90

FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão

Embed Size (px)

Citation preview

  • www.princexml.comPrince - Personal EditionThis document was created with Prince, a great way of getting web content onto paper.

  • Itinerrio para uma leitura de Freud

    Paulo Endo e Edson Sousa

    Freud no apenas o pai da psicanlise, mas o fundador de umaforma muito particular e indita de produzir cincia e conhecimento.Ele reinventou o que se sabia sobre a alma humana (a psique), in-staurando uma ruptura com toda a tradio do pensamento ocidental,a partir de uma obra em que o pensamento racional, consciente ecartesiano perde seu lugar exclusivo e egrgio. Seus estudos sobre avida inconsciente, realizados ao longo de toda a sua vasta obra, so ho-je referncia obrigatria para a cincia e para a filosofia contem-porneas. A sua influncia no pensamento ocidental no s incon-teste, como no cessa de ampliar seu alcance, dialogando com e influ-enciando as mais variadas reas do saber, como a filosofia, as artes, aliteratura, a teoria poltica e as neurocincias.

    Sigmund Freud (1856-1939) nasceu em Freiberg (atual Pbor), naregio da Morvia, hoje parte da Repblica Tcheca, mas quela pocaparte do Imprio Austraco. Filho de Jacob Freud e de sua terceira es-posa, Amlia Freud, teve nove irmos, dois do primeiro casamento dopai e sete do casamento entre seu pai e sua me. Sigmund era o filhomais velho de oito irmos e era sabidamente adorado pela me, que ochamava de meu Sigi de ouro.

  • Em 1860, Jacob Freud, comerciante de ls, mudou-se com afamlia para Viena, cidade onde Sigmund Freud residiria at quase ofim da vida, quando teria de se exilar em Londres, fugindo daperseguio nazista. De famlia pobre, formou-se em medicina em1882. Devido a problemas financeiros, decidiu ingressar imediata-mente na clnica mdica em vez de se dedicar pesquisa, uma de suasgrandes paixes. medida que se estabelecia como mdico, pdepensar em propor casamento para Martha Bernays. Casaram-se em1886 e tiveram seis filhos: Mathilde, Martin, Oliver, Ernst, Sophie eAnna.

    Embora o pai tenha lhe transmitido os valores do judasmo, Freudnunca seguiu as tradies e os costumes religiosos; ao mesmo tempo,nunca deixou de se considerar um homem judeu. Em algumasocasies, atribuiu sua origem judaica o fato de resistir aos inmerosataques que a psicanlise sofreu desde o incio (Freud aproximava ahostilidade sofrida pelo povo judeu ao longo da histria s crticas vir-ulentas e repetidas que a clnica e a teoria psicanalticas receberam). Apsicanlise surgiu afirmando que o inconsciente e a sexualidade eramcampos inexplorados da alma humana, onde repousava todo um po-tencial para uma cincia ainda adormecida. Freud assumia, assim, seupropsito de remar contra a mar.

    Mdico neurologista de formao, foi contra a prpria medicinaque Freud produziu sua primeira ruptura epistmica. Isto : logo per-cebeu que as pacientes histricas, afligidas por sintomas fsicos semcausa aparente, eram, no raro, tratadas com indiferena mdica enegligncia no ambiente hospitalar. A histeria pedia, portanto, umanova inteligibilidade, uma nova cincia.

    A caracterstica, muitas vezes espetacular, da sintomatologia daspacientes histricas de um lado e, de outro, a impotncia do sabermdico diante desse fenmeno impressionaram o jovem neurologista.

    4/90

  • Doentes que apresentavam paralisia de membros, mutismo, dores, an-gstia, convulses, contraturas, cegueira etc. desafiavam a racionalid-ade mdica, que no encontrava qualquer explicao plausvel paratais sintomas e sofrimentos. Freud ento se debruou sobre essas pa-cientes; porm, desde o princpio buscava as razes psquicas do sofri-mento histrico e no a explicao neurofisiolgica de tal sintomatolo-gia. Procurava dar voz a tais pacientes e ouvir o que tinham a dizer,fazendo uso, no incio, da hipnose como tcnica de cura.

    Em 1895, publicado o artigo inaugural da psicanlise: Estudossobre a histeria. O texto foi escrito com o mdico Josef Breuer(1842-1925), o primeiro parceiro de pesquisa de Freud. Mdico vien-ense respeitado e erudito, Breuer reconhecera em Freud um jovembrilhante e o ajudou durante anos, entre 1882 e 1885, inclusive fin-anceiramente. Estudos sobre a histeria o nico material que escre-veram juntos e j evidencia o distanciamento intelectual entre ambos.Enquanto Breuer permanecia convicto de que a neurofisiologia dariasustentao ao que ele e Freud j haviam observado na clnica da his-teria, Freud, de outro modo, j estava claramente interessado na raizsexual das psiconeuroses caminho que perseguiu a partir do mtodoclnico ao reconhecer em todo sintoma psquico uma espcie de hier-glifo. Escreveu certa vez: O paciente tem sempre razo. A doenano deve ser para ele um objeto de desprezo, mas ao contrrio, um ad-versrio respeitvel, uma parte do seu ser que tem boas razes de exi-stir e que lhe deve permitir obter ensinamentos preciosos para ofuturo.

    Em 1899, Freud estava s voltas com os fundamentos da clnica eda teoria psicanalticas. No era suficiente postular a existncia do in-consciente, j que muitos outros antes dele j haviam se referido a esseaspecto desconhecido e pouco frequentado do psiquismo humano.Tratava-se de explicar seu dinamismo e estabelecer as bases de uma

    5/90

  • clnica que tivesse o inconsciente como ncleo. H o inconsciente, mascomo ter acesso a ele?

    Foi nesse mesmo ano que Freud finalizou aquele que , para mui-tos, o texto mais importante da histria da psicanlise: A inter-pretao dos sonhos. A edio, porm, trazia a data de 1900. Sua am-bio e inteno ao alterar a data de publicao era a de que esse tra-balho figurasse como um dos mais importantes do sculo XX. De fato,A interpretao dos sonhos hoje um dos mais relevantes textos es-critos no referido sculo, ao lado de A tica protestante e o espritodo capitalismo, de Max Weber, Tractatus Logico-Philosophicus, deLudwig Wittgenstein, e Origens do totalitarismo, de Hannah Arendt.

    Nesse texto, Freud prope uma teoria inovadora do aparelhopsquico, bem como os fundamentos da clnica psicanaltica, nicacapaz de revelar as formaes, tramas e expresses do inconsciente,alm da sintomatologia e do sofrimento que correspondem a essasdinmicas. A interpretao dos sonhos revela, portanto, uma invest-igao extensa e absolutamente indita sobre o inconsciente. Tudoisso a partir da anlise e do estudo dos sonhos, a manifestaopsquica inconsciente por excelncia. Porm, seria preciso aguardarum trabalho posterior para que fosse abordado o papel central dasexualidade na formao dos sintomas neurticos.

    Foi um desdobramento necessrio e natural para Freud a pub-licao, em 1905, dos Trs ensaios sobre a teoria da sexualidade. Aapresentao plena das suas hipteses fundamentais sobre o papel dasexualidade na gnese da neurose (j noticiadas nos Estudos sobre ahisteria) pde, enfim, vir luz, com todo o vigor do pensamento freu-diano e livre das amarras de sua herana mdica e da aliana comBreuer.

    A verdadeira descoberta de um mtodo de trabalho capaz de exporo inconsciente, reconhecendo suas determinaes e interferindo em

    6/90

  • seus efeitos, deu-se com o surgimento da clnica psicanaltica. Antesdisso, a nascente psicologia experimental alem, capitaneada por Wil-helm Wundt (1832-1920), esmerava-se em aprofundar exerccios deautoconhecimento e autorreflexo psicolgicos denominados de intro-speccionismo. A pergunta bvia elaborada pela psicanlise era: comopodia a autoinvestigao esclarecer algo sobre o psiquismo profundotendo sido o prprio psiquismo o que ocultou do sujeito suas dores esofrimentos? Por isso a clnica psicanaltica prope-se como uma falado sujeito endereada escuta de um outro (o psicanalista).

    A partir de 1905, a clnica psicanaltica se consolidou rapidamentee se tornou conhecida em diversos pases, despertando o interesse e anecessidade de traduzir os textos de Freud para outras lnguas. Em1910, a psicanlise j ultrapassara as fronteiras da Europa e comeavaa chegar a pases distantes como Estados Unidos, Argentina e Brasil.Discpulos de outras partes do mundo se aproximavam da obra freudi-ana e do movimento psicanaltico.

    Desde muito cedo, Freud e alguns de seus seguidores reconhe-ceram que a teoria psicanaltica tinha um alcance capaz de iluminardilemas de outras reas do conhecimento alm daqueles observadosna clnica. Um dos primeiros textos fundamentais nesta direo foiTotem e tabu: alguns aspectos comuns entre a vida mental dohomem primitivo e a dos neurticos, de 1913. Freud afirmou queTotem e tabu era, ao lado de A interpretao dos sonhos, um dos tex-tos mais importantes de sua obra e o considerou uma contribuiopara o que ele chamou de psicologia dos povos. De fato, nos grandestextos sociais e polticos de Freud h indicaes explcitas a Totem etabu como sendo ponto de partida e fundamento de suas teses. ocaso de Psicologia das massas e anlise do eu (1921), O futuro de uma

    7/90

  • iluso (1927), O mal-estar na cultura (1930) e Moiss e o monotesmo(1939).

    O perodo em que Freud escreveu Totem e tabu foi especialmenteconturbado, sobretudo porque estava sendo gestada a Primeira GuerraMundial, que eclodiria em 1914 e duraria at 1918. Esse episdiohistrico foi devastador para Freud e o movimento psicanaltico, es-vaziando as fileiras dos pacientes que procuravam a psicanlise e asdos prprios psicanalistas. Importantes discpulos freudianos comoKarl Abraham e Sndor Ferenczi foram convocados para o front, e aatividade clnica de Freud foi praticamente paralisada, o que geroudissabores extremos sua famlia, devido falta de recursos financeir-os. Foi nesse perodo que Freud escreveu alguns dos textos mais im-portantes do que se costuma chamar a primeira fase da psicanlise(1895-1914). Esses trabalhos foram por ele intitulados de textos sobrea metapsicologia, ou textos sobre a teoria psicanaltica.

    Tais artigos, inicialmente previstos para perfazerem um conjuntode doze, eram parte de um projeto que deveria sintetizar as principaisposies tericas da cincia psicanaltica at ento. Em apenas seis se-manas Freud escreveu os cinco artigos que hoje conhecemos comouma espcie de apanhado denso, inovador e consistente de metapsico-logia. So eles: Pulses e destinos da pulso, O inconsciente, O re-calque, Luto e melancolia e Complemento metapsicolgico doutrina dos sonhos. O artigo Para introduzir o narcisismo, escritoem 1914, junta-se tambm a esse grupo de textos. Dos doze artigosprevistos, cinco no foram publicados, apesar de Freud t-los con-cludo: ao que tudo indica, ele os destruiu. (Em 1983, a psicanalista epesquisadora Ilse Grubrich-Smitis encontrou um manuscrito deFreud, com um bilhete anexado ao discpulo e amigo Sndor Ferenczi,em que identificava Viso geral das neuroses de transferncia comoo 12o ensaio da srie sobre metapsicologia. O artigo foi publicado em

    8/90

  • 1985 e o stimo e ltimo texto de Freud sobre metapsicologia quechegou at ns.)

