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Faculdade De Direito
Universidade Nova de Lisboa
Garantia Bancária
Autónoma Sumário: 1. Noção de garantia bancária autónoma e distinção em relação à fiança. 2.
Origem e fundamento da garantia autónoma. 3. Processo conducente à relação jurídica
no âmbito da qual se encontra a garantia bancária autónoma propriamente dita. 4.
Causalidade e Abstracção. 5. Qualificação da relação jurídica entre o garante e o
beneficiário – a garantia bancária autónoma como contrato. 6. Qualificação da relação
jurídica entre o garante e o beneficiário – a garantia bancária autónoma como negócio
jurídico unilateral. 7. A relação entre o dador de ordem e o garante é qualificável de
contrato a favor de terceiro? 8. Modalidades de garantia bancária autónoma: garantia
simples e à primeira interpelação (on first demand). 9. Fundamento de recusa legítima
de pagamento pelo garante ao beneficiário - limite à autonomia. 10. Bibliografia. 11.
Jurisprudência.
Ano lectivo 2010/2011, 1.º semestre
Cadeira: Direito Bancário e dos Seguros
Elaborado por: Lisete Rodrigues, n.º 1271
Miguel Archer, n.º 1065
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1. Noção de garantia bancária autónoma e distinção em relação à fiança.
A garantia bancária autónoma1 é uma garantia pessoal, prestada por uma instituição
de crédito (geralmente um banco) que tem como propósito indemnizar alguém em
determinado montante pela verificação de determinado evento a que as partes tenham
atribuído relevância num contrato celebrado entre elas (normalmente designado de
contrato base). Esse evento é, em princípio, o alegado incumprimento do contrato base.
Como indica o nome, esta garantia caracteriza-se pela sua autonomia, distinguindo-se,
por isso, claramente da fiança, cuja característica essencial é a acessoriedade.
A distinção entre a fiança e a garantia bancária autónoma passa necessariamente por
distinguir as suas características essenciais: a acessoriedade e a autonomia. Enquanto a
acessoriedade da fiança se traduz no facto de a obrigação do fiador se moldar
necessariamente à do afiançado – arts. 627.º/1 e /2 e 634.º CC, a autonomia significa
que o garante assegura a verificação de um determinado resultado, totalmente
independente da obrigação assumida pelo devedor no contrato base2.
Em termos práticos, na fiança, o fiador pode invocar a invalidade da fiança por
causa da invalidade da obrigação principal (632.º/1 CC), bem como invocar contra o
credor quaisquer meios de defesa que competem ao devedor (637.º/1 CC). Na garantia
bancária autónoma, o garante não pode invocar, em princípio3, quaisquer meios de
defesa provenientes de relações jurídicas distintas da assumida por este com o
beneficiário.
Por outras palavras, a autonomia destas garantias traduz-se na inoposição de
excepções por parte do garante ao beneficiário, salvo os meios de defesa que forem
próprios do garante na relação que tenha com o beneficiário.
Veja-se, a este propósito, a síntese feita pelo recente Acórdão do STJ de 19-05-
20104, dizendo que da autonomia retira-se que não podem ser opostas ao beneficiário
pelo garante excepções relacionadas com o contrato garantido, mas tão só com o
negócio de garantia, concretizando-se no facto de que o garante não tem possibilidade
de invocar a prévia excussão de bens do garantido ou a invalidade ou impossibilidade
da obrigação por este contraída (vão exactamente no mesmo sentido outros tantos
acórdãos – TRC 27-01-20045 e TRP 08-05-2008
6, a título de exemplo).
1 Doravante as expressões garantia bancária autónoma e garantia autónoma serão usadas como sinónimos.
2 Veja-se sobre a distinção desenvolvida entre a figura da fiança e da garantia autónoma e sobre a característica da
autonomia, entre outros, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, “Garantia bancária autónoma” in O Direito, Associação Promotora de «O Direito», Lisboa, ano 120, III e IV, Julho-Dezembro 1988, pp. 275-279 e 284-286; FRANCISCO CORTEZ, “A garantia bancária autónoma – Alguns problemas”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 52, vol. II, Julho 1992, pp. 532-535 e 546-558;; MÓNICA JARDIM, A garantia autónoma, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 115-150 e 169-199; PEDRO ROMANO MARTINEZ/PEDRO FUZETA DA PONTE, Garantias de cumprimento, Almedina, Coimbra, 5.ª ed. 2006, pp. 127-129. Veja-se também genericamente sobre o assunto JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, vol. II, Almedina, Coimbra, 7.ª ed., 1997 (3.ª reimpressão), p. 515; LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito das obrigações, vol. II, Almedina, Coimbra, 2007, p. 342. 3 V. infra, n.º 9.
4 Acórdão do STJ 19-05-2010 (Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt.
5 Acórdão do TRC de 27-01-2004 (Távora Victor), CJ, ano XXIX, 2004, tomo I, pp. 17-21.
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Ora, a qualificação de fiança ou de garantia autónoma só se poderá aferir no
caso concreto, tendo de se interpretar o sentido das declarações efectuadas pelo
garante, interpretação que deve ser feita por recurso às regras dos arts. 236.º/1 e
238.º/1 CC, sobre o sentido normal da declaração7. Assim, se os tribunais
consideram que existem elementos no clausulado da garantia que apontam para a sua
autonomia, nos termos enunciados, valerá a garantia em causa como garantia bancária
autónoma.
2. Origem e fundamento da garantia autónoma.
O grande desenvolvimento do comércio internacional na 2ª metade do século XX
fez disparar o recurso a garantias autónomas pelos comerciantes, procura essa que foi
atendida pelos bancos e companhias de seguros. Esta grande procura por parte dos
comerciantes tem justificação nas fragilidades da fiança, que conferem ao fiador
demasiadas defesas, não sendo por isso vocacionada para as relações comerciais, pois o
beneficiário não se sente suficientemente salvaguardado.
O comerciante (em princípio, o adquirente) nas transacções comerciais que realiza
(contratos de fornecimento de bens, empreitada, etc.), pretende e exige uma garantia,
pois na maior parte dos casos não conhece nem confia na contraparte. E,
particularmente, exige que essa garantia seja prestada por um garante conhecido pela
sua forte solvabilidade, daí que normalmente exija que seja prestada por um banco ou
por uma companhia de seguros. Só nesses termos é que o contrato base será levado
avante.
