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A FARSA DE INÊS PEREIRA Roteiro Original: Gil Vicente Adaptação / Versão: André Gonçalves dos Santos PERSONAGENS: Inês Pereira: Principal personagem da peça. Moça bonita, solteira, pequena-burguesa. Seu cotidiano é enfadonho: passa os dias bordando, fiando, costurando. Sonha casar-se, vendo no casamento uma libertação dos trabalhos domésticos. Despreza o casamento com um homem simples, preferindo um marido de comportamento refinado. Idealiza-o como um fino cavalheiro que soubesse cantar e dançar. Contraria as recomendações maternas rejeitando Pero Marques e casando-se com Brás da Mata, frustra-se com a experiência e aprende que a vida pode ser boa ao lado de um humilde camponês. Inês deixa-se levar pelas aparências e ridiculariza Pero Marques depedindo- o de sua casa para receber Brás da Mata. Casa-se com ele, mas sua vida torna-se uma prisão, ela não pode sair e é constantemente vigiada por um moço. Inês sofre e chega a desejar a morte do marido. Ele morre covardemente na guerra e Inês casa-se com Pero Marques. Ele satisfaz todos os seus desejos e chega até a carregá-la nas costas para um encontro com um amante (sem saber, porém, que era para isso). Pero Marques: Camponês simples, não conhece os costumes das pessoas da cidade. É uma personagem ambígüa, ao mesmo tempo que é ridicularizado pela ingenuidade, é valorizado pela integridade de caráter. Fiel e dedicado, revela se um gentil e carinhoso marido. É tão simples que não sabe para que serve uma cadeira. É teimoso como um asno e diz que não se casará até que Inês o aceite um dia. Brás da Mata: Interesseiro e dissimulado é a representação da esperteza das classes superiores. É um nobre empobrecido que não perde o orgulho e pretende aproveitar-se economicamente de Inês através do dote. Brás da Mata é um escudeiro, isto é, homem das armas que auxiliava os cavaleiros fidalgos. Na mudança do feudalismo para o capitalismo, a maioria permaneceu numa condição subalterna, procurando imitar a aristocracia. Mãe: É a típica dona de casa pequeno-burguesa e provinciana. Preocupada com a educação e o futuro da filha em idade de casar. Dá conselhos prudentes, inspirada por uma sabedoria popular imemorial. Chega a ser comovente em sua singela ternura pela filha, a quem presenteia com uma casa por ocasião das núpcias. Lianor Vaz: É o esterótipo da comadre casamenteira que sabe seu ofício e dele se desincumbe com desenvoltura. Sabe valorizar seu produto com argumentos práticos de quem tem a experiência e o senso das coisas da vida: Latão e Vidal: 1

Farsa de Ines

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A farsa de Ines uma peça teatral adaptada

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Page 1: Farsa de Ines

A FARSA DE INÊS PEREIRARoteiro Original: Gil VicenteAdaptação / Versão: André Gonçalves dos Santos

PERSONAGENS:

Inês Pereira: Principal personagem da peça. Moça bonita, solteira, pequena-burguesa. Seu cotidiano é enfadonho: passa os dias bordando, fiando, costurando. Sonha casar-se, vendo no casamento uma libertação dos trabalhos domésticos. Despreza o casamento com um homem simples, preferindo um marido de comportamento refinado. Idealiza-o como um fino cavalheiro que soubesse cantar e dançar. Contraria as recomendações maternas rejeitando Pero Marques e casando-se com Brás da Mata, frustra-se com a experiência e aprende que a vida pode ser boa ao lado de um humilde camponês.

Inês deixa-se levar pelas aparências e ridiculariza Pero Marques depedindo-o de sua casa para receber Brás da Mata. Casa-se com ele, mas sua vida torna-se uma prisão, ela não pode sair e é constantemente vigiada por um moço. Inês sofre e chega a desejar a morte do marido.

Ele morre covardemente na guerra e Inês casa-se com Pero Marques. Ele satisfaz todos os seus desejos e chega até a carregá-la nas costas para um encontro com um amante (sem saber, porém, que era para isso).

Pero Marques: Camponês simples, não conhece os costumes das pessoas da cidade. É uma personagem ambígüa, ao mesmo tempo que é ridicularizado pela ingenuidade, é valorizado pela integridade de caráter. Fiel e dedicado, revela se um gentil e carinhoso marido. É tão simples que não sabe para que serve uma cadeira. É teimoso como um asno e diz que não se casará até que Inês o aceite um dia.

Brás da Mata: Interesseiro e dissimulado é a representação da esperteza das classes superiores. É um nobre empobrecido que não perde o orgulho e pretende aproveitar-se economicamente de Inês através do dote. Brás da Mata é um escudeiro, isto é, homem das armas que auxiliava os cavaleiros fidalgos. Na mudança do feudalismo para o capitalismo, a maioria permaneceu numa condição subalterna, procurando imitar a aristocracia.

Mãe: É a típica dona de casa pequeno-burguesa e provinciana. Preocupada com a educação e o futuro da filha em idade de casar. Dá conselhos prudentes, inspirada por uma sabedoria popular imemorial. Chega a ser comovente em sua singela ternura pela filha, a quem presenteia com uma casa por ocasião das núpcias.

Lianor Vaz: É o esterótipo da comadre casamenteira que sabe seu ofício e dele se desincumbe com desenvoltura. Sabe valorizar seu produto com argumentos práticos de quem tem a experiência e o senso das coisas da vida:

Latão e Vidal: Os judeus casamenteiros são muito parecidos, têm as mesmas características, na verdade são o mesmo repartido em dois. São a caricatura do judeu hábil no comércio. Faladores, insinuantes, humildes, serviçais e maliciosos, são o estereótipo de que a literatura às vezes se serviu, como, por exemplo, no caso desta peça de Gil Vicente.

