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Português 2010/2011 3º ano Curso Profissional Técnico de Design Módulo 9 - Fernando Pessoa Ortónimo e Heterónimos Página 1 de 6 O que dizem de Ricardo Reis «O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as cousas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reacção momentânea. Quando reparei em que estava pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, e que ia desenvolvendo. Achei-a bela e calculei interessante se a desenvolvesse segundo princípios que não adopto nem aceito. Ocorreu-me a ideia de a tornar um neoclassicismo «cientifico»*…+» Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Edições Ática «Resume-se num epicurismo triste toda a filosofia da obra de Ricardo Reis. Cada qual de nós- opina o Poeta deve viver a sua própria vida, isolando-se dos outros e procurando apenas, dentro de uma sobriedade individualista, o que lhe agrada e lhe apraz. Não deve procurar os prazeres violentos, e não deve fugir às sensações dolorosas que não sejam extremas. Buscando o mínimo de dor ou *…+, o homem deve provocar sobretudo a calma, a tranquilidade, abstendo-se do esforço e da actividade útil. *…+ Devemos buscar dar-nos a ilusão da calma, da liberdade, os próprios deuses- sobre que pesa o Fado- a não têm; quanto à felicidade, não a pode ter quem está exilado da sua fé e do meio onde a sua alma devia viver; e quanto à calma, quem vive na angústia complexa de hoje, quem vive sempre à espera da morte, dificilmente pode fingir-se calmo. A obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é o esforço lúcido e indisciplinado para obter uma calma qualquer.» Texto escrito por Fernando Pessoa/ Frederico Mendes [Considerações sobre a poesia de Ricardo Reis]in Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Edições Ática « A poesia de Reis *…+ acusa a influência imediata de Horário, o poeta que temperou com a ética estóica a doutrina de Epicuro *…+ Moralistas ambos, tanto Reis como Horácio fundam a sua filosofia prática na reflexão sobre o fluir do tempo, a inanidade dos bens terrenos, os enganos da Fortuna e a morte *…+. Ambos descrevem em pequenos apontamentos o Inverno e o regresso da Primavera, *…+ lembram a brevidade da existência humana, *…+ aconselham a não querer desvendar o futuro, *…+ sentem acerbamente a fuga inelutável das horas *…+. Ambos pregam a moderação nos desejos e nos prazeres, as delícias do viver campestre, a vantagem em iludir o sofrimento com o vinho e o espectáculo das flores. Sabem que não há felicidade completa, que perante o infortúnio deves compor um sorriso tranquilo e descuidado. *…+ Monárquico, educado num colégio de jesuítas, latinista e semi-helenista, amante do exacto, evidencia um espírito grave, medido, ansioso de perfeição. Como Caeiro, seu mestre, aconselha a aceitar a ordem das coisas. Ambos elogiam a magna quies (quietude, tranquilidade) do viver campestre, convencidos de que a sabedoria está em gozar a vida pensando o menos possível. Jacinto Prado Coelho, Diversidade e Unidade Em Fernando Pessoa, Editorial Verbo Ficha Informativa 8 Carta astral de Ricardo Reis Ricardo Reis, por Almada Negreiros

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Português 2010/2011 3º ano Curso Profissional Técnico de Design

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O que dizem de Ricardo Reis

«O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas

da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos,

especialmente de realização da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as cousas sem

as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reacção momentânea. Quando reparei em que

estava pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, e que ia desenvolvendo. Achei-a

bela e calculei interessante se a desenvolvesse segundo princípios que não adopto nem aceito.

Ocorreu-me a ideia de a tornar um neoclassicismo «cientifico»*…+»

Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Edições Ática

«Resume-se num epicurismo triste toda a filosofia da obra de Ricardo Reis.

Cada qual de nós- opina o Poeta – deve viver a sua própria vida, isolando-se dos outros e

procurando apenas, dentro de uma sobriedade individualista, o que lhe agrada e lhe apraz. Não

deve procurar os prazeres violentos, e não deve fugir às sensações dolorosas que não sejam

extremas. Buscando o mínimo de dor ou *…+, o homem deve provocar sobretudo a calma, a

tranquilidade, abstendo-se do esforço e da actividade útil. *…+

Devemos buscar dar-nos a ilusão da calma, da liberdade, os próprios deuses- sobre que pesa o

Fado- a não têm; quanto à felicidade, não a pode ter quem está exilado da sua fé e do meio

onde a sua alma devia viver; e quanto à calma, quem vive na angústia complexa de hoje, quem

vive sempre à espera da morte, dificilmente pode fingir-se calmo. A obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é o

esforço lúcido e indisciplinado para obter uma calma qualquer.»

