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FRIEDRICH SCHLEGEL E NOVALIS: POESIA E FILOSOFIA Márcio Seligmann-Silva* “Não existe nenhuma poesia ou filosofia totalmente puras” (SCHLEGEL 1963: XVIII 24 [II 74]) “Toda prosa é poética” (SCHLEGEL 1981: XVI 89 [V 40]) “Tudo deve ser poético” (NOVALIS 1978: I, 737) Apresentação SERIA UM ERRO DIZER que a teoria romântica da prosa é mais radical e revolucionária do que a sua teoria da poesia. Antes de mais nada porque essa teoria da poesia é já ela mesma uma teoria da prosa, a saber, da impossibilidade de distinção entre esses dois registros – de dentro da tentativa de aprofundar a autonomia do poético. É essa estrutura de pensamento aporética, típica do romantismo, que marca as suas reflexões sobre o nosso tema. Essa estrutura do double bind se encontra também, por exemplo, em autores mais próximos de nós, como nas reflexões de Walter Benjamin e de Derrida sobre a tradução e sobre a diferença entre o poético e o prosaico. 1 Tratarei aqui da teoria romântica da poesia/prosa do ponto de vista da concepção romântica de filosofia (como passagem para o poético). Não poderei me deter, no entanto, na teoria romântica da poesia universal, a saber na teoria da prosa (poética) como superação da diferença entre a prosa e a poesia. Recordo apenas que foi dessa doutrina do romance como forma que dissolve toda a história dos gêneros que se originou a concepção moderna de Literatura que não permite mais uma separação estanque entre o poético e o filosófico. (SELIGMANN-SILVA 1999:68ss.). Filosofia como poesia A poesia, para Novalis e Schlegel, era vista antes de qualquer coisa como poiesis, como criação e ação. Essa mesma concepção encontra-se na teoria da prosa desses autores. A filosofia e a prosa encontravam-se intimamente conectadas na concepção romântica de linguagem. O princípio (positivo) de contradição, que guia o double bind, permite aos românticos ao mesmo tempoafirmarem a relação da filosofia com a comunicação, Mitteillung (em oposição à apresentação,Darstellung, produtiva da poesia), com o desvendamento, Enthüllung, com a conceituação, a descrição etc., e com a poesia transcendental, ou seja, ela também seria meio da (re)poetização (ou romantização) do mundo. Expondo esse fato no vocabulário da lógica do suplemento: a prosa seria para esses autores o mal somado ao mal na busca de superação do mal originário (o “pecado original”, a “queda”). Se essa lógica do suplemento é mantida por eles, isso ocorre apenas dentro de uma crítica dessa lógica – pois, como é conhecido, a crítica dessa estrutura suplementar do

Friedrich Schlegel e Novalis

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FRIEDRICH SCHLEGEL E NOVALIS: POESIA E FILOSOFIA

Mrcio Seligmann-Silva*No existe nenhuma poesia ou filosofia totalmente puras(SCHLEGEL 1963: XVIII 24 [II 74])

Toda prosa potica (SCHLEGEL 1981: XVI 89 [V 40])

Tudo deve ser potico (NOVALIS 1978: I, 737)

Apresentao

SERIA UM ERRO DIZER que a teoria romntica da prosa mais radical e revolucionria do que a sua teoria da poesia. Antes de mais nada porque essa teoria da poesia j ela mesma uma teoria da prosa, a saber, da impossibilidade de distino entre esses dois registros de dentro da tentativa de aprofundar a autonomia do potico. essa estrutura de pensamento aportica, tpica do romantismo, que marca as suas reflexes sobre o nosso tema. Essa estrutura dodouble bindse encontra tambm, por exemplo, em autores mais prximos de ns, como nas reflexes de Walter Benjamin e de Derrida sobre a traduo e sobre a diferena entre o potico e o prosaico.1Tratarei aqui da teoria romntica da poesia/prosa do ponto de vista da concepo romntica de filosofia (como passagem para o potico). No poderei me deter, no entanto, na teoria romntica da poesia universal, a saber na teoria da prosa (potica) como superao da diferena entre a prosa e a poesia. Recordo apenas que foi dessa doutrina doromancecomo forma que dissolve toda a histria dos gneros que se originou a concepo moderna de Literatura que no permite mais uma separao estanque entre o potico e o filosfico. (SELIGMANN-SILVA 1999:68ss.).

Filosofia como poesia

A poesia, para Novalis e Schlegel, era vista antes de qualquer coisa comopoiesis, como criao e ao. Essa mesma concepo encontra-se na teoria da prosa desses autores. A filosofia e a prosa encontravam-se intimamente conectadas na concepo romntica de linguagem. O princpio (positivo) de contradio, que guia odouble bind, permite aos romnticos ao mesmotempoafirmarem a relao da filosofia com a comunicao,Mitteillung(em oposio apresentao,Darstellung, produtiva da poesia), com o desvendamento,Enthllung, com a conceituao, a descrio etc., e com a poesia transcendental, ou seja, ela tambm seria meio da (re)poetizao (ou romantizao) do mundo. Expondo esse fato no vocabulrio da lgica do suplemento: a prosa seria para esses autores o mal somado ao mal na busca de superao do mal originrio (o pecado original, a queda). Se essa lgica do suplemento mantida por eles, isso ocorre apenas dentro de uma crtica dessa lgica pois, como conhecido, a crtica dessa estrutura suplementar do pensamento no consegue escapar do seu campo de foras.