    Aps o final da Primeira Guerra e alguns anos depois de ter se es-merado em reapresentar a psicanlise em seus fundamentos, Freudpublica, em 1920, um artigo avassalador intitulado Alm do princpiodo prazer. Texto revolucionrio, admirvel e ao mesmo tempo malaceito e mal digerido at hoje por muitos psicanalistas, desconfort-veis com a proposio de uma pulso (ou impulso, conforme sepreferiu na presente traduo) de morte autnoma e independente daspulses de vida. Nesse artigo, Freud refaz os alicerces da teoria psic-analtica ao propor novos fundamentos para a teoria das pulses. Aprimeira teoria das pulses apresentava duas energias psquicas comosendo a base da dinmica do psiquismo: as pulses do eu e as pulsesde objeto. As pulses do eu ocupam-se em dar ao eu proteo, guaridae satisfao das necessidades elementares (fome, sede, sobrevivncia,proteo contra intempries etc.), e as pulses de objeto buscam a as-sociao ertica e sexual com outrem.

    J em Alm do princpio do prazer, Freud avana no estudo dosmovimentos psquicos das pulses. Mobilizado pelo tratamento dosneurticos de guerra que povoavam as cidades europeias e por algunsde seus discpulos que, convocados, atenderam psicanaliticamente nasfrentes de batalha, Freud reencontrou o estmulo para repensar a pr-pria natureza da repetio do sintoma neurtico em sua articulaocom o trauma. Surge o conceito de pulso de morte: uma energia queataca o psiquismo e pode paralisar o trabalho do eu, mobilizando-o emdireo ao desejo de no mais desejar, que resultaria na mortepsquica. provavelmente a primeira vez em que se postula nopsiquismo uma tendncia e uma fora capazes de provocar a paralisia,a dor e a destruio.

    9/90

  • Uma das principais consequncias dessa reviravolta a segundateoria pulsional, que pode ser reencontrada na nova teoria do aparelhopsquico, conhecida como segunda tpica, ou segunda teoria doaparelho psquico (ego, id e superego, ou eu, isso e supereu), ap-resentada no texto O eu e o id, publicado em 1923. Freud prope umainstncia psquica denominada supereu. Essa instncia, ao mesmotempo em que possibilita uma aliana psquica com a cultura, a civiliz-ao, os pactos sociais, as leis e as regras, tambm responsvel pelaculpa, pelas frustraes e pelas exigncias que o sujeito impe a simesmo, muitas delas inalcanveis. Da o mal-estar que acompanhatodo sujeito, e que no pode ser inteiramente superado.

    Em 1938, foi redigido o texto Esboo de psicanlise, que seria pub-licado postumamente em 1940. Freud pretendia escrever uma grandesntese de sua doutrina, mas faleceu em setembro de 1939, antes determin-la. O Esboo permanece, ento, conforme o prprio nomesugere, como uma espcie de inacabado testamento terico freudiano,indicando a incompletude da prpria teoria psicanaltica que, desdeento, segue se modificando, se refazendo e se aprofundando.

    Curioso talvez que o ltimo grande texto de Freud, publicado em1939, tenha sido Moiss e o monotesmo, trabalho potente e fundadorque reexamina teses historiogrficas basilares da cultura judaica e dareligio monotesta a partir do arsenal psicanaltico. Essa obra mere-ceu comentrios de grandes pensadores contemporneos como JosefYerushalmi, Edward Said e Jacques Derrida, que continuaram aenriquec-la, desvelando no s a herana judaica muito particular deFreud, por ele afirmada e ao mesmo tempo combatida, mas tambm oalcance da psicanlise no debate sobre os fundamentos da histori-ografia do judasmo, determinante da constituio identitria de pess-oas, povos e naes.

    10/90

  • Esta breve anotao introdutria certamente insuficiente, poismuito ainda se poderia falar de Freud. Contudo, esperamos haver, aomenos, despertado a curiosidade do leitor, que passar a ter em mos,com esta coleo, uma nova e instigante srie de textos de Freud, comtraduo direta do alemo e reviso tcnica de destacados psicanalis-tas e estudiosos da psicanlise no Brasil.

    Ao leitor, s nos resta desejar boa e transformadora viagem.

    11/90

  • Prefcio

    Renata Udler Cromberg

    Em O futuro de uma iluso, publicado em 1927, Freud procura an-alisar a origem da necessidade do ser humano de ter uma crena reli-giosa na sua vida. Apesar de Freud respeitar o fenmeno religiosocomo manifestao cultural e manifestao de f singular calcada nossentidos, ele tenta desmont-la enquanto forma de conhecimento domundo por consider-la a origem da alienao, da superstio, almde um fenmeno calcado na imaginao. Freud se aproxima muito dofilsofo Espinosa ao procurar esclarecer e liberar o ser humano no in-tuito de ajud-lo na compreenso e na transformao dos seus afetospara que ele no se torne submisso a opresses reais e imaginrias,dentro e fora de si.

    O futuro de uma iluso o quarto dos seis ensaios de Freud queabordam temas ligados constituio da cultura e da sociedade. Osoutros cinco so: A moral sexual cultural e o nervosismo moderno,de 1908, Totem e tabu, de 1913, Psicologia das massas e anlise doeu, de 1921, O mal-estar na cultura, de 1930, e Moiss e omonotesmo, de 1939. Tais ensaios so erroneamente chamados detextos sociais de Freud ou de psicanlise aplicada, uma vez que nelesFreud faz anlise da cultura ou da sociedade toda vez que tem umaquesto conceitual a testar ou a resolver referente prpria e

  • constante recriao da teoria psicanaltica. Assim, o social e o singularentrelaam-se na produo desses textos, que analisam a constituiodas manifestaes psquicas, culturais e sociais.

    O prprio Freud, nas primeiras linhas de Psicologia das massas eanlise do eu, rejeita a oposio clssica entre psicologia individual epsicologia social, ou psicologia das massas, salientando que h sempreum outro (modelo, objeto, rival) na vida psquica do indivduo, e que,portanto, a psicologia individual sempre social. Entretanto, h umadiferena, no interior da psicologia individual, entre os atos sociais eos atos narcsicos: no caso destes ltimos, a satisfao pulsional (ouimpulsional) escapa aos efeitos da alteridade. Assim, esses ensaiosabordam tambm questes vitais para Freud como homem atraves-sado e constitudo em suas escolhas e aes pelas intensidades dotempo histrico em que vivia e em razo das quais sofria passiva-mente: a queda das monarquias europeias, a Primeira Guerra Mundi-al, a Revoluo Russa, a ascenso do stalinismo, do fascismo e donazismo e suas polticas de massa totalitrias, a escalada do antis-semitismo, a Grande Depresso e o vertiginoso desenvolvimentotecnolgico.

    Ao escrever sobre religio naquele momento especfico da suaobra, Freud luta para estabelecer a psicanlise enquanto campo desaber que formula uma concepo de aparelho psquico, que por suavez fornece a base de uma nova teraputica para o sofrimento mentalhumano. O sofrimento mental humano no nem o produto de forasexteriores, como a religio faz acreditar, nem o produto de leses cor-porais ou de heranas familiares, como a medicina fazia crer at ento. na histria singular de cada homem, em conjuno com as foraspulsionais que habitam seu corpo e inscritas na constituio de seupsiquismo, que encontramos as razes para o sofrimento psquico quese expressa atravs de seu corpo e de sua alma.

    13/90

  • O veculo para a cura uma fala que ser escutada por outro.Porm, no se trata nem de uma confisso, como a fala a um padre,nem de um discurso dirigido a um saber prefixado, como no caso deuma consulta mdica. O psicanalista, da posio de escuta em que es-t, abre a fala do sujeito para um saber verdadeiro desconhecido porambos, at que este surge, inesperadamente. A psicanlise, ento,distingue-se de todos os tratamentos da alma e de todas as formas deconfisses teraputicas ligadas s diversas religies justamente por en-contrar no prprio homem a origem e a cura para seus males, possibil-itando a libertao dos fantasmas que impedem a autonomia e a liber-dade de suas escolhas. Por isso, segundo Freud, a psicanlise deveriaconstruir seus prprios critrios de formao profissional. No deveriase subordinar nem medicina nem psiquiatria, uma subdivisodesta, tampouco religio. Mas no incio, para garantir sua laicidade,ela se submeteu medicina e teve at mesmo um papel de crescenteimportncia de subsdio psiquiatria, ento uma nova rea mdica.Contudo, quando a psiquiatria tentou abocanhar a exclusividade daformao profissional do psicanalista, Freud discordou veemente-mente. Em 1926, escreveu A questo da anlise leiga, um texto vigor-oso a favor da anlise realizada por no mdicos que tivessem passadopelos critrios exclusivos da formao psicanaltica, a saber, a anlisepessoal dita didtica e a superviso dos atendimentos clnicos. Paragarantir o controle exclusivo da especificidade da formao do psican-alista e a autonomia do saber psicanaltico, as instituies psicanaltic-as se fortaleceram com a criao da Associao Psicanaltica Inter-nacional, em 1925, em Viena. Com algumas variaes, essas regras soaceitas por todas as instituies psicanalticas que de alguma formareivindicam o freudismo no mundo, em suas diversas correntes. Taisinstituies se reafirmam vigorosamente como a garantia de que a

    14/90

  • prtica psicanaltica no seja engolida e distorcida por psiquiatras,psicoterapeutas ou religiosos.

    Freud mesmo escreve numa carta a Oskar Pfister, reverendo prot-estante, seu grande amigo e interlocutor imaginrio desse ensaio, queao tratar da anlise leiga, pretendia proteger a psicanlise dos mdi-cos, ao passo que, emO futuro de uma iluso, procuro defend-la dos padres, confirmandoo lao implcito entre os dois textos. Aps demarcar o campo de atu-ao e formao do psicanalista de maneira a distingui-lo do campomdico e psiquitrico, agora se tratava de afastar definitivamente orisco de confundi-lo com o campo sagrado das teraputicas religiosasda alma.

    Demolir os argumentos da f religiosa j era um projeto antigo deFreud; chegara a hora de realiz-lo. Oskar Pfister aderira ao movi-mento psicanaltico em 1908, pois desejava utilizar a tcnica psic-analtica em sua misso de pastor das almas. Foi um pioneiro da psic-anlise na Sua alem e teve um valor estratgico excepcional paraFreud no momento do encontro entre ambos. Foram trinta anos deamizade baseada no grande afeto e na admirao recproca, apesar dasdivergncias em questes de f e de prtica clnica. Aps a redao deO futuro, Freud anunciou a Pfister, por carta, que a publicao dotexto tinha muito a ver com ele e que h muito queria escrev-lo, mashavia arquivado a ideia em considerao ao amigo, at que finalmentea premncia se tornou forte demais. O ensaio tratava da atitude abso-lutamente negativa dele, Freud, para com a religio sob todas asformas e combinaes e, apesar disso no ser novidade para Pfister,tal confisso pblica poderia lhe ser embaraosa. Pfister reagiu deforma encorajadora, dizendo, por carta, que preferia muito mais lerum descrente sensato como Freud do que mil crentes sem valor.