Moço: Pobre coitado, explorado por um amo infame. Humilde, deixa-se explorar e acredita ingenuamente nas promessas do Escudeiro. Cumpre sua obrigação sem ver recompensa, mas é capaz de, em suas queixas, insinuar as farpas com que cutuca o mau patrão.

Ermitão: É um falso monge que veste o hábito para conseguir realizar seu propósito de possuir Inês.

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Inês é filha de uma mulher simplória. Muito fantasiosa, finge que trabalha em casa. Sua mãe foi à missa. A jovem entra cantando esta cantiga:

Inês (canta): Vida de Inês é difícil... É difícil ser Inês...

Inês: (fala) Não quero trabalhar Nem curto quem o inventou! Dou de presente pro demo De tão chato é que realizar! Meu Jesus! Que sofrimento, E que raiva, e que encheção de... Coitada, assim vou ficar Acabada nesta casa Como... como... uma panela sem asas Que não pode sair do lugar! Vou ficar presa para sempre Nas tarefas que me rodeiam?

Já tenho a vida... cansada De ficar sempre na mesma. Todos estão numa boa, e eu... não; Todas meninas da minha idade vêm e... vão Onde querem, e eu não posso. Desgraça! Que pecado eu cometi? Sou eu uma braçadeira ou maçaneta Ou sou um cachorro de madame Que não pode passar da porta para fora? E quando posso, um dia sequer Olhar pela janela, Sinto-me mais que uma Maria Madalena Quando viu o Cristo... ressuscitado.

Vem a mãe da igreja, e não achando-na trabalhando, diz: Mãe: Ah! Logo eu imaginei Na igreja onde eu rezava, Como a minha Inês... da casa cuidava A fácil tarefa que deixei... Menina! Anda rápido com isso! Ué! Nasceu-te alguma unha encravada? Inês: Rogo a Deus que algum milagre Tire-me do cativeiro.

Mãe: Você se mostra tão... feliz! O que está acontecendo?

Inês: Bem... É que não existe mais motivo De eu ficar para titia. Já tenho 13 anos!

Mãe: Mas como quer um marido Com essa fama de preguiçosa?

Inês: Mas eu, mamãe, sou esperta e ativa E você... é muito lenta, calma.

Mãe: Espera, vamos ver!

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Inês: Já conheço o fim do seu filme!

Mãe: Olha o respeito! Não se esqueça Que “o tempo de Deus é diferente do tempo dos homens”. Quando menos esperar, Virão maridos aos montes E filhos como conseqüência.

Inês: Não vejo a hora! Fico melhor falando disso melhor do que uma vassoura na mão. Não nasci para isso...

Mãe: Ali vem Lianor Vaz.

Inês: E ela vem se... benzendo...!

Entra Lianor Vaz, com um leque nas mãos aliviando seu colo... E se benzendo!

Lianor: Meu Jesus! Me salve do pecado! Mãe: Lianor Vaz, o que se passa?

Lianor: Olhem! Estou... pálida?

Mãe: Mais vermelha que um morango maduro!

Lianor: Deus meu, Jesus meu, o que farei? Pobre de mim, Nunca passei tamanha... vergonha!

Mãe: Como é? O que de tão ruim aconteceu?

Lianor: Ruim? Ruim é pouco! Eu vou lhes dizer:

Vinha agora pelo beco da rua detrás Como costumo fazer, E um frade, amiga, Por Deus, que vergonha, entrou na minha frente. Não pude me defender. Diz que queria saber, imaginem, Como era por baixo do meu vestido! Queria levantá-lo!

Mãe: Ai! Seria algum rapaz Que brincava por prazer?

Lianor: Rapaz? Rapaz em... excesso, seria! Era um senhor rapaz! Braços grandes... pernas grossas... Eu vinha feliz, inocente, Fiquei tão... excitada, digo, assustada. Quando ele chegou bem... ai... perto de mim, Que senti aquele... calor, houve uma... luta de interesses, ai: – Deus deixa passar, não é mal! – É... não é... É mal, sim! – Ninguém está vendo... Um pouquinho! – Sou mulher direita, não! Deus meu! Homem! Que tem você, servo de Deus?

– Irmã, vou mostrar o gostinho do prazer... Não sabe como é bom! – Que caminho...? Isso é... pecado! Dispenso... Eu não... quero! Vá embora... Quando viu que não ia ter o que ele queria,

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Foi e rasgou um pedaço do meu vestido, olha!

Mãe: Oh! Um futuro homem de Deus, fazendo uma coisa dessas! Esse mundo está perdido! O futuro será de que? Ninguém é de ninguém?!

Lianor: Eu fiquei... desconcertada... com... aquilo! Não sabia o que... fazer... Ele, olhando para mim... Deu-me uma vontade de gargalhar, E, de repente, o jovem... sumiu! E eu ainda me lembro Das coisas que me dizia: Chamava-me: “luz do dia” Mas logo o diabo me deu Cócegas e vontade de rir, E paralisou-me para fugir, Mas fraca para não... vencer. Porém, tive... sorte, E ninguém pra me... socorrer...

Ai! O Diabo, e não pode ser... outro Parece ter tomado conta do corpo do noviço!

Mãe: Céus, Lianor! Conhecia o frade?

Lianor: Não! Mas... queria conhecer, viu?! Mãe: Meu senhor!

Lianor: Eu vou reclamar ao Cardeal, Vou me confessar E contar o acontecido Isso não ficará assim, não! Preciso saber... onde anda o jovem...!

Mas, de que adianta? E mais, por que faria isso? Se, no meio da cruzada Veio um homem em sua mula Ao vê-lo, estava no... Paraíso!

Mas, para ser sincera, Ai... Estava cansada. Nada valia orar, Nem adiantava gritar: – “Reinaldo Gianecchini Salva-me do pecado!” Porque em mim daria uma... vontade de... tentar pecar!