Se a filosofia confunde-se muitas vezes entre os romnticos com o pensamento guiado pelos juzos determinantes da tipologia que Kant fizera na abertura da sua Terceira Crtica, por outro lado, aqueles autores percebem que a subsuno do individual ao geral no se pode abstrair da estrutura abissal docrculohermenutico. No h geral sem o individual, assim como no h individual sem o geral: Eu no posso conhecer os indivduos por meio do gnero, mas o gnero por meio dos indivduos, mas claro que devemos sempre ter sob os olhos a Idia quando da observao dos indivduos (NOVALIS 1978: II, 182). No h o gnero,Gattung, fora do individual, assim como no h filosofia sem poetar,Dichten. O potico como registro do individual-universal em oposio ao filosfico, como registro do geral- abstrato, devem ser aproximados e mesclados. Ou seja, a percepo da circularidade e da determinao recproca do individual e do geral levou os romnticos a uma desconstruo desses dois plos a conseqncia oposta a que a teoria hermenutica tradicional chegou. O ideal de uma cincia segundo o modo de ver potico seria, na formulao de Novalis: Cada objeto [Gegenstand] (praticamente) deixa-se tomar como o objeto [Object(sic)] de uma cincia particular (NOVALIS 1978: II, 695). Ele contrape ao procedimento analtico do juzo que separa, das trennende Urteil (sic), que faz com que se perca o valor de cada apario [...] enquanto membro de um todo, o poder da poesia: A poesia cura as feridas abertas pelo entendimento. Ela consiste justamente em partes em oposio (NOVALIS 1978: II, 814). Mas essa contraposio entre a poesia e o entendimento, que apenas momentnea, deve ser compreendida como um estratgia de crtica do modelo da verdade como produto do pensamento lgico. Para Novalis e Schlegel, o ideal, como ainda veremos mais de perto, permanece sendo a unificao dos dois registros.

A filosofia enquanto prosa produtiva no visaria descoberta de uma verdade dada de antemo,2mas sim ao desdobramento de uma ausncia, de umProblemacuja soluo a prpriaatividadefilosfica: Assim como no comemos para nos apropriarmos de um material totalmente novo, desconhecido [Fremde] do mesmo modo no filosofamos para achar verdades totalmente novas, desconhecidas (NOVALIS 1978: II, 355), escreveu Novalis. O seu modelo e o de F. Schlegel de filosofia deixa-se aproximar do que Rorty (1982:92) pretendeu derivar daPhnomenologiede Hegel, ou seja, a concepo da filosofia como uma cadeia de textos que se somam constituindo uma obra infinita. Schlegel afirmou nesse sentido que a filosofia se resumia sua histria (A filosofia decerto nada seno aHistria da Filosofia, SCHLEGEL 1963: XVIII, 137 [III 187]; Histria no nada seno Filosofia e esses nomes poderiam ser totalmente trocados, SCHLEGEL 1963: XVIII, 226 [IV 382]). A sua definio irnica do filsofo como aquele que cr na possibilidade de se conhecer o universo (SCHLEGEL 1963: XVIII, 230 [IV 432]) tambm vai nesse sentido de crtica ao modelo representacionista da filosofia. A esse modelo ele e Novalis contrapem o da filosofia comoprxis, que aproximada da atividade criativa,poieticado Genie3: A Filosofia s pode ser apresentada de modo prtico e, como a atividade do gnio, no se deixa em geral descrever (NOVALIS 1978: II, 828). O Genie caracterizado como aquele que constitui um sistema fechado em si mesmo. Se o objetivo do filsofo tradicionalmente a compreenso do mundo, o filsofo-gnio por sua vez marcado pela incapacidade de ser compreendido (Faz parte da essncia do Gnio que ele seja umSistemapor si e que, portanto, ningum mais compreenda um Gnio, SCHLEGEL 1963: XVIII, 112 [II 996]). O saber, Wissen, seria, assim como a arte, coisa de gnio (SCHLEGEL 1963: XVIII, 344 [V 271]), e cada obra doGeniepara Schlegel pode at ser clara aos olhos, mas eternamente misteriosa para o entendimento (SCHLEGEL 1967: II, 322). Da por que para ele um filsofo entende to mal ao outro, ou talvez ainda menos, do que um poeta ao outro (SCHLEGEL 1963: XVIII, 112 [II 997]). Mas isso no implica uma simples desvalorizao da filosofia. A individualidade da linguagem (assim como a da poesia ou da arte) resgatada pelos romnticos contra o acento iluminista (e humanista, retrico) na sua universalidade. A concepo doGenieda lngua aplicada a cada lngua particular; por assim dizer, cada indivduo falaria apenas um idioleto, pois a lngua a expresso da sua individualidade, de sua forma de ler o mundo: Cada pessoa tem a sua prpria lngua. Lngua expresso do esprito. Lnguas individuais. Gnio-da-lngua (NOVALIS 1978: II, 349), escreveu Novalis ao seu modo tipicamente enigmtico indescritvel.4A filosofia no para os romnticos superada devido a essa incompreenso entre as lnguas. Ela constitui antes umaatividadecentral para eles. Como Fichte, Novalis v na filosofia oideal da cinciaem geral (NOVALIS 1978:II, 623); ela seria um esquema desse Ideal, a saber, da inteligncia mesma. O ncleo dessa concepo de filosofia , portanto, a teoria do funcionamento do pensamento.