Assim, a garantia autónoma é uma garantia mais enérgica que a fiança, porque
confere mais segurança, celeridade e eficácia à satisfação do interesse do seu
beneficiário8. Se, por um lado, esta garantia incentiva o cumprimento do devedor (que
responderá posteriormente perante o banco garante, no caso de não cumprir ou cumprir
defeituosamente), por outro lado, o beneficiário está seguro de que receberá a quantia
determinada a título de garantia, mesmo que existam controvérsias entre si e o devedor
do contrato base acerca da validade, subsistência ou cumprimento da obrigação
garantida.
O desenvolvimento das garantias autónomas no comércio internacional culminou
com o esforço da CCI (Câmara de Comércio Internacional) para criar regras de
6 Acórdão do TRP 08-05-2008 (Manuel Capelo), in www.dgsi.pt .
7 Veja-se as decisões citadas nesta página. O citado Acórdão do TRP 08-05-2008 é bem claro: “a definição da
verdadeira natureza da garantia bancária accionada é matéria que se prende com a interpretação da declaração
negocial que nela se contém (…)”. 8 Veja-se, neste sentido, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, ob. cit., pp. 280 e 282-283; FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., pp.
517-519; MÓNICA JARDIM, ob. cit., pp. 35-41.
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uniformização das cláusulas de tais garantias, de modo a que não se suscitassem
dúvidas quanto à sua natureza e condições de aplicação.
Pode-se assim dizer que o fundamento deste tipo de garantias nas práticas
comerciais é o de atribuir ao beneficiário uma solução rápida e eficaz, evidenciando-se
como preferível a outro tipo de garantias.
3. Processo conducente à relação jurídica no âmbito da qual se encontra a
garantia bancária autónoma propriamente dita, ou “o processo genético
de emissão de uma garantia bancária autónoma”9.
Feita a introdução à figura da garantia autónoma, e tendo sempre presente as suas
características10
, constatamos que esta é a mais enérgica das garantias e serve não só os
fins do comércio internacional, mas também os do comércio interno. É de uso corrente
entre nós, nomeadamente na área dos concursos de obras públicas e dos contratos de
empreitada, sendo eleita pelos agentes dos negócios como a mais segura, expedita e
eficaz das garantias11
.
A figura da garantia bancária autónoma exige no mínimo três intervenientes, a
saber: um ordenante, que também será devedor (na relação subjacente) e garantido; um
banco que será o garante e um beneficiário que será também credor. Teremos, então,
três intervenientes, que assumirão estas diferentes designações de acordo com a relação
que estaremos a tratar, que vão dar lugar a três relações jurídicas entre si. Podemos,
desta forma, constatar que o processo de formação de uma garantia bancária autónoma
assenta num triângulo cujas três faces são três relações jurídicas distintas, normalmente
contratuais12
13
.
9Expressão usada pela jurisprudência, veja-se, a título de exemplo, os acórdãos do STJ de 21-11-2002 (Azevedo
Ramos), CJ/Supremo ano X, 2002, tomo III, pp. 148 -152 (148) e do TRC de 27-01-2004 (Távora Victor), CJ, ano XXIX, 2004, tomo I, pp. 17-21 (19). 10
V. supra, n.º 1. e 2. 11
Neste sentido, MÓNICA JARDIM, ob. cit. p. 14, “ Nos nossos dias é prática corrente a prestação de uma garantia autónoma, sobretudo na sua modalidade de garantia “on first demand” ou “à primeira solicitação”, e ela assume uma enorme e inegável importância prática tendo como campo de eleição o comércio externo. A garantia surge para cobrir contratos base vultuosos, de execução relativamente demorada, entre empresas que não têm um seguro conhecimento recíproco e uma total confiança mútua. É na área da construção civil, dos fornecimentos, do engeneering e da cooperação industrial, que ela se manifesta com mais frequência.” 12
C. FRANCISCO CORTEZ, ob. cit. p. 523. 13
Normalmente contratuais, pois como teremos oportunidade de analisar, apesar da jurisprudência e da doutrina maioritárias considerarem que a relação que se desenvolve entre o banco garante e o beneficiário é uma relação contratual, só uma análise casuística nos permitirá qualificar tal relação. Não se pode, na nossa opinião, estabelecer sem mais, sem analisar o caso concreto, que a relação no âmbito da qual se desenvolve e é prestada a garantia bancária autónoma, é uma relação contratual, pois na prática não se espera uma aceitação por parte do beneficiário, o que nos levaria para o campo dos negócios jurídicos unilaterais. A questão da qualificação do regime da garantia bancária autónoma será objecto de tratamento nos pontos 5., 6. e 7.
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5
Pensamos ser útil traduzir esta ideia num esquema simples, na medida em que se
revelará num elemento precioso na análise da figura.
Fig. 1
C
Contrato de Cobertura Garantia Bancária Autónoma
A B
Contrato-Base
Este esquema triangular14
tem subjacente a doutrina e a jurisprudência maioritárias e
será o ponto de partida para a explicação de cada uma das faces do triângulo, isto é, de
cada uma das relações até chegarmos à figura que é aqui objecto de tratamento.
Vamos agora analisar cada uma das relações jurídicas.
14
Como tivemos oportunidade de referir a figura da garantia bancária autónoma exige no mínimo três intervenientes, mas pode ter mais do que três. A figura que aqui deixamos representada consiste no processo de emissão de uma garantia bancária autónoma na sua formação tripartida e usada com maior frequência na ordem interna, isto é quando banco e beneficiário se localizam no mesmo país. Mas localizando-se o banco garante e o beneficiário em países diferentes, este pode exigir que seja um banco do seu próprio país a prestar a garantia. Este novo banco será o quarto interveniente (que prestará a garantia bancária autónoma), o que faz com que ao invés de um triângulo passemos a ter um quadrado com dois bancos garantes que se relacionam entre si (formação quadripartida).