    15/90

  • Em A iluso de um futuro, artigo publicado logo em seguida napioneira revista psicanaltica Imago (dentre vrias reaes suscitadaspor O futuro, algumas das quais violentas), o reverendo dizia amis-tosamente que o redigira a favor e no contra Freud, pois, afinal, quemquer que ingressasse nas fileiras da psicanlise por ele combatia. Oreverendo inteligentemente invertera os papis com seu velho amigo,acusando Freud, sabidamente um pessimista inveterado, de um otim-ismo injustificado. Pfister argumentou que o conhecimento nogarantia o progresso. A cincia, seca e antissptica, tampouco jamaispoderia ocupar o lugar da religio, j que no conseguia inspirarvalores morais ou obras de arte duradouras. Em seu artigo, Pfisterafirmava que a verdadeira f era uma proteo contra a neurose e quea posio freudiana era ela prpria uma iluso, pois passava ao largoda atitude autntica do cristo. Freud respondeu-lhe em carta dizendoque, em si, a psicanlise no nem religiosa nem irreligiosa. umsentimento sem partido, do qual podem servir-se religiosos e leigos,desde que o faam unicamente a servio do alvio dos seres quesofrem.

    Examinemos sucintamente a religio na obra de Freud. A religiofoi analisada como fato social por Max Weber e mile Durkheim noincio do sculo XX no campo novo da sociologia. Freud, porm, pensaa origem do sentimento religioso de um outro ponto de vista, a partirdo funcionamento da vida psquica do indivduo. O tema aparece ini-cialmente em Atos obsessivos e prticas religiosas, de 1907, ensaiono qual Freud faz um paralelo entre os sintomas do quadro clnico daneurose obsessiva e a religio, sendo os sintomas obsessivos a religioparticular do neurtico, enquanto a religio seria o sintoma neurticoda humanidade. Como elemento determinante da educao, v na reli-gio uma coero precoce e nefasta da inteligncia infantil, em Amoral sexual cultural e o nervosismo moderno, de 1908. J em

    16/90

  • Totem e tabu, de 1913, Freud apresenta sua teoria da religio pro-pondo uma interpretao do desenvolvimento das religies, do anim-ismo at o cristianismo, passando por vrios graus intermedirios.Para ele, a verdade histrica, mais do que a verdade fatual contidana religio e ao mesmo tempo por ela deformada at tornar-se irre-conhecvel , a verdade do crime primordial, cujos traos no podemser suprimidos: o assassinato do pai primitivo, senhor absoluto dahorda, feito por seus filhos, cuja culpa e arrependimento institui asprimeiras proibies que fundam a cultura e a possibilidade da vidaem sociedade, ou seja, a proibio do assassinato e a instaurao dotabu do incesto. Assim, a raiz da iluso religiosa a nostalgia do pai,que retorna sob a figura do pai morto, inicialmente como totem, de-pois como os deuses e finalmente na figura abstrata de Deus. Essa teseganhar importncia crescente na obra de Freud, e ele no mais aabandonar como eixo de compreenso da vida psquica e cultural dohomem.

    A religio tambm aparece como questo da vida psquica deFreud na figura crucial para ele de Moiss, o profeta bblico. Seultimo artigo publicado em vida, uma espcie de testamento literrio, Moiss e o monotesmo, de 1939, ensaio em que abordada a reli-gio como manifestao psquica e cultural, desta vez numa descon-struo at a origem do monotesmo. Todo o pensamento de Freudsobre a religio carrega as marcas de sua ambivalncia em relao sua condio de judeu. Ele nunca renegou sua judeidade e a reivin-dicou todas as vezes que se confrontou com o antissemitismo. Comomuitos intelectuais judeus vienenses, foi obrigado a elaborar suajudeidade, a maneira de se pensar judeu no mundo moderno, mesmosendo descrente, agnstico, humanista, leigo ou ateu. Freud tinha hor-ror ao dio judeu de si mesmo e fuga para a converso a outras reli-gies. Mas era descrente e hostil s prticas religiosas, rejeitava as

    17/90

  • tradies, os ritos e as festas, e, no seio da sua prpria famlia, comba-tia as atitudes religiosas da esposa. Quando o nazismo fez da psicanl-ise uma cincia judaica, ele reivindicou sua judeidade. Escapando porum triz de ser preso pela Gestapo, teve mais sorte do que muitos psic-analistas judeus e do que suas irms, que no conseguiram emigrar epereceram nos campos de extermnio nazistas.

    Em O futuro de uma iluso, como o leitor logo ter a oportunidadede constatar, o argumento psicanaltico central contra a religio anecessidade, por parte do sentimento religioso, de derivar suascrenas e suas prticas dos sentimentos de desproteo e vulnerabilid-ade presentes no indivduo e na maneira de a criana sempre viva nopsiquismo de cada um criar mecanismos psquicos para se haver comtais sentimentos. A religio teria sua origem, ento, como construode uma proteo contra o desamparo humano diante de situaes queo homem no domina e no controla: a finitude, a fragilidade do corpoe a agressividade na relao com o seu semelhante. Mas a principalcrtica de Freud religio a de ter falhado em conciliar o homemcom as renncias pulsionais impostas pela civilizao.

    O futuro de uma iluso precursor de O mal-estar na cultura, otexto mais sombrio e visionrio de Freud sobre a condio humana.Neste ltimo, ele aprofunda e estende a anlise crtica da religio cultura em geral. a figura do escritor francs Romain Rolland quefaz a ponte entre os dois ensaios. O ttulo de O futuro de uma ilusofoi tomado de um trecho da pea teatral Liluli, de Rolland. J o ensaiode 1929 tem como mote inicial a crtica a uma resenha escrita por Rol-land em que este lamentava que Freud no tivesse levado em consid-erao, em O futuro de uma iluso, o sentimento ocenico, o fatosimples e direto da sensao do eterno. Freud rejeita que tal sensaopossa constituir a essncia da religiosidade. Retomando e estendendoas teses do livro anterior, ele mostra como a religio busca impor um

    18/90

  • modelo de felicidade uniforme, nico e restritivo de adaptao real-idade, cujas caractersticas so a desvalorizao da vida terrena, a sub-stituio do mundo real por um mundo delirante e a inibio intelec-tual, sem atender, portanto, infinita variedade das condiespsquicas.

    Que a leitura deste livro sirva de inspirao neste mundo onde osextremismos religiosos e o Deus Dinheiro ameaam perigosamente alucidez amorosa necessria reinveno de uma concepo de culturaque no contrarie as foras da Natureza, mas que seja a favor dapotncia de vida desta. No h futuro sem iluso, sendo iluso en-tendida como zona de constante abertura psquica para a recriao domundo por meio do sonho, da arte e da espiritualidade, e para a in-veno permanente de si. Que o homem, ao assumir sua destrutivid-ade, possa reinventar novas formas de amor que a contenham. Mas,como disse Freud, quem pode presumir o sucesso e o desfecho dessaluta imortal?

    19/90

  • O futuro de uma iluso

  • IQUANDO ALGUM VIVEU um bom tempo em determinada cultura e fezesforos frequentes no estudo de suas origens e do percurso de seudesenvolvimento, chega o dia em que tambm sente a tentao de vol-tar o olhar na outra direo e perguntar qual o destino que aguardaessa cultura e por quais transformaes ela est destinada a passar.Logo notar, porm, que o valor de semelhante investigao ser de-preciado de antemo por vrios fatores. Sobretudo pelo fato de haverapenas poucas pessoas que podem abranger a atividade humana emtodos os seus desdobramentos. Para a maioria, tornou-se necessria alimitao a um nico ou a poucos campos do saber; porm, quantomenos algum sabe do passado e do presente, tanto mais inseguroser o seu juzo sobre o futuro. Tambm porque, precisamente em taljuzo, as expectativas subjetivas do indivduo representam um papeldifcil de avaliar; elas se mostram dependentes de fatores puramentepessoais de sua experincia particular, de sua atitude mais ou menosesperanosa em relao vida, tal como lhe foi prescrita atravs dotemperamento, do xito ou do fracasso. Por fim, entra em ao o fatonotvel de que, em geral, os homens vivem o presente como que in-genuamente, sem conseguir apreciar seus contedos; primeiro precis-am se distanciar dele, ou seja, o presente precisa ter se transformadoem passado caso se queira tirar dele pontos de referncia para o juzosobre o futuro.

  • Assim, quem cede tentao de se manifestar sobre o futuroprovvel de nossa cultura far bem em se lembrar das dificuldades queacabamos de indicar, bem como da incerteza geralmente ligada a todapreviso. Disso se segue, no que diz respeito a mim, que, em fugaapressada diante de tarefa to grande, logo passarei a investigar opequeno campo que at hoje mereceu a minha ateno, depois deapenas determinar a sua posio no grande todo.

    Como se sabe, a cultura humana me refiro a tudo aquilo em quea vida humana se elevou acima de suas condies animais e se dis-tingue da vida dos bichos; e eu me recuso a separar cultura e civiliza-o mostra dois lados ao observador. Ela abrange, por um lado, todoo saber e toda a capacidade adquiridos pelo homem com o fim dedominar as foras da natureza e obter seus bens para a satisfao dasnecessidades humanas e, por outro, todas as instituies necessriaspara regular as relaes dos homens entre si e, em especial, a divisodos bens acessveis. Essas duas orientaes da cultura no so inde-pendentes uma da outra, em primeiro lugar, porque as relaes mtu-as entre os homens so profundamente influenciadas pela medida desatisfao dos impulsos[1] possibilitada pelos bens existentes e, em se-gundo lugar, porque o prprio indivduo pode se relacionar com outrona condio de um bem, na medida em que este utiliza a fora de tra-balho do primeiro ou o toma como objeto sexual; porm, em terceirolugar, porque todo indivduo virtualmente um inimigo da cultura,que, no entanto, deve ser um interesse humano geral. notvel o fatode os seres humanos, por mais que no possam viver em isolamento,considerarem opressivos os sacrifcios que lhes so exigidos pela cul-tura com o propsito de possibilitar uma vida em comum. A cultura,portanto, precisa ser defendida contra o indivduo, e as suas dis-posies, instituies e mandamentos se colocam a servio dessatarefa; no apenas objetivam estabelecer certa diviso de bens, mas

    22/90

  • tambm mant-la, e precisam, inclusive, proteger dos arroubos hostisdos homens tudo aquilo que serve para dominar a natureza e para aproduo de bens. As criaes humanas so fceis de destruir, e acincia e a tcnica que as construram tambm podem ser empregadasna sua aniquilao.

    Fica-se assim com a impresso de que a cultura algo imposto auma maioria recalcitrante por uma minoria que soube se apropriardos meios de poder e de coero. Obviamente, fcil supor que essasdificuldades no esto ligadas natureza da prpria cultura, mas queso condicionadas s imperfeies das formas de cultura at agoradesenvolvidas. No difcil, de fato, indicar esses defeitos. Enquanto ahumanidade fez progressos contnuos no que diz respeito dominaoda natureza e pode esperar outros ainda maiores, no possvel con-statar com segurana um progresso anlogo na regulao dos assuntoshumanos, e provvel que em todas as pocas, tal como ocorre agoranovamente, muitas pessoas tenham se perguntado se vale mesmo apena defender essa parcela da aquisio cultural. de se acreditar queteria de ser possvel uma nova regulao das relaes humanas quefizesse secar as fontes do descontentamento com a cultura, na medidaem que esta renunciasse coero e represso dos impulsos, demodo que os homens, sem serem perturbados por disputas interiores,pudessem se dedicar obteno de bens e ao seu usufruto. Seria aIdade do Ouro, ficando apenas a pergunta se tal estado pode se tornarrealidade. Parece, antes, que toda cultura tem de ser construda sobrea coero e a renncia aos impulsos; no parece nem mesmo asse-gurado que a maioria dos indivduos esteja preparada para assumir otrabalho necessrio obteno de novos bens vitais caso cesse a coer-o. Acho que preciso contar com o fato de que em todos os homensh tendncias destrutivas, ou seja, antissociais e anticulturais, e que

    23/90

  • num grande nmero de pessoas elas so fortes o bastante para de-terminar o seu comportamento na sociedade humana.