Na verdade, j Fichte tinha uma concepo prtica da filosofia: no no sentido kantiano da filosofia moral, mas na medida em que transformou a filosofia emato filosfico, em ao,Tathandlung, do eu que pe a si mesmo e que existe apenas em funo desse pr (FICHTE 1971: I, 96). Novalis e Schlegel levam essa concepo mais adiante com a sua entronizao da ao do Eu, com a sua concepo de poesia (romntica) universal e de poeta transcendental. Pensar, falar e agir so conectados nessa viso de mundo, e a linguagem oriunda dessa constelao mgica, absolutamente criadora como a linguagem de Deus no incio da Bblia: Pensar falar. Falar e atuar e fazer so uma operao modificada. Deus falou faa-se luz e fez-se (NOVALIS 1978: II, 531). Para Novalis umpensamento necessariamentelingual[wrtlich] (NOVALIS 1978:II, 705). Do mesmo modo que para ele a linguagem uma ao criadora, tambm no h uma realidade fora do universo lingstico. Tudo deixa-se descrever5 Verbis. Todas as atividades so ou podem ser acompanhadas por palavras assim como todas as representaes [Vorstellungen] do Eu (NOVALIS 1978: II, 676). Inspirado por Plotino, Novalis critica o meio idealismo de Kant e de Fichte em nadapotico e prega um experimentar ativo: O meio livre de gerao da verdade ainda pode ser muito ampliado e simplificado a saber, aperfeioado. [...] Deve-se poder em toda parte presentificar a verdade em toda parterepresentar(no sentido ativo, produtivo) (NOVALIS 1978:II, 687). Novalis via na crena na representao verdadeira, perfeita a fonte da superstio e do erro (NOVALIS 1978: II, 637); a sua visopoiticada linguagem impedia-o de diferenciar os signos da linguagem [...] dos demais fenmenos (NOVALIS 1978:II, 691). Nesse ponto tambm Novalis pretendia apenas levar adiante um ideal que ele j vira em Fichte, a saber a exigncia fichteana do simultneo pensar, atuar e observar (NOVALIS 1978:II, 610). A imaginao,Einbildungskraft, seria o rgo dessa unidade, assim como ela que une o filosofar e o poetar (NOVALIS 1978: II, 182). Atravs do magismo ou do sintesismo da Fantasia (Magismus oder Synthesism der Fantasie) a filosofia torna-se para Novalis Idealismo mgico (NOVALIS 1978:II, 671). Em vez da descrio analtica que estaria ainda na esfera da filosofia como representao/imitatiodo mundo, como busca da conceituao para uma verdade ainda no-nomeada, Novalis fala da definio geradora, dos nomes geradores como palavra mgica (NOVALIS 1978:II, 381s). Em vez da representao, da concepo da filosofia como traduo no sentido platnico deste termo, os romnticos pregam um modelo (auto)gerativo da mesma. Schlegel tambm via na noo deverdadeuma funo relacional: Verdade refere-se arelaes, no a coisas (SCHLEGEL 1963:XVIII, 410 [V 1076]). Como para ele As coisas encontram- se na conscincia (SCHLEGEL 1963:XVIII, 449 [VI 197]) e o pensamento produtivo, averdades pode ser pensada a partir de cada indivduo produtor: Toda verdade relativa (SCHLEGEL 1963: XVIII, 417 [V 1149]).6

Estilo

O elemento ativo que os romnticos atribuem filosofia expressa-se tambm noestiloda sua exposio. A conhecida oposio dos romnticos exposio sistemtica parte dessa concepopoiticada filosofia. Jacobi fora um dos primeiros a introduzir a noo de certeza imediata, unmittelbar Gewiheit (denominada por ele tambm sentimento, Gefhl), que no pode ser fundamentada na definio do saber, Wissen, que, de outro modo teria a forma de uma regresso infinita. Jacobi denominava sentimento [Gefhl] (ou crena) o saber que se expressa acerca de uma proposio incondicional [un-bedingt, no-coisificada]. Crena quer dizer: ver sem mais um fato como certeza que justamente parece evidente sem carecer de uma fundamentao extra (FRANK 1995: 17). O saber era visto por Novalis e Schlegel como uma complementao recproca entre crena e pensar: A filosofia no deve simplesmente iniciar com proposiesno-fundamentadas, mas tambmcontraditrias, para tornar visvel o totalmente mstico. Saber in-condicionado crena (SCHLEGEL 1963: XVIII, 407 [V 1045]). Os primeiro romnticos foram profundamente marcados por essa idia e a aplicaram ao seu prprio estilo. Em vez da anlise e da argumentao comprobatria das hipteses, eles pregam um estilo absolutamente ttico, a saber nas palavras de Schlegel: Construirao invs de definir (SCHLEGEL 1963: XVIII, 388 [V 815]). Se toda verdade subjetiva, ento tambm a sua prova deve o ser. Assim faz-se a magia da Retrica (SCHLEGEL 1963: XVIII, 75 [II 563]). Novalis tambm tratou do poder retrico doafirmar (NOVALIS 1978: II, 502). Para ambos h umlimitedo compreensvel, a partir do qual no h mais espao para o estilo demonstrativo da filosofia; apenas oracional,Vernnftiges, pode ser compreendido, j a Natureza, para Schlegel, s pode ser vista (SCHLEGEL 1963:XVIII, 316 [IV 1484]). (Quanto mais clssico, parvo, um filsofo , tanto mais ele se prende a essaepideixis). Apenas a apresentao histrica que constri, que no carece de mais nenhuma forma demonstrativa, objetiva. A demonstrao pertence, portanto, popularidade [Popularitt]. Nada deve e nada pode ser provado (SCHLEGEL 1963: XVIII, 35 [II 174]), afirmou Schlegel, num tom que para um leitor moderno remete averso de Wittgenstein ao procedimento argumentativo na exposio filosfica.7A recepo da filosofia de Fichte se daria via sentido e formao, Sinn und Bildung, e no via demonstrao. O incompreensvel no se torna compreensvel via esclarecimento (SCHLEGEL 1963:XVIII, 35 [II 178]), do mesmo modo que polemicamente Schlegel nega que haja um saber particular filosfico (SCHLEGEL 1963:XVIII, 344 [V 271]). A concepo de apresentao,Darstellung, era, para os romnticos, inseparvel do seu conceito de poesia. Aapresentao para a poesia o que o provar para a filosofia (SCHLEGEL 1963:XVIII, 385 [V 774]), afirmou Schlegel no seu modo peremptrio. Se na definio do potico o importante era a acentuao, a saber a posio do potico como darstellerisch, o que apresenta, em oposio ao filosfico como comunicativo-discursivo, na medida em que os romnticos elaboraram um conceito afirmativo da filosofia, eles buscaram alargar o seu horizonte. A noo de teoria que deveria dominar nessa nova definio da filosofia a que Schlegel exps no seuGesprch ber die Poesie(Conversa sobre a Poesia) ao determinar o que seria uma teoria do romance, que seria uma teoria no sentido originrio da palavra: uma intuio espiritual do objeto com todo o nimo calmo e sereno, como convm ver o valioso jogo das imagens divinas na alegria festiva. E ele logo em seguida acrescenta: Uma tal teoria do romance deveria ser ela mesma um romance (SCHLEGEL 1967:II, 337).