Devedor
Ordenante
Garantido
Credor
Beneficiário
Banco
Garante
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6
1ª Relação jurídica: entre devedor e credor do contrato base
Fig. 1.1
contrato base
Consideremos o seguinte exemplo: A (devedor) e B (credor) celebram um contrato
entre si, um contrato de compra e venda internacional15
. Este contrato constitui a relação
jurídica principal ou subjacente que se pretende garantir e como tal vai ser a base do
nosso triângulo16
.
B, importador, teme o risco de incumprimento total ou parcial da obrigação, ou o
cumprimento tardio ou defeituoso por parte do exportador A, pois tal frustraria por
completo a utilidade da mercadoria. Uma forma de superar este risco consiste
precisamente na utilização da figura da garantia bancária autónoma. Para o efeito, A
obriga-se a conseguir um garante (normalmente um banco) que assegurará que o B,
beneficiário, receberá uma quantia pecuniária previamente fixada mediante a alegação
do incumprimento da outra parte ou ainda de preferência imediatamente, logo que o
banco seja interpelado para tal pelo B, mediante declaração. Esta obrigação do A, na
maior parte dos casos consta numa das cláusulas do contrato base e em certos casos este
contrato só é celebrado mediante a certeza de existência de garantia bancária.
15
Este contrato é um contrato sinalagmático como tal decorrem obrigações para as duas partes, a saber a entrega da coisa (mercadoria) e o pagamento do preço. Como tal, nada obsta a que o A, de modo a garantir o pagamento pelo B, também exija uma garantia bancária autónoma. De modo a simplificar, estamos a considerar que apenas o B (importador, credor no nosso triângulo) exigiu uma garantia bancária autónoma. 16
Aqui na maior parte dos casos estamos a falar de contratos que envolvem avultadas somas de capital, como tal podíamos estar perante um contrato de empreitada, de transferência de tecnologia, etc.
Devedor Credor
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7
2ª Relação Jurídica: entre ordenante e garante.
Fig. 1.2
Contrato de Cobertura
De modo a cumprir o acordo, ou a cláusula contratual, A vai incumbir um C, regra
geral um banco, de estabelecer uma relação jurídica com o B na qual prestará a referida
garantia ao beneficiário mediante o cumprimento de uma série de requisitos que
constarão do próprio texto da garantia. Aqui serão convencionadas as condições em que
o banco garante assume a referida garantia, as contrapartidas e demais obrigações17
.
Esta relação que se estabelece entre o devedor da relação principal e o banco garante
tem sido qualificada, entre nós, quer na doutrina, quer na jurisprudência, como sendo
um contrato de mandato: mandato sem representação nos termos do art. 1157.º e 1180.º
do CC, pelo qual o banco garante se obriga perante o devedor da relação principal,
também designado ordenante, em contrapartida de certa retribuição, a estabelecer com o
correlativo credor uma relação no âmbito da qual prestará uma garantia bancária
autónoma, mediante certas condições. O banco vai actuar em nome próprio, pois será
ele quem responderá pela obrigação de prestar garantia, sendo esta uma obrigação
própria. O banco actua em nome próprio, mas por conta do dador da ordem (devedor
garantido)18
.
17
Regra geral o banco exigirá uma contra garantia. 18
Apesar de esta ser a posição maioritária, entre nós, o professor CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA qualifica este contrato como contrato de prestação de serviços, argumentando que não se poderia estar perante um contrato de mandato, ainda que sem representação, pois a figura da garantia autónoma exige a intervenção de um terceiro, ou seja, a prestação a que se obriga o garante (terceiro), que é um acto futuro, não pode, por natureza, ser realizada pelo devedor. Assim sendo, não podemos qualificar tal contrato como de mandato, mas sim de prestação de serviços porque o garante age no interesse mas não por conta de outrem.
Ordenante
Garantido
Banco
Garante
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8
3ª Relação jurídica: entre o garante e o beneficiário
Fig. 1.3
Garantia Bancária Autónoma
É nesta última relação entre o garante e o beneficiário que se encontra a garantia
propriamente dita. Nesta relação o banco garante obriga-se a entregar uma soma
pecuniária determinada ao beneficiário, logo que este alegue o incumprimento da
relação jurídica subjacente e junte os documentos necessários para o efeito, ou de
imediato quando este simplesmente o interpele a realizar essa prestação, mediante
declaração. Nisto consiste a garantia bancária autónoma.
Esta relação vem sendo qualificada entre nós, tanto pela doutrina como pela
jurisprudência, como sendo uma relação contratual com carácter não sinalagmático, da
qual decorre para o garante a obrigação de prestar a garantia e para o beneficiário o
correlativo direito de crédito. Não nós vamos ocupar, por agora, da qualificação do
regime, pois fá-lo-emos mais à frente19
.
Feito o esquema e feita a explicação concernente a cada uma das relações, sem
prejuízo de certas questões voltarem a ser retomadas com maior pormenor, deixamos
19
V. infra n,º 5., 6. e 7.
Banco
Garante
Beneficiário
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9
aqui registado um excerto de um acórdão do TRC de 27-01-200420
que traduz o
esquema que realizamos e que qualifica a relação entre ordenante e garante como de
mandato, e a relação entre garante e beneficiário como contrato de garantia bancária
autónoma:
“(…) no processo genético de emissão de uma garantia bancária autónoma existe,
em primeiro lugar, um contrato base, entre o mandante da garantia e o beneficiário, a
que se segue um contrato qualificável como de mandato, mediante o qual o mandante
incumbe o banco a prestar garantia ao beneficiário e, por último, o contrato de
garantia, celebrado entre o banco e o beneficiário, em que o banco se obriga a pagar a
soma convencionada logo que o beneficiário o informe de que a obrigação garantida se
venceu e não foi paga(…). A emissão da garantia envolve pelo menos três tipos de
relações contratuais, dando origem a um grupo de contratos relacionados entre si.”
