fundo parece ser: Jesus carga com o

juízo de Deus sobre o pecado o, simplesmente entra a fundo, até às últimas consequências, num

mundo onde domina o pecado?280.

No âmbito católico quem mais susteve a ideia de substituição foi H. U. Von Balthasar281. O

teólogo suíço retoma as ideias da reforma sobre o juízo de Deus que se cumpre em Cristo, mas

integra-as num quadro original, no qual a ira que se abate sobre Cristo para eliminar o pecado do

mundo, se corresponde com o amor kenotico inscrito na trindade das pessoas divinas. Através duma

concepção do amor como desapropriação e renuncia do próprio ser, como abandono e entrega ao

outro, Balthasar consegue apresentar a assunção por parte de Cristo de toda a culpa humana como

uma forma do amor absoluto282. Deus, quando quis levantar ao homem desde dentro, teve que pôr o

acento precisamente na pecaminosidade e caducidade do homem, na pobreza e tristeza da sua

distancia de Deus. Por isso Cristo, vindo ao mundo na nossa carne pecadora, toma sobre si o pecado

e sofre realmente aquilo que o pecador merece, è dizer, a separação de Deus, incluso a mais

completa e final separação que é inerente ao pecado: a obscuridade da morte eterna283. Mas esse

drama, centrado na substituição penal de Cristo, não é mais que acentuação na historia do amor

absoluto do Pai que se desprende do seu Filho e lhe permite percorrer esse caminho de abandono,

do Filho que se submete com total disponibilidade ao querer do Pai, do Espírito que mantém a

unidade das duas pessoas divinas na sua distancia e separação “económica”. De modo que Deus faz

sua a contradição inerente ao ser do homem na sua condição de pecado; fazendo-se homem afasta-

se de si mesmo, e nisto mostra o amor que ele mesmo é.

                                                                                                               280 T. SMAIL, Once and for All. A Confession of the Cross, London, DLT 1998, 80-99.

281 Cfr. H.U. VON BALTHASAR, Teodramática, 5 vols., Encuentro, Madrid 1990-1995. Numa direcção parecida, mas mais prometedora que a do teólogo suíço, cfr. N.P. HOFFMANN, Kreuz und Trinität. Zur Theologie der Sühne, Johannes-Verlag, Einsiedeln 1982. Uma comparação entre os dois autores em F.G. BRAMBILLA, Redenti nella sua croce. Soddisfazione vicaria o rappresentanza solidale?, em F.G. BRAMBILLA et al., La redenzione nella morte di Gesù, San Paolo, Cinisello Balsamo 2001, 15-83 (em particular: 50 ss.).

282 Cfr. G. REMY, La déréliction du Christ: terme d'une contradiction ou mystère de communion?, «Revue Thomiste» 98 (1998) 93.

283 Pergunta-se Von Balthasar: «não existe algo como um misterioso fazer-se cargo por parte de Cristo do pecado do mundo, que certamente não cometeu, mas cuja essência e efeitos Ele recebe e experimenta na sua hora —hora do Pai e ao mesmo tempo das trevas? Acaso não existe como uma identificação do Redentor com os seus irmãos, com os pecadores, de modo que Ele não queira já distinguir-se deles ante Deus, até ao ponto de atrair sobre si, como um pára-raios, o juízo de Deus sobre a realidade do anti-divino no mundo?». Gesù ci conosce? Noi conosciamo Gesù?, Morcelliana, Brescia 1981, 33.

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A esta visão mística de Deus, expressada em termos de abandono e de substituição penal, não

lhe faltaram críticas. Fundamenta-se mais na experiencia mística privada284 que na Escritura e na

tradição285. Força-se, talvez, a realidade do amor, com categorias que procedem da experiencia da

nossa condição caída, e que se aplicam a Deus para abrir n’Ele o espaço necessário ao drama da

salvação286. Serve-se duma visão da substituição penal de matriz luterana que não termina de

convencer. Como assinala Remy: «A contradição que afecta as relações trinitárias, como

consequência da encarnação numa carne de pecado, tem por lugar e sujeito a humanidade na qual o

Filho se despoja. Mas o pecado do qual fica revestido por este motivo, e que o afastaria de Deus, na

realidade não realiza tal função. Aproxima-o interiormente, posto que está marcado por uma

obediência que conduz o Filho à mais plena desapropriação de si mesmo»287. Mas então,

definitivamente, «o Cristo é estranho ao “não” do pecado, porque é o “sim” a Deus em pessoa»288.

Há sempre um elemento que impede identificar a Cristo com o pecado, já que quanto mais parece

concentrar o pecado em si mesmo, mais claro resulta que só a sua santidade e ausência de pecado

podem ser causa da destruição deste. Alem do mais, e ainda que Balthasar apresenta essa

substituição em sentido inclusivo289, como incorporação em Cristo, para evitar a posição de que o

homem não colabora na sua salvação, fica a impressão de que a liberdade e a historia humanas, são,

por assim dizer, sanadas desde o amor absoluto de Deus, sem uma substantiva intervenção

humana290.

                                                                                                               284 Refiro-me em particular a dependência da teologia de Balthasar das experiencias místicas de A. Von Speyr.

Cfr. H.U. VON BALTHASAR, Adrienne von Speyr e sa mission théologique, Paris - Montreal 1976.

285 Cfr. G. REMY, La substitution. Pertinentia ou non-pertinentia d'un concept théologique, «Revue Thomiste» 94 (1994) 585-596.

286 Ibidem, 585-587. «Numa palavra: o abandono pode servir de categoria comum a Cristo e ao pecador para permitir o mecanismo da substituição?» (p. 599). «A transposição da kénosis a nível intratrinitario, o jogo rigoroso da substituição no nível económico, não conduzem ao umbral de uma mitologização?» (p. 600)

287 IDEM, La déréliction, 82.

288 Ibidem.

289 Cfr. IDEM, La substitution, 559-600. Prácticamente todo el artículo se refiere al uso de esta noción en Von Balthasar.

290 M. SCHUMACHER, The Concept of Representation in the Theology of Hans Urs von Balthasar, in «Theological Studies», 60 (1999) 62-63. Nesta última página, afirma: «Balthasar insiste talvez demasiado unilateralmente numa solução ao problema desde cima. A dinâmica Criador–criatura dissolve-se no eterno drama entre o Pai e o Filho, com a obediência deste último que tende a substituir-se Ele mesmo à relação entre Deus e o homem mais que integrá-la em si».

