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FÉ, FESTAS E NEGÓCIOS DE LIBERDADE: UMA ANÁLISE
SOBRE O LIVRO DE ELEIÇÕES E DELIBERAÇÕES DA
IRMANDADE DO GLORIOSO SÃO BENEDITO DE ITU (1860 –
1890)
Rafael José Barbi (UNIFESP)
Resumo:
As irmandades religiosas são associações com origem na distante Idade Média, a
partir das Corporações de Ofício. Foram inseridas na América ainda no período
colonial, cumprindo, muitas vezes, as atribuições do Estado e da Igreja, que não
conseguiam penetrar em todo o território, utilizando então essas associações como
estruturas de normatização, evangelização e controle social. A presente
comunicação traz uma análise sobre o Livro de Eleições e Deliberações da
Irmandade do Glorioso São Benedito de Itu, irmandade estabelecida desde o início
do século XIX e voltada para a congregação de negros, cativos e forros. A análise
será feita a partir de três temas norteadores: Fé, Festas e Negócios de Liberdade,
sendo esses temas fundamentais para analisarmos a importância e levantarmos
questionamentos importantes sobre o estudo das irmandades no século XIX.
Palavras-Chave: Irmandades; Escravidão; Itu.
Abstract:
Religious brotherhoods are associations originating in distant Middle Ages, from
the Office of Corporations. Were inserted in America even in the colonial period,
serving often the duties of the State and the Church, they could not penetrate the
entire territory, the nusing these associations as structures of standardization,
evangelism and social control. This communication presents ananalysis of the
Book of Elections and Resolutions of the Brotherhood of the Glorious St. Benedict
of Itu, fellow ship established since the earlyn ineteenth and facing the
congregation of blacks, slaves and freed century. The analysis will be base don’t
hreeguidingt hemes: Faith, Business and Freedom Party, with the sekeyissuesto
analyze the importance and weraise important questions regarding the study of the
brotherhoods in the nineteenth century.
Keywords: Brotherhoods; slavery; Itu.
2
Introdução
O Monsenhor Luiz Castanho de Almeida, através do pseudônimo Aluísio
de Almeida, realizou uma produção consistente e diversificada sobre a história de
Sorocaba, as tradições populares e folclore de toda essa região e do Estado de
São Paulo. Dentro dessa produção, referente às tradições populares, uma boa
parcela dedica-se às tradições católicas.
Em uma de suas obras, encontramos o seguinte fragmento
“Uma irmandade é um grupo fechado para honrar o Nosso Senhor e aos
santos e até mesmo rezar pelas almas, cada uma com os seus estatutos próprios,
chamados compromissos, quase sempre aprovados pelo Rei por causa dos efeitos
civis (direitos de propriedade, por exemplo). Tinham as suas opas, os seus tocheiros
e outras alfaias, altares ou capelas próprias, a imagem, as tumbas separadas dentro
das igrejas ou jazigos externos, os direitos a sufrágios, certas obrigações. ”
(ALMEIDA, 1974, p. 22)
Este trecho traz uma visão tradicional sobre o que é a irmandade e suas funções dentro
da Igreja. Em outras palavras, podemos observar as irmandades apontadas como uma
associação que tem como objetivo principal a devoção a um santo ou às diversas invocações
atribuídas à Cristo e Maria, sendo as outras informações colocadas de formas secundárias,
como a questão das obrigações da irmandade para com seus irmãos.
Nos últimos anos temos uma vasta produção historiográfica que traz uma visão
abrangente, demonstrando que estes grupos podem ser associações de uma importância
fundamental pelo viés social. Exemplos que podem apontar essa importância são as ações
praticadas pelas irmandades por seus irmãos, que iam desde auxílio pecuniário em tempos
difíceis até o auxílio em os procedimentos na hora da morte. E, mais importante, podemos
analisar as irmandades pelo viés social, pois
3
“[...] sabemos que cada irmandade englobava, em sua organização,
determinado agrupamento social, camada ou estamento. Desde que uma
irmandade tinha esse poder, tornava-se naturalmente uma força social,
tornava-se naturalmente uma força social ponderável e, portanto, merecia as
atenções da Igreja. Não importava que ela fosse de brancos, pretos ou
mulatos; importava seu poder como expressão desses grupos. E essa
característica é de fundamental significação. ” (SALLES, 2007, p. 52)
Portanto, essas associações funcionavam como um espaço de representatividade social
e essa visão ganha ainda mais importância quando analisamos o contexto das irmandades
negras, que dentro de uma sociedade escravista como que encontramos no Brasil durante o
período imperial, esses grupos funcionavam como mecanismos de representatividade, como já
apontado, mas além disso, como espaços de esperanças e lutas contra a sua condição, seja ela
de pobreza e problemas de saúde e, no caso de cativos, a compra e a conquista da liberdade,
seja a de direito e a de fato, tornando-se um espaço de resistência.