No local tradicionalmente ocupado pelo conhecimento de fatos, de elementos estticos, os romnticos colocaram o prprio processo do conhecimento como construo de um saber; em vz de definirem o que o conhecimento seria, eles repetem o movimento infinito de sua criao (cf. NEUMANN 1976:270). O que eles valorizam na exposio filosfica no a capacidade analtica, mas sim, como, se pode ver, por exemplo, no caso do famoso ensaio de Schlegel sobre Lessing de 1804, a dramaticidade da exposio.8A exposio filosfica compartilha do registro daDarstellungna medida em que ela se torna apenas umaindicaopara o caminho que o receptor deve seguir com o seu prprio pensamento. Schlegel mimetiza a teoria do seu objeto de estudo nesse ensaio (Lessing, e sobretudo as idias doLaokoon), na medida em que ele acentua a importncia daordemdos pensamentos (Folge der Gedanken) na exposio prosaica; o essencial nas obras de Lessing no seria tanto as suas idias tomadas individualmente, mas sim o seu estilo, a marcha do seu pensamento, que genial, repleta de viradas surpreendentes (SCHLEGEL 1988a:III, 43). Schlegel descarta o sistema fechado como o modo de exposio da filosofia: a filosofia no teria nada a expor a no ser a sua prpria busca. O seuresultado indizvel, Unausprechlich. A filosofia deve tambm compartilhar da autonomia do potico e da sua o-posio a um fim (Absicht) determinado: o seu critrio no nem aplicao, Anwendbarkeit, nem tampouco comunicabilidade (SCHLEGEL 1963: XVIII, 9 [I 54]; 19 [II 9]).9A filosofia definida como um eterno ir e vir entre os pensamentos, como um oscilar,Schweben, infinito:O conceito, j o nome mesmo da filosofia e tambm toda a sua histria nos ensinam que ela um eterno buscar e no poder encontrar; e todos artistas e sbios concordam quanto ao fato de que o mais elevado indizvel, ou seja, em outras palavras: toda filosofia necessariamente mstica. Naturalmente; pois ela no possui nenhum outro objeto e no pode ter outro que no aquele que o mistrio de todos os mistrios; um mistrio s pode e deve ser comunicado de um modo misterioso. [...] Da, finalmente, a alegoria na expresso do filsofo perfeito, positivo; a identidade da sua doutrina e conhecimento com a vida e a religio e a passagem da sua viso para a poesia mais elevada; da tambm, por fim, aquela forma da filosofia que sob todas as condies e em todas as situaes a duradoura e a que lhe propriamente essencial, a dialtica. Ela no se vincula meramente reconstruo de uma conversa, ela encontra-se por toda parte onde ocorre uma mudana oscilante dos pensamentos em conexo progressiva, ou seja, em toda parte onde ocorre filosofia. A sua essncia, portanto, consiste justamente na mudana oscilante, na eterna busca e nunca poder encontrar [...] (SCHLEGEL 1988a:III, 78s.)Nessa descrio da filosofia como passagem para a alegoria e para a poesia em decorrncia daindizibilidadedo mais elevado somos levados ao tema do simblico na teoria do conhecimento e na esttica romnticas. Poder- se-ia demonstrar em que medida a teoria romntica doarabescoj continha de modo tenso e aberto, no resolvido a polaridade do simblico e da crtica da representao.10

O trabalho do filsofo d-se, portanto, via terminologia e alegoria, intuio e discursividade, costurando entre mundo fenomnico e o ideal. Essa mesma dualidade ocorre na linguagem potica que nunca pode se autoaniquilar enquanto meio, que sempre expresso (indireta): Toda autntica comunicao simblica (NOVALIS 1978:II, 354), escreveu Novalis. Essa dualidade da filosofia no na verdade nada mais do que uma manifestao da lei daDarstellung. Novalis a resumiu na frmula: A troca de esferas necessria em uma apresentao perfeita O sensvel deve ser apresentado espiritualmente, o espiritual sensivelmente (NOVALIS 1978:II, 194). Desse modo voltamos, portanto, concepo romntica do saber, como construo, como oscilao,Schweben. diferena da noo tradicional do pantesmo, nos romnticos o todo no um constructo transcendente, que iria alm do somatrio das partes, mas resultado do movimento das mesmas. A infinitude da filosofia uma resposta infinitude do movimento daSetzung, do pr, da reflexo. A concepo do todo como um sistema constitudo a partir da interao recproca das suas partes foi exposta de modo exemplar por Novalis nos seusFichte-Studien: Apenas o todo real Apenas a coisa seria absolutamente real que no fosse novamenteparte constante. O todo consiste aproximadamente como as pessoas jogando que, sem cadeiras, sentam-se num crculo uma no joelho da outra (NOVALIS 1978:II, 152). Desse modo Novalis e Schlegel adiantaram a concepo saussuriana da linguagem segundo a qual em cada elemento lingstico est contido o sistemainteiro (MENNINGHAUS 1987:58). Aparolee alanguetm uma relao sobredeterminante, a segunda (a linguagem como umtodo) no podendo existir sem a primeira (a sua execuoprtica): assim como tambm para Wittgenstein as palavras no falam para voc a partir de si; uma palavra tem significado apenas em uma frase (WITTGENSTEIN 1984:87).

