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    1 - Introduo

    Osvaldo Lacerda (n. 1927) sem dvida o compositor contemporneo brasileiro

    que maiorpercentual de sua obra vem dedicando cano de cmara (MARIZ, 2002, p. 184).

    Preocupa-se, sempre, em explorar e valorizar o canto, sobretudo o de carter nacionalista,

    perpetuando em msica as variaes das diversas manifestaes folclricas e religiosas

    brasileiras, alm de contos populares e textos de grandes poetas nacionais. O catlogo de suas

    obras, publicado pela Academia Brasileira de Msica (HIGINO, 2006), registra mais de cento

    e vinte canes para voz e piano, seis das quais j tendo sido escolhidas como pea de

    confronto em diferentes concursos nacionais. Alm disso, segundo informaes obtidas com o

    prprio compositor, h canes novas que ainda no foram editadas ou gravadas.

    A respeito de Osvaldo Lacerda, o jornalista Lus Antnio Giron (1998) assim seexpressou h mais de uma dcada:

    Ao longo de 46 anos de atividade ele se dedicou especialmente ao gnero decmara. Realizou, no mbito da cano, aquilo que Tom Jobim, para citarum exemplo, tanto ambicionou sem conseguir: criar peas refinadas para voze instrumentos. Continua em atividade intensa em So Paulo, compondo eensinando, preocupado em incutir nos discpulos princpios coerentes, emque o patrimnio sonoro local recebe um peso especfico. Segundo ele, ocompositor deve ter em mente que cano poesia cantada. "Se ele seesquece desse fato ou o desconhece, o resultado poder ser desastroso: apoesia e a msica seguiro, por assim dizer, direes opostas". A "verdade"potica segundo Lacerda est na transparncia mtua entre partitura e poema

    (p. 01).

    Para Vasco Mariz, o incansvel cronista da msica brasileira, "O canto de cmara

    a forma mais refinada da arte vocal na msica" (2002, p. 25) e pode ser considerado, segundo

    o mesmo autor, como o ncleo de todas as formas musicais. Impe ao compositor a busca

    pelo necessrio equilbrio entre o canto e o acompanhamento, de modo a no se negar o

    destaque requerido pela voz do solista. E, ao intrprete, prope dificuldades tcnico-

    interpretativas que devem ser superadas para permitir uma veiculao eficiente de msica e

    poesia. O acompanhamento, neste caso, embora no sendo a figura principal, fundamentalpara se alcanar os objetivos de beleza sonora e comunicao potica, exercendo papel muito

    prprio.

    Que razes levam um compositor a escrever uma cano de cmara, a partir de um

    texto? Que cuidados deve ele tomar ao empreender tal tarefa? Aparentemente banais, essas

    duas questes so cruciais para quem se preocupa em escrever uma cano, num processo

    criativo em que preciso unir homogeneamente melodia, ritmo e harmonia com o texto, de tal

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    sorte que se consiga realar a mensagem que ele nos comunica, sem se descuidar de fazer com

    que a msica guarde coerncia com o sentido pretendido pelo autor das palavras. Osvaldo

    Lacerda, em suas aulas e conferncias, insiste sobre a idia de que cano poesia cantada e,

    como tal, deve ser encarada, escrita e interpretada. Da, o leque de opes a ser ciosamente

    vasculhado pelo compositor, desde a escolha da tonalidade, da tessitura, do compasso, da

    forma binria, ternria ou livre; do andamento, do ritmo, da aggica, da dinmica, da

    harmonia, enfim, de todos os recursos que possibilitem atingir o objetivo a que se props.

    Ademais, insiste Lacerda, imprescindvel tratar a voz e o acompanhamento com idntica

    ateno, de maneira a promover uma perfeita integrao e equilbrio entre os dois. Se todos

    estes cuidados forem observados, bem possvel obter-se, ao final, uma boa cano, aqui

    entendida como aquela onde se obtm um amlgama ideal entre texto, voz e instrumento.

    Como elemento cultural auto-suficiente, a cano brasileira existe h quase trssculos. Acredita-se que j fazia parte das peras de Antnio Jos da Silva (1705-1739), o

    Judeu, to apreciadas naquela poca. E durante os prximos dois sculos, seu perfil estaria

    muito prximo de um lirismo singelo, saudoso e, por vezes, apaixonado ou picante, recebendo

    o nome de modinha. No sculo XIX, o bel canto italiano transformou a simplicidade em

    bravura e elas se tornaram mais elaboradas, revelando uma tendncia operstica. Apesar de

    estas duas vertentes da modinha j acontecer em vernculo, data do final do sculo XIX as

    primeiras tentativas de se fazer uma elaborada cano em lngua nacional e apresent-la nos

    concertos de repertrio erudito, graas aos esforos de Alberto Nepomuceno (1864-1920), aprimeira grande figura do chamadoLiedno Brasil (MARIZ, 2002, p. 29).

    A partir dos primeiros anos do sculo XX, o repertrio vocal de cmara no Brasil

    mostra-nos claramente duas correntes: uma universalista e uma nacionalista. A primeira

    manteve-se no topo at a publicao das Canes Tpicas Brasileiras(1919), de Villa-Lobos,

    perdendo gradualmente sua importncia, mas recuperando-se depois. A Semana de Arte

    Moderna de 1922 imprimiu uma mudana substancial na escolha dos textos poticos,

    afastando-se do romantismo e do parnasianismo. Villa-Lobos, na obra acima mencionada e

    nas Serestas (1926), foi mais alm e empregou elementos caractersticos da msica popularbrasileira, tais como a rebuscada melodia dos seresteiros, o movimento cantante dos baixos, o

    abaixamento da stima, a sncopa etc. Seguiram suas pegadas muitos outros compositores, a

    segunda gerao, como Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone, Frutuoso Viana, Heckel

    Tavares. J Camargo Guarnieri, da chamada terceira gerao dos nacionalistas e considerado

    por muitos como o mais importante de nossos compositores modernos, ocupou papel singular

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    na produo brasileira para canto e piano. Ao longo de sessenta e cinco anos de trabalho

    (1928-1993), Guarnieri comps mais de 200 canes, dos gneros mais diversos.

    Aluno de Guarnieri, Osvaldo Lacerda figura quase lendria na msica brasileira.

    importante assinalar que o nacionalismo refinado de Lacerda se nos apresenta como

    expresso de seu grande talento, desenvolvido com o que abeberou de seu mestre Camargo

    Guarnieri, e no com os grandes nomes do nacionalismo de geraes anteriores (MARIZ,

    2002, p. 184).

    Alm disso, atravs do magistrio, Lacerda cumpre, ainda, um decisivo papel para

    a msica brasileira, transmitindo a seus alunos e discpulos um grande acervo de

    conhecimentos no s musicais, mas culturais, alm de tentar insuflar-lhes uma posio de

    intransigente defesa dos valores musicais mais genunos da nossa gente.

    Para escrever suas canes, Lacerda lana mo de trovas populares e de textosfolclricos e religiosos. Utiliza, ainda, diferentes poetas, destacando-se Ceclia Meireles,

    Cassiano Ricardo, Guilherme de Almeida, Carlos Drumonnd de Andrade, Fagundes Varela e

    Vincius de Morais. Entretanto, foi Manuel Bandeira o poeta que mais despertou inspirao

    em Osvaldo Lacerda, levando-o a musicar treze de seus poemas, dentre eles os consagrados O

    menino doente (1949), Cantiga (1950), Mandaste a sombra de um beijo (1960), e Poema

    tirado de uma notcia de jornal(1964). H trs peas corais: Balada do rei das sereias(coro

    misto a cappella, 1984), Canto de Natal (coro misto a cappella, 1997) e Orao para

    Aviadores (coro misto a cappella, 1997) e dez canes para voz e piano, que sero objeto denosso estudo.

    So elas:

    1 - O Menino Doente (canto e piano, 1949. Revista em 1972).

    2 - Cantiga I (canto e piano, 1950. Revista em 1974).

    3 - Felicidade (canto e piano, 1951. Revista em 1972).

    4 - Poemeto ertico (canto e piano, 1951).

    5 - Mandaste a sombra de um beijo (canto e piano, 1962).

    6 - Poema tirado de uma notcia de jornal (canto e piano, 1964).7 - Cantiga II (canto e piano, 1964).

    8 - Mozart no cu (canto e piano, 1991).

    9 - Valsa romntica (canto e piano, 1997).

    10 - Cano para a minha morte (canto e piano, 1997).

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    O objetivo principal deste trabalho analisar as dez canes de Osvaldo Lacerda

    com textos de Manuel Bandeira, do ponto de vista estrutural, formal e interpretativo. A

    anlise de cada uma das canes levar em conta comentrios e conceitos emitidos pelo

    prprio compositor, tendo por base um sucinto questionrio que o interpele sobre as peas,

    buscando estabelecer seu carter; a anlise musical sob os aspectos rtmico, meldico e

    harmnico e, ainda, a identificao de elementos singulares na voz e/ou na parte instrumental,

    quando for o caso. Os comentrios do compositor sero colhidos atravs de entrevista

    segundo questionrio pr-estabelecido e devidamente aprovado pelo Comit de tica em

    Pesquisa.

    Espera-se, com isso, contribuir para a divulgao da obra de Osvaldo Lacerda e,

    finalmente, fornecer subsdios acadmico-artsticos para a pesquisa e a performance das

    canes em foco.No programa do recital de finalizao do mestrado constaro canes de sua

    autoria, onde os elementos aqui postos em relevo sero evidenciados.

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    2- Osvaldo Lacerda: aspectos de sua vida e obra

    Osvaldo Costa de Lacerda nasceu na cidade de So Paulo (SP), no dia 23 de maro

    de 1927. filho de Renato Marcondes de Lacerda e de Jlia Costa de Lacerda, de quem

    recebeu esmerada educao e permanente incentivo para a msica. Aos nove anos de idade,

    iniciou seus estudos de piano com Ana Veloso de Resende, aperfeioando-se com Maria dos

    Anjos Oliveira Rocha e Jos Kliass. Depois, estudou harmonia com Ernesto Kierski, de 1945

    a 1947. Embora desde menino fizesse tentativas de composio, como ele prprio afirma

    (LACERDA in SILVA, 2001, p. 57), foi somente em meados de 1952, ento com 25 anos de

    idade, que entendeu a necessidade de se buscar uma slida tcnica composicional nas mos de

    um professor experiente. Procurou, ento, o maestro Camargo Guarnieri, de quem seria aluno

    durante 10 anos (1952-1962).Sabe-se que Guarnieri era extremamente exigente para aceitar alunos, somente

    aquiescendo quando o candidato se sasse bem no balano de conhecimentos tericos e

    harmnicos aferidos atravs de uma rigorosa avaliao. Lacerda passou por isso e, mais ainda,

    preocupava-se por no dispor de recursos suficientes para pagar as aulas a Guarnieri, ainda

    que disposto a fazer todos os sacrifcios necessrios para tanto. O preo de cada aula havia

    sido estipulado em 300 cruzeiros, uma soma elevada poca.

    [...] Dois meses depois, aconteceu o seguinte: no intervalo de um concertono Teatro Cultura Artstica, ao qual eu comparecera com minha me, viGuarnieri cham-la de lado e dizer-lhe algumas palavras. Ela ento sechegou a mim, com lgrimas nos olhos, e me contou que Guarnieri, comtoda simplicidade, lhe dissera apenas isto: "seu filho tem talento, no precisamais pagar as aulas. Mas vai ter que estudar bastante..." desnecessriodizer que tambm fiquei muito comovido e grato (LACERDA in SILVA,2001, p. 61).