    Esse fato psicolgico possui uma significao decisiva para o juzoacerca da cultura humana. Se de incio se podia pensar que o essencialnela era a dominao da natureza para a obteno de bens vitais e queos perigos que a ameaavam poderiam ser eliminados por meio da ad-equada diviso desses bens entre os homens, agora o centro de gravid-ade parece ter se deslocado do material para o psquico. Torna-se de-cisivo se e em que medida se bem-sucedido em reduzir a carga desacrifcio dos impulsos imposta aos homens, em reconcili-los com anecessria carga restante e compens-los por isso. Assim como no sepode prescindir da coero ao trabalho da cultura, tampouco se podeprescindir da dominao de uma minoria sobre a massa, pois as mas-sas so indolentes e insensatas, no gostam de renunciar aos im-pulsos, no podem ser persuadidas com argumentos da inevitabilid-ade dessa renncia e seus indivduos se fortalecem mutuamente natolerncia aos desregramentos que praticam. Apenas atravs da in-fluncia de indivduos exemplares que as massas reconheam comoseus lderes que elas podem ser movidas ao trabalho e s rennciasde que depende a continuidade da cultura. Tudo anda bem se esseslderes forem pessoas dotadas de uma compreenso superior acercadas necessidades da vida e tenham se resolvido a dominar seusprprios desejos impulsionais. Mas h o risco de que, para no perdersua influncia, faam mais concesses massa do que esta a eles, e porisso parece necessrio que disponham de meios de poder que lhes per-mitam ser independentes dela. Para resumir, eu diria que h duas ca-ractersticas humanas amplamente difundidas responsveis pelo fatode as instituies culturais apenas poderem ser mantidas atravs decerta medida de coero, a saber, que os homens no so

    24/90

  • espontaneamente inclinados ao trabalho e que argumentos nada po-dem contra suas paixes.

    Conheo as objees que sero colocadas a essas explicaes. Serdito que o carter aqui descrito das massas humanas, que devedemonstrar a indispensabilidade da coero para o trabalho da cul-tura, ele prprio apenas a consequncia de instituies culturais im-perfeitas que tornaram os homens rancorosos, vingativos e intratveis.Novas geraes, educadas com carinho e para valorizar o pensamento,que cedo tenham experimentado os benefcios da cultura, tero umarelao diferente com ela, considerando-a como a sua posse maisautntica, e estaro preparadas para lhe oferecer os sacrifcios ne-cessrios sua conservao, tanto em trabalho como em renncia satisfao dos impulsos. Elas podero prescindir da coero e pouco sedistinguiro de seus lderes. Se at agora no houve massas humanasdessa qualidade em nenhuma cultura, isso consequncia de nen-huma cultura ter encontrado ainda as instituies para influenciar oshomens, desde a infncia, dessa maneira.

    Pode-se duvidar se mesmo possvel, ou se possvel no estgioatual de nossa dominao da natureza, produzir tais instituies cul-turais; pode-se perguntar donde devem provir esses lderes superiores,firmes e abnegados que devero atuar no papel de educadores das ger-aes futuras; pode-se ficar assustado diante do extraordinrio dis-pndio de coero que ser inevitvel at a realizao desses propsi-tos. A grandiosidade desse plano, sua significao para o futuro da cul-tura humana, no poder ser contestada. Ele repousa seguramente nacompreenso psicolgica de que o homem dotado das mais variadasdisposies de impulsos, cuja direo definitiva apontada pelasprimeiras vivncias infantis. Por isso, as limitaes da educabilidadedo homem tambm impem seus limites eficcia de semelhantemudana cultural. Pode-se pr em dvida se e em que medida um

    25/90

  • outro ambiente cultural seria capaz de extinguir as duas caractersticasdas massas que tanto dificultam a conduo dos assuntos humanos. Aexperincia ainda no foi feita. provvel que certa percentagem dahumanidade em consequncia de uma disposio patolgica ou deuma fora excessiva dos impulsos sempre permanea associal, mascaso apenas se consiga reduzir a uma minoria a maioria que hoje hostil cultura, j se ter conseguido bastante, talvez tudo o que sejapossvel conseguir.

    No gostaria de despertar a impresso de que me afastei muito docaminho que tracei para minha investigao. Por isso, quero assegurarexpressamente que no tenho interesse em julgar o grande experi-mento cultural que est sendo feito atualmente na vasta nao situadaentre a Europa e a sia. No possuo o conhecimento de causa nem acapacidade para julgar sua exequibilidade, examinar a adequao dosmtodos empregados ou medir a extenso do inevitvel abismo entreas intenes e a sua realizao. Por estar incompleto, o que l est empreparo escapa a consideraes para as quais a nossa cultura, h tem-pos consolidada, oferece o material.

    26/90

  • II

    DE MODO INESPERADO, deslizamos do mbito econmico ao psicolgi-co. De incio, estvamos tentados a buscar o patrimnio da cultura nosbens existentes e nas instituies que regulam a diviso desses bens.Ao reconhecermos que toda cultura repousa sobre a coero ao tra-balho e a renncia aos impulsos, e que por isso produz inevitavel-mente uma oposio daqueles que so afetados por elas, tornou-seclaro que os prprios bens, os meios para a sua obteno e as dis-posies para a sua diviso no podem ser o essencial ou o nico ele-mento da cultura. Pois eles so ameaados pela rebelio e pela tendn-cia destrutiva dos membros dessa cultura. Ao lado dos bens, temosagora os meios que podem servir para proteger a cultura, os meios decoero e outros que devem ser capazes de reconciliar os homens comela e recompens-los pelos seus sacrifcios. Tais meios, porm, podemser descritos como o patrimnio psquico da cultura.

    Para que nos expressemos de maneira uniforme, chamemos defrustrao o fato de um impulso no poder ser satisfeito, de proibioa instituio que a estipula e de privao o estado produzido pelaproibio. O passo seguinte distinguir entre privaes que atingem atodos e aquelas que no atingem a todos, mas apenas grupos, classesou mesmo indivduos. As primeiras so as mais antigas: as proibiesque as instituram deram incio ao afastamento da cultura em relaoao estado animal primitivo, no sabemos exatamente h quantos

  • milhares de anos. Para nossa surpresa, descobrimos que essasprivaes ainda esto ativas, que ainda constituem o mago da hostil-idade cultura. Os desejos impulsionais que se ressentem delasnascem de novo com cada criana; h uma classe de pessoas, osneurticos, que j reagem a essas frustraes com associabilidade.Esses desejos impulsionais so os do incesto, do canibalismo e doprazer de matar. Soa estranho comparar tais desejos, que todos os ho-mens parecem unnimes em rejeitar, com aqueles outros por cuja per-misso ou frustrao se luta to intensamente em nossa cultura; psico-logicamente, porm, legtimo faz-lo. E de modo algum a atitude cul-tural quanto a esses desejos impulsionais mais antigos a mesma:apenas o canibalismo parece ser malvisto por todos e inteiramente su-perado do ponto de vista no analtico; ainda conseguimos perceber afora dos desejos incestuosos atrs da proibio, e o assassinato, emdeterminadas condies, ainda praticado, at mesmo ordenado, pelanossa cultura. Aguardam-nos, possivelmente, evolues culturais nasquais outras satisfaes de desejo, hoje de todo possveis, pareceroto inaceitveis quanto agora as do canibalismo.

    J nessas mais antigas renncias aos impulsos entra em consider-ao um fator psicolgico que permanece significativo para todas asrenncias posteriores. No correto afirmar que a psique humana notenha passado por nenhuma evoluo desde os tempos mais remotose, ao contrrio dos progressos da cincia e da tcnica, ainda hoje seja amesma do princpio da histria. Podemos indicar aqui um desses pro-gressos psquicos. Faz parte do curso de nosso desenvolvimento que acoero externa seja gradativamente interiorizada na medida em queuma instncia psquica especial, o supereu do homem, a inclui entreseus mandamentos. Cada criana nos mostra o processo de semel-hante transformao, e apenas atravs dela se torna moral e social.Esse fortalecimento do supereu um patrimnio psicolgico

    28/90

  • altamente valioso da cultura. As pessoas nas quais ele se completoudeixam de ser adversrias da cultura para se tornar suas defensoras.Quanto maior o seu nmero em um crculo cultural, tanto mais pro-tegida estar essa cultura, tanto mais ela pode prescindir de meios ex-ternos de coero. S que a medida dessa interiorizao muito di-versa para cada uma das proibies dos impulsos. Para as mais antigasexigncias culturais mencionadas, a interiorizao, se deixarmos delado a exceo indesejada dos neurticos, parece ter sido amplamentealcanada. Essa proporo se modifica quando nos voltamos para asdemais exigncias dos impulsos. Percebe-se ento, com surpresa e re-ceio, que a maioria dos homens obedece s respectivas proibies cul-turais apenas quando pressionada pela coero externa, ou seja, apen-as ali onde esta pode se fazer valer e enquanto pode ser temida. Issotambm verdadeiro para as chamadas exigncias morais da culturaque se dirigem a todos de igual maneira. A maior parte daquilo que seexperimenta em relao falta de seriedade moral das pessoas entraaqui. Um nmero imenso de homens aculturados, que recuaria hor-rorizado diante do assassinato e do incesto, no se priva de satisfazersua cobia, seu gosto de agredir e seus apetites sexuais; no deixa deprejudicar os outros por meio da mentira, da fraude e da calnia casopossa permanecer impune ao faz-lo; e possvel que tenha sidosempre assim h muitas eras da cultura.

    Quanto s limitaes que se aplicam apenas a classes determin-adas da sociedade, nos deparamos com condies graves e tambm ja-mais ignoradas. de se esperar que essas classes desfavorecidas in-vejem as vantagens das privilegiadas e faam de tudo para se livrar deseu prprio acrscimo de privaes. Quando isso no for possvel, umamedida constante de descontentamento se impor dentro dessa cul-tura, o que pode levar a rebelies perigosas. Se, porm, uma culturano conseguiu ir alm do ponto de que a satisfao de certo nmero de

    29/90

  • seus membros tenha como pressuposto a opresso de outros, talvez amaioria e esse o caso de todas as culturas atuais , compreensvelque esses oprimidos desenvolvam uma hostilidade intensa contra acultura que por meio de seu trabalho eles mesmos possibilitam, masde cujos bens lhes cabe uma cota muito pequena. No se deve, pois,esperar uma interiorizao das proibies culturais entre os oprim-idos; pelo contrrio, eles no esto dispostos a reconhecer essas proib-ies, antes esto empenhados em destruir a prpria cultura e, eventu-almente, at em abolir os seus pressupostos. A hostilidade dessasclasses cultura to manifesta que, por sua causa, no se prestouateno hostilidade mais latente das camadas da sociedade commaior participao. No preciso dizer que uma cultura que deixa in-satisfeito um nmero to grande de membros e os incita rebelio notem perspectivas de se conservar perpetuamente, nem o merece.