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À diferença de Balthasar, a maioria dos teólogos católicos evitam introduzir uma dialéctica

intratrinitária, e fundam a obra da redenção sobre a unidade de amor entre o Pai e o Filho291, sem

sombras. Igualmente segue-se a perspectiva tradicional que não insiste na justiça vindicativa: a

caridade do Pai está presente em Cristo, como afirmava São Tomás292. Sublinha-se a prioridade da

dimensão descendente, da iniciativa e obra da Trindade, mas assinala-se também a dimensão

ascendente ao falar da conveniência de uma “reparação”. Esta categoria prefere-se à categoria

tradicional de “satisfação”, porque «é mais geral» e «inclui quanto de comum existe nos termos de

redenção, satisfação, mérito, sacrifício, caridade, libertação, expiação»293. É também um modo de

evitar a ideia de uma justiça comutativa, com a dificuldade que representa quando se trata de indicar

o papel activo do Pai. A reparação, em todo o caso, justifica-se desde o amor do Pai: «houve uma

exigência de reparação porque o Pai no seu amor queria a colaboração do homem na salvação e

queria conceder ao homem poder reparar. A redenção foi obra do Filho de Deus, porque o Pai quis

dar o seu próprio Filho: deste modo foi o primeiro em pagar o preço da reparação. Cristo morreu,

porque o Pai não duvidou em dá-lo em sacrifício em favor dos homens. Proporcionando Ele mesmo

a reparação que reclamava, o Pai deu maior gratuidade à obra da salvação»294. É Cristo, no entanto,

quem leva a cabo a obra, penal e dolorosa, de reparação pelos nossos pecados, a qual não tem para

ele propriamente carácter de “pena”295. Contudo, donde a reparação aparece como o objecto directo

da missão de Cristo, se deriva nos problemas de linguagem que assinalamos antes. Seja que Cristo

carregue com o juízo de Deus sobre o pecado o com a sua reparação, os equívocos sobre a imagem

de Deus e sobre a missão de Cristo são iminentes, como sinal de algo que não funciona. Falta, em

                                                                                                               291 Esta unidade aparece bem presente no final do Cur Deus Homo, mostrando assim a sua diversidade respeito à

apresentação luterana: «Em quanto à misericórdia de Deus, que parecia que ia perecer quando considerávamos a justiça de Deus e o pecado do homem, encontramo-la tão grande e tão conforme com a justiça, que não se pode pensar nem maior nem mais justa. Porque, o que é que se pode pensar de mais misericordioso que a um pecador condenado aos tormentos eternos e, sem ter com que redimir-se, Deus Pai lhe diga: “Recebe o meu Unigénito e oferece-O por ti”, e o Filho, a seu tempo: “Toma-Me e redime-te”? Isto vem a dizer-nos quando nos chamam à fé cristã e nos trazem a ela». S. ANSELMO, Cur Deus Homo, L II, c. XX, [IDEM, Obras Completas, vol I, BAC, Madrid 1952, p. 887].

292 Depois de responder afirmativamente à pergunta de se Deus entregou a Cristo à paixão, São Tomás pergunta-se na Summa Theologiae se essa acção não constitui um acto cruel por parte do Pai. «Não, —responde— porque foi o mesmo Pai a inspirar no Filho a vontade de padecer por nós». III pars, q. 47, a. 3, ad 1°.

293 A. AMATO, Gesù il Signore, Saggio di cristologia, Dehoniane, Bologna 1991, 430. Uma exposição amplia e actual dos conceitos citados em F. OCÁRIZ, L.F. MATEO SECO, J.A. RIESTRA, El misterio de Jesucristo, Eunsa, Pamplona 2004, 427-456.

294 GALOT, Gesù Liberatore, 275.

295 Assumir uma pena como reparação não é o mesmo que assumir o castigo devido pelo pecado, e não origina uma substituição no castigo. Não são conceitos equivalentes: «Ille proinde qui, sine ullo debito, poenam peccati assumit ex mera pro reo charitate, dici sane potest aliquo modo punire pro alio, nam patitur materialiter poenam alii debitam, sed tamen illa poena non habet pro illo rationem poenae» P. GALTIER, De Incarnatione et Redemptione, Beauchesne, Parisiis 1926, 398.

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efeito, a mediação do contacto de Cristo com o mundo deteriorado; o facto de que a missão de

Cristo consiste em introduzir a realidade divina até ao fundo de um mundo no qual domina o

pecado, para purificá-lo e dar-lhe uma via de saída. «O mandamento do Pai consiste nisto: que o

Filho volte ao Pai com o mundo por cuja salvação Ele saiu do Pai em missão»296. O pro nobis da

salvação é a via que leva a cumprir o pro Patre. O seu entrar no mundo até à mais extrema injustiça

para reconstruí-lo desde dentro, desde a sua humanidade inocente e justa, é a matéria dessa

reparação ao amor do Pai, e só constitui uma grata reparação em tanto em quanto é formalmente

abnegada e completa reconstrução da humanidade caída no pecado.

c. A cruz como doação sacrificial

A categoria de sacrifício (a terceira que São Tomás considera na quaestio que nos está a servir

de guia) situa-se num horizonte semelhante ao da satisfação, ainda que ambos conceitos mantêm

entre si significativas diferenças. Na teologia recente aplicou-se também ao sacrifício a perspectiva

descendente. Já notamos, ao falar dos estudos bíblicos, o facto de que toda a acção sacrificial de

Israel fica enquadrada na iniciativa divina de salvação. O mesmo é preciso dizer agora quando se

trata do sacrifício de Cristo: a iniciativa pertence ao Pai. «Paradoxalmente —diz Sesboüe— já que o

sacrifício é de por si uma categoria ascendente, enquanto que o sacrifício de Jesus se vive segundo

um movimento descendente que o impulsa a aceitar a sua morte na cruz para a salvação da multidão

dos seus irmãos. A obediência de Jesus ao Pai, que podemos considerar justamente como um

aspecto central do seu sacrifício, inscreve-se no hino de Filipenses 2 como o ponto extremo do seu

abaixamento (v.8). Se quer chegar até ao fundo deste paradoxo, há que dizer que o sacrifício de

Jesus é antes de tudo e sobretudo um sacrifício que Deus faz ao homem, antes de e a fim de poder

ser um sacrifício que o homem faz a Deus»297.

Trata-se, também aqui, de evitar uma visão de sacrifício «como um transfert libertador em base

ao qual a humanidade pecadora se desfazer-se-ia das suas culpas lançando-as sobre a vítima

designada por Deus, que seria justiçada em nosso lugar (substituição penal) para satisfazer a sede

divina de justiça»298. Por este motivo, a teologia católica, superando estéreis debates sobre a

conveniência ou não do uso deste conceito299, tendeu a sublinhar cada vez mais o facto de que a

                                                                                                               296 M. SCHUMACHER, Concept of Representation, 69.

297 SESBOÜE, Jesucristo, el único mediador, II, 233. Cfr. también en este sentido B. HILBERATH, TH. SCHNEIDER, Sacrificio, en AA.VV, Enciclopedia Teologica, Queriniana, Brescia 1989, 924-932.