    Seu opus 01, entretanto, anterior a essa poca. Trata-se da cano Minha Maria,

    com texto de Castro Alves, composta em 1949 e dedicada a uma namorada (Maria

    Aparecida). Teve sua estria na voz de meio-soprano de sua me, Jlia Costa de Lacerda, como prprio compositor ao piano, em So Paulo, naquele mesmo ano. Foi revista pelo autor em

    1971 (HIGINO, 2006).

    Quatro das dez canes de Lacerda, com texto de Manuel Bandeira, tambm foram

    compostas antes de seu contato com Guarnieri : O menino doente (1949), Cantiga I(1950),

    Poemeto ertico(1951) e Felicidade(1951).

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    Em 1963, com o decisivo apoio de Camargo Guarnieri, tornou-se o primeiro

    compositor brasileiro a estudar nos Estados Unidos da Amrica, na qualidade de bolsista da

    John Simon Guggenheim Memorial Foundation, de Nova Iorque, quando foi aluno de

    composio de Vittorio Giannini e Aaron Copland.

    Em 1965, representou o Brasil no Seminrio Interamericano de Compositores,

    realizado na Universidade de Indiana, e no III Festival Interamericano de Msica, em

    Washington D.C. (EUA).

    Fundou a Mobilizao Musical da Juventude Brasileira, ocupando o cargo de

    diretor do Departamento de Divulgao da Msica Brasileira, entre 1951 e 1955. Fundou e

    dirigiu a Sociedade Paulista de Arte, assim como a Sociedade Pr-Msica Brasileira e o

    Centro de Msica Brasileira, este ainda em franca atividade em So Paulo.

    Foi membro, como consultor ad hoc, da Comisso Nacional de Msica Sacra(1965-1968), do que resultou importante trabalho sobre o uso das constncias harmnicas e

    polifnicas da msica popular brasileira e seu aproveitamento na msica sacra, alm de

    diversas obras sacras, tais comoMissa Ferial, Missa a duas vozes, Missa Santa Cruz, Prprio

    do Esprito Santo, Prprio para as festas de Nossa Senhora eTrs Salmos (LACERDA in

    ALBUQUERQUE, 2005).

    Lecionou teoria elementar, solfejo, harmonia, contraponto, anlise e composio

    ao longo de sua vida, alm de ter publicado vrias obras didticas, dentre as quais o

    Compndio de Teoria Elementar da Msica(So Paulo: Ricordi, 1961), atualmente j em sua13 edio. Continua a ensinar anlise e composio em sua casa, no bairro de Perdizes, na

    Capital paulista, onde tenho tido o prazer de ser por ele orientado, desde 2005 .

    Lacerda obteve diversas premiaes em concursos nacionais de composio,

    destacando-se o primeiro lugar no Concurso Nacional de Composio Cidade de So Paulo

    (1962), com a Suite Piratininga,e tambm o primeiro lugar no Concurso de Compositores de

    Obras Sinfnicas da Rdio MEC. Em 1967, foi o primeiro colocado no Concurso de

    Composio e Arranjos para Coro Misto a Quatro Vozes, promovido pela Universidade

    Federal da Paraba, com o seu Poema da necessidade (texto de Carlos Drummond deAndrade) para coro misto a quatro vozes. Em 1981, teve seu Concerto para flautim e

    orquestra de cordas reconhecido como a melhor obra de cmara do ano, pela Associao

    Paulista de Crticos de Arte. Recebeu, ainda, inmeras distines, homenagens e comendas,

    tanto no plano nacional, quanto internacional.

    Comumente encontramos, na atualidade, menes ao fato de que Lacerda seria o

    ltimo dos nacionalistas", o que no verdade, posto que muitos outros compositores de

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    destacada produo, possuem obra de cunho nacionalista, tais como Villani-Crtes, Ronaldo

    Miranda, Marlos Nobre, Nilson Lombardi, Edino Krieger, Henrique de Curitiba, dentre

    outros. Alguns deles, fato, foram tambm alunos de Camargo Guarnieri, o que levou falsa

    crena de que este forava seus alunos a escrever "brasileiramente". A respeito do assunto,

    assim se expressa Lacerda (2001, p. 60-61):

    [...] Nada mais longe da verdade; o que existe a uma grande confusoentre causa e efeito. A realidade esta: no pelo fato de os alunosestudarem com Guarnieri que compem msica brasileira, mas porcomporem msica brasileira que estudam com Guarnieri.[...] O que Guarnieri faz, na realidade, com seus alunos, conscientiz-losda problemtica da nossa msica, e induzi-los a aprofundar o conhecimentoe manejo da mesma. Consegue esse objetivo por meio de sbios conselhos,pelo ensino da composio e pelo exemplo de sua prpria obra.

    Semelhante ao que aconteceu com Camargo Guarnieri, Osvaldo Lacerda foi

    profundamente influenciado pelas idias e obras de Mrio de Andrade, especialmente no

    apego busca de uma msica de carter nacional, onde seus elementos constitutivos mais

    genunos fossem encontrados no sentimento, na poesia e na msica do povo.

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    3- Lacerda: o professor e o compositor na cano de arte brasileira

    Preliminarmente, formularemos algumas indagaes no intuito de auxiliar-nos em

    nossas reflexes. A primeira delas a de se perguntar por qual razo se escreve msica?

    Segundo Schumann (JOURDAIN, 1998, p. 250), "as pessoas compem por muitos motivos:

    para se tornarem imortais; porque, por acaso, o piano estava aberto; por desejarem ficar

    milionrias; por causa do elogio dos amigos; porque olharam para um lindo par de olhos; ou

    sem motivo algum, absolutamente".

    Outra questo nos interpela: qual o tipo de msica que escrevemos ou que

    deveramos escrever? Msica de carter universal ou msica nacional? Osvaldo Lacerda

    (2005, p. 59), falando de "msica nacional" afirma que necessrio, antes de tudo, que nos

    descartemos de dois sofismas. Primeiro o de que o compositor escreve msica para si mesmo,de modo a dar apenas cumprimento a uma fatalidade criadora; o outro o que diz que o gnio

    desafia as regras e prescinde da tradio. Ele acrescenta:

    [...] o que o compositor pretende, acima de tudo, fazer-se inteligvel aoprximo e, para isso, precisa revestir sua inspirao de uma forma adequadaao tempo e ao lugar em que escreve. Esse princpio deve ser reconhecidopelo compositor, porque se ele procura exprimir-se de maneira estranha aoseu ambiente e, portanto, estranha sua prpria natureza, estar sendo,consciente ou inconscientemente, insincero.[...] Tanto o gnio musical como o talento annimo que, no mais recnditorinco do pas, cria uma bela cano folclrica, pertencem inexoravelmente

    mesma nao. Tanto esses dois extremos como os que entre eles se situamso elos da mesma cadeia, so manifestaes, apenas em graus diferentes, domesmo desejo e da mesma natureza de expresso artstica.[...] A perfeio formal, pois, pode ser encontrada na mais complexa dassinfonias como na mais simples das melodias folclricas (p. 59).

    No conjunto da obra de Osvaldo Lacerda, podemos encontrar diferentes elementos

    de carter genuinamente brasileiro, tanto na parte da voz quanto na do piano. O estudo desses

    elementos com certeza possibilitar uma melhor compreenso dos caminhos trilhados na

    composio de tais peas, oferecendo-nos, ainda, a ocasio de conhecer os diferentes

    elementos rtmicos, meldicos e harmnicos utilizados por Lacerda em suas canes decmara. importante salientar que Lacerda, alm de compositor, atuante professor de

    Composio, Harmonia e Contraponto, o que nos permite inferir que, nas canes analisadas,

    encontraremos as premissas por ele defendidas e transmitidas a seus alunos e discpulos.

    Ademais, restringindo-nos s dez canes com texto de Manuel Bandeira, existe a

    possibilidade de se perscrutar a percepo do compositor sobre a potica de Bandeira ao

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    longo de quase cinqenta anos, pois a primeira das canes foi composta em 1949 (O menino

    doente) e, as ltimas, em 1997.

    Conheci pessoalmente o professor Osvaldo Lacerda em julho de 2005, quando por

    recomendao das professoras Belkiss S. Carneiro de Mendona e Consuelo Quireze Rosa,

    mostrei a ele meus trabalhos de composio e pedi que me aceitasse como seu aluno de

    Composio, Harmonia e Contraponto. A partir de ento, uma estreita relao estabeleceu-se

    entre ns e, com o passar do tempo, transformei-me, de aluno, em discpulo. Ao ter tido a

    oportunidade de conhecer mais de perto sua vasta produo musical, chamou-me especial

    ateno a coerncia entre o que ensina Lacerda e o que ele prprio utiliza, especialmente nas

    canes de cmara. A fluncia, a leveza do acompanhamento, a presena de tantos traos

    bastante recorrentes na msica de nosso povo l esto.

    notrio que Lacerda recebeu forte influncia de seu mestre, Camargo Guarnieri,no somente durante os dez anos em que com ele manteve uma relao de aluno-professor,

    mas tambm posteriormente, j na condio de discpulo muito prximo. Interessa-nos,

    particularmente, no que respeita a cano de cmara, conhecer o que Lacerda extraiu desse

    relacionamento para incorporar definitivamente a seu mtier de compositor. Ao falar da

    didtica empregada por Guarnieri, assim se expressa Lacerda (2001, p. 53):

    [...] Na msica vocal, corrige os erros de prosdia, chama a ateno para alimitao das vozes, e ensina a boa colocao das vogais. Na composiopara canto e piano, cuida que o piano no seja um mero harmonizador, masum verdadeiro parceiro do canto (o que conseguido, muitas vezes, peloemprego da tcnica contrapontstica). Chega-se, assim, a uma idealintegrao dos trs elementos da cano: texto, voz e instrumento.

    Geralmente, embora exista a possibilidade de se escrever em primeiro lugar a

    msica, para depois nela se colocar o texto, essa no parece ser a prtica mais usual. Exemplo

    da precedncia da msica sobre o texto so as Canes de Amor, escritas por Cludio Santoro,

    nas quais Vincius de Moraes colocou as palavras. Ao que tudo indica, o compositor e o poeta

    encontraram-se em Paris, em 1957/1958, tendo Santoro mostrado a Vincius os esboos de

    alguns de seus preldios/exerccios, para as quais o poeta viria a fazer o texto (HUE, 2001, p.73).

    Se tomarmos o exemplo da modinha, to presente e to importante na msica

    brasileira, percebemos que a preocupao em se obter a perfeita integrao de texto e msica

    no vem de agora. Em muitas modinhas antigas, da mesma forma como ocorre com as

    canes de cmara contemporneas, o compositor tambm se vale de palavras ou de idias

    tiradas do texto para represent-las musicalmente. (LIMA, 2001, p. 50).

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    Para se compor uma cano, a partir de um texto, ensina Lacerda, primeiramente

    preciso escolher um bom texto. Um texto que chame ateno por sua beleza de contedo e no

    qual o compositor, aps uma atenta leitura, possa embeber-se da emoo esttica despertada

    por aquela obra de arte (MARIZ, 2002, p. 39). Depois, preciso l-lo em voz alta, de maneira

    ritmada, uma, duas, trs, muitas vezes, de modo a se deixar impregnar pela fora das palavras,

    por seu significado e pelas imagens por elas construdas.

