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Festas RAVE em Fortaleza

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Festas Rave - dissertação

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Page 1: Festas RAVE em Fortaleza

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

DEPARTAMENTO DE CIENCIAS SOCIAIS MESTRADO EM SOCIOLOGIA

LIVRES, PUROS E FELIZES: culturas juvenis e festas rave em Fortaleza

JEFFERSON VERAS NUNES

FORTALEZA 2010

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Jefferson Veras Nunes

LIVRES, PUROS E FELIZES: culturas juvenis e festas rave em Fortaleza

Dissertação de mestrado submetida à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Sociologia. Orientador: Prof. Dr. Antonio Crístian Saraiva Paiva.

FORTALEZA 2010

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Jefferson Veras Nunes

LIVRES, PUROS E FELIZES: culturas juvenis e festas rave em Fortaleza

Dissertação de mestrado submetida à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará em 27 de janeiro de 2010, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Sociologia.

BANCA EXAMINADORA:

______________________________________________

Prof. Dr. Antonio Crístian Saraiva Paiva (Orientador) Universidade Federal do Ceará – UFC

Departamento de Ciências Sociais Presidente

______________________________________________

Prof. Dr. Francisco José Gomes Damasceno Universidade Estadual do Ceará – UECE

Departamento de História Membro

______________________________________________

Profª. Drª. Glória Diógenes Universidade Federal do Ceará – UFC

Departamento de Ciências Sociais Membro

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À “Seu” Edilson e “Dona” Vera, com afeto.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por sua graça e misericórdia.

A todos os colegas do curso de mestrado que, de alguma forma, contribuíram para a realização

deste trabalho. Acredito que sem o companherismo de vocês teria sido bem mais difícil encarar esse

desafio. Jamais esquecerei os momentos de descontração que vivenciamos juntos, os livros emprestados,

as conversas descompromissadas nos corredores e, principalmente na cantina do Seu Domingos, as

discussões em sala de aula, as palavras amigas, os abraços afetuosos e os cafés que dividimos durante

esta caminhada.

Aos meus pais, anjos bondosos, daqueles que protegem e são protegidos. Pessoas que

encantam pela maneira simples com que encaram a vida. Astuciosos que são, têm como única ambição

enfeitar a vida de quem deles se aproxima.

A quem deu à minha vida um novo colorido: Emanuelle Kelly. Por entre seus braços, sinto-me

protegido, como se nada importasse mais do que a sua presença. Fora do aconhego de seu carinhoso

abraço, sinto-me nu, despido de todo o amor que emana dessa “relação pura”.

A Crístian Paiva pelos ensinamentos valiosos e pela dedicação, cumplicidade e apoio. A cada

encontro, fosse em sua sala ou mesmo na Lua Nova, percebia que estava também diante de um amigo.

Ao meu querido “irmão” João Batista, em quem muito me inspiro. Por meio dele, desenvolvi o

gosto pela teoria social e pela pesquisa.

A Wagner Chacon, dono de uma inteligência que seduz logo na primeira conversa. Alguém

que de professor passou rapidamente a amigo.

À Dona Raimundinha, mulher forte, de garra.

Ao programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC e a todos os professores e funcionários

que o compõe, pelo zelo dedicado a nossa formação. Em especial, também deixo registrado aqui a minha

gratidão à FUNCAP (Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico) pela

bolsa concedida durante o mestrado.

Aos professores Tadeu Feitosa e Glória Diógenes por suas ricas contribuições durante a

qualificação do projeto de dissertação. Muito obrigado pelas sugestões dadas, todas elas foram muito

úteis.

Aos colegas do Departamento de Ciências da Informação pela forma com que fui acolhido, e

aos alunos do Curso de Biblioteconomia da UFC, os principais responsáveis por tornar a sala de aula um

prazeroso espaço de convivência.

Aos novos amigos que pude conquistar no trânsito pelos corredores do Departamento de

Ciências Sociais: Rita, Mayara, Fátima, Geirciane, Diego e Ygor Monteiro.

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Aos velhos amigos que sempre carrego comigo em meu coração: Fabinho, Alexandre, Gê,

Hamilton, Beto, Ygor Guerra, Ícaro, Maurício, Marcos, Emy, Leonel, Daniel Ferreira, Mersinho,

Cynthia Guerra e Erika Guerra.

A Mauricore, Eric, Iri, Rafa, Matheus, Manu, Monique e todos os outros jovens que durante as

raves me fizeram compreender melhor os sentidos da festa. Através deles pude perceber que é possível

sim, mesmo que por alguns instantes, uma “vida não fascista”.

E, por fim, agradeço a todos que compreenderam minha ausência nesse período, esse trabalho

foi o principal motivo do meu sumiço nos últimos tempos. Os motivos agora serão outros. Mas a causa

será sempre nobre.

Obrigado!

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Os novos movimentos techno da música constroem um corpo que se altera e é atravessado

por sons, por BPM (batidas por minuto), por ruídos pós-industriais e orquestras pós-fordistas.

A rave é a morte da pólis. A rave ganha da metrópole. A rave faz pulsar os corpos-metrópole.

(Massimo Canevacci)

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RESUMO

A presente pesquisa trata da relação entre música, juventude e festa no espaço urbano. Parte da percepção da juventude como uma categoria socialmente construída, para além das faixas etárias e dos princípios identitários geralmente atribuídos a esta etapa do ciclo de vida do indivíduo. Tem como objetivo compreender sociabilidades, comportamentos, práticas de consumo, discursos e símbolos adotados pelos jovens durante sua participação em um tipo específico de festa de música eletrônica, comumente conhecida como rave. As raves acontecem não somente em locais diferentes, mas, principalmente, a céu aberto, sendo também chamadas de “festas open air”. Tais festas ocorrem, na maioria das vezes, em ambientes que se destacam por suas belezas naturais, elegendo como sede para os eventos desde sítios, chácaras e hotéis afastados da cidade, até barracas de praia localizadas em áreas pouco freqüentadas pela população em geral. O material empírico a partir do qual se estruturam as reflexões que se seguem inclui levantamento bibliográfico, documental e, principalmente, pesquisa de campo, com observação participante realizada durante o período de 2008 a 2009, onde foi possível freqüentar 17 raves organizadas em Fortaleza e cidades vizinhas. Palavras-chave: Culturas juvenis. Festas rave. Música eletrônica.

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ABSTRACT

This research discusses the relationship between music, youth culture and party in the urban space. Its part of the perception of youth as a socially constructed category, in addition to age and identity principles generally attributed to this stage of the life cycle of the individual. It aims to understand social practices, attitudes, consumption practices, discourses and symbols adopted by the youth during their participation in a specific type of electronic music festival, commonly known as rave. The raves happen not only in different places, but mainly in the open spaces, is also called “open air festivals”. These festivals occur most often in areas that stand out for its natural beauty, choosing to host the events from sites, farms and hotels away from the city. The empirical material from which stems the reflections that follow include bibliographical, documentary, and especially field research, participant observation carried out during the period 2008 to 2009, it was possible to attend 17 raves held in Fortaleza and cities neighbors. Keywords: Youth cultures. Rave parties. Eletronic Music.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

11

No campo da festa 14

Quando a festa é o campo 23

“Arquivos” da pesquisa 27

01. QUE É A JUVENTUDE?

33

1.1 A juventude como categoria socialmente construída 35 1.2 Juventude e práticas culturais 44 1.3 Juventude, música e festa 51 02. NOS INTERSTÍCIOS DAS HISTÓRIAS

59

2.1 Os entrelugares das raves 64 2.2 Do house e suas vertentes ao trance 70 2.3 As raves no Brasil 74 2.4 A cena da música eletrônica em Fortaleza: uma cartografia possível 78 2.5 Sentidos do espetáculo: da clandestinidade londrina à popularização das festas 90 03. PAISAGENS DA FESTA: margens, espaços-tempo, cenários

97

3.1 A cidade da festa 98 3.2 A rave e seus interiores 108 3.2.1 O chill out 111 3.2.2 A pista principal 115 3.3 Corpo, som e movimento: transcendências e sensibilidades 129 3.4 Outros espaços... 149

04. FESTAS QUE UNEM E SEPARAM

154

4.1 “Um fim de semana ímpar pra cena” 156 4.2 “Festa conceito” 163 4.2.1 Entrance: “a festa mais conceitual de música eletrônica” 166 4.3 “Festa chacota” 172 4.3.1 Ultra Vip: a festa das “misturas” 174 CONSIDERAÇÕES FINAIS

180

Juventude(s) que movimenta(m) corpos e territórios 180 REFERÊNCIAS

187

ANEXOS

195

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação pretende interpretar formas de sociabilidade, comportamentos, práticas de

consumo, discursos e símbolos adotados pelos jovens durante sua participação em um tipo específico de

festa de música eletrônica, popularmente conhecido como rave.

As raves se caracterizam tanto por nutrirem a preferência por locais a céu aberto, distantes do

cotidiano da cidade, como por sua longa duração, chegando a proporcionar aos jovens até doze, quatorze

horas, ininterruptas de celebração. Contudo, não se trata apenas de escolher um lugar recôndito, livre de

qualquer interferência da urbe para abrigar a festa, mas um lugar que chame a atenção por suas belezas

naturais. Na maioria das vezes, elege-se como sede para os eventos sítios, hotéis e chácaras localizadas

nos arredores da cidade ou barracas de praia situadas em áreas pouco freqüentadas.

Outra característica marcante destas festas é a sua mobilidade. Elas acontecem, na maior parte,

em locais diferentes, não contíguos. Não há, por exemplo, uma casa de shows que se dedique,

exclusivamente, à realização dos eventos, como existe no caso de outros estilos musicais, tampouco um

circuito de lugares que estabeleça conexões entre si, mas qualquer lugar pode servir de sede à rave. O

principal veículo de divulgação destas festas é o flyer1, uma espécie de panfleto no qual se pode

encontrar desde informações com relação ao preço e locais de compra antecipada de ingressos, até o

line-up (lista com a ordem de apresentação dos DJs) e mapas explicativos, sem os quais se torna

praticamente impossível localizar o endereço da rave. Os flyers constituem uma das principais formas de

publicidade das festas e circulam pela Internet, podendo ser encontrados em sites e comunidades virtuais

relacionadas ao universo da música eletrônica.

Nessas geografias provisórias, criadas a partir da festa, adota-se um sistema simbólico

demasiadamente híbrido, formado por elementos que remetem tanto a religões orientais, expresso

através de imagens de deuses hindus, como, também, recorre-se a correntes esotéricas que apontam a

crença em extraterrestres e planetas pertencentes a um mundo, supostamente, paralelo ao nosso. Em

geral, esses variados símbolos se apresentam distribuídos pelo espaço da festa de modo pouco ordenado.

Ao caminhar pelo ambiente da rave, é sem maiores dificuldades que se pode encontrar desde mandalas

1 Caracterizam-se como pequenos panfletos, com pouca sofisticação em sua elaboração. Em geral, utilizam fotografias dos DJs que se apresentarão durante o evento e imagens do local onde será realizada a festa, bem como grafismos de aliens, cogumelos ou fractais bastante coloridos. Sua qualidade de imagem é baixa, tendo, na maioria das vezes, uma resolução inferior a 1 megapixel (geralmente, no formato de 640x480 pixels). Não existe também um local reservado exclusivamente à compra e venda de ingressos para os eventos, podendo estes ser adquiridos em lojas de roupas localizadas em shopping centers, lanchonetes, ou por meio de contatos com pessoas que negociam os bilhetes pela Internet, conhecidos como “comissários”. O preço dos ingressos varia de R$ 25,00 (vinte e cinco reais) à R$ 35,00 (trinta e cinco reais), dependendo do local e dos DJs contratados para a festa. Um dos fatores que também coopera para o encarecimento do preço dos ingressos são os chamados “lotes”. Os lotes correspondem à tiragem dos bilhetes, e, quanto maior for a tiragem, maior será o preço cobrado pelo ingresso. Os ingressos que são vendidos ainda no primeiro lote são mais baratos do que aquelas que são comercializados na bilheteria do evento.

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coloridas, carrancas, figuras de cogumelos e gnomos, até painéis contendo desenhos de animais e

divindades hindus compartilhando o mesmo espaço.

A decoração da rave explora todas as combinações de cores possíveis. Visualmente, o

ambiente atrai qualquer um pela variedade de tons que possui. À noite essas cores ganham vida,

movimentam-se... Todos os símbolos e desenhos espalhados pela festa adquirem uma tonalidade

azulada, meio futurista, conseqüência do efeito flúor dado às luzes que iluminam o local. Semelhante à

decoração é a roupa dos participantes. Estampas coloridas com desenhos de deuses como Shiva e

Ganesha prevalecem entre os jovens. No entanto, não há um tipo de vestimenta específico que

caracterize os participantes, qualquer tipo de roupa é bem-vindo, contanto que seja confortável e facilite

os movimentos empreendidos pelo corpo durante a dança. Assim, usa-se desde bermudas e tênis, entre

os homens, até saias curtas e botas cano alto, entre as mulheres.

Os corpos também chamam a atenção pelas tatuagens, piercings e demais acessórios que

carregam consigo: mochilas, pochetes, cartucheiras, óculos escuros, pulseiras, e colares artesanais dentre

outros. Nos desenhos inscritos no corpo, não há a preponderância de um motivo que assinale algum tipo

de identidade que caracterize os jovens que freqüentam as festas. Vários são os motivos presentes em

suas tatuagens, assim como também várias são as suas identidades. As raves possuem um público

bastante heterogêneo. Os jovens com quem convivi durante a pesquisa cultivam, é claro, o gosto pelas

raves e pela música eletrônica, mas também são atravessados por outras preferências musicais, bem

como adotam outros tipos de eventos como opção de lazer e consumo durante as noites dos finais de

semana. Tais jovens freqüentam igualmente festas de rock, de música eletrônica, de forró, de reggae, de

pagode, de axé e até de música gospel. Todos esses gostos não se excluem, mas, ao contrário,

sobrepõem-se mutuamente, conforme o momento.

A cena das raves em Fortaleza abrange uma larga faixa etária de freqüentadores, que, embora

possa se concentrar mais fortemente entre os 20 e os 30 anos de idade, compreende também um

contingente de indivíduos com menos de 18 ou acima dos 30 anos de idade. Esses “jovens” podem ser

incluídos na ampla categoria “camadas médias urbanas”, utilizada para definir indivíduos participantes

da sociedade de consumo que desfrutam de determinados bens ofertados pelo sistema do capital. A

maioria desses jovens goza do acesso ao ensino superior e aos meios de informação e comunicação que

são restritos à maior parte da população, como Internet banda larga e canais fechados de TV. Podendo,

ainda, investir certa quantia de dinheiro com a compra de ingressos para as festas, deslocamento físico

até o local da rave, roupas de grifes e outros elementos de consumo adotados durante os eventos.

As festas congregam um mix de juventudes, tal como a música que embala os corpos dos

participantes – o psychedelic trance (ou simplesmente psytrance). O psytrance reúne uma mistura de

sons e, atualmente, é um dos estilos mais difundidos de música eletrônica entre as culturas juvenis

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contemporâneas. O estilo caracteriza-se por possuir em sua estrutura melodias repetitivas, compassos

rápidos e bem marcados, com batidas que podem facilmente ultrapassar a casa dos 150 bpm (batidas por

minuto). Em alguns casos, diz-se que seu caráter repetitivo, circular, leva os ouvintes a experienciar

estados hipnóticos, a saírem de si durante a dança, semelhante a um tipo de transe. Seus sons graves

proporcionam, ainda, que, além de ouvida, a música possa ser sentida reverberando por todo o corpo. O

alto volume com que é executada nas raves faz com que os corpos, literalmente, vibrem ao entrar em

contato com suas batidas e melodias. É praticamente impossível permanecer na festa sem sequer

balançar a cabeça ou timidamente bater o pé durante a apresentação de algum DJ. Na rave, todo o

mundo ordinário parece ficar para trás. Nesse ambiente, a decoração brilhante, os desenhos de deuses

hindus, as figuras de alienígenas e a música intensa que adensa os corpos dos jovens conduz à

experiência do extraordinário, levando-os a mundos coloridos e barulhentos...

Algumas vezes, apenas a música e o ambiente não são suficientes para construir um mundo

temporário e à parte do habitual, mas é preciso, ainda, que os corpos sejam estimulados a partir do

consumo de substâncias psicoativas, como o ecstasy e o LSD. Estas possuem um caráter utilitário nos

eventos, pois tanto podem atuar na potenciação das capacidades físicas dos jovens e favorecer os

contatos interpessoais entre eles, como podem intensificar a experiência sensorial vivenciada na rave,

promovendo uma interação maior com a música, com as cores e com os vários elementos que compõem

a sua decoração.

Participar de um evento deste tipo implica, antes de qualquer coisa, a realização de uma

espécie de viagem, que compreende não somente a distância que deve ser percorrida para se chegar até o

local da festa, mas também uma espécie de deslocamento simbólico, onde, temporariamente, buscar-se-á

abolir todas as referências que se tem do mundo ordinário e da vida urbana. A maioria dos jovens que

elege como opção de lazer o espaço das raves se identifica com uma visão de mundo lúdica e holista,

evocando um discurso que aponta para a construção de um sentimento de paz e harmonia entre aqueles

que participam da festa. Este discurso se define como “P.L.U.R.” (sigla de peace, love, unity and

respect) e assinala a idéia de que na rave, diferente de outros ambientes existentes na cidade, há uma

valorização de sentimentos como a paz, o amor, a união e o respeito mútuo entre aqueles que habitam

temporariamente o espaço dos eventos, tal como se percebe a partir de um flyer disponibilizado no

Orkut:

Na Rave ninguém vai de salto alto, ninguém quer ser maior do que ninguém. Na rave todo mundo tem os pés no chão, todo mundo é IGUAL. Na rave ninguém conversa muito... O silêncio, ou melhor, a MÚSICA fala por tudo e todos. Na rave a galera não pula pra aparecer. Pula pq a VIBE interna é tão grande que a única maneira de por pra fora é pulando, dançando. Na rave a galera não fecha o olho pq ta com sono ou cansado... Fecha pra sentir a música pulsar dentro de SI. Na rave você não vê ninguém

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brigando pq derramou bebida em cima do outro, pq esbarrou quando tava dançando ou pq pisou no pé do outro sem querer... Na rave a galera diz “foi mal!” e cada um continua a sua BALADA. Numa rave, por algumas horas, todos são um só, todos numa só BATIDA, uma tribo, várias tribos, todas juntas, mais do que juntas, unidas. Em PAZ... em HARMONIA... com ligação total entre vc e o SOM.

As raves assinalam o movimento extremamente cambiante de uma parcela de jovens,

pertencentes em sua maioria às camadas médias urbanas, que se agrupam num local tido como

“paradisíaco” – praia deserta ou pouco freqüentada, num hotel, sítio ou chácara – situado longe do

cotidiano da cidade, no intuito de dançar por horas a fio músicas produzidas com o auxílio de

computadores e demais equipamentos eletrônicos. Ao elegerem um local afastado dos centros urbanos

para a sua realização, as raves buscam proporcionar aos jovens um espaço no qual se pode experienciar

um modo diferido de existência.

Podem nos chamar de loucos, mas se a nossa música não tem letra há uma razão. Nossa língua é única e verdadeiramente universal. Não fala de amores amargurados. Não se trata de um samba carregado de tristeza. Não expressa sonhos e aspirações profundas. Nada disso! Então entenda... Nossa música não tem letra porque deixa soar e se propagar unicamente o presente, aquele presente livre de aflições, egoísmo, posse. Se tudo o que podemos viver é o segundo imediato, como fazem os recém natos ainda aprendendo a estabelecer conexões simpáticas. Estamos livres, puros e felizes! É essa música que você julga sem sentido? Será que somos nós os loucos? Nós, que na nossa tribo, em nossa meditação vara as madrugadas e permite céus que mudem de cor. Nós, sem fazer mal algum a ninguém, apenas celebrando e festejando o fim de toda hipocrisia em nós mesmos? O que queremos nós loucos, é apenas voltar às origens, ao cosmo, ao nosso próprio corpo, à mãe natureza, ao útero... Nossa música diz tudo sem falar nada.

As raves tentam combinar símbolos que operam na produção de práticas que tem por objetivo

proporcionar aos seus freqüentadores a vivência de um espaço regido, principalmente, pelo tempo

presente e pelo prazer. Um espaço que, segundo os próprios jovens, é “livre de aflições, egoísmo,

posse”, onde se pode “voltar às origens, ao cosmo, ao próprio corpo, à mãe natureza, ao útero” através,

principalmente, da música. Um espaço que celebra o “fim de toda hipocrisia [...]” e onde todos podem

ser um só, “numa só batida”. Enfim, um espaço onde é possível sentir-se como se estivéssemos todos

“livres, puros e felizes”.

No campo da festa

A questão que se esboça neste trabalho é lançada sobre a construção dos diversos modos e

estilos de vida produzidos pelas culturas juvenis de Fortaleza, tomando como campo de investigação o

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microcosmo das festas rave. O material empírico a partir do qual se estruturam as reflexões que se

seguem inclui levantamento bibliográfico, documental e, principalmente, pesquisa de campo, com

observação participante realizada durante os anos de 2008 e 2009, executada no próprio contexto das

festas. Durante esse período, freqüentei 17 raves realizadas em Fortaleza e cidades vizinhas, como:

Aquiraz, Caucaia e Iguape. Além de ter freqüentado as festas, participei também de eventos realizados

em outros espaços de lazer existentes na capital, tais como bares e boates, que acolhem igualmente os

jovens. Freqüentei raves de variados formatos, que tiveram entre 8, 14, até 24 horas de duração e que

contaram com a presença de milhares de jovens.

Todas as festas que participei durante o período da pesquisa estão discriminadas na tabela

abaixo, distribuídas conforme a ordem cronológica e o local em que ocorreram, bem como os

respectivos núcleos ou produtoras que as promoveram:

Festa

Data

Local

Grupo organizador (núcleo/produtora)

Ultra Vip 05.01.2008 Barraca na Praia do Futuro (Fortaleza) DJ Diego Grecchi/The Sound Ultra Vip 12.01.2008 Pousada em Sabiaguaba (Fortaleza) DJ Diego Grecchi/The Sound Undervibe 07.03.2008 Mansão da Prainha (Aquiraz) Zonavibe

D.a.v.e. The Drummer 04.04.2008 Mansão da Prainha (Aquiraz) Underground/Resistechno/Lost Paradise Melicia 12.04.2008 Mansão da Prainha (Aquiraz) The Sound

Shiva Atack 26.04.2008 Pousada em Sabiaguaba (Fortaleza) DJ Diego Grecchi/The Sound Rinkadink – Magic Lagoon 31.05.2008 Hotel Milano Lagoa do Banana (Caucaia) Zonavibe Alien Project/Rica Amaral 05.07.2008 Barraca na Praia do Futuro (Fortaleza) The Sound

Ultra Vip 09.08.2008 Pousada em Sabiaguaba (Fortaleza) DJ Diego Grecchi/The Sound Zonasound 30.08.2008 Mansão da Prainha (Aquiraz) Zonavibe/The Sound Liquid Sky 06.09.2008 Ytacaranha Park (Prainha) Liquid Sky

Magic Lagoon II 27.09.2008 Hotel Milano Lagoa do Banana (Caucaia) Zonavibe Chris Liberator 17.10.2008 Barraca na Praia do Futuro (Fortaleza) Underground/The Sound Goa Gil Tour 08.11.2008 Hotel Marina do Barro Preto (Iguape) N.A.V.

Entrance Kosmonoises 22.11.2008 Hotel Fazenda São Gerônimo (Caucaia) Nu-ACT Celebration 17.01.2009 Barraca na Praia do Futuro (Fortaleza) The Sound/Trance on the Beach After Beach 24.01.2009 Barraca na Praia do Futuro (Fortaleza) Fortal Trance

As festas que compõem o campo desta investigação não obedeceram a uma periodicidade pré-

determinada, tendo, entre uma e outra, intervalos irregulares conforme se pode perceber no quadro

acima. No entanto, alguns dos locais que serviram de sede aos eventos podem ser tomados como pontos

de referência numa cartografia das raves no cenário local, como é o caso, por exemplo, das barracas de

praia Biruta, Jet Set e Master Beach, situadas na Praia do Futuro; da pousada Rio e Mar, em Sabiagaba;

da Mansão da Prainha, em Aquiraz; ou ainda, dos hotéis em Caucaia, alguns deles situados na área da

Lagoa do Banana, como o Milano Lagoa do Banana, ou o Hotel Fazenda São Gerônimo, nas margens da

BR-222. Estes são apenas alguns dos locais mais recorrentes no cenário das festas na metrópole. O que

não implica dizer que são os únicos, tampouco que acolhem apenas raves, mas abrigam também outros

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tipos de festas, tais como shows de reggae, pagode e forró dentre outros. A cena de Fortaleza se estende

para além do limites do município, como se pode observar no quadro apresentado acima. Cidades

vizinhas como Caucaia, Aquiraz e Iguape também abrigam as manifestações culturais de tais festas,

recebendo em seu território raves dos mais variados tipos e formatos.

A enorme quantidade de raves, bem como o heterogêneo universo de pessoas que participam

dos eventos, exige algumas táticas preliminares do pesquisador que pretende compreender esse

fenômeno. Torna-se praticamente impossível ir a todos os eventos, e igualmente impossível conversar

com todos aqueles que os freqüentam, pois num mesmo final de semana são realizadas duas, às vezes

três raves simultâneas em locais diferentes. Dessa forma, resolvi freqüentar as “principais”, aquelas

festas mais comentadas pelos jovens, aquelas raves que, segundo os próprios “informantes”, “eu não

podia perder” porque simplesmente iam “bombar”2.

As primeiras raves que tive a oportunidade de freqüentar consistiram numa grande surpresa

para mim. Ao começar a freqüentá-las, fiquei impressionando com o tamanho da estrutura dos eventos

(em termos de som, palco, iluminação), com a quantidade de pessoas que trabalhavam na festa (DJs,

seguranças) e, principalmente, com o número de jovens que elas atraíam; tudo isto suscitou em mim

questões do tipo: como um fenômeno destas proporções (participação de milhares de pessoas, com

organização e infra-estrutura admiráveis) pode acontecer na minha cidade sem que eu até então tivesse

me dado conta de sua existência? Como as raves surgiram em Fortaleza? Por que tais festas atraem tanta

gente? Qual a sua magia?

A primeira festa em que participei ocorreu no dia 05 de janeiro de 2008, chamava-se Ultra Vip

e foi realizada numa barraca da Praia do Futuro conhecida como Master Beach. Tomei conhecimento da

realização da festa por meio de uma das comunidades virtuais do Orkut. Para participar do evento, era

necessário apenas deixar o nome completo num dos tópicos que foram criados na comunidade E-

Cenaceará com a finalidade de divulgar a festa. Para aqueles que não deixassem o nome na lista, era

cobrada a quantia de R$ 5,00 (cinco reais) para poder participar do evento.

A festa estava prevista para começar às 22h. Sabendo disso, resolvi me antecipar e chegar um

pouco antes ao local do evento com o objetivo de realizar minhas primeiras observações com relação a

dinâmica da rave e seu público. Quando estacionei o carro em frente à referida barraca, percebi que eu

havia sido a primeira pessoa a aportar no local da festa. Os jovens foram chegando aos poucos. Um dos

primeiros participantes com quem eu tive a oportunidade de conversar sobre o cenário das festas de

música eletrônica em Fortaleza e arredores foi Kiko. Conversamos bastante até o início da rave, quando

o primeiro DJ começou a tocar.

2 Por várias vezes, ao revelar que estudava as raves para pessoas próximas, tive que aturar brincadeiras de todo o tipo, pelo fato de que se costuma atribuir à festa apenas uma “função recreativa”, mas diferentemente do que habitualmente se acredita, a “festa também serve para pensar”; e nesse caso, serve para pensar a cena cultural juvenil contemporânea de Fortaleza.

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Kiko foi o segundo jovem a chegar ao local do evento. Sua chegada antecipada era justificada

por conta da dificuldade de ônibus que o jovem encontrava de sua casa até a Praia do Futuro. Durante

nossa conversa, Kiko foi me apresentando alguns dos aspectos da festa, comentando sobre os principais

DJs que atuam no cenário da música eletrônica de Fortaleza e narrando parte de suas aventuras no campo

das raves. À medida que as horas se passavam, mais e mais jovens iam chegando, alguns de carro

particular, outros de táxis e havia ainda aqueles que chegavam a pé, caminhando em grupos híbridos,

formados por garotos e garotas. Suas faixas etárias eram as mais variadas possíveis. Alguns deles

passavam por nós e cumprimentavam Kiko, outros passavam direto, e logo se juntavam aos demais que

se concentravam em frente à entrada da barraca esperando o início da festa. Durante nossa conversa, o

jovem comentou que no final de semana seguinte seria realizada, dessa vez numa pousada situada numa

região conhecida como Sabiaguaba, ainda em Fortaleza, uma segunda edição da Ultra Vip. Segundo o

jovem, essa festa prometia ser melhor do que aquela que estávamos esperando começar porque ocorreria

num “pico paradisíaco” e mais afastado da cidade. Logo percebi que a expressão “pico” era empregada

pelo jovem para se referir ao local onde é realizado a rave, e que não basta ela vir sozinha, mas é

necessário estar sempre acompanhada do adjetivo “paradisíaco” para caracterizar a paisagem que servirá

de pano de fundo para a festa. Paisagem que, de preferência, proporcione uma sensação de afastamento

da cidade.

Para esta edição da Ultra Vip que seria realizada no dia 12 de janeiro de 2008, era preciso

adquirir o “convite” com as pessoas que estavam envolvidas na preparação do evento. Foi então que

Kiko me apresentou Diego Grecchi, um DJ paulista que atua em Fortaleza há vários anos. Conversamos

rapidamente os três, até que Kiko falou para Diego que eu estava interessado em ir para a próxima Ultra

Vip. Prontamente, Diego perguntou quantos “convites” eu iria querer. Informei a ele que apenas dois, o

meu e o de minha namorada. Sem titubeiar, o jovem me entregou os convites e se despediu dizendo que

precisava acertar os últimos detalhes do sistema de som alugado especialmente para o evento. A ida para

a Ultra Vip marcou minha incursão no campo das raves em Fortaleza.

No começo, minha tímida resistência em dançar, pular, gritar, aplaudir, ou mesmo meu

comportamento contemplativo durante os eventos, tudo isso foi considerado “estranho” pelos jovens.

Alguns vinham me perguntar se eu estava com algum problema de ordem pessoal, se estava triste, ou

ainda, se a festa não estava boa para mim. Porém, aos poucos, as pessoas foram se acostumando com a

minha presença e com o meu comportamento. Havia aqueles ainda que sentiam minha falta quando eu

não comparecia a alguma festa, ou mesmo quando eu só chegava muito depois da festa já ter começado.

Gradativamente, passei a ser um “estranho” que não incomodava mais, que tinha um comportamento

previsível; tornei-me um “estranho” que passou a fazer parte do próprio contexto dos eventos, tal como o

Fremden simmeliano: “alguém que vem de fora, se estabelece, mas não se torna membro pleno do

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grupo, não aspirando ser assimilado, esta é a sua condição de pertencer, sua interação com o grupo: estar

distante e próximo ao mesmo tempo” (SIMMEL apud PAIVA, 2007, p. 348).

Durante minhas idas às festas, percebi que alguns amigos e pessoas próximas a mim também

participavam com freqüência dos eventos, formando uma rede de relações que se conectava em alguns

momentos e se desconectava em outros, conforme a situação. Com relação a isso, lembro de um fato que

ocorreu na terceira festa em que fui, realizada no início de março de 2008, dessa vez em Aquiraz, num

local conhecido como Mansão da Prainha. Logo na porta de entrada que dava acesso ao interior da rave,

em meio às luzes e lycras coloridas que compunham a decoração do evento, reconheci a irmã de um

amigo de infância que há tempos não encontrava e com ela pude me deter conversando sobre diversos

assuntos que não estavam relacionados, necessariamente, à festa em si. Além de uma aproximação maior

com a jovem – chamada aqui por mim como Ilana –, tal fato contribuiu para que minha rede de relações

fosse, aos poucos, sendo ampliada no contexto das festas. No decorrer de nossa conversa, a jovem foi me

apresentando aos seus amigos e aos amigos de seus amigos. Aqueles jovens que se lembravam de mim

cumprimentavam-me tanto nas festas seguintes como em outros espaços de lazer em que nos

encontrávamos – fosse com a intenção de coletar informações para a pesquisa ou apenas para simples

divertimento do próprio “pesquisador” –, e, assim, fui estabelecendo contato com alguns dos jovens que

entrevistei durante a realização deste trabalho.

Com pouco mais de um mês freqüentando as raves não me sentia mais um completo estranho

entre os jovens, mas já estava tão à vontade em suas companhias que até arriscava, mesmo que

timidamente e de forma bastante desajeitada, ensaiar alguns passos ao som da música eletrônica durante

as festas. Alguns jovens que conheci através de Ilana foram fundamentais para que eu pudesse

compreender boa parte do universo simbólico das raves. Esses “informantes privilegiados” me

ofereceram, gentilmente, suas companhias durante a maioria dos eventos de que participei e

compartilharam comigo impressões e expectativas acerca das festas. Juntos, fomos e voltamos da

maioria das raves realizadas no período mencionado.

Antes do início da pesquisa jamais tinha freqüentado uma festa deste tipo3. Meu interesse pela

temática surgiu a partir da crescente popularização das raves e sua maciça adesão entre as culturas

juvenis urbanas. Embora haja inúmeras versões que tentam narrar uma origem para estas festas, toma-se

como uma “história possível” a idéia de que elas tenham surgido na Europa. Segundo os mitos narrados

pelos próprios participantes, a expressão “Really Safe Heaven” (traduzindo literalmente do inglês,

3 Uma das dificuldades que enfrentei ao eleger as raves como tema de dissertação foi ter que desenvolver o gosto pela música eletrônica. Fui socializado na cultura musical do rock, e ter que desenvolver o gosto pela música eletrônica significou uma espécie de “processo ritual” para mim. Tive que passar por um tipo de transformação. Senti-me na obrigação de incorporar linguagens e saberes relacionados à música eletrônica que eram valorizados na cena. Através da experiência etnográfica, pude descobrir outros sentidos dados à música que eram bastante diferentes daqueles que eu estava acostumado a atribuir por meio da cultura musical do rock.

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significa “Paraíso Realmente Seguro” – frase na qual se insere a acrossemia do termo rave) foi cunhada

para designar essas festas que tinham uma conotação marginal, realizando-se, na maioria das vezes, em

prédios abandonados ou em sítios localizados nos arredores de metrópoles como Londres e Manchester.

No entanto, rapidamente, tais festas começaram a se popularizar e a conquistar um espaço maior na

sociedade, chegando a reunir multidões de participantes.

Segundo as histórias contadas pelos jovens sobre as raves, as primeiras festas tinham um

caráter familiar, um tanto intimista, eram “festas particulares” freqüentadas por poucas dezenas de

pessoas, todas conhecidas entre si. Consistiam em eventos nos quais a entrada era gratuita (free) e, por

conta disso, eram chamadas de free parties. Além da característica não comercial das festas, o termo

sugeria ainda a imagem de um “espaço livre”, onde práticas, como, por exemplo, o consumo de

substâncias psicoativas ilícitas fosse mais tolerado do que em lugares já colonizados, como boates e

clubes noturnos (GUSHYKEN, 2004). Por conta disso, as festas também passaram a ser chamadas de

acid parties, uma alusão ao consumo das ditas substâncias sintéticas empreendido durante os eventos,

principalmente o ecsaty e o LSD.

Foram necessários poucos anos para que o fenômeno das festas rave conquistasse dimensões

numéricas e econômicas que fizeram dessas festas um dos mais visíveis fenômenos da cultura jovem dos

anos 2000. De “festas particulares”, de pequeno porte, as raves transformaram-se em grandes eventos

que movimentam importantes cifras de dinheiro, como será explicitado mais adiante neste trabalho. Tais

festas já conquistaram espaço de divulgação na mídia, sendo possível observar inúmeras referências a

elas no cotidiano, desde novelas4, passando por matérias sobre entretimento em jornais e revistas de

grande circulação, chegando até aos filmes infantis produzidos por mega-corporações de Hollywood5.

Assim, conforme as histórias contadas sobre o início das raves, em pouco tempo o público freqüentador

destas festas saltou de algumas dezenas de pessoas para milhares de participantes.

Diante disso, comecei então a empreender um olhar mais atento ao universo das raves e a me

deparar com interessantes discursos que construíam uma curiosa justificativa para tentar responder a

questões relacionadas à crescente popularização desse tipo de festa, fazendo referência à busca por um

espaço em que, temporariamente, não se vivenciasse certo sentimento de coerção e regulação da

sociedade sobre o individuo. A maioria dos discursos que aludem à participação dos jovens nas festas

evoca a idéia de que nas raves as pessoas estão mais “abertas” à percepção do Outro e à experimentação

4 Segundo matéria divulgada no jornal Folha de São Paulo: “a novela da Record, Chamas da Vida, aborda o consumo de drogas sintéticas em raves. [...] Na história de Cristianne Fridman, Dado Dolabella será ‘Antônio’, jovem desajustado, que tira racha e se envolve com ecstasy”. A novela foi exibida pela emissora de televisão Record durante o ano de 2008, gerando certa polêmica por enfatizar o consumo de ecstasy no espaço das festas (FOLHA DE SÃO PAULO, 2008). 5 Um filme de Hollywood que faz alusão a uma festividade rave se denomina Madagascar. O filme conta a história de quatro animais do zoológico de Nova Iorque que decidem deixar o local para conhecer o que há no mundo exterior. Os animais decidem fugir para a África, suposto lugar de origem de seus pais. Chegando ao destino, comemoraram seu retorno à selva organizando uma espécie de rave.

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de formas diferenciadas de sociabilidade, além de uma valorização do contato com a natureza. Durante a

pesquisa, ao perguntar a um dos participantes por que ele elegia as raves como espaço de lazer, o jovem

me respondeu:

porque nas raves, diferente de outros lugares, as pessoas se dão, as pessoas vão para se dar, [...] na rave você pode ser você mesmo, você pode dançar como quiser e esquecer por um tempo de todos os seus problemas. Você simplesmente é livre, ela [a rave] é um espaço de liberdade. [...] É muito diferente você amanhecer o dia numa rave e amanhecer o dia em casa, indo pro trabalho, tendo que pegar ônibus lotado, ficar no engarrafamento, com um povo que não ta, simplesmente, nem aí pra você. Na rave as pessoas te abraçam, vêm falar contigo, perguntar como você tá, é uma coisa que você não vê por aí. Se uma pessoa que você não conhece te ver numa rave, na outra ela já vem falar contigo (Fabrício, jovem entrevistado em 12 de fevereiro de 2009).

A maioria dos relatos que colhi durante minha inserção no campo apontou em direção à

constituição de um estar junto diferenciado nas raves, traço que as caracterizaria como um espaço de

distinção em relação a outros eventos realizados durante os finais de semana em Fortaleza. Para os

freqüentadores das festas de música eletrônica, as raves se definem como ambientes em que o conjunto

de sentimentos assinalados pela sigla P.L.U.R. (paz, amor união e respeito) prevaleceria em oposição a

outros espaços de lazer e tipos de festas realizadas em Fortaleza.

Até então eu ainda tinha muitas dúvidas sobre qual seria o meu real interesse pelas raves,

porém, após me deparar com os vários flyers sobre as festas encontrados na Internet, bem como ao ouvir

o depoimento de Fabrício e de vários outros jovens entrevistados durante a pesquisa, pude perceber que

o que mais me atraía nas raves era, justamente, tentar compreender o que a crescente procura dos jovens

por esse tipo de festividade tem a dizer sobre as culturas juvenis contemporâneas. A minha intenção aqui

é compreender o que leva os jovens que freqüentam as raves a buscar, mesmo que por algumas horas,

uma existência diferenciada, expressa por um discurso que assinala uma tentativa de reinvenção dos

vínculos sociais, de aproximação com o Outro por meio de uma música produzida de maneira eletrônica.

Assim, cabe perguntar: o que a crescente procura destes jovens por festas afastadas do cotidiano da

cidade, ambientadas em locais “paradisíacos”, pode enunciar sobre as culturas juvenis contemporâneas?

Ao acreditar que as experiências vivenciadas pelos jovens durante as raves constituem um

relevante foco de observação de parte das formas de sociabilidade e das visões de mundo que atravessam

as culturas jovens urbanas, fui sendo guiado nessa pesquisa sem saber para que sentido exatamente

estava me inclinando, tentando descobrir o que me atraía nesse fenômeno. De um modo semelhante ao

utilizado pelo cego para se deslocar, fui sentindo lentamente o solo em que pisava, tateando-o e

aprendendo a me movimentar nessa complexa rede de significados tecida pelos sujeitos-jovens de

Fortaleza. Percebi que, na verdade, o que se colocava diante de mim era a tentativa de produção de uma

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“estilística da existência” (BIRMAN, 1996) juvenil, ou seja, a busca de uma maneira diferida de existir,

mesmo que empreendida somente durante o lazer praticado nos finais de semana.

Através dos discursos enunciados pelos jovens, as raves começaram a se apresentar a mim

como uma espécie de “busca por refúgio num mundo sem coração”, uma tentativa em massa de

resistência a um modo de vida urbano e, principalmente, à fragmentação do laço social contemporâneo.

Contudo, comecei a me questionar sobre a espetacularização crescente das raves, e, ainda, sobre como

essa aparente tática de resistência juvenil pôde conquistar tamanha visibilidade na sociedade, inserindo-

se na agenda cotidiana dos meios de comunicação.

Um dos aspectos que dotam as festas de notoriedade na mídia, sobretudo nos jornais e na

televisão, refere-se ao consumo de substâncias psicoativas praticado por alguns de seus freqüentadores

durante os eventos. Tal fato resultou na publicação de várias matérias jornalísticas com um acentuado

juízo valorativo acerca das raves, repletas de acusações, contestações e recriminações a respeito dos

jovens que as freqüentam. Um texto denominado “A repercussão das raves na mídia: a mídia

sensacionalista cansou de atacar o rap e o funk, e agora quer atacar as raves”, publicado no site Balada

Planet, aborda essa inserção do fenômeno das raves na agenda dos meios de comunicação da seguinte

forma:

Ao que tudo indica as raves parecem ter definitivamente saído do underground para cair na mídia. Desde o dia 13/02/05 com uma matéria sobre as raves apresentada no programa Domingo Espetacular da Rede Record, a palavra “rave” teve seu significado distorcido e a cena sofreu um certo tremor [...]. A reportagem de formato tendencioso, dizia que essas festas eram locais de pura libertinagem juvenil, onde as drogas e sexo rolam livremente, sem qualquer intervenção ou fiscalização por parte de autoridades. [...] Com textos sensacionalistas como “o amanhecer da rave tem cheiro de maconha” e depoimentos de ex-viciados que freqüentavam raves, a reportagem teve a intenção de desmoralizar um tipo de festa onde existem pessoas e empresas sérias trabalhando e tem patrocínio de grandes empresas, generalizando inclusive que todos que freqüentam e produzem são usuárias ou tolerantes ao uso de drogas. Um grande problema gerado por esse tipo de reportagem é a impressão criada de que as raves são eventos que giram em torno das drogas, marginalizando os freqüentadores de raves como usuários. A verdade é que, a grande maioria das pessoas freqüentam as raves por gostarem do som, para encontrar os amigos, por apreciarem a vibe desse tipo de festa e/ou por se sentirem parte daquela cena. [...] Em nenhum momento foi mencionado que nas raves a ocorrência de brigas é minúscula e muitas vezes nula, ou então onde até a mais reprimida das pessoas consegue se soltar e fazer amigos, [...] onde há o contato com a natureza, onde há festas que conseguem mobilizar pessoas do Brasil inteiro? [...] Estaria sendo hipócrita em dizer que não há drogas em raves, assim como existem em colégios, empresas e até mesmo em instituições do governo... afinal aonde não há?? Outro ponto importante a ser ressaltado, é que como festas relativamente caras, as raves são freqüentadas geralmente por pessoas de classe média e alta, que trabalham, estudam, fazem faculdades, tem metas e planos de vida e não por um bando de perdidos em busca da próxima dose, como apregoou a dita reportagem6.

6 Trecho retirado de www.baladaplanet.com.br, acesso em 29 de março de 2009 às 11h.

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A maciça divulgação das raves na mídia acentuando o consumo de substâncias ilícitas

praticado durante os eventos contribuiu para que o Estado se pronunciasse contra a realização das festas.

Pouco tempo depois desse “marco” apontado pelo site Balada Planet como o início da “perseguição” às

raves no Brasil, outro site, intitulado rraurl.com – um dos mais famosos na Internet sobre o universo das

festas de música eletrônica –, divulgou em 12 de dezembro de 2006 uma notícia que abordou a

formulação de um projeto de lei apresentado pelo político Theo Silva e publicado no Diário Oficial da

Câmara dos Vereadores do Estado do Rio de Janeiro. O projeto pedia a proibição de raves no município,

defendendo a idéia de que há nas festas não apenas um elevado consumo de substâncias psicoativas, mas

afirmando ainda que elas possuem uma estreita relação com o narcotráfico. Mais recentemente, em 12 de

julho de 2008, foi publicado no jornal goaiano Diário da Manhã uma reportagem que abordava a

iniciativa do Ministério Público Estadual (MPE) em proibir a realização de raves em Goiás por

constatar, através de investigação policial, um elevado consumo de substâncias psicoativas durante os

eventos.

No entanto, embora haja em alguns estados esforços para tornar ilegal a realização das raves,

uma explicação “nativa” é fornecida, ainda, para explicitar os motivos do consumo de substâncias

psicoativas durante os eventos. Conforme a versão dos freqüentadores, o consumo de substâncias

psicoativas no ambiente das raves se dá, especialmente, por conta de uma potencialização das

capacidades físicas e também por poder promover uma intensificação da experiência sensorial dos

participantes ao entrarem em contato com a música eletrônica7. Ou seja, é a partir do consumo de

substâncias psicoativas que o jovem suporta o esforço físico requerido para dançar durante toda a festa,

bem como pode experimentar novas formas de interação com a música, tendo sua sensibilidade alterada,

principalmente no que se refere aos sentidos da visão e audição. Segundo os participantes, por meio do

consumo de substâncias psicoativas, é possível, no contexto das raves, “ver a música e sentir as cores”.

Através do relacionamento de fatores como estímulos sensoriais, performances8 e consumo de

George Yúdice (1997), em seu ensaio intitulado: “A funkificação do Rio”, empreende uma interessante análise do “movimento funk” pela mídia carioca, abordando a relação entre o funk e a questão de classe imbricada através do preconceito expresso nas matérias que abordaram o fenômeno nos anos 1990, associando-o à violência e aos moradores da periferia da cidade do Rio de Janeiro. 7 Esses psicoativos são percebidos, no âmbito dos saberes médicos e farmacológicos, como substâncias pouco prejudiciais à saúde, que não causam dependência química, afirmando ainda que seu consumo é localmente situado e está diretamente relacionado a contextos de lazer. Tais substâncias são descritas ainda como “drogas recreativas” ou, apenas, “novas drogas”, segundo Henriques (2002). Elas não são consumidas individualmente, mas antes de maneira coletiva, sobretudo em contextos de lazer noturno. Não são substâncias que, de um modo geral, sejam ingeridas no dia-a-dia, no recanto do quarto de dormir, ou na escola, mas são antes consumidas de forma coletiva e raramente de um modo solitário. 8 Trata-se de uma linguagem mais ampla, que está para além da fala ou da escrita. Ao utilizar o termo “performance”, busco perceber aquela linguagem que se desenvolve através de gestos, sons, da relação com o espaço físico e do contato com o outro. O conceito de performance aqui utilizado relaciona-se a ações, modos de falar, maneiras de se comportar corporalmente – cujas repetições situam os atores sociais no tempo e no espaço, estruturando identidades individuais e de grupo (KAPCHAN, 1995). O enfoque dos “gêneros de performances” é uma das tendências recentes que parece ganhar força entre as perspectivas antropológicas que têm priorizado os eventos rituais e o teatro como suporte para análise da realidade social. Uma das referências pioneiras nesse campo é o antropólogo Victor Turner que, em seus últimos estudos, passou a dedicar esforços no

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substâncias psicoativas, os jovens buscam experimentar sensações que os induziriam a um estado de

êxtase durante a festa, uma tentativa de “perda de si”.

Assim, ao mesmo tempo em que tais substâncias possibilitam essa potencialização das

capacidades físicas e experiências sensoriais dos jovens, elas podem oferecer também ao freqüentador a

vivência de uma sensação de partilha e de coesão social que se destaca, principalmente entre alguns dos

participantes da festa, como algo quase inerente às raves. É muito comum ouvir os jovens afirmando:

“na rave eu faço amigos brincando”. Essa expressão se refere ao caráter lúdico da festa e à possibilidade

que o consumo de tais substâncias oferece aos jovens de se relacionar mais facilmente com outros

participantes, proporcionando, por exemplo, certa inibição da timidez.

A partir da observação de todos estes elementos, busquei registrar e compreender discursos,

gestos, ações, gramáticas sociais e práticas de consumo adotadas pelos participantes durante as festas,

procurando perceber o que faz com que estes jovens optem por eleger festas afastadas das atividades

cotidianas da cidade como opção de lazer. Autores como Mannheim (1982) e Melucci (1994)

recomendam que devemos estar atentos às expressões juvenis, pois estas podem ser a ponta de um

iceberg, que torna visíveis as tensões e contradições da sociedade em que vivemos. Nesse sentido,

acredito que a rave pode ser tomada como um importante foco de observação dessas transformações.

Assim, cabe perguntar: o que há nas raves que tanto atrai os jovens? Estas festas constituem apenas mais

um produto da cultura de massa ou podem estar nos dizendo algo mais sobre os modos de ser jovem

neste início de século?

Quando a festa é o campo

Desde Malinowski a antropologia vem se caracterizando como uma área do saber dotada de

certa especificidade metodológica, qual seja, o empreendimento do trabalho de campo. Embora o

antropólogo polaco não tenha sido o primeiro pesquisador a realizar um trabalho de campo9, Malinowski

se consagrou como um verdadeiro artífice desse método que, com o decorrer dos anos, se tornou

presente em diversos trabalhos realizados na antropologia (e, mais recentemente, até na própria

sociologia). Assim, mais do que sair de seu gabinete para coletar dados no campo, o antropólogo teria de

saber como coletá-los, valendo-se, principalmente, de um tipo de observação que participava ativamente

da dinâmica cultural do “grupo” pesquisado. Mas para poder participar da vida de determinado “grupo” empreendimento de fundação da vertente antropológica denominada “antropologia da performance” (TURNER, 1987). Essa fase do autor foi influenciada pela experiência que ele teve com o intenso trabalho de campo realizado entre os povos Ndembu da África Central. 9 Segundo George Stocking Jr. (1993), outros antropólogos fizeram trabalhos de campo similares ao empreendido por Malinowski, mas, ao contrário deste, não tinham consciência da inovação que isso representava para a antropologia.

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e fazer disto material a ser utilizado na pesquisa, seria necessário ao pesquisador desenvolver certas

habilidades essenciais a esse difícil empreendimento, tais como apreender o “idioma nativo”

(VIVEIROS DE CASTRO, 2002) e adentrar no próprio objeto de estudo, numa espécie de exílio em

relação à sua sociedade de origem. Contudo, pergunto-me como proceder quando o “objeto de estudo”

não permite a realização de um trabalho de campo clássico, nos moldes malinowskianos, tal como o

escolhido aqui, concernete às culturas juvenis urbanas?

A interpretação de James Clifford (1999) sobre o trabalho de Malinowski vai atentar para uma

particularidade da pesquisa de campo: a tenda do etnógrafo como uma espécie de casa móvel que

também viaja por geografias “exóticas”, tornando-se a própria tenda um elemento estranho inserido no

ambiente que passa a ser observado pelos próprios nativos. Durante as festas não fui apenas um

observador que olha toda a paisagem do lado de fora de sua “barraca”, mas também alguém que foi

observado por aqueles que ele próprio observava. A experiência da rave, com todos os seus estímulos

sensoriais, exigiu-me empreender um movimento não-linear entre observação e participação. Para poder

captar as intensidades da festa, tive não só que abandonar os limites geográficos de minha “barraca”,

mas fazer uso dos “sete buracos da cabeça e toda a extensão do corpo” (DIÓGENES, 2003, p. 30) sem

medo de cruzar os limites das ciências do social. À medida que fui me familiarizando com a dinâmica da

rave, tornava-se cada vez mais difícil determinar os limites entre o papel de observador e o de

participante, principalmente porque já estava bastante próximo de meus “informantes”.

Durante a pesquisa, preocupei-me não apenas em cumprir com o “censo doméstico”10 da

etnografia, mas me esforcei ainda em tentar elaborar uma “descrição densa” (GEERTZ, 1989) das

formas de sociabilidade, práticas e discursos incorporados pelos jovens na festa. Assim, por saturação11,

optei por entrevistar 12 jovens que freqüentam ou já freqüentaram as raves realizadas em Fortaleza e

cidades vizinhas. Dentre esses jovens, encontram-se veteranos que inclusive já participaram de festas de

música eletrônica em outros países, neófitos (freqüentadores “iniciantes”), DJs e demais organizadores

dos eventos que atuam na cena local. Dos entrevistados, 7 são homens e 5 são mulheres, com ocupações

que variam desde estudantes secundaristas (em fase pré-vestibular), universitários, trabalhadores

autônomos e profissionais liberais. Suas faixas etárias giram entre 19 e 27 anos de idade. Contudo, a fim

de preservar as intimidades dos indivíduos entrevistados, cujo conhecimento me foi confiado, utilizo

nomes fictícios atribuídos de forma aleatória para me referir aos jovens ao longo do texto. Nesse sentido,

cabe assinalar também que além das entrevistas, decidi utilizar relatos informais e experiências pessoais

registradas em meu caderno de campo. 10 Geetz (1989) define como “censo doméstico” as técnicas e procedimentos etnográficos que compreendem: estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, gravar entrevistas, levantar genealogias, mapear campos e fazer do diário de campo, o “fiel companheiro de todas as horas”. 11 As falas dos jovens acerca das festas eram muito parecidas. Durante nossas conversas, eles ressaltavam os mesmos aspectos dos eventos, narrando experiências que se aproximavam bastante.

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As entrevistas apresentadas aqui não foram realizadas no momento da festa, mas em outros

espaços acordados anteriormente com os próprios jovens; isto porque os resultados das tentativas feitas

durante a rave ficaram inaudíveis em conseqüência do elevado volume da música de fundo. Além disso,

os jovens se mostraram pouco interessados em colaborar com a pesquisa concedendo entrevistas

enquanto aproveitavam a festa, eles próprios preferiam conversar em outros locais, como shoppings,

lanchonetes, bares ou em suas próprias casas. No entanto, o ambiente da rave se mostrou como um

espaço privilegiado para as conversas informais. Para entrevistá-los, servi-me tanto da ajuda de amigos

próximos e parentes que me indicaram conhecidos seus que participavam ou já haviam participado das

festas, como também tive que me lançar à difícil tarefa de abordar, por conta própria, alguns jovens que

até então não conhecia. Houve, ainda, ocasiões em que os sujeitos consultados negaram explicitamente

meu convite, recusando-se a participarem das entrevistas; ou implicitamente, ao não responder emails

nem retornar minhas ligações. Mas a grande maioria atendeu solicitamente à minha proposta de

entrevistá-los. De qualquer modo, creio que a “escolha” se deu duplamente, pois, em alguns casos, tanto

pude “escolhê-los” como fui “escolhido” pelos jovens para ouvir sobre suas experiências nas raves

(PAIVA, 2007).

No decorrer da pesquisa, deparei-me tanto com discursos de encantamento como de

desencantamento entre os jovens sobre os eventos realizados na cena local. Alguns daqueles que me

“escolheram” para falar sobre suas experiências durante a festa, deixavam claro que estavam

participando da pesquisa com o intuito de que suas falas pudessem revelar aspectos positivos das raves,

buscando desconstruir o discurso midiático criado acerca dos eventos que enfatiza o consumo de

substâncias psicoativas no espaço das festas. Também houve aqueles que optaram por assinalar que as

festas já não eram mais tão atrativas como antes, pois, segundo a fala de um dos entrevistados, elas

estavam perdendo sua magia, sendo frequentadas por pessoas interessadas apenas em aproveitar mais

uma noite de hedonismo, sem se importar com os símbolos e discursos adotados na festa.

Para mim, ir a uma rave não significava apenas empreender um deslocamento espacial, mas

algo mais; sair de meu apartamento rumo à festa, ao encontro dos jovens, levava-me a perceber outra

cidade que se mostrava na penumbra da noite e se transformava na clareza do dia, caracterizada pela

ambivalência dos encontros, pela força dos conflitos. De modo semelhante, retornar de uma rave, sair da

presença dos jovens, trazia-me de volta ao “mundo”, como se ao me deslocar entre idas e vindas das

festas, eu fosse jogado num redemoinho de subjetivações que me levavam a realidades que ora se

contrapunham, ora se complementavam. Esta foi uma experiência vertiginosa que tentei registrar por

meio de falas, textos, fotografias e vídeos que exibem minhas “saídas” e meus “retornos” a esses “portais

da existência”; trata-se, portanto, de uma experiência que extrapola todos os limites de simples relatos de

viagens. Parte dos registros fotográficos realizados durante a pesquisa se encontram diluídos pelo

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capítulo intitulado “Paisagens da festa: margens, espaços-tempo, cenários”. Neste capitulo, utilizo ainda

de quatro fotografias que não são de minha autoria, mas de Gustavo Simão, um jovem de 16 anos de

idade que trabalha voluntariamente como fotógrafo na cena local há, aproximadamente, dois anos e que

disponibiliza publicamente suas imagens na Internet, tanto em seu blog como no perfil criado no Orkut,

tornando-as acessíveis a quem quiser. São elas: foto 10 (p. 119), foto 14 (p. 125), foto 17 (p. 126) e, por

fim, foto 18 (p. 129).

A reconstrução cotidiana necessária ao “objeto” desta pesquisa extrapolou os limites

concernentes à intencionalidade da investigação. Caminhos previamente traçados, estruturação de

roteiros de entrevistas e locais de observação antecipadamente escolhidos foram sendo, aos poucos,

modificados. Durante essa experiência de “pesquisador”, fui obrigado, para o bem ou para o mal, a

aprender a me deslocar por espaços complexos e heterogêneos que jamais pude imaginar. O “objeto”

desta investigação se construiu, desconstruiu e tornou-se a construir seguidas vezes. As mudanças de

rumo se deram na perseguição de sensibilidades e relações que me encantavam e desencatavam, por

vezes sucessivamente.

No início do meu contato com os jovens no espaço das raves, fui tomado por um inquietante

sentimento de, necessariamente, ter de estar atento a tudo que se processava no espaço da festa. Procurei

sempre guardar “a sete chaves”, em algum dos cadernos de campo que carregava comigo, todos os

diálogos, todos os incidentes que presenciei antes, durante e depois das raves. Atravessado pelo medo de

que tais registros pudessem se perder, julguei, ainda, que seria oportuno fotografar e filmar todas as

coisas que despertavam minha atenção durante a festa12. Aos poucos, fui percebendo que seria

necessário “selecionar” eventos, imagens, fatos e falas. A partir daí, decidi que talvez pudesse ser

oportuno planejar o que poderia abordar durante minhas conversas com os jovens e, desse modo,

comecei a pensar no que perguntar e como perguntar certas coisas, principalmente aquelas relacionadas

ao consumo de psicoativos empreendido durante a festa. Contudo, ao estar no campo, deparava-me

sempre com situações que fugiam ao meu controle. Muitas vezes, não encontrei abertura para lançar aos

jovens meus questionamentos e também percebia que seria pouco proveitosa qualquer tentativa de forjar

um diálogo, inquirindo-os a falar sobre fatos dos quais nem eles mesmos possuíam respostas.

Percebendo isso, comecei então a parar de planejar as situações e me entregar às experimentações do

momento, deixando-me levar pelos rumos que a pesquisa ia tomando. Percebi que seria preciso, em

algumas situações, deixar de lado o “censo doméstico do empreendimento etnográfico”, para me lançar

ao “senso de etnógrafo”: do “pesquisador” que dota seu trabalho de sensibilidade.

12 Dentre o material necessário que carregava comigo durante as festas, como mochila, óculos de sol, máquina fotográfica, gravador digital de voz e meu inseparável caderno de campo, posso citar ainda três cartões de memória para poder armazenar todas as imagens que julgava necessárias ao meu empreendimento etnográfico.

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Depois de algum tempo, percebi que aqueles jovens com os quais estabeleci contato

começavam a me dirigir um olhar diferenciado, notei que passei a ser percebido como alguém que não

estava ali somente para observar a dinâmica da festa sem ser afetado por ela, mas como alguém que, aos

poucos, começava a eleger as raves como uma opção de lazer. Por conta disso, considero que parte das

observações que descrevo neste trabalho podem ser, também, fruto das considerações feitas pelos

próprios jovens que participaram das festas comigo, apresentando-me determinados símbolos e

significados atribuídos à dinâmica da rave. Procurei me expor a diferentes situações no espaço das

festas, sempre com a preocupação de criar maneiras diferenciadas de inserção no campo. Durante a

pesquisa, optei por utilizar, algumas vezes, transporte coletivo para ir e vir dos eventos, bem como por

chegar e sair das festas em horários diferenciados, além de circular pelos variados espaços que,

ocasionalmente, se constroem no interior da rave. Rapidamente minha convivência com os jovens foi se

tornando informal. Tive a oportunidade de conversar com eles sobre variados assuntos, compartilhando

fatos e angústias pessoais quando sentia necessidade, principalmente aquelas relacionadas à redação do

presente estudo. Durante nossa convivência, muitos deles me perguntavam sobre o andamento da

pesquisa, lembrando-me sempre de enviar o trabalho final para que eles pudessem ler aquilo que eu

descrevia acerca de suas práticas. Alguns até me pediam emprestado o caderno de campo não só para ler

parte de minhas observações a respeito da festa, mas aproveitavam também para inserir seus próprios

comentários sobre elas.

“Arquivos” da pesquisa

Em 12 de janeiro de 2008, na edição da Ultra Vip realizada numa pousada em Sabiaguaba,

inaugurei meu primeiro caderno de campo dedicado a este estudo. Ao final da pesquisa pude contabilizar

3 cadernos de campo, sem contar aquelas inúmeras anotações soltas, rabiscadas em guardanapos ou

registradas no verso de algum flyer, recheadas de impressões que extravasam os limites da “objetividade

científica”. Impressões que necessitavam ser registradas exatamente no instante em que me ocorriam

justamente por suscitarem sentimentos tão intensos que dificilmente tornariam a invadir meu corpo

novamente. Experiência-limite que transforma uns e outros, que tem como pressuposto o contato com o

Outro através de outras linguagens.

Falar em “caderno” pode soar como algo démodé em decorrência da imensurável quantidade

de recursos que um pesquisador tem atualmente à sua disposição, como notebooks, palmtops e celulares

avançados que gravam imagens e sons, no entanto, posso afirmar que foi exatamente em meu caderno de

campo que registrei a maior quantidade de informações possíveis. Percepções, sentimentos, emoções,

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primeiras tentativas de teorização, mapas, desabafos, reclamações, elogios e notas de conversas

informais estão guardadas em todos os 3 cadernos, estes carinhosamente escolhidos para receber essas

informações. Cadernos de 90 folhas, com espiral e capa dura em formato 100 x 140 mm (ideais para

carregar na mochila ou no bolso lateral da calça!). Verdadeiros diários de experiências não só daquilo

que eu via ou ouvia, mas também do que eu sentia. Sentado no chão das festas, foi sobre minhas pernas

que apoiei meu caderno de campo e registrei a maior parte das percepções que tive acerca das ações,

falas e comportamentos dos jovens durante os eventos. Em determinados momentos tudo me parecia

relevante e merecia ser registrado, porém em outros, como por um acometimento de desencanto com a

pesquisa, as coisas perdiam a importância e se tornavam desbotadas, opacas, demasiadamente

desinteressantes.

No tocante à pesquisa documental empreendida aqui, decidi colher, catalogar e arquivar, além

de fotografias e vídeos, livros, reportagens publicadas em revistas que abordam a temática das festas de

música eletrônica, jornais, capas de CD, flyers, músicas, trechos de depoimentos publicados em sites e

comunidades virtuais relacionadas às raves. Boa parte do material foi coletada por mim, porém houve,

também, aqueles documentos que me foram gentilmente cedidos pelos jovens entrevistados, bem como

por pessoas próximas que tinham conhecimento sobre o tema de minha pesquisa.

A maioria dos flyers que colecionei durante a pesquisa de campo está em formato digital, algo

em torno de 150 unidades e tratam de festas de música eletrônica de variados tipos. Aqueles que se

encontram em formato impresso foram colhidos em ambientes diversos, muitas vezes durante minha

passagem por algum bar ou boate do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, ou ainda,

durante os meus passeios pelos espaços que se formam do lado de fora de alguma rave. Isso me revelou

um fato interessante: quando o assunto é a metrópole, o “pesquisador” está em constante “situação de

pesquisa”. Não é preciso, necessariamente, deslocar-se até o “grupo pesquisado” para observar e

registrar seus comportamentos e práticas, mas o “pesquisador” acaba se tornando parte dele e

percebendo os rastros de seu “objeto” espalhados pelo cotidiano da cidade, principalmente quando se

trata de culturas juvenis.

Algumas matérias de jornais, especialmente de O Povo e Diário do Nordeste, foram,

também, selecionadas como material de pesquisa por trazerem reportagens ou abordarem temas

relacionados ao microcosmo das raves que, de alguma forma, interessavam aos objetivos aqui

propostos. Tais jornais foram escolhidos por serem os periódicos de maior circulação na capital

cearense. No entanto, além deles, também cuidei de acompanhar outros jornais de circulação nacional,

como O Globo e Folha de São Paulo, sempre buscando em suas páginas matérias relacionadas ao

universo das festas de música eletrônica de um modo geral.

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Embora possa ter colhido todo o material já descrito: flyers, relatos formais e informais,

fotografias, vídeos e depoimentos publicados na Internet, além de fragmentos de memórias relativos à

minha interação com os jovens, questões do tipo: “o que fazer com todo o material colecionado durante

os anos de 2008 e de 2009?”, ou ainda “como organizar essas informações e distribuí-las ao longo da

dissertação?”, inquietaram-me sobremaneira durante o período dedicado a escrita deste texto. Assim, tão

difícil quanto “selecionar” eventos, imagens, fatos e falas é apresentá-las. Percebi que é preciso um

pouco de “subjetividade artista” (ROLNIK, 1997) nesse empreendimento de organização e exposição

dos ditos “arquivos” da pesquisa. Se consegui exercitar esse “modo de fazer artista” ainda não sei,

contudo asseguroao leitor que a melhor forma que encontrei para expressar essa minha tentativa foi

divindo este trabalho em quatro capítulos. De qualquer modo, exponho a seguir uma espécie de guia-

mapa de como essas experimentações vivenciadas na festa foram organizadas e distribuídas.