Esta comunicação traz uma breve análise sobre a documentação encontrada nos
arquivos da Irmandade de São Benedito de Itu, especificamente o Livro de Eleições e
Deliberações da Irmandade do Glorioso São Benedito de Itu. A escolha desse livro não é
gratuita, pois através dele podemos apreender diversas questões que trazem luz à dinâmica
interna da Irmandade e a sua visão, enquanto instituição e em relação aos seus irmãos.
Levantamos três situações importantes e que nos ajudam a entender o funcionamento
da irmandade, e também nos apresentam de que forma essas associações extrapolam a função
religiosa, além de levantar questões importantes ao cruzarmos a documentação com a
historiografia sobre o tema.
4
Fé, Festas e Negócios de Liberdade.
A Irmandade do Glorioso São Benedito é uma confraria voltada para negros, cativos e
forros, originalmente ereta em um altar lateral dentro da Igreja de São Luís de Tolosa1, que
pertencia ao Convento de São Francisco e à Ordem Terceira de São Francisco de Itu.
Infelizmente não foi encontrada a documentação que comprove a fundação da irmandade e a
aprovação de seu compromisso, porém através da bibliografia utilizada para este trabalho foi
constatado que a Irmandade de São Benedito já existia em 18362, além das irmandades do
Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora da Boa Morte.
É importante realizar uma pequena reflexão sobre os motivos desse recorte temporal
ter sido escolhido. A cidade de Itu, neste período a partir da década de 1860, é uma cidade3
baseada prioritariamente em uma economia monocultura e que está em um processo de
transição para a industrializaçãode pequena monta.
Na área religiosa, a cidade também possui grande importância, principalmente nas
mudanças impostas pela Igreja na segunda metade do século XIX, no processo de
romanização desta instituição no Brasil. A cidade apresenta uma forte presença de ordens
religiosas, como jesuítas, carmelitas, concepcionistas e ordens voltadas exclusivamente para a
educação, como as Irmãs de São José de Chambéry. No caso das ordens que criaram espaços
para a educação, os jesuítas com o Colégio São Luís e as Irmãs de São José com o Colégio
Nossa Senhora do Patrocínio, elas tinham um papel importantíssimo na construção de uma
educação voltada para o culto mais reservado, tentando desconstruir os excessos do
catolicismo popular no Brasil
1 Atualmente, a Irmandade de São Benedito possui uma igreja própria, inaugurada em 1901. 2MULLER, Daniel Pedro, 1775-1842. Ensaio d'um quadro estatístico da Província de São Paulo: ordenado
pelas leis municipais de 11 de Abril de 1836 e 10 de Março de 1837 3. ed., facsimilada / introdução de Honório
de Sylos. – São Paulo : Governo do Estado , 1978. 3Itu é elevada à categoria de cidade pela Lei Provincial de 5 de fevereiro de 1842.
5
“A vinda das congregações masculinas e femininas da Europa,
especialmente da Itália, da França e da Alemanha, foi decisiva no processo
de europeização e revitalização do catolicismo brasileiro. Como vimos, foi
dom Antônio Joaquim de Mello que deu início ao estabelecimento dessas
congregações, chamando os padres capuchinhos de Sabóia para a direção do
seminário episcopal e as irmãs de São José para o primeiro colégio voltado à
educação da juventude feminina, inicialmente localizada em Itu. ”
(WERNET, 2005, p. 134)
Essa revitalização e europeização do catolicismo brasileiro, não foi realizado apenas
na educação, mas também em mudanças no próprio movimento leigo. Essas mudanças são
caracterizadas com a criação de associações como o Apostolado da Oração, difundida
principalmente a partir da cidade de Itu, controlada mais diretamente pela alta hierarquia da
Igreja. Ao contrário das irmandades, o Apostolado não possuía poderes de administração de
um templo, não realizava a compra de paramentos de uso exclusivo de tal associação e, ainda,
tinha como função principal a visita aos fiéis para levar o evangelho segundo os dogmas da
Igreja4.