Lianor Fica quieta, Lianor Vaz,(sozinha): Que Deus te faça uma Santa. Um nó dê nessa garganta!

O que podia eu, fraca, fazer? Sou senhora de respeito, casada! Mãe: Devia ter dado uma lição, um tapa

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Lianor: Como? Seria excomungada!

Não dei um jeito, Porque sou tão... religiosa e... inocente Sentimento de nobres... Que calor! E isso encerra meu... infeliz episódio! Deixemos isso! Eu venho Tratar de outros assuntos.

Inês está prometida Para casar-se com alguém?

Mãe: Que nada! Até agora com ninguém Lianor: Em nome de Santo Antonio, Eu tenho a ela um matrimônio. Inês: Mas, para quando, Senhora?

Lianor: Já tenho cá uma resposta.

Inês: Sim! Mas não hei de casar Senão com um homem esperto Ainda que pobre e pelado Que assim eu tenho imaginado.

Lianor: Sim! Eu trago um bom marido, Rico, honrado, influente Disse que, mesmo vocês sendo pobres, a quer.

Inês: Primeiro, quero saber do individuo Se burro, se sabido.

Lianor: Nesta carta, que aqui vem Para você, filha, de estimas, Verão vocês, queridas, O jeito que ele tem.

Inês: Por Deus, mostre a carta! Quero ler!

Lianor: Aqui. Mas, você sabe ler?

Mãe: Com toda a certeza de Deus! Inês sabe latim, E gramática, e contar até o infinito Inês Pereira lê a carta, a qual assim diz:

Inês: “Senhora Inês Pereira, amiga minha, Pero Marques, vosso amigo, Venho a dizer nestas linhas, Digo desde agora que podes contar comigo E mais o digo, Digo que a abençoe, Deus, Que a fez de tão fino jeito; Bom prazer e bom proveito E sem nenhum defeito

E de mim também assim,

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Ainda que eu a vi, pobre de mim, Com outro dia de pesar, Porque não quisestes dançar Nem cantar diante a mim...” Senhora Lianor Vaz, este é... ele?

Lianor: Menina! Leia a carta sem parar, Uma bela surpresa poderá ter.

Inês: “... Nem cantar diante a mim. Só Deus sabe a raiva Que me deixara no meu sofrido coração. Ora, Inês, que aconteça uma benção De seu pai e minha, Que aconteça assim a conclusão. E rogo a você como amiga. Que permita, sem hesitar, Que nos falemos em particular. Antes que outros a sua mão peça, E, se gostar de mim aconteça, Esteja sua estimada mãe na presença, A senhora Lianor Vaz de presente Veremos se a Senhora, amiga Inês, está contente E queira a minha pessoa ter ao seu lado para sempre” .

Inês senta-se na cadeira, assustada. Lianor Vaz e sua mãe vão até ela.

Inês: Desde que nasci até agora Nunca vi um rapaz como este, Tão... sem-jeito, desastrado, Nem no Oeste, nem ao Leste!

Lianor: Não queira ser tão exigente. Casa, filha, nem pense, Não perca a oportunidade. Quer casar com muita escolha No tempo em que vivemos, Inês? Melhor casar a contragosto, Aproveita que apareceu um bom esposo. O bom é estar casada. A vida de uma mulher é essa. Mãe: Por Deus, amiga, mas é assim mesmo! “Mata o cavalo de sela E bom é o asno que me leva.” Lianor: Devo avisá-lo que venha, Inês?

Inês pensa...

Inês: Pois sim! Que venha e veja a mim. Quero ver quando me vir, Se vai perder o entender, a consciência Logo chegando aqui, Para me fazer rir.

Mãe: Terá que se preparar bem para recebê-lo, caso venha, Pois para o futuro casamento o encontro atenda.

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Inês: Hum... Não sei, mas cá estou eu o imaginando... Sabe, mãe, que eu sou uma profetisa? Sinto no chão que a gente pisa... As ferraduras em seus pés, o cheiro de esterco em sua camisa. Aparece Pero Marques.

Pero: Não sei onde mora aqui... Imagino tanto que esqueço de mim! Esta porta é a sua. Já conheço que é aqui.

Chega Pero Marques onde elas estão, e diz, tremendo:

Pero: Desculpem a mim pela imensa... demora. Eu escrevi... de onde vim Uma bela cartinha... Mãe: Tenha calma e sente-se aquela cadeira.

Pero: Que bichinha formosa essa cadeira!

Inês (sozinha): Jesus meu! Que paspalhão?! Todo desalinhado, Nervoso e cansado.

Assentou-se abraçando a cadeira e de costas para elas, e diz:

Pero: Eu acho... Eu acho que não estou bem...

Mãe: Qual o seu nome, meu jovem?

Pero: Sou Pero Marques, a sua benção, Como meu pai, que Deus tenha ao seu lado. Faleceu o coitado. E sou eu seu herdeiro. E isso é o meu... maór gadu.

Mãe: Gado?! De quanto gado está você falando?

Pero: Mas gado eu tenho muito, E o maior de todo o gado, Digo... maior algum tanto. E-eu desejo ser... casado, Quisera o nosso Espírito Santo, Com Inês, que eu me espanto Quem me fez ser pretendente. Parece moça de porte e de bem, Não será de agrado melhor alguém, Estão assustadas pelo que estou vendo. Notem que eu trago comigo Uma Pêra de presente Aguarde um momento, minha Inês.

Inês: Que grande coisa há de me oferecer...

Pero Marques vai retirando uma série de coisas do seu capuz...

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Pero: Deixo as cordas no chão.

Inês: Três chocalhos e um novelo, E as... pêras... Mas onde as pêras... foram parar?