    Ensina Lacerda que, do ponto de vista musical, uma cano capaz de exprimir o

    jeito de ser de um determinado povo no pode prescindir da utilizao das chamadas

    "constncias musicais", que nada mais so do que elementos da msica do povo, regularmente

    recorrentes, e que refletem um dos aspectos do pensar musical de uma nao. Podem ser

    meldicas, rtmicas, harmnicas, polifnicas, tmbricas e formais. Delas o compositor deve

    lanar mo para criar msica erudita de carter nacional, sem se esquecer, no entanto, de queo emprego das constncias meldicas da msica popular deve desempenhar papel mais

    importante do que as constncias rtmicas. As primeiras refletem mais intrinsecamente a

    psicologia musical da raa, por outro lado, o emprego pouco criterioso ou desabusado das

    frmulas rtmicas muito caractersticas pode empobrecer a inveno do compositor e fazer

    com que a msica brasileira se torne extica at para ns mesmos. No se nega,

    evidentemente, a importncia do papel do ritmo na construo musical, todavia deve-se

    buscar o emprego equilibrado e judicioso, tanto das constncias rtmicas quanto das meldicas

    (LACERDA in ALBUQUERQUE, 2005, p. 64).O pensamento de Lacerda no colide, por certo, com o fato de que muitos

    compositores, dentre os quais Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e Lorenzo Fernandez, por

    exemplo, tenham usado abundantemente o acompanhamento ritmado, em ostinato, honrando,

    assim, nossas origens indgenas e africanas. Ele se refere muito mais, a meu ver, ao perigo

    representado por uma banalizao desse recurso, quando empregado de maneira simplria e

    isolada, sem a presena de outros elementos que contribuam para caracterizar ou realar nossa

    nacionalidade musical.

    No nordeste brasileiro abundam exemplos de constncias meldicas, onde omodalismo encontra-se presente de forma importante. O modo mixoldio, que os folcloristas

    muitas vezes preferem denominar de "stima abaixada"; o modo ldio, ou de "quarta

    aumentada", menos freqente que o anterior; a coexistncia dos dois modos na mesma

    melodia; o modo drico, tambm muito encontrado. H, ainda, a repetio de notas, como em

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    muitas emboladas1, bem como em melodias para exibio virtuosstica instrumental, como no

    caso da flauta ou do cavaquinho, quando executam choros e maxixes, por exemplo.

    Evidentemente que a utilizao pura e simples dessas escalas no atribui carter

    nacional melodia. Isso somente ocorre quando se utilizam processos meldicos tipicamente

    nossos e que podem, se bem conduzidos, conjugar-se perfeitamente com as mencionadas

    escalas, como se poder perceber nos exemplos a seguir.

    Figura 1 Cantiga do folclore nordestino, em modo mixoldio, recolhida por Camargo Guarnieri(LACERDA in ALBUQUERQUE, 2005, p. 117).

    Figura 2 Melodia em modo ldio, recolhida por Mrio de Andrade (LACERDA inALBUQUERQUE, 2005, p. 117).

    Figura 3 A coexistncia da stima abaixada e da quarta aumentada na mesma melodia, numtrecho do Glria da Missa Santa Cruz, de Osvaldo Lacerda (LACERDA in ALBUQUERQUE, 2005, p. 117).

    1Forma potico-musical, improvisada ou no, em compasso binrio, cuja melodia declamatria, em valoresrpidos e intervalos curtos, e que usada pelos solistas nas peas com refro coral ou dialogadas como cocos edesafios (FERREIRA, 2004).

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    Figura 4 - A utilizao da quarta aumentada na cano Quando te vi pela primeira vez, de CamargoGuarnieri (MARIZ in SILVA, 2001, p.383).

    Figura 5 - Escala pentafnica, tema de Cantilena, de H. Villa-Lobos (LACERDA inALBUQUERQUE, 2005, p. 116).

    Figura 6 - Escala hexafnica num Canto de Oxal, do candombl nag, recolhido por CamargoGuarnieri, na Bahia (LACERDA in ALBUQUERQUE, 2005, p. 116).

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    J no que diz respeito harmonia, predomina na msica do povo o tonalismo

    harmnico europeu herdado de Portugal. No fenmeno nacional e mesmo novos processos

    so invenes individuais, passveis de serem generalizadas universalmente. Mesmo se

    utilizarmos processos harmnicos exticos, criando uma ambincia harmnica extravagante

    ao tonalismo europeu, isso ser episdico e no sistemtico e quer sejam tomados como

    modos ou como alteraes, isso j est recepcionado na harmonizao europia, na opinio de

    Mrio de Andrade (1928, apud LACERDA in ALBUQUERQUE, p. 74).

    Ainda assim, encontramos com relativa freqncia um processo harmnico

    recorrente em nossa msica popular, que a modulao subdominante quando em modo

    menor, especialmente na msica urbana de origem carioca, como no choro, no tango

    brasileiro e no maxixe. Embora no possamos falar em "harmonia nacional", tal processo

    pode servir para realar a melodia de origem popular, acentuando seu carter brasileiro.No que se refere s constncias polifnicas, merecem destaque as chamadas

    "teras caipiras", muito encontradas na msica do homem do campo de So Paulo e Minas

    Gerais, assim como em suas regies limtrofes. No se baseiam simplesmente no intervalo de

    tera, mas ao se associarem a constncias meldicas e rtmicas prprias desse tipo de msica,

    espelham o prprio jeito de ser do caipira. Outro elemento muito caracterstico da msica

    brasileira o baixo meldico do violo, desenvolvido pelos tocadores populares de violo, do

    norte ao sul do pas, onde alm de enriquecerem a melodia principal, chegam s vezes a

    constituir linhas meldicas independentes, de grande expressividade. No foi, portanto, poracaso que muitos de nossos grandes compositores lanaram mo desse recurso em obras para

    diferentes formaes o que, na escrita para piano, convencionou-se chamar de "violo

    pianstico". (LACERDA in ALBUQUERQUE, 2005, p. 81).

    Figura 7 Moda de viola recolhida por Rossini Tavares de Lima (LACERDA inALBUQUERQUE, 2005, p.119).

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    Figura 8 - O emprego da tera caipira no Credo, da Missa a duas vozes, de Osvaldo Lacerda(LACERDA, 2005, p. 81).

    Ao considerarmos a cano como sendo poesia cantada, algo fundamental a

    prosdia2. Infelizmente, compositores h que simplesmente ignoram ou no se atentam para a

    importncia de que as slabas tnicas sejam respeitadas e cantadas como tal. Isso talvez possa

    se explicar pela influncia de modinhas mais antigas, onde com muita freqncia se percebe o

    deslocamento do acento da tonicidade de certas palavras, muito ao gosto do povo

    (RODRIGUES, 1982, p. 109), mas que certamente no cabe numa cano de cmara.

    Os exemplos abaixo nos mostram duas situaes. Na primeira, a palavra cano

    no tem sua prosdia respeitada (exemplo hipottico 9), uma vez que a slaba tona "can"

    prolongada indevidamente numa nota mais longa e num ritmo que a acentua, deslocando,

    portanto, o acento que deveria recair sobre a slaba tnica "o". Na segunda, utiliza-se uma

    sncopa de modo a evitar o erro de prosdia.

    Figura 9 Hipottico erro de prosdia

    2Prosdia: Ajuste das palavras msica e vice-versa, a fim de que o encadeamento e a sucesso de sbalas fortese fracas coincidam, respectivamente, com os tempos fortes e fracos dos compassos (FERREIRA, 2004).

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    Figura 10 - trecho de Saudade(msica de Fernando Cupertino e texto extrado de trovas de autoresdiversos).

    Outra preocupao diz respeito cacofonia, ao acentuar ou articular

    indevidamente certas slabas, fazendo com que soem de maneira desagradvel. No exemplo

    abaixo, a modinha vilaboense3Luares goianos, nas duas verses colhidas por Maria Augusta

    Calado de Saloma Rodrigues (1982, p. 145), aparece uma gritante cacofonia: a slaba cos

    da palavra brancos transforma-se em cs pela colocao da slaba tona da palavra

    brancos numa nota aguda. Na verso em compasso 3|4 isso ainda mais intenso, pois alm

    da altura da nota, ela tem durao mais prolongada.

    Figura 11 - trecho de Luares goianos, atribuda a Joaquim Bonifcio de Siqueira (1883-1923), emduas variantes (RODRIGUES, 1982, p. 145).

    A busca do equilbrio entre voz e piano mostra-nos, por vezes, solues bastante

    originais. Uma das mais freqentes movimentar uma das partes, enquanto a outra tem notas

    de durao mais longa, como podemos notar nos ltimos compassos da cano Quandoembalada, de Camargo Guarnieri (exemplo 12).

    3Gentlico que designa o natural ou habitante de Vila Boa de Gois, atual Cidade de Gois, antiga Capital doEstado de Gois, declarada Patrimnio da Humanidade pela UNESCO.

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    Figura 12 - trecho de Quando embalada(Camargo Guarnieri). Enquanto a voz executa notas mais

    longas, descendentes por grau conjunto, o piano imita um violo seresteiro em semnimas pontuadas e colcheias,num movimento cromtico descendente.

    O movimento contrrio tambm freqentemente utilizado na busca de uma maior

    variedade meldica e harmnica. Por outro lado, muitas vezes o ritmo tem, tambm, uma

    participao destacada. Neste caso, muitas so as possibilidades, tais como o uso da sncopa,

    do baixo cantante imitando o violo chamado por alguns de violo pianstico, ou da

    simples insistncia do mesmo motivo rtmico, numa espcie de ostinato4. No exemplo a

    seguir, um trecho da cano Lembranas do Losango Cqui, de Camargo Guarnieri, onde o

    compositor utiliza o modo frgio em F sustenido menor, encontramos o acompanhamento em

    ostinatocom um marcado carter rtmico; j o baixo imitando o violo, pode ser encontrado

    na Valsa romntica, de Osvaldo Lacerda.

    Figura 13 - incio da cano Lembranas do Losango Cqui, de Camargo Guarnieri, com texto deMrio de Andrade (MARIZ in SILVA, 2001, p. 383).

    4Ostinato: Termo que se refere repetio de um padro musical por muitas vezes sucessivas (ZAHAR, JorgeEd.- Dicionrio Grove de Msica edio concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1994, pg. 687).

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    Figura 14 - trecho de Valsa romntica(Osvaldo Lacerda), que nos mostra o movimento contrrio(compassos 10 e 16) e o violo pianstico no acompanhamento do baixo.