Mesmo com essa ação reformadora na cidade, a Irmandade de São Benedito possuía
uma grande vitalidade de suas ações, principalmente em relação à festa. Na documentação é
dada uma grande importância da festa, sendo esse um momento de apogeu da administração
das mesas diretoras
“Ao 1º do mez de Novembro de 1862 em consistório da Irmandade
de São Benedito reunido em mesa para a deliberação da festa do dºSto
deliberou-se qe seja solenisado no dia Domingo primeiro de Janrº de 1863
não havendo incoveniente deliberando encarregar da mma ao Irmão
4WERNET, Augustin. A Igreja Paulistana no século XIX. In: VILHENA, Maria Angela; PASSOS, João Décio.
A Igreja de São Paulo – Presença católica na história da cidade. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 129 – 144.
6
secretário atual Joaqm Januário do Monte Carmello, podendo gastar-lhe a
qta de 200$000 rs e obrigados os irmãos Rei, Juiz, Juiza e Rainha afim a
haverem offerecido a darem a irmão Juiza 30$rs e Rainha 8$rs. Deliberou
mais qe mande-se vir por intermédio do Irmão Secretario uma cruz de metal
branco e uma da pa guião e duas [ilegível] para a cruz e bandeira pª o guião,
recebendo o dto Irmão a importância de tudo. Nada mais havendo pª
deliberar-se, encerro a seção eu secretário interino. Francisco de Paula Lima.
(Livro de eleições e deliberações da Irmandade de São Benedito de Itu de
1861 a 1899, p.2)
Neste trecho do Livro de Eleições e Deliberações é possível identificar a importância
da festa para a associação. Primeiro sinal desta importância é a quantia despendida para a
festa, que neste ano totalizou duzentos mil réis, valor alto se compararmos com a média do
orçamento anual da irmandade, que ficou em torno de setecentos e sessenta mil réis5.
Este valor foi utilizado, como sugere o registro citado, para a compra de novos objetos
para a festa, mais especificamente, para a compra de artefatos para a procissão, o ponto alto
das festividades. Essa preocupação com a procissão é demonstrada através da necessidade de
adquirir um novo guião, uma nova cruz processional e uma nova bandeira.
Outro trecho do documento que nos mostra a importância das festividades do santo
traz a seguinte determinação,
“Foi declarado pelos irmãos Juiz e Rei, Juiza e Rainha que darão a
jóia de cem mil reis cada um para que se faça boa festa.” (Livro de eleições e
deliberações da Irmandade de São Benedito de Itu de 1861 a 1899, p. 17)
Neste caso vemos que, nem sempre, o dinheiro arrecadado durante o ano é o suficiente
para a realização da festa, sendo responsabilidade do Juiz, Juíza, Rei e Rainha, o auxílio para
5 Essa média foi alcançada a partir das informações retiradas das prestações de contas dos anos de 1866 e 1867.
7
a realização da festa. Um termo interessante utilizado nesse fragmento é “boa festa”, o que
sugere que ainda encontramos elementos da forte exteriorização do culto, pois a “festa boa”
era caracterizada pela diversidade de materiais e decoração, sendo construída desde a
contratação dos religiosos para a realização das ações formais, tais como missas, e,
principalmente, a realização da procissão, que recebia uma variedade importante de
elementos, mesclando tradições do catolicismo com as tradições negras, como aponta Nardy
“As festas dos brancos terminavam aos alvores do segundo dia do
ano; as dos pretos continuavam, iam até o dia dos Santos Reis, quando
realizavam a festa em honra de São Benedito. Durante as noites desses dias,
o samba rufava, a igrejinha permanecia aberta e iluminada dia e noite, de
quando em quando ouvindo-se as vozes das pretas, que cantavam hinos em
louvor a São Benedito:
“Meu São Benedito
Já foi Cozinheiro,
Agora ele é
Nosso pai verdadeiro”
[...] No dia 1º, a tarde, ao estrugir dos rojões e aos sons da charanga,
era erguido em frente à igrejinha o mastro de São Benedito.