298 BORDONI, Gesù di Nazaret. Presenza, 376.

299 Corresponde ao exegeta ou ao teólogo iluminar o significado da linguagem sacrificial, e explicá-lo em modo acessível a cada cultura. Não tem, no entanto, a liberdade de recusá-lo ou substitui-lo por outro. Basta a leitura directa

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redenção sacrificial é fruto e manifestação de uma iniciativa de amor por parte de Deus, que se

oferece Ele mesmo totalmente no seu Filho, e põe assim uma exigência de perfeita resposta. A

dinâmica da caridade guia a compreensão do sacrifício, cujo verdadeiro núcleo não é outro que

remover internamente o obstáculo que o pecado representa para que o amor de Deus possa

encontrar lugar na criatura300. Três perspectivas diferentes confluem nesta direcção:

a) Seguindo os estudos da teologia bíblica, alguns teólogos puseram de manifesto a relação

particular do sacrifício com o dom pessoal301. No contexto da Aliança e da justiça salvífica de Deus,

o conceito de sacrifício aproxima-se do de dom, e fica livre de uma visão prevalentemente jurídica.

No marco do pensamento bíblico, a acção salvadora de Deus não contempla principalmente o

passado como um tempo de pecado e de infidelidade; remete mais bem à fidelidade e misericórdia

de um Deus, que por encima do pecado e do juízo divino transitório, conduz a historia a uma meta

de graça; projecta-se igualmente a um futuro que deve cumprir-se segundo a intenção originaria

divina. Também o sacrifício de Cristo se integra neste horizonte de cumprimento escatológico302.

Alem do mais, a paixão de Jesus culmina a tendência, perfeitamente distinguível no Antigo

Testamento, a uma transfiguração e espiritualização do sacrifício303; que, mais alem dos aspectos

rituais e cruentos, privilegia os actos interiores de obediência e de amor. Por isso, nas suas fórmulas

de “entrega”, São Paulo pode resumir a teologia do sacrifício de Cristo no dom de si304 e São João

                                                                                                               do Nove Testamento para dar-se conta de que esta linguagem não é mais uma entre muitas (algo opcional como sustem I.U. DALFERTH, Christ Died for Us, en S.W. SYKES, Sacrifice, 302); tampouco é de todo certo que na nossa cultura «o conceito de sacrifício se tenha convertido em algo extensamente equivoco e ininteligível, por falta de um referente no âmbito das nossas experiencias» (H. KÜNG, Essere cristiani, Mondadori, Milano 1976, 481); nem é suficiente o accesso a esta categoría desde a antropología cultural para discernir rectamente o seu sentido bíblico (R. GIRARD, Des choses cachées depuis la fondation du monde, B. Grasset, Paris 1978). Propostas como a de M. Deneken (Le salut per la croix dans la theologie catholique contemporaine: 1930-1985, Cerf, Paris 1988, 332) de abandonar a linguagem sacrificial, sao pouco uteis e construtivas.

300 BORDONI, Gesù di Nazaret. Presenza, 376-377.

301 Um quadro da reflexão recente sobre o sacrifício de Cristo em âmbito católico é oferecido por BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 503-511.

302 Esta dimensão escatológica mostra-se na novidade radical do sacerdócio de Cristo respeito ao do Antigo Testamento. Há uma dupla “inversão de tendência”, assinalada por A. Vanhoye: no Antigo Testamento a posição do Sumo Sacerdote era ambicionada, Cristo, no entanto, obtém-na por via do abaixamento e da morte. Alem do mais, a função do sacerdote fundava-se na separação dos demais: era elevado, “assumido entre os homens”. No entanto, Cristo entra no mundo com uma solidariedade que o assemelha em tudo aos seus irmãos. Jesus vem de Deus e, abaixando-se, faz-se um de nós: destas características participará também o seu sacrifício. Cfr. A. VANHOYE, Sacerdotes antiguos, sacerdote nuevo según el Nuevo Testamento, Sigueme, Salamanca 1984, 84-102.

303 Cfr. o dossier relativo in BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 103-109.

304 Os textos nos quais se indica que: Deus deu o seu Filho por todos nós (Rm 8,32); Cristo entregou-se pelos nossos pecados (Ga 1,4), pela Igreja (Ef 5,25), por nós (Ef 5,2), por mim (Gal 2,20). «Trata-se de uma atitude interior que não se deve entender como desencarnada da realidade histórica da cruz, mas que é como a alma anterior que dá vida a todo o acontecimento, qualificando-o, por um lado, em referencia ao Pai, como acto de amor-obediencia através

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pode apresentá-lo como o grande signo de amor de Deus ao mundo305. Para o quarto evangelista, é

precisamente o amor do Pai pela humanidade o que leva a Jesus a entregar-se como vítima de

redenção: «Jesus abriu-se com imensa gratuidade à potente corrente de amor que vinha do Pai, e

que lhe fazia capaz de transformar a sua morte, infligida pelos pecadores com a maior injustiça e

crueldade, em dom de amor e em fonte de graça»306. Esta completa abertura de Jesus ao amor do

Pai e dos homens levou Schürmann a formular a categoria de “proexistência”, com a que quer

indicar o pro aliis da existência de Cristo307.

b) Uma segunda consideração trata de mostrar que acção de remover o pecado através do

sacrifício constitui uma dimensão interna ao amor de Deus pelos homens308. Ao eleger-nos e

predestinar-nos no seu Filho amado, Deus ligou a nossa liberdade (falível) à liberdade santa do seu

Filho, de modo que o espaço da nossa resposta positiva ou negativa a Deus tenha lugar no âmbito

do amor do Par, sempre disponível no seu Filho a sacrifício por nós. «O mistério de Judas —diz Le

Guillou— consiste nisto: em que estando situado no coração do sacrifício de Jesus, que continua a

envolvê-lo com o seu amor, não obstante, vai “ao posto que lhe correspondia” (Act 1,25) como

“filho da perdição” (Jo 17,12) [...] Com isso, contribui à consumação sacrificial do amor

salvador»309. Posto que esta lógica pode aplicar-se a todo o pecado, conclui-se que o sacrifício é a

forma que adopta o amor de Deus ante a rebelião humana: «quanto mais o homem orienta a sua

liberdade contra o desígnio de adopção daquele a quem a deve, mais sacrificial vem a ser este

desígnio. O “até ao fim” em favor dos homens, ao qual Cristo quis chegar na sua páscoa, é o ponto

limite que coincide, sem poder anulá-lo, com a rejeição extrema por parte da liberdade humana»310.

De modo que a relação entre pecado e amor constitui a linguagem persuasiva de Deus para com os

                                                                                                               do qual Jesus regressa a Ele (exaltação: Flp 2,9-11; Ef 4,8-10) e, por outro, em referencia a nós». BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 113.

305 São João, mais que São Paulo, conduz o acontecimento da cruz à categoria de ágape, expressamente formulada no texto de 1 Jo 4,8-10, mas sobretudo no conjunto da sua visão. Cfr. A. FEUILLET, Le mystère de l'amour divin dans la théologie johannique, Gabalda, Paris 1972.