A filosofia no se caracteriza por um movimento retilneo de gradual esclarecimento do mundo mas sim cclico, sendo que as curvas, Winkel, do pensamento expressam justamente o seu carter arbitrrio (SCHLEGEL 1963: XVIII, 229 [IV 421]). A filosofia como umaTrieb insacivel, como um ir e vir entre certezas e ceticismos (um jogo entre luz e sombra), um tema constante dos fragmentos de Schlegel: Ceticismo o estado da reflexo oscilante (SCHLEGEL 1963:XVIII, 400 [V 955]). O todo deve iniciar com uma reflexo sobre a infinitude da pulso de saber. [...] (O itinerrio dessa metafsica deveria se dar em muitos ciclos, sempre em frente e maior). Quando atingir o fim, deveriasempre reiniciar a partir do incio alternando entre caos e sistema, o caos preparando para o sistema e ento um novo caos. (Esse itinerrio muito filosfico.) (SCHLEGEL 1963:XVIII, 283 [IV 1048]). A filosofia como um movimento de eterna autogerao e autodestruio (SCHLEGEL 1963: XVIII, 111 [II 987]) um resultado da concepo relativista da verdade (SCHLEGEL 1963:XVIII, 131 [III 113]), sendo que assim como a poesia, para os romnticos, era caracterizada por um centro duplo (harmonia e alegoria11), do mesmo modo o sistema e o caos constituiriam o centro duplo da filosofia: A filosofia uma elipse que contm dois centros (SCHLEGEL 1963:XVIII, 340 [V 217]). Esse elemento dinmico, ativo, como parte essencial da filosofia uma conseqncia do postulado romntico daSetzung(o pr) como princpio da mesma que se diferencia da soluo fichteana: No meu sistema o ltimo fundamento efetivamente umaprova alternante. No de Fichte um postulado e uma proposio incondicional (SCHLEGEL 1963:XVIII, 521 [Anexo II 22]), afirmou Schlegel. A conseqncia dessa concepo, para os romnticos, aquele princpio da infinitude da filosofia a que j me referi aqui, como alis Benjamin o demonstrou na primeira parte da sua dissertao sobre o conceito romntico de crtica (BENJAMIN 1993:51), lanando mo, por exemplo, desse importante fragmento:Na base da filosofia deve repousar no s uma prova alternante [Wechselbeweis], mas tambm um conceito alternante [Wechselbegriff]. Pode-se a cada conceito e a cada prova perguntar novamente por um conceito e pela sua prova. Da a filosofia ter de comear, como a poesia pica, pelo meio, e impossvel recit-la e contar parte por parte de modo que a primeira parte ficasse completamente fundamentada e clara para si. Ela um todo, e o caminho para conhec-la no , portanto, uma linha reta, mas sim, um crculo. O todo da cincia fundamental deve ser derivado de duas idias, proposies, conceitos, intuies sem recurso a outra matria. (SCHLEGEL 1963:XVIII, 518 [Anexo II 16])Novalis j lera em Jacobi que, na medida em que conectamos um predicado a um objeto, ns determinamos o mesmo. Oda frmula a[igual a] a no apenas representa um juzo predicativo, mas tambm estabelece o ser dea. A filosofia comoDarstellung, no sentido romntico dessa palavra, significaria a soluo do insolvel: Se o carter do problema dado a no-soluo, ento ns o solucionamos se ns apresentarmos a sua insolubilidade. Ns sabemos o suficiente de a quando ns vemos que o seu predicado a (NOVALIS 1978:II, 613).

Como Schlegel afirmou num dos fragmentos daAthenum, a filosofia deveria ser uma unidade como num tirso ou num arabesco entre retas e curvas. A filosofia moderna teria o problema de justamente ter retas demais e de no ser suficientemente cclica (SCHLEGEL 1967:II, 171). O elemento cclico vistoao mesmo tempo como um plo alternante com a reta e como superao dessa polaridade. A filosofia cclica no nada mais do que o transcendental realizado (SCHLEGEL 1963:XVIII, 350 [V 359]), ou seja, a tentativa de ligao do ideal e do real, que para Schlegel e Novalis sempre paradoxal: A mais elevadaapresentaodo inconcebvel sntese unificao do que no pode ser unido pr da contradio, como no-contradio (NOVALIS 1978:II, 16)12, afirmou o ltimo. E ainda: Apenas via um salto [Sprung] vai-se do universal arbitrrio, de n para o singular, individual determinado. O manuseio da efetividade segundo a frmula do necessrio fornece o ideal. (Todas as relaes autnticas so simultaneamente mediatas e imediatas.) (NOVALIS 1978:II, 643). E Schlegel escreveu por sua vez: A passagem sempre um salto (SCHLEGEL 1963:XVIII, 304 [IV 1325]). Esse salto,Sprung, que marca cada passagem, cadavoltado pensamento, e que constitui a prpria filosofia, caracteriza-a como umperpetuum mobile, um eternosaltarque constitui o seu prprioUr-Sprung(origem) como um esquema da proto-posio,Ur-Setzung. Novalis tambm caracterizou a filosofia como uma (paradoxal) resposta atrao pelo desconhecido; para ele todo pensado prende-se [...] ao impensvel (NOVALIS 1978:II, 423). Ou ainda: O desconhecido, misterioso, oresultadoe oinciode tudo [...] O conhecimento um meio para se atingir novamente o no-conhecimento (NOVALIS 1978:II, 536). O problema, a tarefa infinita, em termos fichteanos (depois retomado no conceito benjaminiano deAufgabecomo tarefa/abandono do tradutor), tanto o incio como o resultado da filosofia. O motor que estaria na fonte da filosofia uma casa vazia, que Novalis denominaErkenntnivermgen, faculdade de conhecimento.Odesconhecido oatrativoda faculdade de conhecimento. O conhecido no atrai mais. Absolutamente desconhecido = atrativo absoluto.Eu prtico. A faculdade de conhecimento a si mesma o mais elevado atrativo o absolutamente desconhecido (NOVALIS 1978:II, 379).Ou seja, o conhecimento novamente descrito como um movimento circular de auto-reflexo13eauto-poiesis. H uma concepo positiva do desconhecido e da no-compreenso,Unverstndlichkeit; eles so a fora produtora do saber, e um lado s existe em funo do outro. Schlegel expressou essa concepo de modo mais acabado no seuber die Unverstndlichkeit(Sobre a incompreensibilidade). A defesa do lado obscuro do conhecimento que se l nesse texto no deve ser confundida com uma mera apologia da impossibilidade de se penetrar nos mistrios do universo e da nossa alma. Para alm da evidente ironia contra um certo Iluminismo, Schlegel antes constata a total dependncia entre o saber e o no-saber; percebe o conhecimento como um jogo, e mesmo, como uma simulao,Verstellung a soluo romntica para a questo daVorstellung, representao e hipocrisia,Heuchelei. Osoleil noiraparece como apenas a outra face inexorvel do sol luminoso.Mas ser que a incompreensibilidade algo to completamente ruim e desprezvel? Parece-me que a salvao das famlias e das naes baseia-se nela; se no sou iludido por tudo, Estados e Sistemas, as obras mais artificiais das pessoas, [so] freqentemente to artificiais que no podemos parar de admirar a sabedoria do criador que a se encontra. Uma poro incrivelmente pequena suficiente se ela for conservada de modo inviolavelmente fiel e puro, e nenhum entendimento pecador deve ousar aproximar- se das fronteiras santas. Sim, o mais precioso que a humanidade possui, o contentamento interno mesmo depende, como qualquer um pode facilmente sab-lo, em ltima anlise, em algum lugar, de um de tais pontos que devem ser deixados na escurido para que o todo seja suportado e conservado, e essa fora seria perdida no mesmo momento em que se quisesse dissolv-lo no entendimento. Na verdade vocs se assustariam se todo o mundo, como vocs o exigem, uma vez se tornasse seriamente de todo compreensvel. E esse mundo infinito mesmo no formado via compreenso a partir da incompreensibilidade ou do caos? (SCHLEGEL 1967: II, 370)14