Na parte introdutória, tive o cuidado de apresentar ao leitor o objeto de estudo, os objetivos da

pesquisa, táticas metodológicas utilizadas e as informações sobre como se processou minha inserção no

campo. Por conta disso, considerei necessário elaborar uma breve caracterização das festas, tentando

apresentar parte dos discursos, símbolos e sentidos que compõem o microcosmo das raves de um modo

geral, justamente para já ir familiarizando o leitor com o campo das festas e as complexas teias de

significados construídas por seus atores. Tais relações são exploradas ao longo da pesquisa de forma

detalhada, estendendo-se pelos capítulos que estruturam o corpo do texto.

No primeiro capítulo, “Que é a juventude?”, a intenção é tecer considerações teóricas acerca do

termo “juventude”, buscando perceber tal conceito como um “ato performativo”, como experiência

localizada no tempo e no espaço, ou seja, como algo dinâmico que se encontra em constante

remodelação a partir da interação entre sociedade e indivíduo. Para isso, adotei a perspectiva de que,

para além de uma simples “classe de idade” ou de uma etapa peculiar do ciclo de vida, a juventude pode

ser definida, também, como uma categoria social. Assim, num sentido oposto àquele que toma a

juventude como um grupo coeso ou uma classe, sua definição como categoria social, a partir das

contribuições de Abramo, Mannheim, Morin, Erikson e Canevacci dentre outros, permite compreendê-la

como um grupo híbrido e multifacetado, permeado tanto por modos de integração como por conflitos de

diversas ordens. Depois de realizado esse esforço, debruço-me sobre as leituras socioantropológicas

empreendidas acerca das práticas culturais da juventude e, por fim, busco apresentar a forma como

alguns autores, dentre eles, destacam-se Sarah Thornton e Simon Reynolds, tentaram interpretar o

contemporâneo fênomeno das festas rave. Cabe assinalar também que algumas das citações apresentadas

ao longo do texto, que originalmente se encontravam em outro idioma, foram livremente traduzidas para

não comprometer o entendimento do capítulo como um todo.

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Depois de apresentar tais subsídios teóricos acerca da juventude, o segundo capítulo, intitulado

“Nos interstícios das histórias”, tem como objetivo traçar uma trajetória possível que tenta narrar uma

história para as raves. Estas festas não têm propriamente uma origem, mas sim prováveis origens. As

raves possuem várias versões que simulam explicações sobre seu início e fabricam sentidos para sua

“cosmologia” (TAMBIAH, 1972). O capítulo aborda três versões possíveis para o início destas festas e,

a partir delas, tenta-se traçar uma trajetória que assinale os caminhos percorridos por este tipo de

festividade até sua chegada ao Brasil e, posteriormente, seu desembarque em Fortaleza. Assim, nos

interstícios das histórias das raves, o que sobra são apenas fragmentos de um imaginário que vai

selecionar e descartar narrativas as mais subjetivas possíveis. Ainda nesse capítulo, recorrendo a toda a

sorte de informações que eu pude encontrar sobre a cena local da música eletrônica, aceito o desafio de

tentar elaborar uma cartografia possível que busca assinalar os sinuosos caminhos percorridos pela cena

de Fortaleza até chegar ao fenômeno das raves. Nesse empreendimento, utilizei desde narrativas

encontradas na Internet, disponíveis em blogs e fotologs, até matérias publicadas em jornais e conversas

informais sobre o assunto.

Apresentada a cena e suas “histórias”, percebi que seria preciso em seguida descrever a festa e

os vários modos através dos quais seus participantes interagem com ela. No terceiro capítulo, cujo título

é: “Paisagens da festa: margens, espaços-tempo, cenários”, busca-se empreender um mergulho efetivo

no campo empírico, trazendo vários depoimentos e observações acerca das experiências vivenciadas por

mim e pelos jovens na rave, durante o período da pesquisa de campo. Nele, começo descrevendo a

chegada dos sujeitos na festa, falando sobre espaços e as várias formas como os jovens os ocupam ainda

no lado de fora da rave, reinventando-os à sua maneira. A partir daí, inicio a descrição dos espaços

internos da festa, apresentando cada um deles: desde a porta de entrada, passando pelo chill out até

chegar na pista de dança, encerrando o capítulo com o bar e a lanchonete. Cada um desses espaços exige

comportamentos e práticas próprias que operam diretamente na composição do cenário da rave. As

formas de interação entre os jovens e a festa muda conforme o espaço e, principalmente, o tempo em que

seus participantes a experimentam.

No quarto capítulo, “Festas que unem e separam”, o objetivo é apresentar tensões, hierarquias

e princípios de classificação encontrados durante a pesquisa de campo, colocando sob rasura a idéia de

completa integração entre os freqüentadores. Nele, são abordados os conflitos existentes no interior da

cena, buscando perceber os diferentes sentidos atribuídos ao fenômeno da popularização das raves entre

as culturas juvenis de Fortaleza. Alguns dos jovens com quem tive a oportunidade de conversar durante

a pesquisa de campo, afirmaram que aquele ambiente repleto de “paz, amor, harmonia e respeito”

existente e compartilhado entre todos aqueles que habitam temporariamente o espaço da festa estaria

perdendo seu encanto, sua magia. Para esses jovens, isso é decorrência da crescente popularização das

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raves não só no âmbito local, mas também em nível global, alegando que, por conta disso, as festas

estariam sendo freqüentadas por pessoas que não compartilham, tampouco praticam, os símbolos e

discursos adotados em sua “cosmologia”, mas que estão lá apenas para se divertir. No entanto, deparei-

me ainda com jovens que em suas falas defendiam exatamente o contrário. Para eles, o crescimento e a

popularização da cena local, tal como se buscou empreeder em seu início através de ações de grupos

como o Undergroove, é visto de forma positiva e só têm a contribuir para a disseminação do gosto pela

música eletrônica entre as culturas juvenis da cidade. Entre os freqüentadores, há ainda expressões que

são utilizadas para classificar as festas da cena, tais como “festa chacota” e “festa conceito”. Para eles,

diferentemente daqueles eventos que são denominados como “festa conceito”, as festas tidas como “festa

chacota” não valorizam os discursos e símbolos adotados nas raves, afirmando ainda que o que motiva

sua realização é apenas um interesse puramente comercial.

Por fim, nas “Considerações finais”, longe de tentar escrever uma conclusão propriamente dita,

que seja carregada da vontade de pronunciar palavras tidas como “finais” com relação às festas rave e

aos jovens que as freqüentam, o que se busca é realizar uma espécie de ensaio que possa articular os

diversos elementos abordados ao longo dos quatro capítulos que compõem este trabalho. Assim, deve-se

ler nas páginas que compreendem as chamadas “considerações finais” uma última interpretação que se

constrói a partir dos percursos efetuados durante os anos de 2008 e 2009. No entanto, o fato de se

apresentar como “última” não implica dizer que é a “única”, mas que é uma dentre tantas outras

interpretações possíveis acerca de tais festas e de seu público. Tão logo um caminho semelhante seja

feito outras interpretações, certamente, virão à tona.

Uma das principais características das raves é o seu caráter ambivalente. Conforme assinala

Bauman (1999), a ambivalência é a incapacidade de conferir a um objeto ou evento qualquer tipo de

ordem ou nomeação. As raves não cabem em categorias pré-concebidas, elas são acontecimentos

efêmeros, híbridos, tão instáveis quanto os processos de identificação que atravessam os jovens que as

freqüentam: elas transitam entre o “underground” e o “mainstream”, o “rural” e o “urbano”, o “local” e

o “global”, o “racional” e o “espiritual”. Assim, mesmo que ao final de toda pesquisa busque-se

apresentar os resultados obtidos a partir de sua realização, creio que isso não é possível quanda se trata

tanto do fenômeno das festas rave como das gramáticas sociais produzidas pelas culturas juvenis

contemporâneas. Quando menos esperamos, as categorias e os modelos conceituais erigidos

anteriormente para compreender a dinâmica da festa e os diversos modos de ser das juventudes que dela

participa já não servem mais e outros deverão ser evocados, porém contam também com o mesmo prazo

de validade curto. Portanto, um alerta: no caso desta pesquisa, as relações que se estabelecem entre “as

palavras e as coisas”, entre o texto e o real, não oferecem qualquer tipo de estabilidade cognitiva, mas,

ao contrário, abordam a indefinição, tantas outras questões diferentes das que apresento aqui podem ser

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levandas, assim como também outras interpretações podem emergir ao se observar o complexo

fenômeno das festas rave realizadas em Fortaleza e arredores.

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1. QUE É A JUVENTUDE?

[...] a idade não é a sua nem a minha, é a idade do outro, que ao nos ser dada nos possui, de tal forma que nosso tempo fica aprisionado.

(Juarez Dayrell)

A melhor forma que encontrei para começar este capítulo foi fazendo duas perguntas ao leitor:

que é a juventude? Que é ser jovem? As muitas problematizações produzidas nessa pesquisa referentes

às práticas adotadas pelos jovens durante as raves envolvem uma reflexão crítica de questões

relacionadas à juventude e à cena cultural contemporânea. Nesse sentido, este capítulo pretende tecer

considerações teóricas acerca da temática da cultura jovem contemporânea, buscando colocar o conceito

de juventude sob rasura, partindo da perspectiva foucaultiana de críticas a modelos tradicionais de

análise que se apóiam em pressuposições e objetos considerados como dados a priori. Desse modo, faz-

se necessário, antes de qualquer coisa, questionar discursos que tracem esquemas de dominação

imbricados em determinadas maneiras de selecionar, organizar e redistribuir palavras que invocam

“vontades de verdade” (FOUCAULT, 1979) sobre o que venha a ser esta etapa do ciclo de vida

denominada “juventude”.

Na maioria das vezes, os termos e as classificações utilizadas para caracterizar os diversos

momentos das fases da vida dos sujeitos são orientados pelo discurso de certos saberes produtores de

“efeitos de verdade e poder” (FOUCALT, 1979). Como exemplo disso, pode-se mencionar a atuação das

ciências médicas, da psicologia e da pedagogia nesse empreendimento de classificação etária dos

sujeitos. As ciências médicas construíram a concepção de puberdade, referindo-se à etapa de

transformações na qual é acometido o corpo do indivíduo na transição de um estádio infantil para uma

fase madura. Em outro pólo, tanto a psicologia, como a psicanálise e a pedagogia fabricaram uma

concepção de adolescência, concernente às mudanças na personalidade e no comportamento do sujeito

que se lança na busca pela conquista de uma fase adulta (GROPPO, 2000). As faixas etárias socialmente

reconhecidas como juventude e idade adulta sofreram inúmeras transformações, abandonos,

atualizações, retornos, omissões e até acréscimos ao longo dos anos. Do mesmo modo, as categorias

sociais que delas se originaram também tiveram que aturar várias mudanças em suas nomeações, girando

em torno de termos como “infância”, “pré-adolescência”, “adolescência”, “puberdade”, “juventude”,

“jovem-adulto”, “adulto”, “maturidade”, “novo”, “idoso”, “velho”, “terceira idade” ou “melhor idade”

entre outros, pois a lista é bastante vasta. Cada termo, à sua maneira, refere-se a um tipo de

transformação que o sujeito sofre em determinada fase do ciclo da vida. Assim, cabe observar que os

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termos “adolescência” e “juventude” são empregados como referências constantes a estádios sucessivos

do desenvolvimento humano – a adolescência é tida como uma fase que se encontra próxima da infância,

e a juventude como uma etapa mais ligada à maturidade.

São muitas as trilhas percorridas na tentativa de definir, conceituar, diferenciar e, sobretudo,

limitar, onde inicia e onde termina a juventude. Trata-se, entretanto, não de uma busca recente, mas

decorrida há séculos. Na Grécia antiga, por exemplo, a vida era organizada em função do efebo, que,

segundo Ortega y Gasset (1987), apresentava-se como modelo a ser seguido. Já na Roma antiga, em 753

a.C., ao completar 16 anos de idade, os meninos eram inseridos em uma classe denominada “príncipes

da juventude”. Mais adiante, por volta do século VI e VII, na idade média, as delimitações começavam a

assumir características etárias, definidas conforme o ciclo de vida do indivíduo. Uma consideração

importante trata do fato de que, apenas aos 40 anos, os homens podiam participar dos cargos políticos,

porque esta idade significava o fim da “idade dos perigos” (LEVI; SCHMITT, 1996).

A partir do século XVIII, começa a surgir, então, uma visão mais sociológica da juventude, e a

principal característica atribuída aos jovens, neste período, é, segundo Ortega y Gasset (1987),

identificada na figura do indivíduo que somente reproduz as idéias consolidadas pelos adultos,

afirmando não apenas “[...] a sua juventude, mas princípios recebidos”, socialmente herdados (ORTEGA

Y GASSET, 1987, p. 119). Somente ao fim do século XIX, surge, nas classes burguesas o termo

“adolescência”, como o resultado de uma sociedade capitalista e industrializada, com a intenção de

demarcar o início da segunda infância, definindo a idade para além dos 13 anos. Neste período, a

juventude é caracterizada como um segmento social que anela a maturidade, envergonhando-se de sua

condição juvenil.

Já na contemporaneidade, G. Stanley Hall pode ser apontado como um dos primeiros autores a

abordar a “adolescência” como uma fase de importância singular no desenvolvimento humano,

referindo-se a esta etapa do ciclo de vida como uma “idade sensível” que requer “os mais sábios esforços

dos adultos” (HALL apud SPRINTHALL; COLLINS, 2003, p. 15). A partir das contribuições de G.

Stanley Hall, pode-se perceber a maneira pela qual a adolescência apresenta-se como uma fase natural,

obrigatória, do desenvolvimento humano, que precederia a idade adulta. Diante dessas diferenciações em

definir o que venha a ser essa etapa do ciclo de vida do indivíduo, começa, então, a surgir modos de

distinção da abordagem dos termos “adolescência” e “juventude”. Conforme assinala Groppo (2000), o

termo “adolescência”, é amplamente empregado no campo de estudos da psicologia, e o termo

“juventude”, apresenta-se como preferência das ciências sociais, abrangendo, principalmente, a

sociologia, a antropologia e a história13.

13 Nesta pesquisa, optou-se pela utilização do termo juventude justamente por se tratar de uma pesquisa desenvolvida no campo da sociologia.

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Com base nisto, cabe assinalar que não existe uma visão unitária e global que seja passível de

resumir por meio de números, códigos ou receitas teóricas e metodológicas modelos de compreensão da

juventude. Os multisentidos produzidos pela juventude na contemporaneidade desenham constelações

móveis de símbolos, desordenadas, dotadas de múltiplas faces e múltiplos códigos; constituem fraturas

repletas de “significados líquidos” (CANEVACCI, 2005), onde sentidos fugidios são postos em ação

impossibilitando organizar e classificar, seja com tipologias ou tabelas, um “suposto” objeto de pesquisa

chamado juventude. O presente texto adota como interlocutores autores como Abramo, Mannheim,

Margulis, Calligaris e Canevacci, dentre outros. Dessa forma, visando contemplar parte da complexidade

e da heterogeneidade com que é dotado o objeto da presente pesquisa, acredita-se que a postura adotada

durante esse exercício teórico de compreensão do que seria a juventude permite dizer algo “além do

texto, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado” (FOUCAULT,

2008, p. 25-26). Cabe, ainda, assinalar que a idéia central deste capítulo é perceber a juventude como

“ato performativo” (AUSTIN, 1975), ou seja, como experiência localizada no tempo e no espaço, na

qual indivíduo e sociedade se afetam mutuamente, negociando sentidos entre si.

A partir do conceito de “atos performativos”, Austin (1975) rejeita a idéia de que os

enunciados apenas descrevem situações e, por isso, não podem ser considerados simplesmente como

verdadeiros ou falsos, mas como “performáticos”. O autor reforça a noção de que variadas palavras,

termos ou frases, em pronunciamentos aparentemente descritivos, “inocentes”, indicam as circunstâncias

nas quais eles ocorrem. Assim, as palavras são percebidas como atos e, nesse sentido, podem operar

modalidades de ações através de seu próprio pronunciamento. Desse modo, Austin assinala como “atos

performativos” aquelas ações nas quais a enunciação já constitui, de antemão, sua própria realização. Por

exemplo: “eu prometo”, trata-se de uma expressão que não exprime algo no presente ou no futuro, mas

é, sobretudo, um compromisso, uma ação (PEIRANO, 2002).

1.1 A juventude como categoria socialmente construída

A intenção aqui é abordar a juventude numa perspectiva contrária às generalizações etárias e,

conseqüentemente, identitárias. O termo “juventude” atua como uma forma de assinalar um período de

vida compreendido, algumas vezes entre os 16 e os 24 anos de idade, e outras entre os 19 e 29 anos de

idade – existindo ainda instituições que consideram como jovem os indivíduos que possuem até 35 anos

de idade14 –, dotando os sujeitos inseridos nessa faixa etária de certas características generalizantes,

14 O período da juventude varia de acordo com a análise realizada. Ela tem um período para o Estatuto da Criança e do Adolescente, outro para a Organização Mundial da Saúde, outro para legislações específicas. É a perspectiva do olhar que

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como um modo de vida inclinado à violência, delinqüência, rebeldia e contestação dos valores e normas

sociais vigentes, semelhante ao modo como se ocupou parte dos estudos que se inserem na perspectiva

de uma Sociologia do Desvio, a partir de um referencial teórico inspirado em Howard Becker (1991)15.

Para essa tradição de estudos, o desvio e a delinqüência são percebidos enquanto práticas de subversão,

algo tido como inerente à condição juvenil. Assim, partindo desta perspectiva, entende-se como jovem

todos aqueles indivíduos que não se amoldam por completo às regras da sociedade, que resistem à ação

socializadora e que, por conta disso, se desviam em relação a certo padrão normativo. Como afirma

David Matza (1968), “o delinqüente, por exemplo, não denuncia os dispositivos da propriedade

burguesa, mas ele os viola” (MATZA, 1968, p. 106).

Para além de uma simples “classe de idade”, no sentido de demarcações etárias restritas, a

juventude pode ser definida ainda como uma categoria social. Assim, numa perspectiva oposta àquela

que toma a juventude como um grupo coeso ou uma classe, a sua definição como categoria social

permite compreendê-la como um grupo híbrido, multifacetado. Diante disso, deve-se, portanto,

abandonar a idéia de uma “classe social” coesa, formada, simultaneamente, por todos os sujeitos

pertencentes a uma mesma faixa etária. Nesse sentido, ao ser definida como categoria social, a juventude

se transforma numa “situação social”, produzida tanto pelos grupos sociais como pelos próprios sujeitos

que dela fazem parte (MANNHEIM, 1982)16. Ou seja, ela passa a ser vista como um construto simbólico

que opera de modo a estabelecer um conjunto de significados, comportamentos e atitudes. A juventude

nem sempre apareceu como uma fase singularmente demarcada (ABRAMO, 2004, p. 41), pelo contrário,

os vários atributos das fases da vida, seus conteúdos, sua duração e sua significação social, obedecem a

fatores culturais e históricos.

Assim, conforme foi consolidado no pensamento sociológico, a juventude nasce na sociedade

moderna ocidental (conquistando uma posição de maior destaque no século XX) como um período extra

de tempo necessário à preparação do indivíduo para a complexidade das tarefas de produção de bens

econômicos (LEVI; SCHMITT, 1996). determina de que juventude se está falando. Para melhores detalhes acerca da classificação das faixas etárias conforme as instituições, ver: ABRAMO, Helena & BRANCO, Pedro P. Retratos da Juventude Brasileira: análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania / Perseu Abramo, 2004. 15 Howard Becker ofereceu uma significativa contribuição aos estudos da “Sociologia do Desvio Comportamental”. O autor questionava a abordagem de “desvio” presente nos estudos sociológicos até então, ressaltando que a criação de desvio está relacionada a um ato coletivo, referente à criação social de regras e da nomeação de outsiders aos grupos que infringem as regras a que deveriam ser, supostamente, subordinados. Outra contribuição de Becker foi ressaltar que a definição de comportamento aceitável socialmente e a rotulação do que é “desviante” resulta de um processo de relações de força e poder (BECKER, 1991). 16 Embora o nome de Karl Mannheim seja com freqüência associado a uma “sociologia do conhecimento”, há quem o considere como um dos pioneiros a lançar luzes em busca de uma “sociologia da juventude” (GROPPO, 2000). Tal fato pode ser percebido a partir do conceito de “geração” erigido pelo autor acerca do tema. Para Karl Mannheim, “geração” não está relacionada somente à posição comum ocupada pelos sujeitos nascidos num mesmo tempo cronológico, tampouco pelas enormes possibilidades desses indivíduos presenciarem os mesmos eventos sócio-históricos ou vivenciarem experiências semelhantes, mas, sobretudo, de processarem esses eventos ou experiências de forma semelhante (MANNHEIM, 1982; GROPPO, 2000).

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A noção em torno da existência de uma condição juvenil refere-se, em primeiro lugar, a uma

etapa peculiar do ciclo de vida, de transição da infância para a fase adulta. Em conseqüência disso, a

noção moderna assumida pelo termo juventude conquistou o sentido de um período de transição,

semelhante a noção de “rito de passagem”, cunhada por Arnold van Gennep (1978), que marca a

mudança do status de um sujeito no seio da sociedade. Conforme assinala Erik Erikson (1976), o

significado social adotado pela palavra “juventude” é de uma “real moratória”, compreendida como uma

maneira de adiamento dos deveres e direitos relativos à produção – por meio da inserção do sujeito no

mundo do trabalho –, constituição de família, e participação política em algumas das decisões de uma

sociedade democrática. Dessa forma, cria-se um tempo socialmente legitimado para certa dedicação à

essa socialização necessária ao exercício futuro dessas dimensões da “cidadania”, por exemplo.

Entretanto, pode-se perceber que a vivência dessa juventude estava restrita aos sujeitos

pertencentes às classes médias e altas que podiam desfrutar do privilégio de manter seus filhos em tal

situação de “moratória”, longe das obrigações exigidas pelo mundo do trabalho. Conforme assinala

Helena W. Abramo (1997; 2004), o reconhecimento da limitação dessa experiência retratada por meio de

tal idéia de juventude, orientou toda uma vertente da sociologia acerca do tema à formulação de duas

perspectivas distintas. A primeira delas conduziu o debate ao reconhecimento de uma condição de classe

imbricada no uso do termo “juventude”, considerando-o como uma referência específica a determinada

parcela de jovens, essencialmente, do sexo masculino, pertencentes às camadas médias e altas da

sociedade17. Cria-se, assim, à juventude, determinada alusão a um modelo social ideal: uma juventude

urbana, ocidental, branca e masculina. Com efeito, a segunda perspectiva, como bem expressou Pierre

Bourdieu (1983), buscou admitir que “a juventude é apenas uma palavra”, e, desse modo, é necessário

compreendê-la não como um período natural do desenvolvimento humano, mas como uma noção

socialmente variável, repleta de significados distintos. Diante desse referencial, grande parte da literatura

sociológica produzida com base na temática da juventude se concentrou em análises que privilegiavam o

plano simbólico, considerando-a como uma construção sociocultural. Nesse sentido, dentre os

representantes dessa perspectiva, pode-se mencionar os trabalhos de Margulis (1994; 2000) e Calligaris

(2000).

Outra ótica analítica pode ser ainda enunciada como superação dessa tensão criada a partir do

confronto dessas duas perspectivas, quais sejam, aquela que reconhece a existência de uma condição de

classe relativa ao uso do termo “juventude” e as análises que assinalam o plano simbólico dessa fase da

vida do indivíduo. Assim, conforme assinala Margulis (1994, p. 17),

17 A discussão em torno das desigualdades e injustiças presentes nessas diferenças não se esvazia. Por exemplo, são importantes as implicações de classe nas diferentes formas de vivência da experiência juvenil. A juventude – e, anteriormente, a infância (ARIÈS, 1978) – foi experimentada primeiro pelas classes burguesas e aristocratas, para somente depois tornar-se um direito das classes trabalhadoras.

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a juventude, como toda categoria socialmente construída, que atende a fenômenos existentes, possui uma dimensão simbólica, mas também tem que ser analisada a partir de outras dimensões: aspectos fáticos, materiais, históricos e políticos, nos quais toda produção social se desenvolve (MARGULIS, 1994, p. 17).

Para além do plano simbólico, é preciso ainda levar em consideração as diversas

transformações sócio-históricas pertinentes a esse momento particular do ciclo de vida, que requerem a

ampliação do foco da análise (ABRAMO, 1994; 1997; 2004; GROPPO, 2000). Nesse sentido, Abad

(2003) e Sposito (2003) reivindicam a construção de uma distinção entre a palavra “condição”,

compreendida como o modo através do qual uma sociedade produz e confere significados a esse

momento particular do ciclo de vida, e o termo “situação”, que revela a maneira como tal condição é

vivenciada através dos diversos recortes relativos às diferenças sociais, tais como classe, sexualidade e

etnia entre outros. A “condição juvenil” corresponde ao modo como a sociedade constitui e significa

esse momento do ciclo de vida, enquanto a “situação juvenil” diz respeito aos diversos percursos

experimentados pela condição juvenil (SPOSITO, 2003; ABAD, 2003), o que traduz as suas várias

configurações que podem estar referidas, por exemplo, a questões de classe.

Foram diversas as mudanças ocorridas ao longo de todo o século passado, acarretadas tanto por

transformações econômicas e sociais no mundo do trabalho, como na esfera dos direitos (por exemplo,

cita-se a criação de lei que atua na coibição do trabalho infantil e a ampliação da escolarização), e no

campo da cultura, promovendo uma profunda valorização da imagem e dos chamados “valores juvenis”,

que demandam uma verdadeira atualização teórico-metodológica desse empreendimento arriscado que é

tentar conceituar a juventude (YÚDICE, 1997).

Como resultado das mudanças ocorridas ao longo de todo o século XX, cria-se ainda uma

multiplicidade de instâncias de socialização do jovem: não mais somente a família e a escola

prosseguem em gozar do privilégio de participação direta nesse empreendimento, mas observa-se

também a importância de outras dimensões da vida social nesse processo de socialização. As dimensões

que passam a atuar diretamente na constituição da sociabilidade, das identificações, das diferenças e dos

valores éticos e estéticos produzidos no decurso dessa experiência são o lazer e a cultura. Em virtude

disso, emergem inúmeras modificações no conteúdo daquilo que foi denominado como “moratória”

(ERIKSON, 1976), fazendo com que este estádio não seja mais constituído do sentido de adiamento e

suspensão, mas passe a estar associado ao conjunto de variados processos de inserção em diferentes

dimensões da vida social, como sexualidade, trabalho e participação política entre outros. Assim, a

vivência de uma juventude conquista sentido em si mesma, deixando de ser uma mera preparação

necessária ao sujeito para enfrentar a vida adulta (MARGULIS, 1994; 2000; CALLIGARIS, 2000;

GROPPO, 2000).

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Na sociedade contemporânea, a juventude passa a ser uma categoria privilegiada, para além da

mera designação etária. O processo cultural de construção do comportamento social do jovem produz

uma imagem do “sujeito-jovem” associada não só a modos de resistência política que visam à

transformação da sociedade (LAPASSADE, 1968; IANNI, 1968), mas também à felicidade, à beleza e,

sobretudo, ao consumo (os três adjetivos mais evocados nos discursos midiáticos para referirem-se à

juventude). Assim, no tocante à valorização da imagem e dos valores que caracterizam uma cultura

juvenil, é possível observar a presença de uma crescente positividade atribuída à vivência da juventude

hoje. É sem muitas dificuldades que se percebe como tal momento particular da vida é almejado,

principalmente através das informações veiculadas pelos meios de comunicação. Ao se mencionar a

palavra “juventude”, geralmente, com ela são evocados significados referentes a um universo simbólico

situado no âmbito do lúdico, do prazer e do consumo. As frases de ordem produzidas pela mídia são:

“aproveitar a vida”, “viver com alegria” e “não ter preocupações, responsabilidade ou compromissos”

entre outras. Nesse contexto, as dimensões de aproveitamento da vida emergem com mais força do que

aquelas relacionadas à preparação para o futuro.

Essa valorização da juventude se deu concomitante a uma preocupação que o mundo dos

adultos passou a ter em relação ao dos jovens, percebendo-o como algo à parte, com valores próprios e

pleno de potencialidades. Edgar Morin (1997) chama a atenção para este processo, como parte do

estabelecimento de uma “cultura de massa” própria das sociedades modernas, ligada ao tempo livre e ao

lazer. Uma cultura que atua diretamente na promoção de “valores juvenis” ou, como definiu o próprio

autor, numa tentativa de “juvenilização da sociedade”, em que os heróis imaginários difundidos pela

“cultura de massa” tomam o lugar dos ancestrais e da família na dinâmica de identificações (MORIN,

1997). Articulado a isso está ainda o ideal de auto-realização, supondo o desfrutar de um eterno presente

em que há amor, aventura, beleza, vigor, felicidade e não se envelhece. Nesse sentido, segundo Edgar

Morin (1997), a sociedade moderna acaba criando para si, através da “cultura de massa”, um “novo

modelo de humanidade”:

O novo modelo é o homem em busca de sua auto-realização, através do amor, do bem-estar, da vida privada. É o homem e a mulher que não querem envelhecer, que querem ficar sempre jovens para sempre se amarem e sempre desfrutarem do presente. Igualmente, o tema juventude não concerne apenas aos jovens, mas também àqueles que envelhecem. Estes não se preparam para a senescência, pelo contrário, lutam para permanecerem jovens (MORIN, 1997, p. 152).

Uma mudança vai se operando na sociedade, a infância é encurtada e a juventude prolongada,

aumentando esta fase de “moratória social”, convertendo a juventude num território de experimentações

e mobilizações. A “juvenilização” se liberta da idade, convertendo-se em um imaginário moderno de

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força, saúde, beleza e aventura em busca de amor e paixão, completando um imaginário de felicidade e

plenitude que extrapola os limites das faixas etárias, transformando-se num modelo buscado também

pelos ditos “adultos”. Se até aqui, falar sobre a juventude era sempre dizer o que ela não era,

considerando-a imatura, instável, irresponsável, improdutiva, assinalando uma negatividade na

“condição juvenil”, a partir desse momento, ser jovem adquire um valor positivo, significando a matriz

de um novo ator social e de um “novo” imaginário buscado. Dessa forma, a figura do jovem, em nossa

sociedade, não está relacionada apenas a um recorte objetivo, numérico, possível de ser delimitado por

classificações etárias, mas também implica uma série de atributos subjetivos.

Um dos exemplos desse “novo” imaginário social buscado em torno da juventude é a

utilização do neologismo “adultescente”, criado pela mídia inglesa na última década do século XX. O

termo condensa as palavras “adulto” e “adolescente” como forma de caracterizar aquela pessoa que

conseguiu reunir em si o “melhor” dos dois mundos. “Adultescente” aparece no Glossary for the

Nineties, e é definido como “pessoa imbuída de cultura jovem, com idade suficiente para não o ser.

Geralmente entre os 35 e os 45 anos, os adultecentes não conseguem aceitar o fato de estarem deixando

de ser jovens” (ROWAN apud CALLIGARIS, 2000). Mais recentemente, surgiu o termo “grups”

(CEZIMBRA, 2006), neologismo que condensa a expressão “grown up”, que, em inglês, significa

“crescidos ou adultos”. Esse termo foi cunhado pelos norte-americanos para designar o fenômeno da

unificação das gerações no estilo, no comportamento e no “gosto pela vida” (CEZIMBRA, 2006),

colocando na mesma geração indivíduos dos 20 aos 70 anos de idade. Os “grups” não podem mais ser

tomados como um “sintoma” daquilo que os psicanalistas chamam de “recusa de amadurecer” ou mesmo

“síndrome de Peter Pan”, mas expressam outro modo de viver os ciclos etários.

A criação desses neologismos e sua propagação expressam como, na cultura atual, presencia-se

a idealização de uma “juventude interminável” (CANEVACCI, 2005), de modo que a juventude hoje

ocupa o lugar de ideal cultural, não só pelo fato de levar os sujeitos a quererem permanecer nela como

também pelo fato de ditar tendências culturais, mercadológicas e, principalmente, de lazer. Assim,

imagens e insígnias juvenis são objetos mercadológicos vendidos como algo que é desejado por todos e

sendo elevados à categoria de modelo identificatório para pessoas pertencentes a diferentes faixas

etárias, configurando um estilo que influencia modos de vida e alternativas existenciais.

Assim, é com facilidade que se observa como “a juventude é hoje uma espécie de mercadoria

vendida em clínicas de cirurgia plástica, livros de auto-ajuda e lojas de departamento” (VIANNA, 2003,

p. 8). Isso nos leva a compreender como esse momento particular do ciclo de vida conquista um lugar

privilegiado no cotidiano. Percebida de forma demasiadamente positiva, a juventude, conforme assinala

Ortega Y Gasset (1987, p. 286), “é mais agradável para ser vista e a maturidade para ser ouvida. [...] Pois

bem, hoje se prefere o corpo ao espírito”. Essa busca pela conquista de uma incessante “vida juvenil”

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por pessoas pertencentes às mais variadas faixas etárias dificulta a definição do que significa, afinal, ser

jovem. Com relação a essa dificuldade, Hermano Vianna (2003) afirma:

Essa “promiscuidade” intergeracional cria dificuldades, que em outras épocas eram menos claras mas não inexistentes, para se tentar identificar os jovens a partir de determinado padrão de consumo [...], ou pelo pertencimento a determinados grupos [...], ou pelo investimento em determinados signos [...] (VIANNA, 2003, p. 8).

Assim, percebe-se a maneira pela qual a busca por um modo de vida jovem é, cada vez mais,

requerida por outros segmentos geracionais que não se encontram, de forma institucional, circunscritos à

faixa etária relativa a esse momento particular do ciclo de vida. Todos esses fatores operam na produção

de uma extensão da juventude nos mais variados sentidos, tanto na duração dessa etapa do ciclo de vida

– diferentemente do início da industrialização, que se referia a alguns poucos anos, conquistando depois

intervalos que podiam durar dez ou quinze anos – como na abrangência do fenômeno para vários outros

segmentos sociais.

Nessa direção,

se há tempos atrás todos começavam seus textos a respeito do tema da juventude citando Bourdieu, alertando para o fato de que [a palavra] “juventude” podia esconder uma situação de classe, hoje o alerta inicial é o de que precisamos falar de juventudes, no plural, e não de juventude, no singular, para não esquecer as diferenças e desigualdades que atravessam essa condição. Esta mudança de alerta revela uma transformação importante na própria noção social: a juventude, mesmo que não explicitamente, é reconhecida como condição válida, que faz sentido, para todos os grupos sociais, embora apoiada sobre situações e significações diferentes. Agora a pergunta é menos sobre a possibilidade de viver a juventude, e mais sobre os diferentes modos como tal condição é ou pode ser vivida (ABRAMO, 2004, p. 43-44).

Helena W. Abramo (2004) assinala que falar em juventudes, no plural, nos faz lembrar das

diferenças e desigualdades que atravessam essa etapa do ciclo de vida. A concepção de juventudes alerta

para os cuidados que se deve ter acerca da existência de uma verdadeira pluralidade de experiências.

Cada sociedade pode, desse modo, inventar e conceituar à sua maneira o que é ser jovem, distinguindo-o

não somente com referência à crianças e adultos, mas também em relação a outras juventudes.

Assim, a noção de juventude perde cada vez mais sua “materialidade biológica”

(HERSHMANN, 1997, p. 70) e conquista uma dimensão simbólica. É como se os indivíduos

pertencentes às mais variadas faixas etárias buscassem prolongar a juventude, estendendo-a,

transformando-a numa experiência quase interminável18. Nesse sentido, não se experimenta mais uma

18 Segundo Canevacci (2005, p. 29), “cada jovem, ou melhor, cada ser humano, cada indivíduo pode perceber sua própria condição de jovem como não-terminada e inclusive como não-terminável. [...] O dilatar-se da autopercepção enquanto jovem sem limites de idade definidos e objetivos dissolve as barreiras tradicionais, tanto sociológicas quanto biológicas. Morrem as

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juventude de modo objetivo, demarcada biologicamente, mas de forma transitiva. Transita-se ao longo

de uma condição variável e imprecisa. Atravessa-se essa condição com modalidades marcadas pelas

individualidades momentâneas, plurais, do sujeito-jovem, a partir das contrações e dilatações entre seus

múltiplos e heterogêneos selves.

Nessa perspectiva, pode-se assinalar que o sentido de “moratória juvenil” empregado por

Erikson (1976) em sua análise acerca da juventude, atualmente tem menos o significado de “suspensão”,

“espera” e “preparação” em que os atores juvenis são submetidos para poderem realizar melhor as

atividades futuras circunscritas a um universo, supostamente, “adulto”, e mais a idéia de uma

possibilidade de vivência e experimentação diferenciada de determinados aspectos da vida. Busca-se

uma vivência em todas as esferas do mundo “adulto”, mas de uma maneira singular, e vice-versa; uma

vivência por parte dos adultos em todas as esferas de um mundo juvenil, mas de maneira singular,

abrangendo, assim, os novos registros da sexualidade, das emoções, do estudo, do trabalho, da diversão

e, sobretudo, do lazer. Nesse sentido, vale destacar que, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, toma-

se o lazer a partir de sua definição clássica, como o conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode

participar voluntariamente, seja para relaxar ou para se divertir. Sua participação social é desinteressada,

voluntária, “livre de obrigações profissionais, familiares e sociais” (DUMAZEDIER, 1980). É

importante notar a presença de uma dimensão subjetiva na concepção de lazer de Dumazedier. É o

indivíduo que, em última instância, decide o que ele vive e o que ele não vive como lazer19.

Um dos fatores que assinalam essa significativa mudança na vivência da juventude é a

emergência de uma cultura jovem encantada pelos prazeres do tempo livre e do lazer, que adota novas

práticas de consumo, edifica novos espaços de diversão, inventa novos padrões de comportamento e

empreende novas formas de sociabilidade. Tal fenômeno incita o aumento da disponibilidade e da

procura por diversão, bem como por elementos variados de consumo, provocando uma rápida resposta

por parte da indústria, do comércio e da publicidade, que passam a produzir bens específicos para atingir

esse público jovem que se forma.

faixas etárias, morre o trabalho, morre o corpo natural, desmorona a demografia, multiplicam-se as identidades móveis e nômades. E nasce a antropologia da juventude”. 19 Embora o conceito de lazer seja dotado de uma definição demasiadamente imprecisa, a tendência atual entre os estudos acerca da temática se divide em duas vertentes que tem como base dois aspectos, a saber, tempo e atitude. Assim, ao levar em consideração o fator tempo, o lazer consistiria em qualquer atividade realizada durante o “tempo livre”, ou mesmo tempo disponível, aquele do qual as pessoas são liberadas de seus trabalhos ou de suas obrigações sociais, familiares e religiosas. Já o lazer como fator de atitude pressupõe que a relação sujeito/experiência possa produzir algum tipo de satisfação daquela atividade. Nesse sentido, o lazer não deve ser visto simplesmente como ociosidade, como negação do trabalho, pois ele não revoga o trabalho, mas sim o supõe. Também não deve ser percebido como “tempo livre”, pois no tempo livre estão incluídas as atividades sociais, políticas e religiosas entre outras. O lazer se torna, portanto, “um tempo criativo ou não, no qual um indivíduo escolhe uma atividade através de critério prioritário, o do seu interesse pessoal. É um tempo de liberação e de prazer” (DUMAZEDIER, 1980, p. 109), um verdadeiro estado de satisfação com finalidade em si mesma, sem estar, fundamentalmente, seduzido a alcançar algum fim lucrativo, utilitário ou ideológico. Segundo assinala Lipovetsky (2007), influenciado pelo consumo, o “lazer” contemporâneo orienta suas prioridades para o bem-estar e para a busca da felicidade, e não mais para o trabalho, para o lar ou para a política (LIPOVETSKY, 2007).

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O conceito de juventude opera, portanto, sob rasura. A idéia de uma condição ou experiência

juvenil possibilita perceber o modo pelo qual a juventude pode ser compreendida como sucessões

constantes de atos performativos. De maneira semelhante àquela empreendida por Judith Butler (1999)

ao interpretar a “heterossexualidade” como uma estratégia de reordenação da sexualidade por meio do

discurso, compreende-se a juventude como uma ação através da qual o ator social pode produzir para si

um efeito de “juventude”, não como quem apenas o descreve para o outro, mas, principalmente, como

quem o interpreta para o outro e lembra ao outro e a si sua própria “juventude”. �

Assim, é sem muitas dificuldades que se percebe como cada sociedade, conforme o seu

contexto sócio-histórico, busca erigir definições para si sobre o que é ser jovem, produzindo inúmeras

formas diferentes de experimentar a juventude, transformando-a num “dado biológico socialmente

manipulado e manipulável, para além do processo arbitrário de divisão entre as idades” (BOURDIEU,

1983). Ao se compreender o modo pelo qual a juventude se torna mera construção sociocultural,

assinala-se que “em nenhum lugar, em nenhum momento da história, [essa peculiar fase da vida] pode

ser definida segundo critérios exclusivamente biológicos ou jurídicos. Ela é investida de outros símbolos

e valores” [...] (HERSCHMANN, 2000, p. 54). A juventude é o ator, por excelência, de uma cultura do

consumo: “ela protagoniza os espetáculos urbanos, esteticiza as imagens e difunde a versatilidade e

liberdade dos movimentos como um modo de ser moderno” (DIÓGENES, 1997, p. 115).

Nessa direção, é possível pensar numa cultura juvenil contemporânea que elogia a

multiplicidade; uma cultura juvenil que expressa a renúncia de uma “juventude dominante”, “modelo”

(urbana, ocidental, branca, masculina e heterossexual), em busca da percepção de “outras juventudes”

(rurais, não-ocidentais, negras, mestiças, femininas ou homoafetivas entre tantas outras possíveis). Uma

saída para se pensar esses múltiplos sentidos dados à juventude é a utilização do termo “culturas

juvenis”. O termo alude, assim, a um contexto fragmentário, híbrido e multicultural, assinalando uma

verdadeira dilatação do conceito de jovem, virando pelo avesso as categorias que fixavam faixas etárias

definidas a partir de modelos geracionais. Desse modo, palavras como “transitoriedade”, “turbulência”,

“agitação”, “tensão”, “possibilidade de ruptura”, “instabilidade”, “liminaridade”, “flexibilidade” e

“inquietude”, apenas para citar algumas, podem ser empregadas como uma tentativa de compreensão da

juventude contemporânea.

No Brasil, alguns estudos sociológicos buscaram apreender parte das singularidades de uma

experiência juvenil característica das camadas médias urbanas expressas através de suas práticas de lazer

e, principalmente, de consumo. Exemplos dessa perspectiva de análise social podem ser encontrados

tanto nos trabalhos de Silvia Fiúza (1990) como no de Maria Isabel Mendes de Ameida e Kátia Maria de

Almeida Tracy (2003). Uma relação mais próxima entre as ciências sociais e os chamados “saberes psi”

tem sido ainda buscada por autores como Luis Fernando Dias Duarte (1999), almejando produzir uma

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perspectiva teórica e metodológica que possa auxiliar na compreensão das “dinâmicas de composição

das subjetividades e do sentido” atribuídas a vivência da juventude hoje (ALMEIDA; TRACY, 2003).

De modo semelhante ao de Luis Fernando Dias Duarte (1999), pode-se citar ainda o trabalho de Jane

Russo (1993), no qual o principal objetivo é problematizar as relações que os jovens estabelecem entre

corpo, linguagem e as chamadas “práticas psi” na contemporaneidade.

1.2 Juventude e práticas culturais

Várias foram as formas encontradas pela teoria social para abordar o fenômeno da juventude

buscando percebê-la como um sujeito social específico, com experiências, questões e formulações

particulares. Uma dessas formas está relacionada com a percepção da juventude em contraste com a

ordem social. Flitner (1968) afirma que o interesse acadêmico por essa etapa do ciclo de vida emerge

“quando as formas do movimento e da cultura juvenil surgiram como aparições excêntricas” (FLITNER,

1968, p. 47). A visibilidade da juventude e sua tematização constroem-se a partir da tentativa de

compreensão de comportamentos e práticas consideradas pelos adultos como “anormais”, adotadas por

parte de grupos de jovens classificados como “delinqüentes” e “excêntricos”.

O tema da delinqüência juvenil foi responsável pela produção de numerosos estudos. A partir

das pequisas empreendidas pela Escola de Chicago, boa parte da sociologia norte-americana manteve

sua atenção voltada para os grupos juvenis que desenvolviam em suas ações “comportamentos

desviantes da norma”. Segundo essa tradição de estudos, os “delinqüentes” eram aqueles jovens que,

atraídos pelo mundo da marginalidade e da criminalidade, praticavam diferentes tipos de delitos como

forma de cofrontar valores sociais dominantes. A noção básica que orientava esses estudos era a de que

os jovens desses grupos, geralmente oriundos das camadas populares, vivenciando um processo qualquer

que se caracterizaria como uma situação de “anomia”, não conseguiriam se integrar plenamente à vida

social prescrita pelas regras dominantes, desenvolvendo, em decorrência disso, um comportamento

desviante.

Cohen (1968) publicou, originalmente, em 1956 um trabalho que se tornou famoso justamente

por abordar essa temática, intitulado “Delinquent boys”. Sua tese central era a de que a estruturação

desses comportamentos tidos como desviantes conforma uma espécie de “subcultura juvenil de

delinqüência”, gerada pelo descompasso entre os padrões e valores dominantes da classe média e os

recursos que as crianças das camadas populares dispõem para obtê-los. Assim, o contraste social gerado

entre esses e as expectativas criadas produz uma situação de descontetamento que leva à formação de

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uma “subcultura”, constituída por um sistema próprio de valores e padrões de comportamento, como

forma de demarcar, explicitamente, uma espécie de repúdio a essa situação.

Nessa perspectiva, desenvolveram-se ao longo das décadas pesquisas que privilegiavam uma

abordagem essencialmente etnográfica na tentativa de compreender a formação de agrupamentos juvenis

que confrontavam normas e valores dominantes. Uma dessas pesquisas adotou o conceito de desvio em

sua abordagem e sedimentou o que ficaria conhecido como “teoria do desvio” (deviance theory). Como

o próprio nome já sugere, as manifestações juvenis eram abordadas basicamente como grupos

desviantes. Na década de 1960, o trabalho do sociólogo Howard Becker representou um significativo

avanço para os estudos da desviancy theory. O autor questionava a maneira como determinadas práticas

tidas como delinqüentes e marginais eram trabalhadas nos estudos sociológicos até então, sugerindo a

isso outra perspectiva de análise que compreende o desvio não apenas como uma ação que confronta

valores dominantes, mas, sobretudo, como um ato coletivo, referente à criação social de regras próprias,

propondo ainda a nomeação de “outsiders” aqueles grupos que infringem as regras a que seriam

subordinados.

grupos sociais criam o desvio ao criar as regras cujas infrações constituem desvio comportamental, e ao aplicá-las a um grupo específico e rotulando-os como outsiders. A partir desse ponto de vista, desvio não é uma qualidade do ato cometido por uma pessoa, mas sim a conseqüência de sua aplicação por outros de regras e sanções a um “transgressor”. O desviante é aquele a quem tal rótulo foi aplicado com sucesso. Comportamento desviante é comportamento que as pessoas assim rotulam (BECKER, 1991, p. 9)

Outra importante contribuição de Becker (1991) foi ressaltar que a definição daquilo que pode

ser considerado como comportamento socialmente aceitável e a nomeação do que é “desviante” resulta

de um processo de relações de força e de poder. Segundo Howard Becker (1991), “aqueles grupos cuja

posição social dá-lhes armas e poder são mais capacitados a impor suas regras. Distinções de idade,

sexo, etnicidade e classe estão todas relacionadas a diferenças de poder, que respondem a diferenças no

grau que grupos diferenciados podem criar regras para outros” (BECKER, 1991, p. 17-18). Um exemplo

disso pode ser encontrado a partir das pesquisas empreendidas por Becker realizadas com usuários de

maconha e com músicos de jazz.

A maior parte dos estudos que se lançaram a compreender o fenômeno do desvio e da

delinqüência juvenil defende a ideia de crise existente no processo de socialização desses jovens. No

entanto, o aparecimento de grupos juvenis de um novo tipo, centrados não mais em torno da

marginalidade e da criminalidade, mas no lazer e no tempo livre, apontam para a necessidade de outras

problematizações da juventude no campo das ciências sociais.

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Diversas manifestações culturais juvenis que emergiram na Grã-Bretanha no período posterior

à II Guerra Mundial foram analisadas por um grupo de pesquisadores que tomava como base a idéia de

que tais grupos se estabeleciam não em conseqüência de uma falha no processo de socialização, mas a

partir do consumo de determinados gêneros musicais, de atividades de lazer e de estilos de vestimentas

específicos. Esse conjunto de práticas, na visão dos pesquisadores, constituía expressões culturais

diferenciadas, marcadas essencialmente por questões de classe social. Assim, esses agrupamentos eram

percebidos como manifestações subculturais que expressavam uma resposta às condições sociais dos

jovens da classe trabalhadora britânica. Esse campo de estudos ficou conhecido como “estudos

culturais”, e dentre os grupos estudados, encontram-se mods, skinheads e punks.

Na compilação de ensaios denominada “Resistance through rituals”, publicada em 1975 –

organizada por Hall e Jefferson, então membros do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS),

da Universidade de Birminghan – buscou-se problematizar a noção de uma cultura juvenil referida a

uma cultura de classe operária. Resistance through rituals dedicava-se a compreender as práticas que, na

Inglaterra do pós-guerra, arregimentavam os jovens dos meios populares. A coletânea sobre teds, mods,

rastafáris, skinheads e rockers almejava rechaçar, grosso modo, a idéia de que a crescente afluência do

pós-guerra teria redundado na assimilação dos jovens da classe trabalhadora em uma cultura de consumo

juvenil homogêna, mas, ao contrário disso, operado diretamente na criação de diferentes grupos de

jovens.

A proposta do CCCS era, em síntese, descontruir e destronar essa idéia de homogeneidade e,

em seu lugar, erigir um retrato mais meticuloso das dinâmicas sociais, econômicas e culturais das

variadas culturas juvenis que estavam surgindo na época. Nesse sentido, Hebdige (1996), analisando o

movimento punk britânico em estudo que se tornou referência para o campo dos cultural studies,

apresenta o conceito de subculturas como forma de romper com qualquer perspectiva homogeneizante

em relação às culturas juvenis. Nos trabalhos de Hebdige (1996), a noção de subcultura estaria associada

à idéia de resistência e oposição, através dos símbolos, às ideologias dominantes.

Subculturas são, então, formas expressivas, mas o que elas expressam é, em última instância, uma tensão fundamental entre aqueles no poder e aqueles condenados a posições subordinadas e vidas de segunda classe. Essa tensão é expressa figurativamente na forma de estilo subcultural [...] Durante este livro, eu interpretei subcultura como uma forma de resistência em que contradições e objeções experimentadas a esta ideologia dominante são obliquamente representadas através de estilo. Especificamente eu usei o termo “ruído” para descrever o desafio à ordem simbólica que aqueles estilos parecem constituir (HEBDIGE, 1996, p. 132-133).

A partir de referências de autores como Althusser e Gramsci, expressas através do uso de

noções como “ideologia”, “hegemonia” e “resistência”, Hebdige formulou e consolidou conceitos como

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“subcultura” e “estilo subcultural”, bastante utilizados nos trabalhos desenvolvidos na época e nos anos

subseqüentes. O termo “estilo” é empreendido como forma de abordar a criação consciente de um

conjunto de traços distintivos que busca inverter ou imprimir outros sentidos dados a certos elementos

produzidos pelo mercado ou pela indústria cultural. Através do “estilo”, coforme assinala Hebdige

(1996), “as objeções são apresentadas e as contradições mostradas [...] no nível profundamente

superficial das aparências: isto é, ao nível dos signos” (HEBDIGE, 1996, p. 17). Como uma forma de

violação da ordem simbólica, as subculturas atraem e desejam permanentemente atrair atenção, o que

seria de acordo com Hebdige (1996, p. 19), a base fundamental da significação para elas.

Segundo assinala Cohen, as diferentes subculturas criadas pelos jovens expressam uma

tentativa de conquistar alguns dos elementos que até então eram ocultos na cultura de seus pais,

buscando combiná-los com elementos pertencentes a outras facções de classe. Através de práticas

definidas como “subculturais”, esses jovens se apropriam de forma peculiar de objetos de consumo

produzidos pela indústria cultural atribuindo-lhes novos sentidos e significados, invertendo seus usos.

Como exemplo desse esquema analítico, pode-se citar os mods, que foram interpretados como uma

tentativa de consubstanciar, no plano simbólico, as condições de existência do trabalhados de

“colarinho-branco” socialmente ascendente. Apesar das gírias e das formas rituais adotadas pelos mods

buscarem enfatizar muito dos valores encontrados na cultura de seus pais, o seu estilo e as suas roupas

exageradamente “chiques” (como, por exemplo, o uso de ternos italianos), as suas motonetas e os seus

gêneros musicais favoritos (rock´n roll, jazz e o rynthm and blues) refletiam a imagem do consumidor

afluente da segunda metade do século XX. Por outro lado, os skinheads representavam uma inversão

sistemática dos mods, pois enquanto os primeiros encenavam a mobilidade social, os segundos

dramatizam a vida do lupesinato, refletida através de suas vestimentas (uso de cuturnos, camisetas de

malha e calças dobradas na barra sustentadas por suspensórios). A perseguição de um estilo pelas

subculturas é percebida como um processo que busca construir uma identidade positiva em

contraposição a outros grupos sociais. Nesse sentido, formula-se como um modo de organização política

a partir do qual os jovens tanto podem articular e expressar suas práticas culturais, como também lhes

permite a conquista de espaços efetivos para si, tal como tempo e lugares de diversão.

Para os pesquisadores do CCCS, essas subculturas não eram meros “construtos ideológicos”,

mas meios expressivos por meio dos quais os jovens buscavam negociar espaços e sentidos para suas

práticas. As subculturas buscavam, desse modo, articular sentidos e valores culturais adotados por seus

integrantes na tentativa de conquistar novos espaços efetivos que pudessem também ser destinados às

atividades relacionadas ao campo do lazer e da diversão. São vistos, assim, como uma forma possível de

negociação e resistência frente a uma cultura dominante. Os estudos empreendidos pelos pesquisadores

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do CCCS situavam a relação das subculturas juvenis com a cultura dominante num quadro teórico de

opressão, conflito e luta.

Entretanto, a partir da década de 1990, estes que ficaram conhecidos como “estudos

subculturais britânicos” se tornaram alvos de sucessivas críticas. Para pesquisadores como Sarah

Thornton (1995), por exemplo, as contribuições do CCCS de Birminghan em torno do surgimento de

subculturas juvenis claramente definidas e de sua posterior apropriação pela cultura da mídia e do

consumo se mostram como algo que carece de atualização diante da profusão e volatilidade de estilos,

formas e práticas culturais existentes e adotadas pelas culturas juvenis na contemporaneidade. Para os

críticos, o CCCS superestimou os rituais de resistência juvenil, conferindo-lhes importância política não

demonstrada teórica ou historicamente (FREIRE FILHO, 2007).

Esse campo de estudos, conhecido como “estudos pós-subculturais”, enfatiza o caráter fendido,

contraditório e cambiável das identidades, tendo como base para suas formulações a idéia de uma

crescente “tribalização” do mundo em oposição ao modelo do individualismo. Além de fazer parte do

vocabulário dos que se reconhecem como participantes de algum agrupamento urbano específico, o

termo “tribo” tornou-se ainda, nos últimos anos, corrente tanto em veículos de comunicação, como em

pesquisas acadêmicas que abordam a temática das culturas juvenis. Academicamente, o conceito de

“tribo” ganha destaque a partir do trabalho do sociólogo fracês Michel Maffesoli (2006).

É para dar conta desse conjunto complexo que proponho usar, como metáfora, os termos de “tribo” ou de “tribalismo”. Sem adorná-los, cada vez, de aspas, pretendo insistir no aspecto “coesivo” da partilha sentimental de valores, de lugares ou de ideais que estão, ao mesmo tempo, absolutamente circunscritos (localismo) e que são encontrados, sob diversas modulações, em numerosas experiências sociais (MAFFESOLI, 2006, p. 28)

Maffesoli recorre aos termos “tribo” e “tribalismo” para se referir ao caráter heterogêneo dos

diversos agrupamentos de jovens que se pode observar no mundo contemporâneo. De um modo geral,

essas nomenclaturas buscam assinalar a existência de culturas juvenis caracterizadas por uma lógica de

pertencimento superficial, transitória, dispersa, associada a apenas um fragmento da identidade

individual formada por espécie de “afinidades culturais eletivas compartilhadas”, de forma semelhante

ao que coloca Polhemus (1998), quando afirma: “lá em 1964, você era um Mod ou um Rocker.

Atualmente você está numa onda Techno, Reggae ou Acid Jazz. É a diferença entre nadar e molhar o pé

na água para checar a temperatura – um flerte exploratório versus imersão e comprometimento”

(POLHEMUS, 1998, p. 131).

O uso metafórico dos termos “tribo” ou “tribalismo” decorre de um contraponto erigido por

Maffesoli entre os conceitos de “sociabilidade” e “socialidade” estabelecidos pelo autor para caracterizar

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as experiências vivenciadas pelos sujeitos na contemporaneidade. Segundo o sociólogo, enquanto a

primeira caracterizaria as relações sociais típicas da modernidade, a segunda remete à “multiplicidade de

situações, de experiências, de ações lógicas e não-lógicas” (MAFFESOLI, 2006) que seriam pontuadas

pelo descompromisso, pela emoção, concebidas como sendo essencialmente “pós-modernas”. Em outros

termos, pode-se dizer que enquanto a “sociabilidade” caracteriza-se por relações institucionais, formais;

a “socialidade”, por sua vez, é marcada por um caráter extremamente fugidio, espontâneo, percebida a

partir das práticas cotidianas que abolem qualquer tentativa de controle.

Maffesoli busca enfatizar no conceito de “tribo” ou “tribalismo” o estar junto como

característica essencial da constituição dessa “socialidade”, em que a “partilha do sentimento é o

verdadeiro cimento societal” (MAFFESOLI, 2006, p. 64). Para o autor, os contemporâneos processos

de identificação de caráter “tribal” buscam refazer os laços perdidos do intimismo pessoal que a vida

massificada e individualista fez despedaçar a partir de uma intensa divisão social do trabalho e de

uma excessiva necessidade de especialização de funções no mercado.

Nesse sentido, antes de ser político, econômico ou social, o “tribalismo” é um fenômeno

cultural onde tudo se partilha. O falar jovem, o vertir-se jovem e os cuidados com o corpo dentre outras

coisas, são, amplamente, partilhados. As mudanças sociais suscitadas pelo “tribalismo” é decorrência de

uma espécie de “anomia existência” decorrente de um modo de vida exacerbadamente racional,

instrumental. Em oposição a isso, as “tribos” urbanas surgem como tentativa de recriar no social um tipo

de relação que seja orientada pela empatia: partilha das emoções, dos afetos.

Desse modo, observa-se que o uso dos termos “tribo” ou “tribalismo” aponta para a percepção

de relações sociais que se orientam, principalmente, por um sentimento de partilha de valores, lugares e

ideais entre os sujeitos. Vale lembrar que o termo “tribo” não evoca uma idéia de homogeneidade, mas

de ajuntamento e dispersão efêmeros. Enquanto o foco dos teóricos de Birmingham se concentrava nas

estratégias estéticas (traduzidas por “estilo”), nos rituais de consumo dos jovens das camadas populares,

os “pós-subculturalistas”, como Michel Maffesoli, costumam enfatizar aspectos como o “hedonismo”, o

“niilismo”, o “consumismo” e a “apatia política” dos membros flutuantes das neotribos, num cenário de

múltiplas possibilidades de identificação. Assim, é sob a perspectiva de “neotribalismo” que alguns dos

principais estudos sobre uma manifestação sociocultural juvenil característica das duas últimas décadas,

a chamada “cultura club” e os seus adeptos, são enfocados, como será visto mais adiante ainda neste

capítulo.

Outra contribuição dos ditos “estudos pós-subculturalistas”, é a apropriação da expressão

êmica “cena” para descrever e analisar espaços localizados de produção e consumo cultural –

notadamene, musical – no intuito de sinalizar a existência de esferas da vida cotidiana onde vicejam

múltiplas atividades e inúmeros processos de sociabilidade, construídos e afetados tanto por

Page 50: Festas RAVE em Fortaleza

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circunstâncias locais como por eventos globais. Dentre os pesquisadores preocupados em

operacionalizar o conceito de cena em suas pesquisas, destaca-se o canadense Will Straw, professor do

Departamento de Comunicação e História da Arte da Universidade de McGill. Straw (1991) buscou

examinar em suas pesquisas de que maneira determinadas práticas musicais operam para a produção de

um sentido de agrupamento no âmbito das metrópoles.

A noção de “cena musical” é definida por Straw (1991) como um espaço cultural no qual

diferentes práticas e gostos musicais podem coexistir interagindo entre si e com outras cenas por meio de

“processos de diferenciação, conforme trajetórias variantes de mudança e fertilização mútua” (STRAW,

1991). Cada cena possui uma lógica interna de funcionamento, porém isso não impede que as cenas

existentes numa mesma cidade se afetem e sejam afetadas entre si. Ou seja, nela são toleradas tanto

trajetórias distintas quanto a fertilização mútua. Dela fazem parte tanto afinidades em comum com

gêneros internacionais e com práticas locais como cada cena pode possuir traços estilísticos singulares

que opera diferenças em sua composição.

A noção é dotada de uma natureza versátil e flexível, que permite compreender o modo como

se organizam diferentes grupos de jovens e as variadas formas através das quais esses sujeitos inventam

usos e negociam sentidos para a cidade. Recentemente, pesquisadores canadenses, dentre eles, vale

destacar o trabalho de Sthal (2004), realizaram análises consistentes acerca da relevância do conceito de

“cena” para o estudo das sociabilidades construídas em torno do campo do rock alternativo. Stahl (2004)

emprega o conceito para interpretar uma realidade específica – a cena de rock independente em

Montreal, Canadá – com o objetivo de compreender os tipos de relação existentes entre as cenas

musicais juvenis e o espaço urbano das cidades. Em seu estudo, o autor percebeu que a delimitação dos

contornos das cenas de rock alternativo em Montreal, todavia, não se correlaciona, necessariamente, às

fronteiras de seu referente geográfico, mas afetam e são afetadas por diferentes cenas tanto em nível

local como global – semelhante ao que acontece com a cena aqui estudada.

No caso da cena de música eletrônica existente em Fortaleza, seus contornos se estendem para

além dos limites geográficos do município. Cidades vizinhas como Caucaia, Aquiraz e Iguape também

abrigam as manifestações culturais da cena das raves, recebendo em seu território festas dos mais

variados formatos. A cena também se estende para espaços como a Internet através de sites,

comunidades virtuais, listas de discussão e salas de bate-papo criadas especialmente para promover a

interação entre seus freqüentadores em geral. Jornais de circulação local, como o Povo e Diário do

Nordeste, publicam eventualmente matérias sobre o estilo de vida e as opções estéticas daqueles jovens

que participam das festas de música eletrônica realizadas em Fortaleza e cidades vizinhas, conforme será

abordado no capítulo seguinte. É cada vez mais comum perceber matérias deste tipo ocupando páginas

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51

inteiras de cadernos voltados para o entretinemento, como Buchicho (O Povo) e Zoeira (Diário do

Nordeste).

1.3 Juventude, música e festa

Como complemento aos enunciados expostos até aqui acerca da juventude e a forma como se

buscou compreender parte de suas práticas culturais, cabe ainda tecer considerações acerca da produção

bibliográfica sobre as culturas juvenis urbanas e sua relação com a música na sociedade contemporânea,

tomando como referência o contexto brasileiro. Grande parte desta produção relaciona-se às expressões

culturais de jovens em situação de “exclusão social”, principalmente nos estados do Rio de Janeiro e São

Paulo. Estes estudos tomam o funk e o hip hop como referência para analisar tais expressões culturais.

Explorados por pesquisadores de diversas áreas, tanto o universo do funk como o do hip hop constituem

dois exemplos de experimentação da juventude brasileira na contemporaneidade. Assim como as raves,

estas manifestações juvenis estão associadas à música eletrônica e trazem símbolos e performances

características de um contexto urbano.

As pesquisas realizadas nesse campo constituem uma linha de estudos que destaca as

expressões culturais dos jovens de periferia. Nesse sentido, como exemplo dessa perspectiva analítica,

pode-se mencionar o estudo antropológico empreendido por Hermano Vianna sobre o fenômeno da

música funk no Rio de Janeiro, realizado em 1987, intitulado “O mundo funk carioca” (1989). Neste

estudo, Hermano Vianna constrói uma etnografia que foca não só a história do funk internacional e

carioca, mas também aborda determinadas peculiaridades do “baile”, formas de sociabilidade entre seus

participantes, principais músicas executadas durantes os eventos, ethos e estilo de vida dos jovens que

freqüentam os bailes e, principalmente, sua relação com a indústria cultural. Diante desses aspectos,

Hermano Vianna indaga-se sobre os sentidos do funk, procurando perceber como elementos

característicos do movimento hip hop norte-americano são apropriados e resignificados localmente no

microcosmo do funk carioca.

Em “Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais” (2003), organizado pelo

mesmo autor, Hermano Vianna, pode-se encontrar textos que também interpretam o funk carioca

adotando a perspectiva de reapropriação local de elementos culturais globais. Dentre os artigos que

compõem o livro, vale destacar o de Jane Souto, intitulado “Os outros lados do funk”. Neste artigo, a

autora acrescenta algumas observações àquelas realizadas anteriormente por Hermano Vianna acerca do

funk carioca a partir do estado do fenômeno em 1995 no Rio de Janeiro. Dentre as diferenças assinaladas

por Jane Souto, cabe destacar a de que, gradativamente, o funk teria se expandido para as camadas

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médias cariocas, operando na produção de um “mercado funk” que envolve tanto a profissionalização de

serviços prestados por pessoas que trabalham na preparação dos eventos, como abrange, ainda, a

incorporação de atividades publicitárias que visam divulgar determinados “bailes”, contando com o

serviço especializado de profissionais da comunicação. Essa expansão do funk carioca ocasionou ainda a

transformação de algumas pessoas que atuam como organizadores dos eventos em verdadeiros

“empresários culturais” (SOUTO, 1997, p. 62).

Outro texto que se encontra na mesma coletânea, de autoria de Fátima Ceccheto (2003),

intitulado “As galeras funk carioca: entre o lúdico e o violento”, aborda-se as várias modalidades de

“baile” funk, assinalando a existência de padrões hierárquicos entre os organizadores e o público, bem

como uma lógica dos conflitos violentos, considerados pela autora como intrínsecos a esta expressão

cultural, ignorados pela mídia e pelos próprios organizadores dos eventos (2003, p. 96). O funk parece,

desse modo, configurar-se como uma forma de lazer que tem nos “bailes” seu principal espaço de trocas.