306 A. VANHOYE, Dio ha tanto amato il mondo. Lectio sul sacrificio di Cristo, Paoline editoriale libri, Milano 2003, 127.

307 O exegeta alemão explica-a assim: «Em Jesus de Nazaré parece sair ao nosso encontro uma pessoa que, em lugar do coração egoísta dos homens, dispõem dum “espaço livre”; espaço livre desde o qual corre um amor radical a Deus e ao próximo. Mas isto é assim porque, através desse espaço livre, flui o amor de Deus ao mundo». SCHÜRMANN, ¿Cómo entendió?, 148.

308 Mostra-o com particular eficácia M-J. Le Guillou no seu livro sobre El misterio del Padre, já citado.

309 M-J. LE GUILLOU, Misterio del Padre, 89.

310 Ibidem.

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pecadores; desde essa linguagem o homem entende que o sacrifício é parte do amor generoso e

desinteressado de Deus, que se deixa pôr em estado de “xeque” e ainda de “xeque-mate”, para

facilitar a rendição, e, em definitiva, a conversão do coração; para poder saná-lo desde a sua

interioridade, sem manipular em modo algum a liberdade humana. Longe de ser fruto da justiça

vindicativa de um Deus afrontado, o sacrifício expressa a fidelidade de Deus à graça da adopção

filial311.

c) Desde estas perspectivas é possível considerar também o sacrifício como manifestação do

Amor absoluto de Deus, com faz Bordini312. Porque se o Pai se nos entrega no Unigénito amado; se

o Filho se dá a si mesmo por nós até à morte, e por esse dom das duas primeiras Pessoas a historia

se enche com a fecundidade do Espírito, então é precisamente essa entrega de Cristo a que introduz

na historia o amor tripessoal de Deus. É como se Deus concentrasse num único acto o seu

oferecimento radical de amor e de vida aos pecadores e inimigos. Também aqui, como na visão de

Le Guillou, o sofrimento de Cristo é devido ao contacto de amor com a condição decadente da

humanidade: «na medida em que a acção de Amor absoluto penetra no mundo da criação, gera um

drama que alcança, na paixão da cruz y na forma de luta (tentação), a relação do Filho encarnado

com o Pai»313. Posto que Cristo assumiu a condição humana passível e mortal não poderá deixar de

experimentar a resistência que essa condição põe ao cumprimento da vontade do Pai314, nem poderá

substrair-se a rebeldia obstinada daqueles que preferem viver no pecado. Em definitiva, a entrada

do amor de Dês, que é generosidade e proexistência absoluta, não deixará de gerar um conflito

neste mundo auto-suficiente. «Para que se possa expressar radicalmente uma nova experiencia de

amor, é necessário romper o círculo egoísta que o domina (N. do R.: ao ser humano) para que se

abra, no dom, a ser inteiramente e totalmente para os demais»315. O sofrimento da cruz dá conta

                                                                                                               311 Ibidem, 112.

312 BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 511-521.

313 Ibidem, 517.

314 Tradicionalmente susteve-se que Cristo (e o mesmo deve-se dizer de Maria, sua Mãe) possuíram uma humanidade santa e justa desde o primeiro instante da sua concepção. Não tiveram uma inclinação desordenada a si mesmos. No entanto, por possuir uma humanidade passível e mortal como a nossa, sofreram as penalidades desta vida, incluso num modo mais dramático pela maior delicadeza e perfeição do seu espírito. Também para eles as exigências do amor de Deus foram custosas, ainda que tenham sido aceitadas voluntariamente e com gozo. É preciso constatar que o tema não recebeu grande atenção na teologia recente. Algumas indicações em T.G. WEINANDY, In the Likeness of Sinful Flesh. An Essay on the Humanity of Christ, T. & T. Clark, Edinburgh 1993. Útil também a monografia de P. GONDREAU, The Passions of Christ's Soul in the Theology of St. Thomas Aquinas, Aschendorff, Münster 2002, sobre a visão de Santo Tomas.

315 BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 517.

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deste conflito, no qual a morte obediente e abnegada de Cristo introduz no mundo a forma do amor

de Deus, e abre o caminho a uma existência renovada «segundo o ser trinitário de Deus»316.

d. Redenção, libertação e pecado

Esta nova condição da humanidade, habilitada pela obra de Cristo a superar os males presentes

e alcançar uma felicidade plena e imperecível, expressam-se na soteriologia com a linguagem da

redenção. A ideia indica, alem do mais, o aspecto oneroso desta obra, pois Jesus teve que derramar

o seu sangue para redimir-nos. Alem do mais, o Antigo Testamento une com frequência a ideia de

redenção com a de resgate317, e igualmente o Novo considera às vezes o sangue de Cristo como o

“preço do resgate”318. Tudo isto pode dar a impressão de que o resgate da humanidade exigia um

pago, uma transacção ou compensação requerida por Deus (ou pelo diabo319), que se levaria a cabo

mediante a morte de Cristo. Com o desejo de ressaltar o papel da Trindade na obra de Cristo, e para

evitar estas interpretações, alguns teólogos destacaram os limites desta metáfora do preço na mesma

Escritura. Ao dizer que Cristo veio a «dar a sua vida em resgate por todos» (Mc 10,45) indica-se a

situação de escravidão do género humano, junto com o facto de que Jesus quis “pagar com a sua

pessoa”: que não hesitou em “pôr-se a preço” e que o resgate “lhe custou caro”320. Fala-se da

generosidade de um amor que não se detém ante a morte, e ao mesmo tempo, do grande valor que

Cristo atribui a todos aqueles pelos que dá a vida. Isto é o substancial do ensinamento bíblico, e por

isso não se trata de prolongar a metáfora considerando a quem se pagou esse preço. Uma pergunta

deste tipo «sai dos limites da pertinência da metáfora»321, que não pretende definir a essência da

obra salvadora, mas oferecer uma analogia num determinado âmbito e validez. Em realidade, o

preço é pago por Deus no seu Filho, ainda que na articulação eterna da metáfora, que distingue a

acção económica das pessoas divinas, percebe-se que Jesus oferece a sua vida ao Pai pelos nosso

                                                                                                               316 Ibidem, 518.

317 Uma exposição sobre a redenção no Antigo Testamento com bibliografia adequada em G. IAMMARRONE, Redenzione. La liberazione dell'uomo nel cristianesimo e nelle religioni universali, San Paolo, Cinisello Balsamo 1995, 66-101.

318 Cfr. Mt 27,9; 1Cor 6,20;7,23; 1Pe 1,18.

319 É bem conhecido que na antiguidade se chegou a pensar que esse preço servia para compensar o direito que o diabo tinha adquirido sobre os pecadores. Cfr. L. RICHARD, The mystery of Redemption, Helicon, Baltimore – Dublin 1965, 149-156.

320 SESBOUE, Jesucristo, el único mediador, I, 164; O’COLLINS, Jesus Our Redimer, 120-121.

321 Ibidem, 165.

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pecados, e, neste sentido, por meio da filiação de Cristo, esse preço é também algo entregado ao

Pai.