Às tardes desses dias, as congadas dos pretos percorriam as ruas, e
como eles sabiam bem as regras dessa dança; vinha depois o “Boizinho”,
acompanhado pelo pai Domingos no seu cavalinho, o Doutor, Mãe Maria e
mais pretos fantasiados de vaqueiros. O Boizinho pulava, dançava, investia,
adoecia, deitava-se; vinha o doutor, curava-se e punha-se ele de novo a
pular, dançar e a investir; e tudo isso acompanhado de cantigas ao som das
violas, pandeiros e caixas e zabumbas. ” (NARDY FILHO, 2000, p. 207)
8
Esse relato traz luz sobre as tradições praticadas pela irmandade em suas festas, algo
comum dentro do catolicismo no Brasil6, característica que permaneceu desde o período
colonial e, em certa medida, permanece nas tradições e manifestações culturais religiosas
atuais. Como aponta Lucilene Reginaldo, em relação às festas, às práticas devocionais destes
eventos e sua importância
“Eram necessárias para o controle social do contingente escravo,
uma vez que representavam uma espécie de “válvula de escape” para o
regime. Tendo em vista o projeto evangelizador, as festas dos santos
patronos eram parte fundamental da vida religiosa devocional, ainda que
seus “excessos” fossem duramente perseguidos pelas autoridades. ”
(REGINALDO, 2011, p.207)
Outra ação fundamental da irmandade e que associava-se ao período das festas, é a
atuação da irmandade na busca pela liberdade de irmãos ou parentes de irmãos
“[...] Rezolveu mais encarregar ao irmão Secretário poder dispender
ateagª de $ 250.000 que haverá do irmão Thezoureiro afim de mandar vir do
Rio de Janeiro para esta Irmandade 1 Cálice de prata,patena e calhibinha, 1
Cazula preta, 1 fita branca e fazendo para duas capas de asperges branca e
preta e 1 missal romano e 1 [ilegível] para agua benta e se esta quantia não
for suficiente haverá o restante do Irmão Thezoureiro. Foi mandado parecer
que tiradas as dispesas da festa, e paramentos o restante seja aplicado a
liberdade de duas a trez crianças do sexoho feminino menor de dois anos
filhas de irmãos, pelas quais fica o Irmão Procurador autorizado a poder
dispender [ilegível] até 200$000 para cada um e quando hajão muito para tal
fim apresentará nomes de todos a Meza que sobre elles correrá a sorte, e as
assim designados o dito procurador mandara passar contas a qual será
registrada no livro da Irmandade, devendo esta se realizar no dia da Festa de
Nosso Orago. Rezolveu dar uma esmola de 4$000 mençaes ao Irmão
Domingos [ilegível] atendendo seu estado de pobreza e a doaçãoque o
6Sobre a questão do catolicismo no Brasil ver HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro;
(1550 – 1800). 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1978.
9
mesmo fizera de uma casa a esta irmandade autorizando assim o Irmão
Procurador a fazer de hoje em diante effectivaauta deliberação. Nada mais
havendo a tratar deo-se por incerrada. De que para quem constar lavrei a
presente. Eu como Secretário que subscrevi e assigno. Francisco Celestino
de Miranda Russo.” (Livro de Eleições e Deliberações da Irmandade de São
Benedito de Itu, de 1861 a 1899. P. 12 e verso)
É possível identificar dois elementos importantes dentro da função social da
irmandade, sendo um relacionado ao auxílio no processo de liberdade e outro no auxílio
pecuniário a um irmão em dificuldades.
Em relação a obtenção da liberdade, há uma produção importante sobre a questão e
que trouxe novos olhares, principalmente ao discutir sobre a liberdade por direito e de fato.
Nos processos judiciais relacionados à busca pela liberdade, os autos de liberdade, sempre
encontramos um representante que realiza empreitada junto com o escravo7. Nesse contexto
podemos levantar a hipótese de que a irmandade pode ter um papel importante nesse
processo, pois a documentação traz a prática da irmandade de despender um valor específico
de seu orçamento, para a realização da compra de alforria.