O “baile” atuaria como o epicentro, o espaço central em que se manifestam os vários mecanismos de

inclusão e exclusão dos indivíduos, onde se estabelecem os laços sociais e, principalmente, as disputas.

No principal espaço de socialização deste grupo cultural, ressalta entre outras coisas, o cuidado com a

roupa, o cabelo e, especialmente, com o tênis, percebido como principal símbolo de status, elemento

operador de distinções entre os jovens que participam do “baile”.

Ainda, no que se refere à temática da relação que se estabelece entre juventude e música na

contemporaneidade, pode-se mencionar os estudos elaborados por Micael Herschmann, no campo da

comunicação social. O autor publicou “O funk e o hip hop invadem a cena” (2000), e organizou uma

coletânea de artigos intitulada “Abalando os anos 90: funk e hip hop: globalização, violência e conflito

cultural” (1997). A hipótese trabalhada por Micael Herschmann em seu texto e nos vários outros artigos

que compõem a sua coletânea é a de que as diversas formas de conflito presentes nas expressões

culturais juvenis, manifestas principalmente por meio do funk e do hip hop, assinalam a falência de um

modelo, construído a partir de diferentes recursos simbólicos reproduzidos nas artes pláticas, na

literatura e na música, por meio do qual se fazia possível encobrir as tensões vivenciadas pelos

indivíduos na vida cotidiana. Assim, a intensa promoção do funk e do hip hop na mídia significa a

percepção, por parte da indústria cultural, de um Brasil fragmentário e plural (HERSCHMANN, 2000).

O ensaio de George Yúdice (1997) acerca do universo do funk carioca, intitulado “A

funkificação do Rio”, assinala, a partir de eventos como o “arrastão” ocorrido na cidade em 1992, o

início de um processo de estigmatização do funkeiro, que se tornou uma figura comum no cotidiano do

Rio de Janeiro. O autor defende a idéia de que o funk, assim como outras manifestações culturais juvenis

recentes, constitui indícios da emergência de uma nova forma de consumo cultural. A partir da crescente

popularização dos bailes no Rio de Janeiro, os referenciais estéticos produzidos pelo funk passaram a ser

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53

consumidos indistintamente por jovens pertencentes tanto às camadas populares, como por aqueles

oriundos das camadas médias, diminuindo, assim, as fronteiras sociais existentes entre a Zona Norte e a

Zona Sul da cidade. Conforme George Yúdice (1997), a cultura do funk permite que além de ouvido,

esse tipo de música possa se inserir em inúmeros ciclos de debates na televisão e na imprensa de um

modo geral, mergulhando de cabeça no mercado patrocinado pela indústria fonográfica, criando novas

modas, gerando novas estrelas da música.

Nesse sentido, observa-se que, do ponto de vista heurístico, as diversas expressões culturais

associadas aos jovens apontam em direção à percepção de um duplo movimento que tem caracterizado o

espaço urbano. Tanto se pode notar a existência de uma pluralidade de modos de vida, por meio da

emergência de diversos grupos sociais articulados à variadas formas de consumo, como também se pode

perceber a presença de elementos que caracterizam modos de reapropiação local de expressões e práticas

culturais globais, como, por exemplo, o caso do funk analisado pelos autores supracitados. Dessa forma,

“a principal relevância das expressões culturais juvenis parece ser a de se oferecerem como ‘espelhos de

seu tempo’” (HERSCHMANN, 2000, p. 15). Bastante próximo de expressões culturais como o funk, as

raves também oferecem um privilegiado observatório da dinâmica social contemporânea.

Glória Diógenes, em seu livro intitulado “Itinerários de corpos juvenis: o tatame, o jogo e o

baile” (2003), analisa os sinuosos deslocamentos empreendidos pelas culturas juvenis de Fortaleza, que

adotam o funk e o jiu-jitsu como expressões culturais. A autora parte da idéia de que os jovens carregam

os territórios através de seus corpos, compondo um mapa ambulante da cidade. Assim, é através do

corpo que se produz uma linguagem repleta de símbolos e registros das culturas jovens contemporâneas.

Sua análise permite perceber as maneiras pelas quais os sujeitos atuam na produção de uma cidade feita

de territórios e signos que expressam modos de vida jovem.

Como exemplo dessa perspectiva de percepção da “juventude” como “espelho de seu tempo”,

posso citar ainda o trabalho elaborado por Maria Isabel M. de Ameida e Kátia Maria de Almeida Tracy

(2003), acerca das novas formas de ocupação, modalidades de sociabilidade e práticas de consumo

adotadas pelos jovens que se movimentam pela noite carioca. As autoras buscam discutir os

deslocamentos juvenis pela cidade durantes as noites dos finais de semana como uma das principais

paisagens sociais e subjetivas contemporâneas. Assim, para cumprir este objetivo, analisam “as práticas

espaciais e os fluxos subjetivos que atravessam o cenário atual das metrópoles, especialmente no que diz

respeito às culturas jovens urbanas.” (ALMEIDA; TRACY, 2003, p. 17). O discurso e as práticas sociais

dos jovens constituem o material empírico que serve de base ao estudo.

No que toca aos trabalhos que abordam diretamente o fenômeno das raves, alguns deles tomam

como perspectiva uma releitura peculiar da obra de Pierre Bourdieu. Em sua pesquisa sobre a cultura

club da Inglaterra, Sarah Thornton (1995) busca assinalar as sutilezas das interações, dos conflitos

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internos, das escolhas estilísticas e musicais dos jovens que compõem uma cultura club inglesa a partir

de uma sociologia do gosto elaborada por Pierre Bourdieu20. A autora se dedicou a mapear relações e

hierarquias de gostos vigentes no interior da cena rave londrina; tais classificações criavam princípios de

distinção que permitiam com que certos participantes se auto-referenciassem como underground,

autênticos “nativos” da cena, em contraposição a outros classificados como mainstream, falsos

“nativos”, “ilegítimos” apreciadores de uma cultura club “verdadeira”. Embora existam inúmeros

critérios de classificação entre os jovens que compõem a cena rave londrina, Thornton conlui em sua

pequisa que a cultura club representa uma fantasia de liberação, uma fuga da identidade.

A pesquisa de Thornton enfatiza a questão da partilha comum de afinidades, interesses,

expectativas e valores, bem como de territorialidades, sem deixar de explorar, porém, questões relativas

tanto à elaboração de hierarquias culturais particulares como das negociações que se desenvolvem entre

seus participantes e os meios de comunicação. Segundo a autora, cultura club é a expressão coloquial

dada às culturas juvenis para quem os dance club e as raves são o eixo simbólico e centro social de suas

atividades.

As culturas club são culturas de gosto. Os grupos club geralmente estão congregados na base de seu gosto musical comum, no consumo de uma mídia comum e, mais importante, suas preferências por pessoas com gostos semelhantes aos deles. Participar da cultura club é construir, por sua vez, afinidades maiores, sociabilizar os participantes a partir de um conhecimento dos (e freqüentemente uma crença em) gostos e de suas aversões, significados e valores da cultura. Clubes e raves, então, alojam comunidades ad hoc com fronteiras fluidas que podem se juntar e se dissolver em um único verão ou resistir por alguns anos. Crucialmente, as culturas club cingem suas próprias hierarquias do que é autêntico e legítimo na cultura popular (THORNTON, 1995, p. 3).

Para a autora, a cultura club é uma manifestação sociocultural que, mesmo tendo suas origens

referidas aos idos dos anos 1980 na Grã-Bretanha, num contexto tido como underground, rapidamente se

espalhou, disseminando-se em diversos países como Estados Unidos, França, Alemanha e Brasil,

adquirindo um caráter global. Consiste em uma série de práticas que remetem a preferência pelos vários

gêneros musicais da música eletrônica, elegendo estilos como techno, house, drum’n’bass, trance e uma

série de subgêneros desses estilos. Seu consumo se dá, principalmente, em espaços sociais festivos como

clubes noturnos e raves, englobando variados códigos identitários e estéticos, expressos em atitudes e

20 Com base em dados levantados por meio de pesquisas sobre padrões de consumo na França dos anos 1960 e 1970, Bourdieu (FREIRE FILHO, 2007) apresentou um novo modelo explanatório para o vinculo entre o universo das condições econômicas e culturais dos estilos de vida, enfatizando o papel do consumo para garantir a “reprodução social”. Para o sociólogo francês, as preferências e práticas rotineiras dos indivíduos seriam orientadas pela história e estrutura objetiva do seu mundo social, ou seja, estas escolhas e hábitos contribuìriam, de um modo involuntário, para a manutenção da estrutura hierárquica existente. Para Bourdieu (2006), o território do gosto pode ser definido, assim, como um espaço no qual a “reprodução social” e a legitimação do poder são exercidos de maneira sutil.

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visões de mundo que ganham corpo com tipos específicos de roupas, ritmos musicais e ambientes

particulares.

Sarah Thornton ressalta ainda que uma das características dessa cultura (e de outras culturas

articuladas em cenas musicais, como o rock, por exemplo) é de se auto-referenciar como uma “cultura

underground” ou, como sugere Bennett e Kahn-Harris (1999), uma cultura dotada de um tipo de

sensibilidade que a definiria: uma “sensibilidade underground” (BENNETT; KAHN-HARRIS, 1999, p.

85). Esta sensibilidade está relacionada ao desenvolvimento de uma série de discursos que pontuam as

práticas identificadas e compartilhadas entre os participantes, que são elaboradas desde a definição do

repertório de um DJ, passando pelos gostos musicais dos adeptos desta cultura. Tudo isso atua também

na delimitação de espaços e eventos específicos que podem ser caracterizados no interior da cena como

undergrounds ou não.

O termo underground atua, dessa forma, como um conjunto de práticas discursivas que

incorrem nas formas com que os adeptos de uma cultura club se posicionam tanto entre si, como perante

outros grupos, marcando seu terreno na cultura contemporânea. Como sugere Thornton (1995):

O termo “underground” é a expressão pelos quais clubbers se referem a coisas subculturais. Mais do que “na moda” ou “moderno”, sons e estilos underground são “autênticos”, e são situados em oposição a produção e ao consumo em massa. Undergrounds denotam mundos exclusivos cujo ponto principal não é o elitismo, mas aqueles parâmetros geralmente relacionados a grupos particulares [...]. Undergrounds são construções nebulosas; seus públicos afastam-se de uma categorização social definitiva. [...] Undergrounds se definem mais claramente pelo que eles não são – isto é, “mainstream” (THORNTON, 1995, p. 177-178).

A definição entre os participantes de uma cultura underground, em diferenciação ao que eles

próprios classificam como mainstream, está associada à necessidade que estes sentem de legitimarem

suas práticas, buscando conferir-lhes um caráter de “autenticidade”. Relaciona-se, portanto, intimamente

à construção de uma identidade do universo cultural com que se identificam. O reconhecimento como

underground, assim, deve ser entendido como uma estratégia recorrente de afirmação e legitimação das

práticas culturais dos clubbers e ravers, conforme assinala Sarah Thornton. Entretanto, como a própria

autora sugere, diferentemente do que pensava Hebdige ao assinalar que uma subulcutura é expressa em

oposição a uma cultura dominante, tanto o underground como o mainstream devem ser pensados a partir

das relações de interdependecia estabelecidas entre eles, dentro de uma mesma manifestação cultural.

Nesse sentido, Thornton (1995) afirma:

O mainstream de Hebdige é abstrato e ahistórico [...] Cada referência ao mainstream em Subculture aponta em uma direção diferente, mas se alguém reuní-las, o conjunto resultante seria alguma versão de ‘burguesia’ cuja função na história de Hebdige seria, claro, ser abalada [...] A oposição múltipla de Hebdige entre avant-garde e burguês,

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subordinado e dominante, subcultura e mainstream é um ideal ordenado que desmorona quando aplicados a grupos historicamente específicos da juventude. Fantasias inconsistentes de mainstream são excessivas nos estudos subculturais. Elas são provavelmente o motivo mais importante pelo qual os estudos subculturais subsequentes encontram “bolsos” de resistência simbólica onde quer que eles olhem (THORNTON, 1995, p. 93)

Assumir essa crítica não significa negligenciar a percepção de que muitos desses jovens vão se

identificar, se ver e se situar em oposição a práticas culturais que eles associariam a uma idéia de

mainstream, assim como de acreditarem participar de uma cultura que se contrapõe a outras expressões

que classificariam como cultura de consumo. Contudo, ao contrário disso, busca-se aqui ressaltar uma

questão essencial: esses jovens estão em diálogo constante com os bens culturais, ora associando alguns

deles como underground, ora como mainstream. Mais do que uma relação estável de oposição

determinista, apresenta-se como mais apropriado compeender essas manifestações socioculturais juvenis

e urbanas como espaços de negociação dos jovens entre si e com outros grupos de jovens, semelhante ao

que se buscou empreender no quarto capítulo desta dissertação.

Assim, numa perspectiva semelhante àquela adotada por Sarah Thornton, Simon Reynolds

(1999) define a cultura rave como “a mais exemplar experiência pós-moderna (cultura sem conteúdo,

sem um referente externo)”, devido à sua falta de projeto político e ao seu “excesso de energia

mobilizado para nenhuma finalidade (exceto encher os bolsos do promotor)”. Em um texto bastante

conhecido, intitulado “Generation Ecstasy: in the world of techno and rave culture”, Simon Reynolds

(1999) afirma que: “[...] quando um grande número de pessoas tomam ecstasy juntas, a droga produz

uma estranha e maravilhosa atmosfera de ‘intimidade coletiva’, um senso eletrônico de conexão entre

completos estranhos” (REYNOLD, 1999, p. 83). Para o autor, a cultura rave nunca esteve relacionada

com a mudança da realidade, mas à sua negação temporária.

a rave é realmente um tipo de corrida de aquecimento ou fase de aclimatação para a realidade virtual; ela está adaptando o nosso sistema nervoso, acelerando o nosso aparato sensório e perceptivo, arregimentando-nos em direção a uma subjetividade pós-humana, que a tecnologia digital requer e engendra (REYNOLDS, 1999, p. 90).

Reynolds (1999) percebe a rave como um modo fluido de resistência. De maneira semelhante,

outros autores, como Mafessoli (2006), Hutton (2006), Malbon (1998) e Martin (1999), elaboraram

interpretações das raves alicerçados numa tentativa de redefinição do papel político do prazer21. Assim,

“pertencer a uma cultura club não tem a ver com apatia, é uma rejeição de um mundo que desapontou os

21 Num artigo publicado no Journal of Popular Culture, Martin (1999) pondera: “se nós aceitarmos que a diversão pode ser política, então participar das raves pode ser uma prática política que desafia nossas próprias noções acerca de nós mesmos. Ela subverte imagens dominantes de subjetividade e disciplina, e declara que a política não tem que ser negativa, nem tem que ser confinada em salas de comitês, e que protestos não têm que ser raivosos. Participar das raves demonstra que uma asserção positiva de valores e práticas, que mudam a maneira com que uma vasta parcela da população conduz as suas vidas, pode ser mais construtivamente do que qualquer participação política no sentido tradicional” (MARTIN, 1999, p. 92).

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clubbers e um movimento no sentido da criação de uma nova visão de mundo – mesmo que apenas por

um final de semana” (HUTTON, 2006, p. 12). “A dança poderia ser vista”, complementa Malbon

(1998), “como uma declaração corporizada pelos clubbers de que eles não serão dragados pelas pressões

do trabalho, pela velocidade e pelo isolamento urbano, pela frieza das relações interpessoais que

encontramos em muitos espaços sociais da cidade” (MALBON, 1998, p. 270).

Estas festas realizadas ao ar livre configuram um espaço liminar, propicio a inversões

hierárquicas que desafiam a ordem social moderna, semelhante ao que ocorre durante o carnaval

brasileiro, analisado por DaMatta (1997). Assim, segundo Ott e Herman (2003), a cooptação do espaço e

a sua libertação temporária da estrutura social são absolutamente centrais para o feitio transgressivo da

cultura rave. Ao transformar um espaço físico num momento festivo, as raves geram a possibilidade de

uma liberação provisória, marcando a suspensão de classificações hierárquicas, privilégios, normas e

proibições de vários tipos (OTT; HERMAN, 2003).

José Machado Pais (2005), em um artigo intitulado “Juventude e cidadania”, aborda os modos

através do quais os jovens reivindicam “novas experiências de vida”. A hipótese que orienta sua

discussão diz respeito ao exercício de uma “cidadania” produzida a partir dos movimentos juvenis de

expressão cultural, levando em consideração os “sentimentos de pertença” e as subjetividades que se

investem nas relações de sociabilidade. O autor toma o conceito de “cidadania” como um direito à

diferença. Segundo José Machado Pais (2005), a noção de “cidadania” é dotada de inúmeras e

contraditórias definições. Por conta disso,

[...] o rumo a seguir é tomar-se o conceito de cidadania como uma idéia virada para o futuro, tendo em conta a realidade do presente. E o que a realidade do presente nos diz é que, se a idéia de cidadania continua associada à defesa de direitos universais, um dos mais relevantes desses direitos é, sem dúvida, o tão reclamado direito à diferença. Diferença que os jovens buscam, sobretudo, enquanto consumidores e produtores culturais (PAIS, 2005, p. 53-54).

Uma das expressões juvenis que José Machado Pais toma como análise desse exercício

contemporâneo da “cidadania” é a “cultura rave”. Para o autor, tudo parece resumir-se a sensações

vivenciadas através, principalmente, da dança e do consumo de ecstasy. A cultura rave, através de seus

símbolos, discursos e práticas, estabelece um corte na cultura da racionalidade, sendo percebida como

um exemplo daquilo que Deleuze e Guattari designaram de “máquina desejante” (apud PAIS, 2005), ou

seja, uma forma de resistência que reivindica outro modo de existência relacionado, principalmente, ao

instante presente. Segundo Pais (2005), “numa festa rave apenas se celebra a celebração, num fervor sem

objectivo” (PAIS, 2005, p. 61). É essa falta de “objetivo” a principal eficácia da festa e aquilo que

permite aos jovens diferenciarem-se de outros segmentos etários da sociedade. Tal “direito à diferença”

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pode ser conquistado a partir das diversas ações praticadas pelos próprios jovens durante a festa.

Portanto, para Machado Pais (2005), é através da música, da dança e do consumo de ecstasy, por

exemplo, que os jovens elaboram para si sua própria “cidadania”.

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2. NOS INTERSTÍCIOS DAS HISTÓRIAS

Elemento caracterizador da contemporaneidade é a extrema incerteza, a imprecisão, a instabilidade [...]

(Massimo Canevacci).

Escrever sobre a história das raves não é uma tarefa fácil. As raves não têm propriamente uma

origem, mas sim prováveis origens. As festas não têm precisamente uma versão, mas várias versões que

simulam explicações e fabricam sentidos para sua “cosmologia”. O que se tem ao se revirar os

“arquivos” dessas festas são “histórias frágeis”, distorcidas e, por vezes, contraditórias que adquiriram

algum registro, paradoxalmente, na virtualidade das páginas da Internet. Uma das principais dificuldades

em se traçar uma história das raves deve-se justamente ao fato de que as primeiras festas eram realizadas

clandestinamente, sendo preciso recorrer à Internet para divulgar datas, horários, locais, principais

atrações musicais e preços dos ingressos. Os acontecimentos que tentam narrar as prováveis origens das

festas vagam soltos por entre os fios das difusas teias da Internet, relacionando-se diretamente com sua

popularização.

Contudo, como lidar com as variadas informações que assinalam possíveis origens das festas

rave no mundo? Essa variedade de versões para o surgimento das raves expressa, dentre outras coisas, a

impossibilidade de fixar, de situar e, principalmente, de datar alguns dos elementos caracterizadores

desse fenômeno, bem como a dificuldade em definir “o que é uma rave”, pois, ao tentar empreender esse

esforço de conceituação da festa, podem ser encontradas inúmeras definições diferentes para caracterizar

uma rave. Em certa medida, pode-se entender como rave aqueles eventos ou festas realizadas a céu

aberto onde se executa a música do tipo eletrônica em seus variados gêneros e subgêneros. O termo

abrange as diversas correntes deste fenômeno que utiliza computadores e sintetizadores como

ferramentas imprescindíveis ao processo de criação musical.

A música eletrônica teve nas festas que lhe estão diretamente associadas, um elemento central

de difusão e conquista de novos públicos (CALADO, 2006). As raves possibilitaram uma ampla

divulgação da música eletrônica. Trata-se de uma música produzida com a finalidade de inspirar a

atividade da dança, executada por DJs e que não necessita de uma produção em estúdio por engenheiros

de som – muitos DJs preferem montar home studios para compor suas músicas –, pensada de forma

heterogênea e fragmentada como track (faixa) e não homogênea e unificada como song (canção),

rompendo com uma perspectiva tradicional da música enquanto expressão cultural de um povo ou nação

(FERREIRA, 2006; GUSHYKEN, 2004). Tal música é explorada em termos de timbres, texturas,

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espacialidades, ritmos e repetições, como componente de um sistema, que deve operar no ambiente das

festas, buscando levar as pessoas a um estado de êxtase por meio da alteração e intensificação de

sensações físico-corpóreas sensibilizadas a partir de seus sons, tais como a batida do coração, os reflexos

musculares, o equilíbrio e a percepção do ambiente dentre outros estímulos sensoriais. As faixas da

música eletrônica podem ser editadas, recriadas e mixadas em outras faixas através de softwares e

equipamentos especiais utilizados para sua produção e execução, tais como mixers e cdjs.

Assim, enquanto a “música popular convencional” pôde se constituir como uma espécie de

extensão das “tradições narrativas da humanidade”, destinadas a “transmitir informação, ensinar e

divertir”, a música eletrônica lança ao indivíduo o desafio de “ouvir música de uma maneira diferente”,

possibilitando-o a “desenvolver novas habilidades auditivas” (FERREIRA, 2006). De um modo

diferenciado daquela “identificação [do ouvinte] com o cantor e da centralização na personalidade do

artista”, tida como umas das características daquilo que seria uma modalidade de “música popular

tradicional”22, a música eletrônica se caracterizaria como uma expressão artística “egoless, cíclica e

contínua projetada para fazer seu corpo mexer” (FERREIRA, 2006). Ela proporciona ao jovem que

cultiva o gosto pela música eletrônica desenvolver uma “audição menos passiva”, dando ao ouvinte a

oportunidade de contribuir ativamente no processo de criação musical. Desse modo, ao “reunir sons do

passado, presente e futuro”, a música eletrônica atravessa “fronteiras culturais e sociais” (FRY apud

FERREIRA, 2006).

Seguindo as trilhas do pensamento de Ferreira (2006), pode-se traçar um quadro para

apresentar algumas das principais características de dois tipos de música denominados pelo autor como

“música popular tradicional” e música eletrônica. A partir do quadro abaixo, pode-se observar alguns

dos elementos que marcam as diferenças entre ambos:

“MÚSICA POPULAR TRADICIONAL”

MÚSICA ELETRÔNICA

Modelo narrativo (mental). Repetição (corporal) Centrada na personalidade do artista (cantor, músicos instrumentistas etc).

Egoless (sem centralização no cantor ou músico).

Público passivo. Público ativo. Culturalmente localizada no tempo e no espaço.

Transcultural. Música que promove verdadeiros agenciamentos culturais.

Para além da simples audição, a música eletrônica é, por definição, uma expressão artística que

tem como principal inspiração durante sua criação, oferecer ao público uma intensa experiência sensorial

por meio da dança, podendo levar os jovens que cultivam o gosto pela música eletrônica e pelas raves a 22 Ferreira (2006) usa o termo “música popular tradicional” para se referir à música eletro-acústica, produzida de uma maneira tradicional, com o auxílio de vários instrumentos elétricos e acústicos.

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“um estado alterado de consciência”. Tal “estado de êxtase” pode ser atingido ainda no contexto das

raves associando os “sons psicodélicos” da música eletrônica ao consumo de substâncias psicoativas,

porém essa relação será abordada mais adiante, no capítulo 3 desta dissertação. A rave é, desse modo,

um espaço próprio onde se opera um modo de diversão específico que dura toda ou grande parte da

noite, podendo inclusive ter a duração de vários dias, contando com a participação de milhares de

pessoas23. Esse tipo de festividade tem um caráter globalizado, com símbolos que transpõem as

fronteiras das culturas nacionais.

Algumas dessas explicações “nativas” em torno do que seria exatamente uma rave, variam

conforme a vertente da música eletrônica adotada como repertório principal da festa. Por exemplo,

quando o estilo de música eletrônica que prevalece é o house, os ambientes escolhidos para sediarem tais

eventos consistem em zonas urbanas consideradas como marginais, muitas vezes abandonas, afastadas

das atividades cotidianas da cidade, tais como fábricas desativadas ou armazéns abandonados. Nesse

sentido, uma definição possível de rave reside numa conotação de festa alternativa, underground.

Porém, quando o estilo de música mais executado na festa é o trance, a festa é ambientada em espaços

que sejam dotados de belezas naturais e, desse modo, o evento acaba adquirindo um sentido “místico”,

“transcendental”. Cabe, ainda, ressaltar que para cada vertente da música eletrônica, como o house ou o

trance, existem vários outros subgêneros. No entanto, essa classificação não é rígida. Existem festas que

são orquestradas pelo techno, subgênero do house, por exemplo, e ambientadas em espaços dotados de

paisagens naturais exuberantes, atravessadas por um discurso de transcendência (marca característica do

trance). Essa ressalva vale, portanto, para todos os gêneros e subgêneros da música eletrônica.

Assim, longe de tentar elaborar uma “História” dominante (com “H” maiúsculo) para o

fenômeno rave, o que se pode perceber, buscando seus vestígios por entre os fios das malhas da Internet,

são histórias fabricadas a partir de depoimentos pessoais, dotadas de um tom veementemente emotivo. É

a partir de registros pessoais que se pode encontrar minuciosos vestígios acerca das primeiras festas, o

que, provavelmente, jamais teve como pretensão um uso científico ou acadêmico. São, portanto,

emotividades registradas em forma de texto ou de imagem lançadas em espécies de diários íntimos,

pessoais, disponíveis publicamente na Internet, que informam e comunicam sobre as experiências das

primeiras raves.

É nos fóruns on-line, salas de bate-papo, listas de discussão, páginas pessoais, blogs e, mais

recentemente, sites de relacionamentos, como o Orkut, que se pode observar a maneira como as raves

proliferaram seus discursos tentando elaborar, através de imagens e informações que circulam livres pelo

23 Essas raves que duram vários dias são definidas pelos jovens como “festival de música eletrônica”. Os ditos “festivais” duram entre 3 e 5 dias consecutivos, e ocorrem em locais que disponibilizam área para camping e infra-estrutura com vários espaços diferentes para os participantes desfrutarem da festa. Eles participam ainda de certo circuito internacional de festas de música eletrônica, obedecendo a calendários específicos para sua realização.

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espaço hipertextual da Internet, “conceitos” para si que tentam defini-la enquanto um tipo diferenciado

de festa. Assim, se o fenômeno das festas rave, hipoteticamente, tem início em meados dos anos 1980,

adquirindo contornos mais nítidos na primeira metade dos anos 1990, ele também já é portador, desde

suas “origens”, de uma dimensão global, para além das desnecessárias tentativas de atribuição de uma

“nacionalidade”, ou de uma “paternidade” possível às festas. As raves são, portanto, um fenômeno que é

contemporâneo à Internet; espalharam-se pelo mundo na mesma década, compartilhando o mesmo

contexto sociocultural. Nesse sentido, podem ser percebidas como uma possível fotografia da sociedade

contemporânea, segundo Bauman (2008), “cada vez mais ‘plugada’, ou, para ser mais preciso, [...] em

rede (termo que está rapidamente substituindo ‘sociedade’, tanto no discurso das ciências sociais quanto

na linguagem popular)” (BAUMAN, 2008, p. 7-9).

Dessa forma, quando se trata de interpretar as elipses, de tentar “juntar” as “emendas

suspeitas”, de buscar ler os “manuscritos” desbotados (GEERTZ, 1989) e empoeirados de uma possível

história da cultura rave, o que se encontra são histórias que são contadas nas entrelinhas da história;

histórias de experiências pessoais, memórias íntimas tornadas públicas na Internet e, portanto, repletas

de subjetividades. Podemos encontrar na rede os registros mais pessoais possíveis, narrativas que

compõem parte das topografias da paisagem sociocultural contemporânea.

Contudo, não se trata de tomar os variados discursos evocados para assinalar uma origem para

as raves como histórias “falsas”, mas, pelo contrário, trata-se de percebê-los como histórias “possíveis”,

inventadas (e reinventadas, constantemente atualizadas) pelos próprios jovens que participam ou já

participaram das festas. Nos interstícios das histórias das raves, o que sobra são fragmentos de um

imaginário que vai selecionar e descartar fatos os mais subjetivos possíveis.

Uma das conseqüências desses discursos pessoais produzidos para assinalar o início das raves

é a composição de algumas daquelas que seriam as principais propriedades da festa, ou seja, a partir

dessas histórias inventadas (e reinventadas) são associados às raves determinados símbolos, visões de

mundo e modalidades de comportamento que devem habitar o espaço da festa. Desse modo, através da

apropriação de narrativas heterogêneas, pode-se perceber uma complexa produção de discursos que

buscam apontar no que “consiste” uma festa rave, onde surgiram, quais suas características, como

operam e quais as suas dinâmicas.

Entre as muitas narrativas disponíveis na Internet acerca das festas, existe uma que é

amplamente aceita, na qual as raves são tomadas, em sua origem, como uma espécie de “fenômeno

associativo”, mas que, com o passar do tempo, ao se popularizarem, “perderam” sua magia e passaram a

incorporar elementos mercadológicos em sua dinâmica. Em pouco tempo as festas transpuseram o

formato de “festa pequena” – particular, sem fins lucrativos, que reunia dezenas de pessoas, geralmente

amigos em comum – denominada pelos jovens como private (ou apenas “pvt”, na linguagem utilizada na

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Internet), passando a se configurar como mega-eventos que chegam a reunir milhares de pessoas,

movimentando importantes cifras de dinheiro. Com relação a isso, posso citar um fato importante

ocorrido no ano de 1996, quando a cena da música eletrônica no Reino Unido, através de uma campanha

publicitária lançada pelo departamento de turismo, foi apontada como uma das principais atrações

turísticas do país (ABREU, 2006).

Conforme relata uma das narrativas amplamente aceitas sobre o surgimento das raves, se até

meados dos anos 1980 as festas eram realizadas esporadicamente, com um tom de marginalidade,

organizadas de forma improvisada, tendo como principal referência espacial as cidades de Ibiza, na

Espanha, Goa, na Índia, Berlim, na Alemanha, Londres e Manchester, na Inglaterra, a partir de 1996, as

festas passaram a se espalhar pelo mundo, acontecendo em países como EUA, Argentina, México,

Tailândia, Israel, Austrália e Brasil dentre outros. A difusão desse modo peculiar de festejar inventado

pelas raves não só acarretou um movimento de popularização das festas, mas também da própria música

eletrônica em diversos centros urbanos globais (MAGNANI, 2000). Nesse sentido, pode-se tomar como

exemplo desse fenômeno de popularização, duas festas conhecidas mundialmente: a Love Parade, em

Berlim, e o Skol Beats, em São Paulo – considerado pela mídia como o primeiro festival de música

eletrônica realizado no Brasil.

A Love Parade, festa de música eletrônica que acontece anualmente em Berlim desde o ano de

1989, pode ser tomada como um dos exemplos desse significativo crescimento das raves pelo mundo:

em 1990 o evento contou com a presença de 2 mil pessoas, em 1991 o número de participantes

aumentou para 6 mil, em 1995 saltou para 250 mil pessoas, em 1996 as autoridades locais

contabilizaram 700 mil pessoas e em 2008, em sua última edição, a festa contou com quase 2 milhões de

pessoas que se amontoaram pelas ruas e praças da capital alemã, dançando freneticamente ao som da

música eletrônica por aproximadamente 12 horas.

De um modo semelhante ao da festa Love Parade, em Berlim, o Skol Beats, evento promovido

por uma afamada marca de cerveja brasileira, realizado anualmente em São Paulo desde o ano 2000, por

conta do seu crescimento, conquistou o apoio das autoridades públicas locais. O evento se caracteriza em

virtude de seu ecletismo musical, abrangendo variados estilos de música eletrônica, tais como: trance,

house, techno, electro e drum´n bass dentre outros, trazendo produtores nacionais e internacionais

consagrados e músicos considerados como “revelações” em cada um desses estilos. Em sua primeira

edição, o Skol Beats contou com a participação de 20 mil pessoas, em 2002 esse número duplicou e em

2005 compareceram ao evento, aproximadamente, 55 mil pessoas. Outra característica desse tipo de

festa é o preço elevado de seu ingresso. Em 2008 o valor cobrado pelo ingresso para participar do Skol

Beats foi de R$ 120,00 (cento e vinte reais) para compra antecipada, e R$ 140,00 (cento e quarenta reais)

para aqueles que decidiram adquiri-lo no dia do evento.

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Conforme as histórias contadas acerca das raves no Brasil, as primeiras festas começaram a ser

organizadas no país em 1995 nas praias de Trancoso e Arraial D´Ajuda, na Bahia, e nos arredores de São

Paulo (ABREU, 2006). A primeira edição da XXXPERIENCE, realizada no ano de 1996, contou com a

participação de, aproximadamente, 650 pessoas, em 2005 o público cresceu assustadoramente para algo

em torno de 10.000 pessoas. Com o passar dos anos, os organizadores da XXXPERIENCE decidiram

realizar edições da festa em outros estados brasileiros: “mais de 100 edições por todo país”, segundo

Rica Amaral, um de seus fundadores. Assim, diante dessas considerações, cabe repetir a pergunta feita

nas páginas iniciais deste trabalho: como esses eventos conseguem atrair um número tão grande de

participantes, qual a sua magia?

2.1 Os entrelugares das raves

Uma versão que se conta acerca das prováveis origens das raves toma como referência os

EUA. Camilo Rocha, ao escrever uma matéria para a edição de número 3, da revista Beatz de 2003,

afirma que a historia da música eletrônica tem início com o surgimento do acid house. O advento desse

gênero musical é tomado pelo jornalista como principal referência para uma tentativa de explicação do

aparecimento da chamada cultura clubber, bem como do fenômeno das festas de música eletrônica. A

cultura clubber se diferencia da cultura rave no que tange aos locais escolhidos para a realização dos

eventos. Na cultura clubber, privilegia-se as boates e casas noturnas; já na cultura rave, a preferência é

por espaços marginais ou open air, repletos de belezas naturais.

Segundo Camilo Rocha (REVISTA BEATZ, n° 3, 2003), a história das raves tem início no ano

de 1983, com o surgimento da house music em Chicago, nos Estados Unidos, denominada pelo autor

como “uma versão robotizada da disco dos anos 70, um som econômico, mas caloroso, um groove

linear, hipnótico e irresistível” (REVISTA BEATZ n° 3, 2003, p. 21). Junto com a explosão da house

music nos Estados Unidos, um dos principais personagens-chave da cultura da música eletrônica, o DJ,

abandona o rádio e migra para as discotecas e clubs, onde um estilo de apresentação diferente irá se

desenvolver. Um contato face a face passa a ser estabelecido com sua audiência, que pode avaliar sua

performance em uma pista de dança que enche ou se esvazia durante sua apresentação. O DJ começa

também a incorporar técnicas durante a sua atividade, como, por exemplo, a da mixagem. Com ela, o DJ

passa a misturar faixas de dois discos diferentes, criando uma seqüência sonora ininterrupta, em que o

sentido de cada música não pode ser avaliado isoladamente, mas em relação ao todo. Com essa nova

relação que o DJ estabelece com a música, menos importa quem produziu as músicas tocadas e mais o

seu encadeamento, o que acaba colocando o DJ numa posição de destaque. Seu status se torna ainda

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maior quando ele passa a ter acesso aos estúdios de gravação, podendo lançar no mercado seu próprio

material.

Logo em seus primeiros anos, o house se converte em um dos gêneros da dance music e já se

divide em vertentes como o deep house, o techno e o acid house, porém não consegue ultrapassar as

fronteiras de Chicago. O house e suas vertentes não conquistam de igual modo o gosto dos

freqüentadores dos clubs na Inglaterra. No entanto, existe ainda uma segunda versão que é profusamente

confessada por freqüentadores, DJs e jornalistas acerca de uma possível origem para a festa. Tal versão é

amplamente aceita no universo das raves e toma como referência a Inglaterra.

Nessa versão, afirma-se que era preciso algo que estivesse além do já envolvente ritmo do

house e suas vertentes para poder alcançar o gosto dos jovens ingleses. Segundo Camilo Rocha, seria

necessário combinar ritmo (house, acid, techno, drum´n bass etc.) e “estilo de vida para dar a liga

perfeita” que resultaria no fenômeno das raves em todo o mundo. Nesse sentido, o autor da matéria

afirma ainda que a tal liga é trançada a alguns quilômetros de distância dos EUA, a saber, Ibiza e

Londres. Camilo relata que a “liga” acontece quando um jovem londrino, chamado Paul Oakenfold, na

época atuava como DJ e promoter de eventos de hip hop, juntamente com Trevor Fung, que também

atuava como DJ nos clubs de Londres, ficaram fascinados com a fórmula que encontraram em Ibiza:

Beleza natural do local + gente linda se jogando + trilha sonora eclética e astral de Alfredo (ex-jornalista argentino, DJ residente do Club Amnésia, que misturava no set house, Simple Minds, U2, Pet Shop Boys, europop e até rock indie de guitar band) + pista de dança a céu aberto + algumas pastilhas de ecstasy (REVISTA BEATZ, n° 3, 2003, p. 21).

A dupla volta para Londres e tenta reproduzir na cidade, especificamente no Club Funhouse, a

mesma atmosfera encontrada em Ibiza, porém sem sucesso, até existir um número de jovens londrinos

que já tivessem experimentado a magia das festas realizadas no território hispânico e passassem a

cultivar o gosto por essa nova estética de festejar:

Com tal numero de convertidos, Oakenfold tinha algo fervente nas mãos. Assim que voltou para a fraca cena londrina, abriu um after hours ilegal (bem entendido que after hours na Inglaterra de 1987 começava às duas da manhã) com intenção de manter acesa a vibe de Ibiza. Era chamado de Project e ficava no centrinho de Streatham, seu bairro. Em poucas semanas, a lotação já deixava centenas pro lado de fora. [...] Dentro desses lugares, algo completamente novo em termos de vida noturna acontecia: uma celebração comunal, com pessoas se perdendo dentro da música, sorrindo, falando com desconhecidos, TODOS dançando e quem ficava parado era logo convocado para a pista. Uma farra solta e isenta de qualquer nóia.

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[...] As roupas tinham mais preocupação com conforto do que com desfile: camisetas largonas, com mangas cortadas, faixas na testa para absorver o suor. Ou então refletiam a experiência, ao mesmo tempo lúdica e lisérgica, que era a essência dessas festas: cores vivas, motivos infantis e “fofos” e um símbolo resgatado dos anos 70 que viria simbolizar todo o movimento acid house: o smiley, a tal carinha amarela sorridente com dois olhos arregalados. Associações com a psicodelia dos anos 60 voltavam a cena [...]. [...] Pastilhas de ecstasy pipocavam aqui e ali. Era uma droga ate então pouco conhecida [...]. Seu principal componente era a metanfetamina MDMA. De uma hora para outra, muitos passaram a tomar. É fácil de entender o por quê. Quem tomava ficava sempre sorrindo, abraçando os outros e depois falava em “sentir a música melhor”, “desencanar das paranóias”, “quebrar as barreiras entre as pessoas” e “uma vontade de dançar e imergir no som”. [...] A mistura de gente era total: boêmios, popstars, descolados, de gays ostensivos a heteros recatados, molecada comum, fãs de rock, até hooligans de torcida organizada e brutamontes da noite – todos os tipos que raramente compartilhavam o mesmo teto antes. E que agora se cumprimentavam, se abraçavam e dançavam junto (REVISTA BEATZ, n° 3, 2003, p. 21).

De forma semelhante ao surgimento da música eletrônica, percebida como algo inovador no

cenário artístico-cultural ocidental, as festas rave proporcionam um verdadeiro rompimento com as

práticas de diversão até então existentes. É por meio destas festas, também, que a música eletrônica

adquire uma crescente popularização. Conforme uma segunda história, as primeiras raves, também

conhecidas como free parties ou acid parties, remontam aos anos 1980 e conviviam com a ilegalidade,

eram dotadas de um aspecto marginal, organizavam-se de forma secreta, espontânea e contavam com um

público bastante restrito.

A versão que é amplamente aceita no universo das raves acerca de suas possíveis origens,

remonta ao período de férias de 1987, em Ibiza, na Espanha. Tal período foi apelidado pelos jovens que

participaram do fenômeno como “verão do amor”, considerado como uma espécie de momento

inaugural de uma combinação eletiva entre jovens, música eletrônica e ecstasy. O termo “verão do amor”

faz referência justamente a essa afinidade eletiva que se instalou entre música eletrônica e ecstasy,

substância apelidada como “pílula do amor” por proporcionar um sentimento de empatia entre seus

freqüentadores.

Esta versão é repetida nos discursos “nativos”, reproduzida por DJs, pelos jovens que

participam das festas e apresentada em reportagens que tratam sobre o tema. Segundo esse discurso, as

festas ofereciam uma experiência de diversão diferente daquela vivenciada nos bares, clubes e discotecas

que existiam na Europa, principalmente na Inglaterra. Passar as férias em Ibiza era a opção preferida dos

jovens londrinos.

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A organização das festas se dava de forma espontânea e bastante improvisada. Os participantes

informavam uns aos outros os locais da festa com o auxílio de telefones móveis para não atrair a atenção

da polícia local (SAUNDERS, 1996). As principais vertentes da música eletrônica que marcaram esse

cenário foram o techno e o house, em especial o hard techno e acid house – subgêneros dessas vertentes.

As festas possuíam pouca sofisticação em sua estrutura e datam do final dos anos 1980, conforme relata

Nicholas Saunders (1996):

Felizmente, festas underground ilegais surgiram ao longo dos anos para satisfazer o desejo bem razoável daqueles que querem se divertir a noite toda, apesar da lei. As pessoas simplesmente instalavam equipamento de som num armazém e davam uma festa. Quem ficasse sabendo, podia aparecer, pagar na entrada e festejar até o dia seguinte na companhia de algumas centenas de outras pessoas. Uma perua ficaria estacionada ao lado de fora vendendo bebida. Ou seja: festas com um estilo meio rústico, porém divertidas.

Então, entre o final de 1987 e o começo de 1988, um novo estilo musical popularizou-se em Ibiza, o ensolarado esconderijo de férias da avant-garde londrina. Era uma música cheia de energia, que as pessoas gostavam de dançar noite adentro sob a influência de uma nova droga de laboratório chamada Ecstasy. O estilo de vida descontraído de Ibiza estimulava a realização de festas que duravam dias e dias. Integrando-se razoavelmente ao ambiente, tomando as drogas certas e evitando o álcool, podia-se virar a noite dançando. Ibiza não padece, é claro, de leis que determinam a necessidade de autorização especial para os estabelecimentos que queiram operar depois das 23h, como é o caso da Grã-Bretanha. Não está, por assim dizer, sob a custódia da Polícia-do-Estilo de Vida (SAUNDERS, 1996, p. 24). (Grifo meu).

No entanto, o período de “festas underground ilegais”, sem o comando da “polícia-do-estilo de

vida”, tinha data para terminar: “fim de férias, fim de festa” (SAUNDERS, 1996, p. 24). Ao final das

férias em Ibiza, todos retornavam para Londres e teriam que esperar o próximo período de férias para

poderem se reunir ao som da música eletrônica em Ibiza e desfrutarem novamente de um temporário

“estilo de vida descontraído”. Era preciso, portanto, recriar em Londres a mesma atmosfera vivenciada

em Ibiza. Assim, embora para esta versão as primeiras raves tenham sido realizadas em Ibiza, são os

londrinos os protagonistas dessa “história” das festas, possibilitando a sua popularização.

[...] alguns dos espíritos mais empreendedores decidiram recriar a atmosfera de Ibiza montando festas em armazéns em Londres. À medida que a cultura londrina absorveu o Ecstasy, a demanda por festas underground cresceu: centenas de pessoas queriam usar a nova e maravilhosa droga e dançar a noite inteira. No caso de não conseguir um Ecstasy, o velho ácido [LSD] quebrava um galho (SAUNDERS, 1996, p. 24).

Em Londres, os jovens que passavam as férias em Ibiza começaram a tornar a práticas das

raves algo comum. Aos poucos, as festas iam conquistando uma dimensão maior, ao invés de reunir

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centenas de pessoas elas passaram a reunir milhares. Foi a partir desse processo de popularização que os

eventos começaram a atrair a atenção da polícia e para poder driblar as restrições que a ilegalidade

buscava impor às raves londrinas várias foram as táticas que passaram a ser utilizadas pelos

organizadores. Logo depois do “verão do amor” em Ibiza, Nicholas Saunders (1996) relata que um

jovem empreendedor inglês decidiu mudar o formato dessas festas.

Entre a multidão de entusiasmados freqüentadores dessas festas estava um homem chamado Tony Colston-Hayter. Tecnocrata criativo e empreendedor com uma atitude descontraída em relação às formalidades legais, ele revolucionou todo o cenário. Pensou grande. Em vez de utilizar armazéns escuros e sinistros na região portuária de Londres para reunir umas poucas centenas de festeiros, por que não organizar festas para milhares de pessoas em lugares maiores? [...] As festas começavam a atrair a atenção da polícia, que fazia batidas e acabava com elas tão logo descobria a sua localização, exceto nos casos em que chegava tarde demais – quando a festa já estava a todo vapor, a polícia se limitava a deter alguns participantes em vez de arriscar-se a detonar uma manifestação de massa (SAUNDERS, 1996, p. 25).

Uma das saídas encontradas para poder evitar que a polícia impedisse a realização da festa, foi,

exatamente, a concentração de milhares de pessoas em um mesmo espaço físico. Quanto mais pessoas

houvesse participando do evento, menor seria a possibilidade das autoridades legais interferirem na sua

realização. Para que as informações pudessem alcançar um maior número de destinatários, era preciso

ainda inventar um eficiente sistema de comunicação que fosse descentralizado e pudesse emitir milhares

de mensagens de maneira rápida e a um custo ínfimo. A solução encontrada por Colston-Hayter foi a

utilização de um sistema denominado TVAR (Telephone Venue Address Releasing).

Colston-Hayter chegou a conclusão de que levar muita gente para as festas antes da chegada da polícia seria impossível interrompê-las. Ele se valeu de um sistema chamado TVAR – Telephone Venue Address Releasing (Informação de Endereço por Telefone). O sistema funcionava de uma maneira relativamente simples. Durante o dia, uma equipe de produção preparava o local, que podia ser um grande armazém ou mesmo um hangar. Em sigilo total, geradores, equipamentos de som, iluminação e laser, barreira de proteção, extintores, banheiros desconfortáveis, barracas de mercadorias, comida e refrigerante e até mesmo uma pequena clínica de primeiros socorros eram instalados. Então, num determinado momento, Colton-Hayter, munido de seu telefone celular, ligava-se a um computador que procedia o registro digital das instruções verbais divulgando um ponto de encontro, normalmente na órbita da rodovia M25, que circunda a cidade. O sistema computadorizado estava ligado a centenas de linhas telefônicas. Os números telefônicos eram impressos nos ingressos e, a certa hora, os convidados para a festa – e a polícia – telefonariam para aquele número. Dentro de alguns minutos,

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milhares de pessoas que haviam chamado de todo Sudeste da Inglaterra estariam dentro de seus carros, a caminho do ponto de encontro. Lá, cúmplices também munidos de telefones celulares informariam Colston-Hayter sobre a situação. Quando o grupo atingia um número significativo – e isso podia chegar a mil carros – ele grava uma nova mensagem comunicando o local da festa. O tamanho da massa tornava a polícia impotente para deter o comboio de festeiros da liberdade seguindo em direção a festa (SAUNDERS, 1996, p. 25-26).

Colston-Hayter, o “tecnocrata criativo e empreendedor”, rapidamente percebeu que realizar

“festas com um estilo meio rústico, porém divertidas” poderia ser algo comercialmente atraente, para

além do simples desejo de dar vazão a um “estilo de vida descontraído”. A partir das cifras que a reunião

de milhares de pessoas poderia gerar, Colston-Hayter passou a explorar a dimensão lucrativa dos

eventos:

Os lucros resultantes de uma festa reunindo 10.000 pessoas podiam chegar a US$ 75.000. Nesse caso, o faturamento total facilmente ultrapassaria a marca de US$ 400.000. E o valor máximo das multas por transgressão às licenças de funcionamento era de US$ 3.000 (SAUNDERS, 1996, p. 26).

A partir daí, as raves começam a adquirir uma maior projeção, conquistando um público cada

vez maior, propagando-se pelo mundo. Aos poucos os organizadores foram percebendo que realizar

festas rave poderia se tornar um empreendimento economicamente rentável, algo bastante lucrativo. E,

desse modo, com a popularização desses eventos, talvez a idéia de criar um Really Safe Heaven

(“Paraíso Realmente Seguro”) tenha se perdido pelo meio do caminho.

O fenômeno das raves, já redimensionado, começou a atrair a atenção das autoridades

britânicas para a formulação de leis que tentassem coibir esse modo peculiar de festejar. Em 1990 já

havia na Grã-Bretanha a Lei dos Entretenimentos, na qual se estabelecia que fossem aplicadas

penalidades para aquelas pessoas que insistissem em promover festas que não cumprissem com os

padrões de segurança mínimos estabelecidos pelo governo, de forma a proibir oficialmente o uso de

locais não autorizados para a realização de festas. Com base nessa lei, o governo britânico conseguiu

aprovar em 1994 aquela que ficou conhecida como Lei da Justiça Criminal, cujo alvo foram,

especificamente, as raves. O texto da lei definia as festas como “uma reunião ao ar livre – o que inclui

lugares parcialmente abertos – de cem ou mais pessoas, na qual há amplificação de som total ou

predominantemente caracterizados pela emissão de batidas repetitivas”. Segundo Nicholas Saunders

(1996), a referida lei teve, pelo menos, dois importantes resultados: o primeiro deles foi assegurar que

somente poderiam abrigar as festas aqueles locais que contassem com uma licença para funcionamento –

a principal justificativa do governo britânico para tal desígnio foi a necessidade de “proteger” os

cidadãos, permitindo apenas a realização daquelas festas que estivessem de acordo com as normas de

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segurança estabelecidas pelo governo britânico; uma segunda conseqüência disso foi a migração dessas

festas para outros países. Autoridades em outros países foram mais tolerantes com os organizadores de

festas raves, fazendo com que as festas se difundissem para várias partes do mundo, chegando até Goa,

na Índia, Berlim, na Alemanha, e San Francisco, nos EUA.

Assim, como conseqüência dessa migração empreendida pelas raves ao redor do mundo, em

busca de um local “seguro” para se realizarem, surge uma terceira história que é a responsável por uma

mudança estética na configuração das festas. É a partir da segunda metade dos anos 1990 que,

gradativamente, a realidade das raves vai se transformando, tornando-se bastante diferente daquela que

caracterizou o seu início. Aparentemente, as festas não contam mais com o adjetivo da ilegalidade, não

estão mais circunscritas a uma cultura underground. A maioria delas também nem conta mais em seu

repertório com as batidas do techno e do house. Elas se atualizam quanto a sua estética e expressão

musical; abandonaram os “armazéns escuros e sinistros”, situados na região portuária de Londres, e

partiram rumo a “paisagens paradisíacas”, acelerarando as batidas do techno e do house, criando o

“repetitivo e hipnótico” trance.

2.2 Do house e suas vertentes ao trance

O trance é uma das várias vertentes da música eletrônica e, atualmente, é ele que prevalece no

repertório dos DJs que embalam as festas rave por todo o mundo. Como a maioria dos gêneros musicais

que compõem a e-music, o trance possui seus subgêneros, dentre eles, pode-se destacar o psychedelic

trance (mais conhecido como psytrance), o full-on night e o full-on morning, o progressive, o minimal e

o hard trance, apenas para citar alguns. Tal estilo musical é definido como um tipo de música eletrônica

melódica, que se caracteriza pela combinação de sons graves a batidas repetitivas e hipnóticas.

Ao serem conjugadas com os movimentos corporais que configuram sua dança, as linhas

sonoras do trance convidam os jovens que participam das festas a vivenciarem um “estado de transe”,

movendo-os rumo a uma espécie de “viagem sensorial”. Assim, o que pode distinguir esse estilo de

outras vertentes da música eletrônica é justamente a combinação de uma batida eletrônica menos

agressiva, melódica, com sons de tambores tribais, músicas de rituais indígenas, sons da natureza (como

cachoeiras e canto de pássaros), ruídos psicodélicos de naves espaciais, objetos de vidro quebrando etc.

Todos esses fatores se harmonizam na intenção de transportar o ouvinte para uma experiência única e

alucinante que extravasa a percepção cotidiana dos sentidos. É justamente no intuito de transportar os

participantes para uma experiência que extrapola os limites do ordinário que as raves – que elegem o

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trance como estilo musical – optam por cenários afastados das atividades cotidianas da cidade para

servirem de palco aos seus eventos.

Conforme assinala Calado (2006), Abreu (2006), Coutinho (2005) e Reynolds (1996) dentre

vários outros pesquisadores que se lançaram à difícil tentativa de compreensão do fenômeno rave, as

origens do trance remontam à região de Goa, na Índia. É a partir do movimento de jovens ocidentais –

principalmente, europeus e norte-americanos desiludidos com a crise dos sonhos contraculturais do

movimento hippie – que, ao migrarem para a região de Goa em busca de novos estilos de vida, se deu

origem ao singular ambiente musical que praticava uma espécie de agenciamento multicultural do

ocidente com o oriente. Este era inscrito num desejo de harmonia com a natureza e com o Outro, fazendo

de uma festa na praia uma forma especial de celebração.

As reuniões festivas em Goa aconteciam entre o período do Natal e o do Revéillon, servindo

como uma espécie de culto para um suposto encontro da “espiritualidade” e da “liberdade” perdida no

modo de vida praticado no Ocidente, finalmente encontrada no Oriente. Em decorrência de sua

popularidade entre os europeus, a praia indiana passou a sediar festas que utilizavam um novo tipo de

música que surgira na Europa: a música eletrônica. A musica eletrônica trazida pelos viajantes

rapidamente sofreu mais um processo de hibridação, integrando-se à música local, misturando

sonoridades produzidas com o auxilio de computadores a sons tribais, originando o goa trance, que mais

tarde deu origem ao psychedelic trance (transe psicodélico). O estilo se consolidou, principalmente, pelo

toque de transcendência que proporcionava. Conforme as histórias narradas a esse respeito, as festas

eram orquestradas por um DJ conhecido como Goa Gil24, considerado o primeiro músico a realizar tais

combinações.

O estilo nasceu nas praias de Goa, na Índia. Os maiores astros vêm de Israel. As festas em geral acontecem muito longe das grandes metrópoles e duram dias a fio, com a música tocando sem parar. A inspiração está em Woodstock. O astral mescla o espírito dos hippies à tecnologia digital. O resultado dessa mistura excêntrica atende pelo nome de psy-trance, ou trance psicodélico, ou ainda, na abreviação que está na boca da galera, psy. O psy é hoje o estilo de música eletrônica mais popular no Brasil25.

[...] os frequentadores das praias de Goa, maioria formada por hippies e rock stars começavam a escutar Techno, enquanto isso na Inglaterra, o que sacudia a galera era o Acid House, em Detroit, a Disco, e por causa dos hippies, ainda restavam algumas influências psicodélicas herdadas das músicas dos anos 70 (a exemplo do Pink Floyd). Foi aí que as pessoas em Goa descobriram os efeitos da Acid Music e começaram a desenvolver e incrementar esse estilo, misturando e sendo muito influenciados pelas

24 O “mestre” Goa Gil, como é amplamente chamado pelos participantes das raves, ainda realiza festas periodicamente em Goa e em outras localidades do planeta. Em 2008 realizou uma turnê pelo Brasil, visitando as cidades de São Paulo, Belo Horizonte e Fortaleza. 25 Texto publicado por Camilo Rocha em http://www.portaltrance.net/page14.php, acesso em 16 de junho de 2009 às 13h.

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mais diferentes expressões da música eletrônica... somadas à psicodelia do Rock setentista. Goa Gil, considerado por muitos o Pai do Trance, [...] procura se valer da experiência da música e da dança trance para iniciar uma reação em cadeia no plano da consciência, utilizando da dança e da música como formas de comunhão com o espírito da Natureza e do Universo. Seu objetivo é redefinir os antigos rituais tribais, re-inserindo-os no século 21. Gil cresceu no meio da cena musical de São Francisco (EUA) durante a década de 60, tendo partido para uma jornada na Índia em 1969. Tendo sido um músico durante toda a sua vida, e também se dedicado intensamente ao Yoga com Gurus no Himalaia, ele tentou unificar ambos (Música & Yoga) em um único Espírito, representativo de nossa época. Essa tentativa resultou nas festas Goa Full Moon e também no seu conceito de "Redefinição dos Antigos Rituais Tribais para o Século 21", utilizando o contexto de uma festa Goa como recurso para amplificar a consciência dos participantes através da dança26.

Assim, segundo o “mito fundacional” do fenômeno das festas rave que elege o trance como

expressão artística e cultural, deu-se então a fusão da música que se produzia na região de Goa com os

ritmos europeus que predominavam na Europa e nos Estados Unidos, tais como o techno, acid house e o

dub dentre outros. Surgiu, assim, o trance psicodélico, conhecido também como goa trance. Aos poucos,

essa vertente da música eletrônica foi sendo introduzida na Europa e sendo denominada, simplesmente,

de psytrance. Ao contrário do que acontece com o house e suas vertentes, os DJs de psytrance nunca

foram afeiçoados ao disco de vinil. Eles optam pelo formato digital, utilizando como suporte para suas

músicas formatos DAT (fitas de áudio digital) e CD, o que possibilita um intenso intercâmbio de

músicas entre os próprios DJs.

Dessa forma, conforme um texto publicado por Camilo Rocha no site portaltrance.net, o

psytrance tem “força e popularidade para durar anos. Afinal, esse gênero emergente inclui qualquer tipo

de música e atinge todas as tribos. Melhor de tudo, a pista de dança é feita de terra e iluminada dia e

noite pelas estrelas”. O texto continua ainda enumerando alguns aspectos que tentam explicar o porquê

de tanto sucesso alcançado por tal gênero da música eletrônica entre os jovens:

Vários motivos explicam tanto sucesso. Primeiro, o psy quebra a sisudez das festas embaladas nos últimos 20 anos pelos gêneros eletrônicos, como drum'n'bass ou techno. Segundo, a atmosfera das raves evoca os efeitos de um transe lisérgico: é alegre e lúdica e não esconde o sabor de revival dos anos 60. Terceiro, a música soa mais acessível que a das raves dos anos 90. Serve de porta de entrada tanto para a moçada como para gente mais madura, tornando a diversão mais democrática. Finalmente, o ambiente eufórico e informal faz parte do espetáculo. As festas não acontecem em galpões fechados ou escuros, mas a céu aberto, em lugares paradisíacos, promovendo o encontro dos participantes com a natureza. Os eventos costumam contar com superprodução. Os organizadores investem em decoração e nas fantasias de artistas de circo, como malabaristas ou engolidores de fogo, para animar a imensa pista ao ar livre. No techno e na house music, o público gosta de se concentrar na música. No psy, predominam o visual espalhafatoso, a exibição dos corpos e a variedade sonora27.

26 Texto extraído de http://psychedelicmusic-poa.blogspot.com/2008/06/histria-do-goa-psy-trance.html, acesso em 16 de janeiro de 2009 às 15h. 27 Texto publicado por Camilo Rocha em http://www.portaltrance.net/page14.php, acesso em 16 de junho de 2009 às 13h.

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Em termos estéticos, o psytrance pode ser definido como “bumbo reto e seco e ritmo

galopante, chegando a 170 batidas por minuto”. No decorrer da execução da música aparecem “trechos

de vozes falando sobre assuntos que vão de visões de alienígenas a experiências alucinógenas” e

“sintetizadores distorcidos, com um som épico e grandioso”. Dando margem à “centenas de versões para

hits de outros estilos musicais, de artistas como Tribalistas, Planet Hemp, Nirvana, Metallica, Iron

Maiden, Benny Benassi, Bezerra da Silva e Underworld28” dentre vários outros.

Contudo, no que toca à produção de subjetividades, qual a principal diferença que se pode

traçar do trance em relação ao house e suas vertentes? O psytrance permite ao indivíduo que o escuta

“alçar vôos” e “viver novas experiências” a partir da interação do corpo com a música. Essas são

algumas das expressões encontradas em flyers para tentar definir o que se sente ao ouvir as batidas do

psytrance. Como exemplo disso, apresento a seguir um flyer encontrado na Internet, disponibilizado na

página pessoal de um dos jovens entrevistados durante a pesquisa:

Psytrance

“Feche os olhos e se deixe levar... é um sentimento mais forte que você, não dá pra evitar,

se faz sentir, mas não se pode tocar, se faz presente e te permite voar, voar por outros tempos, para outro lugar... viva o sentimento de liberdade, para se ouvir e para dançar, sentimento que te leva

a lugares que nem se pode imaginar. Sinta a energia psicodélica vinda de um universo paralelo em você mesmo! Viva o Psytrance, viva a sintonia e a união das energias positivas” (Transcrição do

texto impresso no flyer ao lado).

Para muitos jovens, o psytrance se configura como uma multiplicidade de estilos. Ou seja, o

estilo que se toca e dança no continente europeu, por exemplo, não é o mesmo que surgiu em Goa, nem

tampouco o mesmo que veio para o Brasil, assim como nas demais localidades do planeta. A própria

música eletrônica sofre alterações à medida que vai se espalhando pelas regiões do globo, incorporando

elementos culturais locais e alinhavando-os a uma cultura global mais ampla. Nesse sentido, ela

empreende uma verdadeira dialética entre o global e o local, apropriando-se e resignificando elementos

culturais diversos.

28 Características extraídas de http://www.portaltrance.net/page14.php, acesso em 16 de junho de 2009 às 13h.

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É a partir desse “sincretismo de origens” – entrelaçando aspectos de um movimento de

contracultura ocidental com certos elementos do misticismo oriental, segundo uma das “histórias” – que

se constitui parte da dinâmica cultural do fenômeno trance. Tal sincretismo remonta a produção de um

universo multicultural que evoca variadas alusões a figuras alienígenas, divindades hindus, ameríndias

ou pagãs, filosofias orientais, valores contraculturais, bem como consumo de substâncias psicoativas e

formas variadas de enunciação de discursos e práticas ecológicas que defendem a preservação do meio-

ambiente de modo sustentável.

A história das raves é, portanto, marcada por múltiplos acentos. Nicholas Saunders (1996), por

exemplo, produz seu texto acerca das festas relacionando o surgimento de uma espécie de cultura dance

ao consumo de ecstasy na Europa, abordando o modo de festejar rave como “o padrão inglês de uso de

ecstasy” que rapidamente conquistou uma dimensão global: “transes dançantes envolvendo um grande

número de pessoas e um alto nível de estímulo” (SAUNDERS, 1996, p. 27). Noutro pólo, é com

facilidade que podemos nos deparar com discursos, como o de Camilo Rocha, que prefere enfatizar, em

suas reportagens, o encontro ocorrido entre a música eletrônica e o estilo de vida levado em Ibiza para

assinalar o crescente sucesso das festas pelo mundo. Há, ainda, outros discursos que apontam caminhos

diferentes daqueles apontados por Nicholas Saunders (1996) e Camilo Rocha acerca do surgimento das

raves, que assinalam a busca pelo reencontro, no Oriente, tanto de uma “espiritualidade” como de uma

“felicidade” perdida no Ocidente retratada em falas que evocam a região de Goa como o berço das festas

(COUTINHO, 2005).

Assim, pode-se perceber que a “ordem do discurso” que permeia o universo das raves varia

conforme o enunciador (quem fala), o receptor (para quem se fala), o lugar (de onde se fala) e,

principalmente, o instante (momento em que se fala). Talvez se revisitarmos essa história daqui a algum

tempo, poderemos encontrar elementos que apontem noutras direções, possibilitando a construção de

novos mapas acerca das festas. Dito isso, resta-nos, nesse momento, tentar compreender como estas

festas chegaram até o Brasil.

2.3 As raves no Brasil

Um dos discursos mais aceitos entre os jovens que freqüentam as raves acerca de sua vinda ao

Brasil, remonta ao início dos anos 1990 e se relaciona com a chegada de um italiano chamado Max

Lafranconi que, na época, acabara de comprar uma casa com sua família no litoral sul da Bahia, mais

precisamente entre as cidades de Trancoso e Arraial D´Ajuda. Além de ser conhecida por suas belas

praias, a região abriga um grande número de turistas vindos de fora do Brasil e de pessoas que procuram

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um “estilo alternativo” de vida. Recém chegado de uma temporada em Goa, na Índia, Max Lafranconi

começa a promover em sua casa e em pousadas de amigos pequenas festas de curta duração que já

apresentavam certos elementos estéticos de uma rave, como, por exemplo, a predileção da música

eletrônica (COUTINHO, 2005).

As festas eram conhecidas entre os jovens como private, por conta do pequeno número de

participantes que compareciam à casa de Max Lafranconi. Tais eventos não duravam mais do que uma

noite e reuniam entre trinta e quarenta pessoas, sendo a maioria delas estrangeiras vindas de diferentes

partes do mundo que se encontravam nesta região no período do verão.

Os eventos não possuíam a mesma infra-estrutura que pode ser observada nas raves

atualmente, tais como gerador de energia elétrica, segurança especializada e apresentação de DJs

conhecidos internacionalmente. Além disso, tais festas sequer contavam com algum tipo de divulgação

na mídia. Max Lafranconi, além de anfitrião, também atuava como DJ nos eventos. Segundo descreve

Coutinho (2005), embora Max tivesse morado em Goa, o tipo de música tocada por ele continuava sendo

a música eletrônica do final dos 1980, onde o house e o techno dominavam a cena. Desse modo, foram

produzidas as primeiras festas, sem grandes investimentos, sem divulgação, uma reunião entre amigos

que aconteceria seguidas vezes, na mesma época do ano.

No ano de 1994, um fato transforma radicalmente o rumo das festas na Bahia afetando,

posteriormente, todo o resto do Brasil: a chegada de um grupo de, aproximadamente, cinqüenta pessoas,

entre eles, decoradores, DJs, produtores de festas, técnicos de som, que saem de Goa em busca de um

novo palco no mundo para a realização das festas (COUTINHO, 2005). Nesta época os eventos de

música eletrônica em Goa atingiam uma maturidade em termos de organização, o que fez com que fosse

possível a saída de várias pessoas envolvidas com os eventos em Goa à procura de outros lugares para a

realização das festas. Conforme relata Coutinho (2005), tal grupo estava em busca de um lugar diferente

para plantar “a semente do trance” e escolheram o Brasil justamente pelas belezas naturais de que

ouviram falar. Contudo, antes de chegarem ao país, os viajantes percorreram localidades na América do

Sul, como Bolívia, Chile e Peru, onde puderam realizar alguns eventos de música eletrônica, porém sem

muito sucesso (COUTINHO, 2005).