    A fluncia da melodia sobre o texto reveste-se, tambm, de grande importncia.

    preciso transmitir, na msica, o sentido requerido pelas palavras. Assim, exige-se docompositor uma coerncia entre o desenvolvimento da linha meldica e o sentido das

    palavras. Para tanto, recursos de dinmica e de andamento so tambm freqentemente

    utilizados, assim como a mudana da frmula de compasso, de modo a realar as inflexes

    desejadas e a manter a mtrica do discurso. o que temos no exemplo 15, Ouvir estrelas,

    cano de Osvaldo Lacerda com texto de Olavo Bilac: no compasso 23, percebe-se o incio de

    uma frase com a indicao de "piano", que reforada no compasso seguinte com a indicao

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    de "piano e crescendo", numa feliz potencializao da imagem sugerida pelo texto (..."e ao vir

    do sol saudoso e em pranto inda as procuro pelo cu deserto"...). Note-se que dos compassos

    32 a 36 a melodia acompanha a linha interrogativa do texto, numa progresso fluente que

    coerente com o sentido das palavras e que respeita a prosdia ao lanar mo de artifcios

    como a mudana da frmula de compasso e o emprego de tercinas. Recurso semelhante

    empregado mais adiante, alternando o compasso binrio e o ternrio, em perfeito respeito

    prosdia, ao ritmo e mtrica do soneto. Alm disso, as alteraes de dinmica,

    especialmente do compasso 37 at o final da pea, prescrevem os rumos que se deve adotar

    para sua correta interpretao, de modo a permitir que a msica sublinhe fortemente o sentido

    das palavras.

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    Figura 15 - Ouvir estrelas(msica de Osvaldo Lacerda e texto de Olavo Bilac).

    Outro aspecto extremamente importante a ser considerado em qualquer cano de

    cmara, diz respeito ao papel desempenhado pelo instrumento acompanhador, em geral o

    piano. Dependendo da obra, o pianista deve observar a escrita polifnica, a independncia das

    vozes, ressaltando a melodia principal e, sobretudo, fazer soar o baixo. Nas situaes onde

    existe uma linha meldica superior apoiada por um baixo igualmente meldico, fundamental

    manter o dilogo entre as vozes e, ainda, quando a melodia do baixo proeminente, o pianista

    deve execut-la "cantando", posto que, muitas vezes, trata-se do som seresteiro que evoca o

    violo trovador (SANTOS, 2006, p. 84).

    Muito embora o acompanhamento no esteja subordinado voz, pois que

    freqentemente estabelece um dilogo com ela ou ainda atua de forma mais autnoma, o

    piano no deve ser "invasivo", ou seja, no deve competir com a voz, impondo-se com uma

    evidncia que muitas vezes diminui a nfase e o papel do texto cantado e sua significao

    potica e sonora.

    Tais observaes nos remetem delicada e crucial questo da interpretao. Se

    considerarmos, como j foi dito, que a cano poesia cantada e que, alm disso, envolve voz

    e acompanhamento, a interpretao pode realar ou sepultar a beleza e as qualidades de uma

    cano, aqui entendidas, sobretudo, como a beleza e a coerncia da construo musical com a

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    mensagem potica. Feitas as consideraes sobre o acompanhamento, resta-nos abordar a

    interpretao sob o aspecto vocal.

    Recomenda-se, antes de se estudar a melodia, ler e declamar o texto repetidas

    vezes; encontrar nele as inflexes precisas, as pausas e as frases que necessitam ser faladas

    sem interrupo para a respirao, por exemplo. Depois de feito isso, preciso analisar

    detidamente o andamento, a expresso, a dinmica, enfim todas as indicaes feitas pelo

    compositor, de modo a compreender em profundidade a inteno ali colocada pelo autor da

    obra.

    Finalmente, cantor e acompanhador necessitam construir um consenso sobre como

    interpretar a pea em estudo e, ainda mais, buscar estabelecer uma verdadeira cumplicidade

    ativa, numa comunicao capaz de oferecer um ao outro a resposta conjunta e simultnea ao

    desafio de bem interpretar.

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    4 As dez canes analisadas

    A anlise das canes objeto deste estudo obedecer a um esquema sistematizado

    a partir das sugestes do prprio compositor. Para Lacerda, a cano "poesia cantada" e,

    assim, o mais importante seria aquilatar a coerncia entre a msica e o texto, chamando a

    ateno para os recursos utilizados pelo compositor, tanto na parte vocal como instrumental,

    que permitam atingir plenamente o objetivo. Ele insiste, ainda, em realar dois aspectos

    importantes, em sua opinio. O primeiro deles que "msica requer coerncia e variedade",

    de modo a evitar-se a monotonia da simples repetio, mas de forma que a pea guarde sua

    coerncia intrnseca. O outro diz respeito interpretao do gnero cano, que requer no

    apenas domnio da tcnica vocal, mas, tambm, capacidade declamatria e unidade no

    tratamento do texto, da voz e do instrumento.Assim, pareceu-nos adequado escolher uma anlise onde os aspectos

    fenomenolgicos sejam o ponto principal, sem, contudo, deixar de lado os aspectos formais,

    meldicos, harmnicos e rtmicos. A abordagem fenomenolgica refere-se intencionalidade

    da conscincia humana no descrever, compreender e interpretar os fenmenos que se

    apresentam nossa percepo. O principal consistir em tentar demonstrar como o

    compositor escreveu a cano, a partir da premissa j exposta, ou seja, usando a msica para

    colocar, de modo coerente e interessante, o texto em evidncia.

    Adotaremos a seguinte matriz analtica, composta por uma ficha catalogrfica epelo estudo analtico, que por sua vez comporta uma anlise morfo-estrutural e os

    comentrios do compositor, obtidos por meio de entrevista e resposta a um questionrio semi-

    estruturado:

    1- Ficha catalogrfica da cano

    1.a.Ttulo da obra.

    1.b.Ano de composio.

    1.c.Durao e tessitura da voz.1.d.Existncia ou no de dedicatrio(s).

    1.e.Data e dados relativos primeira audio.

    1.f.Existncia ou no de reviso posterior pelo autor.

    1.g.Data e dados relativos estria ps-reviso.

    1.h.Existncia de algum dado particular referente obra.

    1.i.Edio e/ou gravao

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    1.j.O texto utilizado5

    2- Estudo analtico

    2.a.Anlise morfo-estrutural

    2.b.Comentrios do prprio compositor a respeito da pea, a partir do seguinte questionrio:

    2.b.1 - Que razes o levaram a escrever essa cano?

    2.b.2 - H alguma particularidade a ser destacada nessa cano?

    2.b.3 - Ela foi dedicada a algum em particular?

    2.b.4 - Qual o carter que o senhor, como compositor, desejou imprimir a essa cano?

    2.b.5 - H algum outro comentrio que o senhor julga pertinente registrar?

    5As obras de onde foram extrados os poemas so as mencionadas por BARBOSA, Virgnia. Manuel Bandeira:120 anos de nascimento, presena em bibliotecas brasileiras. Disponvel emhttp://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=16&pageCode=402&textCode=6320&date=currentDate. Acesso em 26/02/2009.

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    1- O menino doente.

    1- Ficha catalogrfica da cano

    1.a. Ano de composio:1949.

    1.b. Durao aproximada e tessitura da voz: 3' 10. Voz mdia.

    1.c. Dedicatria:" minha querida me".

    1.d. Primeira audio em So Paulo (SP), em 1949. Mezzo soprano: Jlia Costa; piano:

    Osvaldo Lacerda.

    1.e. Revisopelo autor em 1972.

    1.f. Estria da revisoem 20 de abril de 1979, em So Paulo (SP). Mezzo soprano: Lenice

    Prioli; piano: Cllia Ognibene.

    1.g.Pea de confronto da prova eliminatria do VI Concurso de Interpretao da Cano deCmara Brasileira (2004), promovido pelo Centro de Msica Brasileira, So Paulo (SP).

    1.h. Edio da reviso: So Paulo: Novas Metas, 1980.

    Edio:Barcelona: Trit, 2005.

    1.i. Gravaes:

    1.i.1.Lenice Prioli, mezzo soprano; Maria Jos Carrasqueira, piano.

    LP "Osvaldo Lacerda" Discos Marcus Pereira MPL 9410, 1980.

    1.i.2.Lenice Prioli, mezzo soprano; Maria Jos Carrasqueira, piano.

    CD "Osvaldo Lacerda Msica de cmara", 1999.1.i.3.Denise de Freitas, mezzo soprano; Eudxia de Barros, piano.

    CD "Ouvindo Osvaldo Lacerda" ABM Digital, 2003.

    1.i.4.Patrcia Caicedo, soprano; Eugenia Gassul, piano.

    CD "A mi ciudad nativa" Mundo Arts, Barcelona (Espanha), 2005.

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    O menino doente

    (do livro Poesias: A cinza das horas, Carnaval, Ritmo dissoluto)

    O menino dorme.

    Para que o meninodurma sossegado,sentada a seu ladoa mezinha canta:

    __ Dodi, vai-te embora!Deixa o meu filhinho.dorme... dorme... meu...

    Morta de fadigaela adormeceu.

    Ento, no ombro dela,um vulto de santa,na mesma cantiga,na mesma voz dela,se debrua e canta:

    __ Dorme, meu amor,dorme, meu benzinho...

    E o menino dorme.

    2 Estudo analtico

    2.a. Anlise morfo-estrutural:

    A cano O menino doente possui cinco compassos de introduo, com a

    indicao de "Tranqilo":

    Figura 16 Osvaldo Lacerda: O menino doente(compassos 1 a 6).

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    Os compassos introdutrios visam criao de uma ambientao sonora para a

    apresentao de um recitativo de 10 compassos, escrito naquela que Baptista Siqueira chama

    de "escala brasileira" (SIQUEIRA, 1951), onde esto presentes o abaixamento do stimo grau

    e a elevao do quarto:

    Figura 17 - Osvaldo Lacerda: O menino doente(compassos 6 a 15)

    Segue-se um interldio de dois compassos (compassos 16 e 17), que se comportam

    como uma ponte harmnica com uma ntida inteno suspensiva:

    Figura 18 Osvaldo Lacerda: O menino doente(compassos 16 a 17).

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    Apresenta-se, ento, um primeiro tema ("Moderato", com ternura). Trata-se de um

    acalanto onde o tonal predominante cede lugar, por vezes, ao modal (compassos 26 e 27),

    terminando mais adiante num acorde suspensivo que reala o a mensagem do texto:

    Figura 19 Osvaldo Lacerda: O menino doente(compassos 18 a 32).

    Novo interldio de dois compassos (33 e 34) retoma a atmosfera da introduo,

    seguindo-se imediatamente novo trecho narrativo de 9 compassos, que se encerra tambm

    suspensivamente com um acorde de si maior com 7 menor acrescentada:

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    Figura 20 Osvaldo Lacerda: O menino doente(compassos 33 a 43).

    O segundo acalanto, que se inicia no compasso 44 (Moderato), recebe a indicao

    de "dolcissimo". Nele, o piano mantm na mo direita um ostinato meldico, enquanto a

    esquerda ocupa-se dos acordes para a definio rtmica e harmnica. Aqui, mais uma vez, o

    compositor vale-se de alguns recursos para buscar a coerncia com as palavras. Cria uma

    atmosfera etrea e delicada, em consonncia com o texto, que descreve a cano de ninar que,

    ao finalizar, sugere o adormecer da criana:

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    Figura 21 Osvaldo Lacerda: O menino doente(compassos 44 a 52).

    Seguem-se dois compassos de concluso da frase meldica a cargo do

    instrumento, seguidos de uma coda de 7 compassos que se inicia a partir do compasso 55,

    numa variante do mesmo tema narrativo, enunciado pela voz no incio da pea. Os compassos

    finais remetem-nos ao modalismo inicial.

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    Figura 22 Osvaldo Lacerda: O menino doente(compassos 53 a 61).