Pero: Nunca tal mal me aconteceu! Alguém a elas comeu...! Porque as duas, deixei aqui

Mas a ferradura não se perdeu. Pois trazia as pêras...

Inês: Fresco vinha o presente, Que cheirinho... agradável!

Pero: Elas vinham metidas Aqui, bem no fundo, no mais... quente. Sua mãe... foi-se? Bem... Ela nos deixou a sós, aqui? Nossa! Preciso sair correndo daqui,

E não diga a ninguém que fiz a ti algo ruim...

Inês: E você, o que há de fazer, Nem ninguém há o que dizer

(sozinha) Ó galante atrevido... Que bobalhão! Ai de mim!

Como enganado ele deve estar! Dá até pena! Dá vontade até de chorar Suas pretendentes ficaram sem vontade de casar, Pero: Sua mãe não voltará?

Inês: Ela volta...

Pero: Muito bem senhora, devo partir Antes que caia a noite. Virá aqui a senhora Lianor Vaz, Veremos o que vai você responder...

Inês: Como você é insistente! Não sei se quero, se me interessa. Deveria procurar uma noiva... em outro continente!

Pero: Muito bem! Não incomodarei mais, Ainda que te seja de repente. Prometo com outra não casar Até que a senhora não me queira mais.

Pero sai, dizendo:(a si mesmo) É! Assim são as mulheres! Anda um homem a gastar sapato Apressa-se a usar uma linguagem agradável, Subitamente... zombam de nós! Essas mulheres!

(Para Inês): Eu vou a outra cidade, daqui afastada!

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Senhora, assim ficamos?

Inês: Olha se não se esqueceu... de nada...

Pero: Ainda não tem uma vela acesa?

Suponhamos que alguém Venha como eu vim agora, E acha você sozinha, nesta hora Parece que é certo? Fica, minha senhora, com Deus: Tranca bem a porta Segurando a sua velhinha E quem sabe você será pra sempre minha: Então, espero que logo nos veremos...

Pero Marques vai embora e diz Inês Pereira:

Inês: Velhinha?! Mal conhece o diminutivo das palavras!

Que pessoa eu conheço Agiria de outro modo...? Casaria com um tolinho, Aparecesse outro homem, agora, E diante de mim na hora, Estando, assim, às escuras, Falaria a mim mil doçuras, Ainda que mais...

Vem a mãe, dizendo:

Mãe: Pero Marques já foi embora?

Inês: E porque ficaria mais aqui?

Mãe: Não te agradou?

Inês: Que suma de uma vez! Pode ser homem mal feito, Feio, pobre... sem descrição, Que saiba tocar viola, Mesmo que eu passe de água e pão. Saiba, ao menos, uma cantiga de escola! Sendo de bom coração, Porque é isso o que me importa.

Mãe: Então sempre você vai dançar, E sempre ele vai musicar? Se não tiver o que comer, A música vai sua barriga sustentar?

Inês: “Cada um vive a sua maneira”. Diria algum sabichão! Como disse, tendo com pedaço de pão E na outra mão, um copo de água fria, Posso dar cabo de cada dia.

Mãe: Como isso queimam minhas orelhas! E quem são esses cavalheiros que ali vêm?

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Inês: Eu falei ontem Que passaram por aqui Os Judeus casamenteiros Aqui aparecem os Judeus casamenteiros, chamados: Latão e Vidal. Um deles, Latão, diz:

Latão: Ô de casa!

Inês: Quem é?

Vidal: Em nome de Deus, aqui nós dois estamos!

Latão: Não sabem o quanto andamos.

Vidal: Passamos por tempos difíceis. Ele e eu.

Latão: Eu, e ele... Vidal: Pela lama e pelo pó Que era de dar dó, Com chuva, sol e seca das bravas. Foi de tal maneira, Tal fritura e tal canseira, Passei por... uma... caganeira! Para a senhora ver O que nos pediu.

Latão: O que nos pediu Será como deve ser. Procuramos muito!

Vidal: E logo conseguimos...

Latão: Cale-se!

Vidal: Não quer que eu diga? Não sou eu também seu... parceiro?

Latão: Eu também não tava com você? Você e eu não somos... eu? Você judeu e eu... judeu, Não somos unha da mesma carne?

Vidal: Sim, somos.

Latão: Deixa eu falar!

Vidal: Certo! Senhora, passaram três dias....

Latão: Mas fala você ou eu falo? Diz logo o que tem que dizer: Que foi, que fomos, que foram Buscá-lo, conhecê-lo melhor Vidal: Você, menina, quer um marido Discreto, e de... viola, isso?

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Latão: Esta moça não é... boba, Porque quer casar com bom-senso... Vidal: Judeu, quer me deixar falar?

Latão: Claro! Não quero... falar.

Vidal: Fomos atrás dele...

Latão: Foi difícil! Creio que a nossa vontade Um dia congelará o fogo do Inferno.

Digo quando devo... calar. Calo a mim agora ou não? Ou falo, antes levantando a mão?

Inês: Deus! Jesus e todos os Santos! Não falará nenhum de vocês? Haja paciência! Nessas horas, esqueço os modos!

Mãe: Que educação... Nem parece minha filha!

Inês: Diz o exemplo da velha: “o que não quer comer deixe para outros mexer”.

Mãe: Deus meu! Não sei quem te aconselha...

Inês: Enfim, que novidade vocês trazem?

Vidal: O marido que você quer, De viola e dessa sorte, Não existe senão na corte Que por aqui não vai achar.

Falamos com Badajuz, Músico, íntegro, solteiro; Este seria o seu seresteiro, Mas fugiu como o Diabo da cruz!

Fomos atrás de Leandro Gulim Que disse perto de mim: – “Voltem daqui uma hora, trazendo consigo a falada senhora.”

Inês: Não conseguiram nada? Quanta competência!