Texto escrito por Fernando Pessoa/ Frederico Mendes [Considerações sobre a poesia de Ricardo Reis]in Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação,

Edições Ática

« A poesia de Reis *…+ acusa a influência imediata de Horário, o poeta que temperou com a ética estóica a doutrina de Epicuro *…+

Moralistas ambos, tanto Reis como Horácio fundam a sua filosofia prática na reflexão sobre o fluir do tempo, a inanidade dos bens

terrenos, os enganos da Fortuna e a morte *…+.

Ambos descrevem em pequenos apontamentos o Inverno e o regresso da

Primavera, *…+ lembram a brevidade da existência humana, *…+ aconselham

a não querer desvendar o futuro, *…+ sentem acerbamente a fuga inelutável

das horas *…+. Ambos pregam a moderação nos desejos e nos prazeres, as

delícias do viver campestre, a vantagem em iludir o sofrimento com o vinho

e o espectáculo das flores. Sabem que não há felicidade completa, que

perante o infortúnio deves compor um sorriso tranquilo e descuidado. *…+

Monárquico, educado num colégio de jesuítas, latinista e semi-helenista,

amante do exacto, evidencia um espírito grave, medido, ansioso de

perfeição. Como Caeiro, seu mestre, aconselha a aceitar a ordem das

coisas. Ambos elogiam a magna quies (quietude, tranquilidade) do viver

campestre, convencidos de que a sabedoria está em gozar a vida pensando o menos possível.

Jacinto Prado Coelho, Diversidade e Unidade Em Fernando Pessoa, Editorial Verbo

Ficha Informativa 8

Carta astral de Ricardo Reis

Ricardo Reis, por

Almada Negreiros

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GLOSSÁRIO DE RICARDO REIS

Epicurismo- doutrina baseada num ideal de sabedoria, segundo o qual a felicidade, ou seja, a tranquilidade da alma

(ataraxia) é o objectivo da moral; esta doutrina incita a não temer nem os deuses nem a morte e a procurar os prazeres

simples e naturais da existência

Circunda-te de rosas, ama, bebe

e cala. O mais é nada.

Ricardo Reis

Estoicismo- doutrina moral que propõe regras de vida próprias para alcançar a felicidade e a sabedoria. Caracteriza-se pelo

seu naturalismo manifesto no preceito segundo o qual é necessário ‘ viver em harmonia com a natureza’.

Não tenhas nada nas mãos

Nem uma memória na alma

Que quando te puserem

nas mãos o óbolo último

Ao abrirem-te as mãos

Nada te cairá.

(…)

Senta-te ao sol. Abdica

E sê rei de ti próprio

Ricardo Reis

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Mestre, são plácidas

Todas as horas

Que nós perdemos,

Se no perdê-las,

Qual numa jarra,

Nós pomos flores.

Não há tristezas

Nem alegrias

Na nossa vida.

Assim saibamos,

Sábios incautos,

Não a viver,

Mas decorrê-la,

Tranquilos, plácidos,

Lendo as crianças

Por nossas mestras,

E os olhos cheios

De Natureza...

À beira-rio,

À beira-estrada,

Conforme calha,

Sempre no mesmo

Leve descanso

De estar vivendo.

O tempo passa,

Não nos diz nada.

Envelhecemos.

Saibamos, quase

Maliciosos,

Sentir-nos ir.

Não vale a pena

Fazer um gesto.

Não se resiste

Ao deus atroz

Que os próprios filhos

Devora sempre.

Colhamos flores.

Molhemos leves

As nossas mãos

Nos rios calmos,

Para aprendermos

Calma também.

Girassóis sempre

Fitando o sol,

Da vida iremos

Tranquilos, tendo

Nem o remorso

De ter vivido.

Ricardo Reis, in "Odes"

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1. O poema inicia-se com uma apóstrofe.

1.1. A quem se refere o sujeito poético?

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2. A tranquilidade com que o sujeito poético encara a passagem do tempo ( vv.1-3) é comparada a um gesto banal do

quotidiano.

2.1. Explicita essa relação.

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____________________________________________________________________________________________________

3. A partir da segunda estrofe, o sujeito poético, faz a apologia da ataraxia, isto é, da tranquilidade da alma, preconizada

pelos epicuristas.

3.1. Comprova a veracidade desta afirmação, considerando:

a expressividade dos adjectivos utilizados;

a afinidade contextual que se estabelece entre “ não viver” ( v.12)/ “ decorrer” (v.13)/ “ir” (v.30);

a relação entre a filosofia de vida defendida e a ocorrência de frases na forma negativa.