Ordo inversus

A viso do saber como o avesso do no-saber e, portanto, da identidade como jogo de determinao e diferena fez com que Novalis acentuasse reiteradas vezes o fato de que s h definio atravs da sada do objeto a ser definido, s haseno-a, ou como ele expressou: A essncia da identidade s deixa-se expor em uma pseudo-proposio. Ns abandonamos o idntico para apresent-lo (NOVALIS 1978:II, 8). Toda definio, portanto, tambm um reflexo, uma inverso (NOVALIS 1978:II, 19). O ponto de vista relativo sempre inverte a coisa (NOVALIS 1978:II, 27); O eu analtico alterna novamente com si mesmo como o eu pura e simplesmente na intuio Alternam imagem e ser. A imagem sempre o avesso do ser. O que a direita na pessoa, a esquerda na imagem (NOVALIS 1978:II, 47; cf. FRANK e KURZ 1977). F. Schlegel tambm expressou essa mesma ordem de idias, como em seu ber Lessing: De modo total e em sentido rigoroso ningum conhece a si mesmo. [...] no podemos ver o solo sobre o qual estamos (SCHLEGEL 1967:II, 115). Essa lei da determinao recproca dos opostos ele elevou lei daBildung(formao/cultura) mesma, i. e. s a partir da sada de si que se desdobra e se cria o si mesmo. Bildung sntese antittica e perfei o at a ironia. Em uma pessoa que atingiu uma certa altura e universalidade daBildungo seu interior uma cadeia progressiva das revolues as mais monstruosas (SCHLEGEL 1963:XVIII, 82s. [II 637]). A auto-negao e a contradio levam a essas revolues (a essas mudanas de posio) que resultam naBildung, a saber, na construo doser. Essa concepo do ser, da identidade, aqui totalmente diversa da que se v, por exemplo, em Herder. No se trata de uma imitao de si mesmo, que estaria no fim daBildunge da filosofia, mas sim de uma concepopoiticado eu como (auto)criao a partir do seu prprio ser, que para os romnticos implica sempre necessariamente uma relao construtora com o no-eu. No seu curso de filosofia de Colnia, Schlegel determinou como sendo uma das leis principais de todo tornar-se a que anuncia o saltar no oposto (berspringens in das Gegenteil, SCHLEGEL 1964:XIII, 25). Para ele e Novalis o Eu existe apenas no trnsito fora de si, oek-sistierenapresenta-se comoEk-stasis(FRANK 1995: 26, 31): O eu puro ns vemos, portanto, sempre fora o eu puro o objeto. Ele est em ns e ns o vemos ao mesmo tempo fora de ns (NOVALIS 1978:II, 40). O Eu puro visto como uma fico necessria ou seja, dentro do paradigma dodouble bind, como impossibilidade e necessidade: tudo que puro tambm uma iluso da imaginao uma fico necessria (NOVALIS 1978:II, 87). O princpio que guia o nosso conhecimento o daordo inversus.15Em vez do regime monolgico, Schlegel prega um eterno dualismo: Aintuio intelectualno nada seno a conscincia de uma harmonia preestabelecida, de um dualismo necessrio e eterno (SCHLEGEL 1963: XVIII, 280 [IV 1026]).