No mesmo sentido, mas agora no que à doutrina diz respeito FRANCISCO
CORTEZ21
trata do conceito de garantia autónoma como sendo tudo isto que tivemos
aqui a tratar, ou melhor, qualifica aquela relação entre garante e beneficiário como
sendo contratual e no conceito implica as outras relações, formando o esquema
triangular:
A garantia bancária autónoma é prestada através da celebração de um contrato
autónomo de garantia entre uma entidade (o garante), normalmente um banco – em
cumprimento de um contrato de mandato sem representação em que é mandante o
devedor de uma obrigação – e um beneficiário – titular do correlativo direito de crédito
– pelo qual o primeiro, o garante, se obriga a entregar uma quantia pecuniária
determinada ao segundo, o beneficiário, logo que, tratando-se duma garantia bancária
autónoma simples, este prove o pressuposto da constituição do seu direito de crédito
contra o garante – regra geral trata-se do incumprimento da obrigação do devedor – ou,
tratando-se de uma garantia bancária autónoma a pedido (on first demand) o interpele
simplesmente, pela forma acordada, para tal.
4. Causalidade e Abstracção.
Já sabemos que a autonomia é a principal característica da garantia bancária
autónoma, cumpre agora aprofundar o tema.
Através da garantia bancária autónoma o garante não se obriga a produzir o
resultado a que está obrigado o devedor (ordenante), ao invés responsabiliza-se pelo
risco da sua não produção. O garante obriga-se, mediante certas condições, a entregar
20
Acórdão do TRC de 27-01-2004 (Távora Victor), CJ, ano XXIX, 2004, tomo I, pp. 17-21 (19), sublinhado próprio, no mesmo sentido os acórdãos: do STJ de 09-01-97 (Sousa Inês), CJ/Supremo, ano V, 1997, tomo I, pp. 35-37 (36) e de 21-11-2002 (Azevedo Ramos), CJ/Supremo, ano X, 2002, tomo III, pp. 148-152 (149); do TRP de 08-05-2008 (Manuel Capelo) e do TRL de 15-04-2010 (Fátima Galante), estes últimos in www.dgsi.pt. 21
C. FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., p. 531. Também MÓNICA JARDIM, ob. cit, p. 13.
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10
uma determinada quantia pecuniária, não se obriga em nenhum caso a cumprir a
obrigação que o devedor deixou de satisfazer.
Como consta do acórdão do STJ de 27-05-201022
, “a função da garantia autónoma
não é a de assegurar o cumprimento de um determinado contrato, visando antes
assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no texto da garantia, uma
determinada quantia em dinheiro. Assumindo o garante uma obrigação própria,
desligada do contrato base sendo tal obrigação, nessa medida autónoma, independente,
não acessória da obrigação do devedor principal”.
O garante abdica, desde logo, da possibilidade de vir a opor ao beneficiário
quaisquer excepções derivadas tanto da sua relação com o garantido, como da relação
base23
.
Relacionadas com a autonomia estão a causalidade e a abstracção, mas que com
aquela não se confundem.
A questão da admissibilidade legal24
da garantia bancária autónoma, surge,
frequentemente, ligada ao problema dos negócios abstractos25
.
Entre nós ao contrário do que ocorre na Alemanha, vale o princípio da causalidade,
e a abstracção negocial, isto é, “omissão textual de causa final do acto”26
, só é permitida
num conjunto fechado de tipos negociais, pense-se nos títulos de crédito. Os títulos de
crédito (letras, livranças, cheques) são abstractos, tal não significa que não tenham uma
causa, significa sim que esta causa não releva, relevará sim no âmbito das relações
imediatas, não já nas mediatas.
Considerar a garantia bancária autónoma como abstracta seria obstar à sua
admissibilidade entre nós por força do princípio da causalidade. Mas se há autores que
integram a garantia bancária autónoma entre os negócios jurídicos causais e duvidam da
sua validade no nosso ordenamento jurídico27
, outros há que a apesar de a considerarem
um negócio abstracto concluem pela sua validade28
.
Cumpre então tomar posição deixando claros os conceitos em causa.
22
Acórdão do STJ de 27-05-2010 (Serra Baptista) in www.dgsi.pt. 23
Veremos que a autonomia tem limites, infra, n.º 9. 24
Sabendo que entre nós a figura não tem base legal. São poucos os países que a têm legalmente consagrada, v. g. França. 25
Como refere JORGE DUARTE PINHEIRO, “o caminho dos negócios causais abstractos não se afigura o melhor para tomar uma decisão acerca da admissibilidade da garantia bancária (…) porque o tema do negócio abstracto é reconhecidamente complexo, facto a que não é estranha a necessidade de estudar o conceito de causa, domínio onde reina a confusão, as disparidades abissais, as dificuldades, contradições e enganos”, in “Garantia Bancária Autónoma”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 52, vol. II, Julho 1992, p. 441. 26
C. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos II, Conteúdo. Contratos de Troca, Almedina, 2007, p. 121, “negócios abstractos no direito português são apenas aqueles cujo regime jurídico, estabelecido por lei ou por convenção internacional vigente em Portugal, admita a omissão de uma função económico-social no respectivo conteúdo”. 27
Pelo menos no que concerne à garantia bancária à primeira solicitação, c. FERRER CORREIA, “Notas para o Estudo do contrato de garantia bancária”, in Revista de Direito e Economia, ano VIII, n.º 2, 1982, pp. 249-250, apud JORGE DUARTE PINHEIRO, ob. cit. p. 439. 28
C. JOSÉ SIMÕES PATRÍCIO, “Preliminares sobre a garantia ‘on first demand”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, vol. III, Dezembro 1983, pp. 682-705.
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11
Sabendo que autonomia e abstracção não se confundem, na figura da garantia
bancária autónoma a autonomia consiste na inoponibilidade de excepções por parte do
garante ao beneficiário que derivem tanto da relação do garante com o garantido como
da relação base (entre garantido e beneficiário). Abstracção, por outro lado, consiste na
omissão da causa da garantia.
Nada obsta a que tenhamos actos causais dotados de autonomia, pois bem, tal ocorre
precisamente na garantia bancária autónoma. Quando pensamos na garantia autónoma
pensamos na sua autonomia em relação às outras relações que formam o triângulo, mas
esta não deixa de ser causal. E qual é a sua causa? Qual é a sua função económico-
social? É precisamente uma função de garantia como o seu próprio nome indica, isto é,
uma função de risco, o risco da não produção do resultado a que se obriga o devedor.