Na região do sul da Bahia, durante o período do Réveillon de 1994, o grupo encontrou o lugar

ideal para lançar a “semente do trance” no Brasil. Com experiência de ter produzido várias festas

anteriormente na localidade, Max Lafranconi auxilia o grupo nesse empreendimento, promovendo a

primeira festa na região que contava com uma melhor organização. O evento elegeu como repertório

musical o trance, teve duração de vários dias, contou com a presença de diversos DJs que se revezavam

num som ininterrupto (COUTINHO, 2005). O público da festa foi formado, em sua maioria, por

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estrangeiros e poucos brasileiros que já haviam tido a oportunidade de participar de raves em outros

lugares do mundo como Bali, Ibiza ou mesmo Goa.

Segundo a narrativa, o local escolhido para a realização do evento situava-se entre as

localidades de Trancoso e Arraial D´Ajuda. O lugar era conhecido como Rio da Barra e se situava ao sul

da Bahia. A festa aconteceu no período de lua cheia e reuniu cerca de duzentos e cinqüenta pessoas.

Conforme relata Coutinho (2005), “o lugar se situava entre uma lagoa e a beira da praia, em frente a uma

grande falésia. Distante três quilômetros da estrada que liga as duas cidades, num sítio de uma italiana

chamada Luiza, ocorreu, deste modo, a primeira festa aberta ao público” (COUTINHO, 2005, p. 66).

Depois de realizada a festa, o grupo de viajantes passou o verão de 1994 produzindo eventos, revelando

DJs e, principalmente, despertando uma maior atenção do público brasileiro para este tipo de festividade.

Ainda segundo Coutinho (2005),

Depois desta temporada, cresceu rapidamente o número de pessoas interessadas pelas festas, ou por terem ouvido falar ou por conhecerem alguém, que já havia freqüentado. O grupo de estrangeiros que “semeou a semente do trance” e tornou realidade o primeiro festival no Brasil, nunca mais voltou aquele lugar. [...] No início do verão deste mesmo ano, alguns viajantes perguntavam para Max sobre o acontecimento de festas e ele respondia que estava apenas esperando a chegada do grupo para sua realização. Como isso não aconteceu e o número de pessoas interessadas aumentou, aglutinou-se um grande grupo de interessados nas festas em Arraial e Trancoso. Diante desta demanda, Max procurou a ajuda de Michelli, Alba e Kranti para produzirem sozinhos a temporada 1995, viabilizada pela experiência acumulada na produção da rave anterior. Nesta nova temporada, contaram com o apoio do recém chegado DJ português Paulo Lopes. O artista possui um grande respeito e admiração no meio da cultura trance pelo fato de ser cego. Paulo passa a dividir sua moradia entre Brasil e Portugal, morando seis meses em cada lugar, trazendo para o Brasil sua experiência na produção de eventos obtida na Europa (COUTINO, 2005, p. 67).

A partir da temporada de eventos organizados por Max, com o auxílio de outras pessoas

próximas a ele, os anos que se seguiram, 1996, 1997 e 1998, foram caracterizados não somente por conta

do crescimento do número de freqüentadores das festas, mas, principalmente, pela participação efetiva

de brasileiros. Neste período, o número de jovens que participavam das festas na localidade já girava em

torno de quinhentas pessoas; Todos esses fatores contribuíram para a popularização dos eventos no país,

sendo criadas as primeiras produtoras de festas rave29 do Brasil.

No ano de 1999 acontece aquilo que os jovens que participavam dos eventos consideram como

sendo o início do grande boom das raves no Brasil. A festa realizada em Trancoso, na Bahia, durante o

29 Segundo Coutinho (2005), a XXXPERIENCE organizava festas comerciais que reuniam mais de trezentas pessoas no interior de São Paulo e posteriormente pelo resto do Brasil, diferentemente daquelas realizadas em Arraial D´Ajuda, na Bahia. As festas se espalharam rapidamente por Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Curitiba. Este movimento proporcionou um aumento significativo no número de brasileiros interessados neste tipo de festa (COUTINHO, 2005, p. 68).

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período do carnaval, contou com três dias de duração e reuniu mais de setecentas pessoas. “Pela primeira

vez o número de participantes brasileiros é igual ao número de participantes estrangeiros” (COUTINHO,

2005, p. 68).

O ano de 2000 parece ser o ano que assinala a consolidação das raves no país. Antes de 2000,

cds de música eletrônica eram difíceis de serem obtidos, pois além de caros, eram importados e

demoravam a ser entregues. A partir deste ano, no entanto, a produtora de raves intitulada

XXXPERIENCE facilita o acesso a este tipo de música, produzindo aquele que pode ser considerado

como o primeiro cd de trance lançado no Brasil. O cd reunia músicas dos DJs Rica Amaral e Feio. Neste

mesmo ano, várias festas começaram a ser organizadas em outros estados brasileiros.

Como resultado da crescente procura por estes eventos, os anos seguintes são caracterizados

pela distribuição e popularização das raves em todo o Brasil. Estas festas tiveram que se adaptar ao meio

urbano e passaram ter a duração de apenas um dia. Em várias capitais brasileiras, como Florianópolis,

São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Fortaleza, as produtoras locais chegam a realizar festas

praticamente todos os fins de semana. As raves mostraram-se muito importantes no processo de

popularização da música eletrônica. Conforme relata Erika Palomino (1999),

No Brasil, foram as raves que, democraticamente, tiraram a música eletrônica do gueto dos clubes e fizeram crescer seu número de adeptos, além de determinar mudanças de conceitos que se mostravam pra lá de necessárias. Viraram palavras de ordem liberdade, individualidade, respeito ao próximo [...] e à natureza (PALOMINO, 1999, p. 134).

Em Fortaleza não se tem registros documentais formais que possam assinalar as primeiras

festas organizadas na cidade, porém, através de alguns relatos informais de antigos freqüentadores e

visitas feitas a sites e blogs na Internet, foi possível identificar que as primeiras raves realizadas na

cidade datam do final dos anos 1990 e sua realização se alternava em, basicamente, dois locais, a saber,

as barracas da Praia do Futuro, e uma pedreira, localizada na Estrada da Cofeco. No início, as festas

adotavam o techno como estilo musical, porém, pouco tempo depois, aderiram ao trance e suas melodias

psicodélicas. Entretanto, não se sabe com precisão quem trouxe as festas para Fortaleza, mas foi

empreendido um esforço em traçar, a partir das entrevistas, conversas informais e demais pistas

recolhidas por entre as malhas da Internet, trilhas que podem apontar possíveis locais e datas

aproximadas para as primeiras raves na cidade.

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2.4 A cena da música eletrônica em Fortaleza: uma cartografia possível

Em Fortaleza, vários foram os lugares que tentaram seduzir os jovens a freqüentá-los durante

as noites dos finais de semana. O cenário das festas de música eletrônica na cidade não é muito anterior

aos anos 2000. No entanto, caso optasse por elaborar uma espécie de cartografia dos espaços que

colaboraram diretamente com a cena da música eletrônica em Fortaleza ao longo dos anos, começando

pela década de 1980, provavelmente a lista não coubesse nesta dissertação, tampouco eu conseguiria

terminá-la em tempo hábil. A cena se apresenta como um lugar de passagem, combinando gostos

diversos, abrigando grupos mais ou menos assíduos e sujeitos com mais ou menos comprometimento

com os valores e as estéticas professadas em seu interior. Ela também atua como uma dentre muitas

opções de lazer juvenil, acolhendo freqüentadores eventuais e pouco assíduos que a experimentam vez

ou outra.

A cena da música eletrônica em Fortaleza se define menos por tentativas de especificações e

mais por “movimentos transversais entre populações jovens heterogêneas” (ALMEIDA; EUGENIO,

2006). Por esses motivos, não é possível também fixá-la em um recorte geográfico específico, como nos

sugere Magnani (2000), ao propor o uso das categorias “circuito”, “pedaço” e “manchas de lazer” para

compreender os usos e apropriações do espaço urbano pelas culturas juvenis. Isso porque os territórios

produzidos pela cena da música eletrônica em Fortaleza são bastante efêmeros. Estão sempre em

constante reorganização, tanto com a abertura e o fechamento dos estabelecimentos (casas noturnas,

bares, boates, lanchonetes etc.), como com a permanente inclusão de novos espaços em sua cartografia,

sem contar a heterogeneidade com que é formada. O público que participa das festas não freqüenta um

mesmo conjunto de lugares, mas vários conjuntos que se formam, decompõem-se e se misturam a

outros, o que dificulta ainda mais a operacionalização das categorias formuladas por Magnani.

Feitas essas observações iniciais, o que pretendo assinalar aqui é que aqueles lugares

mencionados ao longo do texto não são (e não foram) nunca os únicos, mas apenas uma pequena parte

dessa grande lista. E, embora não tenham sido os únicos, talvez também não tenham sido os primeiros,

porém foram eles que eu encontrei durante o período da pesquisa. Nesse sentido, o objetivo aqui é tentar

elaborar uma compreensão possível que possa assinalar os sinuosos caminhos percorridos pela cena

local da música eletrônica até chegar ao fenômeno das raves.

Todas as vezes em que eu perguntava aos jovens sobre o surgimento das festas rave em

Fortaleza, suas respostas eram bastante imprecisas. A maior parte das informações que eles me

forneciam a respeito disso eram vagas e nunca conclusivas. Talvez isso se justifique por dois motivos. O

primeiro se relaciona à característica descentralizada que marca o fenômeno – não só na capital cearense,

mas em todo o resto do mundo; e, o segundo, pode estar associado à heterogeneidade e volatilidade do

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público que freqüenta (ou freqüentou) tais eventos. As falas que tive acesso durante a pesquisa eram

muito parecidas, elas evocavam sempre a cena techno de Fortaleza e seus supostos precursores, como os

DJs Zozó Amaral, Lobbão, Fil, Arlequim e Mantrix dentre outros para apontar o surgimento da cena.

Eu sei que tinha a galera dos techno. Antigamente era o seguinte, tinha a pedreira e outro canto ai. A galera do techno reivindica para si uma posição de certa autoridade, porque a rave veio do techno e o techno é uma coisa meio roots, meio raiz, aquele som mais martelado: “plac! plac! plac! plac! plac!”, ainda mais o hard techno que é mais martelada ainda. É um som rústico, não é um som evoluído como o trance (Danilo, jovem entrevistado em 13 de abril de 2009). [...] em todo canto não começou com trance não, começou foi com techno. Tipo, foi aos poucos que foi migrando, assim. Começou com as festas de techno, só que do techno mudou pro trance e foi ai que popularizou mais. Antes, quando era o techno, a galera fala que quem tocava nas festas aqui era sempre o Lobbão e o Fill, e a maioria das raves era tudo private, só ia uma galera selecionada. (Raquel, jovem entrevistada em 28 de outubro de 2008).

A partir de relatos como os de Danilo e Raquel percebi que seria necessário me valer de toda a

sorte de informações que eu pudesse encontrar sobre a cena da música eletrônica na cidade a fim de

elaborar uma cartografia possível para apontar estabelecimentos que contribuíram com o fenômeno da

raves em Fortaleza e arredores, indo desde narrativas encontradas na Internet, até matérias publicadas

em jornais, revistas antigas e conversas informais sobre o assunto.

Semelhante ao que aconteceu na Bahia, São Paulo, Belo Horizonte e outros estados brasileiros,

a música eletrônica que chegava a Fortaleza tinha um caráter underground. Porém, num provável início,

seu território, por excelência, era o espaço das danceterias. Na cidade havia uma bastante conhecida,

chamada Periferia, localizada nas redondezas da Praia de Iracema. O lugar possuía as paredes internas

pintadas de preto, uma ampla pista de dança, iluminação especial, arquibancadas feitas de cimento,

serviço de bar, uma música eclética e inúmeros jovens à procura de diversão. Conforme afirma Araújo

Jr. (2007), a Periferia inaugurou a cena da música eletrônica no Ceará no final dos anos 1980 – mais

precisamente em 1987. O lugar muito se assemelhava aos pubs ingleses30 e não era o único na cidade

com essas características:

Ao entrar na Periferia, o visitante ficava imediatamente de frente para a pista de dança. Era preciso descer uma pequena depressão até o nível abaixo do chão, onde todos se encontravam para dançar. Era um verdadeiro “inferninho”, como são chamados os pequenos e escuros lugares onde há muita festa e consumo de cerveja, a exemplo dos pubs ingleses.

30 O termo pub é derivado da expressão public house e constitui um tipo de estabelecimento comercial licenciado para a comercialização e o consumo de bebidas alcoólicas. A maioria dos pubs oferece uma grande variedade de bebidas, porém a cerveja é a mais consumida entre os seus freqüentadores.

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Antes da Periferia, boates tradicionais como a Éden, de azulejos brancos com galhos de árvores pintados, funcionavam mais voltadas para o público abastado. A Periferia, cujo nome já é atestado de ousadia, tinha como estratégia reunir pessoas muito diferentes entre si, não só diversas classes sociais, mas também várias idades, estilos, orientações sexuais. O público era distinto, ia de heterossexuais comportados a drag queens extravagantes. Em processo de formação de identidade, dezenas de jovens faziam da Periferia o ponto de encontro de todo fim de semana (lá funcionava, quase sempre, de sexta a domingo), uma espécie de turma, como a de colégio ou de vizinhança. Eram pessoas consideradas vanguardistas na cidade. [...] A “geração saúde”, com roupas de fazer academia e corpo bem modelado, também era constante na Periferia, assim como os punks, que se reuniam na entrada do lugar criando um certo clima de hostilidade. (ARAÚJO JR., 2007, p.57-58).

O principal diferencial da Periferia em relação a outras danceterias existentes na cidade, como

a Éden, por exemplo, era o seu esforço em levar a música eletrônica até as camadas médias e baixas da

população jovem. A heterogeneidade do público era a sua marca, indo de “heterossexuais comportados

à drag queens extravagantes” (ARAÚJO JR., 2007). O local atuava como um importante ponto de

encontro das culturas juvenis de Fortaleza do final dos anos 1980, e em pouco tempo a Periferia

conquistou a preferência do público jovem da cidade. A novidade do lugar era proporcionar que os

sujeitos-jovens da época pudessem, através do lazer, se agrupar em torno de afinidades diversas,

possibilitando a construção de uma vivência marcada por uma rede de relações que se conectava nos

finais de semana.

Na casa noturna, os equipamentos de som eram operados inicialmente pelo DJ João

Guilherme, contudo foi somente a partir das apresentações do DJ Fran Vianna31 que a Periferia veio a se

consolidar como uma das principais opções de lazer noturno adotada pelos jovens da época. Nesse

período, era bastante difícil para um DJ estar a par das novidades musicais que surgiam mundo afora.

Assim, para estar atualizado, Fran contava sempre com a colaboração dos amigos que viajavam para o

exterior e traziam para ele informações e novos vinis com as músicas que faziam sucesso no cenário da

música eletrônica mundial (ARAÚJO JR., 2007). Nesse período, a imagem do DJ como artista, como

“superstar”, ainda não existia, o que havia era um clima de coleguismo e cumplicidade entre músico e

platéia (SÁ, 2003; ASSEF, 2003).

A danceteria Periferia divulgava suas atrações através de flyers distribuídos pessoalmente,

entregues de mão em mão aos caminhantes do calçadão da Av. Beira Mar, o que atribuía às festas

realizadas no local um tom familiar, informal, onde todos (ou quase todos) os freqüentadores se

conheciam entre si. Os panfletos tinham um caráter artesanal, eram produzidos com certa economia de

elementos gráficos. As principais festas eram aquelas consideradas “temáticas”, como, por exemplo, as

31 Segundo Araújo Jr. (2007), durante suas apresentações o DJ fazia uma verdadeira “miscelânea sonora”, misturando sons do acid house com outros originários do pop, funk e house.

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calouradas organizadas por estudantes universitários ou as festas de halloween que ocorriam no mês de

outubro, na qual ir fantasiado era praticamente um dever. Durante os eventos, segundo conta Araújo Jr.

(2007), o principal psicoativo que embalava os corpos dos jovens pela pista de dança era a cocaína. Dos

grupos juvenis que freqüentavam o local, chamava a atenção do público aquele ironicamente apelidado

de “turma das formigas”: “sempre com roupas parecidas, compradas da mesma grife, eles andavam pela

danceteria sempre enfileirados. Bastava achar um para encontrar os outros” (ARAÚJO JR., 2007, p. 59).

Entretanto, com o passar do tempo, a Periferia começou a não figurar mais como uma das

principais opções de lazer noturno adotada pelos jovens em Fortaleza. Pode-se enumerar aqui vários

motivos para isso, porém um deles se mostra como o mais provável para esse insucesso, qual seja, o

desgaste da fórmula de entretenimento seguida pelas danceterias: “[...] as danceterias, com suas bandas

de pop rock e seus DJs que tocavam de tudo, mostravam sinais de fadiga” (ASSEF, 2003, p. 135). O

público não se agradava mais de ouvir aquele tipo de “miscelânea sonora” produzida por DJs como Fran

Vianna e apreciada em lugares como a Periferia. A partir daí, fez-se necessário aos DJs seguir apenas um

único estilo musical (que inicialmente foi o house underground), mantendo-se fiel a ele, mesmo diante

da estranheza que isso poderia despertar no público. Com isso, saem de cena as danceterias e surgem os

clubes especializados em música eletrônica. Os DJs passaram a se confrontar com um difícil dilema

entre tocar o que não gosta para uma pista de dança lotada ou tocar o que gosta para uma pista de dança

vazia. Como exemplo disso, cabe citar aqui a fala de Zozó Amaral, um conhecido DJ na cena da música

eletrônica de Fortaleza: “[...] vi que meu som não era aceito pelo público cearense e eu tinha que tocar

muita coisa que não gostava para poder encher pista... Era dramático para mim” (ARAÚJO JR., 2007).

O clube paulista Nation foi um dos pioneiros a seguir essa “nova” linha de diversão.

“Personagens extravagantes e carismáticos; um tipo de música diferente e original que surgia para o

mundo com alegria e jovialidade; uma moda colorida e divertida e a luz estrobo mais intensa da cidade

colocaram o Nation na rota da modernidade” (ASSEF, 2003, p. 135). Rapidamente, no mapa urbano do

lazer noturno, os clubes passaram a ocupar o lugar das danceterias e comecaram também a serem

celebrados como um ambiente em que se podia observar outra performance do DJ, bastante diferente

daquela praticada no espaço da danceteria.

Escolher dançar ao som de fulano ou de sicrano? Sim, nascia no Nation o esboço do culto ao DJ. Na seqüência brotariam ali os primeiros traços de culto ao clube, com a impressão de flyers trazendo a programação da casa, além de desenhos e piadas cifradas. Aliás, foi no Nation que a palavra clube começou a ser usada, em substituição ao termo danceteria (ASSEF, 2003: 138).

Com isso, sai-se da dinâmica da danceteria e entra-se na dinâmica do club (clube). Com o

fim da Periferia, em fevereiro de 1991, os jovens buscam um novo espaço de lazer noturno. Situada no

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centro da cidade, a boate On The Rocks não repetiu com o mesmo sucesso o êxito alcançado com a

danceteria anterior. Eram os DJs Zozó Amaral e Ximenes Filho que tentavam sustentar a casa noturna

tocando sons que atravessavam o território do house, do techno e do trance. No entanto, com o fim da

On the Rocks, em 1993, ocorreu uma espécie de divisão do público na cidade que cultivava o gosto pela

música eletrônica. Alguns preferiram se tornar freqüentadores assíduos de clubs como o Joy e o

Rainbown, e outros optaram pelos lugares que estavam “na moda” em Fortaleza, como o Via Paris, no

Meireles, ou ainda por lugares que resistiram a essa nova dinâmica, como o remanescente Éden, na

Aldeota.

A partir daí, vários outros clubs e boates foram surgindo em Fortaleza. Em 1995 surgiu o

Galpão, na Praia de Iracema. O lugar tinha como propósito realizar festas que misturavam a música

techno com o samba. O Galpão recebeu esse nome por ter sido realmente um galpão na época em que

aquela região era a antiga zona portuária da cidade. A música que podia ser ouvida ali era comandada

pelo DJ Luic, um estrangeiro que resolveu adaptar o novo som ao ritmo brasileiro. Na Praia do Futuro

surgiram as barracas La Luna32 e Crocodilo (atualmente conhecida como Cocobeach), onde se

apresentava o DJ Guga de Castro, misturando influências do house, acid jazz, música popular brasileira e

black music entre outros estilos (ARAÚJO JR., 2007).

Outro importante club que funcionou em Fortaleza no mesmo período foi o Domínio

Público. De forma semelhante à danceteria Periferia e ao Galpão, o lugar situava-se na Praia de Iracema,

conseguindo, com muito esforço, manter suas portas abertas até o ano de 2000.

Inicialmente designado para ser um bar de gafieira, o Domínio Público era freqüentado por uma platéia majoritariamente de meia-idade, que dançava a dois entre as mesas dispostas no salão. Passado o tempo, a diversidade temática das festas começou a atrair todas as idades e estilos, então as mesas passaram a ocupar apenas o espaço do mezanino. No palco, casas coloridas pintadas na parede eram cenário para toda festa, e duas sinucas faziam a alegria dos dançantes que preferiam passar a noite na jogatina. Do balcão do bar, a gerente McCartney observava a tudo e a todos, enquanto o segurança Assis garantia a paz do lugar (ARAÚJO JR., 2007, p. 63).

Além das já famosas calouradas organizadas por estudantes universitários em casas noturnas,

outras festas se tornaram referência para os jovens que freqüentavam o espaço do Domínio Público,

como a festa intitulada Baticum, a Refestança e o famoso Halloween do Domínio. O som ouvido ali

expressava bem a heterogeneidade de seu público e, conseqüentemente, da juventude de Fortaleza.

Podia-se dançar ao som do reggae, soul, manguebeat, techno, house e vários outros estilos musicais.

Pelas pickps do Domínio (como os freqüentadores costumavam se referir ao lugar) passaram inúmeros

32 A barraca sofreu várias alterações em seu nome. Ela já foi chamada de La Barca e atualmente recebe o nome de Opção Futuro.

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DJs, como Guga de Castro, Marquinhos e Felipe Araújo, apenas para citar alguns deles (ARAÚJO JR.,

2007). Contudo, no ano 2000 os donos do lugar decidiram fechá-lo em decorrência de um crescente

esvaziamento de seu público. A queda na freqüência ao Domínio Público se deu, principalmente, por

conta de problemas como a violência evidenciada na região da Praia de Iracema. Conforme afirma a

jornalista Ethel de Paula, naquela época, a área “sofria com os mesmos notórios problemas de hoje:

insegurança, poluição sonora e visual, tráfico de drogas, excesso de tráfego, precária infra-estrutura” (O

POVO, 2003). Por isso os donos resolveram encerrar as atividades do lugar: “Desistimos porque nosso

público-alvo deixou de freqüentar, amedrontado”, justifica Marcus Dias, ex-dono do Domínio Público

(O POVO, 2003).

Ao mesmo tempo em que o precário Domínio Público fazia sucesso entre os jovens de

Fortaleza, uma nova modalidade de clubes surgia em São Paulo: os “superclubes”. Esse tipo de espaço

tinha como característica uma surpreendente infra-estrutura. Os principais “superclubes” paulistas

existentes nessa época eram o B.A.S.E. e o Florestta. Surgidos em novembro de 1996, “ambos passam a

atrair, a partir daí, um outro tipo de público às pistas de dança e levam seus eventos para as colunas

sociais dos principais jornais” (PALOMINO, 1999, p. 110). Os novos dançantes eram jovens

empresários e outros sujeitos abastados da sociedade de São Paulo. Fenômeno semelhante ao ocorrido na

capital paulista com o surgimento de “superclubes” como o B.A.S.E. e o Florestta, pode-se assinalar em

Fortaleza o aparecimento do Mucuripe Club. O lugar, anteriormente conhecido como Mucuripe Ilhas,

surgiu no mapa do lazer noturno de Fortaleza como um espaço de lazer voltado para as camadas juvenis

médias e altas da cidade, conquistando “ares de um grande clube social”, chegando também a figurar

entre as colunas sociais dos principais jornais da cidade.

Inaugurado em 1997, o Mucuripe Club tem marcado a história do entretenimento noturno de Fortaleza. Após uma redefinição conceitual e estrutural em 2003, o Complexo ganhou ares de um grande clube social. Sua estrutura com cinco ambientes o destaca como um espaço super moderno que impressiona pela magnitude e pela diversidade de opções: da MPB ao Rock, passando pelo Axé, Samba, Forró, Reggae, Hip-Hop, Blues, Música Eletrônica, entre outros. Foi essa união harmoniosa de ritmos e estilos a principal responsável por consagrar o Complexo como a melhor opção da noite em Fortaleza. Assim, ao propiciar aos seus freqüentadores o entretenimento em sua melhor forma, o Mucuripe trouxe à cidade grandes nomes da música nacional e internacional, além de promover festas que já fazem parte do calendário nacional de eventos. Dispõe ainda de total estrutura de estacionamento, duas portarias com sistema de segurança eletrônica, serviço de bar totalmente informatizado, cartão magnético para consumo e os melhores equipamentos de som e iluminação. Por tudo isso, o Mucuripe

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Club é sucesso, não só em Fortaleza, mas em âmbito nacional, sendo considerado um dos melhores e maiores Complexos de Entretenimento do Brasil33.

Apesar do surgimento dos “superclubes”, outros lugares menores e precários em termos de

infra-estrutura continuaram a despontar na noite de Fortaleza, atraindo a atenção dos jovens da cidade

que cultivavam o gosto pela música eletrônica. Um desses lugares que colaboraram diretamente para o

crescimento da cena na capital cearense foi o Cidadão do Mundo, localizado na Av. da Universidade. No

final dos anos 1990, aconteceram ali as festas Cidadão em Transe, uma das mais importantes iniciativas

para promover a popularização da música eletrônica entre os jovens de Fortaleza. “O lugar era quente,

pequeno, apertado e, durante as chuvas, alagava fácil, provocando até tombos nos DJs” (ARAÚJO JR.,

2007, p. 65). Durante a noite, o lugar contava com um público de até duzentas pessoas que se apertavam

para conferir atrações como a dupla Forma Noise. No Cidadão do Mundo, os eventos aconteciam às

sextas e sábados e foram responsáveis por aclimatar encontros entre DJs e jovens interessados em

compartilhar informações sobre a música eletrônica em Fortaleza; às sextas contava-se com a

apresentação do DJ Guga de Castro e aos sábados era a vez do DJ Fil assumir as pickpus do local.

Foi no apertado espaço do Cidadão do Mundo também que, em 1998, seis DJs, oriundos de

vários lugares do país, mas que já residiam em Fortaleza há algum tempo, conheceram-se e se tornaram

amigos. Insatisfeitos com a cena da música eletrônica de então e interessados em formar um novo

público desse gênero na cidade, resolveram compor, em abril de 2000, um grupo de DJs que ficou

conhecido como Undergroove. Além de produzir festas em clubs e boates, o grupo Undergroove

(concebido inicialmente pelos DJs Rodrigo Lobbão, Fil, Sickboy, Arlequim, Mantrix e Chris DB)

também promovia palestras, oficinas de DJ e fanzines que traziam informações sobre o surgimento da

música eletrônica. Essa divulgação tinha o intuito de oferecer à maior parte do público jovem de

Fortaleza informações sobre a música eletrônica, principalmente porque tais informações sobre essa

“nova” cultura eram ainda algo raro por aqui. Além disso, “disseminar aos ouvidos das pessoas timbres

musicais de qualidade, preferencialmente destituídos de caráter comercial” constituía o principal

objetivo daqueles que formavam o Undergroove34.

Os [seis] membros do grupo, aliás, tinham estilos musicais variados e produziam festas em que nenhum gênero prevalecia. Lobbão tocava tech house, Fil, hard techno, Sickboy ficava com o house, Arlequim, com o acid techno, Mantrix, com o trance e Chris DB, como o nome denuncia, tocava drum’n’bass. Com o tempo, várias modificações na formação do grupo foram acontecendo até que os membros se fixaram no estilo techno e suas principais vertentes. O DJ Fil (Jornal O Povo, 04/10/2003)

33 Texto extraído de http://www.mucuripe.com.br/, acesso em 10 de outubro de 2009 às 11h. 34 Fala extraída do email enviado pelo DJ Mantrix à lista de discussão do site “Pragatecno Brasil” (www.pragatecnobrasil.com.br) em 30 de agosto de 2000.

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explica que “em Fortaleza, o hard techno pegou mais do que outros estilos, como house ou drum and bass. Então, passamos a centrar o foco nele”. O Undergroove foi o responsável pela formação de um público apreciador de hard techno no Ceará, trazendo DJs consagrados internacionalmente (como Holgi Star, Andreas Kremer etc) para festas gloriosas e inesquecíveis para os apreciadores. Foi iniciativa do Undergroove também a produção de palestras, eventos e fanzines em que se discutiam e se apresentavam teorias e práticas recorrentes daquela novidade musical que o país ouvia (ARAÚJO JR., 2007, p. 66-67).

Com o passar do tempo e o fortalecimento do grupo, os jovens que o formavam passaram a

organizar festas de música eletrônica para um público maior do que duzentas pessoas, e em um espaço

ainda maior do que o de uma casa noturna. A partir de então, pode-se dizer que começou em Fortaleza,

ainda que de forma embrionária, o pulular do fenômeno das festas rave. Uma das principais iniciativas

adotada pelos membros do Undergroove para atuar diretamente na formação de um gosto pela música

eletrônica entre os jovens da cidade foi promover eventos que contavam com a participação de DJs

consagrados na cena da música eletrônica mundial.

No entanto, nem todas as festas podiam contar com músicos de renome, pois ainda não

existia um mercado que pudesse cobrir todos os gastos que uma festa de grande porte acarreta. A maioria

dos eventos era voltada para um público pequeno – eram as chamadas “festas privates”. Porém, realizar-

se a céu aberto constituía a principal diferença dessas festas em relação àquelas que ocorriam nas boates

e clubs da cidade. Além de serem “festas open air”, estas raves não possuíam um caráter comercial, seus

organizadores não visavam obter grandes lucros a partir de sua realização. Contudo, essas não são as

únicas diferenças entre uma private e uma rave maior. Mas, com relação a isso, pode-se citar ainda a

estrutura, o sistema de som e a duração da festa, que são consideravelmente menores, bem como o preço

dos ingressos e das bebidas que são comercializadas a um preço mais barato.

[...] Era um negócio mais particular, era as privates que o pessoal falava. Era uma festa onde os amigos se reuniam, e convidavam amigos pra ouvir os amigos tocarem. Então, não se cobrava ou quando se cobrava era, tipo, 5 reais, só pra não dizer que não teve custo. A festa tinha um custo baixo, e a galera meio que não tinha visão de ter lucro com aquilo. Até porque quem fazia a festa tinha dinheiro, então não tinha interesse comercial, era só mesmo pra juntar os amigos e fazer a festa. E aí, dentro desse movimento, começou a crescer... foi quando surgiu a Technofor e começou a vir os DJs internacionais pra cá. E eu comecei a andar nessa época, na época em que era muito fraquinha, que era só... porque meu primo era amigo de um desses caras e era engraçado porque, assim, ele me chamava pra ir pra festa 4 horas da manhã. Tipo, ele me ligava: “tu ta onde?”, e eu: “não, eu to dormindo”, ai ele: “pois vamo pra festa”. Ele passava lá em casa 4 horas da manhã e a gente chegava na festa de manhãzinha e via o sol nascendo. A festa era massa por isso. Eu comecei a trabalhar quando eu vi que o que eu fazia tinha a ver com festa, que era malabares. Já tinha malabares nessa época, mas eu nem fazia idéia que eu ia trabalhar com isso. [...] naquela época, os próprios DJs era que ficavam na bilheteria, que ficavam no bar, que fazia a decoração. A decoração era montada por eles, a estrutura era montada por eles e conforme foi

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passando, foi crescendo o mercado, ai foi tendo a necessidade de ter um cara pro som, um cara pra bilheteria, segurança. Um pessoal especializado mesmo em bar, que fizesse toda a distribuição em grande quantidade de cerveja, água, refrigerante [...]. Porque antes era o que, o pessoal da festa comprava no supermercado mesmo e levava, arrumava um freezer caseiro e botava dentro pra gelar. O pessoal comprava no supermercado e vendia, mas era uma venda informal, sem lucro. Esse negócio de cobrar num sei quanto por uma cerveja veio com o comércio, que cada um foi querendo ganhar o seu. Naquela época, era muito barato, muito barato mesmo, era coisa de 50 centavos, 1 real, a cerveja dentro da festa. A água também era barato. [...] Essas festas iam até onde a galera queria, num tinham uma hora marcada pra começar e outra pra terminar não. Era assim, a galera que decidia na hora, se a festa tivesse massa ia rolando, às vezes durava a noite todinha. Naquela época, só ia pra festa quem sabia, a divulgação era feita pelo “boca a boca”, um falava pra um que falava pro outro e assim ia. Eu nunca recebi nenhum cartaz, nenhum anúncio disso. Depois teve a Internet, Orkut, Fotolog; tinha um site que eu nem sei se existe mais que era o Cenaceará, que era como se fosse um fórum que tinha todas as festas, e os DJs e as novidades. Foi ai que começou a divugar mais, a galera ia pra lá pra pesquisar, pra saber quando era que ia ter festa, quem ia tocar, venda de ingressos, mapas porque os cantos eram sempre difícil de achar, daí sempre tinha mapa, sempre tinha todas essas coisas. Hoje em dia até quem não vai ta sabendo onde é que vai rolar a rave, até quem não tem nada a ver com a história sabe onde é, quando é, quem vai e tal, sai no jornal, sai em out-door. Antigamente não, so sabia quem ia, quem não ia num fazia nem idéia que existia. A galera alugava casa naquela região do Beach Park, no Icaraí... na Pedreira, rolava muita festa na Pedreira. [...] Como era um terreno que o pessoal escava, então o pessoal fazia dentro do buraco, o pessoal alugava e fazia lá. Na pedreira tinha o acesso pros tratores e tudo o mais, então o pessoal levava os equipamentos de som, de luz, pela mesma trajetoria, descia e montava tudo lá pra galera. Era interessante, rolou alguma na serra também de Guaramiranga, o pessoal fazia... era a “Serra Elétrica”. Ai, depois de um tempo a galera começou a fazer as divisões, porque mudou o estilo. Era assim, antes era mais o tecno ai depois veio a onde do trance. Foi nessa época onde começaram a surgir os núcleos de festa, tipo o núcleo tal, outro, outro e outro. Cada um tinha o seu próprio núcleo, DJ, seu estilo, seu nome de festa e sempre fazia aquela festa com o mesmo nome e o mesmo DJ, e o outro com os dele, era assim. Quando dizia “é a festa tal”, a gente já sabia que quem ia tocar eram aquelas pessoas. [...] No início, as casas que rolavam as raves eram dos próprios donos da festa, mas, tipo, com a necessidade de ter lugares maiores a galera começou a alugar um lugar maior mesmo pra caber todo mundo da festa. Tinha umas casas que o pessoal alugava só pra fazer esse tipo de evento, tipo já eram clássicas, que nem a “Mansão da Prainha” que é uma casa abandonada entre aspas que o pessoal aluga só pra fazer rave. Lá é como se fosse uma mansão abandonada, tem um dono mas o cara não utiliza, ela vive fechada. No começo das festas dava tipo umas duzentas pessoas, mas agora dá mais, dá bem mais, chega a, tipo, uma duas mil. (Marcelo, jovem entrevistado em 20 de agosto de 2008).

Conforme comenta Marcelo, os jovens que iam às privates eram conhecidos entre si, e

quando não eram amigos de quem tava organizando o evento eles eram “amigos dos amigos do ‘dono’

da festa”. O principal veículo de divulgação dos eventos se dava através do “boca a boca” e,

posteriormente, em sites na Internet, como o extinto Cenaceará. Nessas raves, a maioria dos jovens já se

conhecia de outros espaços, boa parte deles já havia participado de eventos de música eletrônica em

outros estados ou até em outros países. Poucos eram aqueles que estavam indo ao evento pela primeira

vez, e quando isso acontecia, estes eram sempre levados por alguma outra pessoa que já conhecia a

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dinâmica da festa e, assim, apresentava-lhes símbolos, códigos de comunicação, formas de interação

com a música e meios para se consumir psicoativos dentre outros.

Com o aparecimento das “festas open air”, o repertório dos eventos passou a ser

caracterizado por um tipo de música mais marcada e veloz do que o techno, é a vez do psytrance

reivindicar seu lugar na cena local. Houve, a partir das iniciativas empreendidas pelos jovens que

compunham os quadros do Undergroove, não apenas o surgimento de outros espaços nos quais a música

eletrônica podia ser experienciada, mas uma transposição geográfica, ética e, sobretudo, estética da cena.

Diferente dos clubes e boates, as raves conferiram ao espaço da música eletrônica em Fortaleza outras

manifestações de cunho ético e estético que requeriam a realização de “festas a céu aberto” para

promulgar seus discursos e símbolos expressos, principalmente, pela busca por locais afastados do

cotidiano da cidade para servir de sede aos eventos35.

É a partir do final dos anos 1990 que as raves começam a fazer parte do cenário da música

eletrônica local. Os eventos mencionados por Marcelo foram todos realizados nesse período. Em pouco

tempo, essas festas começaram a buscar outros espaços maiores para se realizarem. Além das festas

organizadas pelo grupo Undergroove, acontecia ainda na Kibrita, uma pedreira com vinte metros de

profundidade, localizada na Estrada da Cofeco, Km 06, raves realizadas pelos produtores Johnny Andy e

Anita Oliver.

Na edição de março da festa, na véspera do dia de São José, mesmo sob chuva de 100 milímetros (a maior registrada naquele ano, segundo Jornal O Povo de 25/04/2003), a multidão de dançantes não hesitou em se molhar, e aumentava a cada hora que passava. A terceira edição do evento, chamada “100% Pedreira”, em junho, juntou 4.500 pessoas, totalizando o número de 12 mil dançantes em três festas ocorridas na pedreira Kibrita (dados do Jornal O Povo de 04/10/2003). Em dezembro de 2002, o Autódromo Virgílio Távora, no Eusébio, cidade da Grande Fortaleza, fora palco de uma das mais grandiosas festas já acontecidas no Ceará, com a presença de um dos maiores DJs de techno, o inglês D.a.v.e. The Drummer. No ano seguinte, no mesmo Autódromo, seria promovida a festa Piercing Luminoso, em que um trio elétrico de DJs era a principal atração (ARAÚJO JR., 2007, p. 74).

Além desses eventos realizados na pedreira Kibrita, houve ainda outra iniciativa que

produziu festas rave em Fortaleza e cidades vizinhas durante vários anos. O repertório das festas passa a

ser formado pelo psytrance. Esse “novo” grupo não só produzia raves, como também agenciava DJs, 35 Segundo Damasceno (2007), esse tipo de deslocamento pode ser definido como “deslocamento geo-estético”. Conforme aponta o autor, a noção de “deslocamento geo-estético” deve ser pensada “como uma fusão do espaço geográfico e da manifestação estética e que dá sentido a esses espaços, configurando assim, com base na idéia de que o espaço é o lugar praticado, uma outra dimensão: a dimensão da arte de viver, de viver com as referências de beleza por eles instituídas, e, assim, elegendo as trajetórias a serem estabelecidas dentro do universo urbano, que redimensiona o espaço a partir da arte (dança, música) e instaurada a cidade na qual vivem, dentro das muitas cidades existentes na cidade de Fortaleza” (DAMASCENO, 2007, p. 231).

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cobrando por suas apresentações. Em dezembro de 2001, com um festejo na Praia da Tabuba, foi

inaugurado o projeto ZAT36 pelos DJs Bruno Lisboa, Arnold B. e Isis Salvaterra. Durante os anos

seguintes, o ZAT manteve uma das maiores produções do estado, a principal delas que se pode citar foi a

realização da rave Serra Elétrica, que aconteceu em 2002 no maciço de Baturité. O evento contou com a

participação de, aproximadamente, 1.200 jovens e durou 3 dias, sendo considerado como a festa de

música eletrônica que teve o maior tempo de duração realizada até hoje no estado. Entretanto, nesse

período o principal repertório das festas que eram realizadas no estado girava em torno do techno e suas

vertentes. Foi somente com iniciativas de outros grupos posteriores àquela do Undergroove que o

psytrance invadiu a cena das raves em Fortaleza.

Três anos depois do início das festas na pedreira, foi realizada ainda em Fortaleza, em janeiro

de 2003, uma edição da rave XXXPERIENCE, considerada como uma das mais bem-sucedidas festas

desse tipo no país. A versão cearense da XXXPERIENCE ocorreu na barraca Space, na Praia do Futuro.

Além do DJ Rica Amaral e do DJ Feio, tocaram também no evento os DJs locais Rodrigo Lobbão,

Mantrix e Toni Mazzotti. Apesar do sucesso da XXXPERIENCE na Praia do Futuro, a produtora paulista

que dá o nome à festa não retornou para fazer novos festejos na cidade. Porém, já nessa festa, em

especial, podia-se ouvir DJs que tocaram techno, como o DJ Lobbão, e outros que tocaram psytrance,

como o DJ Rica Amaral – um dos mentores do evento . O gosto musical dos jovens de Fortaleza

começava a se dividir entre o techno e o psytrance.

No ano seguinte, em 2004, aconteceu ainda na cidade a edição da Techcardia, que contou

com a participação de importantes nomes da cena da música eletrônica mundial, como os DJs Pest,

Lukas, Eto e Gab. O evento foi realizado num haras situado no Eusébio, a, aproximadamente, 25 km da

capital. Em 2005 ocorreu em Fortaleza uma rave intitulada Technofor, realizada numa casa localizada no

Porto das Dunas. O evento foi organizado pelos membros do grupo Undergroove e contou com a

participação de renomados DJs de hard tecno, como, por exemplo, o ingês Junkie Slip e o paulista

Allex´s. Além das apresentações dos músicos, a Technofor também se destacou pela infra-estrutura de

som e de iluminação montada para o evento. Pôde-se conferir também no espaço da festa performers que

manuseavam malabares e profissionais que faziam aplicações de body piercings durante o evento. Nesse

mesmo ano e no seguinte, outras raves foram organizadas por outros grupos de jovens que começavam a

atuar no ramo de produção de festas de música eletrônica em Fortaleza e arredores, como as festas

Technopride, Techno Stars, Underground, Fusion On The Beach e o I Festival Zonavibe de Música

36 O nome ZAT é uma referência ao livro de Hakin Bey (2004) lançado na década de 1980, intitulado “Zona Autônoma Temporária” (do inglês, a sigla T.A.Z. significa: Temporary Autonomous Zone). Entre outros conceitos, o livro fala sobre a idéia de combater o “poder dominante” criando alguns espaços (reais ou imaginários) de liberdade que se criam e se desfiam com a mesma intensidade e velocidade. O conceito de “Z.A.T.” se adequou rapidamente às raves quando a polícia começou a reprimir festas em locais abertos na Inglaterra.

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Eletrônica entre outras, realizadas nos anos de 2005 e 2006. No flyer de divulgação da Technopride

Fortaleza Edition, podia-se ler o seguinte:

Os núcleos Undergroove e Technovibes unem-se para trazer a Fortaleza uma das maiores e mais conceituadas festas de música eletrônica do país: a TECHNOPRIDE (SP). Pela primeira vez no nordeste, e em edição especial que contará com uma mega estrutura envolvendo os melhores profissionais da cidade, a TECHNOPRIDE FORTALEZA EDITION vai trazer de uma só vez 2 TOPS DJS INTERNACIONAIS + 1 TOP DJ NACIONAL!!! UM LINE-UP ESPECIAL COMO HÁ TEMPOS FORTALEZA NÃO VIA! As apresentações de 5 dos melhores DJs locais de Techno + o retorno de um Top nacional querido por Fortaleza: TRB (Technopride – SP) + a vinda inédita e tão aguardada por fãs em todo o país de um dos principais nomes do Techno mundial na atualidade: SANDY WAREZ (Subsounds - BÉLGICA) em duas apresentações especiais (Live PA e DJ Set) + a apresentação também inédita no Brasil de um dos principais expoentes do Hard Techno português: MARIO PARANDI (Evil Schranz – PORTUGAL) + uma big estrutura de som, luz, tendas e decoração... Tudo isso irá garantir a TECHNOPRIDE FORTALEZA EDITION o posto de uma das grandes raves de 2006!37

Além dos nomes dos DJs que se apresentaram na festa, o flyer trazia ainda informações

relacionadas à estrutura do evento. Segundo o panfleto, a Technopride ofereceria ao seu participante um

“sound system profissional”, “iluminação robótica e flúor”, “laser show especial”, “decoração inédita”,

“bar de qualidade e área de alimentação”. A rave foi realizada numa pousada situada na região da

Confeco e o ingresso para participar do evento custava R$ 25,00 (vinte e cinco reais) para compra

antecipada e R$ 30,00 (trinta reais) para quem optasse por adquiri-lo na bilheteria do local.

Segundo a agenda de eventos publicada diariamente no site Psyte (www.psyte.com.br), o

número de raves no Ceará pulou de 1 festa realizada em 2005, para 5 eventos ocorridos durante o ano de

2006. Aos poucos, não só os eventos foram migrando do techno para o psytrance, mas também o gosto

musical dos jovens. Junto com essa mudança, veio a incorporação de uma outra estética associada ao

“novo” gênero. Ao invés de um cenário urbano-industrial como aquele requerido pelo techno, agora é a

vez das “paisagens paradisíacas” e dos símbolos hindus tomarem conta da cena. Começaram a surgir em

Fortaleza e cidades vizinhas festas como a Trance On The Beach e a Ultra Party, organizada pela recém

criada produtora Zonavibe.

Em certa medida, pode-se perceber que a cena da música eletrônica em Fortaleza é herdeira

de uma cultura club surgida no final dos anos 1980, cujos desdobramentos estamos acompanhando agora

com o fenômeno das festas raves. Além das “festas open air” realizadas frequentemente na cidade,

pode-se citar ainda boates como Clubbers, Music Box e a recente Cobras, nas quais a música eletrônica

predomina. E locais como as casas noturnas Órbita, Amici´s e Fa Fi, onde há dias na semana em que a

37 Texto extraído de http://flog.festanet.com.br/zonavibe/?id=2865022, acesso em 1° de setembro de 2008, às 18:22h.

Page 90: Festas RAVE em Fortaleza

90

programação do local é exclusivamente formada por gêneros da música eletrônica. Todos esses lugares

são situados nas proximidades da Praia de Iracema, com exceção do Fa Fi que se localiza no coração da

Aldeota. Em barracas localizadas na Praia do Futuro como a Master Beach e a Biruta, há, no período de

férias escolares, eventos semanais que contam com a apresentação de DJs locais que estão iniciando sua

carreira na cena.

2.5 Os sentidos do espetáculo: da clandestinidade londrina à popularização das festas

Os dados colhidos durante a pesquisa de campo assinalam que a partir dos anos 2000 o

cenário da música eletrônica em Fortaleza começa a crescer e a assumir proporções jamais vistas. O ano

de 2003 foi tão “festivo” que mereceu destaque no jornal O Povo veiculado no dia 04 de outubro do

mesmo ano. Na matéria intitulada “Fábrica de Festas” (O POVO, 2003b), a jornalista Ethel de Paula

afirmava que a capital cearense estava “em lua de mel com festas temáticas e itinerantes produzidas em

espaços inusitados e que apostam nas especificidades de tribos diversas”.

Com o passar dos anos, mudou não só a estética e a forma de expressão musical das festas,

mas também os meios utilizados para divulgação dos eventos. Não se trata mais de “festas

undergrounds” como eram na Inglaterra nos anos 1980, tampouco “festas privates”, agora são os mega-

eventos de música eletrônica que se configuram como raves. É sem muita dificuldade que se observa um

número cada vez maior de raves que recorrem às sessões de jornais impressos voltadas para o

entretenimento, ou mesmo out-doors espalhados estrategicamente pela cidade, no intuito de divulgarem

informações acerca das datas, principais atrações, preços e locais de compra antecipada de ingressos para

os eventos.

Para acompanhar todas essas mudanças relacionadas à estética, forma de expressão e

divulgação dos eventos, alguns indivíduos começaram a criar núcleos e produtoras responsáveis pela

realização das raves em Fortaleza e arredores, conferindo um tom comercial às festas. Com isso, a

atividade de DJ passa a ser percebida também como uma profissão. Para conquistar projeção nesse

cenário, é necessário, antes de tudo, que o DJ adquira um nome, geralmente, em inglês, que seja bem

aceito no campo das festas e que expresse parte dos símbolos adotados pelos jovens nas raves. Como

exemplo disso, pode-se mencionar o nome de alguns músicos que atuam na cena eletrônica local, tais

como: Mind Paradise, Mechanimal, Lucas SD, X-level, Peckman, Psycho e Disturbed dentre inúmeros

outros DJs. Contudo, para obter prestígio e ser considerado “bom”, é necessário ao músico ainda uma

espécie de consagração por parte dos núcleos e produtoras – espécies de agências que atuam na

organização dos eventos – que se responsabilizam pela realização das festas. Semelhante aos nomes dos

Page 91: Festas RAVE em Fortaleza

91

DJs, esses núcleos e produtoras evocam um universo transcendental e “psicodélico”, como, por exemplo,

o Nu-ACT (Núcleo de Arte e Cultura Transcendental), a produtora Zonavibe, o N.A.V. (Núcleo de Arte

Visionária), a produtora The Sound e o núcleo Underground, apenas para citar cinco deles. Esses núcleos

e produtoras possuem o poder de consagrar um músico, dotando de valor a música composta ou

executada por um DJ, obtendo lucros a partir dessa operação. São eles que chancelam a música criada

por determinado DJ, atuando como uma espécie de “descobridores” da “boa música eletrônica”,

comportando-se, na maioria das vezes, como “criadores dos criadores”.

A ordem de apresentação dos DJs numa festa varia conforme o prestígio do artista na cena

local, nacional ou internacional da música eletrônica, seguindo alguns critérios que estão para além de

suas habilidades musicais38. Aqueles DJs que possuem um maior prestígio no microcosmo das festas

conquistam o privilégio de tocarem suas músicas na pista principal a partir do romper da aurora,

momento considerado como sublime pelos freqüentadores; e, aqueles que não possuem o mesmo

prestígio, têm de se contentar em tocar no início da festa, nas pistas menores, como, por exemplo, o chill

out, e, desse modo, para um público consideravelmente menor. Alguns dos músicos são contratados

pelos organizadores do evento e figuram entre as atrações principais da festa, outros são apenas

convidados, atuando como meros coadjuvantes e, às vezes, sequer recebem algum tipo de pagamento em

dinheiro por sua apresentação.

A contratação de DJs nacionais e internacionais se dá, na maioria das vezes, através de

agências, o que eleva o preço cobrado pela apresentação do músico no evento. Entretanto, alguns grupos

organizadores preferem negociar com o próprio artista ou com seu manager, uma espécie de empresário

responsável pela contratação do músico. Na maior parte das vezes, uma mesma agência ou um único

manager é responsável por mais de um DJ. Segundo Pedro, um jovem que atua na promoção destas

festas em Fortaleza e cidades vizinhas desde 2005, as principais agências que os núcleos e produtoras

recorrem para confirmar as atrações de uma festa são: Wild Artist, Carambola e 4AM. Os custos que se

têm com a vinda de um artista internacional para o Brasil variam entre 2 e 3 mil euros. Dependendo do

prestígio do músico, alguns deles devem ser contatados meses antes da realização do evento, por conta

de sua requisição em diferentes festas ao redor do mundo. A maioria dos DJs produz suas próprias

músicas e as executam “ao vivo”. Tal prática é denominada como “live”. Alguns núcleos ou produtoras

geograficamente vizinhos, localizados numa mesma região ou em estados vizinhos, por exemplo,

juntam-se e dividem entre si as despesas gastas com passagens referentes a vinda de um DJ, tornando,

assim, sua contratação mais barata, aumentando sua margem de lucro com a festa. 38 Alguns desses critérios são: conhecer e ser conhecido por várias pessoas que freqüentam e organizam periodicamente festas rave no Ceará ou em outros estados do Brasil; ter freqüentado ou ter se apresentado em eventos realizados em outros estados ou países; adquirir um vasto conhecimento da produção fonográfica referente à música eletrônica e suas várias vertentes; ou ainda, ter participado da organização de festas de grande porte. Tudo isso colabora para erigir parte dos princípios de distinção existentes no cenário das raves que podem contribuir positivamente para a reputação de um DJ.

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92

Os grupos organizadores (núcleos ou produtoras) se formam a partir da intensificação dos

laços de amizade que seus membros possuem entre si, e em cada um deles os jovens se dividem em

funções conforme as suas habilidades específicas. Assim, todos podem cooperar de igual modo para a

realização de uma rave. A diversidade de pessoas que participam de um grupo dota-lhe de um caráter

heterogêneo. Compõem um exemplo interessante daquilo que Howard Becker decidiu denominar como

“mundo artístico”, isto é, atuam como uma “rede elaborada de cooperações” (BECKER, 1991). Um

texto retirado do site do Nu-ACT (Núcleo de Arte e Cultura Transcendental) acerca de sua composição

expressa isso:

39

Conforme um membro do núcleo me confidenciou informalmente durante um dos eventos

promovidos pelo grupo, o Nu-ACT foi formado não só a partir do gosto comum que cada um de seus

componentes possui pela música eletrônica, mas também como uma forma de colaborar para o

crescimento e a popularização das raves e da “cultura trance” em Fortaleza, difundindo “novas” idéias

acerca destas festas. No texto publicado no site do núcleo, percebe-se facilmente a elaboração de um

discurso que elogia a diversidade e a criatividade como valores a serem perseguidos por seus integrantes.

Contudo, além desse discurso que evoca tais adjetivos para caracterizar um núcleo ou produtora, pode-se

notar também a idéia da rave como “empreendimento” e do grupo organizador como “empresa” que atua

em vários setores. No caso do Nu-ACT: “Estúdio de produção multimídia”, “Estúdio de Tatoos e

Piercings” e “Estúdio de Produção Musical”. Estes aspectos podem ser percebidos também a partir de

outro texto publicado no site da produtora Zonavibe40:

39 Retirado de http://www.nuact.com.br/, acesso em 05 de agosto de 2009 às 10h e 48min. 40 Retirado de http://www.zonavibe.net/index.php?option=com_contact&view=contact&id=1&Itemid=55, acesso em 05 de agosto de 2008 às 11h.

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93

A Zonavibe Produções, é formado pelos Jovens Empresários Hinty Gabriel (Free Lancer Producções), Nadlo Cavalcante, Reginaldo Façanha (Festas 20 e poucos anos) e Lucas Susin, empresa que já está no mercado cultural do nosso estado há 2 anos fazendo as maiores festas de música eletrônica que existiram no nordeste. Nestes 2 anos mais de 50 mil pessoas passaram pelos eventos da produtora, que sempre prezou pela excelência em termos de estrutura e atendimento ao seu público.

Segundo o texto, a referida produtora é formada por “jovens empresários” que atuam em

outros segmentos do lazer noturno em Fortaleza, promovendo não só festas rave, mas eventos voltados

para o público considerado “jovem”, como a “Festa 20 e poucos anos”41. Além disso, seus proprietários

também administram outras empresas que trabalham com promoção de eventos na cidade, como a Free

Lancer Produções, atuando de forma efetiva no “mercado cultural do nosso estado”. Para estes

empresários que atuam no setor do entretenimento, as festas rave se tornam mais um meio para se obter

lucro a partir do lazer. Embora os grupos que atuam na organização das festas se autodenominem, às

vezes como “núcleos”, às vezes como “produtora”, não pude identificar alguma diferença significativa

entre eles, a não ser a própria denominação.

A produção de uma festa deve levar em consideração, principalmente, a quantidade de pessoas

esperadas para o evento e o “nível” (prestígio) dos DJs que atuarão nele. A partir daí, iniciam-se os

acordos entre os organizadores acerca de datas, horários, locais, preço dos ingressos, divisão de trabalho

a ser realizado por cada membro do grupo, bem como também de despesas e de lucros. Cada núcleo ou

produtora responsável pela realização da rave divulga antecipadamente uma lista chamada line-up

contendo os nomes dos DJs que tocarão no evento, assim como os respectivos horários e estilos musicais

adotados pelos músicos. É comum no cenário das raves em Fortaleza, tanto os núcleos como as

produtoras nutrirem uma preferência por determinados músicos locais. Essa preferência se pauta,

basicamente, em laços de amizade estabelecidos a partir de experiências passadas vivenciadas entre

ambos – organizadores e DJ – em festas anteriores. Nem sempre há uma distinção clara de papéis entre

aqueles que organizam e aqueles que tocam na rave. Na maioria das vezes, os DJs também pertencem

aos grupos e fazem parte da organização de uma festa, trabalhando duplamente durante os eventos. Por

conta disso, alguns dos DJs locais que tocam numa rave organizada por determinado núcleo ou

produtora, não se apresentam num evento promovido por outro(a). Nas festas realizadas pela Zonavibe,

por exemplo, pode-se observar a participação de determinados DJs locais que não se apresentam nos

eventos organizados pela The Sound e vice-versa. Para esse grupo de DJs que são “exclusivos” de um

núcleo ou produtora, dá-se o nome de “casting”. No entanto, percebe-se que núcleos e produtoras se

41 A festa “20 e poucos anos” é uma espécie de rememoração de eventos da década de 80 que marcaram a infância daqueles que se consideram jovens hoje, como músicas, jogos eletrônicos, desenhos, programas e séries televisivas características do período. O número de participantes que freqüentam o evento chega a aproximadamente 5 mil pessoas por edição.

Page 94: Festas RAVE em Fortaleza

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fragmentam com a mesma rapidez com que se formam, não resistindo às exigências que o mercado

criado em torno da realização de festas de música eletrônica demanda. Núcleos, produtoras ou agências

de DJs criadas num ano podem não existir mais no seguinte.

Com o crescimento e popularização das raves, os grupos organizadores foram rapidamente

incrementando seus investimentos e sofisticando a infra-estrutura dos eventos. Muitas vezes, o dinheiro

arrecadado numa festa é revertido em investimento para a produção da próxima, colaborando para uma

mudança substancial na forma como se dá a organização de uma rave. Desse modo, a música eletrônica

passa, cada vez mais, a compor parte do heterogêneo gosto musical dos jovens da capital. As raves e os

espaços que privilegiam os sons que embalam a música eletrônica vêm se tornando uma opção a mais de

lazer na urbe. Os jovens já podem contar com uma programação fixa de “festas open air” espalhadas por

Fortaleza e cidades vizinhas: “[...] DJs tocando esse tal de ‘tuntistun’ é o que não faltam na cidade...”

(DIÁRIO DO NORDESTE, 2007). Com o crescimento da cena local, algumas festas até chegam a ser

divulgadas em cadernos de entretenimento dos jornais de maior circulação na cidade, tais como

Buchicho (O Povo) e Zoeira (Diário do Nordeste).

Durante a pesquisa, tive acesso a várias destas matérias veiculadas ao longo do ano de 2008.

Entretanto, dentre elas, selecionei duas para apresentar aqui por expressarem, justamente, o caráter

espetacular que permeia tais eventos hoje. A primeira delas foi veiculada na edição de 16 de maio do

jornal O Povo e ocupou duas páginas inteiras do caderno Buchicho, conforme se pode observar na figura

abaixo:

Matéria publicada no caderno Buchicho, do jornal O Povo, veiculado no dia 16 de maio de 2008.

Page 95: Festas RAVE em Fortaleza

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Além da agenda das festas que ocorreram no mês de maio, o texto da referida matéria trazia

também um sucinto “dicionários de estilos”, com as principais características de alguns dos inúmeros

subgêneros do trance, bem como uma pequena coluna intitulada “dicas para se dar bem na primeira

rave”, na qual podia-se ler o seguinte:

Meninas não devem exagerar na maquiagem escura. Lápis e delineador derretem com o calor e, quando o Sol raiar, todo mundo vai ver o estrago no seu rosto. Para levar os pertences, prefira uma cartucheira. Além de descolada, ela dá mobilidade para dançar a noite toda e tem bolsos que comportam óculos escuros, barrinha de cereal e protetor solar (itens indispensáveis)! Prepare o bolso. A média de preço do ingresso é de R$25, e, para se hidratar, é importante beber bastante água. Por causa da procura, a garrafinha pode chegar a R$3 nas raves. O mesmo acontece com os pirulitos, ícone das raves, que chegam a R$2. As raves começam às 22 horas, mas nada de chegar nesse horário. A festa começa a bombar mesmo por volta das 2 da manhã, e o auge acontece depois do amanhecer Chegando à festa, mantenha a serenidade. A rave é uma festa plural, com gente de todas as tribos se encontrando no mesmo espaço. O que deve rolar é o respeito entre as diferenças e nada de briga! (O POVO, 2008a).

A segunda destas matérias selecionada para ser apresentada aqui foi também publicada no

caderno Buchicho, em 05 de julho de 2008, intitulava-se “Balada Eletrônica” e divulgava mais um

evento de música eletrônica que ocorreria nesse final de semana na capital cearense, anunciando não

apenas a festa que seria realizada pela produtora The Sound, mas informando também quais eram suas

atrações musicais. A matéria tentava traçar um breve histórico do psytrance para aqueles leitores leigos,

apontando algumas das principais características do estilo: “Para quem não sabe, o psytrance ou trance

psicodélico funciona como uma espécie de releitura atual para o rock psicodélico dos anos 1970 e é um

dos estilos mais acessíveis da música eletrônica” (O POVO, 2008a). Antes, porém, de finalizar a

reportagem, o jornal exibe importantes aspectos dessa espetacularização, trazendo a fala de dois jovens

que freqüentam assiduamente os eventos.

O primeiro deles integra os quadros da The Sound e diz o seguinte:

A festa não é só para quem curte música eletrônica. É para quem quer se divertir. Hoje a música eletrônica está dentro do calendário de Fortaleza. Hoje em dia o negócio já está mais abrangente. Dá todo tipo de público, quem gosta do forró, de axé, de [música] eletrônica, tá todo mundo misturado. (O POVO, 2008a).

Logo após a declaração do integrante da produtora local, a matéria publica ainda a fala de outra

jovem que freqüenta tais festas:

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A promoter de eventos Sacha Garcia, 24, é presença certa na platéia deste sábado. Segundo ela, que frequenta raves há pelo menos sete anos em Fortaleza, esse tipo de festa costuma reunir gente que gosta de liberdade, esportes, novas amizades e contato com a natureza. “Ninguém liga se você está de sandália rasteira ou de roupa de marca. Ninguém tá nem aí para quem você é”, diz. Para Sacha, o ambiente é de cordialidade entre as pessoas. “Se alguém esbarrar em você, vai lhe pedir desculpas. É muito raro ter uma briga. Também não tem homem te puxando, é muito tranquilo. Todo mundo te respeita. Se acabou o dinheiro da tua água, por exemplo, alguém que você nem conhece te empresta. É muita paz”, diz a promoter, que já esteve em todas as edições da festa The Sound. A água, segundo ela, é fundamental para hidratar o corpo, já que são muitas horas de pista. No último dia 21, curtia uma confraternização da cena eletrônica local, no Churrastronic, mistura de churrasco e música eletrônica, numa mansão no Porto das Dunas, quando a promoter esteve em contato com a reportagem do O Povo que cobria o evento (O POVO, 2008a).

O que dizer, portanto, do caráter espetacular que permeia o universo das raves atualmente?

Tais festas não se organizam mais de forma clandestina, nem tampouco de maneira espontânea, mas são

racionalmente planejadas, divulgadas em matérias sobre entretenimento veiculadas em jornais de grande

circulação. Durante a etapa de organização da festa, os produtores levam em consideração todos os

custos necessários à realização do evento. Preocupam-se não só com o dinheiro despendido na

contratação de DJs, seguranças, aluguel de som, decoração etc., mas também com os lucros obtidos tanto

com a comercialização de ingressos como com a venda de bebidas alcoólicas, refrigerantes e garrafas de

água consumidas pelos freqüentadores durante a festa. Há raves que chegam a atrair algo em torno de 6

a 10 mil pessoas por evento, dependendo do prestígio de quem as produz e da popularidade dos DJs que

se apresentarão nela.

A partir das falas apresentadas nos relatos citados acima, percebe-se o modo como o cenário

das raves congrega uma multiplicidade de juventudes: “A festa não é só para quem curte música

eletrônica. É para quem quer se divertir. [...] Dá todo tipo de público, quem gosta do forró, de axé, de

eletrônica, tá todo mundo misturado” (O POVO, 2008a). Nesses eventos, os jovens têm um papel ativo,

construindo em espaços específicos seus próprios meios de prazer. Suas práticas oferecem “um novo

mapeamento cognitivo no qual a cultura transnacional e a tecnologia são utilizadas para seus próprios

fins, que claramente não são políticos” (YÚDICE, 1997). Tais festas permitem não apenas uma mistura

entre as diferentes culturas juvenis que habitam a cidade, mas também revelam as maneiras por meio das

quais estas culturas se relacionam tanto com o lazer como com o consumo na contemporaneidade.

Contudo, como parte deste esforço compreensivo em torno da cena das raves e de seu público, será

abordado no próximo capítulo os tipos de performances que compõem cada espaço e tempo

experienciado na festa, atentando para os diferentes sentidos atribuídos pelos jovens à sua participação

na rave.

Page 97: Festas RAVE em Fortaleza

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3. PAISAGENS DA FESTA: margens, espaços-tempo, cenários

The sun is setting. While some people are having fun juggling, an older woman offers to paint the body of anyone

who wants with white and green inks. Some backdrop pictures and other fluorescent paintings showing stars,

spaceships, musical notes, fractals and mushrooms are ready while fluorescent threedimensional string art objects arrive

out of nowhere

[Fullon (Napo) - IsraTrance Forum]

O principal objetivo deste capítulo é lançar um olhar sobre as paisagens da festa, percebendo

discursos, espaços, momentos, atores e suas performances como se olhássemos todo o cenário através de

uma janela, porém com duas certezas: a primeira é a de que a paisagem continua para muito além dos

limites do que se pode ver; e a segunda é que é preciso atravessar essa janela para adentrar num mundo

completamente novo, colorido e barulhento. A paisagem deixa então de se apresentar como aquilo que

se vê ao fundo para se converter em uma experiência partilhada que pode ser vivenciada pelo próprio

“pesquisador”.