    A medida de interiorizao dos preceitos culturais dito demaneira popular e no psicolgica: o nvel moral dos membros no o nico bem psquico a ser levado em conta ao se apreciar uma cul-tura. H, alm disso, os seus patrimnios de ideais e de criaesartsticas, ou seja, as satisfaes que so obtidas a partir de ambos.

    com muita facilidade que se tender a incluir os ideais de umacultura, ou seja, as avaliaes que indicam quais so as realizaesmais altas e mais dignas de serem ambicionadas, entre suas possespsquicas. De incio, parece que esses ideais determinariam as realiza-es do crculo cultural; o processo real, porm, poderia ser o de queos ideais se formam depois das primeiras realizaes possibilitadaspela cooperao de aptides interiores e condies exteriores de umacultura, e que essas primeiras realizaes sejam ento conservadaspelos ideais para serem continuadas. A satisfao que os ideais ofere-cem aos membros da cultura , portanto, de natureza narcsica; ela re-pousa sobre o orgulho da realizao que j foi bem-sucedida. Para que

    30/90

  • seja completa, essa satisfao precisa ser comparada com outras cul-turas que se lanaram a realizaes diferentes e desenvolveram outrosideais. Devido a tais diferenas, cada cultura se atribui o direito demenosprezar a outra. Desse modo, os ideais culturais se transformamem ocasio para discrdia e desavena entre diferentes crculos cul-turais, tal como se torna bastante claro entre naes.

    A satisfao narcsica obtida do ideal cultural tambm est entreaquelas potncias que se opem com xito hostilidade dirigida cul-tura dentro do crculo cultural. No apenas as classes privilegiadas,que gozam os benefcios dessa cultura, mas tambm os oprimidos po-dem tomar parte nessa satisfao, na medida em que a autorizaopara desprezar aqueles que esto fora os recompensa pelo prejuzo emseu prprio crculo. Algum pode ter sido, sem dvida, um plebeumiservel, atormentado por dvidas e pelo servio militar, mas, emcompensao, era romano, tinha a sua parcela na tarefa de dominaroutras naes e prescrever suas leis. Porm, essa identificao dosoprimidos com a classe que os domina e explora apenas uma partede um contexto maior. Aqueles, alm disso, podem estar ligadosafetivamente a esta e, apesar da hostilidade, ver seus ideais nos seussenhores. Se no existissem tais relaes, no fundo satisfatrias, seriaincompreensvel que tantas culturas tivessem se conservado por tantotempo, apesar da justificada hostilidade de grandes massas humanas.

    De um gnero diferente a satisfao proporcionada pela arte aosmembros de um crculo cultural, embora, em regra, ela permanea in-acessvel s massas, que so ocupadas pelo trabalho extenuante e queno gozaram de qualquer educao pessoal. Conforme aprendemos htempo, a arte oferece satisfaes substitutivas para as mais antigasrenncias culturais, ainda sentidas da forma mais aguda, e tem, porisso, um incomparvel efeito reconciliador com os sacrifcios ofere-cidos a essas renncias. Por outro lado, suas criaes intensificam os

    31/90

  • sentimentos de identificao, to necessitados por todos os crculosculturais, por meio do ensejo a sensaes vividas em comum, alta-mente valorizadas; porm, elas tambm servem satisfao narcsicaquando representam as realizaes de uma cultura em especial,quando, de maneira impressiva, fazem lembrar seus ideais.

    Aquela que talvez seja a parcela mais significativa do inventriopsquico de uma cultura ainda no foi mencionada. Trata-se de suasideias religiosas, no mais amplo sentido; em outras palavras, a seremjustificadas posteriormente, de suas iluses.

    32/90

  • III

    EM QUE RESIDE o valor especial das ideias religiosas?Falamos da hostilidade cultura gerada pela presso que esta ex-

    erce, pelas renncias aos impulsos que exige. Caso imaginemos suasproibies abolidas, algum pode, ento, escolher para objeto sexualqualquer mulher que lhe agrade; pode matar seu rival, ou quem maisestiver em seu caminho, sem o menor escrpulo; pode, tambm, to-mar qualquer bem do outro sem lhe pedir permisso que maravilha,que cadeia de satisfaes no seria ento a vida! Na verdade, logosurge a primeira dificuldade. Qualquer outro tem exatamente os mes-mos desejos que eu, e no me tratar com mais considerao do queeu a ele. Dessa forma, apenas um indivduo, no fundo, poderia se torn-ar irrestritamente feliz atravs da abolio das restries culturais: umtirano, um ditador que tivesse se apossado de todos os meios de poder,e mesmo ele teria todas as razes para desejar que os outros respei-tassem pelo menos um dos mandamentos da cultura: No matars.

    Porm, como ingrato, como mope, sobretudo, aspirar a umaabolio da cultura! O que ento resta o estado de natureza, e esse muito mais difcil de suportar. verdade que a natureza no exige dens quaisquer restries dos impulsos; ela nos deixa fazer o que quis-ermos, mas tem a sua maneira especialmente eficiente de nos re-stringir; ela nos mata de modo frio, cruel e sem considerao, segundonos parece, e, talvez, justamente nas ocasies de nossa satisfao. Pre-cisamente em razo desses perigos com que a natureza nos ameaa foi

  • que nos unimos e criamos a cultura, que, entre outras coisas, tambmdeve possibilitar a nossa convivncia. E a tarefa capital da cultura, suaverdadeira razo de ser, nos defender contra a natureza.

    sabido que em muitos pontos ela j consegue faz-lo agora ra-zoavelmente bem, e, ao que parece, o far muito melhor no futuro.Mas ningum se entrega iluso de acreditar que a natureza j estdominada agora, e poucos ousam esperar que algum dia ela esteja in-teiramente submetida ao homem. A esto os elementos, que parecemzombar de toda coero humana; a terra, que treme, se fende e soterratudo que humano e obra do homem; a gua, que, em rebelio, in-unda e afoga tudo; a tempestade, que sopra tudo para longe; a estoas doenas, que apenas h pouco tempo reconhecemos como sendoataques de outros seres vivos; por fim, o doloroso enigma da morte,para o qual at agora no se descobriu nenhum remdio e provavel-mente nunca se descubra. Com tais foras, a natureza se subleva con-tra ns, imponente, cruel e implacvel, colocando-nos outra vez diantedos olhos a nossa fraqueza e o nosso desamparo, de que pensvamoster escapado graas ao trabalho da cultura. Uma das poucas im-presses agradveis e edificantes que se pode ter da humanidade nos dada quando, diante de uma catstrofe natural, ela esquece as dis-senses da cultura, todas as dificuldades e hostilidades internas, e serecorda da grande tarefa comum de sua conservao diante da pre-potncia da natureza.

    Tal como para a humanidade em seu todo, tambm para o indiv-duo a vida difcil de suportar. Uma cota de privaes lhe impostapela cultura de que faz parte; outra poro de sofrimento lhe causadapelas demais pessoas, seja a despeito dos preceitos da cultura, seja emconsequncia das imperfeies dela. A isso se acrescentam os danosque a natureza indomada ele a chama de destino lhe provoca. Asconsequncias dessa situao teriam de ser um estado constante de

    34/90

  • angustiada expectativa e uma severa ofensa do narcisismo natural. Jsabemos como o indivduo reage aos danos que lhe so causados pelacultura e pelos outros: desenvolve uma medida correspondente de res-istncia contra as instituies dessa cultura, de hostilidade a ela. Masde que maneira ele se defende da prepotncia da natureza, do destino,que o ameaa como a todos os outros?

    A cultura o dispensa dessa tarefa, cuidando dela para todos deigual maneira; quanto a isso, tambm notvel que quase todas asculturas faam a mesma coisa. E ela no se detm na execuo da suatarefa de defender os homens da natureza, mas trata de continu-lapor outros meios. A tarefa, a, mltipla: o orgulho gravementeameaado do homem exige consolo; o mundo e a vida devem serdespojados de seus pavores; e, ao mesmo tempo, a curiosidade hu-mana, sem dvida impulsionada pelos mais poderosos interessesprticos, tambm quer uma resposta.

    J se conseguiu muito com o primeiro passo. E esse consiste emhumanizar a natureza. Foras e destinos impessoais so inacessveis,permanecem eternamente estranhos. Porm, se nos elementos se agit-am paixes tal como na prpria alma; se mesmo a morte no algo es-pontneo, mas o ato de violncia de uma vontade malfica; se, nanatureza, o homem est cercado em toda parte por entes iguaisqueles que conhece em sua prpria sociedade, ento ele respira alivi-ado, sente-se em casa em meio a coisas inquietantes e pode elaborarpsiquicamente a sua angstia sem sentido. Talvez ele ainda esteja in-defeso, mas no est mais desamparadamente paralisado; pode aomenos reagir, e talvez no esteja nem mesmo indefeso, pois podeservir-se contra esses violentos super-homens de fora dos mesmos ex-pedientes de que se serve em sua sociedade: pode tentar lhes fazersplicas, apazigu-los, suborn-los, roubar-lhes uma parte de seu

    35/90

  • poder atravs de tal influncia. Essa substituio de uma cincia danatureza pela psicologia no apenas proporciona alvio imediato, mastambm mostra o caminho para um domnio posterior da situao.

    Pois essa situao no nova; ela tem um modelo infantil, e , naverdade, apenas a continuao de uma situao antiga, pois uma vez ohomem j se encontrou em tal desamparo: quando criana pequenadiante de seus pais, os quais tinha razo para temer sobretudo o pai, mas de cuja proteo contra os perigos que ento conhecia tambmestava seguro. natural, assim, comparar as duas situaes. E, talcomo na vida onrica, o desejo tambm no sai prejudicado. Um pres-sentimento de morte acomete aquele que dorme, quer lev-lo aotmulo; o trabalho do sonho, porm, sabe escolher as condies emque mesmo esse temido acontecimento se transforma na realizao deum desejo: aquele que sonha se v num antigo tmulo etrusco, ao qualdesceu, contente, para satisfazer seus interesses arqueolgicos. Demodo semelhante, o homem no transforma as foras da naturezasimplesmente em seres humanos com os quais pode se relacionarcomo faz com seus iguais algo que tambm no faria justia im-presso avassaladora que tem delas , mas lhes confere um carterpaterno, transforma-as em deuses, e nisso no apenas segue um mod-elo infantil, mas, segundo j tentei mostrar certa vez, um modelofilogentico.

    Com o tempo, so feitas as primeiras observaes de regularidadese de leis nos fenmenos naturais, e, com isso, as foras da naturezaperdem seus traos humanos. Mas o desamparo dos homens per-manece, e, com ele, os deuses e o anseio pelo pai. Os deuses conser-vam a sua tripla tarefa: afastar os pavores da natureza, reconciliar oshomens com a crueldade do destino, em especial como ela se mostrana morte, e recompens-los pelos sofrimentos e privaes que a con-vivncia na cultura lhes impe.