Neste sentido vai o acórdão do STJ de 09-01-9729
, no qual consta que “o contrato
de garantia autónoma é causal, mas apenas no sentido de que visa uma função de
garantia, não os sendo por ter a justificação no contrato base ou no mandato recebido da
dadora da ordem”.
E o acórdão também do STJ, mas de 21-11-200230
, que refere que a validade da
figura já foi posta em causa precisamente pelo princípio da causalidade dos negócios
que vigora entre nós, mas constata o acórdão que tal questão não tem constituído
obstáculo à proliferação e reconhecimento da figura, pois tem-se entendido que a causa
reside na intenção de garantia que lhe subjaz.
5. Qualificação da relação jurídica entre o garante e o beneficiário – a
garantia bancária autónoma como contrato.
Para a grande parte da doutrina e jurisprudência é pacífico que a qualificação da
relação jurídica estabelecida entre o garante e o beneficiário se deve designar de
contrato de garantia autónoma. Neste sentido vão grande parte dos Autores31
.
A jurisprudência, salvo raras excepções, refere-se sempre a contrato de garantia
autónoma, tomando-o por assente, fundamentando-se no princípio da liberdade
contratual (art. 405.º CC), depois de interpretar se, no caso concreto, as partes
pretenderam qualificar aquela garantia de garantia autónoma, recorrendo às referidas
regras estabelecidas nos arts. 236.º e 238.º CC.
Neste sentido vai o antigo Acórdão do TRL 11-12-199032
, que diz que “o contrato
de garantia bancária é um contrato inominado fruto da autonomia privada que preside à
29
Acórdão do STJ de 09-01-97 (Sousa Inês), CJ/Supremo, ano V, 1997, tomo I, pp. 35-37 (36). 30
Acórdão do STJ de 21-11-2002 (Azevedo Ramos), CJ/Supremo, ano X, 2002, tomo III, pp.148-152 (149). 31
Veja-se INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, ob. cit., p. 287; FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., pp. 528-531; JOÃO DE MATOS
ANTUNES VARELA, ob. cit., pp. 515-517; MÓNICA JARDIM, ob. cit., pp. 60-65 e 101-150; PEDRO ROMANO
MARTINEZ/PEDRO FUZETA DA PONTE, ob. cit. p. 125 e pp. 132-135; LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, ob.
cit., p. 341.
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formação dos contratos e que entre nós ainda não teve consagração legislativa”, mas tal
posição continua actualmente a ser defendida pelos tribunais (como por exemplo, o do
TRP 08-05-200833
).
Define-se, por isso, o contrato de garantia autónoma como contrato legalmente
atípico (porque não regulado na lei), mas socialmente típico, querendo-se com isto
dizer que há uma prática reiterada e aceite na comunidade jurídica deste tipo de
contratos34
.
A prática é a de que o beneficiário recebe um documento (uma carta de garantia)
enviado pelo banco garante. Defendendo-se que a garantia autónoma assenta num
contrato, o conteúdo desta carta consistirá na proposta contratual, tendo
necessariamente que ser completa, precisa e formalmente adequada, a qual terá
que ser aceite pelo beneficiário, nos termos do art. 232.º CC.
Ora, a prática é também no sentido de que não haverá uma resposta por parte do
beneficiário a essa carta de garantia.
Defende-se, então, nestes casos, que há uma aceitação tácita por parte do
beneficiário, quer anterior quer posterior. Por um lado, é anterior porque resulta de um
comportamento manifestado no contrato base, exigindo ao devedor que arranjasse um
garante que emitisse a garantia. Por outro lado é posterior, porque o beneficiário, nos
termos do art. 234.º CC, não manifestou por qualquer forma não a pretender.
Nestes termos, justifica a doutrina que o facto de a garantia constar normalmente
apenas de um documento assinado pelo banco, não lhe retira o seu carácter contratual: é
necessária aceitação da proposta contratual, mas esta não tem que ser escrita (219.º CC);
e essa declaração pode ser tácita35
.
A jurisprudência mal se refere a esta questão da aceitação ou falta de aceitação,
dando por assente, na maior parte dos casos, que se está perante contrato de garantia
bancária autónoma.
A verdade é que, se há casos em que é óbvio estar-se perante um contrato de
garantia bancária autónoma, nos termos em que o banco faz uma verdadeira proposta ao
beneficiário, ainda que este aceite tacitamente, podem suscitar-se casos em que a carta
de garantia se parece dever qualificar de negócio jurídico unilateral. Isto leva-nos à
conclusão de que só apreciando o caso concreto, tendo em conta todo o processo
conducente à emissão da garantia, é que o intérprete poderá qualificar ou não a garantia
em causa de contrato.
32
Acórdão do TRL de 11-12-1990 (Santos Monteiro), CJ, ano XV, 1990, tomo V, pp. 135 e ss. 33
Acórdão do TRP 08-05-2008 (Manuel Capelo), in www.dgsi.pt . 34
Veja-se designadamente neste sentido, FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., p. 530; e MÓNICA JARDIM, ob. cit., p. 22. 35
Veja-se neste sentido FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., p. 529; e MÓNICA JARDIM, ob. cit., pp. 101-103.
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6. Qualificação da relação jurídica entre o garante e o beneficiário – a
garantia bancária autónoma como negócio jurídico unilateral.
Como vimos, a posição maioritária, quer na doutrina, quer na jurisprudência é a de
que a relação que se estabelece entre o banco (garante) e o beneficiário é uma relação
contratual.
Mas na verdade, só perante uma análise casuística é que se poderá aferir.
Na prática, a declaração do banco (garante) é no sentido de pôr à disposição do
beneficiário tal montante pecuniário, quando este prove o incumprimento da obrigação a
que o devedor estava adstrito no contrato base, ou quando este a solicite, nos termos
previstos na garantia, mediante a apresentação de uma declaração. Isto é, não se espera
uma aceitação por parte do beneficiário e na maior parte dos casos esta aceitação não
ocorre, quer expressa ou tacitamente, o que nos levaria a dizer que certos casos parecem
consubstanciar um negócio jurídico unilateral e não já um contrato, pois há apenas uma
única declaração negocial da qual resultam todos os efeitos jurídicos estipulados.