Nesse sentido, começo descrevendo a chegada dos sujeitos à festa, observando os lugares e as

várias formas como estes são ocupados pelos jovens ainda no lado de fora da rave, reinventando-os à sua

maneira. A partir daí, inicio a descrição dos interiores da festa, narrando sobre cada um de seus espaços

e temporalidades: desde a porta de entrada, passando pelo chill out até chegar na pista de dança,

encerrando o capítulo com o bar e a lanchonete. Cada um desses espaços exige performances próprias;

performances estas que puderam ser captadas a partir de um olhar diferente daquele que estamos

acostumados a utilizar no cotidiano. Trata-se de um “olhar vibrátil” que tive que desenvolver durante a

pesquisa (ROLNIK, 1989). Aliás, não foi só o “olhar” que teve de se converter em “vibrátil”, mas

também o “ouvido”, o “nariz” e todo o resto do corpo. De acordo com Rolnilk (1989), o “despertar do

corpo vibrátil” faz com que se deixe de ser “apenas espectador, sujeito em si observando objetos em si

com um olho entulhado de imagens” (ROLNIK, 1989, p. 235), para que o “pesquisador” também possa

se converter em participante da ação.

Entretanto, antes de empreendermos um mergulho efetivo no espaço da rave, cabe fazer um

alerta: mesmo que minha intenção tenha sido captar parte do visível e do invisível da festa, acredito que

houve coisas que não foram possíveis de serem captadas, ou porque não tive sensibilidade suficiente

para percebê-las, ou porque não se mostraram relevantes no momento em que se apresentaram a mim, ou

ainda por qualquer outro motivo que desconheço nesse instante. E ainda, daquilo que foi captado, existiu

Page 98: Festas RAVE em Fortaleza

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aqueles eventos que não foram descritos por extrapolarem os objetivos desta pesquisa. Portanto, as

paisagens que se apresentam neste capítulo podem ser consideradas como ficções, não no sentido de

“algo falso”, mas no sentido original do termo, ou seja, como “algo construído”, e por isso uma

interpretação “essencialmente contestável” (GEERTZ, 1989).

3.1 A cidade da festa

Para falar sobre as paisagens da festa, é necessário passear pelos seus espaços e experimentá-

los de diversas formas e em diferentes momentos. Assim, opto por começar narrando a minha ida a uma

das 17 raves que freqüentei durante a pesquisa de campo. A festa ocorreu no dia 05 de julho de 2008 e

foi realizada na barraca de praia Biruta. O evento contou com divulgação tanto no jornal Diário do

Nordeste, numa das seções do caderno Zoeira, como no jornal O Povo, com matéria publicada no

caderno Vida e Arte, ambos veiculados no mesmo dia da festa. O evento foi organizado pela The Sound,

uma das várias produtoras de festas de música eletrônica que atuam na cena local.

Esta festa comemoraria o primeiro ano de existência da referida produtora e, por conta disso,

seus organizadores resolveram trazer à Fortaleza dois importantes nomes da cena eletrônica mundial: o

DJ israelense Ari Linker, conhecido na cena como Alien Project42, e o DJ paulista Rica Amaral43, um

dos organizadores da XXXPERIENCE – que, juntamente com o Universo Parallelo, constitui um dos

maiores festivais de música eletrônica do país. Conforme a matéria veiculada pelo jornal O Povo,

a festa The Sound já está na nona edição. A primeira foi em maio do ano passado [2007] na mesma Barraca Biruta, com o mesmo DJ Rica Amaral. De lá para cá, a festa já passou por diversos espaços da cidade e dos arredores da capital, como Marina Park, Mucuripe Club, Lagoa da Precabura e Mansão da Prainha, reunindo gente jovem a fim de curtir as batidas eletrônicas e atrações como Astrix, PsySex, Kfir Lankry, GMS e Growing Machine. [...] A média de público desses eventos foi de duas mil pessoas por noite. O recorde foi de 4.500 espectadores na apresentação do DJ Astrix, no ano passado, também na Barraca Biruta (O Povo, 2008b).

O ingresso para participar dessa festa custava R$ 35,00 (trinta e cinco reais). Para adquiri-lo,

entrei em contato com um dos integrantes da The Sound que também atuaria como DJ no evento e o

informei, por telefone, que tinha interesse em comprar três bilhetes para a rave, sendo um para mim e os

outros dois para um casal de amigos que me acompanharia. O DJ e também produtor da festa marcou um

42 Conhecido mundialmente, Ari Linker é considerado pelos fãs do estilo um “fenômeno” quando o assunto é psytrance. “Sua música tem o poder de transportar o público para outra dimensão”, diz o material de divulgação do evento. 43 Rica Amaral atua como DJ na cena brasileira desde 1995. Eleito melhor DJ de trance por quase 10 anos consecutivos, em publicações especializadas, seu repertório geralmente apresenta variações de subgêneros dentro do psytrance.

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encontro comigo em sua residência no bairro Papicu para concretizarmos a negociação. Nosso encontro

foi bastante rápido, quase não conversamos. De forma impessoal, o jovem me recebeu do lado de fora de

seu apartamento e me repassou os ingressos enquanto falava com outra pessoa ao telefone sobre a festa.

Afinal de contas, um evento daquelas proporções, com a participação de, ninguém menos que, Alien

Project e Rica Amaral, exigia muito de seus organizadores.

No line-up divulgado para esta festa podia-se ler nomes como:

Inge (minimal) - 23h Aminad (electro) - 00h Lucas Santos (psytrance) - 01h TIME CONTROL LIVE (psytrance) - 02h Syrus (psytrance) - 03h ALIEN PROJECT LIVE (psytrance) - 04h GROOVE MACHINES LIVE (psytrance) - 05:30h RICA AMARAL (psytrance) – 06:30h Victor Falcão vs Psycho (psy/prog) - 08h X-Level (prog) - 09h Peckman (prog) - 10h Diego Grecchi (psy/prog) – 11h

Estes seriam os 12 DJs responsáveis por conduzir os jovens em mais uma noite de festa ao som

da música eletrônica na Praia do Futuro. Alguns desses DJs já eram velhos conhecidos dos jovens, e

aquela não era a primeira festa considerada como “grande” que eles teriam a chance de tocar, porém,

para outros DJs locais, esta rave seria a primeira oportunidade de mostrar seu trabalho ao público e, por

conta disso, possuía um valor mais que especial para eles. Segundo a programação do evento, a festa

começaria às 23h com a apresentação do DJ Inge, um novato na cena, e terminaria com Diego Grecchi,

um veterano e conhecido da maioria dos freqüentadores dos eventos.

Desembarquei na rave às 21 horas e 45 minutos, acompanhado de um casal de amigos que

conheci quando participava de uma oficina de malabares realizada numa praça situada na área nobre de

Fortaleza, popularmente conhecida como Praça Portugal:

Já no caminho de ida, o casal que me acompanha comenta empolgado o sucesso das festas passadas que contaram com a participação de Rica Amaral e Alien Project, desejando para esta rave o mesmo sucesso das anteriores. No flyer de divulgação anuncia que o evento só começará às 23h, porém, mais de uma hora antes de seu início, já se pode observar no calçadão da Praia do Futuro, especificamente em frente a entrada da Biruta, corpos de jovens que se amontoam e se misturam preparando-se para a festa. Os jovens chegam ao local da rave bem antes dela começar. Grupos se formam e se fragmentam com a mesma velocidade. Alguns deles “jogam” swing poi, outros preferem ficar dançando ao som do psytrance que sai do porta-malas de um dos carros estacionados próximos à barraca. Do lado de fora da Biruta, luzes coloridas iluminam os coqueiros que ornam o calçadão da Praia do Futuro. Vendedores ambulantes, “cambistas”, seguranças, taxistas e “flanelinhas” dividem o mesmo espaço

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dos jovens que aguardam ansiosos o momento oportuno para adentrar na rave. Localizadas no meio-fio, barraquinhas de bebidas decoradas com espelhos, bonecas de plástico, pentes, e carrinhos de cachorro quente (especialmente adaptados para a venda itinerante de sanduíches) disputam a atenção dos jovens, oferecendo seus produtos ao divertido som de sirenes, chocalhos e buzinas. Tudo é festa! (DIÁRIO DE CAMPO, 2008).

Chegando ao local da festa, tratei de me desvencilhar do casal que me acompanhava para

transitar sozinho por alguns dos espaços formados ao redor do evento. Tão logo iniciei meu passeio

pelas margens externas da rave, fiquei impressionado com todos os aspectos que precedem a entrada dos

jovens na festa. O som estonteante que sai do porta-malas de um dos veículos estacionados próximo à

Biruta anuncia que se está adentrando no território de uma festa de música eletrônica. Do lado de fora do

evento, compartilhando o espaço com os blimps44, lycras e refletores coloridos iluminam os coqueiros

que ficam distribuídos ao redor da porta de entrada da Biruta. Os blimps não só divulgam o slogan de

determinada empresa que atua como apoio à realização da festa, como também informam aos jovens o

tipo e a marca das bebidas que serão comercializadas durante o evento, principalmente no espaço

improvisado para a instalação de um Bar no interior da rave. Nesta festa, podia-se ler nos balões as

palavras “Sol” e “Burn”.

Foto 1: Blimps e refletores instalados próximo à porta de

entrada da festa realizada na Biruta.

Foto 2: Jovens se movimentando pelo calçadão da Praia do

Futuro, antes de sua entrada na rave.

No calçadão da Praia do Futuro, em frente à barraca, alguns jovens vagueiam de lá para cá com

latinhas de cerveja, de refrigerante ou ainda com garrafas de água nas mãos. Outros preferem ficar

parados no passeio para “jogar” swing poi, um tipo bastante popular de malabares confeccionado com

alguns metros de malha colorida, fitas de cetim e cordas que servem para prender suas extremidades. A

44 Nome dado aos balões de propaganda que ficam instalados, na maioria das vezes, na parte externa da festa. Tais balões são inflados com gás hellium para proporcionar que os mesmos fiquem suspensos no ar.

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expressão “jogar” é utilizada entre os jovens que participam da festa para se referir ao manuseio de

malabares de uma maneira geral, sendo aplicada tanto ao swing poi como a outros tipos de malabares. O

emprego do termo “jogar” dota não só a prática do malabar de um caráter lúdico, mas também a própria

festa: “existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações. Ambos implicam uma

eliminação da vida quotidiana. Em ambos predominam a alegria [...]”45 (HUIZINGA, 2001, p. 25). O

poi, como os jovens costumam se referir ao malabar, tanto serve para compor a paisagem da festa, como

também se torna pretexto para se fazer novas amizades. Basta poucos minutos “jogando” poi para

alguém se aproximar de você com o intuito de aprender e trocar técnicas relacionadas ao manuseio do

malabar. Manejar com desenvoltura o poi oferece ao jovem a possibilidade dele ser notado na rave,

dotando-o de certa distinção em relação aos demais participantes do evento.

Do lado de fora da rave já se vivencia a festa. O movimento e as coreografias praticadas pelos

jovens através de seus corpos denunciam isto, desde as idas e vindas em marcha lenta pelo calçadão, até

o arremesso de swing pois pelo ar, passando pelos discretos passes de dança arriscados no intervalo de

uma conversa e outra entre os próprios jovens: tudo é festa.

Nos instantes que precedem a entrada dos jovens na rave, misturam-se DJs, produtores,

freqüentadores veteranos e novatos das mais variadas faixas etárias, seguranças, vendedores ambulantes,

flanelinhas, taxistas e cambistas46 dentre outros personagens que compõem o cenário da festa. A rave

inicia-se não apenas no instante em que os seus participantes cruzam a porta de entrada que dá acesso ao

seu interior, mas começa antes. Ela se antecipa ao horário previsto, espalha-se pelas margens do local de

sua realização e, principalmente pela cidade.

A ida dos jovens à festa é precedida por encontros e paradas em variados espaços existentes em

Fortaleza, tais como ruas, praças, shoppings, bares, boates e terminais de ônibus. Na maioria das vezes,

os jovens se reúnem em algum destes espaços antes de partir em direção ao evento, formando

verdadeiros comboios nômades. Nestes locais, o movimento e a concentração das pessoas se preparando

para a festa já provoca a curiosidade daqueles que os observam, que se aventuram na difícil tarefa de

45 Segundo Huizinga (2001), a realização do lúdico se dá no jogo, que tem sua essência no desfrute do divertimento (prazer, agrado, alegria). Para o autor, o jogo pode ser caracterizado como “[...] uma atividade livre, conscientemente tomada como ‘não séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total” (HUIZINGA, 2001, p. 16). Ao afirmar que entre a festa e o jogo existem as mais estreitas relações, o autor aponta outra possibilidade para a manifestação do lúdico que é o domínio da festa. E ao abordar as relações entre a festa e o jogo, Huizinga (2001) percebe proximidades de determinados elementos comuns, como eliminação da vida cotidiana e o predomínio da alegria. Assim, “em resumo, a festa e o jogo têm em comum suas características principais”, ambos implicam uma eliminação da vida cotidiana (HUIZINGA, 2001, p. 25). 46 A principal função dos cambistas nesse cenário é oferecer ingressos àqueles que, por algum motivo, não tiveram a oportunidade de comprá-los antecipadamente por terem sua venda esgotada ou em decorrência das longas filas que podem vir a se formar na bilheteria do evento para a aquisição dos mesmos. Os cambistas deslocam-se por todos os espaços que são construídos do lado de fora da rave, indo desde o estacionamento que é de responsabilidade dos flanelinhas até o local onde se distribuem os vendedores ambulantes de comida e bebida. A maioria dos jovens que aporta na rave, compra seus bilhetes antecipadamente. No entanto, existem aqueles que preferem comprá-los de “cambistas”, estes costumam chegar na festa durante a madrugada. Nesta rave, os cambistas negociavam os bilhetes a R$ 45,00 (quarenta e cinco reais).

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interpretar o emaranhado de signos que habitam os corpos destes jovens. Eles carregam consigo

linguagens e símbolos da festa, alguns não convencionais para um shopping ou terminal rodoviário, mas

perfeitamente apropriados para o território da rave.

Os jovens chegam ao local do evento vestidos das mais variadas formas, requerendo um olhar

atento de quem os percebe na paisagem da cidade. Algumas mulheres calçam sandálias ou botas de cano

alto e sem salto, usam cartucheiras presas em uma das pernas, saias ou shorts curtos combinados com

blusas confeccionadas com tecidos leves e coloridos. Tudo é pensado de modo a permitir um realce das

formas do corpo, bem como proporcionar ainda uma sensação de conforto, justamente por conta do

tempo que a jovem permanecerá na festa. Já os homens, em sua maioria, optam pelas bermudas, bonés,

tênis e mochilas ou pochetes. O estilo masculino, à primeira vista, não parece ter uma característica

marcante, ele se aproxima de um estilo conhecido como surf wear. Os óculos escuros acomodados na

parte de cima da cabeça, os cordões e as pulseiras artesanais constituem adereços usados por jovens de

ambos os grupos.

Foto 3: Roupas e acessórios adotados pelas mulheres numa rave.

No que toca a estética dos jovens, pode-se observar que muitos dos participantes da festa se

identificam como praticantes, em diferentes graus, é claro, daquilo que pode ser chamado de body

modification47. A maioria tem seus corpos modificados pela pintura definitiva (tatuagens) ou pela

inserção de peças metálicas na pele (piercings). Os motivos das tatuagens e o design dos piercings são

bastante variados, alguns aderem aos desenhos ditos “tribais”, já outros preferem inscrições que contém

frases em japonês, por exemplo. Contudo, tal prática não é limitada apenas aos jovens que participam

das raves, mas pode ser percebida também ao se freqüentar outros ambientes de lazer noturno existentes

em Fortaleza.

47 A prática da body modification compreende técnicas que vão desde a tatuagem, passando pelos piercings, podendo chegar a outras, consideradas como mais extremas, tais como as marcas a ferro quente (brandings), talhos de navalhas e gravações com bisturi incandescente dentre outras.

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O cuidado com a indumentária é fundamental para a maioria dos jovens que freqüentam os

eventos de música eletrônica. Porém, poucos podem se dar ao luxo de possuir um “guarda-roupas”

exclusivo para isso. Alguns jovens são extremamente preocupados com a maneira como estão vestidos

para a rave. Cada detalhe assume uma importância ímpar nesse contexto e a roupa não deve ser repetida

com freqüência em mais de um evento consecutivo, principalmente entre as mulheres. Esse cuidado com

a aparência está relacionado à preparação para a festa e envolve uma espécie de elaboração e montagem

do próprio corpo.

Pra mim, depende da festa. Quando eu sei que a festa vai ser muito grande ou uma festa que rola uma vez perdida eu realmente escolho a roupa porque é a mesma coisa de você ir pra uma festa maior, uma festa mais importante... tipo casamento, assim, porque você sabe que aquela roupa vai chamar mais atenção. Outras vezes, eu escolho mais pelo conforto, já que eu vou passar muito tempo lá. (Fabrício, jovem entrevistado em 12 de fevereiro de 2009).

Quando eu vou pra rave eu gosto muito de comprar roupa nova, eu gosto de comprar uma roupa bem diferente. Eu só sossego, assim, quando eu vou bem diferente, com uns acessórios bem legais. Isso tudo pra mim faz parte da preparação para a festa. [...] Roupas diferentes, roupas que tem uma modelagem diferente, roupas que, digamos, com uma estampa colorida demais, psicodélicas. [...] Roupas frouxas, confortáveis, eu também olho muito isso. Isso é a preparação para a festa, eu só coloco roupa que eu acho que tá encaixando no tema da festa. Sem regras, às vezes é combinar cores que normalmente você não combinaria [...]. Eu acho que isso é também porque [...] eles sempre tentam resgatar a idéia de retornar as raízes, uma coisa mais voltada pra paz, pra espiritualização, pra mente [...]. (Ilana, jovem entrevistada em 28 de março de 2009).

Conforme se pode perceber no discurso de Ilana e outros jovens que serão, aos poucos,

apresentados ao longo deste capítulo, a estética predominante na festa se caracteriza como “psicodélica”,

algo que, segundo a jovem, tenta “resgatar a idéia de retornar as raízes, uma coisa mais voltada pra paz,

pra espiritualização, pra mente [...]”. Tal estética se aproxima do movimento hippie dos anos 1960,

porém, ao incorporar elementos presentes no universo místico-esotérico oriental, atualiza-o, dotando-o

de um novo sentido associado à cultura da música eletrônica. Contudo, vale destacar que é possível

encontrar no ambiente da festa, jovens que não se identificam com tal estética “psicodélica” e se vestem

da forma como preferem, alguns até usam camisetas de bandas de rock.

Ao afirmar “eu só coloco roupa que eu acho que tá encaixando no tema da festa”, Ilana

assinala uma espécie de “montagem do corpo” para o evento, na qual se pode “combinar cores que

normalmente não se combinam”. A montagem inicia já na escolha da roupa, quando a jovem decide ir ao

evento “bem diferente, com uns acessórios bem legais”. Essas expressões carregam a idéia de criação de

uma personagem para atuar na rave, alguém que poderá se “encaixar no tema da festa”. Assim como um

bricoleur (LEVI-STRAUSS, 1996), a jovem tenta recriar a si mesma, “sem regras”, rompendo com

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todos os imperativos existentes sobre os modos de vestir, extraindo de tudo isso uma experiência estética

à qual é conduzida pelo acaso de combinações inusitadas.

Um novo código indumentário é criado. Tal código deve estar, preferencialmente, de acordo

com os símbolos da festa: livre, “sem regras”. A estética indumentária é, em grande parte, inspirada na

própria experiência sensorial vivenciada durante a rave. A montagem deve favorecer os movimentos

corporais produzidos no ato da dança, sendo, sobretudo, confortável e “leve”. A forma como alguns

jovens chegam vestidos, causa surpresa e suscita comentários discretos tanto entre os próprios

freqüentadores que aguardam ansiosos o momento oportuno para entrar na rave, como entre aquelas

pessoas que estão envolvidas de alguma forma com o evento, tais como taxistas, seguranças e técnicos

de som e luz. A maioria destes sujeitos não compartilha os símbolos e discursos adotados pelos jovens

no microcosmo da rave, eles compõem uma fatia de indivíduos outsiders48. Quando os jovens transitam

por eles, instantaneamente são trocados cochichos, olhares de estranheza e franzimentos de testa que

expressam os modos como tais sujeitos percebem os participantes da rave.

Os jovens chegam ao local da festa de diferentes maneiras. Alguns deles desembarcam de

carros particulares, outros são trazidos por parentes mais velhos. Existem aqueles que optam por táxis. E

há ainda quem recorra ao transporte coletivo ou prefira se juntar a outros freqüentadores e alugar uma

topic para ir à festa. Os jovens que utilizam de ônibus ou alugam alguma topic para ir à rave, na maioria

das vezes se reúnem em terminais rodoviários ou shopping centers espalhados pela cidade e chegam ao

local da festa em grupos. Em alguns casos, por conta da limitação das rotas de ônibus, os jovens são

obrigados a desembarcar em paradas distantes do local da festa, tendo que seguir a pé o restante do

percurso. No caso daqueles que despendem determinada quantia de dinheiro no aluguel de uma topic, o

desembarque pode ser realizado em frente ao local do evento e, logo após descerem do veículo, os

jovens se reúnem e acordam entre si o horário ideal para o motorista contratado levá-los de volta ao

lugar de onde partiram. Geralmente, estes sujeitos que optam por ir de ônibus ou de topic para a rave,

são os primeiros a chegar na festa e os últimos a irem embora49. Eles são obrigados a sair de casa no

começo da noite e a aportar na rave mais cedo, antes da maioria dos demais freqüentadores, chegando

ainda nas primeiras horas da festa, quando o evento conta com um público reduzido.

48 O termo não é empregado aqui no sentido de “desviante” conforme foi atribuído por Howard Becker (1991), mas sim para designar um grupo de indivíduos que não participam do universo das raves da mesma forma que os jovens entrevistados durante a pesquisa. 49 Quando o número de jovens que se juntam e optam pelo aluguel de uma topic para ir à festa excede a capacidade máxima permitida de passageiros, o motorista do veículo é obrigado a empreender mais de uma viagem para poder desembarcar os jovens na festa. A seleção daqueles jovens que irão na primeira ou na segunda viagem é aleatória. Eles acordam amigavelmente a prioridade em ir e vir da rave. Há casos em que a topic volta da festa com um número inicial de jovens modificado, às vezes para mais outras para menos. Quando isto ocorre, são acertados preços diferenciados entre aqueles que utilizaram o transporte para ir e vir, os que apanharam apenas para ir e os que optaram apenas pela volta no veículo.

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Quando eu vou com uma galera que não tem carro, eu costumo chegar bem cedo na festa, tipo umas 10 ou 11 horas da noite, porque num tem condições de você pagar um táxi pra chegar na hora que você quer, né? Daí, quando acontece isso, geralmente ou eu vou de topic ou de busão mesmo com o pessoal. A galera, geralmente, se junta no terminal ou em alguma parada que seja próxima da casa de todo mundo e sai. Ou então, a gente se junta, todo mundo que vai pra festa, e decide alugar uma topic, que é muito mais limpeza. O único problema é que você fica dependendo dos horários de cada um, tanto pra chegar na festa, como pra voltar. Mas se eu for com uma galera de carro, eu chego lá por volta das 3 ou 4 horas da manhã, porque, mesmo que você chegue cedo, você só entra na festa tarde, porque geralmente atrasa, daí só começa meia-noite ou então você fica lá fora mesmo conversando com a galera e só entra, tipo 1:30/2 horas da manhã. [...] Antes da rave a gente vai pro Órbita, ou pro Mucuripe ou mesmo pro Fa Fi, se liga onde é? E de lá agente ainda vai pra outro canto às vezes e só chega na rave nos horários, de madrugada já [...]. Ou então, a gente vai passando de casa em casa pra pegar todo mundo, e sempre dá uma parada num bar perto também pra ir fazendo logo as bases pra chegar na festa já animado. Daí, quando agente chega lá, é obrigatório fazer uma média lá fora com a galera, dar um rolé e encontrar os amigos, conversar. Tu chega numa galera aqui, dá um tempo, e daqui a pouco já encontra outra ali, é assim. (Rodrigo, jovem entrevistado em 22 de janeiro de 2009).

Antes de chegar ao local que servirá de sede para a festa, os itinerários percorridos já foram

vários. Estes deslocamentos produzem uma espécie de mapa ambulante da cidade-lazer. “Não há nesse

nomadismo das galeras uma idéia de fixidez, de um espaço para cada coisa, tudo se move e se mistura”

(DIÓGENES, 2003, p. 25). Para ir de um lugar ao outro, basta haver curtição. Do lado de fora da rave

acontecem os encontros, as trocas de afeto, sorrisos e conversas informais. À medida que os jovens vão

chegando ao local da festa, os grupos vão se formando e se fragmentando. Os grupos de jovens se criam

com a mesma intensidade com que se desfiam. Entre os grupos, os assuntos giram em torno de um set ou

música em particular executada por algum dos DJs que se apresentarão no evento; ou ainda, consistem

numa espécie de avaliação acerca da estimativa de público ou análise da infra-estrutura e decoração

utilizada na festa, comparando-a às raves passadas realizadas pela mesma produtora ou que contaram

com a participação dos mesmos DJs. Ao falar sobre os movimentos empreendidos por ela e por seus

amigos durante a noite, antes do início de uma rave, uma jovem denominada aqui como Janaína

comenta:

Nunca tem destino marcado, não. Tipo, não rola de dizer assim: vamo pra tal lugar e a gente ir, porque sempre muda. Em Fortaleza é assim, tipo, quando dá de noite, os bares e as boates da cidade já começam a lotar. A gente sai com um lugar na cabeça e quando chega lá encontra uma galera e já aparece outro canto pra ir e a gente vai. A gente vai prum canto e se num tiver legal: a gente sai e já entra em outro, é assim. Eu num curto sair de casa e ir direto pra rave não, sempre rola de antes ir pro “Dragão” com a galera, dar um tempinho numa boate daquelas e só depois que a gente vai pra rave. Por isso que é difícil dizer quais são os lugares que a gente sempre passa antes de ir pra rave porque sempre muda, cada galera que vai pra rave tem um lugar diferente de preferência, mas é certeza todo mundo se encontrar lá. Por exemplo, tem uma galera que curte ir mais pro Órbita, Music Box, outros preferem mais Mucuripe, Clubbers e

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por ai vai. A gente se encontra no lado de fora mesmo e depois todo mundo entra junto. (Janaína, jovem entrevistada em 14 de janeiro de 2009).

Volatilidade e, principalmente, heterogeneidade são algumas das palavras possíveis para

expressar esses contatos que acontecem antes dos jovens cruzarem o portão de entrada da rave. Não se

pode precisar de onde eles vêm, nem por quais espaços da cidade transitaram antes de chegar ao local da

festa, mas se pode notar que a maioria deles tem o mesmo objetivo: divertir-se. Diversão é a palavra de

(des)ordem aqui. Não é uma mera diversão, não é um simples tempo de ócio, de não-trabalho, mas um

momento de lazer marcado por discursos, símbolos e práticas que constituem a “cosmologia” de um tipo

de festa, em particular. O nomadismo empreendido por estes jovens pela urbe nos momentos que

antecedem suas entradas na rave faz com que espaços sejam ressignificados conforme suas

funcionalidades na cidade-território (DIÓGENES, 2003).

Nesse sentido, seja nos calçadões da Praia do Futuro, nas margens das estradas de areia ou nos

acostamentos das vias que passam em frente a algum casarão ou sítio que dará lugar à rave, produz-se

um verdadeiro espaço de fluxos. Alguns dos personagens que compõem o cenário da festa têm suas

posições previamente demarcadas, como é o caso, por exemplo, dos flanelinhas que se propõem a

“guardar” os automóveis dos jovens que vão aproveitar a festa, dos taxistas que ficam estacionados

próximos à festa a espera de clientes, e, ainda, dos trabalhadores autônomos que se dedicam à venda de

sanduíches e bebidas em barracas ou em carros especialmente adaptados para tal finalidade, com

espécies de balcões improvisados no porta-malas onde ficam expostos seus produtos.

Tais barracas e carros são instáveis, liminares até, pois fazem parte da festa interagindo com

ela, constituem parada quase obrigatória para os jovens antes de adentrar o espaço da rave, mas não

“sobrevivem” a ela. Quando se chega ao local do evento pode-se facilmente encontrá-los instalados por

lá, mas quando se sai não, eles já têm desaparecido. Estas barracas e carros são “viscosos”50, localizam-

se sempre nas margens, entre a rua e a calçada, e empreendem uma temporária transformação do espaço

ao distribuir pelas vias da cidade destinadas ao tráfego de automóveis, bancos e mesas de plástico para

acolherem os fregueses. Ao invés do tráfego contínuo, uma (breve) permanência. Assim, é sem

dificuldades que se percebe a forma como a experiência do lugar vivenciada pelos jovens a partir dos

usos que fazem destes espaços lhe confere certa qualidade de fluidez.

50 Segundo Mary Douglas (1976), “o viscoso fica no meio do caminho entre o sólido e o líquido. É um corte transversal num processo de mudança. É instável, mas não flui. É macio, é mole, cede ao toque. Não se pode deslizar na sua superfície. Cola, é uma armadilha, agarra-se como uma sanguessuga; ataca a fronteira entre mim e ele. Os longos fios que escorrem dos meus dedos sugerem a minha própria substância escorrendo para dentro de uma poça viscosa” (DOUGLAS, 1976, p. 53). O “viscoso” habita as lacunas existentes entre os dualismos, dificultando a sua definição e categorização: é liminar, localiza-se nas margens, nos interstícios.

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Foto 4: Concentração de jovens na porta de entrada da barraca

que servirá de sede para a rave.

Foto 5: Barracas de bebidas, carros de lanche e jovens

estacionados em plena via pública.

Para os jovens que participam da festa, a rua ou o calçadão não é um mero lugar de passagem,

mas um “espaço praticado” (DE CERTEAU, 1994), repleto de sentidos, móvel. O lado de fora da rave,

além de aclimar os encontros e as misturas que acontecem antes do evento, também contribui para a

preparação dos corpos dos jovens que participarão da festa. Muitas vezes, é nos espaços que se formam

nas margens do evento – nas barraquinhas de bebidas, nos carros de lanche ou simplesmente no calçadão

– que os jovens iniciam o consumo de bebidas alcoólicas e outras substâncias psicoativas consideradas

ilícitas que atuarão numa espécie de sensibilização do corpo à dinâmica da rave, ou seja, por meio da

ingestão de bebidas alcoólicas ou de substâncias ilícitas, alguns deles preparam antecipadamente o corpo

para interagir com toda a diversidade de símbolos produzidos e adotados durante a festa. Assim, além de

bebidas alcoólicas também são comercializados e consumidos desde cigarros de maconha, até

comprimidos de ecstasy e cartelas de LSD. Há casos ainda em que o consumo de psicoativos se efetua

ainda no caminho de ida à festa, antes mesmo da chegada ao local do evento

Tipo, quando eu tô lá fora vendo a galera chegar, eu já aproveito pra ir numa daquelas barraquinhas e tomar umas duas caipirinhas. Pronto, pra mim isso é suficiente pra já entrar na festa animada, me empolgando com a música e com a galera. Tem uns amigos meus que preferem também tomar a “bala” ou o “doce” no lado de fora da festa mesmo, e quando chega lá dentro eles ficam só mesmo tentando manter a animação, sem exagero. Depende também da galera, tem gente que já prefere tomar, mas também tem gente que não toma nada. A minha prima é uma delas. Ela fica só de boa, na água, e passa a festa inteira, todinha mesmo, sem beber nada, só água e refri, acredita? Eu num agüento ficar assim não, tenho que tomar nem que seja duas caipirinhas antes de entrar. (Janaína, jovem entrevistada em 14 de janeiro de 2009).

São vários os tipos de bebidas consumidas pelos jovens antes de adentrarem o espaço da rave:

desde os drinques de “caipirinha” e garrafas de cervejas, até as latinhas de refrigerante e garrafas de

água. Durante nossa conversa, Janaína me confessou que sempre optava em consumir algum tipo de

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bebida alcoólica antes de cruzar o portão de entrada da festa por julgar elevados os preços cobrados

pelos produtos no interior do evento. Nas barracas e carros localizados no lado de fora da rave, as

cervejas, os drinques de “caipirinha” e as latinhas de refrigerante são negociadas a R$ 2,00 (dois reais) e

as garrafas de água vendidas a R$ 1,50 (um real e cinqüenta centavos). Já no espaço interno da festa,

pode-se encontrar esses mesmos produtos sendo comercializados a R$ 3,00 (três reais) e R$ 2,50 (dois

reais e cinqüenta centavos), respectivamente.

Aqueles que preferem consumir substâncias ilícitas, o fazem, geralmente, de forma discreta,

quase imperceptível. Acendem o cigarro de maconha e o fumam num espaço mais reservado, geralmente

sob a copa das árvores do calçadão da Praia do Futuro, ou põem a cartela de LSD (conhecida como

“doce” no “idioma nativo”) ou o comprimido de ecstasy (denominado “bala” na linguagem dos

participantes da rave) na palma de uma das mãos e rapidamente levam-no à boca, ingerindo-o,

geralmente, com o auxílio de alguns goles de cerveja ou de água. Após isto, basta poucos instantes para

que o corpo comece a sentir os efeitos desta preparação e se sinta pronto a cruzar o portão que dá acesso

ao interior da festa. Do lado de fora, ao observar a negociação das substâncias ilícitas, é extremamente

difícil identificar quem está vendendo e quem está comprando, pois “vendedor” e “comprador” se

confundem. Na maioria das vezes, tanto o “vendedor” como o “cliente” consomem os psicoativos juntos.

Ilana revelou-me que do lado de fora do evento, tanto as cartelas de LSD como os comprimidos de

ecstasy são comercializados por um preço inferior ao cobrado pelas mesmas substâncias no interior da

rave, algo em torno de R$ 30,00 (trinta reais) para os primeiros, e R$ 25,00 (vinte e cinco reais) para os

segundos.

Na maioria das raves, os jovens só começam a se mobilizar para entrar na festa quando, ainda

do lado de fora, escutam o som envolvente do psytrance que emana das pick-ups operadas pelos DJs que

abrem a festa. Embora boa parte deles demonstre ansiedade para cruzar o portão de entrada e aproveitar

a música executada pelos DJs que participarão do evento, nem todos os jovens sabem identificar qual

músico está se apresentando naquele instante. Geralmente, aqueles DJs que abrem a rave, apresentando-

se ainda no início da madrugada, não desfrutam do mesmo prestígio que os músicos escolhidos para

tocar nas primeiras horas do dia – principalmente durante a alvorada, momento considerado como

crucial para a dinâmica da festa.

3.2 A rave e seus interiores

Ao cruzar o portão de entrada que dá acesso à rave, tem-se a impressão de que se está

experimentado outra realidade. O portão de entrada possibilita não só o ingresso no evento, mas atua,

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principalmente, como uma espécie de “portal” para outro mundo, um mundo à parte repleto de luzes e

cores, onde tudo brilha e se move. As luzes dão um tom original à festa, meio azulado, meio futurista.

Colocar os pés numa rave desestabiliza parte do sistema sensorial de qualquer individuo.

Meu relógio marca meia noite e cinqüenta e cinco minutos. É exatamente nesse momento que os jovens começam a se mobilizar para entrar na festa. Uma longa fila se forma na porta de entrada da Biruta. Olho por entre os jovens procurando o casal que me acompanhou para vir à festa, mas não o encontro. Tanto eu como a maioria das pessoas que se encontra aqui está ansiosa para entrar na rave, porém nem todo mundo obedece a ordem de chegada na fila. Daqui do lado de fora já se pode escutar as batidas e os sons graves do psytrance. Luzes coloridas iluminam o céu nublado da Praia do Futuro. Não resisto e começo a mexer timidamente a cabeça e a bater o pé no chão marcando o ritmo da música. Pergunto a um jovem que está do meu lado se ele sabe me informar qual DJ está tocando naquele momento, mas ele responde que não e logo se cala. Percebo que mesmo insistindo na conversa ela não se desenvolverá, então nem tento comentar mais nada. Calado, só me resta esperar com paciência para entrar na festa. Enquanto isso, eu apenas observo a paisagem. A maior parte dos jovens que se encontra na fila, demonstra, através de gestos e comentários, sua impaciência em ter que esperar para adentrar o espaço da rave. Movimentos de cabeça, de pés e braços indo de um lado a outro expressam isso muito bem. Entre as conversas, prevalecem frases como: “cara, essa rave vai ‘bombar’!”, “tô doido pra ouvir o set do ‘Rica’”. [...] O DJ Inge estava no auge de sua apresentação quando entro na festa. Na entrada, misturam-se seguranças e membros da The Sound – alguns deles também atuarão como DJ na rave, como é o caso de Diego Grecchi. Na porta de entrada, entrego meu bilhete para um jovem que não trajava a mesma blusa verde limão que servia para identificar os seguranças, então logo imagino que deve ser um dos integrantes da produtora. O jovem olha detalhadamente o bilhete para certificar-se de que ele não é falso. Depois disso sou autorizado a seguir em frente num corredor improvisado, rumo aos interiores da festa. Caminho um pouco e logo sou abordado por um dos seguranças que me cumprimenta pronunciando um “boa noite” seguido de um “com licença” e, antes mesmo que eu respondesse, ele começa a me revistar. Primeiro, ele tateia os bolsos traseiros e laterais de minha calça, depois desliza suas mãos pela minha cintura e, em seguida, pelo meu tronco, por baixo de meus braços. Quando penso que a revista já havia acabado, o segurança pede ainda para que eu abra minha mochila e com uma lanterna ele vasculha cada compartimento da bolsa. Depois de muito revirar minha mochila, expondo aos demais jovens que passavam pelo corredor todos os meus pertences (uma camiseta sobressalente, uma máquina fotográfica e um gravador de voz digital, meu caderno de campo e uma lapiseira), o segurança encontra duas barras de cereal e uma caixa de bis. Havia comprado as barras e o bis para poder me alimentar durante a festa, porém o segurança as confisca, alegando que é proibida a entrada na rave com qualquer tipo de comida ou bebida. Tento argumentar a fim de demovê-lo da idéia, mas ele logo rebate dizendo: “é ordem da D. Renata”. Do meu lado, uma mulher responsável pela revista feminina, acompanhada de D. Renata – a chefe da equipe de seguranças – confisca de uma jovem um tablete de chocolate sob a mesma alegação. A garota fica transtornada pelo modo arbitrário com que a segurança arranca o alimento de suas mãos. Depois de todo o constrangimento experimentado durante a revista, finalmente sou liberado pelo segurança para aproveitar a festa. Sigo em frente, caminho mais um pouco e logo desemboco num mundo extraordinário, repleto de luzes e cores. É impossível resistir e não olhar em volta maravilhado. Parece que todas as coisas brilham e se movem. Sinto que minha pupila se dilata não apenas pelo simples fato da pouca luminosidade no local, mas, principalmente, para poder captar tudo aquilo que se apresenta diante de mim. E com a pupila, também se “dilata” meu

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nariz e ouvido para sentir odores e sons. Não é por acaso que alguns jovens a chamam de “neura”: “rave é neura”. (DIÁRIO DE CAMPO, 2008).

O estranhamento inicial quando se põe os pés numa rave é algo comum entre aqueles jovens

considerados “neófitos”, ou seja, aqueles freqüentadores novatos que ainda não compartilham o

significado da maioria dos símbolos adotados na festa. Para eles, adentrar o espaço da rave requer o

desenvolvimento de uma sensibilidade maior a fim de compreender melhor tudo o que se passa ao seu

redor. Uma das falas que colhi durante a pesquisa de campo, expressa bem esse sentimento de

estranheza. Rodrigo contou-me sobre sua primeira experiência numa rave com tamanha riqueza de

detalhes do ambiente da festa que qualquer antropólogo ou sociólogo se admiraria.

[...] eu já curtia música eletrônica, mas não conhecia a música que é tocada nas raves, o psytrance. Eu só conhecia o techno, aquela coisa mais de boate, tipo, drum´n bass. Ai, do nada, numa sexta-feira, tava sem fazer nada na faculdade, ai uma amiga minha me ligou e disse: “tu tá fazendo o que?”, e eu: “nada”, então: “bora pra rave comigo?”, e eu: “bora!”. Ai a gente foi. Foi aquela coisa que, querendo ou não, porque todo mundo: “rave é lugar de drogas, sexo, prostituição”, só que daí eu cheguei lá e olhei e: “valha, cadê as drogas? E o sexo?”. Tu olha e tu se espanta pela energia do local, pela pessoa que tá pulando, tu olha e tá todo mundo se divertindo, a galera sorrindo. A batida da música é boa, você entra na festa, olha ao redor da festa e já dá aquela coisa, já dá vontade de você pular, de você dançar. Era uma festa completamente diferente, eu não esperava nada daquilo. [...] Eu olhava assim pra perto do palco e tinha uns desenhos com o fundo branco. O desenho era uma árvore e os galhos da árvore iam secando nas pontas e tinham outros desenhos. A iluminação era muito colorida, tinha uma tenda roxo com vermelho, eu me lembro ainda. Do lado do palco, lá na Lagoa da Precabura, tinha um navio pirata, ai eu olhava e tava todo mundo dançando em cima do navio. Tinha uma galera fazendo malabares. [...] A primeira vez quando você vai, você chega brilha assim os olhos quando vê tudo aquilo porque também você nunca havia visto nada parecido antes. Porque, tipo, quando eu tava lá fora esperando pra entrar, não tinha nenhuma novidade, parecia uma festa normal, mas quando você começa a ouvir o DJ tocando, já dá aquela vontade de entrar e daí quando você entra, pronto, é outro mundo. (Rodrigo, jovem entrevistado em 22 de janeiro de 2009).

Na porta de entrada do evento, misturam-se organizadores e seguranças. Há sempre dois

seguranças masculinos para somente uma segurança feminina. Alguns membros dos núcleos ou

produtoras responsáveis pela realização da festa ficam na porta de entrada do evento não só para

observar o fluxo de jovens que chegam ao local da rave, mas também para fiscalizar o trabalho dos

seguranças e impedi-los de facilitar a entrada daquelas pessoas que não possuem ingresso51. Aos

seguranças, compete somente a revista para impedir que alguém entre com comida, bebida ou, na pior

das hipóteses, com alguma arma. Porém, nem sempre todo o aparato montado na porta de entrada da

festa é suficiente para impedir os jovens de entrar sem pagar, ou de levar comida ou bebida consigo. 51 As táticas encontradas pelos jovens para entrar na festa sem ingresso são várias. As mais recorrentes são aquelas que se beneficiam dos laços de amizade que o jovem cria com o segurança, a partir de experiências passadas em eventos anteriores, ou mediante o pagamento de propinas em dinheiro aos seguranças inferiores ao valor cobrado na bilheteria pelo ingresso para participar da festa.

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Danilo comenta sobre um evento em que ele teve que “pular” o muro para poder entrar na festa sem

pagar:

[...] eu fui pro Growling [Machines], o último Growling [Machines] ai que teve. Por sinal, eu ainda entrei pulando, tava na curtição já, ai eu cheguei pro amigo meu: “vou pro Grownling, vou pro Growling!”. E quando chegou lá no Grownling, eu: “caralho vei, como é que eu vou fazer pra entrar nessa porra?”. Pulei! Pulei e encontrei todo mundo lá, o segurança chegou e queria me botar pra fora e eu: “não, segurança e tal, qualé, libera ai e num sei o que”. O cara me deixou lá e eu fiquei [...]. (Danilo, jovem entrevistado em 13 de abril de 2009).

Nessa festa, o jovem conseguiu convencer o segurança a deixá-lo ficar na rave sem pagar pelo

ingresso. Mas nem sempre é assim, raras vezes se consegue obter o mesmo sucesso de Danilo,

justamente porque são várias as estratégias que os organizadores das festas empreendem para evitar que

jovens e seguranças negociem entre si outras formas para adentrar na festa que não seja por meio da

compra de bilhete para o evento. Segundo Pedro,

Quase todas as festas que rolam aqui a galera contrata a mesma empresa de segurança, do Léo e da Renata. Os próprios seguranças já estão acostumados com o tipo de evento, então eles já estão cheios de manias, de espertezas, do tipo de deixar gente entrar na festa depois de determinado horário. O cara já conhece o segurança, o ingresso é 30 reais e o cara chega lá com 20 e fala assim pro segurança: “cara, deixa eu entrar ai e tal, toma aqui”. [...] Já não é uma galera tão confiável por conta de, tipo, eles já terem a noção de como é que acontece todo o evento, de como é que a galera se comporta, então, tipo, eles já tão muito espertos. Por causa disso, a gente sempre fica ali, no pé deles, do lado, na entrada mesmo ou observando o trabalho deles durante a festa, às vezes trabalhando junto com eles. (Pedro, jovem entrevistado em 23 de maio de 2009).

Há um rígido controle por parte dos organizadores para poder regular o trabalho dos

seguranças durante a festa. Em alguns eventos, pude observar a Renata (uma das proprietárias da

empresa contratada para garantir a segurança da maioria das festas que acontecem em Fortaleza e

cidades vizinhas) transitando pelos vários espaços da festa, sempre acompanhada de dois ou três

seguranças que a seguiam de perto lhe auxiliando na fiscalização do trabalho dos colegas.

3.2.1 O chill out

Um dos primeiros espaços a ser procurado pelos jovens ao cruzarem o portão de entrada da

festa é o chill out. Às vezes, o espaço é também o mais disputado durante o período da noite. É nele que

os jovens reencontram os amigos e se lançam às conversas informais, descompromissadas, travadas

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durante a madrugada. Eles aproveitam o chill out também para poupar as energias que serão gastas ao

amanhecer.

Depois de passado o “impacto” da aterrissagem na festa, decido transitar por entre seus vários espaços. A primeira impressão que tenho é que a rave, no idioma dos jovens, não está “bombando”. O evento não está lotado, a Biruta não está completamente ocupada e isto significa que a festa ainda não rendeu o seu máximo. Há espaços vazios a serem povoados pelos jovens, pode-se circular pela festa com facilidade, sem precisar se preocupar em ter que desviar o tempo todo das pessoas para não esbarrar nelas. Durante meu passeio encontro o casal que me acompanhou até a festa interagindo com outras duas garotas num espaço mais reservado. Ao me aproximar deles, tratei logo de me inserir na conversa. O local onde eles estavam fica afastado do palco onde os DJs principais se apresentam e é conhecido no microcosmo das raves como chill out, sendo dominado também por alguns jovens como lounge. O lugar é bem aconchegante, com tapetes coloridos espalhados por todos os lados. Sua iluminação não é tão intensa como nos outros espaços da rave. O aroma é formado por uma mistura de cheiros, dentre eles sinto o da nicotina e o da maconha. Olho para o lado e vejo um grupo de homens e mulheres compartilhando um beck (cigarro de maconha). O cigarro passa de mão em mão e cada um dos jovens aproveita sua vez para dar mais de um trago nele. Nesta festa, especificamente, não há nenhum DJ se apresentado no chill out. O próprio espaço reservado para abrigar o chill out deixa a desejar por não ser tão amplo, diferente de outras raves... (DIÁRIO DE CAMPO, 2008)

Segundo as histórias contadas sobre as raves na Inglaterra, o chill out era preferido por aqueles

participantes cujo fôlego ia além das horas de diversão que a noite podia oferecer. O espaço era

percebido como uma alternativa para depois da festa, estendendo a experiência da rave, quando ainda

restava no corpo alguma energia para que o indivíduo pudesse se manter em pé por mais alguns

instantes. O chill out era, assim, tido pelos participantes da rave como uma forma de prolongar a duração

da festa, uma espécie de after party: uma festa para depois da festa.

Com o passar do tempo, o chill out conquistou novas atribuições na dinâmica da rave. O

espaço já não atua mais como uma maneira de prolongar a duração da festa, mas integrou-se ao próprio

tempo dela. Logo após a entrada na festa, alguns jovens já se encaminham para lá. Chegando ao chill

out, além de puffs, panos fluorescentes que brilham no escuro, tapetes, esteiras e mandalas coloridas,

pode-se encontrar caixas de som, pick-ups, mixers, sintetizadores, controladores e notebooks sendo

operados por DJs. A iluminação deste espaço é menos intensa do que aquela utilizada, por exemplo, na

pista principal, e a música que se ouve tem um ritmo menos frenético também.

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Foto 6: DJ tocando no início da festa no chill out.

Foto 7: DJ e freqüentadores interagindo no chill out.

O chill out parece ser um local onde se pode “descansar” da festa, onde tudo acontece num

ritmo menor. Lá, tudo se acalma. Os objetos e as pessoas parecem não se movimentar com a mesma

velocidade alucinante da rave. Nesse espaço, pode-se ouvir desde gêneros musicais que atravessam o

ambient, deep house, acid jazz e DUB até bossa nova e mantras indianos com suas melodias relaxantes.

Todos estes sons soam de forma bastante agradável aos ouvidos que querem “descansar” por alguns

instantes dos graves cortantes e das batidas rápidas do psytrance. Para Pedro, o chill out é uma espécie

de:

[...] pedacinho do céu, sua função dentro da festa é primordial. É impossível imaginar uma festa boa, que tenha boas atrações, e que não conte com o espaço do chill out, da música lounge pra fazer a galera relaxar. Eu faço festas com o pessoal há 4 anos já e em todas elas a gente sempre coloca um espaço assim, pra galera relaxar mesmo. Nos grandes festivais que tem por ai, tipo na Europa, os chill outs são coisa de sonho, tem comida indiana, você pode praticar ioga, é fantástico. (Pedro, jovem entrevistado em 23 de maio de 2009).

A decoração do espaço segue a mesma orientação estética do restante da rave. Em alguns

eventos, ele é ornado com desenhos de seres extraterrestres, estrelas, planetas e divindades hindus, como

Shiva e Ganesha. O chill out não é só o lugar reservado ao “descanso” na dinâmica da festa, mas

também aclimata os encontros. Nele, os jovens podem conversar de forma mais relaxada, sem precisar

ter que falar alto junto ao ouvido do outro por conta do elevado volume da música executada na pista

principal. Os assuntos variam, nem sempre estão relacionados ao universo da música eletrônica. Os

jovens alternam seus movimentos entre a pista principal e o chill out durante a rave. Eles não aproveitam

a festa em um mesmo ambiente, mas preferem circular pelos vários espaços que a compõe. É comum ver

jovens que estavam instantes atrás no chill out, deslocarem-se em direção à pista principal e depois

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retornarem para o chill out para continuar vivenciando todas as experiências que a festa pode lhes

oferecer, aproveitando-a ao máximo.

Mesmo no interior da rave, a itinerância e a mobilidade continuam sendo as palavras de

(des)ordem entre os jovens. Além das conversas, o chill out também abriga aqueles jovens que chegam

cedo à festa e por conta disso buscam se poupar, reservando suas energias para extravasá-las somente no

início da manhã. Muitos deles aproveitam o espaço para tirar breves cochilos. Não é por acaso que em

alguns momentos durante a noite, o espaço do chill out chega a ficar mais lotado do que a pista principal.

Alguns jovens aproveitam o ambiente relaxado do chill out para, além de “descansarem” da

festa e interagirem uns com os outros, ingerirem substâncias psicoativas. Por conta da atmosfera criada

neste espaço sugerir um clima de relaxamento, dentre os psicoativos consumidos nele destaca-se a

nicotina e a maconha, substâncias que conferem uma sensação de calma a quem as consome. Seus

odores característicos se espalham pelo ar. O consumo, principalmente, da maconha neste espaço nunca

se dá de forma isolada, mas sempre em grupo. Além do consumo, também há o comércio, não só da

maconha, mas de outras substâncias consumidas durante a festa, como as cartelas de LSD e os

comprimidos de ecstasy.

Os DJs que se apresentam no espaço do chill out nem sempre desfrutam do mesmo prestígio

daqueles que tocam na pista principal. A maioria deles está iniciando sua carreira musical e aproveita o

espaço para divulgar seu trabalho ainda em fase inicial. Porém há DJs que possuem projetos paralelos,

com estilos diferenciados de músicas para ambos os espaços. Um exemplo que posso citar é o do DJ e

produtor musical argentino, mundialmente famoso, Yagé. Durante a realização da quarta edição da

Entrance, Yagé tanto se apresentou no palco principal ao amanhecer, como no chill out, já no final da

manhã. No momento de sua apresentação, o espaço contou com uma presença maciça de jovens,

superando o público que prestigiava as atrações que se apresentavam no palco principal do evento. A

performance do DJ no chill out contou com o auxílio de uma flautista e de um percusionista que tocou

berimbau e depois bongô, criando um som híbrido que misturava a música eletrônica com a música

acústica.

Junto com o line up divulgando os DJs que se apresentarão na pista principal, os núcleos ou

produtoras responsáveis pela organização do evento anunciam também a seqüência de músicos que irão

tocar no chill out. A maioria das apresentações de ambos os grupos de artistas tem duração semelhante,

variando de 1 a 2 horas para cada músico. Assim, percebe-se o modo como pista principal e chill out

interagem.

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3.2.2 A pista principal

Visualmente, a pista principal é, com certeza, o espaço mais atraente da festa. Também

chamada de dance floor, ela é decorada com filtros dos sonhos e lycras coloridas para proporcionar

sombra aos jovens que participam da festa durante o dia. Toda esta estrutura composta, muitas vezes, de

tecido e bambu recebe o nome de tenda. Tanto as lycras como os filtros brilham ao refletirem a luz negra

que ilumina o espaço durante a noite, produzindo um efeito inebriante, movendo-se a cada sopro do

vento. Para este tipo de decoração, dá-se o nome de flúor. É aconselhável também que se espalhem

lixeiras pelo local para receber copos de plástico, garrafas de água, pontas de cigarro, latinhas de cerveja

e de refrigerante, dentre outras coisas que, depois de consumidas, são abandonadas pelo espaço da festa.

Em algumas raves, as lixeiras brilham durante a noite compondo parte da decoração do evento. Tal

atitude indica que há entre os organizadores, certa preocupação com o meio ambiente. Pode-se observar

no microcosmo das festas a existência de um discurso ecológico que prega a preservação da natureza

como algo a ser praticado por todos que habitam o espaço da rave. No entanto, nem sempre esse

discurso surte efeito entre os participantes, prova disso é o chão da rave logo após a festa, repleto de

latas de cerveja, garrafas de água, pontas de cigarro etc.

A pista de dança, geralmente, é decorada no mesmo dia da festa, instantes antes de seu início.

Profissionais encarregados pelo equipamento de som e de iluminação começam a desembarcar toda a

parafernália ainda durante o dia. Do lado de fora, instala-se o gerador elétrico para abastecer o evento

caso seja preciso. À medida que os técnicos vão montando e testando os equipamentos, outros

profissionais responsáveis pela decoração estendem lycras, filtros dos sonhos, carrancas, mandalas e os

distribuem aleatoriamente pelos espaços da festa.

Foto 8: Caixas de som que serão utilizadas na rave sendo desembarcadas de um caminhão.

Foto 9: Organização da decoração da festa.

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Enquanto um dos membros de um grupo de decoração preparava a pista principal para uma

festa, atando a ponta de um painel que tinha a figura do deus hindu Shiva desenhada nele, falou-me o

seguinte:

[...] Um ponto importante em uma festa é a decoração. Ela cria e transforma o ambiente. É importante deixar o ambiente o mais psicodélico possível, porque você tem que transformar ele em algo completamente diferente do que a gente tá acostumado a ver no dia-a-dia. Assim que a luz negra bate nesses painéis produz o efeito flúor, que faz a galera viajar nas cores. (DIÁRIO DE CAMPO, 2008).

Tudo é preparado com bastante cuidado. Alguns jovens consideram a decoração da pista

principal, juntamente com a música tocada pelo DJ, um dos elementos mais importantes numa rave.

Durante a festa, ouve-se com freqüência comentários elogiosos ou depreciativos acerca de sua

decoração, tais como este que pude registrar em meu caderno de campo durante uma conversa informal

com um dos participantes da Liquid Sky realizada no dia 06 de setembro de 2008, no Ytacaranha Parque:

[...] na última Ultra Vip fiquei de cara com o nível da decoração. O Paulo se garantiu, conseguiu deixar aquela festa perfeita. Uma das coisas que mais me atraiu quando comecei a freqüentar rave aqui em Fortaleza, é que tanto um bom som, como um pico irado é que fazem que uma festa fique boa. Nesses dois pontos o cenário atual aqui de Fortaleza tá muito bom, promete. (DIÁRIO DE CAMPO, 2008).

A beleza da decoração é imprescindível ao ambiente da rave. É ela a principal responsável por

tornar a festa mais atraente para os jovens. Para ornamentar uma rave de maneira “adequada”, é preciso

levar em consideração seu tema. Os temas que irão orientar a estética da festa remetem, na maioria das

vezes, ao universo místico-esotérico oriental, fazendo alusão, principalmente, a elementos presentes no

hinduismo. Há casos ainda em que se recorre ao campo da mitologia, utilizando figuras como elfos e

duendes. A escolha do tema se dá a partir de um acordo comum entre os membros do grupo organizador

responsável pela realização do evento.

Sempre que a gente vai fazer uma festa, todo mundo se reúne pra decidir o tema do evento. No nosso caso, isso sempre aconteceu de uma maneira bem... pode até parecer meio bobagem, mas sempre aconteceu de uma maneira meio que mágica em relação a gente. Praticamente as temáticas nos escolheram. A primeira a gente chamou de “Portais da Percepção”, que são, tipo, portais de abertura dos nossos limites. A gente trabalhou esta temática dos portais da percepção. A outra foi o “Equinócio de Primavera”, que a data coincidiu com o equinócio de primavera, que são dois dias no ano que acontecem na primavera, quando o dia tem a mesma duração da noite, exatamente 12 horas. Ai foi justamente no dia que a gente tinha escolhido pra acontecer a festa. Depois a gente fez o “Portais da Percepção II”, fizemos essa do “Kosmonoises”. Tipo, nessa do “Kosmonoises” a gente tava meio perdido com relação a temática, ai um amigo da gente veio com um livro pra cá e juntou com umas coisas do Calendário Maia e a data coincidia, mais ou menos, com uma data la cabalística,

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tinha acontecido o surgimento de umas estrelas, um lance bem, assim, místico. Assim, é tudo documentado, a gente tem todo esse material em livro. Apesar da gente ter o interesse em fazer o evento, essas temáticas apareceram junto com a gente. Num é aquela coisa, tipo: “vamo lá, vamo fazer aqui. A próxima edição vai ser a... Kosmonoises, tal”. Não, nunca foi assim. É uma coisa mágica de certa forma, surgiram pra gente. Foram colocadas pra gente, a gente pensa dessa forma. (Pedro, jovem entrevistado em 23 de maio de 2009).

Nem sempre o tema da festa é escolhido de forma instrumental entre os integrantes de um

núcleo ou produtora, há vezes em que ele surge de uma maneira “mística”, segundo a descrição de

Pedro. Toda essa atividade vai encontrar sua fundamentação em sistemas de pensamento e religiões

orientais, em “cosmologias” ameríndias e toda a sorte de “correntes espiritualistas”52; e não poucas vezes

em todos eles concomitantemente, resultando em surpreendentes hibridismos. Como exemplo disso,

posso citar o nome de três festas que pude freqüentar durante a pesquisa de campo: Magic Lagoon II,

Entrance Kosmonoises e Shiva Attack. No flyer de divulgação desta última, anunciava-se: “decoração

inédita em Fortaleza”, que privilegiava a divindade hindu que dava nome ao evento: Shiva. Na

decoração utilizada na segunda edição da Magic Lagoon, havia mandalas e carrancas com desenhos

indígenas espalhadas por todos os espaços da festa, e na quarta edição da Entrance, intitulada

Kosmonoises, o tema buscava ressaltar a “influência cósmica sobre nossa mente e corpo” (descrição

impressa no material de divulgação confeccionado para o evento). Com relação a decoração produzida

especialmente para esta última, um de seus organizadores comentou:

Na edição passada da Entrance a gente fez a Kosmonoises, então a gente trabalhou muito preto, muito raio laser, muita coisa do espaço sideral. [...] Construímos uma tenda de 9 metros de altura e colocamos uma lycra branca esticada de, mais ou menos, uns 4 metros. Na metade da tenda, a gente colocou 4 projetores, 1 em cada quadrante [...]. A gente pegou várias imagens da Discovery de constelações, formação de galáxias, planetas, explosões espaciais, surgimento de estrelas e fez um vídeo fenomenal. Programamos os 4 projetores pra ficar fazendo essa imagem no teto, durante a noite toda da festa. Tu olhava pra cima e via o espaço todo na tua cabeça, se mexendo, os planetas passando, o sol, várias coisas. (DIÁRIO DE CAMPO, 2009)53.

Além de imagens de astros e planetas projetadas durante a festa, podia-se visualizar,

caminhando pelos seus espaços, painéis contendo desenhos de aliens e miniaturas de planetas que

acendiam luzes coloridas e se movimentavam sobre a cabeça dos participantes durante todo o evento,

dando a sensação de que ali era possível experimentar outra dimensão do universo (e consequentemente,

da existência). A pista principal foi denominada de “Pista Sol”, e o espaço reservado ao descanso e

52 O termo “correntes espiritualistas” é utilizado aqui como forma de congregar todo o vasto sistema de idéias e argumentos transcendentais que tentam explicar a vida a partir da existência de uma energia que seja superior a matéria. 53 Conversei informalmente com o jovem enquanto entrevistava outro membro do núcleo em um estúdio de tatuagem. Considerei a conversa bastante relevante e decidi registrá-la em meu caderno de campo.

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relaxamento dos jovens (chill out) recebeu o nome de “Pista Lua”. Segundo um dos flyers da Entrance,

em ambas as pistas “brilharam astros e estrelas da música eletrônica psicodélica”.

De forma semelhante à decoração, o local onde será realizada a rave é de suma importância

não só para os participantes da festa, mas também para seus organizadores. Quanto mais afastado dos

centros urbanos for o local do evento, maior a possibilidade de sucesso da festa. Conversando com

freqüentadores e organizadores, pude perceber como a escolha do local se mostra como algo que é

decisivo para a dinâmica da rave. Os lugares que abrigam as festas são, geralmente, afastados das

atividades cotidianas da cidade e, em alguns casos, devem ser também de difícil acesso.

Durante o percurso de ida, é comum você enfrentar situações de atoleiro, carros parados no

acostamento com o pneu furado, ou ainda, se deparar com um verdadeiro comboio formado, às vezes,

por 5 ou 6 veículos lotados de jovens, todos perdidos tentando localizar o “pico” da rave. Algumas

estradas que dão acesso aos locais que servirão de sede à festa, são estreitas, pedregosas e sem nenhuma

sinalização. Nelas, requere-se toda a destreza do condutor.

[...] Finalmente, após quase 20 min. rodando sem rumo conseguimos encontrar outros dois carros que também estavam indo à Magic Lagoon II. Tanto o estilo de seus passageiros, como a música que estava tocando no carro denunciava isso. Não pude identificar com precisão de quem era a música, mas me pareceu ser do Astrix. Para nossa desilusão (a minha e a de meus acompanhantes), eles também não sabiam onde era a festa, estavam perdidos que nem a gente. O jeito foi um ir seguindo o outro. Eu decidi ir na frente. A estrada era muito estreita, com espaço para apenas um carro. As árvores localizadas à beira da estrada pareciam querer invadir nosso caminho e nos impedir de chegar na festa. Era preciso ter cuidado tanto para não perder o retrovisor, como para não levar uma ‘porrada’ de seus galhos. Pensei até em desistir, mas não podia mais, principalmente pelo compromisso que havia assumido com meus acompanhantes. Em alguns trechos era preciso acelerar para não ficar na areia frouxa. A cada curva fechada pairava o medo de vir um carro na contramão e ocorrer uma colisão. Era notória minha tensão. No carro, ninguém conversava, todos apenas observavam atentos a sinuosidade da estrada escura, iluminada apenas pelos faróis dos veículos. Quando olhei pelo retrovisor, vi que a fila havia aumentado. Ao invés de três, éramos cinco agora. Minha responsabilidade havia aumentado também. Alguns metros adiante notei, à nossa direita, próximo a uma bifurcação, um homem de boné acenando com o celular, nos chamando. Ele nos indica o restante do caminho e nos alivia dizendo que está perto. Seguimos um pouco mais e outro homem também de boné, bermuda e chinelos de dedo, se aproxima e avisa que podemos deixar o carro ali, no meio do nada, ao relento, pagando 10 reais adiantado. Ficamos receosos, mas concordamos. A festa estava ocorrendo num local distante, aproximadamente, 200 metros de onde deixamos o carro. O sujeito que se aproximou da gente e nos cobrou adiantado pelo estacionamento avisou que não havia nenhum local mais próximo da festa que pudéssemos deixar o carro. Desde o estacionamento já dava para ouvir a música. Nunca tinha vivenciado algo parecido antes para ir a uma festa me ‘divertir’. (DIÁRIO DE CAMPO, 2008).

Além dessa busca por um afastamento do cotidiano da cidade, vale ressaltar também que a

escolha do local a ser realizada a rave não está só relacionada aos prejuízos sonoros que o evento pode

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trazer à vizinhança, mas, principalmente, à existência do discurso ecológico que permeia sua

“cosmologia”. A valorização da natureza compõe um dos elementos centrais da heterogênea e

fragmentada carga discursiva produzida no microcosmo das raves. Os locais que servirão de sede ao

evento devem se situar próximos às mais variadas belezas naturais. Assim, para que a festa seja

considerada boa pelos jovens, o “pico” tem que ser num “lugar paradisíaco”, afastado de tudo. Os

lugares devem impressionar os sentidos e oferecer um cenário “ideal” para a realização da festa,

proporcionando uma sensação de distanciamento da experiência ordinária, da vida cotidiana.

A natureza é tida como “pano de fundo” para este tipo de festa. A pista de dança, por exemplo,

é localizada de tal forma que se possa contemplar as belezas naturais do lugar proposto. O dance floor de

uma rave desemboca no palco onde se apresentam os DJs principais. De forma semelhante à pista

principal, o palco também é especialmente preparado para o evento, porém com uma diferença: nem

todos os participantes da festa são “autorizados” a habitá-lo. É um lugar reservado somente aos músicos

e àquelas pessoas envolvidas na produção da rave. Durante as apresentações dos DJs, aqueles jovens que

estão trabalhando na organização da festa sobem ao palco para realizar fotografias do músico e do

público que se encontra no dance floor. Antes de montar o palco principal, analisa-se todo o território do

lugar que servirá de sede para o evento, escolhendo aquela região mais plana. Depois disso, estuda-se a

melhor maneira de posicioná-lo, preferindo-se, geralmente, deixá-lo de frente para alguma das paisagens

naturais que compõem o local da festa.

A preparação da estrutura de uma rave requer uma série de cuidados. Pedro nos explicita

alguns dos vários fatores que devem ser levados em consideração durante esse empreendimento:

Como são “festas open air” (festas ao ar livre), então, de acordo com o local é [preciso] uma tenda principal que dê sombra, onde vai ficar a galera de frente pro palco [...]. É a pista de dança. Daí, geralmente, ou faz ela de box truck, que é aquela estrutura quadradinha que vai se encaixando, aquelas torrezinhas de ferro que vai montando. Pronto, geralmente ou é disso ai, que se aluga nessas empresas de produção de eventos [...], ou então tu mesmo faz. A gente já chegou a fazer de dois jeitos. A gente já chegou a fazer evento, tipo, em um sítio ali perto da entrada da Lagoa da Precabura, e lá era grama, daí a gente fez uma tenda toda de bambu, sem utilizar nenhum tipo de prego, nem parafuso. O parafuso era feito do próprio bambu, quem fez foi um cara que trabalha com a gente e ele mexe com permacultura. Ele montou essa tenda lá pra gente sem usar um prego, sem usar um arame. A permacultura é, tipo, você utilizar todo tipo de material orgânico, agredir o meio ambiente o mínimo possível. Uma tenda dessa de bambu não vai ta utilizando nada industrializado. (Pedro, jovem entrevistado em 23 de maio de 2009).