    36/90

  • Gradativamente, porm, desloca-se a nfase entre essas tarefas.Percebe-se que os fenmenos naturais se desenrolam por si mesmossegundo necessidades internas; os deuses, sem dvida, so os sen-hores da natureza: dispuseram-na dessa maneira e agora podemdeix-la entregue a si mesma. Apenas ocasionalmente, com os chama-dos milagres, interferem em seu curso, como que para assegurar queno renunciaram em nada a sua esfera original de poder. No que serefere distribuio dos destinos, fica a suspeita incmoda de que adesorientao e o desamparo do gnero humano no podem ser re-mediados. sobretudo aqui que os deuses fracassam; se eles prpriosfazem o destino, ento preciso chamar suas determinaes de in-escrutveis; ao mais dotado povo da Antiguidade ocorreu que amoira[2] est acima dos deuses e que mesmo eles tm seu destino. Equanto mais a natureza se torna independente, quanto mais os deusesdela se retiram, tanto mais seriamente todas as expectativas se con-centram na terceira tarefa que a eles atribuda, tanto mais o mbitomoral se transforma em seu verdadeiro domnio. A partir de ento,torna-se tarefa divina compensar as falhas e os danos da cultura, at-entar para os sofrimentos que os homens se infligem mutuamente navida em comum e vigiar o cumprimento dos preceitos culturais aosquais eles obedecem to mal. A esses prprios preceitos ser atribudaorigem divina, sero elevados acima da sociedade humana e esten-didos natureza e aos acontecimentos do mundo.

    Cria-se assim um patrimnio de ideias, nascido da necessidade detornar suportvel o desamparo humano e construdo com o materialde lembranas relativas ao desamparo da prpria infncia e da infn-cia do gnero humano. claramente reconhecvel que esse patrimnioprotege os homens em dois sentidos: dos perigos da natureza e do des-tino, e dos danos causados pela prpria sociedade humana. Expostocoerentemente, esse patrimnio diz: a vida neste mundo serve a um

    37/90

  • fim mais elevado, que, verdade, no fcil de adivinhar, mas quecertamente significa um aperfeioamento do ser humano. provvelque o aspecto espiritual do homem, a alma, que no decorrer das po-cas se separou to lenta e relutantemente do corpo, deva ser o objetodessa elevao e ascenso. Tudo que acontece neste mundo a realiza-o dos propsitos de uma inteligncia superior que, mesmo por cam-inhos e descaminhos difceis de entender, acaba por guiar tudo para obem, ou seja, para a nossa satisfao. Acima de cada um de ns velauma Providncia bondosa, apenas aparentemente severa, que nopermite que nos tornemos o joguete de foras naturais poderosas e im-placveis; a prpria morte no uma aniquilao, um retorno ao inan-imado inorgnico, mas o comeo de uma nova espcie de existnciasituada no caminho do desenvolvimento rumo a algo superior. E,voltadas no outro sentido, as mesmas leis morais que instituramnossas culturas tambm dominam todos os acontecimentos domundo, s que so guardadas por uma instncia julgadora supremaincomparavelmente mais poderosa e consequente. Todo o bem acabapor receber a sua recompensa, todo o mal a sua punio se isso noacontece j nesta forma da vida, acontecer nas existncias posterioresque comeam aps a morte. Desse modo, todos os pavores, sofri-mentos e rigores da vida esto destinados extino; a vida aps amorte, que continua a nossa vida terrena assim como a parte invisveldo espectro se une visvel, traz toda a completude de que talvez ten-hamos sentido falta aqui. E a sabedoria superior que dirige essaevoluo, a infinita bondade que nela se expressa, a justia que nela levada a cabo tais so as qualidades dos seres divinos que tambmnos criaram e criaram a totalidade do mundo. Ou antes, do nico serdivino no qual, em nossa cultura, se condensaram todos os deuses daspocas passadas. O primeiro povo a obter essa concentrao de qualid-ades divinas no ficou pouco orgulhoso desse avano. Ele deixou

    38/90

  • mostra o ncleo paterno que desde sempre estava oculto atrs de cadafigura divina; no fundo, foi um retorno aos incios histricos da noode Deus. Agora que Deus era um s, as relaes com ele puderam re-cobrar a efuso e a intensidade das relaes infantis com o pai. Con-tudo, quando se fez tanto pelo pai, tambm se queria ser recom-pensado: ser, pelo menos, o nico filho amado, o povo eleito. Muitomais tarde, os piedosos Estados Unidos pretendem ser Gods owncountry[3], e, quanto a uma das formas dos homens venerarem adivindade, isso tambm acertado.

    As ideias religiosas que acabamos de resumir passaram obvia-mente por uma longa evoluo; elas foram conservadas por culturasdiversas em fases diversas. Escolhi apenas uma dessas fases de desen-volvimento, que corresponde aproximadamente forma final emnossa cultura branca e crist de hoje. fcil de perceber que nem to-das as partes desse todo se encaixam igualmente bem entre si, quenem todas as questes prementes so respondidas, que a discordnciada experincia cotidiana apenas com esforo pode ser rechaada.Porm, tais como so, essas ideias as religiosas, no mais amplo sen-tido so valorizadas como a posse mais preciosa da cultura, como oque de mais valioso ela tem a oferecer aos seus membros muito maisestimadas do que todas as artes de extrair da Terra os seus tesouros,prover a humanidade com alimentos ou prevenir doenas etc. Os ho-mens acreditam no poder suportar a vida se no atriburem a essasideias o valor a elas reivindicado. As questes, agora, so: o que so es-sas ideias luz da psicologia? Donde recebem a sua alta considerao?E, prosseguindo timidamente, qual o seu valor real?

    39/90

  • IV

    UMA INVESTIGAO QUE avana imperturbada como um monlogo no inteiramente inofensiva. Cede-se com muita facilidade tentao deafastar pensamentos que querem interromp-la e, em troca, fica-secom um sentimento de insegurana que, no fim, se quer emudecer pormeio de uma firmeza excessiva. Imagino, portanto, um adversrio queacompanha minhas explicaes com desconfiana, e lhe cedo a palavraregularmente.

    Ouo-o dizer: O senhor empregou repetidamente expressescomo a cultura cria essas ideias religiosas e a cultura as coloca dis-posio de seus membros, o que soa um tanto estranho; eu mesmono saberia dizer a razo, mas no soa to natural quanto afirmar quea cultura criou prescries sobre a diviso dos produtos do trabalho ousobre os direitos quanto a mulheres e filhos.

    Penso, porm, que legtimo usar tais expresses. Procureimostrar que as ideias religiosas resultaram da mesma necessidade quetodas as demais conquistas da cultura, da necessidade de se defenderda prepotncia opressora da natureza. Somou-se a isso um segundomotivo, o mpeto de corrigir as imperfeies da cultura, sentidas comoalgo penoso. Tambm especialmente acertado afirmar que a culturapresenteia o indivduo com tais ideias, pois ele as encontra, elas lheso entregues acabadas e ele no seria capaz de ach-las sozinho. Eletoma posse da herana de muitas geraes, da qual se apropria comoda tabuada, da geometria etc. H, todavia, uma diferena, mas esta se

  • encontra em outro ponto e por enquanto ainda no pode ser esclare-cida. O sentimento de estranheza que o senhor menciona pode estarrelacionado com o fato de que costumam nos apresentar esse pat-rimnio de ideias religiosas como sendo uma revelao divina. S queessa mesma revelao j uma parte do sistema religioso e negligenciainteiramente o conhecido desenvolvimento histrico dessas ideias,bem como suas diferenas em diferentes pocas e culturas.

    H um outro ponto que me parece mais importante. O senhor faza humanizao da natureza resultar da necessidade de acabar com adesorientao e o desamparo humanos frente s suas temidas foras,de se relacionar com elas e, por fim, de influenci-las. Semelhantemotivo, porm, parece suprfluo. O homem primitivo no tem mesmoqualquer escolha, no pode pensar de outro modo. natural para ele,como algo inato, projetar o seu ser no mundo, considerar todos os pro-cessos que observa como expresses de seres que, no fundo, soidnticos a ele. o seu nico mtodo de compreenso. E de modo al-gum evidente, mas antes uma notvel coincidncia, que ele tivessede ser bem-sucedido em satisfazer uma de suas maiores necessidadesao se deixar levar de tal maneira por suas disposies naturais.

    No acho isso to estranho. O senhor acredita, ento, que opensamento humano no conhece motivos prticos, que apenas a ex-presso de uma curiosidade desinteressada? Ora, isso deveras im-provvel. Acredito, pelo contrrio, que o homem, mesmo quando per-sonifica as foras da natureza, segue um modelo infantil. Ele aprendeucom as pessoas de seu primeiro ambiente que estabelecer uma relaocom elas o caminho para influenci-las, e por isso, com a mesma in-teno, trata posteriormente tudo o mais que encontra tal como tratouessas pessoas. No contradigo, portanto, sua observao descritiva deque realmente natural para o homem personificar tudo que quercompreender com o fim de posteriormente domin-lo a dominao

    41/90

  • psquica como preparao para a dominao fsica , mas eu acres-cento o motivo e a gnese dessa particularidade do pensamentohumano.

    E agora ainda um terceiro ponto. O senhor j se ocupou da ori-gem da religio em outro momento, no livro Totem e tabu. Nele,porm, as coisas tm outro aspecto. Tudo a relao pai-filho, Deus o pai elevado, o anseio pelo pai a raiz da necessidade religiosa. Desdeento, parece que o senhor descobriu o fator da impotncia e do des-amparo humanos, ao qual geralmente se atribui o papel principal naformao das religies, e agora o senhor transcreve em desamparotudo aquilo que antes era complexo paterno. Posso lhe pedir esclareci-mentos acerca dessa mudana?

    Com prazer; eu s estava esperando pelo convite. Se que se tratarealmente de uma mudana. Em Totem e tabu, eu no quis explicar aorigem das religies, mas apenas do totemismo. O senhor conseguecompreender, a partir de qualquer um dos pontos de vista que con-hece, que a primeira forma em que a divindade protetora se revelou aohomem foi a animal, que existia uma proibio de matar esse animal ecom-lo, e, no entanto, tambm o costume solene de mat-lo e com-lo coletivamente uma vez por ano? precisamente isso que ocorre nototemismo. E dificilmente seria oportuno disputar se o totemismo de-ve ou no ser chamado de religio. Ele possui relaes estreitas com asposteriores religies de deuses; os animais totmicos se transformamnos animais sagrados dos deuses. E as primeiras, porm mais pro-fundas restries morais as proibies do assassinato e do incesto ,surgem no solo do totemismo. Aceitando ou no as concluses deTotem e tabu, espero que o senhor conceda que o livro rene em umtodo consistente alguns fatos bastante notveis e dispersos.

    Por que o deus animal no bastou por mais tempo e foi substitudopelo humano algo que mal foi tocado em Totem e tabu, e outros

    42/90

  • problemas da formao das religies absolutamente no so mencion-ados. O senhor julga que essa restrio o mesmo que uma negao?Meu trabalho um bom exemplo de isolamento rigoroso da parte quea observao psicanaltica pode fazer para solucionar o problema reli-gioso. Se agora tento acrescentar aquilo que falta, aquilo que no estto profundamente escondido, o senhor no deve me acusar de sercontraditrio como antes me acusou de ser unilateral. Obviamente, minha tarefa indicar os caminhos de ligao entre o que foi dito antese o que foi apresentado agora, entre as motivaes mais profundas e asmanifestas, entre o complexo paterno e o desamparo e a necessidadede proteo do homem.