Esta simples declaração negocial parece vincular o seu autor (banco/garante), em
termos da constituição da obrigação de prestação da garantia autónoma.
Ocorre que entre nós se encontra consagrado, no art. 457.º do CC, o princípio da
tipicidade dos negócios jurídicos unilaterais enquanto fonte de obrigações, e de
acordo com FRANCISCO CORTEZ “se defendêssemos a tese de que a relação entre
garante e beneficiário se consubstancia num negócio jurídico unilateral – posição
isolada na doutrina – teríamos que rejeitar liminarmente a admissibilidade da figura no
direito português face ao princípio da tipicidade nos negócios jurídicos unilaterais (art.
457.º CC)” 36
.
O professor CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA defende que em certos casos
podemos estar perante um negócio jurídico unilateral, legitimando esta posição por
força do costume internacional. O costume é uma das fontes primárias do direito
internacional e consiste na prática reiterada dos sujeitos do Direito Internacional, isto é,
numa prática geral aceite como sendo direito. Pois a prática é a da emissão da
declaração por parte do garante (banco) dando conta da existência de uma garantia
constituída a favor do beneficiário e não se espera a aceitação deste, nem a declaração
do banco está formulada nesse sentido. Parece que esta declaração do banco o vincula
em termos de constituição da obrigação de prestação de garantia, não estando sujeita a
aceitação.
Veja-se a este propósito o art. 6.º das Regras Uniformes para as garantias autónomas
à primeira solicitação da Câmara de Comércio Internacional37
do qual se retira que a
tendência é da emissão da declaração pelo banco sem se verificar a aceitação do
beneficiário como se fosse usual a sua não ocorrência, e tal em nada prejudica tal
relação, pois esta existe e produz os seus efeitos.
36
C. FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., p. 530. 37
C. ROY GOODE, Guide to the ICC Uniform Rules for Demand Guarantees, ICC Publishing, Paris, 1992, p. 57.
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7. Relação entre o dador de ordem e o garante é qualificável de contrato
a favor de terceiro?38
Se respondermos que sim, o problema que se levanta é que o direito do terceiro
(beneficiário) está dependente das vicissitudes da relação entre promitente e promissário
(garante e dador de ordem) – art. 449.º CC. Isto é, o promitente (banco) poderá opor os
meios de defesa derivados do contrato celebrado com o promissário. Daí que se
argumente que, se considerarmos que tal relação entre o dador de ordem e o garante é
qualificável como contrato a favor de terceiro, a característica essencial da autonomia se
perderia.
Questão que se coloca é se a norma do art. 449.º CC será supletiva ou imperativa?
Se for imperativa, não é afastável e, por isso, prejudica-se a autonomia da garantia; mas,
por outro lado, se for supletiva, o promitente e o promissário poderão afastá-la e, nesse
caso, a autonomia da garantia não fica prejudicada.
Em qualquer caso, a qualificação de contrato a favor de terceiro tem a consequência
de alterar a figura triangular de relações já enunciada, uma vez que a garantia seria um
mero efeito decorrente desse contrato, nos termos do art. 444.º/1 CC. Isto significa que a
garantia bancária autónoma nasceria directamente do contrato a favor de terceiro, não se
podendo qualificar nem de contrato nem de negócio jurídico unilateral – a garantia não
seria um negócio jurídico.
Na verdade, a tendência jurisprudencial, tendo em conta as decisões por nós
analisadas, não vai no sentido de qualificar tal relação entre o devedor e o banco de
contrato a favor de terceiro, não se chegando sequer a indagar sobre a sua configuração
no que respeita à garantia bancária autónoma.
8. Modalidades de garantia bancária autónoma: garantia simples e à primeira
interpelação (on first demand)39
.
Para a distinguir as garantias bancárias autónomas simples das garantias bancárias
autónomas à primeira solicitação, devemos ter em linha de conta a evolução das regras
uniformes da CCI. Em 1978 foram publicadas as Uniform Rules for Contract
Guarantees, que uniformizaram na prática internacional as designadas garantias
autónomas simples (em que se exige ao beneficiário prova do incumprimento do
contrato-base por parte do devedor); posteriormente, em 1992, em resposta a problemas
suscitados pela exigência de prova ao beneficiário das garantias autónomas simples,
foram publicadas as Uniform Rules for Demand Guarantees, que se referem às garantias
38
Veja-se FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., p. 526, nota de rodapé 38; MÓNICA JARDIM, ob. cit., pp. 51-52; PEDRO ROMANO MARTINEZ/PEDRO FUZETA DA PONTE, ob. cit., p. 134. 39
Sobre as modalidades das garantias autónomas, veja-se INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, ob. cit., pp. 280-282 (confundindo os conceitos de autonomia e de automaticidade); FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., pp. 535-541; MÓNICA JARDIM, ob. cit., pp. 84-92; PEDRO ROMANO MARTINEZ/PEDRO FUZETA DA PONTE, ob. cit., pp. 135-137 e nota de rodapé 330; LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, ob. cit., pp. 342-345.
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autónomas à solicitação, as quais apenas requerem, em princípio, a exigência de pedido
por escrito por parte do beneficiário para o pagamento da garantia.40
Assim, pode-se sintetizar a diferença entre tais modalidades dizendo que as
simples são garantias condicionais e que as on first demand, são incondicionais (ou
quase incondicionais).
O Acórdão do TRC de 26-11-199641
faz uma sucinta distinção de tais
modalidades, dizendo que na “garantia simples, o beneficiário, para exigir a obrigação
do garante, tem de provar a ocorrência dos pressupostos que condicionam o seu direito,
na garantia à primeira solicitação, não tem esse ónus” e que “por não ter esse ónus o
pagamento não lhe pode ser recusado por não se demonstrar que se verificam os
pressupostos do incumprimento por parte do garantido”.
A prática jurisprudencial portuguesa é a de interpretar, no caso concreto, nos
termos das regras de interpretação constantes dos arts. 236.º/1 e 238.º/1 CC, as
cláusulas da carta de garantia de modo a determinar se se deve entender tal garantia
autónoma por uma garantia autónoma simples ou por uma garantia autónoma à primeira
solicitação ou on first demand.