Durante a etapa de montagem do palco principal de uma rave, não há um único modelo a ser

seguido. Sua estrutura varia conforme o terreno do lugar que servirá de sede para a festa, o gosto e os

discursos adotados por cada núcleo ou produtora. Existem aqueles palcos que possuem estrutura de

metal, porém há outros que são montados a partir da utilização de materiais orgânicos, como, por

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exemplo, bambus e cordões, evitando a utilização de pregos ou outras coisas do tipo (tal atividade

denomina-se como permacultura). Nas laterais do palco, ficam erguidas as caixas, conhecidas como

sound system, que vão ecoar o som das batidas do psytrance por todos os espaços da festa. Geralmente,

estas caixas ficam suspensas, sendo presas por correntes a uma estrutura de metal semelhante a uma

torre, denominada como box truck, especialmente projetada para poder suportar o peso do equipamento.

A potência do sound system de uma rave gira em torno de 80.000 watts reais. Todo o equipamento de

som utilizado é alugado por seus organizadores que recorrem a empresas especializadas em produção de

eventos de maneira geral.

Em algumas festas, ficam instalados ainda, na parte superior do palco, os canhões de luz que se

movimentam aleatoriamente em todas as direções. Porém nem todas as festas contam com eles. Alguns

grupos organizadores preferem não os utilizar em seus eventos por considerá-los dispensáveis à estética

e ao discurso da rave. Para eles, basta a luz negra sobre as lycras coloridas para dar o tom “psicodélico”

da festa. Além de canhões de luz, também se pode encontrar telões que projetam imagens relacionadas

aos símbolos adotados como temática do evento. A projeção dessas imagens segue, na maior parte das

vezes, o ritmo da música executada pelo DJ que se apresenta naquele instante no palco principal. Como

exemplo desse tipo de estrutura, lembro de uma festa que ocorreu no dia 30 de agosto de 2008. O evento

intitulava-se Zonasound e foi organizado por duas produtoras locais: Zonavibe e The Sound54. No palco

onde se apresentavam os DJs principais, dois telões posicionados em cada um dos lados do palco

exibiam imagens multicoloridas de pessoas transformando-se em fractais que se formavam, deformavam

e voltavam a se formar com uma velocidade surpreendente.

Além de cabos, mixers, pick-ups, notebooks, sintetizadores e canhões de iluminação, o palco

também conta com outros adornos que não só enfeitam-no, como também o transformam num espaço

temporariamente inviolável. Durante a apresentação de um DJ, somente ele pode manipular os objetos e

operar os equipamentos que se encontram ali. Tudo é posto ou pelo próprio DJ ou pelos jovens

envolvidos na tarefa de organização da festa. Dentre os vários acessórios que são postos em cima do

palco durante as performances dos músicos, posso citar porta-retratos, miniaturas de cogumelos,

pequenas estátuas de deuses hindus, extraterrestres de brinquedo, incensos, copos descartáveis e latinhas

de cerveja. Tudo devidamente distribuído sobre uma espécie de mesa, geralmente, coberta com mandalas

coloridas que brilham durante a noite, sob o efeito da luz negra.

54 Inicialmente, a festa estava programada para se realizar num haras situado no município de Eusébio, localizado a, aproximadamente, 25km de Fortaleza, num lugar chamado “Haras Sant´Ana”. Porém, por conta de uma liminar movida por um promotor local, proibindo a realização da festa no município sob a alegação de que o evento acarretaria danos para toda a vizinhança relacionados à poluição sonora, a festa foi realizada em Aquiraz, num lugar conhecido como “Mansão da Prainha”.

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Foto 10: DJ Goa Gil operando seu equipamento durante sua passagem pela cena local.

Foto 11: DJ Bizzare Contact interagindo com o público em apresentação na Magic Lagoon.

Cada DJ possui, em média, cerca de 60 minutos para sua apresentação, porém esse tempo pode

variar para mais, chegando a durar até 120 minutos, conforme o prestígio do músico na cena. No

repertório dos DJs que tocam durante a noite, figuram os subgêneros do psytrance conhecidos como

dark e full on night, uma subdivisão do estilo conhecido como full on. Tais vertentes do psytrance se

diferenciam tanto musicalmente, como discursivamente de outros subgêneros que são executados pelos

DJs durante a manhã. O dark é caracterizado como um tipo de música eletrônica mais rápida, seu ritmo

varia entre 145 e 170 bpm (batidas por minuto), possui os sons graves definidos, batidas bem marcadas

(conhecidas como kicks na linguagem dos DJs) e utiliza de melodias que reproduzem sons de animais,

tambores rituais e gritos de pessoas dentre outros efeitos. Já o full on night conta com um reduzido

número de melodias e efeitos, porém mantém os sons graves, as batidas “pesadas” e o ritmo acelerado,

bastante difícil de dançar. As músicas de ambos os estilos seguem um tempo retilíneo e obedecem ao

compasso quaternário55 marcado pelos kicks.

Talvez por conta do clima “pesado” gerado na pista de dança a partir da execução do full on

night e do dark, a maioria dos jovens prefira passar as primeiras horas da festa dispersos pelo seu espaço,

optando pelo chill out ao invés do dance floor. A rave só começa realmente a lotar a partir das 3 ou 4

horas da manhã. É exatamente nesse momento que o repertório dos DJs começa a se modificar. Outras

vertentes do psytrance passam a ser incorporadas à apresentação dos músicos, tais como o minimal e o

progressive (mais conhecido entre os jovens como prog). Ambos são definidos no interior da cena como

um estilo “melódico e grooveado”, seu ritmo é bem menos acelerado e suas batidas variam entre 125 e

128 bpm. Os dois estilos têm como característica o fato de possuírem uma quantidade menor de efeitos

55 Na notação musical ocidental, um compasso é uma forma de dividir quantizadamente em grupos os sons de uma composição musical, com base em pulsos e repousos. Pode-se dizer que num compasso quaternário, cada batida corresponde a marcação de um tempo.

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em suas composições. No caso do prog, à medida que a música é executada pelo DJ mais elementos vão

sendo eletronicamente adicionados a ela.

É como se fosse uma banda, ai entra o violino, depois entra a bateria e depois entra a corneta [...]. O prog vai mudando de acordo com o decorrer da música e o legal é isso, que você vai se ligando no que é que tá entrando, o que é que tá mudando, qual é o rumo que a música tá tomando, entendeu? Disso daí é que vai tirar todas as outras coisas, a dança, o movimento... tudo isso porque você vai se mexendo de acordo com a música, o que o cara for encaixando, você também vai se encaixando no resto e fazendo sua dança. Prog você vê que é limpo. Progressivo: o nome já diz, ele vai começando e depois crescendo, então é coisa bem “tam... tam... tam...!” e quando você vê, já tá num batidão: “Tum... Tum... Tum...”. Não é igual a música dos DJs que fica só na mesma coisa, entendeu? É tudo “tom... tom... tom...”, num é elaborado. Prog é bom por isso. O minimal também é do mesmo jeito. É tanto que quando os DJs começam a tocar prog e minimal, a pista de dança fica lotada. (Ilana, jovem entrevistada em 28 de março de 2009).

Tanto o prog como o minimal são estilos bem mais envolventes do que o dark e o full on night.

Eles atuam convocando os jovens a dançar na pista principal. À proporção que as horas avançam, a

quantidade de jovens na festa vai lentamente aumentando. A grande maioria do público que freqüenta

tais eventos prefere chegar próximo ao amanhecer, exatamente quando os DJs passam a incorporar ao

seu repertório estilos mais envolventes de música eletrônica. Pode-se dizer que é nesse período que a

rave começa a se preparar para o nascer do sol. O “comando” da festa é então entregue às suas principais

atrações; são esses DJs que passam a habitar o palco principal do evento, atraindo o público para o dance

floor. Antes de suas apresentações, é possível identificar vários deles transitando por entre os diversos

espaços da festa, conversando ou tirando fotos com outros freqüentadores.

Na pista principal, público e DJ interagem. A cada nova batida ou som produzido pelos

equipamentos eletrônicos manipulados pelos músicos, jovens e DJs trocam sorrisos e acenos. Os

músicos lançam mão de efeitos como loops, phasers, breakbeats, modulação de freqüências, inflexão de

velocidades e intensidades durante suas performances e os jovens respondem positivamente a elas

dançando. A cada efeito novo que um DJ lança mão durante sua apresentação, é possível ver pulos e

ouvir gritos, aplausos e assobios contemplando não só a técnica, mas também a sensibilidade do músico.

Não adianta você apenas querer ser DJ. É meio chegar na hora da festa e simplesmente levantar a galera. O DJ tem a tarefa de empolgar a galera. Se você vê que a galera tá morgada ou que a pista não tá respondendo tanto, ai você vai saber quando mudar de música, quando mudar de batida. É fazer o máximo para não deixar que o ritmo da música baixe, que caia. O DJ tem que saber a hora certa pra fazer um loop ou deixar o baixo truar, soltar um efeito massa na hora da música. Às vezes você tá escutando um DJ e, tipo, ele num faz nada, a música tá muito parada. É diferente de você escutar um cara conceituado, independente dele ser famoso ou não, e você vê que ele sabe tocar bem, que a música dele tem qualidade. Você nota que ele faz um trabalho bem feito mesmo que a qualidade do som não seja tão boa, que a festa não esteja tão lotada, mas

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quando chega na hora dele ele arrebenta. Pronto, tem muito DJ que tu baixa a música dele [na Internet] e quando vê na hora da festa, tu vê que ele nem é essas coisas, ou então acontece também muito o contrario. Tu baixa a música do cara e nem curte muito, mas quando é na hora da festa ele arrebenta, bota a galera pra dançar. O cara explode mesmo assim na festa e tu fica encantado. Eu baixei o cd do DNA e achei o cd uma porcaria (risos)! Mas ai quando chegou na festa, a festa tava bem organizada, com a qualidade normal e tal, mas o DJ que veio, você via que ele tocava bem, que ele ia aumentando o tom da música, e a música ia ficando tão boa que toda a galera curtia. [...] Os nomes dos DJs também sempre tão associados a alguma coisa. Tipo, tem uma galera que é mais voltada pra natureza, pra psicodelia. Tem uns nomes bem legais, como “Commercial Hippies” ou então “Groove Machines”, “Dutch Flowers”, “Equilibriohm” e por ai vai. Sempre tem também um jogo com o nome do projeto e a capa do cd. (Rodrigo, jovem entrevistado em 22 de janeiro de 2009).

Para os jovens que freqüentam tais eventos, um bom DJ não deve somente saber operar seu

equipamento, mas deve ter também sensibilidade suficiente para perceber as “vibrações” do dance floor

e interagir com o público a partir de sua música. O DJ tem que desenvolver uma sensibilidade aguçada

para poder captar parte dos desejos de sua audiência. Em outras palavras, ele deve saber como agradar

aos jovens que habitam a pista de dança sem precisar consultá-los verbalmente. Segundo Isac, um jovem

DJ que atua na cena local da música eletrônica,

[...] ser DJ é um dom. Ninguém vira DJ de uma hora pra outra assim, simplesmente fazendo um curso. Pra ser um bom DJ mesmo tem que ter responsabilidade musical, ter técnica, conhecimento de som, estar antenado com o que tá rolando por aí e muita vontade de se divertir e divertir também os outros. Um bom DJ consegue analisar a música, sentir a música e seus arranjos. Se emocionar, literalmente, quando uma batida, um vocal ou um arranjo toca. É como se só você estivesse naquela dimensão. Precisa, acima de tudo, sabe, que você sinta a música e sinta também a galera, porque, só assim, você vai saber qual é a música que teu público tá pedindo. (Isac, jovem entrevistado em 2 de junho de 2009).

“Ser DJ é um dom”, ou seja, uma troca, conforme o sentido que Mauss (1974) dá aos termos

“dom” e “dádiva”. Assim, não basta apenas dar, mas também receber e saber retribuir aquilo que é

recebido. Ou seja, não adianta somente possuir a técnica necessária para operar os equipamentos

instalados no palco, mas é preciso, sobretudo, sensibilidade para captar o que emana da pista de dança,

interagindo com os participantes da festa. O DJ simplesmente troca energias com o público para poder

saber qual música ou batida sua audiência está pedindo naquele momento, sem precisar consultar cada

integrante da festa. A interação entre público e DJ é acionada pela força da música, dada, recebida e

retribuída, a qual interfere tanto na distribuição dos lugares como nas modalidades de reconhecimento,

inclusão e prestígio conferido aos músicos na cena.

Conforme o jovem me confidenciou, embora ele ainda não tenha tido a oportunidade de tocar

numa festa considerada grande, para um público superior a 2 mil pessoas, ele já pôde perceber que é

preciso muito mais do que simplesmente “força de vontade” pra ser um bom DJ; é preciso se emocionar

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junto com o público. A remuneração recebida pela atividade de DJ, na maioria das vezes, não é muito

atraente. Em algumas festas, um músico que está iniciando sua carreira, ainda com pouquíssimo

prestígio na cena, aceita tocar numa rave sem receber qualquer pagamento por isso.

A trajetória de Isac como DJ se insere numa sequência bastante comum de histórias acerca do

início das carreiras dos músicos que atuam na cena local. Isac, ao contrário de seus amigos que o

acompanhavam durante os eventos, preferia ficar junto ao palco não apenas para dançar, mas,

principalmente, para observar o trabalho dos DJs e a partir daí se interessar pela carreira de músico. Para

vários sujeitos, a história se repete: primeiro, o jovem começa a ir às festas e, à medida que sua presença

nos eventos vai se tornando cada vez mais freqüente, o gosto pela música eletrônica começa a ser

cultivado, junto a isso advêm a curiosidade em “descobrir” DJs, estilos e vertentes musicais através da

Internet. A partir daí, começam as pesquisas e o investimento financeiro através da aquisição de

softwares, notebooks e alguns equipamentos musicais imprescindíveis à arte da música eletrônica, tais

como mixers, cdjs ou mesmo as conhecidas pickups. O aprendizado, na maioria das vezes, se dá de uma

forma autodidática, porém há casos em que os jovens freqüentam cursos temporários voltados

especificamente para a formação de “novos” DJs, com durabilidade média de 3 meses e um custo que

varia entre R$ 300,00 (trezentos reais) e R$ 400,00 (quatrocentos reais). Tais cursos não têm uma

periodicidade certa e são oferecidos conforme a demanda, sendo ministrados, em grande parte, por

músicos já consagrados na cena local. Depois disso, o próximo passo é começar a tocar em “festinhas”

particulares na casa de amigos e familiares. A carreira de DJ nem sempre atrai pelo retorno financeiro

proporcionado – no caso de músicos como Isac, raras são as vezes em que há um pagamento em dinheiro

por suas apresentações, a compensação pela realização de seu trabalho está na sensação de “satisfação

pessoal” ao proporcionar e, ao mesmo tempo, vivenciar um momento de diversão em conjunto com

outras pessoas.

a gente não visa dinheiro, não, o que eu quero é apenas divertimento mesmo. Ouvir, dançar, tocar música eletrônica, tudo isso me dá prazer! Só em saber que a galera tá curtindo e dançando a música que eu to tocando já tá bom demais. Quem sabe daí eu num comece a tocar numa festa maior? (Isac, jovem entrevistado em 2 de junho de 2009).

A pergunta que Isac deixa ao final de sua fala assinala que todo esse empreendimento visa a

conquista de um projeto futuro. Tudo isso para poder alcançar a experiência suficiente para saber como

agradar ao público de uma festa considerada grande. Agradar é uma das palavras-chave nesse cenário.

Antes de qualquer coisa, esse é o objetivo principal de qualquer DJ. Termos como “intuição” e

“sensibilidade” são muito usados pelos músicos para descrever seu papel numa festa. A animação do

público é uma das condições básicas para avaliar o potencial e a habilidade que um DJ tem para conduzir

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a festa e poder habitar seu palco principal. Não é possível, segundo o “discurso nativo”, encontrar

situações em que o DJ acredite que seu trabalho tenha sido bom e que o público é que não soube apreciá-

lo. Se não houver uma interação quase imediata entre músico e audiência, a falha é sempre do primeiro e

jamais do segundo. Nas palavras do DJ inglês Domu, “quando eu toco minhas coisas realmente

experimentais e elas não funcionam eu vou embora pensando: para que continuar fazendo isso se

ninguém vai dançar?” (CALICO apud FERREIRA, 2008, p. 204). Por isso, cabe ao DJ oferecer à pista

de dança o som que os jovens que se encontram ali querem experimentar. Algo (que se encontra no

plano da emoção) diz para o músico o momento adequado para lançar mão de determinado efeito ou de

uma linha melódica que possa levar o público ao delírio. O DJ deve dominar não somente a arte de ligar

trechos de músicas através da técnica da mixagem, mas também precisa saber como ligar as pessoas à

música. Segundo o mundialmente famoso DJ Fat Boy Slim,

Quando você está tocando, passa horas incontáveis só olhando as pessoas dançarem [...]. Assim, você começa a perceber quais as partes de um disco as pessoas reagem e quais são as mais eficazes em fazê-las dançar. Você simplesmente aprende o que faz as pessoas dançarem. (BROUGHTON apud FERREIRA, 2008, p. 203).

Durante sua apresentação, o DJ deve estabelecer uma relação de alteridade com seu público.

Tanto os jovens observam o comportamento do DJ, como também os DJs observam o movimento dos

jovens e avaliam sua apresentação a partir da forma pela qual sua música é recepcionada na pista de

dança. “Discos, nas mãos de um DJ, são, literalmente, sons sociais” (THORNTON, 1995, p. 61), já

disse Sarah Thornton em seu estudo sobre a cultura club inglesa. Muitos percebem o comportamento do

DJ como uma espécie de modelo a ser adotado na festa. É para ele que estão concentrados os olhares e é

em direção aos jovens que movimentos de mão no sentido vertical são articulados de forma que, além da

música, o comportamento do público também possa ser orquestrado pelo músico. Em outras palavras,

pode-se dizer que o DJ é o principal responsável pelo clima da festa: através da sua música, é ele quem

mantém os corpos dos jovens em constante movimento. Nesse sentido, segundo Fontanari (2003), “a

música eletrônica não seria mais ‘boa para pensar’, máxima atribuída a Lévi-Strauss em relação à

superação do pensamento funcionalista, mas ‘boa para não pensar’, para se entrar em transe na festa”,

pois “o sentido de sua estrutura é o de ‘desorientar’ os ‘ouvintes’, eliminar qualquer referência que possa

ser tomada como marco temporal para a percepção de um trajeto dinâmico” (FONTANARI, 2003, p.

94).

Embora haja diferenças entre as várias vertentes da música eletrônica, é difícil definir quando

termina uma música e começa outra. A impressão é sempre de linearidade. Os DJs se preocupam em não

interromper o fluxo da música, havendo sempre o cuidado durante a mixagem das tracks para não

ocorrer algum tipo de defasagem rítmica. A ação de mixagem envolve, principalmente, a sobreposição

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de freqüências sem que o público perceba a mudança. Para isso, é necessário, através de uma função

chamada pitch existente nos mixers, acertar anteriormente o compasso e o andamento de cada uma das

músicas a serem tocadas na festa. Tendo-se feito todos os ajustes, o DJ pode, aos poucos, ir “soltando”

as freqüências de cada uma das faixas, combinando-as. Por exemplo, da faixa número 1 ele utiliza os

sons graves e da faixa número 2 os sons médios e agudos. As três freqüências são combinadas em

volumes variados, sendo cada uma delas sobreposta a outra em diferentes instantes, tornando-se ora

perceptíveis, ora discretas, conforme o clima que ele queira gerar na festa naquele momento.

Para alguns jovens, conforme pude perceber atráves das conversas informais, um bom DJ é

aquele cuja habilidade de mixagem não permite que o público perceba grandes saltos entre uma faixa e

outra executada durante sua apresentação. Essa impressão de linearidade permanece ainda ao longo da

festa, principalmente quando termina a apresentação de um DJ e começa a de outro, o intervalo existente

entre as performances dos músicos é bastante curto, não mais do que meros 15 segundos. Enquanto um

DJ se prepara para finalizar sua apresentação, o outro já se encontra no palco, preparando seu

equipamento. Tudo isso porque a festa não pode parar. Ao final de uma apresentação, os jovens

aplaudem e gritam, e o DJ agradece com movimentos de cabeça intercalados com sorrisos e acenos de

mãos. Tal ação dos jovens diz respeito não só a uma espécie de agradecimento pela performance do

músico no palco principal, mas também está relacionada à recepção da apresentação do próximo DJ.

Foto 12: Jovem na pista de dança interagindo com o DJ.

Foto 13: DJ interagindo com o público.

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No decorrer da madrugada, quando a festa se prepara para o amanhecer, acontece ainda no

dance floor apresentações de malabares denominadas como “pirofagia”. Tais apresentações

simplesmente quebram a dinâmica da interação criada entre jovens e DJs. A festa inteira pára para

observar os performers arremessando swing pois em chamas pelo ar, espalhando o cheiro de querosene

por todo o lugar. Enquanto o DJ continua sua apresentação, um grande círculo é imediatamente formado

bem no centro da pista principal. Os movimentos empreendidos durante as performances seguem o ritmo

e a cadência da música eletrônica. As indumentárias dos performers são exclusivas. Na maioria das

vezes, lembram as roupas usadas na Roma Antiga pelos gladiadores e, em alguns casos, são utilizadas

ainda pernas de pau e máscaras como complemento dos trajes. Os movimentos são sempre circulares: os

jovens giram os swing pois em volta de seus corpos produzindo um efeito luminoso que encanta todos os

que estão no dance floor. Não é por acaso que, como disse Janaína, “[...] quando começam os malabares

com fogo, é como se a festa parasse. É como se, simplesmente, o pessoal esquecesse do DJ e ficasse se

‘ligando’ só no movimento do fogo”.

Foto 14: Jovens se apresentando na pista principal manuseando malabares em chamas durante a rave.

Foto 15: Apresentações de pirofagia na pista principal.

Os jovens que praticam a pirofagia no campo da festa são, na maioria das vezes, contratados

pelos próprios organizadores do evento. Suas apresentações se dão exatamente durante a performance de

algum dos DJs principais da festa. O pagamento recebido pelas apresentações dos jovens, às vezes, não

ultrapassa a casa dos R$ 30,00 (trinta reais). Em alguns casos, a relação entre os performers e

organizadores é conflituosa. Há vezes em que os organizadores combinam um preço com os

malabaristas, e ao final da festa se negam a cumprir aquilo que foi acordado, recusando-se a pagar na

íntegra o valor acertado pelas apresentações, mas apenas parte dele. Outra forma de pagamento é o

fornecimento gratuito do ingresso para a festa mais algum crédito para o consumo de bebidas ou

alimentos durante a rave. Além do performers contratados, há também aqueles que praticam malabares

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espontaneamente, sem receber nenhum pagamento. Isto porque manusear algum tipo de malabar

compreende parte de um amplo conjunto de práticas onde a música e os demais elementos simbólicos e

performáticos se relacionam, formando um peculiar universo cultural onde o público experimenta e vive

sensações que o transforma em parte integrante da festa.

Foto 16: Jovens praticando Diabolô.

Foto 17: Jovem praticando Swing Poi.

Em Fortaleza existe um grupo bastante famoso de malabaristas que atuam principalmente em

festas rave. O referido grupo é um dos mais antigos na cidade e, dentre suas atividades, pode-se destacar

a promoção de encontros locais, oficinas gratuitas sobre malabarismo e fabricação artesanal de vários

tipos de malabares que são vendidos durante os eventos de música eletrônica. Segundo o fundador do

grupo, seu primeiro contato com os malabares se deu durante uma viagem para um congresso de

estudantes universitários no interior do estado.

Nessa viagem eu conheci uma hippie e ela me ensinou a jogar poi. Quando eu cheguei aqui, queria ter o malabar, mas não existia ainda, daí foi quando eu tive a idéia de fazer meu próprio poi. [...] No que eu voltei, eu criei o meu trabalho e dentro desse trabalho, o pessoal falava: “cara, tu devia trabalhar nessas festas. Tu devia trabalhar lá porque é um negócio massa, a galera curte, a galera vai gostar e tu num vai ficar só de fora olhando, tu vai fazer parte”. Porque o legal naquela época era que todo mundo queria contribuir, num era um lance comercial, era contribuir, tu entrar na festa e fazer parte. [...] Então, ai eu comecei a trabalhar nesse meio de malabares e tudo o mais, de montar o grupo e tal, e tal, e tal... Então, eu comecei, já tava andando o negócio, num fui o

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pioneiro não, já existia outros grupos de malabares que faziam o mesmo trabalho que eu dentro das raves. Quando eu comecei a fazer o trabalho, eu entrei com a carruagem andando, sabe? Já tava rolando e eu entrei apoiado dos amigos... (Marcelo, jovem entrevistado em 20 de agosto de 2008).

A partir do relato de Marcelo, percebe-se o modo como a prática do malabar no interior da

rave permite ao participante uma experiência para além de mero expectador da dinâmica do evento, ela

possibilita ao jovem uma interação maior com a festa, transformando-o em parte integrante dela. A

prática do malabar é algo bastante difundido na festa, por meio dela, o participante da rave conquista

uma espécie de “direito à festa”!56 Através dos malabares, alguns jovens afirmam que é possível “sentir a

música” de um modo diferenciado, único. Além dos populares swing pois, posso citar ainda outros

malabares que são bastante populares na festa, conhecidos entre os jovens como diabolô, bolinhas,

bastão, flag e bola de contato. Contudo, terminadas as apresentações de pirofagia na pista de dança, a

atenção dos jovens se volta para o DJ que se apresenta no palco principal. A dinâmica permanece assim

até o início da manhã.

3.3 Corpo, som e movimento: transcendências e sensibilidades

Nenhum momento da rave se compara aquele experimentado durante o amanhecer. A

paisagem da festa se transforma. A luz negra dá lugar aos raios do sol. O brilho das coisas desaparece,

mas o movimento permanece, sobretudo, de corpos-jovens que se misturam conduzidos pelas batidas do

psytrance. O ritmo da rave muda, tudo se torna mais acelerado, desde a música até a dança. Em algumas

festas, foi possível ouvir jovens na pista de dança gritando: “acelera DJ!”. A cada início de manhã

experimentado numa rave, consigo entender melhor o que os participantes da festa querem dizer com a

expressão: “é de manhã que a rave bomba!”. É justamente no romper da aurora que ela atinge o seu

ápice, tornando-se tão intensa quanto densa. Segundo uma das jovens entrevistas, isso ocorre porque

[...] existe todo um misticismo em cima disso, do nascer do sol. [...] Você pode ver que quem tá deitado levanta. E a maioria das pessoas quando vê que o sol começa a nascer, elas levantam logo. Parece que as energias da rave renascem, então eu acho que é também uma mística por detrás disso, tanto na gente inconscientemente como também na galera que se liga disso [...] Parece, assim, que o povo acorda. Festa mesmo é de

56 Durante a pesquisa de campo, deparei-me com variados discursos que ensaiavam diferentes explicações para alguns dos símbolos e práticas adotadas na festa. Como exemplo disso, posso mencionar os sentidos que os jovens davam à presença de performers no espaço da rave que manuseiam malabares. Alguns falavam da proximidade existente entre festa e lúdico, já outros preferiam afirmar que isso se dava porque, semelhante à cultura circense, as festas possuem um caráter itinerante, desde as suas origens até hoje são atravessadas pelo desejo de viajar pelo mundo.

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manhã. Às vezes à noite tá uma porcaria, ai quando é de manhã a galera se empolga. (Débora, jovem entrevistada em 10 de fevereiro de 2009). Eu acho que é uma das únicas oportunidades que você tem de ver um nascer do sol perfeito. É tanto que o melhor DJ toca quando o sol tá amanhecendo. É a hora que a galera se empolga, é a hora que a galera chega mais, chega pra ver o nascer do sol. (Eduardo, jovem entrevistado em 07 de outubro de 2008).

Para os participantes, o amanhecer é percebido como uma espécie de “momento mágico” da

festa. Os raios do sol revigoram as “energias” da rave, fazendo com que ela “renasça”, nas palavras de

Débora. Sua dinâmica conquista novos contornos: “É a hora que a galera se empolga, é a hora que a

galera chega mais”, segundo Eduardo. A pista de dança fica insuportavelmente lotada. A maioria das

pessoas que estão no evento se encaminha para lá. É praticamente impossível passear pelo dance floor

sem esbarrar em alguém. A impressão que se tem é que seu público chega a ultrapassar em, pelo menos,

três vezes a quantidade inicial.

A dança praticada na pista é individualizada, quase não há interação entre os jovens. Os

movimentos dos corpos dos participantes não seguem uma coreografia, mas sim várias. Como diz Ilana,

“é uma dança que é livre, não tem regras, não tem passo pra frente, passo pra trás, você faz de acordo

com a música, com a batida [...]”, cada um cria sua própria dança, mexendo-se como julga melhor. A

idéia é de uma completa ausência de planejamento ou controle sobre os movimentos do corpo. No

“idioma nativo”, a experiência da dança oferece aos jovens uma sensação de “liberdade”, que passa a ser

o único imperativo para orientar os movimentos do corpo.

Na dança, explora-se toda a fluidez e a agressividade que o corpo é capaz. Durante uma festa

realizada em Aquiraz, um dos “informantes” desta pesquisa me levou até o espaço no qual ele estava

dançando apenas para me mostrar a marca de seu pé cravada no gramado do local. Bastante empolgado

com o fato, pediu-me emprestado a máquina fotográfica para registrar o buraco deixado por ele, durante

a dança, no solo. Vale assinalar que o DJ que se apresentava naquele momento era ninguém menos que o

inglês Chris Liberator, um dos precursores da cena inglesa, iniciada na década de 1980. Os jovens, de

forma semelhante à descrição realizada por Elias Canetti (1983, p. 34) acerca da dança dos maoris,

“movimentam-se como se a quantidade de energia aumentasse cada vez mais. Sua excitação vai

aumentando até entrar num estado de loucura”. Durante os momentos mais intensos da festa, boa parte

dos participantes que se encontram no dance floor pulam no mesmo ritmo, dando a impressão da

formação de um só grupo de centenas de pessoas.

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Foto 18: Pista de dança completamente lotada durante o amanhecer.

Muitas vezes, os jovens costumam se referir a esses momentos de “explosão”, de intensa

“efervescência coletiva”, utilizando o termo “vibe”. Derivada do inglês, a palavra significa “vibração”. O

termo se relaciona diretamente à forma como os participantes interagem com a música. Quando a pista

de dança está lotada e bastante agitada, costuma-se dizer que a “vibe” da festa está boa, que a “energia”

que emana dali é “positiva”. A “vibe” atuaria como uma espécie de conexão entre as pessoas e o

ambiente da rave. Os DJs possuem uma relevância sui generis na produção da “vibe” de uma rave,

principalmente porque são eles que fazem com que a pista de dança lote e se torne agitada. Os DJs são

os principais responsáveis por conectar os corpos dos jovens à música eletrônica, fazendo-os se

movimentarem de forma quase incansável. Segundo Fabrício,

Vibe é a sensação que você tem. Pra mim, é quando, tipo, você chega lá na festa, chega na hora do DJ principal e você vê que tá todo mundo pulando, você vê que a galera tá animada, você sente a energia positiva, tipo, a energia do povo! Você sente vontade de pular, você fica feliz. Vibe é como se a alegria de cada um fosse passando pra você. É uma sensação muito boa que você sente. (Fabrício, jovem entrevistado em 12 de fevereiro de 2009).

A vibe é descrita pelos jovens como um tipo de experiência partilhada. Experiência partilhada

de corpos que se entregam em conjunto à dança, que trocam energias entre si, como algo que contamina:

afeto mútuo de corpos e de vibrações. É ainda como se aqueles que estão na pista de dança se

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entregassem à mesma vertigem. Todos se tornam cúmplices nesse empreendimento coletivo, nessa

“sensação muito boa” que, de forma semelhante a uma rede, vai atravessando e conectando o corpo de

cada um dos participantes. Uma descarga coletiva de energias é produzida:

[...] a rave é uma festa para se liberar energia. Eu acho que é por isso que ela tem aquela história de ser uma festa comprida. É uma festa que, realmente, você descarrega, porque quando termina você fica só o bagaço. Eu acho que é muita mística, tem muita mística por detrás disso. As energias, tipo, você passa a rave dançando, pulando, abraçando. Então é uma festa que eu vejo que é pra desestressar, de verdade! Eu acho que é uma festa que você vai pra esquecer os problemas. É tanto que tem toda uma mística, por que elas são fora também? Não é só a questão do ingresso, porque você sai da sua realidade, você vai pra um lugar paradisíaco. O que é isso? É a fuga! Você tá fugindo do seu ambiente, dos seus problemas. O que é que eles tão querendo propor? Todo mundo vai pra esse lugar afastado, paradisíaco, você deixa os seus problemas aqui e você vai passar agora 12, 14 horas agora curtindo uma música. Tá entendendo? É toda uma proposta, uma outra realidade, um ritual. É um ritual. Você vai naquele lugar longe pra fazer alguma coisa, mas você tá deixando tudo aqui, tem que deixar tudo aqui. Eu acho que é por isso que rave, rave de verdade, que presta, tem que ser longe. Porque todo mundo, até mesmo inconsciente tá indo e num tá nem se ligando que tá fazendo isso, mas você pode ver que quem vai, diz: “ah, hoje eu vou pra festa porque eu quero esquecer os meus problemas”. Eu acho que tem muito isso, é aquela história de você sair daqui e ir pra um lugar longe, você deixa tudo aqui, você vai pra descarregar. Quando chega lá, você fica outra pessoa. [...] Você tem que se soltar, tem que sentir a música entrar dentro de ti. Quando eu fecho o olho e me solto na festa, dançando eu num fico pensando em nada, sinto apenas uma sensação boa, de liberdade. Leve. (Camila, jovem entrevistada em 05 de maio de 2009).

A música executada pelo DJ reivindica que o corpo não somente produza movimentos para

acompanhar suas batidas, mas busca oferecer ao participante da festa a possibilidade de “liberar

energias”, sobretudo as “negativas”; um momento para “esquecer os problemas”. Nas palavras de

Camila, a rave se apresenta como uma espécie de “ritual” que leva o participante a um estado de transe

por meio da música, um “ritual” no qual você “tem que deixar tudo” para adquirir, mesmo que

momentaneamente, um novo status. Segundo Durkheim (1996), na festa, a energia do coletivo atingiria

o seu apogeu no momento de maior “efervescência” dos participantes. O autor afirma que esta

efervescência “muda as condições da atividade psíquica. As energias vitais são superexcitadas, as

paixões mais vivas, as sensações mais fortes” (DURKHEIM, 1996, p. 603). A festa, através da reunião

de uma multidão de pessoas que se movimentam, dançam, cantam e gritam contribui para a produção de

uma grande quantidade de “energia” coletiva, que é redistribuída para todos os participantes

(CAILLOIS, 1988; MAUSS; HUBERT, 2005). A vibe, atuaria assim, como algo imprescindível à

experiência da rave. É através dela que os jovens podem reafirmar a idéia de que o espaço-tempo da

festa difere do espaço-tempo da vida cotidiana, ordinária, fazendo da rave um momento especial, um

ritual. A festa coloca em cena o conflito entre as obrigações da “vida séria” e a própria natureza humana.

De acordo com Durkheim (1996), as festas, assim como a religião, são imprescindíveis para reavivar os

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laços sociais em constante perigo de se desfazerem. Para o autor, as festas rejuvenescem o “espírito

fatigado” com o labor cotidiano. Por uns momentos, os indivíduos têm a oportunidade de experimentar

uma existência menos pesada. Essa oposição entre “visa séria” e divertimento se faz presente na maioria

dos escritos produzidos sobre festas. O divertimento emerge como uma rápida fuga das atividades

cotidianas, não tendo, a priori, nenhuma “utilidade”. Sua única “função” é fazer com que o individuo,

depois do divertimento, volte à “vida séria” com mais coragem e ardor. Dessa forma, a festa compõe um

tipo de ritual.

É vasta a literatura produzida no campo das ciências sociais, em especial na antropologia,

sobre a temática do ritual. Por conta disto, sigo a orientação dada por Mariza Peirano (2002) e não adoto

uma definição de ritual a priori. Não ouso demarcar a fronteira entre o que pode ser considerado ritual e

o que não pode, justamente por acreditar que a concepção de que um evento é “especial” deve partir do

próprio “idioma nativo”. Ou seja, são aqueles que o vivenciam que podem defini-lo ou não como ritual

e, nesse caso, para os jovens a rave é sim um ritual.

Em um texto escrito para o jornal Folha de São Paulo, Hermano Viana (FOLHA DE SÃO

PAULO, 1997) destaca o caráter ritualístico das raves, concebendo-as como um espaço no qual um

estado de êxtase é produzido em massa. Segundo Vianna,

[...] Nos primeiros momentos, não consegue decifrar exatamente o que acontece na pista de dança. Suas primeiras impressões são apenas auditivas: o que mais se ouve é um som percussivo poderoso, e quase ensurdecedor, que se repete hipnoticamente. Os vocais, quando eles existem, parecem variar sobre um único tema: “Deixe a batida tomar conta do seu corpo!” Ou: “Get out of your mind!” Milhares de pessoas parecem estar ali justamente para seguir aquelas ordens. [...] Do movimento robótico das luzes aos estimulantes (alguns ilegais, outros não) consumidos pelos dançarinos: tudo parece estar ali com a “função” de facilitar a produção de um estado que, não apenas como referência a uma droga muito consumida nesses ambientes, poderia ser chamado de extático. A combinação funciona: nas sociedades contemporâneas, as raves são os espaços menos esotéricos (pois não envolvem iniciações religiosas) e mais internacionais onde o extâse é produzido em massa. Nosso brasileiro, mais ou menos familiarizado com os rituais religiosos do candomblé ou da umbanda, não resiste a fazer a comparação: ele está diante de um terreirão eletrônico. (FOLHA DE SÃO PAULO, 1997)

A idéia de ritual aparece constantemente no “discurso nativo”, fazendo-se presente tanto nas

falas dos freqüentadores como no material de divulgação produzido por seus organizadores. Como

exemplo disso, posso citar uma das frases contidas num dos flyers produzidos para divulgar a V edição

da Entrance realizada em setembro de 2009, intitulada “Aquarius: o início de uma nova Era”. No

material de divulgação do evento, podia-se ler o seguinte: “a celebração acontece no paradisíaco Hotel

Fazenda São Gerônimo, no município de Caucaia, a 28 km de Fortaleza, com fácil acesso e

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estacionamento próprio”57. Ilana, ao comentar sobre a passagem de Goa Gil pela cena local, mais

especificamente na cidade de Iguape, durante sua turnê pela América Latina, disse:

a festa do Goa Gil foi linda! Foi uma celebração [...]. Muitas das raves são rituais. Pode ver como foi que o Goa Gil começou a rave dele. Foi fazendo um ritual. Ele primeiro colocou umas músicas mais pesadas, pra só depois, de manhã, tocar uma coisa mais leve, mais “grooveada”. É porque também os DJs daqui são muito, digamos, ocidentalizados. É aquela historia da rave, assim... é uma festa, uma festona. Eu acredito que em outros lugares, tipo essas ilhas que a rave teve como berço, tipo Goa, eu acho que é bem mais ritual. É tanto que se tu ver os vídeos no youtube, a galera já tá pintada de um jeito diferente, as apresentações são diferentes. Então, assim, tem todo um ritual por detrás disso. Toda festa devia ser que nem a do Goa Gil, que nem um ritual mesmo. Começa de um jeito e termino de outro, bem melhor. (Ilana, jovem entrevistada em 28 de março de 2009).

Para Ilana, a rave começaria com uma dinâmica mais lenta e pesada, com uma música menos

dançante, para somente depois, já próximo ao amanhecer, acelerar e elevar tanto o clima da festa, como

o de seus participantes. Um “ritual” que, segundo a jovem, tem suas origens no oriente, mais

precisamente em Goa, na Índia. A principal diferença dela para as festas locais residiria no fato das raves

indianas serem consideradas festas com uma dinâmica diferenciada, mais intimista, reservada, que conta

com outros tipos de performances58. Já as raves locais são caracterizadas por Ilana como “festonas”,

eventos que contém um caráter comercial, algo que foge ao conceito de “ritual” na concepção da jovem.

Um ritual que deve ocorrer num espaço e num tempo demarcado para sua realização, tal como se pode

perceber nas palavras da jovem citada logo abaixo:

Eu fui uma vez pra Phanatic, uma festa que rolou ali no Marina. Mas nada a ver. Quando foi de manhã, eu tava aqui dançando e olhava pro lado, e via o [ônibus da linha] grande circular passar, tinha o barulho do lado de fora da festa. Eu não curti porque eu não me senti em outro lugar, parecia que eu nem tinha saído de casa. As raves servem pra você esquecer seus problemas, você vai pra rave e deixa seu problemas em casa. Nessa festa do Marina eu não me senti assim, sabe? Lá na Biruta, pelo menos, tem o mar, tem a natureza, e não passa ônibus lá perto, é bem diferente dali do Marina (risos). Nada a ver, nada a ver mesmo uma rave ali. E outra, tem muito aquela idéia de que rave é lugar de gente que vai pra descontrair. Na rave todo mundo é amigo, ninguém briga com ninguém e todo mundo se respeita. É tanto que ninguém vai brigar só porque você pisou no pé de alguém. [...] Toda vez que eu volto da rave eu me sinto mais leve, sabia? Eu já volto pra casa doida pra saber quando é a próxima. Nessa do Marina eu não senti isso, acho que por isso eu não gostei dela. [...] A rave é uma festa que você curte com seus amigos, pra sair daquela rotina. (Raquel, jovem entrevistada em 28 de outubro de 2008).

57 Trecho extraído de http://www.nuact.com.br/projeto/, acesso em 23 de agosto de 2009 às 10h e 10min. 58 Em entrevista publicada no site “psyte”, O DJ e produtor Pan Papason explica essa questão do berço da rave tratada por Ilana da seguinte forma: “O trance para alguns é um modo de vida. Se você morar na Índia por seis meses, já começa a agregar toda aquela cultura. Tem um determinado dia no ano que os indianos saem na rua jogando tinta colorida uns nos outros. São muitas pessoas coloridas correndo, cantando e dançando. As cores das festas rave vieram desta cultura”. Extraído de http://psyte.uol.com.br/redacao/materias/materia.asp?seq=314, acesso em 14 de setembro de 2009 às 13h.

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Não só os vários momentos vivenciados durante a festa comporiam um tipo de “ritual”, mas,

para Raquel, a própria rave operaria uma espécie de suspensão da experiência cotidiana, um tipo de

evento “especial”, “distinto”. A partir do próprio “idioma nativo”, pode-se perceber que a principal

“eficácia simbólica” (LÉVI-STRAUSS, 1996) da festa é transportar seus participantes para outro

espaço-tempo que não seja aquele regido pela racionalidade característica do espaço urbano. Tal fato

pode ser percebido já nos relatos iniciais acerca do surgimento dessas festas. Conforme vimos no

segundo capítulo, tanto as histórias contadas sobre as festas em Ibiza, como aquelas que elegem a região

de Goa como o berço das raves, expressam uma espécie de “fuga”, de negação temporária da vida

cotidiana, segundo nos descreveu Camila algumas linhas acima. No imaginário dos jovens, a rave

atuaria como uma espécie de espaço liminar entre o “rural” e o “urbano”, entre o “racional” e o

“espiritual” numa tentativa de irromper o usual. Conforme se pode perceber na fala de Raquel, o simples

fato de dançar num local onde se pode ver as imagens e ouvir os ruídos da cidade aniquila toda a magia

e o encanto da rave. A peculiaridade dessas festas é que sua prática marca um intervalo na vida cotidiana

de seus participantes.

Segundo Roger Caillois (1988), a festa surge como uma forma de experimentação momentânea

da dissolução das regras sociais. Ou seja, nela experimenta-se um sentimento de negação, a busca por

uma vivência social sem regras, livre de um dado modo de ordenamento, a fim de tentar afirmar o desejo

entre os indivíduos de invenção de uma sociedade liberta de normas. No caso da rave, ela possibilita aos

jovens irromper ao usual não só por meio do espaço no qual ela se realiza: espaços “open air”, mas ainda

por meio da música que desperta nos participantes diferentes tipos de sensibilidades e emoções.

Qual é a festa que começa de noite e só termina no outro dia de manhã, que acontece num lugar todo especial, perto de lagoa, de mar? A rave é isso. Ela serve pra você realmente se soltar. Ela é feita pra você se sentir bem. Nela, tu pode se soltar, sem se preocupar com o que os outros vão dizer. O psy é pura transcendência, invade o corpo, ele meio que ilumina a alma. Tem a questão do P.L.U.R. também, que é a filosofia da rave, de todo mundo se respeitar, respeitar a natureza. É muito diferente de você ir pra outro lugar, te faz entrar num ritmo que não dá vontade de parar um segundo só. Você quer dançar e fazer novos amigos e conhecer lugares novos. Chegar no final da festa, você já cansado e mesmo assim feliz, com um sorriso feliz, sabe? É realmente uma sensação muito boa, uma sensação de liberdade [...], esquece de tudo. (Débora, jovem entrevistada em 10 de fevereiro de 2009). Eu tenho que ir pra rave pelo menos uma vez por mês pra desestressar. Eu sinto necessidade de tá lá dançando com meus amigos, de me divertir e ao mesmo tempo esquecer. E, assim, mesmo que eu não vá só pra dançar, só o fato de ta lá curtindo já é suficiente. A natureza, os amigos, tudo isso é importante pra curtir a festa, claro que tem a decoração, os malabares, os DJs também... tudo isso junto. Não é só a música, é também o sentimento que você sente quando tá lá, a vontade de estar bem com tudo e com todos. A galera toda na mesma vibração. Sempre chega um aqui e você já faz amizade na mesma hora, às vezes é o amigo do teu amigo, ou amigo do amigo do teu

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amigo e fica junto lá contigo curtindo. É muito bom, é muito bom mesmo. (Fabrício, jovem entrevistado em 12 de fevereiro de 2009). [...] Eu sempre procuro ligar muito uma música a uma certa situação ou a uma emoção. Eu não sei o porquê, mas tem uma música do [DJ] Sesto Sento que pra já virou, tipo, um hino. Toda vida que toca eu me alegro muito. Quando essa música toca é a hora que eu danço, é quando o pessoal fala que eu arrisco um “rebolation” lá. Musica eletrônica tem muito disso, é você relacionar a música a um sentimento, a um estado de espírito. Fora que a música eletrônica em si, as batidas já é aquela coisa que já é eletrizante, porque você não consegue escutar aquela música nas alturas, as batidas dela e ficar parado, você tem que mexer o corpo, nem que seja apenas pra marcar o tempo das batidas (risos). (Rodrigo, jovem entrevistado em 22 de janeiro de 2009).

A própria dinâmica da festa, com seus símbolos e discursos, marca uma espécie de “intervalo”

na experiência ordinária de seus freqüentadores. No tempo da festa, diferentemente do tempo de

trabalho, há uma atitude descontraída, lúdica e espontânea. A rave é vista como uma zona própria e à

parte, como uma “tentativa em massa, da população jovem para resistir à pressão para o individual e

para criar, para eles próprios, um mundo ‘mais coletivo’” (REBELO, 1999, p. 272). Ela abre novas

possibilidades, principalmente no tocante à relação que se estabelece entre corpo e música. A música

eletrônica é tida como um estilo musical no qual, mais do que ouvido, pode ser sentido, experienciado

sensorialmente em conjunto com os outros participantes da festa. O objetivo último de qualquer rave é

catalisar, através da produção de uma espécie de “intimidade coletiva” (REYNOLDS, 1999), seja entre

amigos ou desconhecidos, uma espécie de diluição das identidades individuais. Os jovens afirmam que é

possível sair de si durante a dança e “todos se tornarem um só corpo”.

A experiência da dança vivenciada durante a rave é o que a melhor caracteriza e, ao mesmo

tempo, a distingue de outros tipos de festa. Em alguns casos, a interação entre os movimentos dos corpos

dos jovens e as batidas do psytrance é tão intensa que se tem a impressão de que a maioria dos

participantes que se encontram ali, na pista principal, está vivenciado a experiência de um tipo de transe.

A dança ao som das batidas fortes e repetitivas do psytrance é, na maioria das vezes, descrita pelos

jovens como algo que permite a vivência de uma sensação de completo abandono do ego e total entrega

à cadência rítmica e melódica da música. Um flyer bastante divulgando na Internet entre os jovens narra

essa experiência de sair de si durante a dança da seguinte forma:

Já sentiu como se você tivesse total controle sobre seus sentidos? E todos eles fossem totalmente apurados de modo que você pudesse ouvir melhor, ver melhor, sentir melhor? Entrar em um transe independente de drogas, onde todas as pessoas são felizes e naquele momento não existe dor, nem fome, nem inveja, nem tristeza e todos os sentimentos ruins do mundo ficassem do lado de fora e que apenas um estilo de música pudesse fazer isso... Você pode imaginar um lugar onde todas as pessoas estão na mesma vibração, onde uma só batida pode fazer com que o mundo seja outro, onde as pessoas se gostem e se divertem como nunca... e... após você ter saído de uma festa você nunca pensou! Putz acabou! Segunda feira... estou de volta ao mundinho onde

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existe dor, inveja, medo, sofrimento e fome? Se um dia você conseguir imaginar um mundo onde todas as pessoas fossem felizes e não ouvissem coisas ruins, nesse mundo só tocaria música eletrônica e se chamaria rave59.

Pode-se dizer que na rave tudo se volta para a idéia da transcendência, desde o tema do evento

e a escolha do local (necessariamente, um “pico” reconhecido como paradisíaco, repleto de belezas

naturais, distante o máximo possível das atividades cotidianas da urbe), passando pelos motivos

utilizados na sua decoração (inspirada, de preferência, no universo místico-esotérico oriental), até o

nome das atrações, dos núcleos e produtoras que atuam na organização do evento. O próprio termo rave,

que qualifica de forma bastante abrangente esse tipo de evento, evoca o sentido de uma experiência

ímpar vivenciada através de sentimentos como exaltação, delírio e entusiasmo dentre outros

(REYNOLDS, 1999). Tudo isso – combinado aos movimentos corporais que o hipnótico som do

psytrance solicita de seu ouvinte – colabora para a vivência de uma experiência singular que pode ser

vivenciada durante a festa, convidando o jovem a desfrutar de uma espécie de “viagem” sensorial,

semelhante a um “estado de transe”, onde se pode “ouvir melhor”, “ver melhor” e “sentir melhor”.

Através da dança há uma espécie de dissolução dos sentidos como os conhecemos. “É como se todos os

sentidos se tornassem um só e fossem empregados na mesma tarefa, ao mesmo tempo” (DAMASCENO,

2007, p. 229). Tanto a força da música como a decoração do ambiente, cria uma maneira de sentir

diferente, produzida com o corpo. Dessa relação entre corpo e música, o ato de ouvir se utiliza não

apenas dos ouvidos, mas de toda a pele, “que vibra ao contato com o dado sonoro: é sentir em estado

bruto. É misturar o pulsar do som com as batidas do coração, é um quase não pensar” (MORAES apud

DAMASCENO, 2007, p. 229).

Durante a festa, para desfrutar de uma interação maior com a música, alguns jovens preferem

se posicionar de frente para as caixas de som localizadas na lateral do palco principal onde se apresentam

os DJs.

[...] quando o DJ é bom, eu vou lá pra frente e fico perto da caixa de som pra escutar, mas não tão perto porque, tipo, é arriscado você ficar surdo, né? Na festa do Goa Gil, eu fui inventar ficar lá perto da caixa de som, daí passei uma semana em casa com dor de cabeça. Fiquei desesperado pensando que eu tava tendo um AVC, fui bater no hospital e tal, mas o médico falou que eu tava com os tímpanos inflamados, passou um remédio lá e me mandou de volta pra casa (risos). Mas a experiência valeu a pena. Foi muito boa. Toda vez agora eu quero ir lá pra caixa de som. Quem curte muito ficar lá é a galera que toma bala, você pode ver que toda festa tem um bocado lá na caixa de som (risos). (Rodrigo, jovem entrevistado em 22 de janeiro de 2009).

A busca por um estado de transcendência conquistado a partir da interação com a música

mostra-se como algo que é coletivamente valorizado pelos participantes da festa. Nessa busca, vale tudo, 59 Extraído de http://www.bonks.com.br/b2/2006/10/prazer-trance/, acesso em 23 de setembro de 2009 às 11h.

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até suportar de perto os milhares de watts emitidos pelas caixas de som instaladas na lateral do palco. No

entanto, nem todos os jovens buscam atingir esse estado somente através da música, mas alguns

preferem contar com o auxilio de substâncias psicoativas nesse empreendimento, conforme relato

Rodrigo, ao afirmar: “Quem curte muito ficar lá é a galera que toma bala, você pode ver que toda festa

tem um bocado lá na caixa de som”.

Dentre as substâncias mais consumidas durante a festa, merece destaque o ecstasy e o LSD60.

Cada uma delas recebe um apelido no microcosmo das festas rave. Conforme foi falado no início deste

capítulo, para o ecstasy atribui-se o termo “bala”, e para o LSD dá-se o nome “doce”. A combinação que

muitos jovens empreendem entre música e consumo de substâncias psicoativas possibilita a vivência de

uma experiência situada no plano da sinestesia, onde os participantes afirmam ser possível “sentir as

cores” (que decoram a festa) e “ver a música” (executada pelo DJ). Para alguns jovens, a principal

finalidade do psytrance seria, com seus sons repetitivos, hipnóticos, induzir o ouvinte a um real estado

de transe. Tal estado estaria relacionado à própria “cosmologia” da festa, algo bastante associado ao

discurso da “psicodelia” que aproxima as raves ao movimento hippie dos anos 1960. Entretanto, por sua

estrutura musical peculiar e sua relação com o referido discurso, o psytrance “solicita” que seu ouvinte

faça uso de algum alucinógeno para interagir com o universo simbólico criado em torno dele.

Eu nem me ligava desse lance de rave, mas como ouvia falar na TV, via em filme e tal, tinha mó vontade de ir com minhas amigas. [...] A gente sabia que rolava esse negócio de tomar ecstasy, daí quando foi uma vez que a gente tava lá no Órbita, a gente conheceu um carinha lá que chegou pra gente e disse: “ei, um amigo meu tá organizando uma rave lá na PF [Praia do Futuro] e eu tô aqui com 5 cortesias. Vocês num tão a fim de ir não?”. A gente se olhou e foi. Saímos da Órbita e fomos todo mundo lá pra essa festa na PF. Quando a gente chegou lá, ficamos só olhando pra galera, tentando ver quem era que tava vendendo, pra gente comprar. Tinha um cara lá que conhecia todo mundo e todo mundo conhecia ele. O pessoal chegava pra falar com ele e abraçava e tal. A gente notou que ele tinha bala pra vender, daí fui lá eu e minha amiga e compramos uma só que a gente dividiu no meio pra nós duas. Depois que a gente tomou, a festa simplesmente se transformou pra nós duas! Ficou um negócio, assim, muito massa! As cores, a música, a galera muito mais limpeza. (Camila, jovem entrevistada em 05 de maio de 2009).

[...] O psytrance, ele tem uma idéia original que é o trance [transe], aquele trance pré-histórico, da música, a elevação espiritual, o uso do alucinógeno... porque sem psytrance não existe psicodelia e não existe psicodelia sem alucinógeno. Uma coisa não vive sem a outra. Não existe psy sem alucinógeno, o alucinógeno abala teu psicológico. Você pode até ir em psy sem usar nada, mas você não vai entender. [...] Se você for pra ouvir a música, entender a finalidade dela, pode até ser que você não tá usando naquele momento, mas já usou. Tudo na rave aguça tua mente: a droga, a luz, o som, os malabares, as coisas coloridas. O estilo de vida colorido, num é só questão de moda não, é uma outra vida, é um outro mundo onde as pessoas são menos fechadas,

60 Durante a pesquisa de campo, pude observar que na rave se consome também outras substâncias, como nicotina, álcool, maconha, mescalina e cocaína.

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mais abertas. É um mundo que tudo é possível, que tudo pode. (Danilo, jovem entrevistado em 13 de abril de 2009).

Tanto o ecstasy como o LSD tem um papel relevante na forma como a música é experienciada

na festa. No caso da primeira, trata-se de uma substância que, como dizem os saberes farmacológicos,

exerce uma espécie de “efeito de potenciação” do corpo. O estasy age não apenas no nível da

introspecção, mas também no da promoção de uma abertura empática em relação aos demais, que,

segundo Nicholas Saunders (1996), leva os jovens a um “estado de loved up”. A música eletrônica, em

especial o psytrance, com sua textura sinestésica, seus ritmos contagiosos, potencia os efeitos do ecstasy,

proporcionando uma liberação do corpo, um desprendimento do self, favorecendo a sociabilidade, e,

principalmente, um alargamento das capacidades físicas de seu consumidor. Esse conjunto de sensações

é descrito pelos jovens da seguinte forma:

Quando eu botei o pé na rave, eu não entendi muito bem como era o esquema, o que era que as pessoas faziam na rave. Porque, assim, tem a galera que toma bala e fica dançando sem parar... eu não entendia aquela galera muito doida, eu não entendia o que era que tava acontecendo com eles. Ai um povo estranho vinha falar comigo, abraçar, aquilo ali foi muito estranho, sabe? Uma galera que você nem conhece vim te abraçar e falar contigo. Eu achei estranho, mas eu me apaixonei pela festa, pela decoração, pelo ambiente, assim, pelos arrepios que dá, entendeu? Eu fiquei um pouco deslocada, eu não sabia se dançava, se fazia malabares ou se conversava, ou se paquerava. [...] Eu tava aqui na minha fazendo malabares, daí veio um cara me abraçar. Eu já sabia que isso rolava. Ele me abraçou e voltou de novo pra me abraçar. Quando foi na outra rave ele me reconheceu, ai venho falar comigo. Eu acho que é por isso que a gente acaba fazendo amizade. Você pode ver que em rave todo mundo se conhece. É tanto que na rave todo mundo divide tudo, água, pirulito, comida.... Se você ver alguém tendo uma bad ou mesmo passando mal mesmo, você chega junto e ajuda. Por isso que tem toda essa coisa do P.L.U.R. que o pessoal fala, porque a galera é mesmo diferente, é uma galera da paz que não briga. Tem o lance de preservar a natureza também. É isso. (Ilana, jovem entrevistada em 28 de março de 2009). [...] a galera chama a bala de fissura, ela é uma coisa instigante, ela é uma coisa, assim, constante. É uma coisa por mais ou menos umas duas horas, são duas horas de prazer intenso, com uma música arranhando o teu juízo, assim: “crem...” por duas horas. Mas depois dessas duas horas passa e quando passa é a pior coisa do mundo porque teu mundo, a duas horas atrás, tava a coisa mais alegre do mundo, tu tá bombando, vei! Tu fica em êxtase! Tu sente um prazer intenso, é prazer demais, só que quando acaba tu olha assim: “eu quero mais!”, porque tu tá pulando e o mundo tá pulando contigo. Ao teu redor é só alegria, mas só que quando passa, ai tudo pára e você começa a sentir dor no corpo porque teu corpo se movimentou de uma forma não natural, tu foi além do limite. Então, a bala é uma droga de fissura e de instigação. Mermão, a primeira rave que eu fui foi a do Astrix. A Liquid Sky trouxe um aparato do caralho. Eu olhava assim pro laser e parecia que ele atravessava minha cabeça. Eu olhava e a luz passava, assim: “tum!”. Era loucura demais, eu tava balado. Por incrível que pareça, tu só entende a música, as cores, tudo, se usar. Não adianta, não tem outra forma, porque quando o cara usa, o cara se toca: “ai, é assim, véi”. O efeito, por exemplo, vem com o entendimento. Se eu tô com a cabeça boa, pensando em coisa boa, ai vem o efeito da música: “pîum... pîum...”, ou então: “dûm... dûm...”, vai vir um sentimento ali pra mim

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ou uma imagem, tudo o que tá dentro da cabeça. É a partir daquilo ali que você vai ser arrebatado, por isso que o cara que usa pode dizer: “ai, o psy é bom”, “essa música é boa” ou “esse DJ se garante”. O cara que não usa, ele não pode chegar e dizer: “ai, o cara ai quebra”, porque ele não tá sendo cutucado. Ele não vai entender o sentido da música, você consegue ouvir cada barulho que o DJ faz. (Danilo, jovem entrevistado em 13 de abril de 2009).

Segundo os jovens, além de favorecer a sociabilidade na festa, como descreveu Ilana, o ecstasy

oferece também uma enorme sensação de prazer. Seus efeitos permitem ao jovem que o consome

interagir quase que de forma integral com todo o ambiente da rave. A partir dele, você pode

compreender melhor o sentido da festa: música, dança, cores e símbolos utilizados na decoração do

evento. Conforme relata Danilo, a cada batida do psytrance experiencia-se um tipo de sentimento seja de

alegria, tristeza ou mesmo uma “fissura”, como se você tivesse sua intimidade “cutucada” pela música.

Nesse sentido, a qualidade da música ou do DJ pode ser avaliada a partir do conjunto de sentimentos que

ele desperta no ouvinte que está sob o efeito do ecstasy. Tem-se, dessa maneira, a seguinte fórmula para

poder interpretar o conjunto de signos oferecidos aos jovens durante a festa: música, performances

(ambiente cenográfico, presença do DJ, modos “nativos” de falar, de dançar e de vestir) e consumo de

substâncias psicoativas.

Diferente do ecstasy que potencia as capacidades físicas do corpo e proporciona certo

desprendimento do self, o LSD opera promovendo, sobretudo, uma espécie de abertura sensorial,

levando o seu consumidor a uma relação mais introspectiva. Quem o consome, prefere ficar um pouco

distante dos demais participantes da festa. Seu efeito está diretamente ligado à subjetividade do

indivíduo. Dos psicoativos consumidos durante a festa, o LSD é o que mais guarda proximidades com o

discurso da “psicodelia”. Desde o “mito de origem” da rave, que assume certa continuidade com o

movimento hippie, nota-se como a substância se torna parte fundamental do sistema simbólico

produzido em seu espaço.

Assim, tipo, só depois que eu conheci o doce foi que eu comecei a entender a filosofia do psy e o que é psicodelia. O doce e tal tem aquele lance que era uma droga que começou a ser usada pelos hippies. O ecstasy só veio depois, porque a galera que tomava doce tinha a ver com o lance dos deuses indianos, de tá próximo da natureza. (Débora, jovem entrevistada em 10 de fevereiro de 2009). [...] O ácido é uma coisa que você fica influenciado pelo ambiente, tá entendendo? Se você toma um ácido num ambiente que tá todo mundo feliz, você vai ficar feliz também e se todo mundo tiver triste você vai ficar triste também. É impossível você não ser influenciado pelo ambiente. Primeiro, quando você toma ácido, você tá esquizofrênico, se você toma ácido você tá esquizofrênico porque os sintomas do acidado é muito parecido com os sintomas da esquizofrenia. [...] O cara fica dentro dele. Pode passar pisando no meu pé e o nego num tá nem vendo, porque ele tá absorvido no pensamento. É a rave que não deixa o cara fazer isso. A rave é tacando o

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pau direto “pá... pá... pá...”, quando o cara tá começando a viajar no pensamento, ele vai e volta: “Trum!”, porque chega alguém, troca idéia. As cores instigam o efeito do ácido, [...] quando você vê uma coisa colorida, tipo um amarelo verde limão, alguma coisa assim, aquilo ali dá uma reação em você, ai você fica: “nossa cara, que massa! Que lindo!”, então você parece que é livre. Você pode fazer o que quiser, é como se fosse só você, num tem esse lance da competição ai do mundo, num tem a inveja, num tem o preconceito, indiferença, num tem nada disso. Você fica feliz, véi! Só isso, você fica feliz. Tipo, nem lembra que segunda tem que ir trabalhar, estudar e tal. É só aquele momento ali. (Danilo, jovem entrevistado em 13 de abril de 2009).

Na festa pode-se encontrar vários tipos de LSD e cada um deles opera uma maneira diferente

de sensibilização do corpo. A principal forma de comercialização da substância nas raves é através de

selos. Cada selo tem um tipo de estampa: “Bike” e “Hollywood” são os dois mais famosos. Durante a

pesquisa, o único que pude visualizar de perto foi o do tipo “Bike”, que continha, em sua superfície, o

desenho de um homem pedalando em uma bicicleta sobre um monte coberto de neve.

É porque pra cada doce tem uma viagem. É porque, assim, pra cada doce você viaja de uma maneira diferente. Tipo, o dupla face... o dupla face é porque tem os dois lados que foi molhado, então você fica mais doido ainda. Cada coisa que você toma é uma viagem diferente. Mescalina ou então até o ecstasy puro em gotas que a galera tomou no UP [Universo Paralello] que eu fiquei sabendo. Em gotas a pessoa fica trilouca! (risos). Mas eu nunca vi aqui, já vi mescalina, ecstasy, tudo... tudo quanto é tipo, mas em gotas eu nunca tinha visto não. Nas raves daqui tu encontra “Bike”, “Hollywood”, “dupla face”... “Dupla face” é qualquer um, qualquer um pode ser “dupla face”. “Dupla face” é porque eles molham dos dois lados. Mas eu acho que ele num é mais caro não, é do mesmo preço. Depende do neguim que agüentar... Disseram que lá no UP [Universo Parallelo] tinha até cogumelo. O povo muito doido, dizem que neguim viaja e num volta mais não. Ora, e pior é que é mesmo, se você num tiver muito bem da cabeça... (Camila, jovem entrevistada em 05 de maio de 2009).

Tanto o ecstasy como o LSD atua na produção de um “corpo hiper-sensível”, porém guardam

algumas diferenças entre si. O depoimento informal de uma das jovens que conheci durante uma festa

que participei ajuda a tornar mais clara essa distinção: “São duas coisas totalmente diferentes, tem tudo a

ver com a questão de sentimento”, a jovem continua ainda comentando, “é outro sentimento totalmente

diferente, porque se tu toma um doce, tu não quer pular, dançar. Se tu toma um doce tu quer viajar. E se

tu tomar uma bala tu quer pular, passar a festa todinha pulando” (DIÁRIO DE CAMPO, 2008).

Semelhante ao LSD, as pastilhas de ecstasy também possuem desenhos de diferentes cores em

suas superfícies. Alguns jovens buscam associar os símbolos e as cores existentes nas pastilhas aos

efeitos que elas produzem, no entanto nem sempre isso é possível porque há uma infinidade de tipos e

mesmo aqueles já conhecidos, consumidos em outras ocasiões, podem produzir um efeito diferente do

esperado a partir do que foi experienciado na última fez em que se consumiu tal substância.