    Percebe-se, na parte do piano, que o ritmo aparece bem definido pela mo

    esquerda dos compassos 18 a 32 (primeiro acalanto), ficando a mo direita livre para osacordes. No segundo acalanto (compassos 44 a 54), o ritmo continua bem definido pela mo

    esquerda que tambm trabalha a harmonia, enquanto a direita mantm um ostinato

    meldico, como j referido. Fora dessas partes, no h uma definio rtmica muito precisa;

    antes, o piano ocupa-se fundamentalmente de fornecer ao canto o necessrio apoio

    harmnico.

    A dinmica, a aggica, os efeitos harmnicos suspensivos, assim como outros

    recursos de que lana mo o compositor, guardam estreita relao com a mensagem veiculada

    pelo texto, reforando o sentido das palavras. Para bem perceber tudo isso, importanteacompanhar atentamente o desenvolvimento da msica em relao ao texto.

    2.b. Comentrios do compositor:

    Osvaldo Lacerda considera que Manuel Bandeira une muito bem o atributo de

    intuio potica com o racionalismo, num perfeito entendimento entre o racional e o intuitivo,

    o que, a seu ver, o apangio do verdadeiro poeta. Alm disso, Bandeira domina plenamente

    a tcnica, utilizando-a como meio para se exprimir. Indagado sobre o porqu de suapreferncia por Manuel Bandeira, responde Lacerda: "[...] alta a qualidade da poesia, sob

    todos os aspectos, e muito brasileiro no sentir. So estes atributos que me fazem preferir

    Manuel Bandeira".

    Sobre as razes que o levaram a escrever "O menino doente", assim se expressa o

    compositor:

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    [...] Em grande parte, o que me levou a escrever esta cano foi porque eutinha escrito a primeira, Minha Maria... esta foi - no digo inspirada, masajudada por um namoro que eu tive com uma "Maria" e, por acaso, eu acheiessa poesia ao ler Castro Alves e... a inspirao foi instantnea, e eu escrevi.Depois eu me disse: vou fazer uma primeira cano para uma namorada?Era muito mais justo fazer para meus pais... Ento, logo me caiu nas mos e eu acredito muito no destino, [...] eu estava destinado a encontrar essapoesia "O menino doente" num livro do Manuel Bandeira. Ento foi isso queme levou a escrever essa cano, para dedic-la a meus pais e, tambm, porum fato maravilhoso: que "O menino doente" possibilita dois acalantos, umcaso nico, creio eu, pelo menos na msica brasileira, de uma poesia queenvolve dois acalantos. Um o acalanto da me, que est cansada eadormece... ento, uma apario ao lado da me continua... e temos a umsegundo acalanto, que tem que ser diferente do primeiro. Procurei fazer essesegundo acalanto um pouco mais etreo do que o primeiro. Quanto a essaapario, o materialista vai dizer que uma alucinao do poeta; o catlicovai dizer que o anjo da guarda... Eu prefiro a interpretao esprita:enquanto a me dormia, o esprito dela continuou velando pela criana.

    Ento, a alma da me. [...] Tudo isso em poucas linhas porque a poesia sinttica. Tem todo um quadro maravilhoso numa pequena poesia.[...] uma cano descritiva, que tem uma atmosfera penumbrosa: o quartode uma criana doente e a me (entrevista concedida por Osvaldo Lacerda,2008).

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    2- Cantiga I

    1- Ficha catalogrfica da cano

    1.a. Ano de composio: 1950.

    1.b. Durao aproximada e tessitura da voz: 1'45. Voz aguda.

    1.c.No h dedicatria.

    1.d. Primeira audioem So Paulo (SP), em 29 de abril de 1952. Soprano: Dris Cmera;

    piano: Osvaldo Lacerda.

    Em 1964, Osvaldo Lacerda comps uma outra cano com o mesmo texto, a que deu o nome

    de Cantiga II. A composta em 1950 passou a denominar-se Cantiga I. Reviso pelo autor em

    1974.

    1.e. Gravaes:1.e.1.Lenice Prioli, mezzo soprano; Selma Asprino, piano.

    LP "O brasileiro de sempre" Academia Santa Ceclia de Discos, ASC 103.

    1.e.2. Sandra Flix, soprano; Scheilla Glaser, piano.

    CD "Canes brasileiras" Paulus 005328, 2000.

    1.e.3.Denise de Freitas, mezzo soprano; Eudxia de Barros, piano.

    CD "Ouvindo Osvaldo Lacerda" ABM Digital, 2003.

    Cantiga I

    (do livro Estrela da Manh)

    Nas ondas da praianas ondas do marquero ser felizquero me afogar.

    Nas ondas da praiaquem vem me beijar ?Quero a estrela-dalva

    rainha do mar.

    Quero ser feliznas ondas do marquero esquecer tudoquero descansar.

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    2- Estudo analtico

    2.a. Anlise morfo-estrutural

    Cantiga Item forma ternria bem definida (A-B-A). Principia por uma introduo

    de quatro compassos com a indicao "sem pressa", onde o baixo do piano movimenta-se por

    segundas descendentes, retornando tnica do mesmo modo, em movimento ascendente,

    afirmando a tonalidade predominante (d menor).

    Figura 23 Osvaldo Lacerda: Cantiga I(compassos 1 a 5)

    Segue-se, ento, o tema A, anacrstico, que repetido:

    Figura 24 - Osvaldo Lacerda: Cantiga I(compassos 5 a 13).

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    Depois de rpida modulao, surge o tema B, expresso predominantemente no seu

    relativo maior (mi bemol), mas que transita com modulaes sucessivas para os tons vizinhos,

    at terminar em sol menor, encaminhando-se para o retorno do primeiro tema, em d menor.

    Figura 25 Osvaldo Lacerda: Cantiga I(compassos 14 a 23).

    O tema A ento repetido (A'), encerrando-se com uma coda de cinco compassos,

    em cujo final encontramos a presena de stima abaixada e de quarta aumentada:

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    Figura 26 Osvaldo Lacerda: Cantiga I(compassos 24 a 37).

    .

    Nas duas vezes em que aparece o tema A, h uma polirritmia uniforme, que se

    repete de modo idntico no piano:

    Figura 27 Osvaldo Lacerda: Cantiga I(compassos 24 a 27).

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    36

    Na parte B, central, h uma pequena alterao rtmica com relao parte A,

    porm sem grandes mudanas no decorrer da seo.

    Praticamente todo o tempo, o piano sugere um movimento ondulante, deixando a

    voz livre para o canto. H pouqussimo uso de acordes, o que largamente compensado pelo

    tratamento contrapontstico polirrtmico.

    2.b. Comentrios do compositor:

    No houve, segundo o compositor, uma razo especial que o levasse a escrever

    "Cantiga". Apenas o fato de ser uma poesia bonita:

    [...] uma poesia bonita, no tem, assim... uma motivao especial. Noacompanhamento, procurei sugerir um movimento de onda, ondulante, e

    creio que consegui... um acompanhamento simples, que depende muito dobom uso do pedal.[...] Agora, passaram-se os tempos e tinha uma aluna minha que era cantora,que queria cantar a Cantiga, mas ela no gostava muito da cano. Como euqueria favorec-la, eu escrevi com a mesma letra uma segunda Cantiga, que "prima" da primeira (entrevista concedida por Osvaldo Lacerda, 2008).

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    3- Felicidade

    1- Ficha catalogrfica da cano

    1.a. Ano de composio: 1951.

    1.b. Durao aproximada e tessitura da voz:3'15. Voz mdia.

    1.c.No h dedicatria.

    1.d. Primeira audio em So Paulo (SP), em 28 de julho de 1952. Mezzo soprano:

    Maringela Rea; piano: Tereza Amaral Castro.

    1.e. Revisopelo autor em 1972.

    1.f. Gravao:

    1.f.1.Denise de Freitas, mezzo soprano; Eudxia de Barros, piano.

    CD "Ouvindo Osvaldo Lacerda" ABM Digital, 2003.

    Felicidade

    (do livro Poesias: A cinza das horas, Carnaval, Ritmo dissoluto)

    A doce tarde morre. E to mansaela esmorece,to lentamente no cu de prece,que assim parece, toda repouso,como um suspiro de extinto gozo

    de uma profunda, longa esperanaque, enfim cumprida, morre, descansa...

    E enquanto a mansa tarde agoniza,por entre a nvoa fria do martoda a minhalma foge na brisa:tenho vontade de me matar!

    Oh, ter vontade de se matar...bem sei cousa que no se diz.Que mais a vida me pode dar?Sou to feliz!

    Vem, noite mansa...

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    2- Estudo analtico

    2.a. Anlise morfo-estrutural

    Mais uma vez, o compositor lana mo de uma curta introduo de dois

    compassos, na regio aguda do piano, sugerindo um som longnquo e tranqilo:

    Figura 28 Osvaldo Lacerda: Felicidade (compassos 1 e 2).

    Um recitativo tem ento incio. Depois de dois compassos em que se anuncia uma

    melodia consonante, um ostinatoem arpejo acompanha a voz, terminando num intervalo de

    segunda menor que refora o sentido da palavra "descansa":

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    Figura 29 Osvaldo Lacerda: Felicidade (compassos 3 a 18).

    Segue-se um interldio de nove compassos, de carter expansivo, absolutamente

    inesperado, com o baixo em tercinas, e que contrasta fortemente com o ambiente sonoro

    delineado anteriormente. Subjetivamente poder-se-ia pensar num sentimento de libertao,

    consoante com o texto imediatamente anterior "[...] de uma profunda, longa esperana que

    enfim cumprida, morre, descansa".

    Figura 30 - Osvaldo Lacerda: Felicidade (compassos 19 a 27).

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    O motivo principal surge em seguida, escrito em compasso composto, anacrstico

    e introduzido por um arpejo em d menor:

    Figura 31 Osvaldo Lacerda: Felicidade (compassos 28 a 44).

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    Depois, o compositor, em poucos compassos, retoma elementos meldicos com

    que trabalhou no trecho acima e os integra a outros do interldio j exposto, para terminar a

    seo insistindo no intervalo de segunda menor entoado pelo canto e repetido em oitavas pelo

    piano, sugerindo eco:

    Figura 32 Osvaldo Lacerda: Felicidade (compassos 45 a 50).

    Volta o mesmo interldio, com duas pequenas diferenas: o andamento, que

    indicado como "um pouquinho mais lento" e a finalizao num acorde de si bemol maior. O

    canto, ento, partindo dessa tonalidade, faz uma rpida passagem por f menor (4. grau da

    tonalidade predominante) para terminar num acorde de d maior:

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    Figura 33 Osvaldo Lacerda: Felicidade (compassos 51 a 63).

    Esta cano tem a singularidade de apresentar um interldio que separa duas partes

    do texto e que repetido, como uma preparao para a concluso da mensagem vocativa da

    poesia "Vem, noite mansa...". Em nenhuma outra desse grupo de dez canes estudadas, isso

    ocorre. Alis, Lacerda parcimonioso nas partes confiadas ao piano em todas as suas canes,

    como bem se pode ver pelas curtas introdues instrumentais.

    curiosa a utilizao de um intervalo de segunda menor que acompanha a

    afirmao "sou to feliz!" (compasso 50). Soa como uma afirmao duvidosa, melanclica,

    condizente com passagens anteriores onde a poesia fala de morte e de descanso, em que o

    mesmo intervalo empregado (compassos 18 e 44).