Maior importância teve a questão relativa à escravidão do homem; a pergunta sobre o objecto

desse resgate. No contexto moderno de pensamento antropocêntrico e pragmático, este pergunta

tende a formular-se no presente: de que devemos ser libertados?, e a resolver-se na acção histórica

dirigida a combater a desumanização. A soteriologia recente tratou de aproximar-se a estas

instancias principalmente em três direcções —emancipação, justiça, libertação político-social322—,

ainda que às vezes se tenha deixado seduzir por projectos de salvação meramente mundanos.

a) Nos seus últimos escritos Dietrich Bonhoeffer formulou com lucidez a pergunta decisiva.

Como conjugar o processo do mundo que se fez adulto e busca a sua autonomia, com a fé em

Cristo? Rejeitando posições extremas de um ou outro signo, Bonhoeffer declarava-se partidário

duma “interpretação secular” da fé323. Para o efeito via necessária uma nova compreensão dos

conceitos fundamentais do cristão (Deus, Cristo, Igreja, fiel cristão, etc.) capaz de mudar “o rosto”

de Deus. Abandonar o “Deus da religião” —esse Ser omnipotente que oprime o homem e que não

pode deixar de entrar em conflito com a sua autonomia— e aderir-se ao Deus de Jesus Cristo324: um

Deus que concede espaço ao homem, diz Bonhoeffer.

A reflexão do teólogo luterano pode considerar-se paradigmática de toda a corrente que

entende a libertação fundamentalmente como processo de emancipação. Desde esta perspectiva o

evangelho coincide com uma plena e radical humanização, que foi entendida por alguns —por

exemplo H. Küng— como sujeição às instancias modernas de liberdade e solidariedade, e rejeição

de todo tradicionalismo, dogmatismo e biblicismo encaminhados a submeter ao homem a um

controlo alheio a si mesmo325. Nesta ordem de ideias, Küng criticou a redenção entendida como

divinização, entre outros motivos, porque «o nosso problema não é tanto a divinização do homem

quanto a sua humanização»326. Nestas propostas, nas quais a mentalidade moderna tende a modelar

                                                                                                               322 Aqui só poderemos limitar-nos a uma brevíssima alusão.

323 Cfr. D. BONHOEFFER, Cartas 30.IV.1944; 5.V.1944, citado por GIBELLINI, La teologia del XX secolo, 124.

324 Cfr. R. GIBELLINI, La teologia del XX secolo, o. c., pp. 124-126.

325 Cfr. KÜNG, Essere cristiani, 26.

326 Ibidem, 501. Numa linha semelhante moveram-se outros autores como J.I. González Faus. Cfr. La humanidad nueva. Ensayo de cristología, Sal Terrae, Santander 1984. Sobre a teologia desta obra, cfr. la crítica de J.L. ILLANES, La nueva humanidad. Análisis de un ensayo cristológico, «Burgense» 22 (1981) 265-304 (e a resposta do autor em apêndice da edição d livro que citámos) y J.A. MATEO GARCÍA, La cristologia de J.I. González Faus. Alcances y límites de un ensayo cristológico, PUG, Romae 1998.

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os principais dados da fé, denunciaram-se os riscos de uma substituição da mediação da Igreja pela

cultura327, do exílio da fé na subjectividade328 e duma dissolução da graça de Cristo na boa intenção

humana. É inegável de que se tratam de major problems.

b) Na direcção da justiça foi sobretudo a “teologia política”, com o seu empenho por dar vida a

uma praxis cristã de transformação da sociedade. A acusação de uma suposta ineficácia do

cristianismo à hora de forjar uma sociedade mais justa, levou a repropor o problema da felicidade

humana, identificada no problema da dor, da historia de sofrimento e de uma possível justiça329. J.

B. Metz buscou fundamentar um discurso prático330, capaz de comunicar sentido às vítimas da

humanidade, esquecidas —na sua opinião— por uma soteriologia excessivamente preocupada pela

redenção dos culpáveis331. Se se condenam ao esquecimento as vítimas, diz Metz, corre-se o risco

de contar só uma historia de vitórias332. Mas essa historia mantém tudo igual, não impregna o

mundo com o espírito cristão nem transforma a realidade. Por isso, é necessário cultivar a denúncia

crítica, bem presente na tradição bíblica, e pôr de manifesto os rasgos da figura de Cristo que, como

bom samaritano, mostram a sua compaixão pelo sofrimento e a sua sensibilidade para com a

indigência humana333. A memoria da páscoa de Jesus, cultivada pela Igreja, há de ser, antes de tudo,

memoria dos últimos, daqueles que ninguém recorda, para que a historia de Cristo sofredor e a sua

                                                                                                               327 Esta foi uma das criticas mais comuns do pensamento de Hans Küng, e uma das que levou à declaração da

Congregação para a Doutrina da Fé do ano 1979 sobre os Erros na doutrina teológica do professor H. Küng [EV 6, 1942-1951].

328 Cfr. R. BEAUD, Hans Küng, problèmes posés, «Revue Thomiste» 81 (1981) 91-103.

329 Nesta linha moveu-se boa parte da teologia do evangélico J. Moltmann, decidido a elaborar uma teologia fundada na categoria de esperança (J. MOLTMANN, Teologia della speranza. Ricerche sui fondamenti e sulle implicazioni di una escatologia cristiana, Queriniana, Brescia 1970), e dirigida a promover a presença libertador do reino de Deus no mundo.

330 Aqui Metz com a escola de Frankfurt e, em particular, com M. Horkheimer. Cfr. J.J. SÁNCHEZ BERNAL, Teología política y teología de la liberación. Un discurso crítico-liberador sobre Dios, in AA.VV., El Dios de la teología de la liberación, Secretariado Trinitario, Salamanca 1986, 101.

331 Cfr. J.B. METZ, Memoria Passionis. Un ricordo provocatorio nella società pluralista, Queriniana, Brescia 2009, 72-80.

332 «A teologia cristã, em nome da vitória de Cristo, não purificou e limpou minuciosamente a historia de todas as contradições um pouco velozmente? [...] e deste modo não se reagiu ante as catástrofes com a apatia dos vitoriosos?». J.B. METZ, Auschwitz: termine locale irrinunciabile di un discorso cristiano su Dio, en BENEDETTO XVI, Dove era Dio? Il discorso di Auschwitz (con contributi di A.A. Cohen, W. Bartoszewsky, J.B. Metz), Queriniana, Brescia 2007, 57.

333 «O primeiro olhar de Jesus não se dirigiu ao pecado dos outros, mas à dor dos outros. Para ele, a recusa de participar na dor do outro, a recusa de pensar mais alem do escuro horizonte da própria historia de sofrimento não representava só secundariamente o pecado [...]. Quem reconhece a Deus no sentido de Jesus, tem em conta que através da desgraça do próximo pode ser necessário lesionar o próprio interesse, como insinua a parábola do Bom Samaritano». METZ, Memoria Passionis, 153.