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4. Podemos afirmar que esta ode, à semelhança de quase todas as odes de Ricardo Reis tem um carácter moralista.

4.1. Assinala os versos onde o sujeito poético nos exorta/ aconselha a tomar uma atitude.

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4.2. Sintetiza a mensagem contida no poema, completando o esquema:

“ Não há tristezas/ Nem alegrias/ Na nossa vida.”

Portanto saibamos______________ porque o tempo _______________

Logo, não vale a pena __________________

Assim morreremos tranquilos já que __________________

RICARDO REIS – O POETA DA RAZÃO

De formação clássica, «pagão por carácter», segue Caeiro no amor da vida rústica, junto da Natureza. Mas enquanto o Mestre, menos culto e complicado, é (ou pretende ser) um homem franco, alegre, Reis é um ressentido, que sofre e vive o drama da transitoriedade, doendo-lhe o desprezo dos deuses. Afligem-no a imagem antecipada da Morte e a dureza do Fado. Daí, ele buscar o refúgio de um epicurismo temperado de algum estoicismo, tal como Horácio, seu modelo literário:

«Abdica E sê rei de ti próprio»

Lúcido e cauteloso, constrói, para si, uma felicidade relativa, mista de resignação e moderado gozo dos prazeres que não comprometam a sua liberdade interior. Trata-se de fruir, muito consciente e ponderadamente, as coisas acessíveis sem demasiado esforço ou risco. Latinizante no vocabulário e na sintaxe, o seu estilo é densamente trabalhado e revela ainda, muito claramente, o seu tributo à tradição clássica no uso de estrofes regulares, quase sempre de decassílabos, nas referências mitológicas, na frequência do hipérbato, na contenção e concisão altamente expressivas e lúcidas.

A filosofia de Reis rege-se pelo ideal “Carpe Diem” – a sabedoria consiste em saber-se aproveitar o presente, porque se sabe que a vida é breve. Há que nos contentarmos com o que o destino nos trouxe. Há que viver com moderação, sem nos apegarmos às coisas, e por isso as paixões devem ser comedidas, para que a hora da morte não seja demasiado dolorosa.

A concepção dos deuses como um ideal humano; As referências aos deuses da Antiguidade (neo-paganismo) greco-latina são uma forma de referir a

primazia do corpo, das formas, da natureza, dos aspectos exteriores, da realidade, sem cuidar da subjectividade ou da interioridade - ensinamentos de Caeiro, o mestre de todos os heterónimos;

A recusa de envolvimento nas coisas do mundo e dos homens.

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Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida

Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.

Mais vale saber passar silenciosamente

E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,

Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,

Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,

E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,

Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,

Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro

Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as

No colo, e que o seu perfume suavize o momento —

Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,

Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois

Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,

Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos

Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,

Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.

Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,

Pagã triste e com flores no regaço.

Odes de Ricardo Reis, Edições Ática

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CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS

Epicurismo - busca da felicidade relativa - moderação nos prazeres - fuga à dor - ataraxia (tranquilidade capaz de evitar a perturbação)

Estoicismo - aceitação das leis do destino (“... a vida/ passa e não fica, nada deixa e nunca regressa.”) - indiferença face às paixões e aos males - abdicação de lutar - autodisciplina

Horacionismo - carpe diem: vive o momento - aurea mediocritas: a felicidade possível no sossego do campo (proximidade de Caeiro)

Paganismo - crença nos deuses - crença na civilização da Grécia - sente-se um “estrangeiro” fora da sua pátria, a Grécia

Culto do Belo, como forma de superar a transitoriedade da vida e dos bens terrenos Intelectualização das emoções Medo da morte Autodomínio e contenção dos sentimentos Quase ausência de erotismo, em contraste

com o seu mestre Horácio

Neoclassicismo - poesia construída com base em ideias elevadas - Odes (forma métrica por excelência)

CARACTERÍSTICAS ESTILÍSTICAS

- Submissão da expressão ao conteúdo: a uma ideia perfeita corresponde uma expressão perfeita - Estrofes regulares de verso decassílabo alternadas ou não com hexassílabo - Verso branco - Recurso frequente à assonância, à rima interior e à aliteração - Predomínio da subordinação

- Uso frequente do hipérbato - Uso frequente do gerúndio e do imperativo - Uso de latinismos (ex: astro, ledo, ínfero, inscientes...) - Metáforas, eufemismos, comparações, imagens - Estilo construído com muito rigor e muito denso