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A pessoa vai experimentando e é quase sempre diferente. É muito raro você encontrar uma que é igual… sempre muda de festa pra festa. Tem uma galera que escolhe só pela cor, pelo símbolo que tem nela, uns trevos, smilies, o símbolo da ferrari, da wolkswagen, in iang, teletubies... Às vezes você toma o smiley e o efeito é outro, tem sempre diferença, nunca é igual, depende muito de como ela foi feita. Dentro dela pode ter um monte de coisa que tu nunca tomou, você só sabe o que é que se experimentar... (Débora, jovem entrevistada em 10 de fevereiro de 2009). Dependendo do que eu tomar, eu vou sentir uma coisa diferente. Tem umas que é pra você ficar pulando, correndo, tu passa a festa inteira e não cansa, daí quando é no outro dia tu mal agüenta as pernas – já aconteceu muito isso comigo (risos). Tem umas também que é pra tu ficar de boa com a galera, conversando, curtindo a música, a gata que tá contigo. Mas varia, varia muito mesmo. (Danilo, jovem entrevistado em 13 de abril de 2009).

Os efeitos que as substâncias provocam assumem para os jovens uma importância maior do

que o próprio conhecimento acerca da sua composição. Mesmo sabendo que cada tipo de “bala” resulta

da composição de várias substâncias químicas trabalhadas em laboratório, as sensações que se pode

experienciar a partir de seu consumo parecem ser mais importantes do que qualquer outra coisa. Este

desconhecimento da composição das substâncias é aparentemente partilhado, entre quem consome e

quem vende. Por isso, os jovens entrevistados referiram que só experimentando se percebia que tipo

de sensações provocava determinada “bala”. Desta forma, é possível identificar diferenças, umas

que são visíveis, no formato, nos símbolos, nas cores, e outras que são sentidas no corpo, manifestas

em diferentes propriedades psicotrópicas. No entanto, essas diferenças não parecem encontrar

correspondência num padrão que permita associar certo símbolo ou cor a um determinado conjunto de

efeitos. Segundo Débora, “Às vezes você toma o smiley e o efeito é outro, tem sempre diferença, nunca é

igual, depende muito de como ela foi feita [...]”.

Foto 19: Pastilhas de ecsasty de diferentes cores e desenhos

Foto 20: Cartela de LSD do tipo bike

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Alguns participantes consomem tanto a “bala” como o “doce” durante uma mesma festa. Tudo

vai depender do conjunto de sensações que o jovem quer experienciar no ambiente do evento. Pode-se

dizer que há, entre eles, a produção de um “corpo perito” para poder interagir com os efeitos do ecstasy

ou do LSD conforme a sensação que se deseja vivenciar durante a festa. Esse “corpo perito” deve ser

produzido de forma a não somente saber identificar quais momentos são considerados ideais para o

consumo de determinado tipo de substância, como também pode empreender uma espécie de cálculo do

tempo que se ambiciona vivenciar a experiência adquirida a partir do consumo da “bala” ou do “doce”

durante a festa. Tudo isso de forma a evitar surpresas desagradáveis com relação aos seus efeitos no

corpo.

[...] se tu tomar um ácido e depois fumar muita maconha, o efeito do ácido vai ser muito pesado. Então você tem que manerar. Se o cara tá fumando maconha, provavelmente ele num tá fumando só maconha, porque rave é rave. [...] Então, se o cara tá fumando, mesmo que ele não esteja tomando nada, ele tá bebendo. A galera fuma muito, mas geralmente é com alguma outra coisa. O cara não vê o limite do corpo, e daí vai fumando e tomando bala e quando vê, no dia seguinte, tá com a garganta inflamada, as pernas doloridas [...]. Eu cheguei a usar bala, cheguei a andar, correr, pular, mas o corpo, com o doce, ele ficava fudido, fudido, então eu não agüentava chegar 10 horas da noite, chegava 2, 3 horas da madrugada que é quando omeçava a rolar um som que eu gostava. (Danilo, jovem entrevistado em 13 de abril de 2009).

Eu nunca tomei mais da metade, nunca. Eu morro de medo. Já tomei um quarto, a maioria das vezes eu tomo um quarto só. Porque também eu não gosto de ficar viajando direto, entendeu? Isso ai é quando eu tomo, claro. E, assim, tipo, na rave, eu gosto de viajar, mas eu não gosto de passar a noite inteira viajando porque eu fico com raiva, eu fico com a impressão de que eu perdi a festa todinha, fico, assim, com a impressão de que eu viajei tanto que não curti o momento. [...] O máximo que eu tomo é um quarto pra ver as cores, a música e ficar mais agitada, dançar, mais do que isso é muito raro eu tomar. Eu tomei metade no Rica Amaral pra nunca mais! Foi porque eu não gostei, pra mim eu perdi a festa, eu perdi 30 reais. Porque eu fiquei tão louca que eu não me dei conta que a festa tava passando. Você vai viajando, viajando, ai quando você chega em casa você quer dormir, você quer descansar e você não consegue porque você deita, você tá cansada e você não consegue descansar. Você fica querendo levantar, você fica querendo dançar, a música fica na cabeça batendo. É a pior coisa que existe. É o fim, eu acho horrível. Eu sou muito assim, ou você bebe, ou você toma doce, ou você fuma [maconha] ou você faz o caralho que você quiser. Eu opto, às vezes, por tomar o doce e beber porque é o que eu gosto de fazer, mas, assim, tem neguim que vai e cheira [cocaína] e toma doce. Ontem, o meu amigo veio me buscar, já tava bebendo, tomou um bike duplo, inteiro, entendeu? E ainda fumou um beck dentro do carro quando a gente tava indo. Chegou lá, a gente entrou 10:30, 11 horas ele queria vir embora. Ai eu disse: “tá, eu num vou não”. Ele tava passando mal, disse: “tô passando mal, tô passando mal, quero ir embora”. Todo mundo foi embora com ele porque ele mora lá no Icaraí. Ai é mó paia, eu fiquei pensando: “pra que isso? Você vai pra festa é pra curtir, daí você perde a festa todinha, fica muito doido, num se liga nem no que tá acontecendo em volta”. Eu acho assim, você quer tomar? Tem curiosidade? Toma um pouquinho, curte a festa na limpeza, num precisa ficar muito doido. Eu acho isso tão paia! É essencial pra você curtir, claro, mas não é uma coisa obrigatória. Eu já

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fui pra rave que eu num bebi nada, num tomei nada, e foi uma das melhores raves. (Ilana, jovem entrevistada em 28 de março de 2009).

Conforme se pode observar nos relatos acima, empreende-se uma espécie de entrega calculada

e marcada de cuidados que dosam e monitoram o limite do permitido, de modo a evitar o excesso,

rabiscando os tênues traços de um estado alterado de consciência e de sua temporária adequação à

situação: “na rave, eu gosto de viajar, mas eu não gosto de passar a noite inteira viajando porque eu fico

com raiva, [...] fico, assim, com a impressão de que eu viajei tanto que não curti o momento”. Algumas

vezes, há a combinação do ecstasy ou do LSD com outras substâncias, como, por exemplo, a maconha, a

cocaína e o álcool. Entretanto, como se pode perceber no relato de Danilo, essa combinação tem que ser

feita de forma “manerada”, principalmente porque o efeito de uma substância combinada à outra pode

ser “pesado” demais ao corpo: “O cara não vê o limite do corpo, e daí vai fumando e tomando bala e

quando vê, no dia seguinte, tá com a garganta inflamada, as pernas doloridas [...]”.

Nem todas as vezes se consegue alcançar o resultado esperado a partir do consumo de tais

substâncias. Em alguns casos, principalmente no tocante aos efeitos experienciados a partir do consumo

do LSD, os resultados alcançados podem ser bem diferentes daqueles almejados. Quando isso acontece,

dá-se o nome de “bad trip”, que, traduzindo-se literalmente do inglês, significa: “viagem ruim”. A

expressão é amplamente utilizada entre os jovens no intuito de caracterizar tal sensação como algo

pouco agradável de ser vivenciada no campo da festa. No entanto, não há como evitá-la, ela

simplesmente acontece sem qualquer aviso prévio.

[...] o doce num é só coisa boa não, é coisa boa e ruim. O ácido entra na tua cabeça e: “trararara”, ele libera o sentimento que tá dentro de ti. Quando você toma um doce, ainda mais se for em quantidade grande, você tem que se preparar porque ele vai liberar coisa boa e coisa ruim também, então não tem aquela viagem do doce, que tudo é mil maravilhas. Não, tem as bad também. E as bad é uma coisa que é natural do ácido, você tem que saber aprender a conviver com a bad, com o bom e com o ruim. A bad é o ácido sem “good vibe”. [...] Eu tive uma bad que eu tava aqui curtindo e tal psy, vinha uns amigos meu falar comigo e gente que eu não via, que via só de rave e eu ficava triste, tá entendendo? É triste. O cara que é teu amigo, que tu sabe que tá... que tá... dois anos sem falar e tal... parado naquela situação ali, se mordendo e tal pra falar contigo, é triste. (Danilo, jovem entrevistado em 13 de abril de 2009).

Durante a conversa que tive com Danilo, pedi a ele que me falasse mais a respeito da sensação

de uma “bad” para que eu pudesse compreendê-la melhor, porém o jovem se recusou, dizendo que falar

sobre uma “bad” não é uma coisa muito fácil, tampouco aprazível porque o fazia relembrar uma

experiência desagradável vivenciada durante a festa. O jovem se recusou a tecer qualquer comentário

mais detalhado sobre isso, caracterizando essa experiência como algo “pessoal”, demasiadamente íntima

para poder ser revelada a outra pessoa. Contudo, disse-me que quando “bate” uma “bad”, a única saída é

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apenas esperar que seu efeito passe o mais rápido possível. Em alguns casos, é recomendável que os

amigos do jovem que está experimentando essa estranha e desagradável sensação fiquem próximo a ele,

tentando tranqüilizá-lo, deixando-o o menos tenso e ansioso possível.

Por uma postura etnográfica que elegi acreditando ser a mais “ética” durante a pesquisa, decidi

não consumir nenhum tipo de substância psicoativa (lícita ou ilícita) no campo da festa justamente por

não me interessar em conhecer seus efeitos, mas apenas perceber parte dos vários “discursos nativos”

produzidos sobre eles, e ainda tentar compreender a forma como estas substâncias se relacionam com o

universo simbólico criado em torno da rave. Umas das principais características do ecstasy e do LSD

apontada pelos jovens, diz respeito à sua “função” de expansão da consciência de quem as consome,

proporcionando uma interação maior com o complexo conjunto de elementos simbólicos que compõem

a festa, tais como: cenário escolhido para a realização do evento, decoração, música e performances

adotadas no contexto do evento. Contudo, durante o consumo de tais substâncias, principalmente o LSD,

o jovem deve empreender um monitoramento do corpo, de modo a produzir para si meios para lidar

quando, a partir da ingestão do ácido, “bater uma bad”. Nesse sentido, de acordo com um dos jovens que

conheci durante a pesquisa de campo, é necessário ter “controle”, principalmente, porque o LSD “libera

emoções inconscientes”:

O lance do ácido é porque ele libera coisas que estão no teu inconsciente. Se você tiver triste, então depois que tomar o doce o efeito dele vai ser ruim. Tem que saber administrar. Eu só tô te falando isso porque já tomo essas coisas há um tempão, desde que comecei a andar em rave”. (DIÁRIO DE CAMPO, 2008).

Numa das festas que participei uma das jovens que havia ido comigo e mais alguns outros

numa topic começou a passar mal durante o evento, instantes depois de ter consumido algum tipo de

psicoativo que ela própria não soube identificar. Segundo a jovem, a substância tinha sido oferecida a ela

por uma amiga. Um dos rapazes que também havia ido à festa nessa mesma topic me reconheceu,

chamando-me rapidamente para que eu pudesse, juntamente com ele, ajudar à referida garota a se

acalmar. A jovem estava bastante tensa, não conseguia parar de dançar um só segundo e seus queixos

tremiam como se ela estivesse enfrentando uma situação de frio extremo. Fiquei bastante apreensivo

com a situação. Rapidamente outras pessoas foram se aproximando e tentando nos tranqüilizar,

afirmando que aquilo passava logo, que era apenas uma questão de tempo e, por isso, não havia motivos

para nos preocuparmos. Um dos organizadores do evento se aproximou e pediu para que ficássemos em

volta da jovem, de forma a “passar boas energias para ela”. Segundo ele, aquilo a ajudaria a enfrentar

melhor esse efeito desagradável. Além de tremer intensamente os queixos, a garota ainda sentia calor

intenso e pedia bastante água. A jovem não só bebia a água, como também a despejava sobre sua cabeça.

Segundo os jovens, quando se experimenta esse tipo de sensação, a impressão que se tem é de que o

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corpo está “derretendo”, no entanto, alguns a consideram como prazerosa. A situação foi inédita para

mim:

Nessa festa [Entrance] aconteceu algo que eu nunca tinha vivenciado antes. Uma das jovens que havia ido com a gente na topic começou a passar mal. Eu só a encontrei porque um dos amigos dela me reconheceu e acenou para mim, pedindo que eu fosse até onde eles estavam. Até então não tinha notado nada de errado com ela, porém ao me aproximar, vi que a jovem estava com uma expressão tensa, não parava de dançar, suava muito e tremia os queixos como se estivesse com frio. Fiquei assustado sem saber o que fazer, porém não podia passar isso para eles, afinal eles queriam a minha ajuda mesmo eu não sabendo bem como lidar com isso. A jovem queria que eu chamasse uma ambulância para socorrê-la, mas uma ambulância jamais acertaria chegar ali onde estávamos. A festa era muito escondida, nem eu teria conseguido chegar lá se na ida tivesse ido sozinho. Uma galera que tava perto da gente notou nossa aflição e se aproximou tentando nos acalmar. Veio um dos organizadores da festa conversar com a gente. Eu só o reconheci porque ele é bastante antigo na cena e também toca em algumas raves. Ele pediu para que ficássemos próximo da jovem e passássemos “boas energias para ela”. Mas parece que aquilo não adiantava muito, ela estava bastante assustada com tudo isso e repetia várias vezes que não queria morrer. Um outro jovem que havia se aproximado da gente, começou a relatar sua experiência com o ecstasy. Ele falou que havia festas que tomava até 6 comprimidos e nunca havia passado mal, e que algumas pessoas até gostam dessa sensação. A situação foi bastante tensa. Fiquei muito preocupado com a jovem. Ela só foi melhorando aos poucos. Quando reencontramos todo mundo para ir pegar a topic pra voltarmos pra casa, a jovem já estava bem melhor, mas dizia ainda se sentir enjoada. (DIÁRIO DE CAMPO, 2008).

O consumo excessivo do ecstasy e/ou do LSD provoca efeitos corporais indesejados. Dentre

eles, pode-se citar um que é bastante conhecido entre os jovens: o “bruxismo”. O “bruxismo” tem como

principal característica a incidência de movimentos leves e repetitivos da mandíbula, dando a ligeira

impressão de que o sujeito está sentido frio intenso. O “bruxismo” é bastante comum entre os jovens e

uma das formas encontradas para encobri-lo é chupando pirulitos ou mascando chicletes. Outra maneira

pela qual o metabolismo dos jovens reage aos efeitos decorrentes do consumo de tais psicoativos é

através da dilatação da pupila. Em alguns casos, essa dilatação pode provocar a ocorrência de piscadelas

múltiplas – no “idioma nativo”, diz-se que se está “revirando os olhos”. Isso ocorre em consequência do

incômodo causado pela intensa presença da luz, seja ela natural ou artificial. Em decorrência disso, um

dos recursos utilizados pelos jovens para encobrir esse tipo de “efeito colateral” é o uso de óculos de sol,

mesmo quando o evento ocorre durante a noite.

O pirulito é pros balados que, em geral, ficam tudo se mordendo, o cara se morde muito, chega a quebrar dente até, daí por isso o cara usa pirulito. Eu já quebrei meu aparelho por causa de bala. O pirulito é essencial, porque a galera se corta, morde a boca, a língua. [...] O cara revira os olhos, tá entendendo? Então a “lupa” é essencial não só se o cara tiver muito doido de noite, se tiver revirando os olhos também [...]. (Danilo, jovem entrevistado em 13 de abril de 2009).

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[...] quando a galera toma as coisas, existe um lance que você fica trincando os dentes. Você sente vontade de morder. Tipo, dá uma ansiedade, a pessoa fica muito elétrica. Então, a história do pirulito é isso, você fica mordendo, você fica mastigando. É tanto que você pode olhar, quando a galera termina o pirulito, a galera fica mordendo o pauzinho... deixando só o palito. Então, é assim, é o dente que fica trincando. Você tem que morder alguma coisa. Se você não morder o pirulito, você morde muito a boca, a língua. É involuntário, é a viagem. Se você num tiver com o pirulito, quando você vê, sua boca já tá toda machucada. Depende da viagem, porque é assim, cada doce, cada bala tem uma viagem, muda de pessoa pra pessoa, eu posso ter calafrio e tu pode ficar gelado; eu posso me tremer toda e tu pode querer ficar pulando, entendeu? Isso ai é uma coisa que eu nem descrevo muito porque vai variar, cada pessoa vai ter uma reação química diferente Na grande maioria tá voltado pra droga, mas também tem aquela de quem vai pra festa e não usa droga, mas tá de óculos escuro e com pirulito na boca porque todo mundo na festa tá. Já ficou aquela situação de ser moda. Quando o cara tá se moderndo, ninguém quer nem ficar perto. (Rodrigo, jovem entrevistado em 22 de janeiro de 2009).

O uso de pirulitos, óculos de sol ou mesmo de chicletes busca disfaçar que o excesso foi

cometido. Isso porque durante a festa, aqueles que abusam do consumo do ecstasy ou do LSD são vistos

com certa desconfiança pelos outros participantes, suscitando comentários do tipo: “Ninguém quer ficar

nem perto de frito”. Tais substâncias compõem parte do sistema simbólico da rave e por conta disso,

para alguns jovens, o seu uso não pode ser algo banalizado. Débora, por exemplo, fala sobre isso da

seguinte forma: “Tem gente que nunca foi em rave e quando vai a primeira vez, toma bala demais sem

saber tomar e já fica pela festa se mordendo, andando bicudo... é horrível! Tem que avisar pra eles que

existe pirulito pra isso”. O recurso à utilização de tais acessórios como forma de ocultar o excesso

advindo do consumo “descomedido” do ecstasy ou do LSD, assinalam a construção de performances

que se assentam sobre modalidades de autocontrole e gerenciamento de si, resultando numa espécie de

monitoramento, empreendido pelos jovens, das próprias ações, ou seja, tanto o óculos de sol, como os

pirulitos e chicletes são utilizados para “disfarçar” os efeitos indesejados de tais psicoativos, tornando,

assim, seus “efeitos colaterais” mais aceitáveis. Essa forma de autocontrole aponta para a criação de um

estado ideal típico implícito como forma de evitar qualquer excesso cometido durante a rave. Portanto, o

ato de mascar chicletes, bem como o de chupar pirulitos ou usar óculos de sol tem por objetivo encobrir

qualquer forma de abuso praticado durante a festa, tornando perfeitamente “apresentáveis” aqueles

“efeitos colaterais” indesejados.

Entretanto, há vezes em que o uso de óculos de sol ou o consumo de pirulitos durante a festa

não está relacionado à ingestão de alguma substância psicoativa. Tais acessórios já foram incorporados

ao universo simbólico da rave, e algumas vezes podem expressar também princípios de distinção entre

os jovens. O uso de tais acessórios acabou sendo incorporado à própria paisagem da festa. Nem sempre

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os jovens que estão de óculos escuros ou chupando pirulito querem encobrir algum efeito indesejado de

determinado psicoativo, mas o fazem porque, ali, a maioria das pessoas adota esse tipo de prática.

[...] Todo mundo fica lá de pirulito e óculos escuro, mesmo sendo marmota, acho que chega a ser moda mesmo. É aquele negócio, você vê a pessoa na rave que tem um óculos bonito é, tipo, também sinônimo de status, cada um quer ter seu óculos diferente, quer ter uma coisa exclusiva. (Rodrigo, jovem entrevistado em 22 de janeiro de 2009).

O consumo imoderado de psicoativos no campo da rave provoca conflitos de várias ordens.

Esses conflitos possibilitam a percepção de como são construídos os limites do permissível e do excesso

no âmbito de um contexto que, supostamente, não visa estabelecer “regras” para as interações entre os

sujeitos. Aqueles jovens que abusam do consumo de algum tipo de psicoativo durante a rave são

denominados de “fritos”. Segundo alguns participantes, os “fritos”, com seu comportamento de risco,

reforçam a imagem criada pela mídia a respeito das festas rave, como “locais de pura libertinagem

juvenil, onde as drogas e sexo rolam livremente, sem qualquer intervenção ou fiscalização por parte de

autoridades”61. O termo tem ainda um tom pejorativo e faz referência a um dos efeitos colaterais

advindos com o uso excessivo do ecstasy, que consiste em uma elevação da temperatura corporal,

podendo levar o sujeito à morte. Por conta disso, a rave é descrita ainda por Débora como:

[...] uma festa perigosa! É tanto que sempre tem segurança perto da piscina, perto da entrada de alguma lagoa, porque é uma festa perigosa. Então, eu acho que é uma festa que tem que ser pra pouca gente, com limite de ingresso e tudo. (Débora, jovem entrevistada em 10 de fevereiro de 2009).

A rave é para seus participantes um território que se move entre o lúdico e o risco. O consumo

abusivo de psicoativos, em especial o ecstasy, pode resultar num exemplo daquilo que René Girard

(1990) denominou como “festa que termina mal”. Felizmente, durante o período da pesquisa de campo,

não testemunhei nenhum caso fatal relacionado ao consumo abusivo de psicoativos no contexto da festa.

Porém, ao longo da pesquisa, tive acesso a várias matérias de jornais que noticiaram casos fatais

ocorridos em raves realizadas em outros estados brasileiros. Como exemplo desse tipo de tragédia em

festas rave que foi noticiada pela mídia, pode-se citar aqui a Tribe ocorrida no dia 27 de outubro de

2007, realizada na cidade de Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

A festa Rave Tribe aconteceu no último sábado (28) no parque Happy Land. Na ocasião, o jovem Lucas Francesco Amendola Maiorano, de 17 anos, morreu após sair

61 Trecho retirado de uma reportagem realizada pela TV Record sobre as referidas festas rave, veiculada no programa Domingo Espetacular, exibido no dia 13 de fevereiro de 2005 às 19h.

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da festa com suspeita de uso de entorpecentes e abuso de bebida alcoólica. Outras 18 pessoas foram internadas (O GLOBO, 2007)62.

Nessa festa, além de ter sido constado o óbito de um jovem de 17 anos de idade, outros 18

deram entrada no Hospital Estadual Prefeito João Batista em estado grave, correndo risco de morte.

Segundo o médico que atendeu aos jovens, todos eles haviam ingerido “drogas sintéticas” e abusado do

consumo de bebidas alcoólicas. Após a morte do jovem, o sítio no qual a festa foi realizada ficou

interditado por trinta dias para dar prosseguimento às investigações policiais no local. Algumas dessas

reportagens estão em anexo e podem ser consultadas nas páginas finais desta dissertação.

3.4 Outros espaços...

Próximo ao chill out tinha uma banquinha de venda de comida, chamada “Açaí do Jojó”. Parece que sua banca original fica lá na Praia do Futuro, pelo menos foi isso que Ilana me falou, ela disse também que lá vendia ingressos, às vezes. Olhando rapidamente, pude perceber que se vendia desde salgados e sanduíches até sucos e vitaminas. Além dessa banquinha, existia ainda outra que vendia somente sanduíches, sucos e refrigerantes, chamada “Sub Natural” (gostei bastante desse nome!). Além dessas duas banquinhas, tinha também dois vendedores ambulantes que toda festa eles estavam lá vendendo bombons, cigarros, pirulitos e outras coisas mais. A galera apelidou um deles de “Seu Madruga”. Toda vez que alguém saia pra comprar um pirulito, dizia: “vou lá no ‘Seu Madruga’”. Há ainda, se não me engano, 4 quiosques distribuídos pela festa reservados exclusivamente à venda de cerveja, uísque, água mineral e refrigerante. Em alguns deles, quem recebe o dinheiro é um dos organizadores da festa, porém quem entrega a mercadoria é um funcionário contratado. Ao todo, o número de pessoas em cada quiosque varia entre 4 ou 5. De cerveja só tem “Sol” e “Skol”, os jovens consomem as duas marcas indistintamente. Já eu, prefiro ficar apenas na coca zero! (DIÁRIO DE CAMPO, 2008).

Além dos espaços descritos até aqui, a rave conta ainda com o espaço improvisado do bar, da

lanchonete e dos banheiros químicos. Antes da realização da festa, os jovens que estão responsáveis pela

organização do evento visitam o local e mapeiam antecipadamente cada metro quadrado do lugar. Não

há um critério rígido de demarcação empregado na distribuição desses espaços, apenas escolhe-se aquela

área que tem um tamanho considerado como apropriado para abrigar cada um deles e seus praticantes.

Quando a festa é realizada em alguma das barracas da Praia do Futuro, os organizadores aproveitam a

própria estrutura do lugar para poder demarcar o lugar do bar e da lanchonete, valendo-se ainda dos

banheiros já construídos no local. Porém, quando não existem lanchonetes ou banheiros fixos, os

organizadores improvisam, alugando os chamados “banheiros químicos”. Estes medem,

62 Texto extraído do site do jornal O Globo, cujo link é: http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL163893-5606,00-PARTICIPANTES+DA+RAVE+ESTAVAM+ALUCINADOS+DIZ+MEDICO.html, acesso em 12 de outubro de 2009, às 10h.

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aproximadamente, 1m (um metro) de largura por pouco mais de 2m (dois metros) de altura, são

confeccionados em fibra de vidro e pintados, na maioria das vezes, na cor laranja. Em seu interior, pode-

se encontrar uma pequena janela para ventilação, um lavabo e um vaso sanitário. As quantidades variam.

Dependendo do número total de banheiros alugados, metade é destinada aos homens e a outra parte às

mulheres.

No espaço da lanchonete, pode-se encontrar desde os mais variados tipos de sanduíches e

salgados até as vitaminas mais criativas, aquelas que misturam ingredientes diversos, como, por

exemplo, açaí, banana, guaraná, amendoim, morango e castanha de caju. Tudo sob a rubrica do

“natural”. Os preços dos alimentos variam, alguns chegam a custar até R$ 7,00 (sete reais), como é o

caso de um copo de 500ml de açaí com morango, banana e granola. Os nomes dos sanduíches também

são bastante inusitados e fazem referência a determinadas modalidades de esporte praticadas pelos

jovens, como, por exemplo: “Surf” (pão, frango, banana e queijo), “Skate” (pão, frango, milho e queijo),

“Sandboard” (pão, frango, milho, presunto e queijo), “Bike” (pão, frango, passas e milho) “Kite” (pão,

frango, presunto e queijo), “Futebol” (pão, frango e milho), “Frescobol” (pão, atum, passas, cenoura e

milho) e “Body Board” (pão, atum, cenoura e milho). Todos vendidos a R$ 5,00 (cinco reais), cada um.

Foto 20: “Cardápio Açaí do Jojó”.

Foto 21: “Cardápio Sub Natural”.

Na maioria das festas, os organizadores cedem o espaço da lanchonete para outrem e cobram

determinada quantia de dinheiro para sua utilização. Tal fato se dá em decorrência do “pouco lucro” e do

“muito trabalho” obtido a partir dos cuidados que exigem a boa administração de uma lanchonete

durante o evento. Um dos principais motivos que faz com que os organizadores de uma rave abdiquem

da administração do espaço da lanchonete é o pouco lucro obtido com a comercialização de alimentos no

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151

interior da festa. Preferindo-se, assim, ficar a cargo da organização somente a administração do bar que é

bem mais rentoso. No entanto, para que haja um bom serviço de bar, é necessário que se estabeleça uma

série de contatos e acordos comerciais realizados antes mesmo da festa acontecer com empresas e

companhias de bebidas, negociando tanto a quantidade de produtos a serem disponibilizados no evento,

como também preços, formas e prazos de pagamento.

A gente sempre teve o nosso próprio bar. Algumas empresas tem como te ceder a bebida consignada que é, tipo, se tu vender e o que tu não vendeu tu devolve e paga o resto. Geralmente, a maioria do pessoal trabalha assim. Quando a gente compra a bebida, eles barateiam o preço. A gente já trabalhou com o pessoal da AMBEV e a Skol Beats deu até um patrocínio pra gente e agora a gente vai trabalhar de novo com eles. Com eles lá, eles não dão a consignação, o único evento que eles consignam é o Ceará Music. Ai a gente faz assim, eles conseguem o preço o mais baixo possível das bebidas deles, ai a gente entra num acordo lá sobre o preço e ele me dá uma bonificação bem gorda pra que, tipo, eu fique seguro que não vai faltar bebida no evento e que a bonificação dele vai me resguardar de uma possível não venda de todas as bebidas. E, geralmente, eles também dão uma parte em dinheiro. Então, acaba compensando mais fazer isso do que fazer consignado. Se colocar no papel, fica mais barato e eu ainda tenho esse apóio que a gente recebe em dinheiro. Então, a gente compra, a gente compra cerveja e refrigerante. [...] Com a água é mais ou menos parecido também. A água é mais fácil tu conseguir consignado, ainda mais porque a gente procura sempre... na festa passada quem fez com a gente o negócio da água foi o pessoal do [Grupo] Edson Queiroz. Night Power e Água Mineral Indaiá, eles consignaram tudo. Só quem não consigna é a AMBEV, mas, por exemplo, se eu for lá na Coca-Cola e levar o projeto da gente, eles me consignam um “milhão” de cervejas, que a cerveja deles são mais baixas, que é a Kaiser, Sol, aquela Bavária premium, Heinneken. Então, tipo, eles botam o preço dela bem baixo, tipo, 90 centavos pela lata e me dá consignado tudo, sem eu precisar desembolsar nada, eu pago tudo só no final. Mas, tipo, a AMBEV já não faz desse jeito e a água também. Agora tô procurando uma empresa pequena de água pra fazer negócio. A gente tá se reunindo com o pessoal da Adorágua, que é uma marca de água nova, num sei se tu já viu. A garrafinha deles é bem interessante, a de 300mls, que é a menorzinha, parece uma bolinha, assim, é bem redondinha, é bem bacana a embalagem deles. Ai, a gente vai tentar pegar essa água ai deles, consignada. A logística de bar é um negócio trabalhoso, ainda mais do jeito que a gente ta fazendo, porque, tipo, tem que tá atento ali o tempo todo. O Marcus, que é o cara que cuida disso, tipo, ele tem que ter uma noção de estoque, de logística, de saída de coisa, sabe, gelo, bebida quente, copo. Quando termina a festa, tipo, a gente fecha o bar, fecha o bar todo. O cara que tá responsável passa ainda mais umas duas horas lá com caneta e papel batendo o caixa de tudo o que saiu, do tem que devolver, de tudo o que tem que ser pago e só depois a gente fecha o caixa geral junto com a bilheteria [...]. (Pedro, jovem entrevistado em 23 de maio de 2009).

Na festa se oferece aos jovens uma única marca de cerveja, apenas uma de água e a mesma

linha de refrigerantes. A rígida revista empreendida na entrada dos eventos evita a incursão no espaço da

festa portando qualquer tipo de bebida ou de comida que não tenha sido adquirida lá, obrigando os

participantes a consumirem apenas aqueles produtos vendidos na festa. O esquema de compra de bebidas

denota disciplina: às vezes tem-se que se dirigir a um guichê para a compra de fichas e depois seguir até

o quiosque no qual a bebida está acondicionada para trocar a ficha pelo produto adquirido.

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No espaço do Bar, comercializam-se vários tipos de bebidas, desde garrafas de água,

refrigerantes e latinhas de cerveja, até energéticos, doses de vodka e uísque, porém, as bebidas mais

vendidas são as cervejas e as garrafas de água. Não é preciso muito esforço para notar isso, basta olhar

para o chão do lugar quando a festa já se aproxima de seu final. Amontoam-se entre os participantes,

pilhas de garrafas de água mineral e latinhas de cerveja vazias.

Foto 22: Garrafas de água e latinhas de cerveja abandonadas pelo chão da festa.

Foto 23: Embalagens de bebidas jogadas pelo espaço da rave.

A sujeira deixada no espaço da festa parece contradizer o “discurso ecológico” que perpassa a

“cosmologia” das raves. O acúmulo do lixo avisa que a festa está chegando ao fim. À medida que as

horas avançam e a manhã se aproxima de seu final, a festa vai ficando cada vez mais vazia. Os

funcionários responsáveis pela desmontagem do equipamento de luz entram em ação e começam a

recolher refletores, fios elétricos e lâmpadas flúor espalhadas pela rave. De forma semelhante a sua

chegada ao evento, os jovens vão abandonando a rave aos poucos e em grupos. É nítido o cansaço de

alguns participantes, pode-se perceber isso em seus rostos. Afinal, enfrentar em média 12 horas de festa

deixa qualquer um abatido. Mas existem aqueles que ainda têm pique para agüentar um pouco mais, que

preferem continuar na festa, mesmo após a apresentação do último DJ.

Um fato interessante que pude observar durante minha participação nos eventos foi que, para

alguns jovens, a experiência da rave se mostra tão intensa que, mesmo quando se encerram todas as

apresentações dos DJs, há um considerável número de participantes que ainda preferem ficar reunidos

em grupos, sentados no chão conversando, até os seguranças contratados começarem a expulsá-los sob a

alegação de que os organizadores do evento terão que, obrigatoriamente, dar por finalizada a rave.

Mesmo após receberem o aviso, ainda se mostram relutantes em abandonar a festa e partirem de volta às

suas casas, mas o fazem meio a contragosto.

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Foto 24: Jovens sentados no chão conversando após o término da rave

Alguns jovens me confidenciaram durante as entrevistas que, para eles, a experiência da festa

se mostra de forma tão positiva que, logo após o término de uma rave, eles ficam ansiosos esperando a

data da próxima. A experiência da rave é tão intensa que, mal termina a festa, os jovens já começam a se

articular e trocar informações sobre quando ocorrerá, quanto custará, quem se apresentará e onde

realizar-se-á a rave seguinte. Entretanto, basta abandonar o espaço da festa para o cansaço ser sentido

invadindo o corpo. No caminho de volta para casa, seja na topic alugada especialmente para o evento ou

num carro particular, quase não há conversas. O silêncio informa que todos já estão mais do que

exaustos para qualquer coisa, ansiosos, principalmente, por suas camas. Depois de uma festa, eu sempre

chegava em casa exausto, faminto e cheio de olheiras. Na maioria delas, sentia meu corpo sussurrar por

repouso. Por várias vezes, durante a pesquisa de campo, eu tive que voltar dirigindo depois de passar 12,

14 ou até 18 horas, praticamente sem dormir e mal alimentado. Nesses momentos, lembrava da famosa

questão de Spinoza: “que pode o corpo?”, porém a complemento: “que pode o corpo do ‘pesquisador’?”.

Nas vezes em que não agüentei passar a festa inteira sem dormir, recorri ao chão e lá eu pude descansar

por breves instantes de tempo que me revitalizavam por algumas horas. Em muitas festas tive o sono

velado por alguns de meus “informantes” que cediam suas mochilas ou seus colos para meus cochilos.

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4. FESTAS QUE UNEM E SEPARAM

Antigamente, era uma festa por mês, uma festa a cada dois meses. Agora não, parece que todo mundo descobriu que

rave dá dinheiro e quer fazer festa todo final de semana [...].

(Eduardo)

O conflito é uma forma de sociação.

(Georg Simmel)

Cada um dos espaços e momentos vivenciados durante a rave transporta os seus participantes

para outro espaço-tempo que extrapola a dimensão da urbe. Os discursos que perpassam a “cosmologia”

dessas festas reivindicam não só a criação de uma espécie de território autônomo, mas um “espaço

outro” em relação à cidade, dotado de um modo de vida diferenciado daquele experienciado no cotidiano

da urbe. Um espaço com uma dinâmica própria, que se desfaz na segunda-feira e volta a se refazer no

final de semana seguinte. Foucault (2001) denomina esses “espaços outros” como “heterotopias”.

Conforme o autor, o que constitui o caráter singular desses espaços é sua alteridade, sua contra-relação

com outros espaços através de práticas que os negam. Ou seja, as “heterotopias” e os “espaços outros”

constituem espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, são contestadores e invertidos.

Segundo os freqüentadores, as raves possuem algo de especial que as torna diferente de outros

eventos musicais não só por conta de seus símbolos, mas principalmente no tocante à construção dos

vínculos entre seus participantes. No “discurso nativo”, afirma-se que esse tipo de festa se diferencia de

outras festas justamente por ser dotada de um conjunto de sensações definido pelos jovens como

“P.L.U.R.” (sigla para a expressão: “peace, love, unity and respect”, que, traduzindo literalmente do

inglês, significa: “paz, amor, união e respeito”). A “filosofia do P.L.U.R”, como definem alguns

participantes, consistiria numa espécie de atualização do lema “paz e amor” adotado pelo movimento

hippie nos anos 1960, incorporando ainda a ele outros dois elementos: união e respeito. Segundo um

texto publicado em uma das várias comunidades virtuais existentes na Internet sobre o tema, o P.L.U.R.

expressa:

P(eace) Paz. A tranquilidade interior que está dentro de cada um de nós, apesar de nem sempre

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sermos capazes de encontrá-la. Quando a possuímos, passamos calma e serenidade a tudo e todos que estão à nossa volta. L(ove) Amor. O sentimento incondicional de afeto que sentimos por algo ou alguém. Pela lei universal da ação-reação todo amor que você der a alguém será devolvido a você de alguma forma. Lembro que as duas primeiras letras do PLUR representam nada mais nada menos do que a base do ideal hippie de vida (Paz e Amor). U(nion) União. Apesar de todas as nossas diferenças, todos compartilhamos um conjunto comum de características: somos todos humanos, imperfeitos e dependemos uns dos outros para nossa sobrevivência. Com paz e amor, a união permite a você se relacionar com outras pessoas APESAR de suas diferenças, e até mesmo se enriquecer com esta troca de experiências. R(espect) Respeito. Aqui temos que saber reconhecer e aceitar que somos diferentes, APESAR de nosso conjunto comum de características. Precisamos respeitar uns aos outros, a nós mesmos (cuidando adequadamente de nosso corpo e mente) e até mesmo ao ambiente à nossa volta. Quem respeita não pixa, não agride, ajuda quando alguém precisa, não joga lixo no chão e zela pelo espaço a sua volta63.

O discurso do P.L.U.R. busca assinalar a existência de certo sentimento de harmonia entre os

jovens no interior da festa. A origem da sigla é controversa, porém acredita-se que ela foi criada pelo

renomado DJ norte-americano Frankie Bones, conhecido por muitos como “o pai das raves nos EUA”.

Após uma de suas apresentações nos arredores de Nova York, Bones explicou ao público do que

realmente se tratava uma festa rave, definindo-a em quatro palavras: peace, love, unity and respect.

Quando terminou, todo o público chacoalhou as mãos no ar saudando o DJ. A partir daí, a sigla P.L.U.R.

estava criada, passando a ser adotada pelos jovens que freqüentam festas rave em qualquer lugar do

globo (SAUNDERS, 1996).

O P.L.U.R. é uma sigla para uma espécie de filosofia de vida, que as pessoas tem a opção de seguir. Nessa filosofia de vida, seria preciso saber cultivar a paz individual e coletiva, cultivar sentimentos de carinho e amor para com o próximo, incitar a união entre todos e respeitar coisas, meio ambiente e outras pessoas, independente de credo, raça, religião, gostos e opiniões, etc. Tudo muito bonito, mas não resta apenas saber o significado da sigla, e sim é preciso saber, entender e tentar colocar esta filosofia em prática. [...] P.L.U.R diz respeito ao espírito (no intrínseco sentido de suas palavras) que supostamente deveria reinar dentro dessas festas e também fora delas. Seria de certa forma o “Way of Life” perfeito64.

Embora haja pequenas variações em sua definição, o P.L.U.R. expressa um modo de vida que

valoriza sentimentos como a “paz individual e coletiva”, o “carinho e o amor para com o próximo”, a

63 Extraído de http://www.planetarave.com.br/plur/, acesso em 14 de janeiro de 2009 às 8h e 38min. 64 Extraído de http://www.baladaplanet.com.br/materias/t.05.03.29.plur/, acesso em 14 de janeiro de 2009 às 9h.

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“união entre todos” e o “respeito”, sobretudo, à diferença e à natureza. Esse “‘way of life’ perfeito” deve

ser colocado em prática durante a festa, justamente por se revelar como uma forma encontrada por

jovens urbanos de resistir ao modo de vida praticado na cidade: uma espécie de micropolítica urbana dos

afetos. Seu desrespeito aniquila toda a “harmonia” da rave, causando conflitos de diversas ordens, tanto

entre aqueles que organizam os eventos, como entre aqueles que só freqüentam as festas.

Um dos motivos apontados pelos jovens, tanto freqüentadores como organizadores, para o não

cumprimento da “filosofia do P.L.U.R.” é justamente a popularização das raves. No início da cena local,

essa popularização da música eletrônica e dos eventos relacionados a ela era buscada intensamente (ver

capítulo 2), porém hoje passa a ser alvo de críticas, motivando diversos tipos de conflitos entre os

participantes.

Alguns dos “informantes” com quem tive a oportunidade de conversar durante a pesquisa de

campo, afirmaram que aquele ambiente repleto de “paz, amor e harmonia” existente e compartilhada

entre todos aqueles que habitam temporariamente o espaço da festa estaria perdendo sua aura, sua

magia. Para esses jovens, o principal motivo disso se deve justamente à crescente popularização das

raves não só no âmbito local, mas também em nível global, alegando que, por conta disso, as raves

estariam sendo freqüentadas por pessoas que não compartilham, tampouco praticam, os símbolos e

discursos adotados na festa, mas que estão lá apenas para se divertir. No entanto, deparei-me ainda com

jovens que em suas falas defendiam exatamente o contrário. Para eles, o crescimento e a popularização

da cena local, tal como foi empreendido em seu início, é visto de forma positiva e só têm a contribuir

para a disseminação do gosto pela música eletrônica entre as culturas jovens da cidade.

É sobre esses sentimentos ambivalentes que pretendo me debruçar neste capítulo. O principal

objetivo aqui é apresentar tensões, hierarquias e princípios de classificação encontrados durante a

pesquisa de campo, ou seja, festas que unem e separam, que integram e, ao mesmo tempo, hierarquizam,

colocando sob rasura a idéia romântica de completa integração entre os jovens que participam das raves

realizadas em Fortaleza e cidades vizinhas.

4.1 “Um fim de semana ímpar pra cena”

Aos poucos, o cenário das festas raves foi conquistando dimensões cada vez maiores,

abandonando o universo underground e se inserindo, cada vez mais, no campo do mainstream. Em

Fortaleza, a partir da criação do núcleo Undergroove em 2000, tanto o número de casas noturnas onde se

pode ouvir as batidas da música eletrônica, como também a quantidade de “festas open air” realizadas

na cidade e arredores cresceu rapidamente. Conforme foi visto anteriormente, o número de raves

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realizadas na capital cearense saltou de uma, em 2005, para cinco, em 2006, expressando um

significativo aumento na quantidade dessas festas ocorridas aqui.

Durante a pesquisa de campo pude perceber de perto o rápido crescimento da cena local e a sua

incrível descentralização. Em 2008, foi praticamente incontável a quantidade de festas realizadas em

Fortaleza e cidades vizinhas. Só num único final de semana do mês de setembro houve nada mais nada

menos que cinco eventos na cidade e arredores, a saber: Insane, Heineken Sunset, Magic Lagoon II, PVT

de Techno e a Aloha Louca. Quantidade que equivale ao número total de festas realizadas durante todo o

ano de 2006, segundo informações encontradas no site Psyte (www.psyte.com.br). Nesse final de

semana específico, aconteceu não apenas raves, mas também outras festas relacionadas à música

eletrônica na cidade. Esta surpreendente profusão de eventos em setembro foi comentada num blog da

seguinte forma:

Tivemos um fim de semana ímpar pra cena como um todo aqui na cidade, explico: Fim de mês, mês este notoriamente caracterizado pelo baixo público na noite; Grandes festas na cidade. Sexta: Insane - Festa realizada por uma “produtora” nova com uma atração forte, em um pico novo, enfim coisas que mexeram com certeza com o público. Sábado: Heineken Sunset - melhor e maior edição já realizada; Magic Lagoon II - segunda edição da festa que para muitos foi a festa do ano e aniversário de uma das maiores produtoras; PVT de Techno - festa de menor produção, porém feita com o cunho de relembrar e reviver uma cena forte na cidade que teve e ainda tem muitos adeptos; Aloha - Festa que [...] tem nome e público, público de massa, aquela massa que faz falta na hora de se acrescentar bilheteria. Enfim, fiz questão de introduzir meu comentário desse modo pra salientar alguns pontos. Antes que venham aqui e como já o fizeram, reclamar da “cena”, que a “cena” é isso, que a “cena” não existe e blá blá blá, vale a pena parar e pensar no que se viu na cidade. O público está mudando, as pessoas estão sendo mais seletivas no que cerne a festas e eventos, pois, principalmente no psy já passaram por aqui uma série e grandes nomes em várias festas históricas e fica e vai ficar cada vez mais dificil entrar no mercado, pois o mesmo é formado por pessoas capazes e que conhecem do estilo. Nas outras vertentes, a tal “cena” dá provas que não se limita a uma cena “raver”. A Heineken foi sem dúvidas uma das festas mais bem produzidas que esta cidade já teve, principalmente em termos de conceito, proposta do projeto. Magic Lagoon foi muito boa mas com certeza foi diretamente influenciada pela tal INSANE, o que gerou alguns problemas, nada que tirasse o brilho da festa. Estas foram as que tive a oportunidade de ir, agora quanto as outras, a PVT pelos coments que ouvi e pelo que li aqui foi excelente. Isso tudo mostra que existe público, existe conceito, existe credibilidade e existe competência na tal “cena” que todos adoram meter o pau. Ah! Sem contar que no dia da tal Insane, meu projeto, junto com os parceiros Fino e Fil teve uma das melhores noites, sendo prestigiada por várias pessoas que [dizem] fazer a tal “cena”. Ressaltei e citei o nome “cena” reinteradas vezes propositalmente pra que as pessoas vejam a amplitude da música eletrônica. A meu ver, nem vale a pena meter o pau ou citar pessoas e “supostas” produtoras e projetos novos surgindo, de credibilidade duvidosa que só acontecem por motivos obscuros e carecem de verdade e credibilidade. Enfim, vai este texto longo, porém cheio de pontos em que todos que fazemos a noite acontecer devemos refletir, opinar até, amadurecer e enxergar o público como real

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consumidor de um produto que necessita de bons profissionais, e que estes bons profissionais existem e estão dando o melhor de si, cada um em seu segmento, seu estilo e suas idéias, porém, todos sabemos que há muito o que crescer, expandir e melhorar, agora para que isso ocorra precisamos que o público e as pessoas que fazem a noite não embarquem em ilusões e/ou projetos megalomaníacos de caráter duvidoso [...]65.

Este longo texto assinado por um jovem que prefere ser conhecido como Morr66, foi publicado

em seu site, intitulado Morr+music (www.morrmusic.com.br), durante o mês de setembro de 2008 para

comentar sobre a “importância” dessa enorme quantidade de festas relacionadas à música eletrônica para

a cena local. Em seu texto, pode-se observar que Morr faz um elogio a essa popularização da música

eletrônica e aos vários eventos relacionados a ela ocorridos num único final de semana em Fortaleza. E

não é só isso, o jovem também afirma que um “final de semana ímpar” como esse expressa certo

“amadurecimento” da cena local, escrevendo que “isso tudo mostra que existe público, existe conceito,

existe credibilidade e existe competência na tal ‘cena’ que todos adoram meter o pau”. A principal

intenção de Morr é desacreditar todas as críticas que são feitas à cena de Fortaleza, contestando-as. A

maioria delas queixa-se de certo “amadorismo” por parte dos organizadores dessas festas, reclamando,

principalmente, da infra-estrutura criada para receber os participantes durante os eventos. O que, para

Morr, não é verdade.

Entretanto, nem todos vêem de forma positiva esse crescimento, tampouco encantam-se com

essa popularização e com essa nova forma de atuar na promoção de festas de música eletrônica em

Fortaleza e arredores. Para estes jovens que não compartilham do mesmo pensamento de Morr, isso só

prejudica a cena local, pois a faz incorporar um acento comercial – algo que é bastante criticado, como

será visto mais adiante. Essa tensão de opiniões acerca da questão da popularização das raves na cidade

gera inúmeras formas de conflito entre os jovens, tanto entre aqueles que trabalham na organização dos

eventos, como entre aqueles que apenas freqüentam as festas.

A popularização das raves proporciona não só a promoção de várias festas simultâneas no

circuito do lazer noturno de Fortaleza, mas também o surgimento de diversos núcleos e produtoras de

festas de música eletrônica que passam a atuar diretamente na cena local, criando mercados e nichos

específicos. Tal fato gera rivalidades entre os próprios membros dos grupos, acarretando uma feroz

disputa pelo público. Há uma verdadeira competição entre os núcleos e produtoras para realizar “a

melhor festa” com “os melhores DJs” da cena em geral e, assim, conquistar a credibilidade do público.

65 Extraído de http://www.morrmusic.com.br/site/?m=200809, acesso em 02 de outubro de 2008, às 16:11h. 66 Segundo informações publicadas no próprio site, o nome verdadeiro de Morr é Ronaldo Navarro. O jovem é natural de Fortaleza, porém morou boa parte de sua vida no Mato Grosso do Sul, onde, aos 13 anos de idade, teve o primeiro contato com a música eletrônica. Atualmente, Morr tem 29 anos de idade e há pouco mais de 6 anos atua como DJ na cena local.

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Em um texto publicado também durante o mês de setembro de 2008, no antigo site do Nu-ACT

(www.nuact.com.br), o DJ Mechanimal, membro do núcleo desde a sua fundação, testifica o conflito

existente entre os núcleos e produtoras que atuam na cena local da seguinte forma:

Há muito tempo atrás, numa terra muito distante daqui; existia uma civilização que se organizava socialmente de forma similar ao que foi definido na era medieval como feudos. O poder da nação era dividido entre esses feudos, de forma que sempre existiam conflitos entre eles em busca de riquezas, poder e domínio da nação. Esses feudos nessa busca incansável de poder arregimentavam exércitos de cavaleiros que partiam na luta em defesa de suas bandeiras e filosofias, gerando conflitos que muitas vezes não eram entendidos nem mesmo pela grande massa formadora de cada um desses grupos. Entre eles num passado recente existiu até mesmo um grande e próspero feudo, que conseguiu arregimentar o maior número de guerreiros e a melhor estratégia de comunicação com o povo conquistando assim o respeito e predileção de grande parte da nação como um todo, ate que houve um golpe partido de dentro do próprio feudo; O maior de seus cavaleiros convence o resto do exercito a abandonar o senhor feudal e decidem formar seus próprios feudos ou trabalhar em nome de riquezas e bens para qualquer senhor feudal que pudesse pagar. A partir daí se inicia uma época de barbárie nessa nação; com a queda desse grande feudo, a corrida pelo poder entre os outros senhores se inicia de forma ferrenha, pondo abaixo ate mesmo todos os códigos de ética de guerra que esses feudos respeitavam, códigos esses semelhantes aos dos samurais da civilização japonesa. Na luta pelo poder existiam 3 frentes, uma formada pelos senhores feudais, outra pelos cavaleiros, subdivididos ainda entre os que lutavam pelo que acreditavam como o melhor pra nação e outros que haviam se vendido; e por ultimo o povo, a massa que sem enxergar a verdade era tangida como gado. Nesta guerra, se via o inimaginável: Feudos aliados viravam rivais, feudos tradicionalmente inimigos se uniam por pura conveniência pra derrota de um dos inimigos, e logo após a derrota eles voltavam a se digladiar. Feudos menores, mas com grande capacidade de ascensão eram massacrados por incursões constantes em suas terras. E ate mesmo a iniqüidade de cavaleiros lutarem em feudos diferentes e inimigos ao mesmo tempo. Essa época durou por muito tempo, até que um dia a massa enganada foi descobrindo que nem toda informação que chegava a seus ouvidos era confiável, que o pão e o circo distribuído por alguns senhores feudais não mais nutriam suas expectativas e anseios. Entenderam por fim que o verdadeiro poder estava em suas mãos, porque era de suas mãos que partiam as moedas que eles distribuíam como taxas, e que eles podiam quando bem entendessem passar a compactuar com outro feudo se assim o desejassem. Nesta historia não existe bem um final, porque assim como tudo no universo ela e cíclica. Por essas paginas ainda passarão muitas situações: Guerreiros desistirão da batalha, senhores e cavaleiros mudarão de lado, mascaras cairão, e cavaleiros outrora mercenários se arrependerão e passarão a lutar ao lado dos senhores de bem.

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Esta é uma historia de ficção, qualquer semelhança com a cena raver de Fortaleza é pura coincidência (DJ Mechanimal)67.

No texto citado acima, o DJ Mechanimal se utiliza de uma linguagem metafórica e bastante

irônica para se referir tanto aos eventos ocorridos no mês de setembro, como ao cenário das raves em

Fortaleza de forma geral. Percebe-se nas entrelinhas que para o referido DJ, o fenômeno da

popularização das festas na cidade trouxe consigo vários efeitos indesejáveis, dentre eles, hierarquias e

princípios de distinção entre os núcleos e produtoras, acarretando uma acirrada disputa pelo poder

(BOURDIEU, 2006; 1989)68. No início da cena, apenas um grupo de pessoas era responsável pela

promoção das raves na cidade: o Undergroove, porém, com o passar do tempo, inúmeros outros

surgiram e com esse pulular de grupos, vieram também os atritos. Desse modo, assegurar a presença

maciça dos jovens em uma festa passa a ser encarado como um empreendimento nada fácil. Nesta

disputa, vale tudo, até um jogo de ofensas e acusações a fim de legitimar ou desacreditar o poder que o

outro tem no interior da cena.

São várias as formas de poder existentes no microcosmo das raves. Uma delas que se pode

assinalar é a credibilidade que determinado núcleo ou produtora tem entre os jovens, conquistada não só

por meio do tempo de atuação do grupo na cena e pela experiência adquirida em eventos anteriores, mas

também através do cumprimento de determinadas “ofertas” prometidas ao público. Por exemplo, se um

núcleo ou produtora anuncia a participação de um conhecido DJ na rave em que está organizando, é

premente que a “promessa” seja cumprida, ou seja, que o músico realmente esteja presente no evento e

toque no horário marcado para sua apresentação; caso contrário, a próxima festa que o grupo realizar não

vai contar com a mesma credibilidade e adesão do público. Outro fator importante para manter a

credibilidade de um núcleo ou produtora é a periodicidade com que promove seus eventos. Não é bem

visto entre aqueles que criticam o fenômeno da popularização das raves na cidade o fato de um mesmo

grupo de pessoas promoverem festas de música eletrônica todos os finais de semana; isso deprecia a

imagem do grupo, dando a impressão de que esses jovens estão preocupados apenas com o caráter

comercial de seus eventos, ignorando seus próprios discursos que defendem a proposta de se produzir

um espaço outro, espaço este que marque uma espécie de intervalo na vida cotidiana dos jovens.

67 Texto extraído de http://www.nuact.com.br/textos.ver.php?id=28, acesso em 10 de outubro de 2008 às 17h e 30min. 68 Com base nas formulações de Pierre Bourdieu (1989), pode-se utilizar aqui para analisar esses conflitos o conceito de campo desenvolvido pelo autor. O conceito se refere aos diversos espaços da vida social, que possui uma estrutura própria e relativamente autônoma. Os campos se organizam em torno de objetivos e práticas específicas orientadas por uma lógica de funcionamento própria que opera estruturando as relações entre os agentes no interior de cada um deles. Cada campo possui uma forma dominante de “capital”, que, em menor ou maior quantidade, opera diretamente na produção de distinções entre os indivíduos. Segundo o autor, no interior de cada campo, há ainda lutas para poder assinalar aquele tipo de “capital” que é “legítimo”, “consagrado” e “reconhecido” entre os agentes. Nas tensões geradas a partir da luta pela posse desse “capital”, os agentes ou grupos de agentes desenvolvem estratégias de “conservação” ou de “subversão” desse “capital”, conforme seus interesses específicos. Muitas vezes, essas disputas visam defender ou conquistar uma determinada posição dominante nas hierarquias constitutivas de um campo social.

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Em uma das raves que participei, realizada durante o ano de 2008, houve um fato interessante

que cabe ser mencionado aqui. O evento foi organizado pela produtora The Sound e aconteceu numa das

barracas da Praia do Futuro. A rave foi excelente, com exceção de um detalhe: Rica Amaral, um dos DJs

principais, faltou à festa. O curioso é que, em momento algum, os organizadores chegaram a anunciar

publicamente o fato e, por isso, a maioria dos jovens que estavam no evento nem perceberam que o

músico tinha faltado. Aqueles que perceberam, só notaram porque eram veteranos e já haviam

participado de inúmeras outras raves que contaram com a participação do referido DJ. A notícia se

espalhou rapidamente pela festa, porém, mesmo assim, houve aqueles que só vieram saber do fato

quando foram postar algum comentário sobre a rave em uma das inúmeras comunidades virtuais

existentes na Internet relacionadas ao tema.

Uma das formas que os integrantes da The Sound encontraram para se desculpar com os jovens

foi anunciar no Orkut que seria realizada, numa outra data, uma nova festa com o DJ Rica Amaral,

ficando a cargo dos próprios participantes a escolha do local a ser realizado o evento. Informaram ainda

que a rave seria inteiramente gratuita. A atitude da The Sound foi bastante elogiada pelos jovens, porém

a maioria deles desaprovou a idéia da festa ser gratuita, sob a alegação de que isso atrairia uma “galera

que não tem nada a ver com a cena”, que apenas compareceria ao evento aquelas pessoas interessadas

em aproveitar uma “balada” grátis. Entretanto, nem todas as produtoras têm esse mesmo cuidado com o

público. Com relação a isso, cito abaixo a fala de Rodrigo:

[...] eu cheguei lá em cima da hora, daí fui lá na bilheteria e perguntei: “cara, quanto é que tá o ingresso?”, daí eles me responderam: “cara, a festa tá no prejuízo e o ingresso tá de 30,00 reais”. A festa começou atrasada, ela era pra começar às 10h, e foi começar só às 2h da manhã e às 5h a festa já tinha terminado. Ou seja, a festa durou só 3h! O cara que tava organizando é amigo de uma amiga minha, ele já tinha tentado antes fazer festa grande, mas nunca tinha dado prejuízo, ele sempre conseguia contornar a situação. Parece que, por causa do prejuízo, ele não pagou nada, pagou só o DJ local, não pagou o aluguel da casa, do som, da iluminação. Foi uma comédia essa festa! O Bizarre Contact ia tocar nessa festa, mas acabou nem tocando, aliás, me disseram que ele nem veio pra Fortaleza. O mais engraçado é que o cara que tava organizando fugiu da festa, a galera veio dizer que ele sumiu de Fortaleza, que ele conseguiu sair do estado. O outro DJ que ia tocar por último, chegou lá na festa e viu que não tinha ninguém, daí ele simplesmente desistiu de tocar e foi embora. O dono da casa que era alugada não recebeu nada, daí ele também chamou a polícia e a polícia botou todo mundo pra fora. Até hoje eu tô cobrando do cara meu dinheiro de volta. Eu chego pra ele na Internet e digo: “cara, quero meu dinheiro de volta! Eu entrei às 4h e sai às 5h! Eu gastei 30,00 reais do nada, do nada”. Já me disseram que ele tá com depressão, disseram que, por causa disso, já tentaram pegar ele. Já disseram que ele tentou se matar, que ele tava com uma conversa estranha. Ele tá no prejuízo de mais de 20.000,00 reais e todo mundo procurando ele. Próxima festa que ele fizer, se ele ainda tiver coragem de fazer festa aqui, num vai dar ninguém, a galera tá tudo escarrando ele, ele se queimou geral com isso. [...] Ele se fudeu porque ele botou a festa dele junto com a da Zonavibe, daí se fudeu, vei! Tem que botar as festas uma num mês e outra no outro, porque você gasta muito numa rave. [...] O resultado foi que a festa dele foi um

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desastre e a da Zonavibe, a Magic Lagoon, não lotou tanto, não teve tanta gente como o pessoal tava esperando. Foi chacota, chacota pura! [...] (Rodrigo, jovem entrevistado em 22 de janeiro de 2009).

No relato transcrito acima, o jovem se refere à festa Insane – a mesma que foi comentada por

Morr em seu blog. O evento foi realizado num sítio chamado River Park, localizado nas proximidades da

estrada do Fio e foi organizado por um grupo “novo” (o grupo possuía o mesmo nome da festa – Insane).

A intenção do grupo “novo” era concorrer diretamente com a festa organizada pela já “consagrada”

Zonavibe, agendando a rave para um dia antes da realização da segunda edição da Magic Lagoon (27 de

setembro de 2008). Contudo, esse grupo “novo” enfrentou vários problemas durante o evento, dentre

eles: atraso, infra-estrutura precária e, o mais grave, ausência da atração principal, o aclamado DJ

Bizarre Contact. Todos esses problemas conferiram ao grupo que acabara de promover sua primeira

rave certo caráter herético em relação aos valores e discursos adotados na cena. Em seu depoimento,

Rodrigo acusa a Insane de “chacota, chacota pura!”. O fato de uma festa, núcleo ou produtora ser

considerada “chacota” pelos jovens indica que tanto o evento, como também as pessoas que, de alguma

forma, estão envolvidas nele, ignoram o ethos dominante na cena expresso a partir de sentimentos

assinalados através da sigla P.L.U.R.. Enuncia ainda que essas pessoas não comungam dos “sentidos da

rave”, ou seja, que elas dotam a festa de um caráter “puramente” comercial, pois buscam somente obter

lucro com sua realização ao invés de proporcionar aos jovens um espaço outro no qual se possa

experienciar um modo diferido de existência. Ao final de sua fala, Rodrigo sentencia: a “próxima festa

que ele fizer, se ele ainda tiver coragem de fazer festa aqui, num vai dar ninguém, a galera tá tudo

escarrando ele, ele se queimou geral com isso”.

O oposto da “festa chacota” é a “festa conceito”. Segundo me falou Camila, a rave pode ser

adjetivada como conceitual, “quando a festa é pesada, a festa tem nome, a galera é respeitada, da

organização”. Se auto-referenciar como “festa conceito” e acusar o outro grupo de promover “festas

chacota” faz parte do jogo criado para desacreditar a rave organizada pelo núcleo ou produtora

concorrente. É justamente a partir dessa classificação (“festa conceito” versus “festa chacota”) que serão

apresentadas, a partir daqui, aquelas hierarquias presente na cena que pude perceber durante a pesquisa

de campo. Para isso, tomo como análise o discurso dos jovens sobre duas festas realizadas por diferentes

pessoas durante o ano de 2008, a saber: a Entrance, organizada pelo Nu-ACT; e a Ultra Vip, promovida

por Diego Grecchi, um dos integrantes da The Sound.

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4.2 “Festa conceito”

No interior da cena, costuma-se definir como “festa conceito” aquela rave que é considerada

como uma “festa de qualidade”, promovida por uma “galera respeitada”, ou seja, por um núcleo ou

produtora de renome no cenário local ou nacional da música eletrônica. Conforme nos descreve Rodrigo,

para que uma rave seja tida como “festa conceito”, é necessário que ela valorize, por exemplo, a

decoração, conte com DJs renomados em seu line up e, por fim, adote não só um “pico paradisíaco” para

realizar-se, mas um local que seja, sobretudo, afastado da vida cotidiana da cidade.

Conceito é a qualidade da festa. Tipo, o que diferencia a The Sound da Zonavibe é que a Zonavibe se preocupa em fazer uma festa melhor, ela se preocupa com a decoração, ela faz um palco de qualidade, bonito, atraente. A festa é mais isolada, a festa é sempre mais longe, quanto mais longe melhor. Só vai quem curte mesmo, num é qualquer um que vai só por ir. Por isso que as festas da Zonavibe selecionam mais, porque vai menos gente, a galera que vai é uma galera que você sabe que curte mesmo rave. Pra você vê a diferença, na The Sound, quando dá 10h da manhã você vê que a festa já tá vazia. Já na Zonavibe, quando dá 10h ainda tá o mesmo público. O conceito seria isso, ter um DJ bom, uma decoração boa, um lugar, seria uma festa completa, uma festa onde a vibe é boa, sem brigas. (Rodrigo, jovem entrevistado em 22 de janeiro de 2009).

Nas palavras de Rodrigo, uma “festa conceito” não é aquela que é promovida somente para

agregar os participantes, mas também para hierarquizá-los. Segundo o jovem, o principal objetivo de

uma “festa conceito” deve ser o de “selecionar” seu público. Essa seleção se dá, basicamente, de duas

maneiras. A primeira delas é por conta da escolha do local a ser realizado o evento – a expressão “quanto

mais longe melhor” assinala bem isso –, pois “só vai quem curte mesmo, num é qualquer um que vai só

por ir”. E, a segunda forma mencionada por Rodrigo está relacionada ao tempo de duração de cada festa:

“pra você vê a diferença, na The Sound, quando dá 10h da manhã você vê que a festa já tá vazia. Já na

Zonavibe, quando dá 10h ainda tá o mesmo público”. Conseguir permanecer até o final da rave é um dos

elementos que marcam a distinção entre aqueles participantes que freqüentam as festas não só porque

cultivam o gosto pela música eletrônica, mas, principalmente, porque crêem em sua “cosmologia”,

adotam e praticam seus discursos. O amanhecer é o momento mais sublime da rave e, portanto, central

para quem valoriza seus símbolos (é exatamente durante o amanhecer que os DJs principais da festa se

apresentam, conforme foi descrito anteriormente no capítulo 3). Para Rodrigo, a longa duração da festa

atuaria afastando aqueles participantes que vão aos eventos apenas pelo fato das raves terem, com sua

popularização, adentrado o campo do mainstream, ocupando um lugar de destaque entre as opções de

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lazer e diversão adotadas pelas culturas juvenis contemporâneas69. O tempo de permanência na rave

demarca modos distintos, “autênticos” ou “ilegítimos”, de se relacionar com a festa.