No caso documentado pelo fragmento acima, deveria ser utilizado todo o valor do
orçamento anual que sobrasse das despesas da festa, para a compra da alforria de duas a três
meninas, sendo permitida o uso de até duzentos mil réis para cada criança. Essa ação suscita
algumas perguntas interessantes, tais como, porque a necessidade de ser crianças, porquê
precisavam ser do sexo feminino e se a irmandade também auxiliava de alguma forma os
irmãos adultos, seja através da compra de alforria ou através de ceder apoio pelas vias
7Sobre a busca pela liberdade ver CHALLOUB, Sidney. Visões da Liberdade – Uma história das últimas
décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia do Bolso, 2011; MACHADO, Maria Helena P. T.,
“Corpo, Gênero e Identidade no Limiar da Abolição: Benedicta Maria da Ilha, mulher livre/Ovídia, escrava narra
sua vida (sudeste, 1880). AfroÁsia, 42, 2010, pp. 157-193.eMAMIGONIAN, Beatriz. “José Majojo e Francisco
Moçambique, marinheiros das rotas atlânticas: notas sobre a reconstituição de trajetórias da era da
abolição”, Topói v. 11, n. 20 (2010), p. 75-91.
10
judiciais para a conquista da liberdade. E sobre a associação da ação da irmandade na busca
pela alforria com o período de festas, é interessante notar que todo o processo de compra e
obtenção da carta de alforria, deveria ser finalizado no dia da festa, o que sugere uma espécie
de prestação de contas da Irmandade para com seus irmãos.
A outra ação citada no trecho, é uma das ações primeiras e característica de todas as
irmandades, sejam elas de brancos, pardos, negros, religiosos ou ordens terceiras, que é o
auxílio à um irmão em dificuldade, evidenciando a característica de mútua assistência da
irmandade.
Nos expostos apresentados é recorrente a menção aos cargos mais importantes da
irmandade, o juiz, o rei, o secretário e procurador. Mas a Irmandade de São Benedito de Itu,
traz uma prática que difere da maior parte de associações, que é a eleição de uma mesa
estritamente feminina.
Analisemos a composição completa da mesa da Irmandade de São Benedito de Itu
“Aos 3 dias de janeiro de 1863 no consistório da Irmandade de São
Benedito desta cidade de Itu. Reunida a mesa diretora da mmaIrmandde com
presença do mtoRvo Capelão mais irmãos empregados do presente ano afim
de proceder-se a eleição dos novos empregados corrido o __________ foram
eleitos os seguintes.
Rei O Ir. João do Monte do Carmo
Juis O Ir. Antônio Joaquim da SªDulhã – 50$
Procor O Ir. Joze Vicente de Campos
Thezº O Ir. João Januario do Monte Carmelo
Secrº O Ir. Francisco de Paula Lima
Cap. do Mastro O Ir. Feliciano LeittePaxº Junior
11
Sacristão O Ir. JoaqmEscº do MtoRdo João Paulo Cos
Sacristão O Ir. JoaqmEscº da D. Escolástica de Bos
Sacristão O Ir. Joaqm [ilegível] de Camargo
Couveiro O Ir. Luis Pinto
Andadores O Ir. LuisEscº do Sr. Almeida Garret
Andadores O Ir. José Escº do Teme Luciano
Mesários 1º O Ir. [ilegível] da Silva
2º O Ir. Theodoro Escrº de D. Francº Pinto
3º O Ir. Roque Escº de D. Anna Joaqna
4º O Ir. José Escº do Sr. Tene Luciano
5º O Ir. [ilegível] Escº do SrCapm [ilegível]
6º O Ir. Bonifácio Escº de D. MaTheodora Jesuíno
7º O Ir. Antonio de [ilegível]
8º O Ir. João Escº de D. Mª Joaqna do Lagx
9º O Ir. AntºEscrº do MtoRmo João Paulo Cos
10º O Ir, Jacinto Escrº do MtoRmo João Paulo Cos
11º O Ir. José Escrº de D. Anna Eufrosina de Bos
12º O Ir. [ilegível] Escº de D. AntºPeixoº
Rainha – A Irª. Candida Almeida da Fonseca 50$
Rainha da Procissão – Irª Thereza Escª de D. Antonia
Juíza – A Irª Emilia Franca dos Anjos 50$
12
Irmãs de Mesa – A Irª Catharina Maria Vianna
2º A Irª Valeriana Escrª de D. Antonia Augusta
3º A Irª [ilegível] Maria Barbosa
4º A Irª Miguelina Mª da Conceição
5º A Irª Mª Clara de Barros
7º A Irª Escrª de D. Mª do Patrocínio
(livro de Eleições e Deliberações da Irmandade de São Benedito da
Cidade de Itu de 1861 a 1899, p. 2 verso)
Nesta ata da formação da mesa eleita para o ano de 1863 há elementos interessantes
sobre a administração da irmandade, e apresentam uma manutenção de tradições. Uma
tradição importante é a eleição de rei e rainha, que “embora não estivessem circunscritas
exclusivamente às irmandades, tiveram dentro destas associações seu melhor
desenvolvimento” (REGINALDO, 2011, p. 207).