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    2.b. Comentrios do compositor:

    Tanto "Cantiga", quanto "Felicidade", tem carter lrico. Indagado sobre de que

    maneira trabalha o texto para compor uma cano, ensina-nos o compositor:

    [...] Eu defino cano de cmara como poesia cantada. Ento, a transmissopara o povo pelo cantor um fenmeno que demanda ateno tanto para apoesia, como para o canto e o acompanhamento. Eu acho que o canto e oacompanhamento pelo piano, ou por outros instrumentos, so servidores dapoesia. Ento, fundamental que eles reflitam a poesia... e o que o cantoseno o aumento da emoo?... Da eu dar muita importncia a fazer umamelodia e o ambiente em funo da poesia. Antes de musicar, eu declamosozinho a poesia para sentir o ritmo dela, para entrar no seu mago e sento que eu componho, ao contrrio de muitos compositores brasileirosque gostam da poesia, entram de mergulho na msica e o que acontece? Apoesia vai para um lado e a msica vai para o lado oposto (entrevistaconcedida por Osvaldo Lacerda, 2008).

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    4- Poemeto ertico

    1- Ficha catalogrfica da cano

    1.a. Ano de composio: 1951.

    1.b. Durao aproximada e tessitura da voz: 1'50. Voz aguda.

    1.c.No h dedicatria.

    1.d.No h registro sobre a primeira audio.

    1.e. Gravaes:

    1.e.1.Tomasino Castelli, tenor; Eudxia de Barros, piano.

    CD "Canes de cmara - Osvaldo Lacerda" Paulinas Comep 12220-3, 1998.

    1.e.2.Patrcia Caicedo, soprano; Eugnia Gassull, piano.

    CD "A mi ciudad nativa" Mundo Arts, Barcelona (Espanha), 2005.1.f.Edio: Barcelona: Trit, 2005.

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    Poemeto ertico(do livro A Cinza das Horas)

    Teu corpo claro e perfeito,- teu corpo de maravilha,

    quero possu-lo no leitoestreito da redondilha...

    Teu corpo tudo o que cheira...Rosa... flor de laranjeira...

    Teu corpo, branco e macio, como um vu de noivado...

    Teu corpo pomo doirado...

    Rosal queimado do estio,

    desfalecido em perfume...

    Teu corpo a brasa do lume...

    Teu corpo chama e flamejacomo tarde os horizontes...

    puro como nas fontesa gua clara que serpeja,que em cantigas se derrama...

    Volpia de gua e da chama...

    A todo momento o vejo...teu corpo... a nica ilhano oceano do meu desejo...

    Teu corpo tudo o que brilha,teu corpo tudo o que cheira...Rosa, flor de laranjeira...

    Nota do compositor: No foram utilizados, na msica, os versos nos. 17,18, 20 (a nica ilha) e 21.

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    2- Estudo analtico

    2.a. Anlise morfo-estrutural

    A cano, cujo carter vem indicado como "apaixonado, mas com ternura", tem

    forma binria, com uma introduo de seis compassos, que enunciam um padro rtmico a

    vigorar praticamente em toda a pea. Na introduo, o compositor emprega o chamado "modo

    misto", tambm chamado de "escala brasileira", em que h a coexistncia da quarta

    aumentada e da stima abaixada. a nica das canes analisadas que apresenta armadura de

    clave. Em todas as outras o compositor prefere indicar os acidentes na pauta, sem armar a

    clave.

    Figura 34 Osvaldo Lacerda: Poemeto ertico (compassos 1 a 6).

    O tema A, anacrstico, que repetido, tem 16 compassos, com ritmo bem

    sincopado e apresenta escrita modal associada escrita tonal. No compasso 15, o emprego do

    acorde de stima de r bemol maior, seguido pela tonalidade de sol bemol maior, enfatiza o

    texto "... teu corpo tudo que cheira" (na primeira vez) e "... teu corpo chama e flameja" (na

    segunda vez). H um encadeamento harmnico utilizando tons vizinhos, que finaliza o tema

    A no primeiro grau da tonalidade original.

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    Figura 35 Osvaldo Lacerda: Poemeto ertico (compassos 5 a 23).

    O tema B, tambm anacrstico, tem 12 compassos, seguidos por uma coda de 5

    compassos, com a presena de um l bemol no penltimo compasso, que nos remete aoambiente do modalismo inicial. Na coda, o compositor usa, repetidamente, o nome "Rosa",

    com funo vocativa, o que refora o sentido do texto, onde o poeta canta o corpo da mulher

    amada.

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    Figura 36 Osvaldo Lacerda: Poemeto ertico (compassos 21 a 40).

    2.b. Comentrios do compositor:

    No momento em que foi realizada a entrevista com o professor Osvaldo Lacerda,

    este contabilizava 130 canes escritas, dentre as quais, segundo ele mesmo confessou,

    "Poemeto ertico" seria a "filha predileta".

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    [...] Eu acho que acertei em cheio ao musicar a poesia. E como eu lhe conteiagora h pouco, me chamou muita ateno um trecho dessa poesia, onde elediz com referncia amada: quero possu-la no leito estreito daredondilha. Isto, para mim, um dos maiores achados da poesia brasileira,mesmo sem ter a pretenso de conhecer toda a poesia brasileira, mas umacoisa to espiritualizada, to nica!... E sabe por qu? Porque ele diz: queropossu-la. Como? Na cama? No! Ali ele quer possu-la na poesia que estfazendo. Ento ele diz: quero possu-la no leito estreito da redondilha. Oque a redondilha? um tipo de verso de 5 que a redondilha menor oude 7 slabas, que a redondilha maior. Foi essa a imagem que provocou, emgrande parte, a composio (entrevista concedida por Osvaldo Lacerda,2008).

    5- Mandaste a sombra de um beijo

    1- Ficha catalogrfica da cano

    1.a. Ano de composio: 1962.

    1.b. Durao aproximada e tessitura da voz: 1:30. Voz mdia.

    1.c.No h dedicatria.

    1.d.Primeira audio em So Paulo (SP), em 24 de setembro de 1964. Bartono: Jarbas

    Braga; piano: Fritz Jank.

    Obs.- Esta cano recebeu o 2. Prmio do concurso "A Cano Brasileira de 1962",

    promovido pela Rdio Ministrio da Educao e Cultura, Rio de Janeiro. Concorreram 39

    canes de 21 autores.

    Mandaste a sombra de um beijo

    (do livro Poesias completas, com o ttulo de Cano)

    Mandaste a sombra de um beijona brancura de um papel:tremi de susto e desejo,beijei chorando o papel.

    No entanto, deste o teu beijoa um homem que no amavas:esqueceste o meu desejopelo de quem no amavas.

    Da sombra daquele beijoque farei, se a tua boca dessas que sem desejopodem beijar outra boca?

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    2- Estudo analtico

    2.a. Anlise morfo-estrutural

    A cano tem forma ternria e inicia-se por uma introduo, de tonalidade pouco

    definida, que recebe a indicao de "doloroso", ainda que o carter geral esteja indicado como

    "apaixonado". Ao final da introduo, um acorde arpejado de f sustenido maior com stima

    menor e quinta diminuta cria um efeito suspensivo para o incio do canto.

    Figura 37 Osvaldo Lacerda:Mandaste a sombra de um beijo (compassos 1 a 4).

    O tema A, anacrstico, encontra-se na tonalidade de si menor, com uma passagem

    para si maior no 9. compasso, sublinhando o sentido da palavra "tremi". Embora a linhameldica seja facilmente audvel, lrica e na maioria do tempo consonante, a harmonia

    profundamente dissonante, com inverso de acordes e com a incluso de notas estranhas aos

    acordes. H um trabalho contrapontstico que consegue, apesar de sua variedade, manter certa

    uniformidade rtmica.

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    Figura 38 Osvaldo Lacerda:Mandaste a sombra de um beijo (compassos 4 a 12).

    O tema B inicia-se no compasso 13, com uma anacruse, encerrando-se nocompasso 23, onde o tema A, com pequenas variaes, re-exposto (A'). Tanto no tema B,

    quanto no tema A', a melodia do canto mantm o carter lrico, enquanto o piano,

    especialmente pela harmonia j citada, cria um ambiente sonoro de angstia e de certa

    amargura, muito em consonncia com o sentido do texto.

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    Figura 39 Osvaldo Lacerda:Mandaste a sombra de um beijo (compassos 12 a 34).

    2.b. Comentrios do compositor:

    Esta cano foi feita com o nico intuito de concorrer num concurso decomposio da Rdio MEC, no Rio de Janeiro.

    [...] Dentro dessa mina de produo potica de Manuel Bandeira, encontreiessa poesia, que caa no meu jeito e foi a primeira que eu fiz mais ou menosno estilo de seresta. Ela pegou o segundo lugar no concurso. Foi o meuprimeiro prmio em concursos de composio (entrevista concedida porOsvaldo Lacerda, 2008).

    6- Poema tirado de uma notcia de jornal

    1- Ficha catalogrfica da cano

    1.a. Ano de composio: 1964.

    1.b. Durao aproximada e tessitura da voz: 2'15. Voz mdia.

    1.c. Dedicatria: a Jarbas Braga6.

    1.d. Primeira audio em Santos (SP), em 26 de abril de 1966. Bartono: Eldio Perez

    Gonzlez; piano: Paulo Herculano.

    Pea de confronto da prova final do VII Concurso de Interpretao da Cano de Cmara

    Brasileira (2008), promovido pelo Centro de Msica Brasileira, So Paulo (SP).1.e. Edio: So Paulo: Ricordi, 1970.

    1.f. Gravao:Eldio Perez Gonzlez, bartono; Berenice Menegale, piano. LP "Recital"

    Produo independente Frank Justo Acker, 1978.

    6Bartono e professor da Escola Municipal de Msica de So Paulo.

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    Poema tirado de uma notcia de jornal

    (do livro Libertinagem)

    Joo Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro[da Babilnia num barraco sem nmero.

    Uma noite ele chegou no bar Vinte de NovembroBebeuCantouDanouDepois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

    2- Estudo analtico

    2.a. Anlise morfo-estrutural

    uma cano singular, de carter narrativo e de forma livre. Apesar de narrar um

    drama do quotidiano, publicado num jornal, a pea no dramtica, mas narrativa. Inicia-se

    com o canto sem acompanhamento instrumental e sem nenhuma introduo. Esta primeira

    narrativa encerra-se na metade do compasso 14 ("[...] num barraco sem nmero"). O piano,

    escrito de modo a dar suporte harmnico voz, porm de forma contrapontstica, aparece a

    partir do 3. compasso, mantendo-se nesse papel at o compasso 21.

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    Figura 40 Osvaldo Lacerda: Poema tirado de uma notcia de jornal (compassos 1 a 14).

    Uma segunda seo tem ento incio, no ltimo tempo do compasso 14. Depois de

    haver situado Joo Gostoso, indicando sua profisso e domiclio, a narrativa passa agora ao

    fato em si, ou seja, s circunstncias em que ocorreu a morte da personagem. notvel como

    aqui o compositor consegue criar um ambiente que descreve musicalmente o que o texto faz

    com as palavras. O glissando no canto, no compasso 18 (l 3 para o d sustenido 3) indica a

    nfase que s vezes damos ao fazer meno grande intensidade de uma ao. Ao mudar o

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    andamento e o carter no compasso 22 ("maxixando"), o compositor consegue uma grande

    coerncia entre msica e texto ("[...] bebeu, cantou, danou [...]"):

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    Figura 41 Osvaldo Lacerda: Poema tirado de uma notcia de jornal (compassos 14 a 43).