Para os romnticos a poesia era ela mesma uma foraauto-poiticae irredutvel. Oespritodo texto constituiria um ser infinito (SCHLEGEL 1963: XVIII, 115 [II 1044]). O absoluto literrio que os primeiros romnticos fundaram tambm uma figura da sua filosofia, a saber da filosofia comoauto-poiesis. O discurso filosfico romntico uma constante reflexo sobre esse absoluto que estaria na origem da filosofia e para o qual haveria apenas uma expressosem-nome (NOVALIS 1978:II, 524). A crtica ao sistema origina- se justamente da impossibilidade de se nomear, conceituar e conhecer oAbsoluto(Assim que algo sistema, ento ele no absoluto. A unidade absoluta seria algo como um caos de sistemas; SCHLEGEL 1964: XII, 5), sendo que esse absoluto, como vimos, no seria nada mais do que essa prpria busca. Por outro lado, com relao ao outro plo do sistema, o caos, Schlegel escreveu: A essncia do caos parece localizar-se na sua absoluta negatividade (SCHLEGEL 1963:XVIII, 228 [IV 406]). A Poesia ou o poti co, que pode atuar em qualquer discurso seria a nica forma de conhecimento dotodoe, portanto, de re-conhecimento do Caos, porque ela seria a linguagem daUmweg, do desvio, que nos guiaria para o caminho que permite a viso correta desse todo. Essa concepo topogrfica da verdade representa mais uma revoluo romntica do que uma repetio e continuidade. poesia caberia, portanto, no apenas a possibilidade de salvar o individual do domnio da abstrao conceitual homogeneizadora, mas tambm aperspectivaque permite a visualizao do todo. O percurso mais individual, na verdade o nico possvel e a nica forma de se ver o centro: Eu pronunciei algumas idias, que indicam para o centro, eu saudei a alvorada a partir da minha viso, do meu ponto de vista. Quem sabe o caminho, faa o mesmo a partir de sua viso, de seu ponto de vista (SCHLEGEL 1967:II 272), escreveu Schlegel referindo-se s suas prpriasIdeen.

A filosofia para Novalis s existe enquanto interao emWechselwirkung, ao alternante, vale dizer com a poesia. Se o potico tanto representante doindividualcomo davisadadotodo, o filosfico representa o momento universal, um no podendosersem o outro. Para Novalis, portanto, a poesia o heri da filosofia.16A faculdade central da poesia, ou seja a imaginao, e a da filosofia, o entendimento, tambm no podem agir isoladamente: sem a imaginao com o seu trabalho de esquematizao transcendental no h conceitos; do mesmo modo, sem esses ltimos, no h um sentido, um nexo significante para cada uma das partes. Essa idia tanto Novalis como Schlegel expressaram de vrias maneiras:Unidade doentendimentoe daimaginao. Sem filosofia fica-se desunido no que concerne s foras essenciais So duas pessoas Um com entendimento e um poeta.Sem filosofia, poeta incompleto Sem filosofia, pensador incompleto (NOVALIS 1978: II, 321; Cf. ainda NOVALIS 1978:II, 318; 321 s.)

Toda a histria da poesia moderna um comentrio contnuo ao curto texto da filosofia: toda arte deve tornar-se cincia, e toda cincia, arte; poesia e filosofia devem ser unificadas. (SCHLEGEL 1967:II, 161)

A passagem da filosofia para a poesia segue a lei do tornar-se que vimos acima. Novalis v uma passagem, no sentido de uma superao contnua, que leva da cincia, passa pela filosofia e atinge a poesia (NOVALIS 1978:II, 636). Opoeta tomado como um objetivo que todos devem atingir; da ele poder falar de graus do poeta e negar que haja uma separao entre o poeta e opensador(NOVALIS 1978:II, 645).17

Resumo:O artigo apresenta a teoria do conhecimento de Friedrich Schlegel e Novalis a partir de duas questes principais: a) a relao entre a poesia e a filosofia, que funciona nestes autores no sentido da desconstruo de uma polaridade fixa entre a linguagem potica e a prosa como linguagem de representao (neste ponto a filosofia definida como ao infinita, onde a soluo do problema a prpriaatividadefilosfica); b) a relao estruturante entre a linguagem e o estilo (j que no existe separao possvel entre linguagem e mundo, e que a filosofia no visa descobrir nada, o pensamento sai do registro do descritivo e se torna pr ativo, onde a infinitude da filosofia uma resposta infinitude do movimento daSetzung, do pr, da reflexo). A filosofia no se caracteriza por um movimento retilneo de gradual esclarecimento do mundo , mas sim por um percurso cclico, sendo que as curvas,Winkel, do pensamento expressam justamente o seu carter arbitrrio. A filosofia vista como umaTrieb, pulso, insacivel, como um ir e vir (Schweben) entre certezas e ceticismos, autogerao e autodestruio, compreenso e incompreenso. O acento na linguagem e na sua capacidade deDarstellunge no na de representao corresponde a uma valorizao do pensador como gnio (assim como o poeta, para Kant) e da imaginao, em detrimento do acento iluminista no entendimento. Opoeta tomado para Novalis como um objetivo que todos devem atingir; da ele poder falar de graus do poeta e negar que haja uma separao entre o poeta e opensador.

Palavras-chave:Novalis, Friedrich Schlegel, Poesia e Filosofia.Abstract:The article presents Friedrich Schlegels and Novalis theory of knowledge parting from two main questions: a) the relation between philosophy and poetry in the sense of a disconstruction of the fix polarity between poetic language, and prose as the language of representation (at this point philosophy is defined as infinite action, and the solution of the problem turns out to be the philosophicalworkas such), b) the structural relation between language and style (once there is no possible separation between language and the world, and once philosophy has no intention to discover anything, thought abandons the register of the descriptive to become a form of active putting, where the infinitude of philosophy is a response to the infinitude of theSetzungmoment, of the putting, of reflection). Philosophy is not characterized by a rectilinear movement of gradual clarifying of the world but by a cyclical one, where the curves,Winkel, of thought express precisely its arbitrary character. Philosophy is understood as insatiableTrieb, or pulsion, as an oscillation (Schweben) between certainties and skepticism, self-generation and selfdetermination, comprehension and incomprehension. The accent on language and on itsDarstellungcapacity and not on its capacity to represent corresponds to a valorization of the thinker as genius (as the poet for Kant), and of the imagination, in detriment of the illuminist centrality of understanding. Thepoetis seen by Novalis as an aim to everyone, in this sense he can speak of poets levels, and deny a separation between the poet and thethinker.