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solidariedade com as vítimas seja fonte de uma compaixão que devolva a cada homem a sua

dignidade de sujeito diante de Deus. Metz toca aqui um ponto interessante, mas é preciso advertir

que essa “memoria dos últimos” não se pode limitar à consideração sociológica, mas deverá buscar

o seu objecto desde a fé numa salvação transcendente.

c) Por último, a “teologia da libertação”334 tratou de fazer valer a força da Boa Nova da

libertação do homem por Cristo, num mundo donde reinam a opressão e a morte335. Desde uma

situação sócio-cultural no qual o problema fundamental não é a crise ou o eclipse de Deus, próprio

das sociedades ocidentais, mas a opressão das massas empobrecidas do continente

(latinoamericano)336, esta teologia situa-se na linha da moderna critica da religião, segundo a qual, o

Deus sofredor cristão não é o Deus libertador do povo, mas aquele que legitimiza a sua dor e

conforta na sua resignação. Para obviar este inconveniente, relia-se a figura de Cristo à luz do

anuncio eficaz do amor libertador de Deus e da sua oposição à exploração e à miséria dos pobres;

no entanto, a polarização sobre estes aspectos conduziu alguns a uma politização radical das

afirmações da fé. Ao promover a efectiva libertação social com a mediação da analise marxista,

instaurava-se uma perigosa comunhão (e confusão) entre marxismo e fé cristã. Teve que intervir a

Congregação para a Doutrina da Fé, para apontar o recto sentido da libertação cristã337. Nos seus

documentos rejeitava a orientação de algumas propostas na direcção de um messianismo temporal,

que tendia a identificar a figura do Redentor com o homem comprometido com a luta em favor dos

oprimidos338, o pobre da Escritura com o proletário marxista, e a opor uma igreja popular à Igreja

hierárquica segundo uma dialéctica de classe339.

O debate sobre estes aspectos costuma incluir questões de método. Posto que a exigência de

uma vida mais plena e humana forma parte da soteriologia cristã, faz-se necessário determinar qual

é a fonte e o critério dessa plenitude e humanidade; se se deve entender desde a figura de Cristo ou

                                                                                                               334 Surge na década de 60 e manifesta-se com claridade na II Conferencia Episcopal Latinoamericana (Medellin

1968) e com a publicação do livro Teología de la Liberación de Gustavo Gutiérrez em 1971 (vers. española: Sígueme, Salamanca 1972).

335 Cfr. G. IAMMARRONE, Redenzione, 237.

336 Cfr. SÁNCHEZ BERNAL, Teología política, 112. De aí também a diferença de acento e de método respeito à teologia política. As preocupações desta última situam-se em relação à crise religiosa do mundo industrializado.

337 CONGREGACIÓN PARA LA DOCTRINA DE LA FE, Instrucción Libertatis Nuntius, 6-VIII-1984 [EV IX, 866-987]; IDEM, Instrucción Libertatis Conscientia, 22-III-1986 [EV X, nn. 292-335].

338 Cfr. CONGREGACIÓN PARA LA DOCTRINA DE LA FE, Instrucción Libertatis Nuntius, 6-VIII-1984, X, 11 [EV IX, 963].

339 Ibidem, IX, 10-13 [EV IX, 949-952].

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desde as aspirações e situação humanas. Trata-se, em definitiva, de considerar a relação entre a

cristologia e a antropologia desde a instancia soteriológica340. Segundo a Gaudium et Spes, a

prioridade epistemológica é da cristologia, pois a manifestação do mistério do homem e da sua

sublime vocação acontece na revelação do mistério do Pai e do seu amor, o que constitui

propriamente a obra de Cristo. É dizer, que Deus «enquanto destina o homem à eterna comunhão

com Ele, fá-lo ao mesmo tempo vislumbrar algo da sua essência íntima, da sua grandeza e

dignidade, do sentido da existência humana»341. Precisamente através da acção salvadora, o homem

pode entender em unidade a nobreza da sua destinação ao amor de Deus e a sua condição

pecadora342. Por isso, a manifestação da plenitude humana só se pode dar na fé, na conversão e na

Igreja que é “lugar” da memoria Christi. O análise das legitimas aspirações humanas e da acção

para melhorar o mundo deverá realizar-se desde a abertura à revelação do mistério do homem em

Jesus Cristo.

Dada esta prioridade da cristologia, o aspecto central desta libertação não pode senão referir-se

à libertação do pecado, e por tanto à recriação no interior do homem de uma nova liberdade, que

São Paulo chama «liberdade gloriosa dos filhos de Deus» (Rm 8,21). A libertação consiste,

essencialmente, em ser desligados do próprio egoísmo por influxo da potencia salvadora do

Ressuscitado343. J. B. Metz ressaltou justamente como o homem moderno tenda a atribuir-se êxitos

e vitórias, enquanto descarga sobre diversos automatismos (biológicos, sociológicos, estruturais) os

seus fracassos e derrotas344, bloqueando assim a novidade libertadora de Cristo. O cristianismo

notou sempre o engano que se esconde nisto; considerou o homem “imputável” precisamente

porque o considerou livre, superior aos automatismos da natureza. Só quem é livre e responsável

pode ser realmente culpável e, ao mesmo tempo, só o que é capaz de reconhecer a sua culpa pode

suster ante Deus um dialogo sincero e ser sujeito de verdadeira comunhão345. No marco da Aliança,

                                                                                                               340 O tema foi tratado em vários documentos do Magistério (Gaudium et Spes, Redemptor Hominis, etc.) e em

numerosos trabalhos. Entre eles assinalamos: Señalamos entre ellos: COMISIÓN TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Teología, Cristología, Antropología, [IDEM, Documentos: 1969-1996, 243-264]; M. BORDONI, Cristologia e antropología en Gesù di Nazaret, I, 186-229; P. O'CALLAGHAN, Cristo revela el hombre al propio hombre, «Scripta Theologica» 41 (2009) 85-111.

341 O'CALLAGHAN, Cristo revela, 98.

342 Ibidem, 98-99.

343 «A redenção consiste em que a potencia criadora de Deus transforma o nosso ser por amor» R. GUARDINI, El Señor, II, Rialp, Madrid 1954, 193-194.