Vidal: Espera, tenha paciência! Nós soubemos de um escudeiro, Que virá sem resistência Que bem fala... E como fala! Estremecerá a voz dele essa sala. Ah! E toca violão... como toca. Aos céus sua música se desloca, E se julga muito galante.

Vem o escudeiro com seu Moço, que lhe traz uma viola, e diz, falando com ele mesmo:

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Escudeiro: Se a tal senhora é tanto Como os judeus a descreveram, De certo os anjos a pintaram, E de outro modo não pode ser entretanto. Diz que os olhos com que via Moça de vila será ela, Uma bela donzela. Assim que chegar, Muito bem vou observar Se é formosa, se honesta, Porque o melhor da festa É ver a verdade, enfim, se revelar.

Mãe (falando para Inês):

Mãe: Se este tal escudeiro há mesmo de vir Tem que passar boa impressão, Falar pouco, e não rir. E mais, Inês, não muito olhar Sem se mexer você deve ficar, Mais que te julguem muda Porque a moça calada É a jóia mais querida.

Escudeiro (falando para o criado):

Escudeiro: Olha aqui! Eu vou Conhecer com quem vou casar. Aviso a você que onde estaremos Calado tem que ficar.

Moço (sozinho): Como na frente de um Rei! Ai de mim! Muito bem vai isso assim...

Escudeiro: E se eu a ti olhar, com estranheza, Ajoelha no chão e faz reverência!

Moço (sozinho): Quanta demência!

Escudeiro: E se me vir mentir, Elogiando-me com excesso, Ou fica quieto para eu ter sucesso Ou sai fora da casa, para rir! Faça isso por amor... a mim. Moço: Porém, senhor, a dizer me atrevo, Os calçados que nos pés tenho Pode por o plano em fracasso por inteiro.

Escudeiro: Que faço, se o sapateiro... O sujeito Não tem solas, nem tem pele? Que jeito? Moço: Sapatos, poderia ele dar, Caso dinheiro o senhor pudesse me pagar...

Escudeiro: Eu o conseguirei logo. E mais, roupas novas, prometo.

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Moço (sozinho): Esse homem não tem respeito, Coitada dessa senhora!

Chega o escudeiro onde está Inês Pereira, e todos se levantam, fazem suas honrarias. Diz logo o Escudeiro:

Escudeiro: Antes que eu me diga demais, Deus te Salve, rosa que aqui jaz, E que permita ser minha, aliás, Pelo compromisso firmado atrás. Bem eu vejo, Nesse ar, nessa graça, nesse despejo, Minha graciosa donzela, Que você é, minha metade da laranja, aquela Que eu sempre busco e desejo.

Fez bem a Natureza Em presenteá-la com tal condição Parece manter a discrição E não ligar para a riqueza. De nada me muito... importa Se... sem dote... não tiver, se está é a condição. Seria eu, um... calhorda De não obedecer... meu... pobre coração!

Latão: Como fala!

Vidal: E a moça, só se cala! Concentra-se pelo ouvido...

Latão: Tenho em mim que este será o marido Como a situação se abala.

Escudeiro: Eu não tenho muito de meu, O Marechal é o meu senhor E criado, escudeiro seu. Sei ler Exímio em escrever, E na parte de tocar viola, Sou muito bom, logo irá perceber. Moço, que está fazendo?

Moço: Que manda o senhor...

Escudeiro: Venha aqui, já!

Moço: Por que faria?

Escudeiro: Por quê? Para seguir as minhas ordens, lembra?

Moço: Ah, sim! Logo vou...

Moço (sozinho): O diabo uma prenda em mim pregou: Tirar-me um homem de bem, colocar este outro E me colocar a este que nada de útil tem, um frouxo

Escudeiro: Fui dispensar um rapaz Que me valia como ouro, Para contratar este tolo... Moço!

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Moço: Meu... senhor? Escudeiro: O que, moço? Traga a minha viola!

Moço (sozinho): Coitada dessa senhora, Não será nada sábia Se ele for sua escolha, Ficará perdida!

Moço (ao Escudeiro): Aqui está, bem afinada: Nem precisa o senhor se preocupar.

Escudeiro: Faria bem dela a você eu acertar Na cabeça, em uma só cacetada! Moço (sozinho): Sei bem que é emprestada, Quem poderia ao dono uma nova pagar?

Moço (ao Escudeiro): Meu amo, vou embora, partir!

Escudeiro: Por quê?

Moço: Assim não têm como seguir O senhor não dá a mim condições de bem servir!

Escudeiro: Não dorme bem?

Moço: No chão... E o telhado com goteiras. E chega a coçar a garganta Porque a fome é tanta...

Escudeiro: Vejam os detalhes dessa viola...

Moço: Não me dá atenção! Não vejo outra escolha!

Escudeiro: Que boas cordas! Pertence-se... a mim Esta viola! Vejam isso! Deixa eu resolver tudo aqui, Depois cuido disso!

Mãe: Agora devo dizer um presságio meu Certamente, minha filha, entrará no... Paraíso.

Inês: E daí? Todo o problema é meu!

Mãe: Quanta... delicadeza! Inês: Como é chata a... demência! Não casar com ignorância! Pode haver maior riqueza Do que um homem melhor preparado?

Mãe: Deus meu! Que pecado! Ele, um homem... assim?! Que tristeza!

Latão: Já ouvi, e Inês ouvirá; Escudeiro, cantará; Uma canção muito bela

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Encante sua jovem donzela, Esta música você tocará.

Canta o Judeu

Latão: Choram as rosas, Porque não quer estar aqui. Sem seu perfume Porque já sei que te perdi... E entre outras coisas... eu choro por ti!

Canta o Escudeiro o romance de “Mal me quieren em Castilha” (Choram as rosas, de Bruno e Marrone ^^), e diz Vidal:

Vidal: Latão, toma o sono conta de mim Música tão parada assim Que não sai disso, não é comigo!