    Ainda dentro da narrativa, porm j num esprito conclusivo, h um recitativo noscompassos 44 e 45. Segue-se um interldio lento, com a indicao de "desconsolado", que

    uma distoro do maxixe apresentado nos compassos 22 a 42. O canto, de carter evocativo,

    quase num lamento, chama pelo nome de Joo Gostoso antes de uma coda de trs compassos.

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    Figura 42 Osvaldo Lacerda: Poema tirado de uma notcia de jornal(compassos 44 a 62).

    2.b. Comentrios do compositor:

    O texto fala de um drama de algum do povo. Um drama como tantos outros, na

    vida das pessoas pobres da cidade grande, mas que no tem, por si s, carter dramtico, uma

    vez tratar-se de uma notcia de jornal. Ademais, no haveria uma dose de ironia implcita,

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    intencional ou no, por parte do poeta, ao descrever a morte de um carregador de feira livre na

    Lagoa Rodrigo de Freitas, sabidamente uma regio habitada por pessoas mais abastadas?

    Quereria ele dizer com isso que a morte vem a todos, indistintamente de sua posio social?

    [...] Eu tenho uma certa inclinao para a msica dramtica. Eu teria gostadode ter tido a oportunidade de compor uma pera... seria uma pera bembrasileira e no muito longa, mas por vrios fatores eu no escrevi a pera.Ento eu me voltei para algumas poesias de carter dramtico. Aqui, ManuelBandeira descreve o drama da vida de uma pessoa do povo. Entretanto, amsica no dramtica, mas sim, narrativa, na medida em que flui nasequncia de uma narrativa, como de quem l mesmo uma notcia de jornal"(entrevista concedida por Osvaldo Lacerda, 2008).

    7- Cantiga II

    1- Ficha catalogrfica da cano

    1.a. Ano de composio: 1964.

    1.b. Durao aproximada e tessitura da voz: 1'30. Voz mdia.

    1.c. Dedicatria: a Marlia Siegl7.

    1.d. Primeira audioem Curitiba (PR), em 28 de janeiro de 1967. Soprano: Maria da Graa

    Cruz Dias; piano: Leo Schwarz.

    Cantiga II

    (do livro Estrela da Manh)

    Nas ondas da praianas ondas do marquero ser felizquero me afogar.

    Nas ondas da praiaquem vem me beijar ?Quero a estrela-dalvarainha do mar.

    Quero ser feliz

    nas ondas do marquero esquecer tudoquero descansar.

    7Soprano paulista.

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    2- Estudo analtico

    2.a. Anlise morfo-estrutural

    A cano monotemtica, com pequenas variantes sobre o tema principal.

    O piano faz uma curtssima introduo, todavia suficiente para definir o ritmo

    sincopado e a tonalidade de r menor:

    Figura 43 Osvaldo Lacerda: Cantiga II (compasso 1 e incio do compasso 2).

    Tem ento incio o tema no 2. compasso, attico, que se prolonga at o compasso

    16. O compositor, ao invs de simplesmente seguir o texto de forma linear, faz um jogo com

    as palavras dos quatro primeiros versos. Insiste com o terceiro verso ("quero ser feliz")

    terminando a seo com ele e no com o quarto; enfatiza a expresso "Nas ondas da praia

    quero me afogar", ao utilizar o artifcio de deixar o canto em repouso no compasso 13, para

    retornar nos compassos 14 a 16.

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    Figura 44 Osvaldo Lacerda: Cantiga II (compassos 1 ao incio do compasso 17).

    O tema retomado a partir do compasso 17, com alteraes no ritmo do canto, de

    modo a respeitar a prosdia, bem como de mudana nas frmulas de compasso e na aggica.

    Em diferentes momentos, o compositor vale-se de fragmentos do tema para insistir com uma

    unidade meldica (compassos 26 e 27 e ainda compassos 36, e 38).

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    Figura 45 Osvaldo Lacerda: Cantiga II (compassos 17 a 42).

    2.b. Comentrios do compositor:

    Esta cano tem apresenta a caracterstica singular de ter o mesmo texto j

    utilizado anteriormente na cano que passou a intitular-se "Cantiga I", j abordada neste

    estudo. Todavia, h uma insistncia na repetio de certos versos ("quero ser feliz" e "estrela

    d'alva, rainha do mar"), o que denota uma percepo diferente daquela existente na Cantiga I.

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    Teria o compositor a inteno de ligar a felicidade almejada a algum em particular, a quem

    metaforicamente o texto se refere como "estrela d'alva, rainha do mar" ?

    [...] Passaram-se os tempos e tinha uma aluna minha que era cantora, quequeria cantar a Cantiga, mas ela no gostava muito da cano. Como euqueria favorec-la, eu escrevi com a mesma letra uma segunda Cantiga, que "prima" da primeira. Eu tinha uma especial considerao por essa cantora;quando ela me procurou, ela cantava de soprano, ou melhor, desafinava desoprano... [...] eu percebi que ela estava a caminho de fabricar um calo nascordas vocais por m impostao da voz que lhe foi ensinada. Foi ento queeu a aconselhei a que procurasse um bom professor de canto e foi o que elafez. Com esse novo professor, ela eliminou o risco de formao do calo e,curiosamente, de soprano passou para contralto. Eu sabia que estaria usandoa mesma poesia; no queria me desfazer da primeira cano e queria acertarcom a segunda e, por isso mesmo, coloquei Cantiga I e Cantiga II(entrevista concedida por Osvaldo Lacerda, 2008).

    8- Mozart no cu

    1- Ficha catalogrfica da cano

    1.a. Ano de composio: 1991.

    1.b. Durao aproximada e tessitura da voz: 2'00. Voz aguda.

    1.c. Dedicatria: a Heloisa Petri8

    .1.d. Primeira audioem So Paulo (SP), em 10 de novembro de 1991. Soprano: Victria

    Kerbauy; piano: Caio Ferraz.

    1.e. Gravao:

    Fthma Antunes, soprano; Maria Tereza Gonzaga, piano. CD "Banco de Talentos"

    Produo Cultural Citibank 1997.

    1.f. Edio:Barcelona: Trit, 2005.

    Obs.- A obra uma homenagem ao compositor Wolfgang Amadeus Mozart, por ocasio de

    seu bicentenrio de morte (1791-1991). Na parte do piano, encontram-se nove fragmentos demelodias de Mozart.

    8Soprano paulista.

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    Mozart no cu

    (do livro Poesias completas)

    No dia 5 de dezembro de 1791 Wolfgang Amadeus

    Mozart entrou no cu, como um artistade circo, fazendo piruetas extraordinriassobre um mirabolante cavalo branco.

    Os anjinhos atnitos diziam: Que foi ? Que no foi ?Melodias jamais ouvidas voavam nas linhas suplemen-

    tares superiores da pauta.

    Um momento se suspendeu a contemplao inefvel.A Virgem beijou-o na testa.E desde ento Wolfgang Amadeus Mozart foi o mais

    moo dos anjos.

    Nota do compositor So citados 9 pequenos fragmentos de melodias de Mozart, na seguinte ordem:

    (1) Uma Pequena Serenata pra orquestra de cordas, K.525 incio do 1. movimento.(2) Voi, che sapete ria de Cherubino, 2. ato da pera As Bodas de Fgaro.(3) Non so pi ria de Cherubino, 1. ato da pera As Bodas de Fgaro.(4) Sinfonia no. 35 em R maior, Haffner, K.385, incio do 1. movimento.(5) Der Holle Rache kocht in meinem Herzen ria da Rainha da Noite, 2o. ato da pera A Flauta

    Mgica.(6) Sonata pra piano em L maior, K.331 incio do 1. movimento.(7) Ave verum corpus, motete para coro misto SCTB, K.618.(8) Non pi andrai ria de Fgaro, 1. ato da pera As Bodas de Fgaro.

    (9)

    Sinfonia no. 40 em sol menor, K. 550 incio do 1. movimento.

    2- Estudo analtico

    2.a. Anlise morfo-estrutural

    Trata-se de uma cano de forma livre, que recebeu a seguinte nota do autor:

    "Modesta, porm, sincera homenagem ao supremo gnio da Msica, no ano do bicentenrio

    do seu falecimento".

    Inicia-se por uma curta introduo de dois compassos que evoca o 1. movimento

    de "Uma pequena serenata noturna" para orquestra de cordas, K. 525. Escrita em d maior, a

    introduo encerra-se por um acorde de r maior com stima menor e quarta aumentada.

    Segue-se imediatamente o canto, que at o compasso 18 tem um carter narrativo. Nos

    compassos 11 a 13, percebe-se, no piano, outro pequeno fragmento de Mozart: a ria "Voi,

    che sapete", de Cherubino ("As Bodas de Fgaro").

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    Figura 46 Osvaldo Lacerda:Mozart no cu (compassos 1 a 18).

    Segue-se um interldio de andamento rpido, que lembra o galope de um cavalo,

    dos compassos 19 a 24. O compositor, mais uma vez, utiliza um fragmento de "As Bodas de

    Fgaro" (Non so pi, ria de Cherubino, 1. ato) nos compassos 22 e 23.

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    Figura 47 Osvaldo Lacerda:Mozart no cu (compassos 19 a 24).

    Com a indicao de "sem pressa, vontade", uma outra seo apresentada, em

    oito compassos (compassos 25 a 33). Aqui, dois outros trechos de Mozart encontram-se

    inseridos na parte do piano: do compasso 25 ao 27, um fragmento do incio do 2. movimento

    da Sinfonia no. 35 em R maior Haffner, K. 385; do final do 31 ao incio do 33, um

    fragmento da ria da Rainha da Noite (Der Hlle Rache kocht in meinem Herzen), 2. ato da

    pera "A Flauta Mgica".

    Uma ltima seo tem ento incio, de carter mais recolhido, e que se estende do

    compasso 33 ao 41. Dentro dela, nos compassos 34 e 35, temos a meno a um trecho do

    incio do 1. movimento da Sonata para piano em L maior, K. 331 e, nos compassos 37 e 38,

    ao incio do motete "Ave verum corpus", sempre no piano.

    Para concluir, uma coda em allegro, de quatro compassos, apresenta os dois

    ltimos fragmentos de Mozart utilizados por Lacerda. Do compasso 43 a 45, em oitavas, o

    "Non pi andrai", ria de Fgaro, do 1. ato de "As Bodas de Fgaro"; no compasso 45, na mo

    esquerda, o incio do 1. movimento da Sinfonia no. 40, em sol menor.

    Trata-se, evidentemente, de uma cano sui generis, construda com grande

    inventividade, onde a melodia do canto amolda-se perfeitamente ao sentido das palavras do

    texto e o pe em relevo. Ademais, apresenta a singularidade de combinar-se a novefragmentos de conhecidas obras de Mozart.

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    Figura 48 Osvaldo Lacerda:Mozart no cu (compassos 25 a 47).

    2.b. Comentrios do compositor:

    Lacerda acredita que um dos fatores que pode ter provocado sua afinidade com a

    lrica de Manuel Bandeira seja o fato de que Mozart sempre foi o compositor preferido de

    ambos.