344 Memoria Passionis, 167.

345 Cfr. ibidem

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de um Deus que se interessa profundamente pelo homem ao ponto de adoptá-lo filialmente, esse

“estar” do homem ante Deus, com a sua grandeza e a sua miséria, a sua culpa e o seu pecado, não

podem ser relegadas346. A salvação cristã tem sempre carácter de redenção, implica o perdão dos

pecados e introduz numa nova relação com Deus. Sem dúvida, este aspecto “vertical” da redenção

não substitui nem exime a procura de uma salvação “integral”; mas só desde aqui a soteriologia

pode aproximar-se do âmbito das relações humanas e da relação homem-mundo, sem comprometer

os desejos de uma justa emancipação e libertação social347.

e. A Ressurreição, assunção do mundo à comunhão trinitária

Na quaestio que citámos ao inicio desta secção, São Tomás aplica à paixão de Cristo a

causalidade eficiente instrumental348. A teologia contemporânea acentua particularmente a unidade

entre cruz e ressurreição349 e tenda a pensar a Páscoa como um único mistério através do qual Deus

nos salva. A intrínseca unidade justifica-se porque a fidelidade ao Pai manifestada na cruz reclama

a salvação definitiva da ressurreição, e vice-versa: esta pressupõem a morte, mas não de qualquer

tipo, mas de tal modo que possa traduzir-se numa plena e perfeita acolhida por parte do Pai350. Cruz

e ressurreição vem assim a ser, na perspectiva soteriológica, como as duas caras de uma mesma

moeda. A carne aniquilada pelo pecado e a carne recreada pela potencia de Deus, compõem a

passagem da caducidade do mundo pecador à perenidade do mundo de Deus, de modo que este

segundo se apresenta como a obra que Deus realiza quando o pecado deixa de ser uma

possibilidade, porque ficou definitivamente confinado no passado351 e se dá plena abertura ao

                                                                                                               346 Cfr. JUAN PABLO II, Exh. Ap. Reconciliatio et Poenitentia, 2-X-1984, 7 [EV IX, 1094-1095].

347 Cfr. Y.M. CONGAR, Un popolo messianico, Queriniana, Brescia 1983, p. 145-154.

348 Cfr. Summa Theologica, III pars, q. 48, a. 6, c.

349 «A teologia contemporânea começou a aprofundar o mistério pascal estudando principalmente a relação entre morte e ressurreição. Estes dois mistérios da vida de Cristo apresentam-se hoje tão entrelaçados, que se pode dizer que constituem “dois momentos” de um “processo salvífico unitário”, dois momentos correlativos de um único acontecimento». PORRO, Sviluppi recenti, 391.

350 «Jesus morreu a morte pelos pecados dos homens, e eliminou esses pecados com o seu morrer na cruz. E esta morte na ressurreição de Jesus Cristo revelou-se como vida, cumpriu-se na vida. O morrer da cruz desvelou-se como vida de Deus e por Deus». H. SCHLIER, La Risurrezione di Gesù Cristo, Morcelliana, Brescia 1973. p. 52.

351 No seu livro Memoria e Identidade (Esfera de los libros, Madrid 2005) João Paulo II sublinhou a ideia de que «a Redenção é o limite divino imposto ao mal [...], nela o mal é vencido radicalmente pelo bem, o ódio pelo amor, a morte pela ressurreição» (p. 36).

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amor352. Neste sentido, a ressurreição é uma segunda criação (ainda que sobre o pressuposto da

primeira) e é escatológica, é dizer, não admite superação.

Em Jesus ressuscitado manifesta-se com evidencia que nem a morte, nem as outras realidades a

ela associadas tem já domínio sobre Cristo (Rm 6,8). Ficaram aniquiladas na cruz e já não podem

ameaçar o corpo de Cristo, em cuja espiritualização se reflexa a impassibilidade e a imortalidade de

Deus. O ressuscitado é a imagem vivente da realidade que a culpa humana foi cancelada e ficou

confinada num passado que não pode progredir. É por tanto o símbolo e a encarnação do eterno

presente de Deus, que não admite miséria, desagregação nem caducidade353. Desde esta perspectiva,

a ressurreição coroa tudo quanto se disse sobre a cruz. A solidariedade do sofrimento que Deus

instaurou com o homem converte-se, por este novo acto do amor de Deus que é a ressurreição, em

perene comunhão na felicidade plena; o despojamento e a humilhação que foram meio para expiar o

pecado dão passo ao novo mundo reconciliado e elevado a comunhão com Deus; o dom de si

mesmo e a entrega proexistente realizadas uma única vez e localizadas na historia, abrem a via a

uma superior entrega de si, que não encontra limites nem no espaço nem no tempo. Pela

ressurreição de Cristo o mundo e a historia vivem sob o signo da graça, participam da vida nova

presente no Ressuscitado em ordem à salvação354.

Essa participação conduz à dimensão trinitária da ressurreição: «na gloria da ressurreição e da

elevação à direita do Pai, o filho leva consigo mesmo a criação redimida e aberta à perfeita

comunhão do amor trinitário»355. Em particular, a imanência eterna do Pai e do Filho participa-se

em plenitude na carne assumida, constituindo a humanidade gloriosa do Salvador em “lugar” desde

o qual essa recíproca presença se derrama sobre o mundo356. «A ressurreição confere um alcance

                                                                                                               352 Sublinhar a relação entre ressurreição e amor é a tentativa de fundo de G. O'COLLINS, Gesu risorto.

Un'indagine biblica, storica e teologica sulla risurrezione di Cristo, Queriniana, Brescia 1989. João Paulo II expressa com profundidade este aspecto na encíclica dedicada à misericórdia: «No cumprimento escatológico, a misericórdia revelar-se-á como amor, enquanto que na temporalidade, na historia do homem —que é ao mesmo tempo historia de pecado e de morte— o amor deve revelar-se ante tudo como misericórdia e actuar-se em quanto tal». Enc. Dives in Misericordia, 30-XI-1980, 8 [EV VII, 905].

353 Sobretudo W. Pannenberg insistiu sobre estas perspectivas: «A ressurreição do crucificado é a autorevelação de Deus» (Rivelazione come storia, Dehoniane, Bologna 1969, 183). O seu influxo no âmbito católico foi notável, sobretudo com a sua apresentação da ressurreição de Cristo como antecipação (prolepsis) do futuro final para o qual caminha a historia.

354 «Cristo ressuscitado inaugura a redenção, porque a sua presença é nos oferecida e pode ser acolhida, sobretudo na comunhão eclesial...». M. FLICK, Z. ALSZEGHY, Il mistero della Croce, Queriniana Brescia 1978, 227.

355 BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 518.

356 Cfr. Jn 17,21. A habitação trinitária no baptizado é uma participação desta imanência divina em Cristo glorioso.

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universal à mensagem de Cristo, à sua acção e a toda a sua missão»357, o que leva a valorar o

aspecto pneumatológico da presença e acção do Ressuscitado, porque tanto a oferta de salvação

como o encontro e a adesão a Cristo são fruto do Espírito do Ressuscitado358. O dom pascoal do

Espírito concreta a abertura dinâmica da comunhão divina ao mundo humano, de modo que o

mistério pascoal compreende necessariamente o envio de Pentecostes359; em virtude deste «Cristo

vivo se constitui em fonte de vida para os seus e, através deles, para o mundo inteiro»360.