A importância do Rei e Rainha é muito grande, não só na questão festiva e devocional,
mas também tinha uma boa influência social. Na sua obra, Os Rosários dos Angolas, Lucilene
Reginaldo nos traz uma análise sobre a relação da corte das irmandades com seus senhores,
realizando uma espécie de acordo, apontando que
“Em Minas Gerais, à semelhança do ocorrido na Bahia, as ordens de
proibição dos reinados, expedidas já no tempo do Conde de Assumar, não
obtiveram o efeito desejado. Para Marcos Aguiar, o fracasso das proibições
foi consequência do ‘comportamento das elites, não só coniventes com estas
manifestações, mas delas participando, através de ajuda material”.
(REGINALDO, 2011, 214).
13
Esse cenário, mesmo os casos apontados pela autora ser referentes a outras localidades
e outro recorte temporal, faz sentido se aplicarmos ao contexto da Irmandade de São Benedito
de Itu, objeto de nossa reflexão. Outro fator que atesta essa possibilidade é o que aponta a
autora, citando o historiador Marcelo Mac Cord,
“Marcelo Mac Cord verificou que na irmandade do Rosário de
Recife, na segunda metade do século XIX, os reis não estavam no
compromisso, mas eram eleitos e continuavam a ser importantes. As
‘hierarquias do Rei do Congo’ acabaram por constituir-se numa instituição
separada da irmandade, ainda que mantivesse com aquela estreitos vínculos
corporativos. Esta independência subtraiu ‘as hierarquias do Rei do Congo’
do controle e perseguição da igreja em processo de Romanização”.
(REGINALDO, 2011, 211)
Nesse trecho já possuímos um cenário mais próximo no ponto de vista temporal e que
se encaixa nas condições encontradas pela irmandade em Itu, na segunda metade do século
XIX, em outras palavras, em uma cidade que se colocou como um dos centros irradiadores
das ordens impostas pelo processo de romanização, através dos canais já expostos nesta fala.
Para encerrar essa questão, ambos os trechos também nos apresentam características
possíveis de serem aplicadas na análise do objeto desta comunicação, pois se retomarmos o
trecho da documentação que aponta a decisão de que o Rei, a Rainha, o Juiz e a Juíza,
deveriam oferecer uma jóia de cem mil réis cada, pode ser uma prova importante do apoio e
da atuação de seus senhores ou, no caso de forros, brancos que apoiavam estes irmãos e a
irmandade.
Considerações Finais
14
A partir do Livro de Eleições e Deliberações da Irmandade de São Benedito de Itu,
temos a oportunidade de analisar determinadas ações da associação que nos permitem traçar
um panorama importante sobre questões relacionadas não só à vida religiosa, como à vida
social daquele grupo representado nessa instituição.
Ao apontar três elementos centrais, a fé, as festas e negócios de liberdade, essa
pequena reflexão coloca a irmandade em um contexto muito mais amplo e que dialoga
constantemente com a realidade que a cerca, não tornando-se apenas uma instituição estática e
superada, mas sim, uma instituição em constante ressignificação e com novas ações,
adentrando até no século XX.
O primeiro elemento, a fé, um ponto que costura os diversos elementos, mas que nos
traz uma indagação: Como é a construção da fé? Como ela faz com que grupos étnicos e
sociais se identifiquem, se unam e se dividam, trazendo seus elementos característicos para o
culto? A historiografia e a documentação, nos mostram que a fé é um elemento em construção
constante e que sofre interferências de todos os lados, desde as influências populares, até as
influências que se colocam como dominadoras. Exemplos disso, são as imposições da Igreja
Católica, no contexto da romanização, criando novos movimentos leigos e na educação das
elites que “ditariam” os rumos dos costumes.