Latão: O mesmo eu te digo! Ouviste o sábio cantar: “To ficando atoladinha, to ficando atoladinha! Calma, calma! Foguentinha!”

Vidal: Moça Inês, deu para perceber, Não deixe a grande oportunidade desaparecer. Escudeiro, músico, Das coisas, conhecedor, Galante, ao seu dispor. Aceite-o, para seu amor!

Poderá encontrar um medroso, inexperiente, Violento, piolhento. De tudo o que eu disse, com desgosto, Este escudeiro, com muito a meu gosto, É o oposto!

Mãe: Quero rir, com toda a tristeza, Destes seus casamenteiros Dois sem-vergonha, trambiqueiros. Manipulam tão bem uma situação dessas. Presta a atenção! Um bom oficial Que a você ganhe nessa desgraça Um escravo de graça? Casará com um pobre a você... igual.

Latão: Senhora, cale-se! Cuidado: O que vai ser, vai ser, E ninguém poderá conter O que por Deus foi determinado.

Vidal: E assim algum anjo passe e abençoa!

Mãe: Inês! Fuja dessa situação! Como pode ser tão tola?! Escudeiro sem posses você quer?

Inês: Em nome de todos os Santos juntos, Chega de se meter tanto nos meus assuntos! Você, minha mãe adivinha, Conseguiu por sua vaidade

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Casar à sua vontade; Oras! Quero também casar à minha.

Mãe: Então casa, filha! Você quem sabe!

Escudeiro: Dê essa mão, minha senhora. É a sua vontade?!

Inês: Entrega a você de muito bom grado, não é mesmo?

Escudeiro: Muito bem! Recebo você, quem olhar além!

Em nome de Deus, assim seja! Eu, Brás da Mata, escudeiro, Aceito sua mão, Inês Pereira, Por esposa e por parceira Como dita a Santa Igreja.

Inês: Eu aqui, diante de Deus, Inês Pereira, aceito você, Brás... da Mata...? Esse é o seu... nome? Como a santa Igreja dita e manda.

Latão: Assim por Deus! Jurastes vós!

Os Judeus, juntos: Judeus: Perna de bode, braço de carneiro Que os dois cubram de paz por inteiro! Bendito o Deus de Jacob, ó! Antes Ele que o Faraó! Abriu o céu que não pode ser desfeito! Bendito o Deus de Abraão pela manhã! Bendita por toda e sempre a terra Canaã! Pois bem... Mais um casamento perfeito!

Vidal: Agora, pague-nos o combinado, nem que forem centavos!

Mãe: Valha-me, Deus! Amanhã! Que... desesperados! Se assim é, bem será Não pode ficar assim; Vou chamar meus conhecidos de acolá. Para comemorar... o casamento...

Escudeiro: Oh! Não sou mais... solteiro!

Inês: Arrependeu-se por inteiro?

Escudeiro: Ora, esposa minha, nem me fale, O casamento é um cativeiro! Agora, cale-se!

Logo vem a Mãe com algumas moças e rapazes, para fazerem a festa, e diz uma delas, Luzia:

Luzia: Inês, pelo seu bem assim veja! Um formoso esposo, e muita alegria!

Inês: Pois bem, Luzia, É assim que espero que o seu também... seja!

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Mãe: Ora, vai ali Inês, minha filha, E bailem todos de três por três.

Fernando: Aqui conosco, Luzia, aqui, E a nossa querida desposada ali: Ora, veja qual será a cantiga, qual a linha.

E eles entoam a música Cio da Terra:

Debulhar o trigo Recolher cada bago do trigo Forjar no trigo o milagre do pão E se fartar de pão... Decepar a cana, Recolher a garapa da cana Roubar da a doçura do mel Se lambuzar de mel...

Fernando: A festa foi animada. Meu casal de honrados Que o nosso Senhor ceda um presente de entrada E que possam viver despreocupados. A prenda que eu dera Fora pouco, porém sincera!

Luzia: Ficam com Deus Com prazer e saúde, E que Ele sempre os dois ajude Em alcançar os anseios seus.

Mãe: Fica com Deus, minha filha, Não virei visitá-la tão depressa A minha benção... já tem. Esta casa onde estamos De prenda aos dois entrego E vou embora, procurar outra casinha.

Senhor filho e senhor meu, Cuida dela como sempre fiz eu, E como, desde que nasceu, A outros não conheceu, Senão a você, senhor.

Sai a mãe.

Fica Inês Pereira e o Escudeiro. A jovem começa a cuidar da casa, cantando uma cantiga:

Inês: Vida de Inês é difícil, É difícil ser Inês... Mas agora, casada...

O Escudeiro, vendo Inês Pereira, fica irado... E grita:

Escudeiro: Você cantou, Senhora Inês Pereira? Não acredito no que você fez! Será a primeira e última vez! Se eu ouvir outra vez você cantar, Não conseguirá nem mais assoviar...

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Inês: Se assim o quer, meu marido, Farei o que me é por você pedido, E demos o caso por esquecido. Escudeiro: Acho bom que obedeça. Sempre assim deve ser que aconteça.

Inês: Por que ficou bravo, marido?

Escudeiro: E precisa de motivo? Digo só uma coisa: Assim deve ser minha esposa... Que não me responda, eu digo Quando o marido fala, A mulher se cala!

Você não vai falar Com mulher ou homem que seja; Nem irá à igreja Eu já preguei as janelas, Não porá seu rosto fora delas; Vai ficar trancada, isolada, E nem um pio vai reclamar!

Inês: Ó, Deus? Quantos pecados foram os meus? Por que razão me mantém nessa prisão?

Escudeiro: Não há outro jeito Mantê-la, sem defeito É você, mulher, a razão... Que mal existe guardar meu ouro? Você é meu tesouro!