Keywords:Novalis, Friedrich Schlegel, Poetry and Philosophy.

Notas

1Com relao a Walter Benjamin e Derrida cf. o meu ensaio SELIGMANN-SILVA 1999a.2Cf. Manfred Dick (1967:231) que nota que para Novalis a filosofia no equivaleria a uma busca das ltimas causas mas sim permite que surja o Absoluto no ato de filosofar.3Para Novalis o gnio em geral potico. Onde o gnio atuou ele atuou poeticamente. A pessoa autenticamente moral poeta (NOVALIS 1978:II, 325).4As conseqncias dessa concepo para a teoria romntica da traduo so enormes. Tratei desse ponto no meu livro: 1999:32-37.5Com exceo da filosofia que, segundo o fragmento que citamos acima, s apresentvel via prtica. Na verdade Novalis tenta mostrar que a filosofia no se reduz ao discursivo, mas, por outro lado, no se pode ir alm da linguagem, pode-se apenas sugerir esse campo, via alegoria.6Esse um ponto central nas suasVorlesungende filosofia de Colnia. Cf. SCHLEGEL 1964:XII, 92ss. e 316ss.7Cf. a famosa passagem da carta de Russel a Ottoline Morell que fala da averso de Wittgenstein aos argumentos e da sua atrao pelo simples afirmar.8A comunicao deve ser amigvel, portanto vivaz, e o estilo enrgico, de um certo modo toda a preleo deve ser dramtica. No deve ocorrer como se algum ensinasse apenas a si mesmo, mas sim como em uma conversa; o leitor deve sentir-se a todo o momento solicitado; a marcha dos pensamentos no deve ser furtiva e medrosa, p ante p, mas sim arrebatar tudo em volta com fora veloz. Friedrich Schlegel, Lessings Gedanken und Meinungen, SCHLEGEL 1988a: III, 42. A crtica da linearidade da exposio filosfica encontrou o seu correlato tanto na crtica da linearidade temporal da representao histrica, como tambm na recusa de um modelo mimtico do conhecimento:no h descrio pura, mas sim construo do real. interessante notar que o que vale para a teoria dammesis ou traduo da realidade reelaborado e aprofundado quando se trata da teoria romntica da traduo interlingstica. Isso fica ainda mais patente nas tradues de Hlderlin e nas suas reflexes sobre a diferena entre a Grcia e a Modernidade. Cf. entre outros comentadores, BERMAN 1984 e 1987 e o livro recentemente publicado de ROSENFIELD 2000.9Cf. Quem no filosofa em funo da filosofia, mas antes utiliza a filosofia como meio, um sofista (SCHLEGEL 1967: II, 179), i.e. visa ao convencimento, um elemento exterior aopoitico.10Cf. SELIGMANN-SILVA 2001.11Cf. SELIGMANN-SILVA 2001.12Cf. tambm oBltenstaubde nr. 26 de autoria de Schlegel (1967: II, 164).13Essa idia uma conseqncia da radicalizao do princpio kantiano segundo o qual o eu penso, ich denke, acompanha todas as nossas representaes, Vorstellungen. Cf. as prelees de filosofia de Schlegel (SCHLEGEL 1964:XII, 351). NessasVorlesungenSchlegel criticou o conceito de no-eu,Nicht-Ich, porque ele compactuaria com a idia de que existe algo fora do eu, uma coisa-em-si, e portanto uma finitude, um limite do eu. Ele props ao invs desse conceito o de contra-eu,Gegen-Ich(SCHLEGEL 1964: XII, 338).14Cf. ainda: Pr-se a esfera da incompreensibilidade e confuso um patamar elevado e talvez o ltimo da formao do esprito. O compreender do caos consiste em reconhecer (SCHLEGEL 1963: XVIII, 227 [IV 396]). Com base nessa teoria positiva daUnverstndlichkeitcomo parte da compreen so, como seu plo alternante, a frase Toda prosa sobre o mais elevado incompreensvel (SCHLEGEL 1963: XVIII, 254 [IV 723]) revela a sua outra face no-metafsica.15Cf. os estudos de Fichte de Novalis (NOVALIS 1978: II, 32).16A poesia o heri da filosofia. A filosofia eleva a poesia a princpio. Ela nos ensina a conhecer o valor da poesia. Filosofia a teoriadapoesia. Ela mostra-nos o que a poesia , que ela tudo e o todo. NOVALIS 1978:II, 380.17Este texto foi publicado como um captulo na coletneaEstudos Anglo-Germnicos em Perspectiva, org. por Izabela M. Furtado Kestler, Ruth P. Nogueira e Slvia B. de Melo, Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2002.

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___*MRCIO SELIGMANN-SILVA, Doutor em Teoria Literria e Literatura Comparada pela Universidade Livre de Berlim, professor de Teoria Literria e Literatura Comparada na UNICAMP. Publicou Ler o Livro do mundo. Walter Benjamin: romantismo e crtica potica (Iluminuras, 1999), Adorno (Publifolha, 2003). Organizou os volumes, Leituras de Walter Benjamin (AnnaBlume, 1999) e Histria, Memria, Literatura. O Testemunho na Era das Catstrofes (Editora da UNICAMP: 2003). Co-organizou o volume Catstrofe e Representao (Escuta, 2000). tradutor de Laocoonte de G.E. Lessing, O Conceito de Crtica de Arte no Romantismo Alemo de Walter Benjamin, O Mito Nazista de Philippe Lacoue- Labarthe e Jean-Luc Nancy e Constelao Ps-nacional de J. Habermas.