[...] doidim que nunca foi pra rave, chega lá logo no começo e sai antes do amanhecer, num agüenta não porque a festa é muito grande, ela foi feita pra outras coisas além de só pra dançar e dar em cima das meninas que nem o pessoal faz nos forró ai da vida. Ela num é pra você ficar pulando o tempo todo não, é pra encontrar os amigos também, conversar, descontrair. A galera que não sabe, pensa que é pra ficar pulando ou azarando as meninas, ai se fode! O pessoal já olha estranho pra esses caras que num sabem, eles chegam lá e num sabem nem o que fazer, ficam andando, olhando pra todo mundo, mexendo sabe... vão porque é novidade, modinha. Essas raves que tão tendo ultimamente tão cheias desses caras que se acham, é foda porque afasta a galera mais cabeça que curte, que entende o porquê da música. Uma galera mais massa. (Isac, jovem entrevistado em 2 de junho de 2009).

Para aqueles jovens que não compartilham do “ethos dominante” adotado na cena, o sentido da

festa se exaure antes mesmo do amanhecer, ainda durante a madrugada. Em oposição a esse “sentido

dominante”, os outros sentidos dados à participação na rave estariam mais associados à “moda”, ao

mainstream, ou seja, a algo puramente comercial e efêmero. Para Isac, a dita “modinha” advinda da

popularização das raves na cidade acarreta uma adesão frágil, traz para as festas pessoas que não

compartilham dos “verdadeiros” sentidos da rave, atraindo participantes que são “insensíveis” ao

discurso underground atribuído à festa. Esses outros sentidos segregam e hierarquizam os participantes

da rave, gerando tensões que se revelam desde os gestos: “o pessoal já olha estranho pra esses caras que

num sabem, eles chegam lá e num sabem nem o que fazer”, até as ações: “afasta a galera mais cabeça

que curte, que entende o porquê da música”. Embora Isac ainda não possua uma longa experiência como

freqüentador dessas festas, o jovem demonstra que já partilha do “ethos dominante” existente na cena.

Durante minhas conversas com os jovens, o termo “conceito” vinha à tona não só para

adjetivar a participação de certos DJs e freqüentadores mais antigos da cena, mas também para

caracterizar o empreendimento de determinado grupo de pessoas que atuam na promoção dessas festas

na cidade, como se pode perceber na fala de Rodrigo transcrita algumas linhas acima, na qual se observa

a classificação que o jovem faz entre a The Sound e a Zonavibe.

O termo “festa conceito” é utilizado tanto pelo público que freqüenta as raves, como pelos

membros dos núcleos e produtoras para caracterizar aqueles eventos nos quais eles participam como

69 Segundo Trevisan (2005), “o Brasil tornou-se uma das maiores cenas trance do mundo, tanto em relação ao público quanto a artistas. [...] Mais de uma década depois de ter chegado ao Brasil, o trance parece ter alcançado sua maior audiência em todos os tempos” (TREVISAN, 2005, p. 15). Atualmente, o maior exemplo dessa inserção das raves no campo do mainstream é o do grupo No Limits, empresa que atua no setor de organização de festas de música eletrônica nacional, realizando festas rave em todo o Brasil, dentre elas, merece destaque a XXXPERIENCE, hoje considerada a maior do país. Em sua última edição, recebeu mais de 30 mil jovens. A No Limits possui algo em torno de 40 funcionários, distribuídos nas mais diversas funções. O grupo engloba ainda uma agência de DJs e uma distribuidora de material fonográfico relacionado à cena da música eletrônica nacional.

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organizadores. A expressão “festa conceito” evoca a idéia de que naquela festa empreender-se-á uma

“real” efetuação dos valores e discursos adotados no interior da cena; ou seja, a partir do uso auto-

referido da palavra “conceito”, busca-se assinalar ao público que naquele evento principalmente o

P.L.U.R. e a “boa” música eletrônica serão valorizados, conforme se pode perceber no texto retirado do

material de divulgação da Entrance – festa produzida pelo pessoal do Nu-ACT:

O texto acima foi publicado logo nas páginas iniciais do projeto confeccionado para ser

entregue exclusivamente aos apoiadores e patrocinadores do evento. Além de explicitar quais os sentidos

que o núcleo dá à festa: “entretenimento”, “espiritualidade”, “respeito”, “magia”, “arte” etc., os

integrantes do Nu-ACT aproveitam ainda para indicar outros atrativos para a participação dos jovens no

evento: “mais de 15.000 pessoas já passaram por quatro celebrações ENTRANCE”, “diversidade

artística e cultural envolvendo música, arte circense, dança, multi-mídia e permacultura”, “conexão com

os principais festivais europeus [...]”, “público jovem e adulto entre 20 e 35 anos das classes A e B com

interesse por novas tendências”, “excelência em atendimento ao público [...]”, e, por fim, o principal dos

motivos: “a festa de música eletrônica e cultura alternativa mais conceitual do estado segundo o Jornal

Diário do Nordeste”. A expressão “festa conceito” adquire aqui um peso ainda maior ao ser empregada

por uma das empresas que compõe o cenário da mídia local para caracterizar o evento no qual os

membros do Nu-ACT atuarão como organizadores. Pode-se perceber que, para além de um mero

adjetivo, o termo “conceito” revela-se como um tipo de estratégia discursiva utilizada pelos grupos

organizadores no intuito de atrair uma quantidade maior de público para seus eventos. A expressão não

só tem o objetivo de produzir no imaginário dos jovens a idéia de que naquele evento poder-se-á

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experienciar todas as possibilidades da festa, como também busca demarcar a fronteira entre aqueles

eventos que são caracterizados como puramente comerciais e aqueles em que os “verdadeiros sentidos”

da rave são valorizados e vivenciados.

4.2.1 Entrance: “a festa mais conceitual de música eletrônica”

Logo no início de minha incursão ao campo das festas rave em Fortaleza, alguns dos jovens

com quem eu conversava me falavam que a melhor e mais “conceitual” rave do estado era a Entrance,

que ela simplesmente “bombava”. Eles comentavam empolgados sobre as edições passadas e me

alertavam para que eu ficasse atento à data do evento, admoestando-me para não deixá-la “passar em

branco”. Sempre que podiam, faziam questão de enfatizar que a Entrance deveria ser tomada como uma

prioridade, um tipo de “rave especial” na qual a presença de alguém que ambiciona compreender

fragmentos dessa cena é praticamente obrigatória. Esse tipo de “conselho nativo” soou de forma

sedutora aos meus ouvidos, principalmente porque havia uma recorrência nisso. Não era apenas um

jovem aqui e outro ali que me indicava a Entrance, mas vários deles ao mesmo tempo. Afinal, o que

havia na Entrance de tão mágico e extraordinário assim a ponto de a participação no evento ser quase

uma prescrição entre os jovens? O que faz da Entrance uma “festa conceitual”? Com certeza, qualquer

observador do social faria essas mesmas perguntas se estivesse no meu lugar e, por isso, durante todo o

ano de 2008 alimentei a vontade em participar dessa festa, esperando ansioso pelo mês de novembro.

Optei por ir, especialmente a essa festa, numa topic fretada por alguns dos jovens com quem

fiz amizade durante a pesquisa. Raquel, a responsável pelo frete do veículo, combinou comigo e com os

demais jovens de nos encontrarmos às 21h na porta de entrada de um popular shopping center de

Fortaleza para depois partirmos rumo à festa. Mesmo não saindo no horário marcado, fomos alguns dos

primeiros a aportar na rave. Durante o trajeto os jovens comentavam entusiasmados sobre aqueles

detalhes que eles ficaram sabendo antecipadamente acerca da organização do evento, como, por

exemplo, o tipo de decoração e o set dos músicos locais que se apresentariam na rave. Ao chegar na

festa, não consegui entender, de início, porque a Entrance era percebida como uma festa diferenciada no

interior da cena. Suas paisagens eram muito similares à maioria daquelas já vistas nos eventos anteriores

que freqüentei e o público também parecia ser o mesmo, porém o discurso dos jovens a tornava diferente

e era isso o que importava para mim naquele momento.

Diferentemente de outros núcleos e produtoras de festas de música eletrônica que atuam em

Fortaleza e cidades próximas, o Nu-ACT realiza apenas uma rave por ano. Conforme me confidenciou

um dos membros do núcleo durante uma conversa informal que tive com ele num estúdio de tatuagens e

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body piercings na cidade, essa é uma das estratégias adotada pelo grupo para fazer com que sua festa

seja encarada pelos jovens sempre como uma novidade, atraindo um público cada vez maior para o

evento. Por conta disso, os organizadores têm um tempo maior disponível para poder preparar a rave,

dotado-a de todos os discursos e símbolos que lhe conferem sentido.

Na Entrance você sabe o que é uma rave de verdade, é tipo as festas gringas, onde as pessoas são unidas, se respeitam, você num vê briga de jeito nenhum. Entrance é Entrance. É muito, muito mesmo, diferente... é outra coisa, outro conceito, num é que nem essas festinhas que o pessoal faz ai todo fim de semana na Praia do Futuro. Entrance é uma vez só no ano, que acontece num pico irado, meio que uma serra e tal (parece que é um hotel lá). A galera bota pra fuder mesmo! A festa é top total, a organização é nota 10! Quando tu for, tu vai ver o que eu tô dizendo. A festa é dum jeito que desde a decoração, as cores, os DJs, o local... cara, tudo é perfeito, sabe. Parece que o pessoal pensa em tudo. No meio da festa, assim, tipo de manhã, rola uma galera andando com perna de pau, de máscara, depois aparece outra galera subindo numas cordas de frente pro palco. É assim, a galera amarra umas cordas na estrutura do palco e aparecem uns malabaristas que ficam subindo e descendo enquanto toca a música. Ela [Entrance] num fica atrás dessas festas que nem XXXPERIENCE, Tribe, não. É claro que num é como um festival, porque também ela num dura vários dias, mas aqui em Fortaleza num tem festival ainda [...] A festa que mais se aproxima dum festival é a Entrance, sem dúvida nenhuma. (Eduardo, jovem entrevistado em 07 de outubro de 2008).

Para Eduardo, a Entrance se diferencia das outras festas realizadas pelos núcleos e produtoras

locais não apenas por ocorrer somente uma vez ao ano, mas principalmente por reproduzir em seu

ambiente os discursos pertencentes ao universo simbólico das raves. Talvez por isso a participação nesse

evento se torne quase uma prescrição entre os jovens, sejam eles neófitos ou veteranos. Tudo isso

confere tanto ao Nu-ACT, como à própria Entrance, uma posição de destaque na cena da música

eletrônica de Fortaleza. Conforme me contou Eduardo durante as várias conversas que tive com ele,

sempre que se aproxima a data da Entrance a cena local pára, os vários eventos realizados quase que

simultaneamente cessam e todos voltam as suas atenções para a festa: “Entrance é Entrance”, uma festa

incomparável.

Outra diferença da Entrance em relação às demais festas de música eletrônica que acontecem

na cidade e arredores é a antecedência com que o evento começa a ser organizado e divulgado entre os

jovens. Segundo me informou um dos organizadores, as ações de todos os integrantes do núcleo

começam bem antes da data da festa. Aproximadamente três a quatro meses antes de o evento ocorrer,

dá-se início aos acordos comerciais com patrocinadores, DJs, negociação dos tipos e marcas de bebidas a

serem comercializadas durante a festa, produção de flyers, divulgação dos pontos de venda dos ingressos

e acerto do local onde será realizada a festa. As últimas edições da Entrance ocorreram no Hotel

Fazenda São Gerônimo, situado em Caucaia – um local que, segundo o integrante do Nu-ACT com

quem conversei, atende a todas aquelas expectativas criados em torno do evento.

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[...] O pessoal por ai pensa que fazer festa é uma coisa simples, é só você querer. Tem um pessoal novo ai que tão começando agora e toda semana querem fazer festa, mas num é tão fácil assim não. Pra tu ver, pra você fazer uma festa realmente boa, de conceito, você num pode ficar toda semana fazendo não porque, primeiro, não tem como se fazer uma coisa de qualidade, fazendo festa toda semana; e, segundo, a galera satura, enjoa, saca, da tua festa. Você pensa que tá fazendo um bem à cena, mas isso é uma ilusão, porque isso, na verdade, é desrespeito, desrespeito com o público, desrespeito com a cena e com a gente também que faz festa. Se tem toda semana uma, duas, até três festas como já teve aí, então como é que ficam os núcleos, as produtoras, como é que fica essa galera? Aqui tá de um jeito que você marca sua festa com dois meses de antecedência, daí vem o cara e com menos de um mês marca outra em cima da tua. [...] Quando a gente vai fazer a Entrance, a gente começa a se organizar muito antes... tipo, se a festa tiver marcada pra novembro, que nem essa última, então lá pra julho, setembro, por ai, a gente já começa a se articular, ligar uns pros outros pra já ir vendo DJ, local, decoração, apresentar projeto, essas coisas. Ainda tem outra coisa, a gente tem experiência com festa, tanto eu já participei de festival como outros integrantes do núcleo também já participaram, a gente tá sempre pesquisando sobre a música eletrônica por ai [...]. (DIÁRIO DE CAMPO, 2009).

Além de “selecionar” seus participantes e ser dotada de todos os discursos e símbolos que

conferem sentido à rave, uma “festa conceito” é aquela que tem “respeito com a cena”. Isso significa que

ela jamais deve ser agendada para a mesma data ou uma data próxima da festa realizada por outro grupo.

Ou seja, ela nunca deve buscar concorrer diretamente com o evento organizado por outro núcleo ou

produtora local: “Aqui tá de um jeito que você marca sua festa com dois meses de antecedência, daí vem

o cara e com menos de um mês marca outra em cima da tua”. Durante o ano de 2008, isso foi muito

recorrente. Várias das festas realizadas pela The Sound coincidiram, de forma proposital, com os eventos

organizados pela Zonavibe, afetando a ambas as produtoras com relação ao público, que foi quase

sempre menor do que o esperado.

Às vésperas da edição da Entrance de 2008, aconteceu um fato interessante que merece ser

citado aqui. Além da já “consagrada” festa realizada anualmente pelo Nu-ACT, outras duas foram

agendadas para o mesmo mês: Goa Gil Tour (N.A.V.) e Ananda Shake (The Sound). O fato causou certo

tumulto na cena local entre os núcleos e produtoras. Alguns dos participantes teceram elogios à

iniciativa, afirmando coisas do tipo “isso demonstra a maturidade da cena”, ou ainda, “a cena tá

crescendo e Fortaleza tem público sim para isso”. No entanto, os membros e os apoiadores dos grupos

envolvidos (Nu-ACT, The Sound e N.A.V.) se manifestaram contra, expondo publicamente suas

opiniões em comunidades na Internet. Uma dessas comunidades virtuais que mais freqüentei durante o

período da pesquisa foi a Cenaceará, sitiada no Orkut. Decidi deixar a grafia e a formatação o mais

próximas da original utilizada nos depoimentos, buscando interferir o mínimo possível na transcrição das

falas dos jovens colocadas aqui. Cito abaixo alguns desses comentários colhidos um mês antes da

realização da Entrance (outubro de 2008), porém sem apresentar os nomes dos respectivos depoentes:

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man, duas festa fudida no mes nov entrance e goa marcando no dia encima de uma com conceito totalmente diferente fortaleza acho que tem publico pra isso alias goa gil vai vir até gente de fora, pq única apresentação no nordeste pelo q to sabendo ate agora fortaleza ta saturada de festa, o jeito eh botar encima de uma melhor q encima da entrance Bem melhor! encima da amanda milkshake (Jovem A) E eu havia dito em outro tópico que tava muito longe de Goa Gil vim tocar aqui... quebrei a cara... que venha o Mestre Goa, quanto as datas o que posso dizer é que a The Sound já fez isso várias vezes aqui, apesar de que eu não sou a favor de festas uma em cima da outra, mas a The Sound não tem direito de axar ruim, ela tem o público dela que é fiel. Não quero gerar polêmica, coisa que axo que já tem demais por aqui... é só minha opinião. Paz na cena... (Jovem B) [...] Qual festa que já havia sido marcada para o mesmo dia!? Aquela com o Ananda Shake Shake Hits!? Noss[a], mas foi lindo então! Assim, pq alguém sensato acabou pensando que nem todo freak curte isso, ne!? Daí salvou o nego! Um recado para a galera N.A.V: Parabéns pela atitude e iniciativa! Um beijo, carái! (Jovem C) Pow com uma festinha dessa quem é que vai querer ir no Ananda shake essa ai promete muito viu to é lah ja Paulo guarda meu ingresso ai que essa é garantida! (Jovem D)

Embora haja uma regra implícita (que nem sempre é cumprida) entre os organizadores acerca

da marcação das datas de suas festas e dos eventos promovidos pelos grupos concorrentes, os jovens

perceberam esse fato como uma forma de dotar a cena local de um novo colorido: “fortaleza tá saturada

de festa, o jeito eh botar encima de uma melhor q encima da entrance”. A possibilidade do “Mestre” Goa

Gil vir tocar em uma festa local fez com que os jovens esquecessem essa regra e passassem a elogiar as

ações do pessoal do N.A.V.: “Um recado para a galera N.A.V: Parabéns pela atitude e iniciativa! Um

beijo, carái!”. No entanto, pode-se perceber ainda certa ironia ao comentar a vinda do projeto de

psytrance Ananda Shake, formado pelos DJs israelenses Osher Swissa e Lior Edri. As falas transcritas

acima expressam bem esse sarcasmo ao se referir ao projeto como “amanda milk shake” ou “Ananda

Shake Shake Hits”. Além da ironia com que a festa organizada pela The Sound foi encarada, o segundo

depoente apresentado acima sentencia ainda o descrédito da produtora em relação à cena: “a The Sound

já fez isso várias vezes aqui, [...] a The Sound não tem direito de axar ruim [...]”. Em outras ocasiões, a

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The Sound marcou para a mesma data eventos que buscaram concorrer diretamente com festas

promovidas pela Zonavibe, gerando tensões entre os membros das duas produtoras.

De forma semelhante àquela empreendida por alguns dos jovens que elogiaram a iniciativa do

N.A.V. e comentaram com certa ironia a ação da The Sound, os integrantes dos grupos envolvidos

também vieram à Cenaceará para externarem suas opiniões acerca de tal fato:

Mais uma festa marcada na mesma data de outra... Lamentável isso! Enquanto existir esse tipo de amadorismo na cena, nunca vamos conseguir fazer algo sólido. Boa sorte ai pros iniciantes. (Jovem E) Eu acho q a agenda do goa gil nao seja tao flexível nao viu... e como falaram 24h do coroao ae, tem como ir pras duas sim! se eu estiver errado me corrijam boa sorte ae pra galera q ta começando... pena nao poder conferir! (Jovem F) Mano... adoro o Goa Gil! mas porra mano que merda de mercado é esse. Nós do Zona[vibe] por ex não faremos mais festa tão cedo, por conta desse tipo de coisa. Não to defendendo a festa do Ananda não até pq não tenho nada a ver com ela, mas ta uma bagunça! Ta faltando respeito... pelo amor de DEUS! O mínimo que se espera é que se pare de marcar festas uma em cima da outra, isso não é bom pra ninguém... a ENTRANCE por ex passou mais de um ano sem fazer festa e quando marca com 2 meses de antecedência marcam 3 festas no mesmo mês, ta certo isso? agente marcou a Magic [Lagoon] 2 com um mês de antecedência vem um bando de amador e marca o fracasso dessa Insane com Bizarre um dia antes... ta certo isso? Vamos deixar de ser Insanos pq a cena vai cabar sem as festas de VERDADE... e o publico vai ficar a mercê [de] produtores paraquedistas que não tem a mínima condição de proporcionar uma festa que preste pra vcs. Meu pensamento. Paz a todos. (Jovem E) [...] qd [quando] se diz fazer a festa no mesmo dia da The Sound “assim ja começa mal” eu trocaria por “assim ja termina mal”, pq isso não e de agora e o próprio zonavibe e o nuact já se arranharam qd a entrance estava marcada e o zonavibe marcou uma festa uma semana antes, então isso já vem de longas datas e não foi o nav q começou isso. [...] Dentro do nav tem muita gente de talento, gente q participou da criação do NuACT desde o principio, talvez ate por isso q eles se intitulem um NUCLEO também, e não uma simples produtora. [...] A galera da comunidade q fala ai de conceito tem q apoiar os eventos q eles acham conceituais independente de qq [qualquer] coisa. Compareçam ao goa gil, compareçam a entrance, sejam felizes. (Jovem G) Galera esse tipo de coisa só vem a prejudicar nossa cena, um monte de festa encima umas das outras destrói td o q agente acredita. Cadê o PLUR? Cadê a Paz entre os núcleos? Nós temos q voltar a ser o q agente era antes, uma coisa só, uma mesma cena. Por isso que ta essa chacota so a cena. (Jovem H)

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O discurso adotado pelos organizadores é bastante diferente daquele praticado pelos

participantes em geral. Na visão dos primeiros, mais do que a data e o local onde será realizada a festa, o

que vale é a qualidade das atrações que se farão presentes na rave – como foi possível perceber nas falas

citadas acima acerca dos eventos promovidos pelo N.A.V. e pela The Sound. Já para os organizadores,

importa mais a presença do público. O fato de duas festas estarem agendas para ocorrer no mesmo dia ou

em datas próximas provoca certo esvaziamento dos eventos e desestabilizam as relações entre os grupos.

Esse esvaziamento se dá justamente porque os jovens ficam divididos entre qual das raves escolherão

participar, tendo que, muitas vezes por questões financeiras, optar por apenas uma delas. Isso para os

organizadores é denominado como “falta de respeito” com o público e com a cena. Dessa forma, para os

membros dos grupos organizadores, aquelas festas que foram idealizadas primeiro, com certa

antecedência, têm esse “respeito”, diferente daquelas que foram organizadas depois, mas que mesmo

assim optou-se por agendá-las para o mesmo dia ou para uma data próxima da primeira, de modo a

interferir diretamente em sua realização. Na visão dos membros dos grupos, o núcleo ou produtora que

agendar sua festa para a mesma data do grupo concorrente deverá cair em descrédito frente a todos

aqueles que compõem a cena.

Um dos jovens citados acima, denominado aqui como “Jovem E”, utiliza o termo “mercado”

para se referir à cena local das festas de música eletrônica. O termo evoca o sentido comercial adquirido

pelas festas a partir de sua popularização. Desse modo, é interessante notar que, embora alguns jovens

considerem que este aspecto mainstream, de certa forma, descaracteriza a rave, muitos organizadores

demonstram, por meio de seus discursos, exatamente o contrário. Para eles, aquelas festas que contam

com uma estrutra dita “grande”, que envolvem DJs renomados e que contam com a participação de

milhares de jovens, são tidas como “festas de verdade” (a Entrance é uma delas); são elas as

responsáveis por manter viva a cena (e, principalmente, o “mercado” que gira em torno da realização das

festas), sendo organizadas por aqueles que compõem o quadro dos “estabelecidos” (ELIAS, 2000): sem

eles, “a cena vai cabar sem as festas de VERDADE... e o publico vai ficar a mercê [de] produtores

paraquedistas que não tem a mínima condição de proporcionar uma festa que preste [...]”. Os

“estabelecidos” tentam, dessa maneira, conferir os sentidos dominantes dados à participação dos jovens

na rave.

Já aquelas raves que não são classificadas pelos “estabelecidos” como “festas de verdade”, são

organizadas por aqueles considerados como “outsiders” (ELIAS, 2000), “amadores”, pessoas incapazes

de “proporcionar uma festa que preste” para o público em geral. Na visão dos “estabelecidos”, os

“amadores” estão iniciando no “mercado” e por isso não tem a experiência necessária requerida para

realizar uma “festa conceito”, repleta de todos os discursos e símbolos característicos de uma “rave de

qualidade”. Aos “amadores”, só resta realizar outro tipo de festa: a “festa chacota”, um evento destituído

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172

de tudo aquilo que caracteriza uma “festa conceito”. As falas acerca das “festas chacotas” são

enunciadas por aqueles jovens que se consideram como “estabelecidos” e estão sempre direcionadas aos

“outsiders” da cena.

No entanto, vale assinalar que, apesar das festas tidas como “chacota” estarem associadas aos

“outsiders”, raras vezes eu consegui “encontrá-los”. Mesmo aqueles que são considerados como

“outsiders” pelos “estabelecidos”, eles não se vêem como tal, mas sempre como participantes já

iniciados, que compreendem e praticam todos os “verdadeiros” sentidos da festa. As fronteiras entre

“estabelecidos” e “outsiders” parecem existir mais nos esquemas de compreensão criados pelo

pesquisador do que na própria cena das festas. Entretanto, resolvi trabalhar com os conflitos percebidos

no cenário das raves dessa forma, utilizando os conceitos formulados por Norbert Elias (2000) de

“estabelecidos” e “outsiders”, mais por fins didáticos do que propriamente por acreditar que seja

possível empreender classificações binárias deste tipo.

4.3 “Festa chacota”

No “idioma nativo”, uma “festa chacota” é aquela rave que acontece com certa periodicidade

no cenário do lazer noturno de Fortaleza, não escolhe um lugar especial, “paradisíaco”, para se realizar,

dificilmente conta com atrações de renome, tem uma decoração pouco sofisticada e conta com um

público “misturado”, pouco “selecionado”.

[...] As festas são misturadas, já começaram a não serem tão selecionadas, a perder a qualidade. Você ia pra uma festa e você via, querendo ou não, você sabia que, tipo, naquele lugar só ia ter gente de um nível social mais elevado, você vê que é um evento mesmo de socialização. [...] Hoje as festas daqui são muito mal organizadas, tipo, não tem decoração, não tem qualidade, não tem DJ bom... virou balada, simplesmente. Pra quem gosta de qualquer festa e vai independente de ser uma rave, tipo, não tem diferença nenhuma, mas quem se acostuma a ir e gosta mesmo de música eletrônica vê que tá decaindo. (Rodrigo, jovem entrevistado em 22 de janeiro de 2009).

Diferentemente da “festa conceito”, a intenção da “festa chacota” é proporcionar as misturas.

Ao invés de segregar e hierarquizar, ela busca integrar. No entanto, para alguns jovens, essa

característica é vista de forma negativa, justamente porque, com isso, a rave perde sua “razão de ser”, ou

seja, deixa de ser aquele “Really Safe Heaven” (“Paraíso Realmente Seguro”: expressão que dá origem

ao termo rave) do início para se tornar apenas mais um espaço de lazer noturno existente na cidade, mais

uma “balada” dentre tantas outras na noite.

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173

Essas festinhas que tem aí, que dá de tudo, todo mundo tem convite, ingresso e tal, é festa chacota, entendeu. Toda sexta tem, é só mais uma baladinha. Lá na Master Beach tem sempre. Tu sai, assim, na balada e vê de tudo, né? Tem gente que curte rock e tá ali ouvindo música eletrônica; tem gente que curte reggae e tá ali ouvindo rock, então a chacota é tipo uma balada, dá de tudo! É tudo misturado, num tem só a galera que se liga do lance da rave, do porque dela, mas tem um pessoal que num tem nada a ver, tá ali só pra pular e agarrar as meninas. Pensa que ir pra rave é curtir a balada. E o pior que tem gente que faz festa só pra isso. (Isac, jovem entrevistado em 2 de junho de 2009).

No imaginário dos jovens, a “balada” está relacionada ao consumo. Assim, ao ser associada à

“balada”, a “festa chacota” é caracteriza como um tipo de rave no qual a única intenção de seus

participantes é a pura diversão sem qualquer discurso ou prática que esteja relacionado à “cosmologia”

das festas. Ou seja, seus participantes não têm a intenção de criar para si um “espaço outro”, autônomo,

mas apenas um ambiente de entretenimento. Por isso, ocorrem todos os finais de semana: “Toda sexta

tem, é só mais uma baladinha. Lá na Master Beach tem sempre”. Na visão dos “estabelecidos”, as

“festas chacotas” não valorizam o contato com a natureza, tampouco a interação com o Outro, e por

conta disso se realizam em lugares que não possibilitam essa idéia de afastamento da cidade, como, por

exemplo, na barraca Master Beach, situada na Praia do Futuro.

Para alguns jovens, as “festas chacota” expressam o significativo crescimento e popularização

das raves na cidade. Justamente por isso elas passam a ser percebidas como festas em “que dá de tudo,

todo mundo tem convite, ingresso”. Deixam de serem eventos “selecionados” para se tornarem “festas

misturadas”. Raves nas quais seu público pouco sabe “do porque dela”, “que num tem nada a ver, tá ali

só pra pular e agarrar as meninas”. Ou seja, são festas em que os sentidos dominantes dados à

participação na rave são subvertidos, atribuindo-se a ela uma nova dinâmica. Nelas, não interessa apenas

a música e a dança, mas outra economia dos afetos que é expressa através das trocas amorosas entre os

jovens. Nas “festas chacota” também se vai para “ficar” e para “zoar” (ALMEIDA; TRACY, 2003).

Eu nunca fui pra rave pra agarrar mulher. Eu acho isso o cúmulo. Mas essa galera nada a ver que eu falei vai só pra isso, véi. O cara chega na festa e fica que nem um doido, chegando nas meninas [...]. Tem menina que vai pra isso também. Neguim num quer saber de paz, amor, natureza e o caralho não, quer é curtição, num tá nem ai pra DJ, pra nada. É o que eu falei, só quer saber de pular e agarrar mulher (Isac, jovem entrevistado em 2 de junho de 2009).

Embora práticas como o “ficar” e o “zoar” (que se aproxima do sentido dado a “curtição” por

Isac), por exemplo, estejam bastante associadas às culturas juvenis contemporâneas e seus novos

regimes de afeto e modalidades de sociabilidade, elas não são bem vindas ao cenário da rave,

principalmente por deixarem de lado a “filosofia do P.L.U.R.” e reproduzirem a mesma lógica do mundo

ordinário, da vida cotidiana. Numa festa tida como “chacota” pelos jovens, pouco se atenta ao DJ e à

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174

música tocada por ele durante o evento, mas mais à “curtição” que se pode experimentar naquele espaço.

Pelo menos, é isso que pode ser percebido na fala do jovem quando ele diz: “Neguim num quer saber de

paz, amor, natureza e o caralho não, quer é curtição, num tá nem ai pra DJ, pra nada”.

Cabe assinalar ainda que determinadas produtoras são acusadas pelos próprios jovens de só

promoveram “festas chacota”. Conforme Eduardo, uma dessas produtoras é a The Sound:

[...] Tipo, tu quer um exemplo de festa chacota, é só olhar as festas da The Sound. Toda festa que eles fazem é misturada. Assim que você chega na festa você nota logo a diferença, tem um pessoal que tá lá por estar. As festas são mal organizadas, só tocam os mesmos DJs e só rola naquelas barracas manjadas da Praia do Futuro. Ninguém nem se empolga mais pra ir, porque já sabe que vai ser paia. Tem aquelas Ultra Vip do Diego que só dá os cafussú da Sabiaguaba, sem comentários. Eles fazem festa as vezes 0800 [grátis], ai por isso que é misturado, num presta. Tem gente que vai só porque é grátis, ai fica tudo se gabando dizendo que foi pra rave, botando foto no Orkut. (Eduardo, jovem entrevistado em 07 de outubro de 2008).

Durante o ano de 2008 e início de 2009, pude observar que grande parte das festas realizadas

pela The Sound ocorreu na Praia do Futuro, principalmente nas barracas Master Beach, Jet Set e Biruta.

As festas que não foram realizadas ali ocorreram ou em uma pousada situada em Sabiaguaba ou em

Aquiraz, na Mansão da Prainha. Algumas delas foram gratuitas, como foi o caso das várias edições da

Ultra Vip. A organização da festa era sempre encabeçada pelo DJ Diego Grecchi (integrante da The

Sound) e não possuía uma periodicidade definida, acontecendo, por vezes, mais de uma edição do evento

durante o mesmo mês.

4.3.1 Ultra Vip: a festa das “misturas”

A Ultra Vip marcou minha incursão ao campo das raves. A primeira festa que participei foi,

coincidentemente, a primeira Ultra Vip realizada por Diego Grecchi. O evento aconteceu no dia 05 de

janeiro de 2008 na barraca Master Beach. Nela, eu estava ansioso por realizar as primeiras observações

acerca da dinâmica da festa, procurando perceber cada detalhe do evento. Naquela noite, eu

simplesmente procurei captar tudo o que podia, porque o pouco que eu sabia sobre os eventos era graças

à mídia, principalmente à TV e à Internet. Até então, eu não tinha vivenciado qualquer tipo de

experiência em raves, tampouco sabia o que motivava os jovens a freqüentá-las. Decidi comparecer a

essa festa realizada ainda no início do ano para já ir me familiarizando com aquilo que eu havia

escolhido como campo de pesquisa.

Infelizmente não consegui ficar até o final da festa. Meu corpo não agüentou permanecer das

22h até as 8h da manhã acordado, ingerindo apenas água. Foi com certa decepção que optei por ir

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175

embora às 2h da manhã, momento em que ainda aportavam alguns jovens na Ultra Vip. No entanto, o

pouco tempo que passei na festa, apenas quatro horas, permitiu-me observar parte de sua dinâmica,

principalmente aquela que se experimenta durante a noite. Pude notar também que alguns participantes

preferiam chegar justamente naquele horário que eu havia decidido ir embora. Outro aspecto positivo

dessa primeira ida à festa foi o contato que estabeleci com Kiko, o segundo participante a chegar ao local

do evento, logo depois de mim.

Minha interação com Kiko foi bastante amistosa. Quando ele chegou, eu já estava em pé no

calçadão, parado, posicionado em frente à entrada da barraca. O jovem se aproximou de mim e já foi me

cumprimentando, perguntando se aquela era minha primeira festa. Afirmei que sim, e disse-lhe ainda

que estava ali por curiosidade, que desejava saber como se processava uma festa rave, como eram as

suas paisagens interiores e suas margens. Durante nossa conversa tive que fazer uso do limitado

repertório de conhecimentos que tinha não apenas sobre os eventos, mas principalmente sobre a cena

local, lançando mão do nome de alguns DJs e de suas músicas. Isto porque não revelei a ele que estava

ali naquela noite por conta de uma pesquisa. Deixei que ele imaginasse que eu havia ido àquela festa de

forma desinteressada – semelhante à maioria de seus participantes. Não sei se fui convincente nessa

atuação, mas o jovem me revelou vários aspectos das raves que eu até então desconhecia.

Foi por meio dele que fiquei sabendo da Ultra Vip que seria realizada no final de semana

seguinte àquele, numa pousada em Sabiaguaba, próxima às barracas que funcionam ali, na margem do

Rio Cocó. Segundo Kiko, esta pousada havia sido escolhida justamente por se situar num “pico

paradisíaco”, um local onde se pode contemplar o encontro entre o rio e o mar. No entanto, como o

próprio nome da festa sugeria, para participar era preciso ter “convite”. Os “convites” consistiam numa

espécie de bilhete que era distribuído gratuitamente pelos organizadores e demais pessoas envolvidas

com o evento. Porém, eu ainda não o possuía e tampouco Kiko os tinha sobrando para me dar. Foi então

que o jovem me apresentou a Diego Grecchi, o principal responsável pela organização da festa, dizendo-

lhe que eu estava interessado em ir à próxima Ultra Vip, porém não possuía o “convite” para tal. Diego

perguntou quantos “convites” eu precisava e retirou do bolso lateral da bermuda dezenas deles

amontoados, presos com uma liga de cabelo. Disse-lhe que queria apenas dois, sendo um para mim e

outro para minha namorada e, prontamente, Diego me entregou os dois. A partir dali, eu e minha

namorada éramos convidados “ultra vip”.

Dois dias depois desse evento na Master Beach, soube que também ocorreria em Fortaleza

uma edição da festa Kaballah e que a data chocaria com a realização da Ultra Vip em Sabiaguaba. A

Kaballah é um tipo de festa itinerante de música eletrônica. O evento já passou por várias cidades

brasileiras, como Campinas, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Cuiabá, Curitiba e, dessa vez, Fortaleza.

Trazida à capital cearense por iniciativa da Zonavibe, a edição da Kaballah em Fortaleza seria realizada

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176

na Jet Set e os ingressos para participar do evento custavam R$ 35,00 (trinta e cinco reais) para compra

antecipada e R$ 40,00 (quarenta reais) no local da festa.

Assim, no mesmo dia, havia duas opções de rave para os jovens escolherem a qual ir: a

Kaballah, na Praia do Futuro, com seu ingresso sendo comercializado a R$ 35,00 (trinta e cinco reais); e

a Ultra Vip, na Sabiaguaba, inteiramente grátis, sendo necessário apenas um “convite” que se podia

conseguir sem maiores dificuldades. Não titubeei e optei pela segunda, afinal de contas a primeira bolsa

de estudos referente ao mestrado ainda não tinha sido paga, sequer eu havia assinado o contrato com a

agência financiadora. Já no início da pesquisa, tive que escolher qual festa privilegiar e, nessa ocasião,

optei pela Ultra Vip ao invés da Kaballah.

Nesta Ultra Vip, consegui observar outros elementos que compõem o ambiente da rave que

não estavam presentes na festa realizada na Master Beach, como, por exemplo, as performances de

pirofagia que ocorreram durante a festa, já próximo ao amanhecer. Pela experiência obtida com a festa

anterior que participei, busquei preparar melhor meu corpo para suportar a longa duração deste evento.

Alimentei-me bem e procurei dormir antecipadamente, fiz tudo o que podia para consegui permanecer

acordado a festa inteira. Cabe lembrar ainda que, diferente da primeira, nesta rave eu estava

acompanhado, e isso foi imprescindível para que eu me empenhasse não apenas em observar a festa, mas

também em experimentá-la. O fato de estar na companhia de minha namorada se apresentou a mim

como uma oportunidade de aproveitar a rave da forma menos objetiva possível, deixando-me mais à

vontade para interagir com sua dinâmica.

Assim que cheguei ao local da Ultra Vip, por volta das 22 horas, fiz questão de procurar Kiko.

Não foi preciso muito para encontrá-lo, ele estava acompanhado de mais 5 amigos, sendo 3 homens e 2

mulheres. Todos aparentavam ter a mesma faixa etária, algo entre 16 e 19 anos de idade. Logo que me

reconheceu, o jovem veio ao meu encontro para conversarmos. Falamos durante pouco tempo, pois

percebi que Kiko estava ansioso para juntar-se novamente aos seus amigos e adentrar o espaço da Ultra

Vip. Pouco tempo depois que nos afastamos, vi que Kiko e seus amigos caminhavam juntos em direção a

porta de entrada da rave.

Depois de mais algum tempo observando a chegada dos jovens ao local da festa e suas

interações ainda do lado fora do evento, também decido entrar. Na porta de entrada estava Diego

Grecchi recebendo os “convites”. Mesmo sem me reconhecer, Diego me cumprimenta, recolhe meu

bilhete e o rasga ao meio, de forma a torná-lo inutilizável por outra pessoa. Passo pelo jovem e já esbarro

num segurança que me revista rapidamente. A festa estava vazia, ainda era “cedo”, meu relógio marcava

próximo de meia-noite. Olho em volta e a primeira imagem que tenho é a de Kiko dançando em círculo

com seus amigos ao redor de um refletor verde instalado ao lado esquerdo do palco, num pequeno morro

de areia que havia no local. As “paisagens” da Ultra Vip eram bastante similares às de outras raves que

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177

participei. A festa, inclusive, contou com a participação de dois renomados DJs que atuam na cena local.

No entanto, para a maioria dos jovens, o evento organizado por Diego Grecchi era considerado como

uma “festa misturada” e, por isso, “menor”.

Agora, depois de toda a experiência adquirida durante a pesquisa, posso observar que,

provavelmente, aqueles participantes considerados como “estabelecidos” jamais me indicariam a Ultra

Vip para iniciar minha incursão ao campo das raves. Uma vez que esta festa é vista no interior da cena

como uma “festa chacota”, “misturada” e, portanto, um evento menor em relação, por exemplo, à

Entrance. Mas a verdade é que, talvez por um “erro” de percurso, eu havia iniciado a pesquisa

justamente por aquela festa que, segundo alguns jovens, menos expressava os símbolos, discursos e

práticas que caracterizam uma rave. Entretanto, analisando melhor o cenário, creio que comecei “certo”,

comecei exatamente por aquela festa que integra mais do que hierarquiza: a “festa chacota”. Com o

tempo pude compreender porque alguns jovens preferiam mais ir a uma rave cujo ingresso custava R$

35,00 (trinta e cinco reais) do que ir à Ultra Vip que simplesmente era grátis.

A festa organizada por Diego Grecchi não possuía o mesmo prestígio na cena frente a outros

eventos realizados por grupos já “consagrados”, como é o caso do Nu-ACT e da Zonavibe. Algumas

vezes, o principal objetivo da Ultra Vip parecia ser o de concorrer diretamente com festas maiores,

como, por exemplo, a Kaballah, realizada na Praia do Futuro, no mesmo dia da rave promovida por

Diego em Sabiaguaba. No entanto, a Kaballah, que era uma festa que trazia uma estrutura maior de

palco e som, contando com a participação de renomados DJs, foi marcada com bastante antecedência,

tendo sido divulgada entre os jovens ainda nos últimos meses do ano de 2007. Já a Ultra Vip, festa que

não possuía o mesmo prestígio no interior da cena, começou a ser organizada e divulgada com pouco

mais de uma semana de antecedência. Duas festas de música eletrônica e dois públicos distintos. Cada

uma com um propósito diferente na cena.

Eu vejo a Ultra Vip mais pra galera que nunca foi em rave, ou que tá começando a ir agora. Lá é tipo uma festa pra iniciar a galera. Só toca DJ daqui mesmo, mas de vez em quando tem uma decoração bacana, num é sempre, mas tem às vezes. É muito grande a diferença da galera que vai pra Ultra Vip pra galera que anda em rave mesmo, de verdade. (Janaína, jovem entrevistada em 14 de janeiro de 2009).

Pelo depoimento acima e pelas observações que fiz durante a pesquisa, pode-se perceber que a

Kaballah era uma festa direcionada para um público já iniciado na cena. A Ultra Vip, porém, parecia

estar dirigida a outro tipo de público, visava “a galera que nunca foi em rave, ou que tá começando a ir

agora”, segundo Janaína. Entretanto, podia-se encontrar na festa organizada por Diego Grecchi, alguns

jovens que já haviam participado de outras raves anteriores, portanto, já “iniciados” na cena. Mais uma

vez, a fronteira entre veteranos e neófitos, “estabelecidos” e “outsiders”, é muito tênue. Um exemplo

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disso é Kiko. Durante nossas conversas, o jovem demonstrou ter conhecimento e experiência adquirida

através da sua participação em raves anteriores, porém as duas únicas vezes em que eu o encontrei

ocorreram nas edições da Ultra Vip realizadas em janeiro de 2008. Nas festas promovidas por outros

núcleos ou produtoras, ou mesmo nos eventos organizados por Diego ou pela The Sound que cobravam

pelo ingresso, não encontrei Kiko. Parece que a distinção criada em torno do público que comparecia à

Ultra Vip residia mais no fato do evento ser gratuito do que propriamente na questão da rave ser um tipo

de festa voltada para “iniciantes”. Janaína expressa isso quando diz: “É muito grande a diferença da

galera que vai pra Ultra Vip pra galera que anda em rave mesmo, de verdade”. A jovem define o perfil

da “galera” que freqüenta “rave de verdade” da seguinte forma:

É aquele cara todo tatuado, aquela pessoa tatuada. Uma pessoa que tem um estilo mais eclético, uma mistura de estilos, como a própria festa. Ela se veste tanto arrumada, como também num estilo mais hippie, mais “alternativo”. São pessoas estilosas, normalmente. É uma pessoa, assim, que tem uma classe legal, uma classe média-alta, e normalmente é aquela pessoa que pratica algum esporte, faz alguma academia, é bronzeada, tem tatuagem. E isso não só os homens, como as mulheres também. (Janaína, jovem entrevistada em 14 de janeiro de 2009).

A partir da fala de Janaína, pode-se observar que a distinção que se opera entre os jovens que

freqüentam uma “festa de verdade” (“festa conceito”) daqueles que participam de uma “festa chacota”,

reside no fato de o público da segunda não pertencer às camadas médias e altas da sociedade, ficando à

margem de determinados padrões de consumo expressos através de certos cuidados com o corpo: “[...] é

aquela pessoa que pratica algum esporte, faz alguma academia, é bronzeada, tem tatuagem”. Mais do que

uma mera classificação sobre os tipos de festas, essa distinção revela a forma como são produzidas as

hierarquias entre os jovens no interior da cena. Assim, a Ultra Vip, por ser uma rave gratuita, acaba

sendo percebida como uma festa voltada também para aqueles jovens que pertencem às camadas

populares, mais até do que para os “iniciantes”, e, por conta disso, vista como uma “festa chacota”, uma

rave tida como menor.

Entretanto, é graças à Ultra Vip que muitos jovens têm acesso ao psytrance e ao espaço de uma

rave. Assim como o discurso que perpassa a “cosmologia” destas festas sugere a propagação de um

sentimento de união e igualdade entre os participantes, a Ultra Vip proporciona isso ao integrar em seu

espaço diferentes públicos, pois, como pude observar durante a pesquisa de campo, alguns daqueles

jovens que criticavam o evento organizado por Diego também o freqüentavam – a própria Janaína que se

considerava “iniciada” nas “festas de verdade” ia com freqüência às edições da Ultra Vip. A jovem

transitava tanto pelas “festas chacota” como pelas “festas conceito”. Portanto, diferente do que

assinalaram alguns participantes da cena acerca das “festas chacotas”, a meu ver, a Ultra Vip efetiva

parte dos símbolos e discursos adotados no microcosmo das raves, possibilitando a integração entre

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diferentes tipos de participantes. Assim, se, por um lado, se diz que as “festas chacota” não valorizam da

mesma forma de uma “festa conceito” os discursos e símbolos característicos da “cosmologia” da rave;

por outro, são elas que efetivam as “misturas” sugeridas pelo discurso do P.L.U.R..

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Juventude(s) que movimenta(m) corpos e territórios

Depois de termos percorrido quatro capítulos nos quais se buscou assinalar parte dos discursos,

comportamentos e práticas adotadas pelos participantes de um tipo peculiar de festa, popularmente

conhecida como rave, chega-se agora ao momento dito de “conclusão”. “Conclusão” talvez seja uma

dessas palavras infelizes que escolhemos arbitrariamente para dar nome às coisas: “conclusão” dá idéia

de fim. Entretanto, não creio que, de forma solene, num gesto de autoridade, seja possível dizer que

chegamos ao fim ou mesmo que uma palavra final possa ser pronunciada sobre as raves e os jovens que

as freqüentam.

Diferentemente de “conclusão”, “movimento” é uma palavra boa para ser empregada aqui. A

palavra “movimento” expressa não só as minhas idas e vindas das festas, deambulações, meus encontros

e desencontros com os jovens, mas também caracteriza esta juventude que agita corpos e mistura

territórios, que incorpora à cena da música eletrônica de Fortaleza outras cidades que ultrapassam os

limites geográficos da capital, adicionando a ela cidades vizinhas. À cena agregam-se outras cenas, e aos

jovens que participam das raves somam-se outras juventudes. “Heterogeneidade” é outra palavra que

cabe aqui nesse último empreendimento de caracterização das festas e de seu público. As raves não são

dotadas de uma cultura juvenil, no singular, mas de várias culturas juvenis, no plural, que se ajuntam e se

dispersam no contexto da própria festa. Juventudes com estilos que, ao mesmo tempo, marcam

semelhanças e diferenças entre si. Juventudes que não cabem em classificações etárias, tampouco podem

ser percebidas como manifestações subculturais, tais como o foram mods, skinheads e punks na época

em que surgiram.

Ao contrário das leituras empreendidas por pesquisadores do Centre for Conteporary Cultural

Studies (CCCS) da Universidade de Birmingham acerca dos agrupamentos juvenis que despontaram na

Inglaterra no pós-guerra, os jovens que freqüentam as raves não se caracterizam por uma identidade.

Suas identidades possuem um caráter fendido, contraditório e cambiável, sendo tão híbridas quanto a

própria festa e tão voláteis quanto os territórios que ela produz. Antes de uma rave, por exemplo, os

jovens não freqüentam propriamente um lugar ou um conjunto de lugares demarcados na cidade que

possam assinalar seu território, ao invés disso, há uma variedade de lugares não contíguos, distribuídos

pelas malhas da urbe, que proporcionam contágio com outras juventudes pertencentes a outras cenas.

Desde uma boate de música eletrônica, até um shopping center ou um bar que toca o “bom e velho

rock´n roll”, tudo pode ser ponto de passagem ou de (breve) permanência desses jovens que nomadizam

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pela cidade rumo à rave. Parece que a idéia de movimento atrai não só a mim, mas aos jovens também.

O que esses jovens fazem é movimentar tanto corpos como territórios nessa outra cartografia conferida à

cidade a partir de suas práticas. A cidade, reconstruída pelos movimentos desses jovens, “torna-se ao

mesmo tempo múltipla, e, além de palco, sujeito [...] de outras histórias” (DAMASCENO, 2007, p. 225).

Disso produzem-se outras cidades dentro da mesma cidade, outras “Fortalezas de juventudes”.

De movimento também é dotada a festa, pode-se notar isso desde as histórias que se conta sobre

a origem das raves. Não há uma história sobre o seu surgimento, mas várias histórias que fabricam

sentidos para seus símbolos e discursos. Histórias que estão registradas nas movediças páginas da

Internet, contadas, na maioria das vezes, a partir de relatos pessoais. Durante a pesquisa, pude encontrar,

pelo menos, três versões para assinalar a origem das raves. Duas delas têm como berço as cidades de

Chicago, nos EUA, Manchester e Londres, na Inglaterra, Ibiza, na Espanha, e se passa nos idos dos anos

1980. Já a terceira aponta a cidade de Goa, na Índia, como lugar de origem e elege os anos 1990 como

marco. Essa variedade de versões expressa a impossibilidade de fixar, de situar e, principalmente, de

datar alguns dos elementos caracterizadores desse fenômeno. Assim, seja em qualquer um destes

lugares, o que prevalece em todas as três versões é a idéia de se buscar um espaço que seja afastado do

cotidiano, do mundo ordinário, para ser eleito como palco para sediar a festa, ou seja, um lugar de

refúgio que logo se desfaz no dia seguinte.

Em Fortaleza não é possível precisar quando as raves chegaram até a cidade, no entanto, o que

pude observar durante a pesquisa foi que as festas que acontecem na capital e arredores são herdeiras de

uma cena da música eletrônica ligada às danceterias e night clubs. Cena esta que preferi tomar como

referência temporal o final dos anos 1980, o que não quer dizer que os espaços destinados à música

eletrônica surgiram a partir daí em Fortaleza, mas que foi no final desta década que a cena da música

eletrônica e os espaços relacionados a ela começaram a despontar como opção de lazer e entretenimento

das culturas juvenis da cidade. Segundo conta Araújo Jr (2007), é a partir da inauguração de uma casa

noturna chamada Cidadão do Mundo, que foi possível o encontro e a criação daquele que seria um dos

primeiros núcleos de música eletrônica de Fortaleza. O grupo destinava-se à organização de festas rave

na cidade e foi batizado por seus integrantes de Undergroove. A partir daí, a música eletrônica passou a

ser tocada e dançada em outros espaços que não eram aqueles dos clubes e boates, é a vez das “festas

open air” tomarem conta da cena local.

Logo após a criação do Undergroove, vários outros núcleos e produtoras surgiram em Fortaleza.

Com isso, aumentou tanto a quantidade de casas noturnas destinadas à música eletrônica como o número

de raves realizadas na cidade e arredores. Os dados colhidos durante a pesquisa assinalaram que foi a

partir dos anos 2000 que o cenário da música eletrônica na capital começou a assumir proporções jamais

vistas. No início da cena, conforme se buscou apontar no segundo capítulo do presente trabalho, as festas

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tinham um caráter familiar, eram organizadas por amigos próximos e todos aqueles que compareciam

aos eventos eram conhecidos entre si. No entanto, com o tempo, as raves abandonaram esse aspecto

familiar e logo se inseriram na esfera dos mega-eventos, atraindo milhares de jovens. Atualmente,

informações sobre a realização das festas são veiculadas na grande mídia como forma de atrair para os

eventos um público cada vez maior de participantes. Contudo, foi justamente a partir do fenômeno de

crescimento e popularização das festas que despertei o interesse em anotar e compreender símbolos,

discursos e práticas que permeiam o microcosmo das raves.

Para além de uma simples opção de lazer e entretenimento entre tantas disponíveis na cidade, as

raves assinalam a tentativa de criação de um espaço dotado de um modo de vida diferente daquele

experienciado no cotidiano da urbe. Um espaço com uma dinâmica própria: desde a porta de entrada que

dá acesso ao interior da festa, até o chill out e o dance floor pode-se perceber isso. Cada um desses

espaços é dotado de performances que mudam conforme o tempo. Durante a madrugada, por exemplo,

os participantes aproveitam o ambiente relaxado do chill out não só para interagirem uns com os outros,

mas, principalmente, para poupar energias à espera do amanhecer. Já durante a manhã, tudo se torna

mais movimentado, é o momento no qual os jovens podem entregar-se de forma intensa às batidas

eletrônicas do psytrance.

A dança praticada durante a festa é individualizada. Os movimentos dos corpos não seguem uma

coreografia, mas várias. Tudo passa a ser permitido quando a música reverbera pelo corpo dos jovens

que se encontram no dance floor. A dança cria uma atemporalidade, “seus movimentos são executados

com fins em si mesmos” (GIL, 2002), impossibilitando o corpo a ser tomado como produto de uma

disciplina dos gestos. Alguns jovens me falaram durante a pesquisa que a dança permite a vivência de

uma sensação de liberdade e de completo abandono do ego, colaborando para que a festa seja percebida

como uma forma de experimentação momentânea da dissolução das regras sociais, despertando em seus

corpos diferentes tipos de emoções e sensibilidades. A música eletrônica é tida como um estilo musical

no qual, mais do que ouvido, pode ser sentido, experienciado sensorialmente. Embora seja praticada

individualmente, a dança se apresenta como algo para ser vivenciado de forma coletiva. É comum entre

os jovens, falas que colocam a rave como uma forma de resistência ao individualismo moderno-

contemporâneo, e a dança se apresenta como essa possibilidade, ela proporciona que corpos se

dissolvam no campo da festa, possibilitando experimentações de excesso, de êxtase.

Através da dança, por exemplo, os jovens afirmam que é possível sair de si, atingir um estado

alterado de consciência e entrar em comunhão com os outros participantes da festa: é quando “todos se

tornam um só corpo”. A busca por um estado de êxtase, conquistado a partir da interação entre corpo e

música, mostra-se como algo que é coletivamente valorizado. Nesse empreendimento, há jovens que

optam pelo consumo de substâncias psicoativas para potencializar os estímulos sensoriais provocados

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pela música eletrônica, dentre elas, destacam-se o ecstasy e o LSD. Assim, enquanto o discurso médico-

jurídico aborda a temática dos psicoativos como algo que deve ser criminalizado e, por conta disso,

duramente combatido; no ambiente da rave, o consumo de tais substâncias compõe parte dos símbolos e

práticas adotadas durante a realização da festa. O ecstasy e o LSD têm um papel relevante na forma

como a música é experienciada, proporcionando que tanto a qualidade da música como as habilidades do

DJ possam ser avaliadas a partir do conjunto de sentimentos que se desperta no participante que está sob

o efeito de alguma dessas substâncias. Durante a pesquisa, pude perceber que, além do ecstasy e do

LSD, são consumidas na rave, ainda, outras substâncias como: álcool, nicotina, mescalina, maconha e

cocaína. Na festa, raras vezes consome-se apenas um tipo de psicoativo, o que se percebe, na maioria

dos casos, é a combinação de mais de uma substância. Entretanto, essa combinação deve ser feita de

forma calculada a fim de evitar maiores prejuízos ao corpo. A partir do consumo de tais substâncias,

produz-se não só um “corpo-sensível”, apto a interagir com todos os símbolos adotados na rave, mas

também um “corpo-perito”, que dosa a quantidade e a variedade das substâncias ingeridas.

A rave abre novas possibilidades no tocante a relação que se estabelece entre corpo e música. O

consumo de psicoativos no espaço da festa permite aos jovens o acesso a outras realidades. Alguns

dizem que, através do consumo de tais substâncias, podem “ver a música” tocada pelos DJs e “sentir as

cores” que decoram o ambiente da festa. A decoração é um elemento imprescindível no “jogo dos

sentidos” que a rave promove. Ela proporciona que não só a audição dos participantes seja sensibilizada,

como também a visão. Geralmente inspirada em símbolos pertencentes a um universo místico-esotérico

oriental, a decoração da rave chama atenção tanto pela variedade de elementos que carrega consigo

como pelo brilho intenso e diversidade de cores que possui. Às vezes, dá para se avistar de longe as

luzes multicoloridas rasgando a escuridão do céu à noite dando-lhe um tom azulado, futurista. Além da

decoração, a localização do lugar é algo bastante valorizado. O lugar que sediará o evento deve seduzir

por suas belezas naturais. Tudo isso permite ao participante da festa a vivência de uma sensação de

afastamento de um modo de vida que deve ser abandonado durante o final de semana. A rave atua como

um espaço liminar entre o “rural” e o “urbano”, o “racional” e o “espiritual”.

Por conta de sua característica intersticial, alguns participantes me confessaram ser atravessados

por sentimentos de “felicidade” e de “liberdade” durante a rave. Para eles, a “eficácia simbólica” da festa

seria recuperar nos indivíduos sentimentos e valores perdidos na contemporaneidade. Além de

proporcionar sensações como as descritas acima, a festa promoveria ainda um sentimento de “paz”,

“união” e de “respeito” entre todos aqueles que temporariamente habitam o espaço da rave. Este

discurso de harmonia entre os freqüentadores se define como “P.L.U.R.” e evoca a idéia de que na rave,

diferente de outros espaços de lazer e entretenimento disponíveis na cidade, vivencia-se sentimentos e

valores há tempos esquecidos no cotidiano das sociedades: uma existência às avessas na qual a própria

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sociedade é reinventada. Pode-se dizer que, na rave, há o ímpeto de promover um esfacelamento das

fronteiras e limites habituais da existência, no sentido de proporcionar outra “estilística” para a vida.

Ora, quando os jovens na pista de dança pulam e gritam ao mesmo tempo, desistem do “corpo singular”

e evocam a memória de um “corpus coletivo” (DIÓGENES, 2003), percebe-se qual é o projeto político

da festa: a busca pelo prazer individual e coletivo; prazer experimentado no instante presente, no exato

encontro do corpo com a música e com as energias que emanam do corpo do Outro, aquilo que na rave

se define como vibe: “Vibe é o que a galera quer chamar de energia”, disse um dos jovens entrevistados

durante a pesquisa. Energia que contagia uns e outros.

Segundo Duvignaud (1983), a festa evidencia a “capacidade que têm todos os grupos humanos

de se libertarem de si mesmos e de enfrentarem uma diferença radical no encontro com o universo sem

leis e nem forma [...]” (DUVIGNAUD, 1983, p. 212). Para muitos participantes, a rave se mostra como

uma possibilidade de irromper as barreiras sociais que distanciam os indivíduos. Como diz o texto de um

flyer apresentado na introdução deste trabalho: “Na Rave [...] todo mundo é IGUAL”, é a oportunidade

que os jovens têm de “voltar às origens, ao cosmo, [...] à mãe natureza, ao útero...”. Na rave, os jovens

reencontram as dimensões sagradas da existência, é o momento no qual se pode ter uma “vida não

fascista” (FOUCAULT, 1991). No prefácio de “O anti-édipo”, Foucault nos convida a tomar a referida

obra de Deleuze e Guattari como um livro de ética, como um estilo de vida. O fascismo no qual Foucault

se refere não está relacionado apenas aos regimes totalitários liderados por Hitler e Mussolini, mas

também “o fascismo que está em todos nós, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o

fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora” (FOUCAULT,

1991, p. 82).

A rave propõe modos de “vida não fascista”, conferindo aos jovens a possibilidade de, mesmo

que temporariamente, estilizar e embelezar suas próprias vidas, num barulhento exercício de liberdade

que os libera dos códigos já estabelecidos. Como “festas efêmeras que surgem, desaparecem e voltam”

(DE CERTEAU, 1994), a rave possibilita, por breves instantes de tempo, pequenas subversões sem

projetos políticos definidos, mas que temperam o cotidiano de “maravilhas”, dando-lhe um tom

multicolorido. Conforme disse Danilo numa de nossas conversas: “O estilo de vida colorido [...] é uma

outra vida, é um outro mundo onde as pessoas são menos fechadas, mais abertas. É um mundo que tudo

é possível, que tudo pode”.

No entanto, nem todas as raves oferecem a possibilidade de uma existência às avessas, numa

forma agonística de resistência ao fascismo cotidiano. Segundos os jovens, há aquelas que reproduzem a

mesma lógica do mundo ordinário. Tais festas são chamadas de “festas chacota” e nelas os jovens pouco

se atém aos símbolos e discursos adotados nas raves em geral, mas afirma-se que estão lá para aproveitar

mais uma noite como outra qualquer de hedonismo imediato e momentâneo. O oposto da “festa chacota”

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é a “festa conceito”. No interior da cena, define-se como “festa conceito” aquela rave que é considerada

pelos jovens como uma “festa de qualidade”, que é organizada por um grupo de prestígio. Para que uma

festa seja tida como “conceito”, faz-se necessário, antes de qualquer coisa, que ela valorize determinados

elementos que compõem a paisagem da festa como, por exemplo, o lugar onde será realizada, a

decoração adotada e os DJs que participarão do evento. Entretanto, uma “festa conceito” não é aquela

que somente integra os jovens, mas que os hierarquiza, conferindo-lhes diferentes posições na cena:

“estabelecidos” e “outsiders”. Conforme alguns jovens afirmaram durante as entrevistas, as “festas

chacota” são as responsáveis por atrair pessoas que não compartilham dos “verdadeiros” sentidos da

rave. Já as “festas conceito”, são aquelas raves que se preocupam não só em reproduzir o sistema

simbólico adotado no microcosmo das festas, mas, acima de tudo, em selecionar seus participantes, são

elas as responsáveis por manter “viva” a cena local.

Contudo, a maioria dos jovens com quem convivi no período da pesquisa transitava por ambos

os tipos de festa, eles freqüentavam tanto as “festas chacota” como as “festas conceito”. As distinções

criadas em torno dos eventos produzem hierarquias que colocam em diferentes planos aquelas pessoas

que podem investir cerca de R$ 35,00 (trinta e cinco reais) no preço de um ingresso em oposição àquelas

que preferem ir às festas gratuitas, como as várias edições da Ultra Vip realizadas em Sabiaguaba

durante o ano de 2008. Os princípios de classificação se referem não apenas aos freqüentadores, mas se

estendem também aos organizadores. Há aqueles que, segundo os “informantes”, promovem somente

“festas conceito” e aqueles que se interessam em realizar só “festas chacota”, visando principalmente o

lucro que pode ser obtido com a promoção dos eventos.

Um exemplo de “festa conceito” é a Entrance, evento promovido por um grupo de pessoas

conhecido como Nu-ACT. Para alguns jovens, ir a uma rave como a Entrance, por exemplo, significa

muito mais do que participar de uma festa de música eletrônica qualquer; expressa a oportunidade de

participar de uma “festa de verdade”, de uma rave na qual é possível experienciar todos os sentimentos

que esse tipo de festa proporciona aos seus participantes, dentre eles, pode-se destacar as sensações de

“liberdade”, de “paz” e de “felicidade” que a festa suscita nos jovens. Para além de um modo de

resistência, de um “espaço outro”, heterotópico (FOUCAULT, 2001), instaurado durante o final de

semana, a rave se mostra também como uma forma de consumo. Um tipo peculiar de consumo que

extravasa a noção de mercadoria: um consumo de espaços, onde se pode comercializar subjetividades

que operam diretamente na construção de identidades (ou selves). Dentre as subjetividades consumidas

na festa, destacam-se aquelas que proporcionam aos participantes sensações de bem-estar.

Nesse sentido, a rave pode ser percebida como produto de uma cultura de massa e do

consumismo contemporâneo. Atualmente, não é apenas o acúmulo de riqueza que define o status social

de um indivíduo, mas também aquilo que ele pode consumir. O jovem que pode investir uma quantia

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razoável de dinheiro para participar da festa pode consumir sentimentos que o leva a crer que o espaço

da festa é atravessado por outros tipos de relações sociais diferentes daquelas estabelecidas no cotidiano.

De acordo com Herschmann (1997), é através do lazer que os grupos juvenis buscam se opor a um

“cotidiano que se anuncia precário, medíocre e insatisfatório” (HERSCHMANN, 1997, p. 58). A rave

busca instaurar exatamente essa oposição, porém há um preço que deve ser pago por isso, tão alto quanto

a quantidade de bpm que há na música eletrônica. Numa festa, alguns jovens chegam a gastar algo em

torno de R$ 300,00 (trezentos reais) com ingresso, transporte, alimentação e consumo de substâncias

psicoativas, caso opte por usá-las.

Talvez esta seja a principal ambivalência da festa, pois na medida em que ela se mostra como

uma oportunidade de proporcionar aos jovens um tipo de existência às avessas, um lugar de refúgio, ela

também se apresenta como um espaço diferenciado para o consumo não só de produtos, mas de

sentimentos, de subjetividades, de afetos. Segundo os jovens, a rave oferece aos seus participantes a

oportunidade de vivenciarem um momento “feliz”, de “harmonia” consigo e com Outro. Um momento

onde todos os problemas devem ser esquecidos e uma reaproximação com a natureza pode ser

empreendida. Nela, pode-se desprender do mundo ordinário e criar para si um outro mundo, uma espécie

de “universo paralelo” a esse (não é à toa que a figura de aliens e de planetas está presente na decoração

da festa). Entretanto, creio que a principal magia da festa não está relacionada somente aos símbolos e

discursos que a compõem, mas às ambivalências que permeiam o seu fenômeno. Nesse sentido, cabe,

novamente, retomar aqui a idéia do movimento. As festas atraem as camadas juvenis de Fortaleza

principalmente pelo movimento que empreendem de corpos, territórios e signos. Como já foi dito

anteriormente aqui, as raves transitam sim entre o “rural” e o “urbano”, o “racional” e o “espiritual”, mas

também se movem entre o “underground” e o “mainstream”, o “global” e o “local”. Por conta disso,

qualquer tentativa de fixar, de datar, de conceituar se torna um empreendimento bastante arriscado.

Tanto as raves como as juventudes que as freqüentam, não se deixam apreender por categorizações. São

impetuosamente fluidas, escorregadias, quando menos se percebe já escapuliram por entre nossos dedos

e assumiram outra forma que logo voltará a se transmutar.

De modo semelhante à imagem que se tem ao adentrar o ambiente da rave, onde vultos e luzes se

movimentam por todas as direções, vejo que o espaço da festa produz uma infinidade de forças e fluxos

subjetivos que atravessam os sujeitos das mais variadas formas. Mesmo depois de toda essa experiência

conquistada no campo das festas, mesmo depois de ter participado de dezenas de raves e conversado

com vários jovens que as freqüentam, todas as coisas ditas até aqui expressam apenas uma das possíveis

interpretações que se pode obter ao se tentar compreender o complexo fenômeno das festas rave em

Fortaleza. Dessa forma, finalizo este texto assinalando apenas que leituras diferentes podem emergir

todas as vezes em que cartografias semelhantes a esta forem feitas.

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