    No difcil encontrar essas ligaes. Elas consistem nas relaesentre o desamparo da criana e o desamparo do adulto, que continu-ao daquele, de modo que, como seria de se esperar, a motivaopsicanaltica para a formao da religio se transforma na con-tribuio infantil motivao manifesta dessa formao. Vamos noscolocar na vida psquica da criana pequena. O senhor se recorda daescolha de objeto designada pela anlise como escolha por apoio? A li-bido segue os caminhos das necessidades narcsicas e se fixa nos obje-tos que garantem sua satisfao. Desse modo, a me que satisfaz afome se transforma no primeiro objeto de amor, e, certamente, tam-bm na primeira proteo contra todos os perigos indeterminados eameaadores do mundo exterior na primeira proteo contra omedo, podemos dizer.

    Nessa funo, a me logo ser substituda pelo pai, mais forte, quea conserva ao longo de toda a infncia. A relao com o pai, porm, acometida de uma ambivalncia peculiar. Ele prprio era um perigo,talvez desde o tempo de sua relao com a me. Assim, ele no menos temido quando se anseia por ele e o admira. Os sinais dessaambivalncia na relao com o pai esto profundamente gravados em

    43/90

  • todas as religies, segundo tambm foi explicado em Totem e tabu.Quando ento o adolescente percebe que est destinado a ser sempreuma criana, que jamais poder prescindir de proteo contra poderesdesconhecidos, empresta-lhes os traos da figura paterna, cria osdeuses, dos quais tem medo, que procura agradar, e aos quais, no ent-anto, confia a sua proteo. Assim, o motivo do anseio pelo pai idntico necessidade de proteo contra as consequncias da impot-ncia humana; a defesa contra o desamparo infantil empresta seustraos caractersticos reao contra o desamparo que o adulto forado a reconhecer, reao que precisamente a formao da reli-gio. Contudo, no nossa inteno prosseguir investigando o desen-volvimento da noo de Deus; temos de tratar aqui do patrimnioacabado das ideias religiosas tal como a cultura o transmite aoindivduo.

    44/90

  • VRETOMEMOS O FIO da investigao: qual , pois, o significado psicolgi-co das ideias religiosas? Como podemos classific-las? No fcil, demodo algum, responder a essa questo imediatamente. Depois de re-jeitar diversas formulaes, nos deteremos nesta: as ideias religiosasso proposies, so enunciados acerca de fatos e circunstncias darealidade externa (ou interna) que comunicam algo que o indivduono encontrou por conta prpria, e que reivindicam que se creia nelas.Visto que informam sobre aquilo que mais nos importa e mais nos in-teressa na vida, elas gozam de alta considerao. Quem delas nadasabe deveras ignorante; quem as incorporou aos seus conhecimentospode se considerar muito enriquecido.

    Obviamente, h muitas dessas proposies sobre as coisas maisvariadas deste mundo. Cada lio escolar est cheia delas. Tomemos ade geografia. L ouviremos que Constana se localiza junto ao lago demesmo nome. Uma cano de estudantes acrescenta: E quem nocrer, que v l ver. Estive l, casualmente, e posso confirmar que abela cidade se encontra s margens de um vasto lago que todos os hab-itantes dos arredores chamam de Lago de Constana. Agora estou ple-namente convencido da veracidade dessa afirmao geogrfica. Issome faz lembrar de uma outra experincia, bastante notvel. Eu j eraum homem maduro quando pisei pela primeira vez a colina da acr-pole de Atenas, em meio s runas do templo e com vista para o marazul. minha felicidade se misturava um sentimento de espanto, que

  • me sugeriu a seguinte interpretao: Ento realmente como apren-demos na escola! Como deve ter sido dbil e superficial a crena queadquiri na verdade real do que foi ouvido naquele tempo se hoje possoficar to espantado! Mas no quero dar nfase excessiva signi-ficao dessa experincia; h ainda uma outra explicao possvel parao meu espanto, que no me ocorreu na ocasio, cuja natureza in-teiramente subjetiva e est ligada singularidade do lugar.

    Todas essas proposies, portanto, reivindicam a crena em seuscontedos, mas no sem fundamentar sua pretenso. Elas se ap-resentam como o resultado abreviado de um longo processo depensamento baseado na observao e, certamente, tambm na de-duo; e a quem tiver o intuito de refazer esse processo por conta pr-pria, em vez de aceitar seu resultado, elas mostram o caminho.Quando o conhecimento anunciado pela proposio no evidente,como no caso de afirmaes geogrficas, tambm se acrescentasempre a sua provenincia. Por exemplo, o conhecimento de que aTerra tem a forma de uma esfera; como provas disso, so aduzidos oexperimento de Foucault com o pndulo, o comportamento do hori-zonte e a possibilidade de circunaveg-la. Visto que impraticvel,conforme reconhecem todos os interessados, enviar todos os escolaresem viagens de circunavegao, a escola se contenta em deixar que seusensinamentos sejam aceitos de boa-f, sabendo, porm, que o cam-inho para a convico pessoal permanece aberto.

    Tentemos medir as proposies religiosas com o mesmo critrio.Quando perguntamos sobre o fundamento da pretenso de que seacredite nelas, recebemos trs respostas que se harmonizam notavel-mente mal entre si. Em primeiro lugar, merecem crdito porque nos-sos ancestrais j acreditavam nelas; em segundo lugar, possumosprovas que nos foram transmitidas precisamente dessa poca antiga,e, em terceiro lugar, absolutamente proibido questionar essa

    46/90

  • comprovao. No passado, esse atrevimento era punido com os maisseveros castigos, e ainda hoje a sociedade v com desagrado que al-gum o renove.

    Esse terceiro ponto precisa despertar as nossas mais fortes reser-vas. A nica motivao de semelhante proibio s pode ser o fato deque a sociedade conhece muito bem o carter duvidoso da pretensoque reclama para suas doutrinas religiosas. Caso contrrio, ela certa-mente colocaria o material necessrio, com a maior boa vontade, dis-posio de todo aquele que busca formar a sua prpria convico. Porisso, passamos ao exame dos dois outros argumentos com umadesconfiana difcil de apaziguar. Devemos acreditar porque nossosancestrais acreditaram. Esses nossos antepassados, porm, erammuito mais ignorantes do que ns; eles acreditavam em coisas que ho-je nos so impossveis de aceitar. Manifesta-se a possibilidade de queas doutrinas religiosas tambm possam ser desse tipo. As provas quenos deixaram esto registradas em escritos que trazem, eles prprios,todos os sinais de serem indignos de confiana. So contraditrios, re-tocados e falsificados; quando relatam comprovaes efetivas, elesprprios carecem de comprovao. No ajuda muito afirmar que suasformulaes, ou apenas seus contedos, tm origem na revelaodivina, pois essa afirmao mesma j uma parte daquelas doutrinascuja credibilidade deve ser investigada, e nenhuma proposio podeprovar a si mesma.

    Chegamos assim ao estranho resultado de que precisamente ascomunicaes de nosso patrimnio cultural que poderiam ter para nso maior dos significados, s quais cabe a tarefa de nos esclarecer os en-igmas do mundo e nos reconciliar com os sofrimentos da vida de queprecisamente elas possuem a mais fraca comprovao. No poder-amos nos decidir a aceitar um fato para ns to indiferente quanto o

    47/90

  • de que as baleias parem seus filhotes em vez de colocar ovos se ele nofosse melhor demonstrvel.

    Esse estado de coisas por si s um problema psicolgico bastantenotvel. E que ningum acredite que as observaes anteriores acercada indemonstrabilidade das doutrinas religiosas contenham algo novo.Ela foi percebida em todas as pocas, e certamente tambm pelosantepassados que legaram tal herana. possvel que muitos delestenham nutrido as mesmas dvidas que ns, porm se encontravamsob uma presso forte demais para que ousassem express-las. E,desde ento, um nmero incontvel de homens se atormentou com asmesmas dvidas, que queriam sufocar porque se julgavam obrigados acrer; muitos intelectos brilhantes sucumbiram a esse conflito, e muitoscaracteres sofreram danos em razo dos compromissos em que bus-cavam uma sada.

    Se todas as provas apresentadas em favor da credibilidade das pro-posies religiosas provm do passado, natural verificar se opresente, que pode ser julgado com mais acerto, tambm pode ofere-cer tais provas. Se, dessa forma, se conseguisse colocar a salvo de dvi-das mesmo que apenas uma nica parte do sistema religioso, o todoganharia extraordinariamente em credibilidade. aqui que entra aatividade dos espritas, que esto persuadidos da continuidade daalma individual e que pretendem nos demonstrar que essa proposioda doutrina religiosa isenta de dvidas. Infelizmente, no con-seguem refutar o fato de as aparies e as manifestaes de seus es-pritos serem apenas produtos de sua prpria atividade psquica. Elesevocaram os espritos dos maiores homens, dos mais destacadospensadores, mas todas as manifestaes e notcias que deles rece-beram foram to tolas, to inconsolavelmente ocas, que no se podeacreditar em outra coisa seno na capacidade dos espritos de se ad-aptarem ao crculo de pessoas que os invoca.

    48/90

  • Agora preciso mencionar duas tentativas que do a impresso deum empenho obstinado em fugir ao problema. Uma delas, de naturezaforada, antiga; a outra, sutil e moderna. A primeira o credo quiaabsurdum [4] do padre da Igreja. Isso significa que as doutrinas reli-giosas escapam s reivindicaes da razo, que esto acima dela.Deve-se perceber a sua verdade interiormente, no precisocompreend-las. S que esse credo interessante apenas como confis-so; como imperativo, no possui qualquer obrigatoriedade. Sou obri-gado a acreditar em qualquer absurdo? Em caso negativo, por quejustamente nesse? No h instncia alguma acima da razo. Se a ver-dade das doutrinas religiosas depende de uma vivncia interior que aateste, o que fazer com as muitas pessoas que no tm semelhantevivncia rara? Pode-se exigir de todos os homens que empreguem odom da razo que possuem, mas no se pode erigir uma obrigao queseja vlida para todos sobre um motivo que existe apenas para bempoucos. Se algum obteve a convico inabalvel na verdade real dasdoutrinas religiosas graas a um estado exttico que o impressionouprofundamente, que importa isso ao outro?

    A segunda tentativa a da filosofia do como se. Ela afirma queem nossa atividade intelectual abundam suposies cuja falta de fun-damento, cujo absurdo at, reconhecemos inteiramente. So chama-das de fices, mas, por variados motivos prticos, teramos de noscomportar como se acreditssemos nelas. Tal seria o caso das doutri-nas religiosas em razo de sua incomparvel importncia para a con-servao da sociedade humana.[5] Essa argumentao no est muitolonge do credo quia absurdum. Penso, porm, que a reivindicao docomo se de um tipo que s filsofos podem fazer. O homem queno seja influenciado em seu pensamento pelas artes da filosofianunca poder aceit-la; para ele, a questo est liquidada com a

    49/90

  • confisso de absurdo, de irracionalidade. Ele no pode ser obrigado,precisamente ao tratar de seus interesses mais importantes, a renun-ciar s certezas que costuma exigir em todas as suas atividadeshabituais. Recordo-me de um de meus filhos, que se destacou preco-cemente por uma insistncia especial na objetividade. Quando se con-tava uma histria s crianas, que a escutavam atentamente, ele vinhae perguntava: Essa histria verdadeira?. Depois que se respondiaque no, ele se afastava com uma cara de desdm. de se esperar quea humanidade logo passe a se comportar da mesma maneira em re-lao aos contos da carochinha religiosos, a despeito da intercesso docomo se.