As irmandades entram nessa discussão também, afinal, o que faz um grupo escolher
determinado santo protetor. A historiografia aponta que, no caso dos negros, as escolhas
passavam muito pela questão da identificação com o negro, o que nos traz casos em que o
santo é considerado ancestral comum de toda uma comunidade, fazendo com que a
identificação extrapole apenas a fé8, abandonando o sentido simplesmente relacionado a
crença do sagrado.
8Ver mais em QUINTÃO, Antônia Aparecida. Lá vem parente. As irmandade de pretos e pardos no Rio de
Janeiro e em Pernambuco (século XVIII). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002.
15
O segundo elemento, as festas, é a questão mais fascinante quando pensamos em
irmandades religiosas, um exemplo disso, é só lembrarmos do Triunfo Eucarístico, realizado
em Minas Gerais, na cidade de Ouro Preto em 1733, onde foram apresentados todo poder e a
opulência das irmandades9. Além disso, a historiografia também nos apresenta as festas como
períodos de libertação e esquecimento da condição de cativo do escravo, porém, através da
documentação analisada, podemos apreender outros elementos que trazem luz a outros
significados.
Um exemplo desses elementos, nos leva a nossa próxima questão, que é a questão dos
negócios de liberdade. Em um momento em que o processo de questionamento ao regime
escravista e, automaticamente, do constante aumento dos ideais abolicionistas, é possível
identificar na documentação da irmandade que um dos pontos altos da comemoração é a
liberdade de um irmão ou de algum parente.
Essa liberdade, o que podemos apreender através dos trechos expostos, era
conquistada através da compra das alforrias, realizada com o dinheiro arrecadado com as jóias
dos irmãos e doações feitas por terceiros, que fazia parte do orçamento anual da associação.
Portanto, a partir desse processo de compra da liberdade, é pertinente colocarmos esse
processo como negócios de liberdade, afinal, é uma clara negociação sobre um direito, que era
negado por um regime escravista.
Essa questão da liberdade, nos traz outros questionamentos, já levantados nessa
comunicação, como a ação da irmandade nesse processo da busca pela liberdade e, tão
importante quanto, a manutenção da liberdade, que ainda na segunda metade do século XIX, o
status de liberto ainda era precário.
9Uma análise importante sobre o Triunfo Eucarístico pode ser visto em BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o
Poder: Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986.
16
Portanto, a partir dessas três situações expostas a partir de elementos específicos, a fé,
as festas e os negócios de liberdade, nos apresentam a variedade de análises e
questionamentos que uma irmandade proporciona, extrapolando a questão religiosa,
possibilitando uma imersão dentro de todo um contexto de mudanças sociais características da
segunda metade do século XIX.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Aluísio. Brasil de Nossa Senhora. Sorocaba: Rua Ruy Barbosa 84, 1974.
ALMEIDA, Cônego Luis Castanho de. São Paulo, Filho da Igreja. São Paulo: Editora Vozes,
1957.
BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder: Irmandades Leigas e Política Colonizadora em
Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986.
CHALLOUB, Sidney. Visões da Liberdade – Uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Companhia do Bolso, 2011
HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro; (1550 – 1800). 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 1978.
MACHADO, Maria Helena P. T., “Corpo, Gênero e Identidade no Limiar da Abolição:
Benedicta Maria da Ilha, mulher livre/Ovídia, escrava narra sua vida (sudeste,
1880). AfroÁsia, 42, 2010, pp. 157-193.
17
MAMIGONIAN, Beatriz. “José Majojo e Francisco Moçambique, marinheiros das rotas
atlânticas: notas sobre a reconstituição de trajetórias da era da abolição”, Topói v. 11, n. 20
(2010), p. 75-91.
MICELI, Sérgio. A Elite Eclesiástica Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NARDY FILHO, Francisco. A CIDADE DE ITU. Vol. 2 ITU: Ottoni, 2000. Coleção em 6
Volumes.
QUINTÃO, Antonia Aparecida. Irmandades Negras: Outro espaço de luta e resistência (São
Paulo: 1870 – 1890). São Paulo: Annablume : FAPESP, 2002
REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades de africanos e crioulos na
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Fontes primárias
Arquivo da Irmandade de São Benedito
Livro de Eleições e Deliberações da Irmandade de São Benedito da Cidade de Itu. (1861 a
1899)
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