O TRC na decisão mencionada considerou que o mandante, ao autorizar o banco a
pagar qualquer importância que porventura viesse a ser pedida pela entidade a quem era
prestada a garantia, sem que por qualquer forma tivesse de averiguar a razão da
exigência, configurava uma cláusula típica das garantias bancárias em pagamento à
primeira solicitação.
Outro exemplo será o do Acórdão do STJ de 19-05-201042
, em que o tribunal
considerou que “a utilização das expressões garantia incondicional e irrevogável e a
obrigação de pagar ao beneficiário por interpelação e imediatamente não podem deixar
de conferir a natureza de garantia autónoma „on first demand‟, ou seja, à primeira
solicitação ou primeira interpelação.”
No sentido da garantia bancária autónoma simples foi a decisão do TRC de 27-01-
200443
que, apreciando as cláusulas em concreto, considerou que “além de não se
encontrar inserida no contrato qualquer cláusula expressa no sentido da garantia on first
demand, o que a tornaria incondicional, certo é que do teor do instrumento em análise
consta ainda que essa responsabilidade só se verificará se a garantida faltando ao
cumprimento das suas obrigações, não entrar com as importâncias que deva em devido
tempo”.
40
Veja-se ROY GOODE, ob. cit.; WILLEM J. H. WIGGERS, International Commercial Law: Source Materials, Kluwer Law International, The Hague, 2001, pp. 437-441 e 442-444. 41
Acórdão do TRC de 26-11-1996 (Santos Lourenço), CJ, ano XXI, 1996, tomo V, pp. 27-29. 42
Acórdão do STJ 19-05-2010 (Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt . 43
Acórdão do TRC de 27-01-2004 (Távora Victor), CJ, ano XXIX, 2004, tomo I, pp. 17-21.
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Como se pode ver, tudo se resume à análise do clausulado da garantia autónoma
para se poder aferir se estamos em presença de uma garantia bancária autónoma simples
ou perante uma garantia bancária autónoma à primeira solicitação.
9. Fundamento de recusa legítima de pagamento pelo garante ao
beneficiário - limite à autonomia.
Vimos que a garantia bancária autónoma à primeira solicitação ou a pedido (on first
demand) faz com que a característica principal da figura, a autonomia, atinja o seu grau
máximo.
Mas será esta autonomia absoluta?
É pacificamente aceite que a autonomia da garantia não é absoluta, mas limitada. “A
questão mais controversa é a de saber quais são rigorosamente esses limites que atingem
a autonomia, sem ferir de morte a característica fundamental do instituto”44
. Ou melhor,
“a questão será apenas a de saber que meios de defesa pode usar quem a presta quando
o seu cumprimento é solicitado por quem dela beneficia”45
.
Que excepções poderá o garante opor ao beneficiário como fundamento de
recusa do cumprimento da obrigação, sem que se corra o risco de perder a “chave-
mestra”46
da garantia bancária autónoma?
Os fundamentos de recusa, pelo garante, podem, desde logo, ter por base a sua
relação com o beneficiário. É certo que as excepções que emanam da relação de
garantia autónoma propriamente dita podem ser usadas pelo garante contra o
beneficiário (a título de exemplo, a garantia autónoma que é solicitada após o termo da
sua validade; o beneficiário que solicita um montante superior ao que consta na garantia
autónoma47
).
Deixando de lado as excepções que são próprias da relação entre garante e
beneficiário, isto é, pressupondo que o beneficiário aquando da solicitação da
garantia cumpre todos os requisitos exigidos, pode, ainda assim o garante opor-lhe
alguma excepção?
Como vimos a autonomia significa inoponibilidade de excepções pelo garante ao
beneficiário, excepções derivadas tanto da sua relação com o garantido como da relação
base (entre garantido e beneficiário)48
. Mas esta autonomia não é absoluta, é sim
relativa, ou seja, o garante pode opor ao beneficiário excepções. Veremos quais e em
44
C. FRANCISCO CORTEZ, ob cit., p. 596. 45
Acórdão do TRP de 04-11-2008 (Cândido Lemos) in www.dgsi.pt. 46
Expressão usada por FRANCISCO CORTEZ, ob. cit., p. 597. 47
Para mais exemplos v. MÓNICA JARDIM, ob. cit., p. 280. 48
“O banco só tem de pagar o que consta do título de garantia e em harmonia com o respectivo teor, devendo pagar ao primeiro pedido, imediatamente, e sem discussão. Mas desde que o beneficiário respeite esse teor e reclame o que face à garantia lhe é devido, o banco não tem outro remédio senão pagar, de imediato, sem hesitações, sem discussão.”,
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que termos. Como refere Mónica Jardim, a garantia autónoma não tem só vantagens
pois envolve o risco de ser solicitada injustamente ou de forma abusiva49
.
Existem dois casos nucleares em que a doutrina e a jurisprudência consideram que o
garante deve recusar o cumprimento da prestação, a entrega do montante pecuniário
ao beneficiário: ilicitude da causa por violação da ordem pública e fraude manifesta
ou abuso evidente.
Quanto à primeira excepção a ilicitude da causa por violação da ordem pública,
para a maioria da doutrina, o garante, que se vinculou a não opor ao beneficiário
excepções derivadas do contrato base, pode opor ao credor a excepção de invalidade do
contrato de garantia, sempre que o contrato base seja contrário à ordem pública e aos
bons costumes (a título de exemplo, um contrato de tráfico de droga). Mas já não pode
fazê-lo se o contrato base for inválido por outro motivo que não a ilicitude da causa por
violação da ordem pública.
Quanto à segunda excepção, fraude manifesta ou abuso evidente, o garante deve ter
em seu poder prova líquida e inequívoca dessa fraude ou abuso na altura da solicitação.
O garante deverá recusar a entrega da soma sempre que a solicitação do beneficiário
seja fraudulenta, atento o princípio da boa fé e da proibição do abuso de direito. Assim,
é caso extremo em que o banco pode recusar o pagamento, o caso em que o importador
(beneficiário) reclama o pagamento alegando não ter recebido a mercadoria, quando o
garante tem em seu poder documento comprovativo do desalfandegamento no país do
destino. Em casos do género, não basta a alegação da má fé do beneficiário ainda que
esta seja patente, deve o garante, para tal, ter prova documental em seu poder, de modo
a agir em absoluta segurança. A prova deve ser pronta e líquida, isto é, deverá permitir a
percepção segura da fraude ou abuso.