    Atualmente, porm, ela ainda se comporta de modo bem diferente,e, em pocas passadas, apesar de sua indiscutvel carncia de com-provao, as ideias religiosas exerceram sobre ela a mais forte influn-cia. Esse um novo problema psicolgico. Deve-se perguntar: em queconsiste a fora interna dessas doutrinas, a que circunstncias devema sua eficcia, que independente de reconhecimento racional?

    50/90

  • VI

    ACHO QUE PREPARAMOS suficientemente a resposta a ambas as pergun-tas. Ela se apresenta quando atentamos para a gnese psquica dasideias religiosas. Estas, que se apresentam como proposies, no soproduto da experincia ou resultados finais do pensamento; soiluses, so realizaes dos desejos mais antigos, mais fortes e maisprementes da humanidade, e o segredo de sua fora est na foradesses desejos. J sabemos que a apavorante impresso do desamparoinfantil despertou a necessidade de proteo proteo atravs doamor , que satisfeita pelo pai; a percepo da continuidade dessedesamparo ao longo de toda a vida foi a causa de o homem se aferrar existncia de um outro pai s que agora mais poderoso. Atravs daao bondosa da Providncia divina, o medo dos perigos da vida atenuado; a instituio de uma ordem moral universal assegura ocumprimento da exigncia de justia que com tanta frequncia deixoude ser cumprida na cultura humana; o prolongamento da existnciaterrena atravs de uma vida futura prepara o quadro espacial e tem-poral em que essas realizaes de desejo devem se consumar. As res-postas de questes enigmticas para a curiosidade humana, como asda origem do mundo e da relao entre o fsico e o psquico, soelaboradas sob os pressupostos desse sistema; para a psique individu-al, significa um imenso alvio que os conflitos da infncia que se origi-nam do complexo paterno, nunca inteiramente superados, lhe sejamtomados e levados a uma soluo aceita por todos.

  • Quando digo que tudo isso so iluses, preciso delimitar o signific-ado da palavra. Uma iluso no o mesmo que um erro, e ela tambmno necessariamente um erro. A opinio de Aristteles de que os in-setos se desenvolvem a partir de restos, sustentada ainda hoje pelopovo ignorante, era um erro, e, do mesmo modo, a opinio de umagerao anterior de mdicos de que a tabes dorsalis[6] era consequn-cia de excessos sexuais. Seria abusivo chamar esses erros de iluses.Em contrapartida, foi uma iluso de Colombo achar que tinhadescoberto um novo caminho martimo para as ndias. A parcela deseu desejo nesse erro bem evidente. Pode-se chamar de iluso aafirmao feita por certos nacionalistas de que os indo-germnicos soa nica raa humana capaz de cultura, ou a crena, que apenas a psic-anlise destruiu, de que a criana um ser sem sexualidade. carac-terstico da iluso o fato de derivar de desejos humanos; nesse aspecto,ela se aproxima da ideia delirante psiquitrica, mas, abstraindo dacomplicada construo desta, tambm dela se diferencia. Destacamoscomo essencial na ideia delirante a contradio com a realidade; ailuso no precisa ser necessariamente falsa, quer dizer, ser irreal-izvel ou estar em contradio com a realidade. Uma mocinha plebeia,por exemplo, pode ter a iluso de que um prncipe vir busc-la. algopossvel; j aconteceram alguns casos desse tipo. Que o Messias venhae funde uma Idade de Ouro muito menos provvel; conforme aposio pessoal daquele que a julga, ele classificar essa crena comoiluso ou como anloga a uma ideia delirante. Exemplos de iluses quetenham se mostrado verdadeiras no so fceis de achar. Porm, ailuso dos alquimistas de poder transformar todos os metais em ouropoderia ser uma dessas. O desejo de possuir muito ouro, tanto ouroquanto possvel, se encontra muito arrefecido por nossa compreensoatual das condies da riqueza; contudo, a qumica no julga mais im-possvel uma transformao dos metais em ouro. Portanto, chamamos

    52/90

  • uma crena de iluso quando se destaca em sua motivao ocumprimento de desejo, ao mesmo tempo em que no levamos emconta seu vnculo com a realidade, exatamente do mesmo modo que aprpria iluso renuncia a suas comprovaes.

    Se, depois de nos orientarmos, nos voltarmos outra vez s doutri-nas religiosas, podemos repetir: todas so iluses, so indemonstr-veis, e ningum pode ser obrigado a tom-las por verdadeiras, a acred-itar nelas. Algumas so to inverossmeis, se encontram de tal modoem contradio com tudo que descobrimos arduamente sobre a realid-ade do mundo, que podem ser comparadas considerando devida-mente as diferenas psicolgicas s ideias delirantes. impossveljulgar o valor de realidade da maior parte delas. Assim como so in-demonstrveis, tambm so irrefutveis. Ainda sabemos muito poucopara nos aproximarmos delas criticamente. Os enigmas do mundoapenas lentamente se desvelam nossa investigao; h muitas per-guntas que a cincia ainda no pode responder. O trabalho cientfico,porm, para ns o nico caminho que pode levar ao conhecimentoda realidade fora de ns. Por outro lado, apenas iluso esperar al-guma coisa da intuio e da meditao; elas nada podem nos darseno informaes difceis de interpretar acerca de nossa prpriavida psquica, jamais acerca das perguntas cujas respostas so tofceis para as doutrinas religiosas. Introduzir o prprio arbtrio nas la-cunas e, conforme opinies pessoais, declarar esta ou aquela parte dosistema religioso mais ou menos aceitvel seria sacrlego. Tais pergun-tas so importantes demais para tanto; poderamos dizer: sagradasdemais.

    Neste ponto, pode-se estar preparado para a seguinte objeo:Bem, se at os cticos encarniados admitem que as asseres da reli-gio no podem ser refutadas pelo entendimento, por que no devoacreditar nelas, visto que possuem tanto a seu favor a tradio, a

    53/90

  • concordncia das pessoas e tudo o que h de consolador em seu con-tedo?. Sim, por que no? Da mesma forma que ningum pode serforado a crer, ningum pode ser forado a no crer. Mas que ningumse compraza no autoengano de que com tais justificativas estseguindo os caminhos do pensamento correto. Se a condenao dedesculpa esfarrapada cabe em algum lugar, ento aqui. Ignorncia ignorncia; dela no deriva nenhum direito de acreditar em algo.Nenhum homem racional se comportar to levianamente em outrosassuntos nem se contentar com fundamentaes to miserveis paraseus juzos, para sua tomada de partido; ele se permite isso apenas emrelao s coisas mais elevadas e mais sagradas. Na verdade, so apen-as esforos para criar a iluso, diante de si mesmo e dos outros, de queainda se acredita na religio quando h muito j se est desligado dela.Quando se trata de questes de religio, as pessoas se tornam culpadasde todo tipo de insinceridade e maus hbitos intelectuais. H filsofosque expandem o sentido das palavras at que estas mal conservemalgo de seu sentido original; chamam de Deus qualquer abstraonebulosa que criaram e ento so destas, crentes em Deus, diante detodo mundo; podem at se vangloriar por terem descoberto um con-ceito de deus mais puro, mais elevado, embora o seu deus seja apenasuma sombra sem substncia e no mais a personalidade poderosa dasdoutrinas religiosas. H crticos que insistem em declarar que umapessoa que reconhece o sentimento da pequenez e da impotncia hu-manas diante do todo do mundo profundamente religiosa, emborano seja esse sentimento o que constitua a essncia da religiosidade,mas apenas o passo seguinte, a reao a esse sentimento, a busca deauxlio contra ele. Quem no vai adiante, quem se conforma humilde-mente com o papel insignificante do homem na vastido do mundo, antes irreligioso no mais verdadeiro sentido da palavra.

    54/90

  • No est nos planos deste estudo tomar posio quanto ao valor deverdade das doutrinas religiosas. Basta que as tenhamos reconhecidoem sua natureza psicolgica como iluses. No precisamos ocultar,porm, que essa descoberta influencia imensamente a nossa atitudequanto questo que para muitos deve parecer a mais importante.Sabemos aproximadamente em que pocas e por quais homens asdoutrinas religiosas foram criadas. Se tambm soubermos os motivospelos quais isso aconteceu, nosso ponto de vista em relao ao prob-lema religioso sofrer um sensvel deslocamento. Dizemos a nsprprios que seria realmente muito bonito se houvesse um Deus, cri-ador do mundo e Providncia bondosa, se houvesse uma ordem moraluniversal e uma vida no alm, mas muito estranho que tudo isso sejada maneira como temos de desejar que seja. E seria ainda mais es-quisito se nossos antepassados, pobres, ignorantes e sem liberdade,tivessem encontrado a soluo de todos esses difceis enigmas domundo.

    55/90

  • VII

    AO RECONHECERMOS AS doutrinas religiosas como iluses, coloca-se deimediato uma outra pergunta, a de saber se outros bens culturais, querespeitamos e que permitimos que controlem nossa vida, no teriamnatureza semelhante. Os pressupostos que regulam nossas instituiesestatais no teriam de ser chamados igualmente de iluses? As re-laes entre os sexos em nossa cultura no seriam turvadas por umailuso ertica ou por uma srie delas? Uma vez despertada nossadesconfiana, tambm no recuaremos diante da questo de saber sepossui melhores fundamentos a nossa convico de que podemosdescobrir algo da realidade exterior por meio do emprego da obser-vao e do pensamento no trabalho cientfico. Nada deve nos impedirde aprovar que a observao se volte sobre o nosso prprio ser e que opensamento seja aplicado na crtica de si mesmo. Abre-se aqui umasrie de investigaes, cujo resultado teria de ser decisivo para a con-struo de uma viso de mundo. Tambm pressentimos que semel-hante esforo no ser em vo, e que justificar nossa suspeita aomenos parcialmente. A capacidade do autor, porm, se recusa a umatarefa to vasta, e ele se v forado a limitar seu trabalho observaode uma nica dessas iluses, precisamente a religiosa.

    Em alta voz, nosso adversrio exige que paremos. Somos cobradospela nossa conduta ilcita. Ele nos diz:

    Interesses arqueolgicos so muito louvveis, mas no se fazemescavaes se estas minarem as residncias dos vivos levando-as a

  • desmoronar e soterrar as pessoas debaixo de seus escombros. Asdoutrinas religiosas no so um assunto sobre o qual se possa sutilizarcomo sobre qualquer outro. Nossa cultura est construda sobre elas; aconservao da sociedade humana tem como pressuposto que amaioria dos homens acredite na verdade dessas doutrinas. Se lhes forensinado que no existe um Deus onipotente e absolutamente justo,nenhum ordenamento divino do mundo e nenhuma vida futura, elesse sentiro livres de toda obrigao de obedecer aos preceitos cul-turais. Todos obedecero sem peias e sem medos aos seus impulsosassociais e egostas, procuraro exercer seu poder, e recomear o caosque banimos atravs de um trabalho cultural milenar. Mesmo quesoubssemos e pudssemos provar que a religio no est na posse daverdade, deveramos silenciar sobre isso e nos comportar segundo ex-ige a filosofia do como se. No interesse da conservao de todos! Esem considerar a periculosidade da empresa, trata-se tambm de umacrueldade intil. Um nmero incontvel de pessoas encontra seu nicoconsolo nas doutrinas da religio; somente com seu auxlio podemsuportar a vida. Quer-se priv-las desse apoio, e no se tem nada mel-hor para lhes dar em troca. Admitiu-se que a cincia no conseguefazer muita coisa atualmente, mas mesmo que ela estivesse muitomais avanada, no bast