Em casa não vai mandar Por nada, nenhum pouco; Se eu disser: “Isto é um porco” Com a cabeça baixa vai ter que confirmar. Só eu posso ordenar! Não vai você chorar! Moço: Lá na guerra da África, Poderia eu me tornar cavaleiro.

Escudeiro: Você deve permanecer aqui, assim; Vai vigiar por mim O que faz sua senhora: Não permita que fique para fora. – Você, trabalhe, fica por aqui.

Moço: Com tudo isso, Não dará a um pirulito...

Escudeiro: Já tem em demasia, Não consegue demonstrar mais alegria?

Moço: Quanto! E depois que acabar o dinheiro?

Escudeiro: Aqui por perto tem umas figueiras, esfomeado E espero que não morra engasgado!

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Moço: Ah, sim!

Escudeiro: O que mais esperava? Era só o que faltava... Qualquer coisa, sem se deixar notar Deve galinhas emprestadas do vizinho, pegar!

Moço: (E vai o meu senhor à guerra, Vou esperar só oito dias ele voltar, Se não acontecer, irei no mundo desaparecer)

Saído o Escudeiro, diz o Moço a Inês:

Moço: Senhora, o que ele me ordenou Não o tenho coragem de fazer.

Inês: Pois se ele te dá ao menos o que comer, Sua paga será cumprir o que te mandou.

Moço: A senhora cansou de trabalhar; Eu, não tão cansado, vou me divertir Aqui dentro a senhora eu vou trancar.

E assim fica Inês Pereira sozinha, fechando, trabalhando e cantando esta cantiga:

Inês: Quem bem tem e mal escolhe, Por mais mal que venha, não se encolhe.

Não quero discrição Estava a boa condição; Eu cuidei que fosse cavaleiro Fidalgo e escudeiro. Nossa, que cavalaria! Coitados dos povos africanos que ele mata E da tola mulher que maltrata, Sem deixar em paz nenhum dia! Se solteira eu voltar a ficar, Muito é meu desejo, Que eu saiba escolher um marido, Homem pacifico todo o ano, Que obedeça ao meu olhar... Seria essa minha vingança De todo esse mal e dessa bagunça!

O moço aparece com a carta nas mãos, vinda de Arzila, dizendo:

Moço: Esta carta vem da África... ou além, Creio ser do meu senhor.

Inês: Dê-me aqui... Se for do nosso senhor Veremos... o que aí vem.

A jovem lê no envelope:

Inês: “À minha prezada senhora Inês Pereira, esposa do senhor da Mata, À minha irmã estimada esta retrata.”

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De meu irmão! Em boa hora! Será que partiu da Tavila? Moço: Ora! Três meses que fora... passado. Bem pequena é a carta, aliás!

Inês: Vamos ver o explicado...

Inês Pereira lê a carta, que diz:

Inês: “Muito honrada irmã, Segure o coração Uma triste novidade E entenda que de Deus fora a vontade.”

Inês: Ora! O que isso...? Que sensação!

(continua)

Inês: “E não se maravilhe Com as coisas que a vida faça, Além de ser triste, nos embaraça Saiba que, um dia pela manhã, indo Seu marido fugindo Da batalha de uma vila, A pouco tempo de Arzila, O matou um mouro pastor.”

Moço: Não! Meu senhor!

Inês: Moço! Dá aqui agora essa chave, E faz o que quiser da sua vida.

Moço: Oh! Que triste despedida!

Inês: Deus meu! Que nova tão... suave! Se por ele tenho dó, Que um anjo venha e para o céu me levante E se dizia tão valente, galante E quem o matou fora um mouro só!

Guardar de homenzarrão, Um fingido, espertalhão Que mentia para toda a gente. Agora um novo rumo quero tomar, Quero da boa vida aproveitar, E do meu lado, um manso marido; Não quero muito sabido, Pois bem caro pode me custar.

Aparece Lianor Vaz. Ao vê-la de longe, Inês Pereira finge chorar. Lianor Vaz diz:

Lianor: Como está, Inês Pereira?

Inês: Muito triste, Lianor Vaz.

Lianor: Por quê essa choradeira?

Inês: Choro pelo que se desfaz!

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Lianor: Se pegou barriga, contente ficará.

Inês: Quisera eu herdeiros do... falecido Mas deste bem não tomei partido.

Lianor: Filha, deixa essa tristeza, Que a morte esse sentimento preza. O que poderia fazer? Case-se novamente, minha filha.

Inês: Meu Jesus, meu Deus! Estou sozinha! Isso é coisa que se diga, sem-sentido? A quem perdeu um... senhor marido Tão... discreto... e tão... sabido, E tão... amigo... de minha vida...? Lianor: Dê o passado por esquecido Pero Marques... parece que herdou Dinheiro que não se cabe em um só punhado Mas você parece viver de passado...

Inês: Basta! Agora sim... acabou! Se herdou ou não... herdou, A experiência me serve de lição.

Lianor: Deixe de lado esse saber, Queira quem a quer, Não lhe deixe faltar à razão!

Sai Lianor Vaz atrás de Pero Marques. E Inês fica sozinha, logo dizendo:

Inês: Fazer o quê?! Pero Marques seja! Quero para ser meu marido Quem tenha a mim bem querido Trate-me bem toda vez que me veja. Para usar de bom-senso espero, Asno que me leve quero, E não cavalo fogoso; Antes lebre do que leão

Vem Lianor Vaz juntamente de Pero Marques. Diz Lianor Vaz:

Lianor: Sem cerimônias agora; Vá abraçar Inês Pereira Faça dela sua mulher e parceira.

Pero: Estou todo atrapalhado, em má hora, E quanto a abraçar, Assim será depois de casar; Somente assim poderá eu aceitar.