Num acórdão do TRP de 04-11-200850
, em que estava em causa a oposição de
excepções pelo garante ao beneficiário, o tribunal decidiu da seguinte forma: “neste
caso resulta que o oponente (garante entenda-se) não tem qualquer prova,
nomeadamente documental, de que existe abuso de direito ou má fé por parte da
exequente (beneficiário) em peticionar o pagamento alegando o incumprimento do
contrato base e como tal não poderá opor essa matéria de excepção, devendo
proceder ao pagamento da quantia exequenda”. E continua o tribunal “deste modo,
embora seja lícita a oposição com fundamento em abuso de direito ou violação dos
princípios da boa fé, todavia terá de ser invocado abuso ou violação grosseira
oferecendo logo prova inequívoca dos mesmos. Não basta para tal alegar o
incumprimento da relação subjacente à emissão da garantia”.
49
MÓNICA JARDIM, ob. cit., pp. 279 e ss. 50
Acórdão do TRP de 04-11-2008 (Cândido Lemos), in www.dgsi.pt. No mesmo sentido de que o pagamento pelo garante só deve ser recusado com base em prova documental inequívoca vai o acórdão do TRP de 10-04-2008 (Freitas Vieira), in www.gdsi.pt.
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É ainda admitida a instauração pelo garantido de providências cautelares, de
carácter urgente, com o objectivo de impedir que o garante entregue a quantia
pecuniária ou que o beneficiário a receba, devendo para o efeito apresentar prova
líquida e inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário.
O seguinte excerto do acórdão do TRL de 19-01-201051
traduz o pensamento da
jurisprudência em relação à admissibilidade de providências cautelares intentadas neste
âmbito: “a autonomia da garantia, designadamente, da garantia automática ou à
primeira solicitação, face ao contrato base, não é absoluta, já que, em caso de
fraude manifesta ou abuso evidente por parte do beneficiário, o garante pode e
deve mesmo recusar-se a pagar a garantia, porquanto, acima da regra acordada
pelas partes, estão os princípios da boa fé e da proibição do abuso do direito.
Assim, pretendendo o devedor lançar mão de medidas cautelares destinadas a
impedir o beneficiário de receber a garantia, o êxito final dessas medidas, que
constituem, inquestionavelmente, um excepcional meio de defesa, dependerá da
prova inequívoca do comportamento manifestamente fraudulento ou abusivo do
beneficiário. O que vale por dizer que, no âmbito da garantia autónoma, sempre
que a providência cautelar seja requerida como forma de obstar a um
aproveitamento abusivo da posição do beneficiário, deve ser exigida prova pronta
e líquida, sendo, pois, insuficiente a consideração do simples fumus bonus iuris,
típico das providências cautelares, sob pena de violação da essência da garantia
autónoma à primeira solicitação. A fraude manifesta e o abuso evidente implicam
a prova pronta e líquida, sendo que, a prova é pronta (preconstituída) quando não
se mostra necessário requerer a produção de provas suplementares e é líquida
(inequívoca) quando permite a percepção imediata e segura da fraude ou do abuso,
tornando-os óbvios”.
O acórdão do TRL de 16-04-200952
dá-nos conta do decretamento de uma
providência cautelar: “por douta decisão cautelar de 6 de Outubro de 2008, decretou-se
que a requerida, Cooperativa, se abstivesse de prosseguir com o pedido de pagamento
do montante de 41.542.15 €, por via do accionamento da garantia bancária, “on first
demand” nº125-02-0451208, emitida em 10 de Outubro de 2003 pelo Banco requerido,
até trânsito em julgado da acção que a requerente irá intentar contra os ora requeridos;
que o requerido Banco, S.A., se abstivesse de pagar à requerida Cooperativa o montante
de 41.542,15 €, em virtude do accionamento da identificada garantia bancária até
trânsito em julgado da acção que a requerente irá intentar contra os ora requeridos”.
Ocorre que a dita Cooperativa, CRL apelou de tal decisão, dando origem ao
mencionado acórdão do TRL de 16-04-2009, que julgou procedente a apelação da
Cooperativa, CRL e revogou a douta decisão cautelar de 6 de Outubro de 2008.
51
Acórdão do TRL de 19-01-2010 (Roque Nogueira), in www.dgsi.pt. 52
Acórdão do TRL de 16-04-2009 (Rui Ponte Gomes), in www.dgsi.pt.
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Ficam, assim elencados, com ilustração jurisprudencial, os casos que relativizam a
autonomia da garantia bancária autónoma: ilicitude da causa do contrato-base por
violação da ordem pública e fraude manifesta ou abuso evidente por parte do
beneficiário. Fica também registada a possibilidade de instauração pelo garantido de
providências cautelares com os fundamentos e os termos já mencionados.
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10. Bibliografia
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WIGGERS, WILLEM J. H., International Commercial Law: Source Materials,
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Acórdãos do STJ
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Acórdão do STJ 19-05-2010 (Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt .
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Acórdãos do TRL
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Acórdão do TRL de 16-04-2009 (Rui Ponte Gomes), in www.dgsi.pt.
Acórdão do TRL de 15-04-2010 (Fátima Galante), in www.dgsi.pt.
Acórdão do TRL de 19-01-2010 (Roque Nogueira), in www.dgsi.pt.
Acórdãos do TRP
Acórdão do TRP de 10-04-2008 (Freitas Vieira), in www.dgsi.pt.
Acórdão do TRP 08-05-2008 (Manuel Capelo), in www.dgsi.pt .
Acórdão do TRP de 04-11-2008 (Cândido Lemos), in www.dgsi.pt.
Acórdãos do TRC
Acórdão do TRC de 26-11-1996 (Santos Lourenço), CJ, ano XXI, 1996, tomo V,
(pp. 27-29).
Acórdão do TRC de 27-01-2004 (Távora Victor), CJ, ano XXIX, 2004, tomo I,
(pp. 17-21).