Posto que a terceira pessoa é a via de comunicação desta vida nova, essa comunicação é, à sua

vez, o nosso lugar principal de conhecimento do Espírito.

III. Observações conclusivas

Concluímos com três observações gerais:

1. Como o resto da teologia, também a soteriologia se funda sobre a historia de Cristo, sobre o

sentido que Jesus deu à sua vida e à sua páscoa e sobre a compreensão que a primeira comunidade

cristã, seguindo a Jesus e assistida pelo Espírito, teve da relevância salvadora desse acontecimento

originário. Por tanto, é importante que o teólogo sistemático tenha um bom conhecimento das

principais linhas de desenvolvimento da soteriologia do Novo Testamento e possa estruturar à luz

dessas linhas o dado rico e plural da tradição eclesial e da historia teológica. Alem do mais, o

aprofundamento crítico na Sagrada Escritura revela-se insubstituível para elaborar uma soteriologia

que responda aos parâmetros de verdade próprios da nossa época361. Dever-se-á afiançar ou

alcançar uma imagem razoavelmente consistente da génese e evolução da soteriologia

                                                                                                               357 JUAN PABLO II, Enc. Redemptoris Missio, 7-XII-1990, 16 [EV XII, 581].

358 Na terceira pessoa trinitária «a vida íntima de Deus um e trino faz-se inteiramente dom (...) [O Espírito] é amor e dom [incriado] do qual deriva como de uma fonte (fons vivus) toda doação às criaturas (dom criado): a doação da existência a todas as coisas mediante a criação; a doação da graça aos homens mediante toda a economia da salvação». João Paulo II, Enc. Dominum et Vivificantem, 18-V-1986, 10 [EV X, 472-473].

359 «O mistério pascal è por excelência o lugar em que essa perfeita comunhão se difunde e se revela no Espírito». BORDONI, Gesù di Nazaret, III, 519.

360 J.-M. PERRIN, Il est ressuscité pour moi. La résurrection du Christ, G. Beauchesne, Paris 1969, 61.

361 «A questão da revelação, tal como se propôs no âmbito do iluminismo, não vai à procura de uma instancia autoritária, que cala os problemas críticos e o próprio juízo, a não ser como uma manifestação da realidade divina, que dê mostras de sê-lo ante uma madura compreensão do homem». W. PANNENBERG, Stellungnahme zur Diskussion, en J.B. COBB, J.M. ROBINSON (ed.), Theologie als Geschichte, Zwingli, Zürich - Stuttgart 1967, 294.

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neotestamentaria , que possa servir —não como critério único, mas dentro da hermenêutica da fé da

Igreja— como critério normativo da construção sistemática.

2. A mediação salvadora de Cristo, como tema teológico, mostram algumas oscilações que não

facilitam um discurso soteriológico coerente362. Na minha opinião a soteriologia deve continuar o

caminho empreendido recentemente para enfatizar a prioridade da dimensão descendente, mas sem

unilateralidades. O melhor modo de fazer isto é dar a devida importância ao carácter

intrinsecamente filial da mediação de Cristo, centro que permite conectar: a pessoa com a sua

expressão humana363, a ontologia com a Dinâmica histórica364, os aspectos descendentes e os

ascendentes365, a revelação trinitária como a acção salvadora366. A soteriologia clássica, com os

seus inegáveis méritos, talvez tenha sido insuficiente desde este ponto de vista.

3. A soteriologia perde o caminho quando se alça sobre o drama, já seja sobre o drama entre

Deus e o homem, como nalguns modelos clássicos, ou entre o Pai e o Filho, como nalguns modelos

recentes. O importante na obra salvadora não é o drama mas a assunção: o facto de que Deus

“retoma” o mundo (chega-se a ele e fá-lo seu de modo novo, humano) e o leva à sua conclusão em

Jesus Cristo. O drama determina só a forma, o modo de assumir o mundo. O amor de Deus pelo

mundo é pré-condição de todo o seu projecto, que esse amor passa através da cruz é a determinação

própria do drama. Não se pode fundar uma soteriologia sobre uma determinação contingente, mas,

também para essa determinação, o critério último está no que funda o projecto e constitui a sua

premissa absoluta. O mesmo amor e o mesmo empenho (de Deus Pai, em primeiro lugar, em quanto

fons et origo totius trinitatis367) que testemunha a criação, se realiza na historia salvífica pré-cristã e

logo, de um modo novo (fazendo-o seu até ao contacto extremo com a injustiça), na vida e na

páscoa de Jesus, na qual esse mundo alcança a sua consumação definitiva. Desde este ponto de vista

a obra redentora configura-se como um “encarrilar”, uma “re-assunção” ou uma “reimplantação” do

                                                                                                               362 Foram expostas na secção II, II

363 A filiação eterna adquire conotação humana com a encarnação.

364 A pessoa encarnada do Filho de Deus vive a sua historia desde uma perspectiva filial: a consciência da sua relação com o Pai, do seu ser enviado pelo Pai em favor nosso, etc.

365 Pois a filiação apresenta em unidade duas dimensões: uma icónica (Jesus encarna o rosto paterno de Deus) e outra responsorial (Jesus encarna a resposta perfeita ao amor do Pai).

366 Porque a filiação de Cristo é ao mesmo tempo a via de revelação do mistério trinitário e o principio de renovação que introduz no mundo o mistério pascal.

367 CONCILIO VI DE TOLEDO, 9-I-638 [Dz-Sch 490]. Cfr. S. BASILIO DE CESAREA, Contra Sabellianos et Arium et Anomaeos, 4 [CPG 2869].

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mundo no amor de Deus, que tem lugar mediante o empenho, a entrega e o dom de sí de Jesus, que

são sacramento da intimidade trinitária e meio de eterna aliança.

ABSTRACT

O trabalho pretende introduzir os seus leitores no âmbito da contemporânea teologia da

redenção. Para o efeito examina os principais temas e centros de interesse que ocuparam a

reflexão soteriológica. A primeira secção dedica-se a soteriologia bíblica e trata de delinear a

figura do Salvador que emerge nas propostas recentes. A segunda secção ocupa-se dos

conteúdos teológicos: os temas e debates que concentraram a atenção dos teólogos, sobretudo

em relação com o mistério pascal, colmem da obra salvadora de Jesus Cristo. Valora-se

positivamente o caminho da soteriologia recente, e conclui-se com algumas sugestões dirigidas

a uma melhor integração das novas instancias na doutrina soteriológica comum.

This article offers an introduction to contemporary theology of redemption. With this aim it

examines the main issues and areas of interest lately discussed in soteriological reflection. The

first section, devoted to biblical soteriology, tries to delineate the figure of Jesus Savior as it

emerges in recent approaches. The second section deals with theological content: issues and

debates that have focused the attention of theologians are scrutinized, with especial attention to

the paschal mystery, the culmination of the saving work of Christ. The author appreciates the

recent path of soteriology and gives some suggestions for a better incorporation of the new

instances into the common soteriological doctrine.