Inês: Não aceito o seu desejar; Quero eu logo me contentar.

Lianor: Ora! Dê-me sua mão cá. Conhece as palavras, sim?

Pero: Ensinaram-me... Mas... Ai de mim!

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Por causa do nervoso eu me esqueci já!

Lianor: Por todos os Santos! Diga como eu digo...

Pero: Que nervoso, Santo Deus Não precisamos das testemunhas, dos seus?

Lianor: Não tenha medo, caro amigo

Pero: Muito bem! Você casa comigo E eu convosco, no Deus de luz e centelhas Caso não cumpra o que falar, E quando eu a você negar, Que me decepem as orelhas!

Lianor: Vou embora! Fiquem com o... bom... Deus!

E sai Lianor Vaz. Diz Inês Pereira:

Inês: Marido, estou saindo agora Andar por aí afora.

Pero: Sim, mulher, vá se divertir Pois depois também devo sair

Inês: Marido, escuta o que eu digo!

Pero: Ora! Diga! Ouço que sou seu marido...

Inês: Vou andar para onde EU quiser

Pero: Pois muito que bem... Vá... onde quiser ir, Volte quando quiser voltar, Fica onde quiser ficar. Com o que deve se preocupar Que eu não deva... deixar?

Vem um Ermitão pedindo esmola. Moço ainda, vem a dizer:

Ermitão: Senhores, por caridade Dê uma esmola a um pobre e por amor ferido Ermitão de Cupido, Desde sempre só! Tenham solidariedade, Sou exemplo Meti-me em um Santo templo Cuidando e jurando eu ser um monge, um ermitão, Até acabar a minha estrada infinita.

Tristeza grande eu contemplo; Onde esta minha pobre alma chora No fim de tantos enganos. E acabando Sofrendo do mal eu ando, Sem esperar cura alguma. E assim, sem esperança De cobrar o merecido,

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Sirvo meus dias ao Cupido Com tanto amor e sem mudança É o Santo escolhido. Meus senhores,

Os que vão bem de amores Dão esmola àquele sem esperança Que habita a escuridão com suas dores Um dos amantes Com essa interminável andança E rezarei Com grande devoção e fé Que Deus os livre do engano; Pois, por isso sou o Ermitão, E por todo o sempre eu serei. Pois você, que sabe quem é, sabe do meu triste sonho.

Inês: Escuta, marido querido, Eu tenho por devoção Dar... esmola a um Ermitão, E não venha você comigo!

Pero: Pode ir, mulher, Lá nada tenho o que fazer.

Inês: Aceita esta esmola, padre, sim Pois foi Deus que o trouxe até mim.

Ermitão: Seja pelo amor de mim Sua boa caridade Tenha graças, minha bela senhora, Sua esmola mata o pecado; Deve saber, senhora, O que me fez fazer, Tornei-me um Ermitão Faltando pedaços do coração Com o que você deixou de dizer.

Inês: Meu Deus, menino Jesus! Vida minha! É você aquele que, um dia, Na casa de minha tia, Mandou-me uma florzinha Ora! Eu era pequena, menina, Não queria o seu amar.

Ermitão: Senhora, tenho a ti querido E você a mim negado; Faça com o que o tempo passado Seja de volta ressuscitado.

Inês: Ora, meu bom padre! Eu o entendo! Ao demo você entrego Que com jeitinho sabe pedir! Eu decido que lá vou ir, Ao templo, Deus deixando.

Ermitão: Ora! E isso quando?

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Inês: Digo, pelo Cupido. Que irei um dia desses Ao raiar do Sol. Não se apresse!

Ermitão: Minha senhora, vou embora flutuando! E desde agora esperando...

Inês (sozinha): E eu sigo, pensando... Marido, aquele ermitão É... um anjinho de... Deus...

Pero: E você, minha esposa, Tão fiel, bondosa e formosa!

Inês: Marido! Sabe o que eu queria?

Pero: Que quer, minha amada mulher?

Inês: Que fôssemos com todo o prazer Caminhando até o templo em romaria.

Pero: Não temos porque nos deter!

Inês: Este caminho é comprido Conta um conto, marido Pero: Não me vem nenhum a mente, mulher.

Inês: Pois bem. Passemos primeiro pelo rio, Tire os sapatos.

Pero: Mas como?

Inês: Oras!Vai me carregar em cima de seu ombro, Para a minha pessoa não tocar na água e sentir frio.

Pero coloca Inês em suas costas, que diz:

Inês: Marido, que bom que me carrega!

Pero: Assim te conforta?

Inês: Sinto-me como no Paraíso!

Pero: Fico feliz ao saber disso.

Inês: Heia! Pára vamos, pára! Olha aquelas pedras Servem para colocar lenha em cima delas!

Pero: Quer que eu as duas carregue?

Inês: Pois sim: Uma aqui e a outra ali. Oh! Que bonitas são elas! Cantemos, marido, pode ser?

Pero: Tenho medo de não conhecer...

Inês: Pois muito bem! Só eu cantarei!

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E você me responderá, Toda vez que eu acabar: Pois assim devem ser as coisas.

Canta Inês Pereira:

Inês: Marido como um búfalo me carrega, Com mais dois pedaços de pedra.

Pero: Pois assim devem ser as coisas.

Inês: Sempre soube você, meu marido, Eu o amo como sois; Sempre fostes a mim preparado A pertencer como um lote de bois.

Pero: Pois assim acontecem as coisas.

Inês: Bem sabe você, meu marido Quanto eu a ti... quero; Sempre foi percebido A ser um manso e chifrudo cervo. Além disso, tornou-se o burro que me carrega. Levando a mim e dois pedaços de pedra.

Pero: Pois assim acontecem as coisas.

E aqui se acaba, com Cristo, Terminando o Auto escrito.

A Farsa de Inês Pereira, autoria de Gil Vicente

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