    [...] Durante muito tempo eu no ousei invadir dois dolos, o Mozart e oManuel Bandeira, mas esseMozart no cu, assim que eu li resolvi musicar.Teria que ser uma coisa muito inspirada. E essa inspirao levou muitotempo para aparecer, mais de quarenta anos. At que me veio essa idia, queme pareceu uma boa inspirao: por que no fazer uma cano com trechosde Mozart? E foi o que eu fiz. Ento uma cano que tem trechos deMozart, com, naturalmente, uma harmonizao minha. Agora, tem umproblema: essa cano s pode ser plenamente apreciada por quem conhecea obra de Mozart. Ento, quando ela cantada numa oportunidade em que euesteja presente, eu peo ao cantor ou eu mesmo o fao, que diga quais soos trechos que eu utilizei e, enquanto isso, o pianista toca aqueles trechospara que haja uma apreenso plena do ouvinte. [...] Toda obra de artedepende de duas qualidades opostas, mas necessrias: coerncia e variedade. fundamental haver coerncia no seguimento da msica, no ficar repetindosempre a mesma coisa, o que insuportvel, ou se repetir, repetir variado, oque a variedade. Foi o que procurei na escolha dos temas, porque,modstia parte, eu estou bem por dentro da produo de Mozart. E fui

    fazendo... quando escolhia e trabalha um tema, ficava pensando qual seria oprximo... E a me vinha a idia e fui fazendo aos poucos, sempre com umainspirao puxando a outra (entrevista concedida por Osvaldo Lacerda,2008).

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    9- Valsa romntica

    1- Ficha catalogrfica da cano

    1.a. Ano de composio: 1997.

    1.b. Durao aproximada e tessitura da voz: 1'10. Voz aguda.

    1.c.No h dedicatria.

    1.d. Primeira audio em So Paulo (SP), em 29 de novembro de 1998. Mezzo soprano:

    Denise de Freitas; piano: Eudxia de Barros.

    1.e. Gravao:

    Denise de Freitas, mezzo soprano; Eudxia de Barros, piano.

    CD "Ouvindo Osvaldo Lacerda" ABM Digital, 2003.

    Observao - Na gravao figura o ttulo Valsa brasileira.

    Valsa romntica

    (do livro Belo Belo, com o ttulo deLetra para uma valsa romntica)

    A tarde agonizaao santo acalantoda noturna brisa.E eu, que tambm morro,morro sem consolo,se no vens, Elisa!

    Ai, nem te humanizao pranto que tantonas faces deslizado amante que pede

    suplicantementeteu amor, Elisa!

    Ri, desdenha, pisa!Meu canto, no entanto,mais te diviniza,mulher diferente,to indiferente,desumana Elisa!

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    2- Estudo analtico

    2.a. Anlise morfo-estrutural

    Uma introduo de dois compassos define o ritmo e o andamento muito prprios

    da valsa brasileira, para o que, alis, o compositor chama ateno ao indicar "Tempo de valsa

    seresteira, nem lenta, nem rpida".

    Figura 49 Osvaldo Lacerda: Valsa romntica (compassos 1 a 3).

    A cano tem forma binria, com o tema A em l menor (compassos 3 a 15). O

    piano, especialmente na mo esquerda, imita o violo seresteiro.

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    Figura 50 Osvaldo Lacerda: Valsa romntica (compassos 1 a 15).

    O tema A repetido, do compasso 16 a 27, com pequenas variaes meldicas

    (compassos 16 e 18, por exemplo), de modo a realar o texto e a respeitar a prosdia.

    Figura 51 Osvaldo Lacerda: Valsa romntica (compassos 16 a 27).

    Um tema B se apresenta (compassos 28 a 39) com um acorde de III grau com

    stima menor e que conduz ao VI grau com stima maior. Da por diante, h diferentes

    modulaes at o retorno ao l menor.

    Segue-se uma coda de trs compassos (compassos 40 a 42), onde uma tera

    napolitana antecede o acorde final no primeiro grau, acrescido de sexta aumentada e nona.

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    Figura 52- Osvaldo Lacerda: Valsa romntica (compassos 28 a 42).

    2.b. Comentrios do compositor:

    Restringem-se ao fato de que apreciou a poesia e, como gosta tambm de escrevervalsa brasileira, decidiu fazer a cano (entrevista concedida por Osvaldo Lacerda, 2008).

    10- Cano para a minha morte

    1- Ficha catalogrfica da cano

    1.a. Ano de composio: 1997.

    1.b. Durao aproximada e tessitura da voz: 1'40. Voz mdia.1.c.No h dedicatria.

    1.d.Segundo o compositor, parece ainda no ter havido primeira audio.

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    Cano para a minha morte

    (do livro Estrela da Tarde)

    Bem que filho do Norteno sou bravo nem forte.Mas, como a vida ameiquero te amar, morte,- minha morte, pesarque no te escolherei.

    Do amor tive na vidaquanto amor pode dar:amei no sendo amadoe sendo amado, amei.Morte, em ti quero agoraesquecer que na vidano fiz seno amar.

    Sei que grande maadamorrer mas morrerei-quando fores servida sem maiores saudadesdesta madrasta vida,que, todavia, amei.

    2- Estudo analtico

    2.a. Anlise morfo-estrutural

    A cano, com forma binria, possui dois compassos de introduo, que definem a

    marcao rtmica, onde a tonalidade de l menor evidenciada, ainda que num acorde com o

    acrscimo de uma stima maior. Segue-se o primeiro tema (compassos 3 a 14) - com

    repetio nos compassos de 15 (com anacruse) a 28 - e com modificao do ritmo marcado

    pelo piano. Os saltos utilizados no canto nos compassos 9 e 23 reforam a mensagem do

    texto.

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    Figura 53 Osvaldo Lacerda: Cano para minha morte (compassos 1 a 28).

    O segundo tema inicia-se no compasso 29, estendendo-se at o compasso 42. Nos

    compassos 38, 39 e 40, h uma insistncia sobre a palavra "amei", onde o compositor utiliza a

    mesma clula rtmica e meldica, porm variando a harmonia (IV grau com stima menor, VIgrau com stima menor e L maior com stima maior, respectivamente). Na coda de quatro

    compassos, que vem a seguir, um ostinato imitando sino, sempre com a mesma definio

    harmnica (acorde de L maior com stima maior) e com a indicao de "rallentando poco a

    poco" e "perdendosi" transmite a sensao de algo que se extingue suave e lentamente.

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    Figura 54 Osvaldo Lacerda: Cano para minha morte (compassos 29 a 46).

    2.b. Comentrios do compositor:

    So sucintos os comentrios feitos por Lacerda a respeito desta cano: "[...] o

    mesmo da Valsa romntica. Eu acho que elas foram produzidas uma aps a outra.

    Simplesmente porque gostei da poesia. Parece-me, inclusive, que ela ainda no teve sua

    primeira audio" (entrevista concedida por Osvaldo Lacerda, 2008).

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    5 - Concluso

    O estudo empreendido sobre as dez canes de Osvaldo Lacerda com texto de

    Manuel Bandeira deixa entrever, como era de se esperar, um pouco da linguagem e do modus

    operandido compositor ao tratar msica e poesia, no apenas nas referidas obras, mas em

    toda sua produo para voz e instrumentos de forma geral. Assim, percebe-se um esmerado

    cuidado do compositor em realar o texto potico. Para tanto, ele trata de criar uma msica

    que seja coerente com o sentido transmitido pelas palavras, no que auxiliado por sua grande

    capacidade de criao meldica, pela naturalidade com que trata o ritmo especialmente no

    tecido contrapontstico , e na aparente transparncia de sua escrita harmnica, na qual as

    complexidades so disfaradas sob um quase despojamento. Tudo isso submetido ao

    controle seguro dos recursos tcnicos e estilsticos.Percebe-se nitidamente em suas canes o emprego de tudo aquilo que transmite a

    seus alunos e discpulos, especialmente a combinao de coerncia e variedade, com o

    objetivo claro e definido de se construir a msica em consonncia com o sentido das palavras

    e, mais ainda, de maneira a valorizar e a enfatizar a mensagem potica.

    Assim, ao apoderar-se da poesia nacional como matriz das canes, Lacerda busca

    recursos equivalentes, de forma consciente e recorrente, nas chamadas "constncias musicais"

    encontradas na msica brasileira do povo, com destaque para as formas meldicas,

    especialmente o emprego da stima abaixada e da quarta aumentada, como em O meninodoente e Poemeto ertico, por exemplo. Outras vezes, lana mo de um contraponto de

    marcado carter rtmico, como em Cantiga I, onde a estruturao ternria bem evidente.

    Chama a ateno, em sua escrita, o cuidado em indicar, de maneira clara e precisa,

    as instrues para o que ele considera uma fiel e correta interpretao. H uma abundncia

    de indicaes de dinmica, de aggica, com o uso at mesmo de expresses bem brasileiras

    ("maxixando", por exemplo, em Poema tirado de uma notcia de jornal. Ou ainda, "tempo de

    valsa seresteira, nem lenta nem rpida", em Valsa romntica). Outro detalhe importante e

    recorrente a transcrio integral do texto utilizado nas partituras das canes, mas fora dopentagrama, de modo a proporcionar a possibilidade de uma leitura abrangente, cuidadosa e

    repetida, como aconselha o compositor, para obter-se uma boa e fiel interpretao. Ele indica,

    ainda, sistematicamente, a tessitura da voz, no pentagrama.

    Nesse grupo de dez canes, chama a ateno o reduzido nmero de compassos de

    introduo, a cargo do piano. Ainda assim, mesmo em to reduzido espao, o compositor

    define o carter e o ritmo da pea, assim como a tonalidade inicial. Alm disso, predominam

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    ligeiramente as escritas para voz mdia (seis canes) sobre aquelas para voz aguda (quatro),

    conforme demonstrado no quadro abaixo.

    Cano Tessitura da voz No. de compassos de introduo

    O menino doente Voz mdia 6Cantiga I Voz aguda 5Felicidade Voz mdia 3Poemeto ertico Voz aguda 6Mandaste a sombra de um beijo Voz mdia 4Poema tirado de uma notcia de jornal Voz mdia No hCantiga II Voz mdia 2Mozart no cu Voz aguda 3Valsa romntica Voz aguda 3Cano para a minha morte Voz mdia 2

    Quadro 1- Osvaldo Lacerda: a tessitura da voz e o nmero de compassos introdutrios nas canesestudadas.

    Quanto forma, cinco delas tm forma livre (O menino doente, Felicidade,

    Cantiga II, Mozart no cu, Poema tirado de uma notcia de jornal), coincidindo com poemas

    desprovidos de ritmo ou mtrica bem definidos; trs tm forma binria (Poemeto ertico,

    Valsa romntica, Cano para minha morte); e duas tm forma ternria (Cantiga I e

    Mandaste a sombra de um beijo).

    Dentre as dez canes analisadas, apenas quatro delas foram dedicadas. A primeira

    dedicatria foi feita em 1949 (O menino doente, dedicada a sua me, Jlia Costa) e somente

    quinze anos depois, em 1964, encontramos outra cano com dedicatria, desta vez a Jarbas

    Braga (Poema tirado de uma notcia de jornal), bartono paulista. As duas outras so,

    respectivamente, de 1964 (Cantiga II), dedicada a Marlia